Você está na página 1de 1

Uma gota de fenomenologia

(Paulo Moreira)

Uma coisa é a coisa que a gente vive nos ossos, nos nervos, na carne e na pele; aquilo
que chega e esfria ou esquenta o sangue do caboclo. Outra coisa bem outra é assistir
essa mesma coisa, mais ou menos de longe. Nem a mãe de um caboclo que passa fome
sabe o que é passar fome do jeito que o caboclo que passa fome sabe. A mãe sabe
outra coisa, que é o que é ser mãe de um caboclo que passa fome. Isso nem o caboclo
sabe: o que ela sabe é dela só, diferente do caboclo e diferente do médico que recebe o
tal caboclo e a mãe dele no hospital. O médico sabe da fome do cabloco de um outro
jeito porque ele já ficou mais longe daquela fome um tanto mais que a mãe e outro
tanto bem mais que o caboclo. O jeito que o médico sabe da fome daquele caboclo pode
ser mais ou menos só dele ainda, mas isso só se ele pôr muito reparo no caboclo e na
mãe dele. O que geralmente atrapalha o médico é que ele geralmente acha que sabe
mais da fome do caboclo que o próprio caboclo e a mãe do caboclo e por isso ele não
presta atenção nos dois e por isso ele acaba que sabe de uma fome que é igual à fome
que qualquer outro médico em qualquer outro hospital sabe. Mais longe ainda que esse
médico fica o jornalista que aparece do nada na porta do hospital para ver e falar com o
caboclo e a mãe dele e o médico para depois escrever sobre eles no jornal. O jornalista
é geralmente pior só porque geralmente ele acha que já sabe o que o caboclo, a mãe
dele e o médico sabem e que por isso sabe mais que eles todos. Agora, a pior raça
mesmo de todas é a do fé-da-puta que vem escrever sobre a história da fome do
caboclo, da mãe do caboclo, do médico e do jornalista porque esse já ficou tão longe,
mas tão longe, que o que ele escreve ainda parece ser mas já não tem quase nada que
ver com aquela fome do caboclo: o que ele escreve é essa tal de literatura. 

PS. Não custa lembrar que se a fome passar nem o caboclo sabe mais a mesma coisa
que sabia quando passava fome. O que ele tem depois que a fome passa e só uma idéia
(mais uma) do que era a fome que ele um dia passou. Quando ele pára de passar fome
e ainda acha que sabe o que é passar fome do mesmo jeito que o outro caboclo que
ainda passa fome ele arrisca pretensão quase tão grande quanto a do médico, do
jornalista e do bosta do escritor.

Você também pode gostar