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REVISTA ALCATEIA

REVISTA LITERÁRIA ALCATEIA


HTTPS://REVISTAALCATEIA.COM.BR

EDIÇÃO 1 | EXPERIÊNCIA CRIATIVA


71 PÁGINAS | ABRIL DE 2020

REDAÇÃO
CLAUS A. CORBETT
JULIA HELENA DE OLIVEIRA
PAULA CRUCIOL

REVISÃO
CLAUS A. CORBETT

PROJETO GRÁFICO
PAULA CRUCIOL

CAPA E ILUSTRAÇÕES
MARIANA LIO

CONTATO
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A ALCATEIA

é uma iniciativa de artistas cujo objetivo consiste em


proporcionar aprendizado coletivo, troca de informações,
opiniões, compartilhamento de experiências e diálogo entre
produtores de texto. Para nós, o texto pode ser constituído
tanto de palavras quanto de imagens, sendo ferramenta
poderosa de expressão, e a interpretação de textos e a leitura
vão além de reconhecimento e decodificação.

Por meio dos nossos artigos, publicados a cada dois


meses na revista, abordamos assuntos relacionados a
criatividade, originalidade, estratégias narrativas, construção
textual e diversas outras reflexões sobre a produção artística,
incentivando leitores, escritores e ilustradores a
desenvolverem as próprias habilidades textuais. Dessa
maneira, a produtividade artística e a leitura se tornam
práticas mais coletivas e colaborativas, fazendo escritores e
artistas (lobos solitários) encontrarem um grupo de suporte
e incentivo (alcateia).

A Alcateia também publica originais submetidos por


e-mail em suas edições, encorajando o compartilhamento de
produções autênticas e construindo um espaço de feedback
e crescimento individual, sendo não só revista como também
coletivo. Acreditamos que dar e receber opiniões sobre
nossos textos é o que nos faz desenvolvermos nossa
produção e nos tornarmos artistas ainda melhores. Os
originais são tanto palavras quanto imagens, poemas, prosas
e ilustrações — textos — que se encaixam nos temas de cada
edição.

Esta edição é sobre a experiência criativa.


POR QUE ESCREVEMOS? | 07

LEIO, LOGO ESCREVO | 10

POR QUE DEVEMOS ESTABELECER

NOVOS PADRÕES? | 15

PELAS LINHAS DO TEXTO | 23

A VOZ DE QUEM ESCREVE | 28

ORIGINAIS

A SONATA | 33

NEMESIS | 40

AGRIDOCE. AÇÚCAR E MEDO | 44


SUMÁRIO

CÂMBIO, DESLIGO | 46

DENSA VERDADE MATURADA | 52

POEMA DO INCERTO | 54

MESMAS MANHÃS DE QUALQUER DIA COMUM | 56

TEXTANDO: VENDE-SE GRIFO | 58


POR QUE ESCREVEMOS?
CLAUS A. CORBETT

A arte não precisa de motivos, mas isso não quer dizer que
não tenhamos motivos, desejos e pulsões para realizá-la ou
para apreciá-la. E a escrita é, no final, mais uma forma de
arte.
Por que, então, escrevemos?
Ursula K. Le Guin, escritora, artista das palavras,
questionadora e inovadora, disse que “Lemos livros
para descobrirmos quem somos”.¹ Talvez, então,
escrevamos também em busca de quem somos, de nossa
verdade.
Escrever é uma arte, uma terapia, uma forma de
autoconhecimento, uma vazão para nossos anseios e para
tudo que borbulha em nosso interior. Eu sei que escrevo
para me entender melhor, para ressignificar e revisitar
sentimentos e memórias longínquas, para colocar para
fora aquilo que não sei mais como expressar. Por isso,
aliás, considero a escrita uma arte. Entendo a arte como
uma forma de jogar ao mundo o que temos de precioso, de
íntimo, em um movimento catártico e belo.
Uma forma de re-apresentar o que está fora,
ressignificar o mundo em que vivemos.
Le Guin, em sua introdução ao livro The Left Hand
of Darkness, fala sobre a ficção científica como um
exercício intelectual, apontando que a função de tal
exercício — e, portanto, da ficção científica — não é prever
o futuro, mas “descrever a realidade, o mundo
presente”.²
A autora segue defendendo que nós, autores de
ficção, estamos a serviço da verdade. Queremos
representar o que vemos, às vezes através de metáforas ou
figuras de linguagem, às vezes através de mundos inteiros
inventados apenas para esse exercício intelectual acerca de
uma faceta do que entendemos como a verdade do mundo.
Queremos, antes de mais nada, descobrir nossas
verdades enquanto as expomos. É um processo complexo
e ao mesmo tempo tão natural quanto tudo mais em nossa
experiência do mundo como seres sociais e racionais. Por
isso, perseguimos a realidade que tanto precisamos sentir
“de uma maneira peculiar e desonesta, que
consiste em inventar pessoas, lugares e eventos
que nunca existiram ou ocorreram e nunca
existirão ou ocorrerão”,³ colocando nessas nossas
criações toda nossa emoção, todo aquele sentimento
emaranhado às nossas próprias vivências.
Eu diria que escrevemos e lemos livros para nos
descobrirmos. Para explorarmos, sentirmos, pensarmos,
vivenciarmos. Pelas catarses, pelas experiências novas.
Para fazermos jus àquela clareza efêmera de uma
verdade que não conseguimos exprimir claramente em
frases lógicas, simples, científicas. Nesta nossa edição
inaugural, é esse o nosso convite a vocês. Tentemos refletir
alguma luz sobre as verdades do mundo enquanto lemos,
escrevemos e nos descobrimos.

¹ Ursula K. Le Guin. The Language of the Night: Essays on


Fantasy and Science Fiction. Ultramarine Publishing, 1980. p.
31. Tradução nossa.
² Ursula K. Le Guin. The Left Hand of Darkness. SF
Masterworks Kindle Edition. Londres: The Orion Publishing
Group, 2017. Tradução nossa.
³ Idem.
LEIO, LOGO ESCREVO
PAULA CRUCIOL

Quem escreve, lê.


Essa é uma afirmação simples, mas verdadeira na
comunidade de escritores por aí. Antes de escrever, nossa
paixão era ler ou o impulso para escrever resultou no gosto
pela leitura; não importa tanto o que veio primeiro, mas o
fato de que ambos andam juntos e dão suporte um ao
outro. Essa relação cria uma espécie de ciclo produtivo,
fazendo com que escritores leiam e leitores escrevam. Que
textos lidos inspirem a escrita e a escrita seja seguida de
leitura.
O ciclo que se forma não tem etapas definidas ou
ordem preestabelecida, pois cada um lida com a própria
produção e leitura de textos de maneira distinta. No
entanto, é inegável que há uma ligação e um impulso que
mantém o ciclo autossustentável. Estamos sempre lendo,
sempre escrevendo, indo e vindo nas nossas produções e
nas produções que nos interessam e em cada etapa desse
ciclo mudamos da posição de escritor para a de leitor,
assumindo função não só de alvos da obra, mas de seus
analistas e críticos.
O retorno aos nossos textos como outra entidade
nos permite enxergar as mesmas palavras por diferentes
perspectivas, encontrando erros, incoerências e desvios da
ideia original que de outra maneira dificilmente seriam
encontrados. A leitura nos permite desenvolver a escrita.

Do mesmo modo, a escrita permite nosso


desenvolvimento como público leitor, possibilitando
diversas maneiras de enxergar uma obra: pela perspectiva
de quem também produz, pela perspectiva de quem sabe
por onde buscar as intenções de quem escreveu e, de certa
forma, ler através das palavras. Há diferentes formas de ler
um texto, pois há diferentes elementos nos quais podemos
focar e ter experiência com a escrita abre o leque de
possibilidades para as interpretações e, principalmente,
para as análises e os julgamentos.
Todo mundo que escreve lê. Contudo, nem todo
mundo que lê escreve. Por quê?
Uma das razões pelas quais isso pode acontecer
está no fato de que leitura e escrita são movimentos
contrários em torno de um mesmo objeto. “A
composição canaliza; a leitura, pelo contrário [...]
dispersa, dissemina”,¹ disse Roland Barthes em seu
texto Escrever a leitura, que se tornou um dos capítulos
de O rumor da língua. A escrita é convergente, junta
vários elementos imaginários e os transforma em
elementos visuais: letras e palavras. A leitura, por outro
lado, parte desses elementos visuais específicos e abre as
portas para um mundo de imaginação, criação e liberdade.
As letras e as palavras são as mesmas para quem quer que
observe, mas as ideias despertadas por elas são únicas para
cada observação.
Assim, apesar de o texto ser o objeto presente nas
duas atividades, ora ele é fim e ora é início e os
movimentos de convergência e divergência propiciam
diferentes experiências. Dessa forma, ler e escrever são
práticas comuns aos escritores e isso os influencia no
momento de leitura de diferentes obras, mas os não-
escritores não têm o mesmo leque de perspectivas. Essa
diferença pode representar um desafio em relação ao
modo de elaborar o texto, pois, como nós mesmos
percebemos ao voltar aos nossos textos, muitas vezes a
ideia original não fica bem expressa e a interpretação leva
ao seu afastamento. E não queremos nos afastar da ideia
original de nossos textos.
O que parece ser uma ferramenta útil nesse
desafio, além da análise das nossas próprias produções, é
a atenção quanto às descrições no texto. Apesar de
dispersa, a leitura não é necessariamente um ato livre de
restrições. É importante ter em mente quais as ideias
principais transmitidas por cada cena e procurar maneiras
para destacá-la, colocando mais detalhes; por exemplo,
usando palavras-chave ou até mesmo usando formatação
a seu favor. As maneiras de destacar uma ideia no texto e
tentar garantir sua permanência durante a interpretação
são muitas e cada texto pode usar uma estratégia diferente.
Podemos nos inspirar na escrita alheia,
observando onde há mais e onde há menos descrições, que
palavras são usadas para desenvolver sentimentos e
personagens e assim podemos criar margens
interpretativas. Não há como limitar a interpretação, mas
é possível guiá-la e manter interessadas as pessoas que
encontram nossas produções; e não é esse nosso maior
objetivo como escritores? Pois quem escreve lê, mas
também quer ser lido.

¹ Barthes, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Martins


Fontes, 2004. p. 28.
POR QUE DEVEMOS ESTABELECER NOVOS
PADRÕES?
JULIA HELENA DE OLIVEIRA

Os novos romances históricos, por mais que tentem passar


ao leitor a sensação de uma atmosfera clássica, camponesa
e polida, são um terreno complexo, colérico e que
dificilmente agradará a todos os gostos: há aqueles que
cobram por voz feminina e representatividade, enquanto
do outro lado há aqueles que preferem que a narrativa se
atenha totalmente à realidade histórica da época — e,
como veremos, esta é uma discussão mais profunda do que
aparenta ser.
No momento cultural em que vivemos, há tantas
adaptações de obras clássicas quanto livros novos sendo
escritos, ambos servindose da mesma fonte e período. O
cinema sempre recorreu à fonte inesgotável que é a
literatura. Diversas adaptações cinematográficas foram
feitas a partir de livros clássicos e canônicos, e por muito
tempo o esperado do espectador era ver exatamente a
mesma obra da qual já foi leitor com pouquíssimas
alterações. Entretanto, essas versões caíram no comum e
passaram a interessar menos, já que a sociedade evolui e ,
com ela, os pensamentos. Ainda é interessante observar
como vivia a população de tempos anteriores, porém é
natural sentir falta de elementos que a cultura da época
suprimia: a voz dos que eram calados.
As novas obras de época e adaptações de clássicos
nos mostraram que é possível enriquecer uma trama já
conhecida com novos elementos sem que se perca o
essencial do original. Percebemos, então, que os filmes e
séries que se mostram idênticos às obras clássicas em que
foram baseados causam menor interesse — e até
desapontam. Da mesma forma, os romances de época
atuais têm uma melhor recepção quando descrevem
realidades pouco tocadas nas narrativas do passado.
O ponto que parece causar arrepios em alguns
leitores é: até onde é permitido ir para se manter a precisão
histórica? Na verdade, qual é a realidade da precisão
histórica?
Por mais que nos filmes que você passou a vida
assistindo não apareçam muitas feministas, deficientes e
pessoas negras, queer e indígenas, elas sempre existiram e
sempre estiveram presentes na sociedade, mesmo que
marginalizadas no âmbito narrativo — sabemos bem que
não apenas nele. Não existiam apenas negros escravos ou
indígenas incompreensíveis “sem civilização”. Ao
criarmos uma obra que se passa em determinado período,
é uma escolha sua deixá-los de fora ou representá-los
estereotipados.
É a ignorância do público que leva aos tais
comentários raivosos sobre cobrança por mais
diversidade, agindo em nome da “precisão histórica”
que não deve incluir tais representações. É a partir da
imprecisão histórica que surgem as desculpas, e muitos
agem preconceituosamente sem ao menos saber. Muitas
vezes, esse discurso não foi baseado em nenhum estudo
que a pessoa tenha feito e sim em algo que ela tenha
assistido por muito tempo e, portanto, simplesmente se
acostumou e adotou como verdade.
Fomos acostumados e criados para acreditar na
visão de Europa branca, patriarcal e elitista, a maior
criação ideológica do imperialismo, que nos acompanha
até os dias de hoje. Nos séculos passados, o romance não
foi apenas uma forma de entretenimento, mas também
uma forma de concretizar esse imperialismo.
Importante intelectual palestino, Edward Said¹
foca, em sua pesquisa sobre cultura e o colonialismo, na
dimensão artística da literatura, a narrativização da
sociedade. Para o autor, o imperialismo não se concretiza
apenas pela violência e pela conquista da terra, pois esses
fatores dependem especialmente de influência para se
alastrar. Essa coerção ocorre a partir de representações,
ideologias e imagens emblemáticas, fáceis de guardar e
reproduzir e, por isso, nesse sistema o romance encontra
um fértil campo para atuar.
Apesar da finalidade do imperialismo ser a
conquista de territórios, a discussão sobre quem tinha
direito sobre a terra era decidida pelo âmbito da narrativa
e, dessa forma, o romance se tornou o principal método
para o colonizador afirmar sua identidade e nacionalidade,
apagando as “margens”, aqueles que não interessavam
na construção de um homem branco herói.
Liberdade criativa é essencial para a escrita
contemporânea. Escreva o que quiser escrever, mas esteja
preparado para as análises e críticas e todas as
consequências de suas palavras. Tomar responsabilidade é
o primeiro passo; o segundo é tentar compreender o que o
outros autores pretendem com suas obras, mesmo que seja
algo que você pessoalmente discorde. Abra espaço para
analisar, se permitir novas visões e leituras de coisas que
você já conhece.
Com isso em mente, o que realmente queremos é
permitir um espaço seguro para essas adaptações e novas
perspectivas sobre o passado.
Citando exemplos contemporâneos, em Doctor
Who, série britânica da emissora BBC, o décimo segundo
Doutor, vivido por Peter Capaldi, caminha pela Londres do
século XIX com Bill Pots (Pearl Mackie), que diz que a
cidade estava “um pouco mais negra do que
aparecia nos filmes”, fala que causou um choque e
críticas positivas da audiência, pois de fato negros são
quase inexistentes nessas adaptações, o que não quer dizer
que eles não estavam lá desde o início, bem antes de
começarmos a cobrar por diversidade.
Tudo isso nos leva para as obras
contemporâneas e a desculpa do machismo e da falta de
diversidade. Pois mesmo que escrevamos sobre o passado,
“não poderia fazer diferente, estamos falando de
séculos atrás, tudo bem relevar o comportamento
machista e violento do protagonista e a falta de
personalidade da mocinha, porque era assim
mesmo, colocar diversidade é uma imprecisão
histórica!” Talvez você já tenha visto esse tipo de
comentário em alguma rede social, seguido de um discurso
raivoso.
Avalie por um momento esse cenário muito
comum: dois romances escritos no mesmo ano, ambos
apresentam machismo, um é situado em tempos atuais e
outro na era vitoriana. Um receberá duras críticas e, do
outro, ouviremos: “tudo bem, por que na época era
assim.”
Uma coisa é ler Jane Austen, sabendo que a
escritora tinha uma noção de machismo que para sua
realidade era comum, outra são mulheres do século 21
escrevendo romances machistas com personagens fracas e
influenciáveis pelo grande homem branco, rico e bom. Não
releve: critique, cobre.
Ninguém menos que o tal do imperialismo criou
essa imagem que vemos os leitores e espectadores
repetindo sem questionar. Ele o fez tão bem que ficamos
até indignados quando algo sai desse padrão. Outra vez, a
“imprecisão histórica” em nome das formas de
entretenimento que você se acostumou a consumir.
Por fim, é interessante citar uma obra que soube
fugir muito bem disso, a série Anne with an E, baseada
no clássico Anne of Green Gables, da escritora canadense
L . M . Montgomery. A série da showrunner Moira Walley-
Beckett teve a coragem de explorar uma história canônica
e trazer um novo frescor, novas tramas e ideias, sem que
por nenhum momento se perca a essência da querida
protagonista, Anne Shirley.
O novo tipo de público criou uma necessidade e
curiosidade muito grande em ver o lado dos que não eram
retratados nas antigas adaptações, o que a série Anne with
an E faz muito bem, mostrando os indígenas canadenses,
o povo negro de Trindade, o racismo na Ilha do príncipe
Eduardo e uma comunidade de artistas queer. Embora
Anne possua uma personalidade que recusa quaisquer
preconceitos, outros personagens muito interessantes,
como Marilla, Diana e Rachel Lynch, devem lidar com seus
preconceitos, descobrindo que o mundo vai muito além da
pequena sociedade onde vivem.
É esse tipo de adaptação que queremos ver mais
por aí; queremos ver nossos amados personagens
inseridos no mundo não eurocêntrico, queremos
representação não forçada e espontânea.

¹ SAID, Edward W. Cultura e Imperialismo. Denise Bottman


(trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
PELAS LINHAS DO TEXTO
PAULA CRUCIOL

As razões que levam alguém a começar a escrever são


inúmeras e podem variar drasticamente de uma pessoa
para outra. Queremos nos expressar, criticar, exaltar ou
simplesmente inventar. Queremos rimar, descrever,
despertar reflexões ou criar diálogos, ter nossas vozes
ouvidas, transmitir nossas mensagens e muitos outros
desejos, um diferente do outro a cada texto, um diferente
do outro para cada escritor. Contudo, de uma forma geral,
o que temos em comum e que nos mantém escrevendo é o
desejo de ter nosso esforço técnico e artístico reconhecido
a cada leitura.
No entanto, escrever não é fácil.
A escrita é uma atividade que demanda tempo,
planejamento, análise, trabalho físico e mental. Nem
sempre é possível ficar olhando para a tela e batendo no
teclado, ou dançando uma caneta pelo papel pelo tempo
que se gostaria e nem sempre nosso trabalho é satisfatório
logo de primeira e isso pode ser uma grande frustração.
Escrever é difícil e por mais que tenhamos objetivos com
nossas obras e tentemos encontrar força e tempo
suficientes para alcançá-los, motivação sempre será uma
questão delicada para quem escreve. Começar a escrever
não é um problema, mas como continuar escrevendo?
Um dos fatores que podem dificultar a progressão
do texto é exatamente o entendimento do que é
progressão, avanço, continuidade. A tendência é que
escrita e enredo andem juntos; ou seja, queremos que a
primeira cena da história, o primeiro parágrafo do texto,
seja também o primeiro a ser escrito e toda a escrita seja
ordenada com cenas e parágrafos consecutivos até o fim,
que é , por sua vez, a última coisa que escrevemos.
No entanto, essa ordem não precisa ser seguida
para que o texto seja concluído. A palavra texto se
relaciona, de acordo com sua etimologia, a tecidos e a
palavra linha, a fios de tecido, e tecidos podem ser
costurados, linhas podem se cruzar e grandes porções de
textos distintas podem se unir e formar apenas uma trama.
Então por que escrever todas as cenas e todos os
parágrafos em ordem se o texto pode ser rearranjado? A
última cena pode ser a primeira a ser escrita e parágrafos
soltos, fruto de inspiração momentânea, podem ser
elaborados e inseridos nos locais mais adequados ao
enredo. Muitas coisas nos inspiram a escrever e nem
sempre nossa imaginação nos leva em direção à
construção contínua do texto, mas não há mal nenhum em
sua fragmentação. E assim vai se formando o tecido do
texto: costurando uma cena na outra, um personagem no
outro, um trecho de cada vez.
Essa costura, inclusive, pode ser um fator
motivador para quem escreve. Estar sempre escrevendo,
por mais que o texto não esteja crescendo de maneira
linear, pode elevar nossa energia e nosso senso de
produtividade escrita.
Uma parte importante do processo de escrita é
também a edição; da mesma forma que uma peça de tecido
precisa passar por cortes para tomar forma, um texto
também precisa passar por análises e mudanças,
supressões e acréscimos e o que é a escrita de cenas
isoladas para depois serem unidas em sequência se não a
edição do texto? O importante é escrever. Em ordem, sem
ordem, continuamente, de maneira fragmentada,
escrevendo parágrafos e descrições soltas para depois se
encaixarem em algum lugar ou ir preenchendo os espaços
conforme eles aparecem.
A razão para começar a escrever podem variar de
uma pessoa para outra; contudo, além da escrita, algo
sempre permanece o mesmo para todos os textos: uma
ideia.
Todos os textos partem de uma ideia — completa
ou não, com muitos ou poucos detalhes, mais abstrata ou
mais concreta — e ela é o primeiro fator impulsionador do
texto e não precisa ser somente a base da obra. A ideia
pode ser o que mantém a energia de quem escreve durante
todo o texto, pode ser o que nos mantém motivados.
A história que queremos contar ou o texto que
queremos escrever tem pontos altos e baixos, com
variações de emoção, trechos descritivos, discursos
argumentativos, diálogos curtos e longos e muitos outros
elementos, transições e , por mais que nem sempre cada
detalhe esteja planejado, temos em mente as partes que
estamos mais ansiosos para escrever ou que nos causam
maior emoção. Por que não começar por elas? Por que não
começar o texto pela parte que nos traz maior empolgação,
que nos deixa mais animados para continuar escrevendo?
Por que não só escrever?
A VOZ DE QUEM ESCREVE
PAULA CRUCIOL

A definição mais popular de voz tende a ser o som ou o


conjunto de sons produzidos pelas vibrações das pregas
vocais sob pressão do ar que percorre a garganta.
Relacionada à prática discursiva, voz é manifestação de
opinião, julgamento, súplica, protesto.
A voz na escrita criativa pouco tem a ver com
ondas sonoras, mas parece bastante relacionada à segunda
definição; no mundo da escrita criativa, é outra palavra
para falar do estilo de cada escritor e sua razão de escrever.
Vocabulário, expressões, extensões de parágrafo,
linguagem, enredo e vários outros elementos combinados
de maneira única para caracterizar cada autoria.
Ninguém escreve como eu, ninguém escreve como
você — cada um de nós tem a própria voz.
E a voz, no entanto, devido ao seu inegável caráter
único, tem sido o centro de discussões cada vez mais
frequentes sobre representatividade.
Um texto dá voz a quem escreveu ou permite que
quem escreveu dê voz a outras pessoas? A resposta parece
estar no conteúdo do texto e na própria identidade de
quem escreve. Quem são os protagonistas e os
antagonistas e quais são suas vozes, suas opiniões, seus
julgamentos e seus protestos? Como isso se relaciona a
quem escreveu o texto?
Dependendo de como essas vozes ( ou essa voz) se
manifesta para os leitores, o texto é bem ou mal recebido.
Roland Barthes (1915-1980), sociólogo, semiólogo e crítico
literário francês, falou sobre isso em Da obra ao texto, que
se tornou um dos capítulo de O rumor da língua. Ele
afirma:

A escritura é a destruição de toda voz,


de toda origem. A escritura é esse
neutro, esse composto, esse oblíquo
pelo qual foge o sujeito, o preto e
branco em que vem se perder toda a
identidade.¹

Com isso, Barthes sugere que não é possível


determinar de quem são as ideias no texto. Quem escreve
se inspira por experiências, reflexões, observações e
infinitas outras coisas, e a escrita de ficção muitas vezes
coloca-nos frente a conflitos entre nós e nossos
personagens, nossas criações. É para isso que serve a
ficção, não é? Uma de suas funções parece sempre ter sido,
entre outras coisas, a formulação de hipóteses, uma
possibilidade de interagir com o que é diferente e permitir
o desenvolvimento de diversos cenários.
A escrita criativa dá liberdade a quem escreve para
contar qualquer história e é aí que entra o conflito de
vozes. As opiniões dos protagonistas, antagonistas,
personagens secundários e qualquer outro elemento que
possua voz no texto podem se confundir com as opiniões
de quem escreveu. E como separar essas opiniões, como
delimitá-las? Barthes sugere que essa divisão não seja
possível.
Por um lado, isso não parece ser um problema,
pois poucos escritores desejam a separação autor-obra;
esses dois elementos andam lado a lado, nós queremos
reconhecimento. No entanto, dependendo dos objetivos
do texto — romantizar, enaltecer, criticar, ironizar,
denunciar —, essa fusão acaba sendo perigosa, em especial
porque nem sempre os leitores podem determinar o
propósito de uma produção. Então, aquele que escreve o
texto pode sofrer as consequências de vozes que não são
suas.
Em termos práticos: um autor, por exemplo, pode
ser caracterizado como machista porque seu protagonista
é machista? Ou o autor é uma coisa e sua produção é
outra?
Escrever é ter voz, perder voz, ganhar voz ou dar
voz?
O que Barthes diz é que não há como estabelecer
um limite entre quem escreve e o que foi escrito e, nesse
sentido, a solução parece estar na história contada, no
que as vozes dizem muito mais no que quem está
dizendo, porque independentemente de quem está
falando, algo está sendo dito e nesse quesito Barthes não
expressa dúvida.
Que mensagem passa um personagem
preconceituoso que não sofre consequências ou apresenta
mudanças de caráter?
Que mensagem passa um enredo que beneficia
personagens opressores? E como essa mensagem está
sendo passada?
Como se sentem os protagonistas, como ocorre a
narração, qual o sentimento geral ao final do texto?
Essas perguntas parecem mais produtivas para
construir a obra e fazer transparecer a voz de quem escreve
ou mesmo uma espécie de voz geral do texto.
De qualquer forma, quem escreve precisa assumir
responsabilidade pela própria produção, especialmente
porque a pluralidade de vozes no texto pode ser tanto uma
ferramenta para representar diversidade e opiniões
conflitantes como também uma muleta para dizer o que
pensa e o que quer evitando consequências. “Não fui eu
quem disse isso, foi o personagem”, ou “isso
aconteceu porque era necessário para a história,
não fui eu quem escolheu”.
Mas que separação existe entre você e o
personagem, ou entre você e a história, se foi você quem o
criou, quem a escreveu? A fusão autor-texto é
praticamente inevitável, não é possível esconder opiniões.
Mas é possível dizer algo com elas. Porque as vozes são
primeiramente sons e sons são veículos de transmissão de
mensagens; é essa transmissão e é essa mensagem que
deve ser o foco de quem escreve.

¹ Barthes, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Martins


Fontes, 2004. p. 57.
A SONATA
FERNÃO GALVÃO
ESTUDANTE E ESCRITOR DE CONTOS E POEMAS.

Já era quase noite. As pessoas na rua voltavam do trabalho


para casa e havia considerável movimento nas calçadas.
Por nenhum motivo, decidi fazer um pequeno desvio e ir
por um caminho que passava por uma escola em reforma.
O filho de um amigo meu estudava lá e comentou comigo
que os alunos estavam de férias, então o movimento por
aquelas ruas seria menor.
Passei pela escola distraidamente. Escolhera
aquele caminho apenas pelo menor fluxo de pessoas.
Queria divagar lentamente pelas ruas sem que ninguém
me distraísse de minhas distrações. Não tinha interesse
algum na escola.
Logo após passar por ela, toda sem cor, com
betoneiras paradas e pilhas de areia, quando já estava
quase a ficar para trás, eu ouço uma nota. Um agudo e
chamativo ré bemol. A ele se seguiu outra nota e outra e
assim por diante, constituindo o mais belo e harmônico
Allegro que já contemplei.
Com curiosidade, dou meia volta e sigo o som.
Deparo-me com o portão da escola aberto e , de frente para
rua, no fim do corredor que se seguia, um jovem tocava o
violino com paixão e maestria. Fui me aproximar daquele
desconhecido que dominava a música com tanta destreza,
mas, ao andar em direção ao portão, fui surpreendido por
um segurança. Ele era baixinho, gordo, calvo e tinha uma
pinta grande na bochecha que me chamou a atenção.
Decidi ficar e ouvir do lado de fora mesmo, ao lado
do segurança. Afinal, o som do violino é alto o suficiente
para isso. Com o passar das notas, a paixão do jovem
músico ao manejar o arco aumentava, cada vez mais ele
imergia em sua harmonia, enquanto eu imergia em sua
contemplação.
A cada apresentação de tema, unidos pela ponte,
eu me identificava com o jovem. Parecia que ele se abria
com a música e eu o entendia. Tentei identificar a sonata,
mas não relacionei aquela exposição com nenhuma que já
conhecia. Concluí que era sua própria Sonata. Que o jovem
músico era também um jovem compositor.
A exposição seguia em seu ritmo acelerado e eu já
me apaixonara tanto pela música quanto pelo jovem. Com
o condizente tema de encerramento da codetta, findou-se
a primeira seção deste movimento, iniciando-se o
desenvolvimento. Cada vez mais cativado por aquela
beleza simples e harmônica, eu me deliciava com a
sequência de sons inédita para mim. Aquele
desenvolvimento me emocionava, e o músico me
emocionava junto. Aquela música, aquela Sonata, não era
um simples conjunto ordenado de notas, era a identidade
do músico, era o próprio músico transformado em arte.
Contudo, apesar de tanta perfeição no tocar, havia
algo de agonizante naqueles sons. Ao transferir sua
identidade para a Sonata, suas paixões, conquistas e
alegrias, o jovem transferira também suas decepções,
tristezas e desilusões. Como a música penetrava tão
facilmente em mim, me fisgava com facilidade, suas dores
também me trespassavam, atravessando-me como uma
lança que aflige uma dor cortante em meu corpo. Catarse.
Compadeci-me do jovem músico e tentei me aproximar;
porém, novamente, aquele gordo segurança me impediu.
Uma diminuição dessa aflição músico-emocional
teve vez com a repetição da exposição, onde pude
descansar uns instantes dos sentimentos exacerbados que
enchiam meu corpo; e , com a coda, achei que o Andante
do segundo movimento me traria ainda mais repouso.
Enganei-me. Aquela lenta sequência de notas não
me traria paz. Ao contrário, era um conjunto tão triste que
apenas trazia minhas mais cruéis e obscuras reflexões.
Lembrando-me do angustiante desenvolvimento em
Allegro do primeiro movimento, a minha preocupação
com o jovem músico retorna. Permaneço em meu lugar,
indagando-me se devo
ou não dar um jeito de
passar pelo segurança e
tentar conversar com o
músico. Quando
percebi que se fizesse
isso ele deixaria de
tocar, abandonei a
ideia. Era a mais bela
música que já ouvira.
Mesmo após
meu engano no fim do
primeiro movimento,
imaginei que com um
dançante Moderato ou
Allegretto os
tormentos seriam
lavados, dando
finalmente espaço para
uma contemplação
mais calma e fácil. Sem
fortes emoções. Mas se
não tivesse fortes emoções a Sonata não seria tão bela e
assim continuou: bela como jamais vi, trazendo-me as
mais horrendas e terríveis sensações e pensamentos. Se o
Allegretto do terceiro movimento era para dançar, a dança
era do jovem com seus abomináveis demônios.
Essa dança seria como um impressionante pas de
deux se não fosse pelo altíssimo número de demônios a
dançar em volta do jovem. Desesperado, porém sem
perder a compostura e a harmonia, a música do jovem se
torna mais estridente. Dançante e penetrante, a Sonata
gritava. Cada nota pedia ajuda a quem estivesse ouvindo,
mas lá havia apenas eu e o segurança e eu não podia entrar
na escola; olhei para os lados à procura de alguém, mas
não havia um transeunte sequer por aquela rua. Não
conseguia mais ficar parado, minha mente se enchia de
pensamentos e meu dilema só aumentava. Se tentasse
entrar, o baixo segurança poderia me bater. E as notas
chamavam por qualquer um que pudesse ouvir,
chamavam por mim. Se eu conseguisse entrar, poderia ter
consequências jurídicas, afinal, eu estaria invadindo uma
escola. Mas as notas pediam ajuda. Mas e se o jovem não
quisesse ajuda? E se for apenas uma música? As melodias
de socorro aumentavam.
A cada passo de dança, os demônios riam e se
exaltavam. O sorriso cruel em seus rostos transparecia seu
ódio e sua fome. As notas cada vez mais estridentes do
violino do jovem faziam as paredes da escola em reforma
tremerem. Pilhas de tijolo caíam, rachaduras desbotavam
das paredes. O corpo do jovem parecia tremer também.
Seus movimentos, contudo, permaneciam sólidos e
precisos. Seu mundo desabava à minha frente sem que eu
soubesse se deveria ajudar, muito menos como.
Com um decisivo Prestíssimo, o quarto
movimento começou e os demônios se voltaram para o
músico solitário. A rapidez das notas trazia uma angústia
tão grande que só me era possível aguardar pasmo o final
do último movimento. O final da Sonata.
Como em transe, esqueci-me de tudo a minha
volta e corri em sua direção. O segurança calvo, contudo,
interpôs-se entre nós dois. Ele se mostrou mais forte e
decidido do que eu imaginara e não consegui alcançar o
violinista. Ainda estava do lado de fora da escola,
impotente, quando as vigas e as colunas começaram a
rachar e se despedaçar. Com extrema ânsia, ouvi a última
nota do Finale sendo tocada. Vi o arco e o instrumento
caindo no chão, fazendo mais barulho do que todas as
estruturas da escola se desmoronando juntas. Uma
lágrima caiu de meu rosto com o fim da mais bela música
que já ouvi e que nunca mais seria tocada novamente. A
Sonata ficará enterrada eternamente nos escombros da
escola, junto com o jovem e seus demônios. Ninguém mais
será afligido pelos sons estridentes e desesperados saídos
do velho violino de madeira. O músico nunca mais
comporá uma nova melodia. Nunca mais criará um novo
tema. Nunca mais sorrirá. E nunca sofrerá novamente.
Ao meu lado, o impenetrável segurança não se
mexia. De costas para a escola em ruínas, ele garantia que
ninguém jamais entraria lá. Estava apenas cumprindo seu
ofício.
NEMESIS
HELOISA KOHATSU
ESTUDANTE DE PSICOLOGIA NA UEL E ESCRITORA DE FICÇÃO E
ENSAIOS ACERCA DA VIDA E RELAÇÕES HUMANAS.
PARTICIPANTE DE UM GRUPO DE PESQUISA SOBRE
SUSTENTABILIDADE AFETIVA COM BASE TEÓRICA EM
ESQUIZOANÁLISE.

O ano é 1974, mas eu sinto como se nós estivéssemos


vivendo no espaço, onde o tempo é subestimado e os
planetas dançam em seu próprio compasso.
Minha mãe tem nove filhos. Ela está no hospital
neste exato momento com o nono bebê em seu colo, o
segurando em seus braços, exausta. Eu estou sentada fora
do quarto, no saguão do hospital, esperando
pacientemente. Eu gosto de pensar que sou uma boa filha;
é um jeito que eu encontrei para me confortar.
Eu sou uma boa filha. Eu sou realmente boa.
Nenhuma das minhas irmãs ou mesmo o meu irmão mais
velho estão esperando por nossa mãe no hospital.
Ninguém segurou o bebê antes de mim, exceto pela minha
mãe, cujo sorriso ilumina qualquer que seja o lugar onde
ela se encontra.
A verdade é que ela nunca sorri. No entanto, eu a
vi sorrir hoje. Foi belo: apenas o ato em si; o médico e as
enfermeiras e eu estávamos todos sorrindo também para o
novo recém-nascido, que chorava alto no peito dela.
Nascer é algo muito estarrecedor para mim. Eu
imagino os bebês flutuando no espaço, enquanto eles
dançam ao lado dos planetas que nos cercam. A dança
continua infinitamente, porém eles começam a crescer e
ficar enormes até explodir em várias pequeninas estrelas,
e estas se transformam em novos bebês, para que o ciclo
tenha início novamente.
Nós podemos nos afogar no espaço?
A água parece ser o único lugar onde podemos
imitar as órbitas planetárias. Há um lugar perto de nosso
lar, um grande lago esverdeado rodeado pela floresta.
Minhas irmãs e eu nadamos com frequência. Nós
corremos pelos arbustos e desviamos de árvores e rochas
para chegar até ele. Eu amo esses momentos da mesma
forma como eu amo a água e os planetas e a minha recém-
nascida irmã.
De qualquer forma, eu descobri que não preciso
estar debaixo d’água para me sentir afogando. Às vezes, eu
tenho a impressão de que minha pele se torna pálida e é
como se meus pulmões estivessem sendo esmagados por
uma pressão invisível, uma escuridão que vem depois que
o ar se torna escasso e eu não posso abrir meus olhos,
porque tudo parece tão claro. Talvez eu mesma esteja me
tornando uma estrela.
Minha mãe volta para casa no sábado com o novo
membro da família. Ela diz que posso escolher o seu nome
dessa vez. Eu não tenho certeza ainda, mas creio que
escolherei Nemesis. Eu a ensinarei como brilhar e ser uma
parte do céu.
AGRIDOCE. AÇÚCAR E MEDO
BRYAN BARBOSA
ESTUDANTE DE CIÊNCIA DA COMPUTAÇÃO. PARTICIPANTE DE
UM GRUPO DE CIÊNCIA DE DADOS APLICADA À SOCIEDADE.

O relógio nem ao menos gemia com a hora da


rotina começar e lá estava meu pai: “Levanta, filho, não é
aqui o vosso descanso!” Não era? Então as últimas seis ou
sete horas passei no lugar errado. Estranho era como ter
deixado o descanso tanto tempo fora do local certo não
causava desespero em mim. Talvez fosse a falta de
urgência no peito que a idade me permitia ter.
A certeza de que o amor viria, de que gozaria de
uma velhice feliz e sentiria sentido nas coisas ainda faziam
parte das minhas certezas. Porém, ingenuamente, no
saudoso momento, só o sono e o sorriso de meu velho
justificaram a paz que havia ali. Havíamos passado a noite
sem a minha mãe, que passara cuidando da mãe dela, com
câncer na época. Para nós dois, que sempre fomos
totalmente dependentes, aquela noite, apesar de tranquila,
apertava o peito agressivamente e, eu tenho certeza, fez
nós dois implorarmos pro sono vir logo, pra logo acordar e
passar. Passou. No caminho pra buscar minha mãe, Zé
Ramalho homenageava seu avô Raimundo com uma
canção daquelas que pouco se entende e muito se sente. O
que abriu outro caminho, dessa vez não exatamente de
lugar, e sim de conversa, para o meu pai e eu falarmos do
significado da música.
De repente, meu pai me mostra que o tal
“Rebuscando a consciência com medo de viajar” era uma
forma para falar de como abrimos o pesado baú da
consciência na iminência da morte. Talvez por medo de
deixar o que se leva ou levar o que só a morte abre nossos
olhos para mostrar que se deixa. Deixa de lado. Deixa por
enquanto. Deixa ser.
A princípio, foi assustador imaginar alguém sendo
coagido a abrir algo que passamos tanto tempo deixando
enterrado. Que já não bastasse a tristeza de morrer, a
infelicidade de se tornar uma memória angustiante na
mente dos que sentem saudade e dissabor de não estar
mais entre os vivos, ainda tínhamos que nos desesperar
pra fazer coisas que adiamos a vida toda: morrer e remoer
arrependimentos. Ocorreu gradualmente, porém, naquele
ponto, talvez começasse a ganhar corpo a ideia do quão
efêmera, e talvez não tão doce, era a vida.
CÂMBIO, DESLIGO
BRENDON H. S. FRANÇA
ESTUDANTE NA UNICAMP E ESCRITOR DE CONTOS.

Tarsila, acho que era esse o nome do barco, pelo


menos é assim que me recordo dele e, como agora o mar e
o tempo já o devem ter levado e ele só existe em minha
memória, é assim que ele sempre vai chamar. Tarsila.
Lembro da primeira vez que a vi, descendo do calçadão
para praia era a primeira coisa que chamava atenção,
encalhada nas rochas, logo abaixo do velho forte. Seus tons
de amarelo, vermelho e azul tinham descascado, mas
ainda havia beleza nela.
Que mais precisa um garoto de 9 anos além do
mistério de ver algo tão grandioso ali parado para começar
a fazer perguntas? Fiz mais perguntas do que me lembro,
e meu pai com toda paciência respondeu cada uma delas,
mas a resposta que eu mais queria ouvir, essa ainda
guardo.
Segundo meu pai, que ouviu primeiro de meu avô,
a velha Tarsila encalhou na praia numa noite de muita
neblina e maré muito alta. O capitão havia bebido demais
e só pôde perceber o fim do mar depois de bater a lateral
da embarcação nas rochas do forte. Ele sobreviveu ao
acidente, mas não à bebedeira da semana que se seguiu, e
ninguém nunca se preocupou em retirar o barco das
rochas. Com o tempo, foi virando cartão postal da praia e
por ali ficou.
Apesar de ser uma história fora do comum,
confesso que achei muito decepcionante na época, afinal
era uma cena tão fora do habitual que em minha cabeça só
poderia ter sido resultado de uma batalha em alto mar,
uma fuga de piratas, quem sabe, e até mesmo uma
tempestade furiosa poderia tê-la carregado pelos céus e
depois arremessado na praia. Mesmo assim, ela era o que
era, um simples acidente.
Foi numa noite pouco antes de nossas férias
acabarem que meu irmão mais velho, Pedro, que Deus o
tenha, decidiu ir à praia quando já era noite. Me senti
especial como todo garoto que acompanha o irmão mais
velho se sente. Jogamos pedras no mar por um bom
tempo, até que meu irmão e seus amigos decidiram
montar uma fogueira. Começamos recolhendo galhos e
alguns troncos velhos e quando me dei conta Tarsilla
estava só a alguns passos de nós.
Como bom aventureiro, não desperdicei a
oportunidade, caminhei em silêncio ao redor dela,
tomando cuidado para não escorregar nas pedras, quando
me dei conta de que havia uma pequena passagem pela
lateral. Lembro de olhar para os lados e não ver motivo
para não entrar.
O interior de Tarsila era escuro e tinha cheiro de
água do mar, mas em alguns pontos onde a madeira
falhava a luz do luar conseguia passar, deixando o
ambiente menos assustador. Comecei a andar pela parte
que entendia ser o meio do barco; só depois a serviço da
marinha aprendi que o nome era convés inferior. Tudo
parecia bagunçado e fora do lugar, algumas coisas haviam
enferrujado demais e outras estavam até se desmontando.
Eis a parte engraçada da velhice, me lembro de tantos
detalhes pequenos mas ainda assim não lembro se fiquei
preso antes de meu irmão me encontrar ou se foi depois,
mas de qualquer forma estava ali assustado e sem
conseguir sair. Pedro, apavorado, correu para chamar meu
pai, e eu, percebendo que estava só, comecei a chorar. Foi
nessa hora que você, meu caro e distante amigo, apareceu.
Sua voz saía por um velho rádio jogado ao chão. Não
esqueço até hoje de nossa breve conversa.
— Alguém na escuta? Câmbio. … Aqui embaixo,
está uma loucura, o motor auxiliar parou, precisamos de
ajuda para emergir! Câmbio.
— Alô? Quem tá falando? — Perguntei ainda
embargado pelo choro.
— “Quem está falando”?! Por um acaso isso é uma
piada? Aqui é o Capitão Serling, comandante de um dos
submarinos da frota, exijo saber o que um garoto faz nessa
frequência! Câmbio.
— De-Desculpa eu fiquei preso aqui, mas meu
irmão e meu pai já vão chegar, eu não sei como essa coisa
ligou.
— Tudo bem, filho, não precisa choramingar tanto,
preciso que você avise o capitão para entrar em contato
com o oficial mais próximo e pedir um resgate para o
submarino do capitão aqui próximo da baía. Câmbio.
— Mas que capitão? E eu não sei onde fica a baía
câmbio, não conheço nada daqui.
— Meu Deus do céu, filho, preciso que você tenha
um pouco mais coragem, vidas dependem disso, você
entende? Uma tripulação inteira depende e até aqueles
que esperam nossa ajuda na Grande Guerra dependem
disso. E “Câmbio” é apenas a palavra que encerra a
mensagem. Câmbio.
— Eu... eu entendi, mas o vovô havia dito que a
Grande Guerra acabou muitos anos atrás, antes da
televisão ter cores. Câmbio.
— Mas que absurdo é esse?! Por um acaso isso é
uma brincadeira? Saiba que isso é um crime grave, e você
será punido pela suprema corte! Câmbio.
— Nã... não tô brincando — lembro-me de falar e
soluçar por conta do choro — meu avô esteve na guerra, ela
acabou faz muito tempo, muitas pessoas foram
machucadas por um homem mau, mas as boas venceram
no final. Câmbio.
Por um instante, apenas o chiado do rádio.
— Tudo bem, filho, pare de chorar. — Sua voz
parecia tão sombria agora. — Já disse para ter coragem.
Talvez tudo isso seja uma alucinação minha por falta de
oxigênio já ou sei lá; de qualquer forma, se isso for real,
fico feliz em saber que vencemos a Guerra. Ficaria mais
feliz se pudesse comemorar isso ao lado do meu pequeno
Jimmy. Ele deve ter a sua idade…. garoto, logo a ajuda
chegará, e se essa for minha última mensagem, espero que
você consiga se manter corajoso até que tudo isso passe.
Esse é o segredo de todos os soldados, se manter corajoso.
Tudo bem? Câmbio.
— Tudo bem senhor, eu vou ser. Câmbio.
— Muito bem filho… Câmbio, desligo.
Antes que pudesse lhe responder, meu pai chegou
assustado e furioso, e imediatamente larguei o rádio. Sem
consideração nenhuma pela conversa. Não respondi à
mensagem final. De certo modo, acredito que isso teve um
lado bom, posso complementar minha resposta agora.
Posso dizer que, embora no dia seguinte à nossa conversa
eu não tivesse acreditado que ela havia realmente
acontecido, segui seu conselho. Sempre que pude, e
principalmente quando não pude mais, fui corajoso. Nos
dias como soldado, marido e depois como pai e avô,
sempre que necessário, lembro-me da nossa conversa.
Só contei esta história uma única vez, para Molly,
minha esposa, ela disse que acreditava em mim, mas pediu
que não comentasse com nenhum médico e depois riu.
Lembro-me de sua risada, o melhor som que já ouvi nessa
vida. Fazem cinco anos que não o ouço mais.
Escrevo essa carta sessenta e dois anos depois de
nossa conversa. Uma vida inteira se passou, não sei quanto
tempo mais ela vai levar para chegar em seu submarino.
Espero que rápido, pois coloquei pedras suficientes para
levarem a garrafa ao fundo do mar de forma rápida, mas
mais importante que o tempo que passou é dizer as
palavras que não disse à época e que, isso tudo sendo
verdade ou não, não poderia deixar de dizer para morrer
em paz.
Caro capitão, tudo vai ficar bem. Câmbio, desligo.
DENSA VERDADE MATURADA
MURILO KÜHL
TÉCNICO DE ENFERMAGEM PELO COLÉGIO TÉCNICO DE
LIMEIRA E ESTUDANTE DE LICENCIATURA EM LETRAS NA
UNICAMP. ESCRITOR DO QUE FALTA NO MUNDO,
PARTICIPANTE DO MOVIMENTO POLÍTICO “CONVALESCENÇA”
DE GUERRA JUNQUEIRA, DEFENSOR DA EDUCAÇÃO E CONTRA
O OLAVISMO, DEFENSOR DE DIVERSIDADE LINGUÍSTICA.

Sabe, uma coisa percebi, amigo


— Pois tu conheceste Eus bem diferentes
E gostaria de comentar contigo,
Vejo: como as esperanças resilientes

Oriundas de se crer na possibilidade


De coisas acontecerem miraculosamente;
Vejo: como a esperança na grandiosidade
Dos sonhos se vão tornando infimamente

Conforme avançamos na vida a se colocar...


Se isso é amadurecer, se amadurecer
É a fé nos nossos sonhos ir perder,

Mui temo de maduro ficar.


Sabe... mi frater! não esqueça
De sonhar antes que a vida tua pereça.
POEMA DO INCERTO
JOÃO RICARDO SALLES
ESTUDANTE DE FILOSOFIA NA UNICAMP E LEITOR
COMPULSIVO.

Quantas luas passaram


por nossas cabeças
e quantos sóis brilharam sobre nossa pele
e de nossos velhos pais
— cansados, como nossos pés
ao trilhar caminhos
sem saber por onde passam
nem para onde devem ir
nem onde repousar
e pousar nossas cabeças
pesadas e
lentas com o suor correndo
pelas têmporas do tempo
enquanto gritos gritam
e Ezra é esquecido
e enchemos nossos pratos de prata
com refeições vazias
e olhares vazios
e mentes vazias
ao esperar algo chegar
sendo um presente dos deuses
— como se a dádiva merecêssemos ao nascer.
MESMAS MANHÃS DE QUALQUER DIA
COMUM
JOÃO RICARDO SALLES
ESTUDANTE DE FILOSOFIA NA UNICAMP E LEITOR

COMPULSIVO.

Levanto cedo, um novo dia pela frente


sol no rosto
retendo a retina refém
e apequenada com sua luz
e sua vastidão por todos os cantos.

Levanto cedo, de cada dia dias mais longos


é o que parece
é o que se vive
é o que se imprime em nossas impressões.

Um café preto na padaria,


e ao fundo o choro de um bebê
que desde cedo já percebe que chegou
ao lugar errado de se estar.
ARTISTAS NÃO PRECISAM SER LOBOS SOLITÁRIOS.

Agradecemos as contribuições originais de Fernão Galvão,


Heloisa Kohatsu, Bryan Barbosa, Brendon H. S. França,
Murilo Kühl e João Ricardo Salles e esperamos continuar
produzindo e publicando juntos!

Envie seu original no próximo edital de submissões e faça


parte da Alcateia, produza e publique coletivamente.
VENDE-SE GRIFO
UMA PROPOSTA CRIATIVA DE CLAUS A.
CORBETT

A arte de escrever é também a arte de vender


ideias e, por isso, hoje vamos trabalhar com um gênero
textual perfeito para isso: o anúncio. Convencer alguém a
lhe dar dinheiro em troca de um serviço ou produto requer
exaltar pontos positivos, convencendo a ver a entrega do
dinheiro não como um gasto, mas sim como um
investimento.
E tudo isso fica mais fácil quando podemos trazer
elementos fantásticos e interessantes para nosso texto.
Por isso, vamos fazer um anúncio vendendo algum
animal fantástico. A ideia é trazer um toque de humor para
um gênero usualmente sério, brincando com os limites e
as interseções de diferentes estilos de textos.
Pense em um animal mítico, lendário ou apenas
estranho. Escolha um animal que te fascine, algo que
chame sua atenção e que, para você, daria um ótimo amigo
ou animal de estimação. Trabalhar com algo que gostamos
torna este exercício mais fácil e divertido. Pode vir de
lendas, de contos de fada ou até mesmo ser um animal que
você inventou.
Agora, sente-se confortavelmente, desligue as
distrações; se você quiser, coloque música para tocar.
Sua tarefa é escrever um anúncio exaltando as
qualidades do animal que você escolheu e tentar convencer
outras pessoas a comprá-lo ou adotá-lo - ou um anúncio
que te convenceria a comprá-lo. Pense em anúncios que
você já leu de animais, considere o que torna o seu mais
interessante e diferente. Pense em coisas que podem
diferenciar também o seu anúncio dos anúncios normais.
Por exemplo: pessoas tentando vender um
cachorro usualmente falarão de qualidades como pureza
da raça, pedigree, sobre os pais do animal. No caso do
animal que você escolheu, essas informações fariam
sentido ou teriam qualquer significado? Ou outras coisas
seriam mais importantes?
Você pode descrever os hábitos desse animal, suas
peculiaridades e necessidades especiais, sua
personalidade e até mesmo benefícios mágicos. Deixe a
ideia desse animal invadir sua mente e escreva sobre tudo
que quiser. Você pode adequar a linguagem que usa de
acordo com a origem do animal ou até mesmo escrever
como alguém que o encontrou por acaso, sem saber de
onde ele vem. Siga sua criatividade!
Em seguida, há um exemplo de anúncio de venda
de um animal não convencional. Você pode usar isso como
inspiração ou deixar para lê-lo depois de escrever o seu,
como preferir.
UM “TEXTE” DE EXEMPLO
POR CLAUS A. CORBETT:

Tô vendendo cabra da peste

Só to vendendo porque to aperreado¹ mesmo, que


essa cabra é arretada. Solta fogo pelas venta, que ajuda na
hora de fazer o almoço. Num come quase nada, só uns gato
do vizinho, então você guarda a grama pras que dão leite
tamém. Tem uns óio vermeio que ajuda a achar no meio
do mato. Já serve de cão de guarda também que ninguém
chega perto da casa mais e se arrudiar² o terreno jogando
sal grosso ela num foge. E ela é zambeta,³ mas corre muito,
visse? Tem inhaca de deixar ariado,⁴ mas é fácil dar banho,
é só esquentar a água. Às vezes, ela fica olhando você
dormir na rede, mas num faz nada. Num pode acorrentá
que ela fica braba, mas deixa uma garrafinha com rolha
perto que às veiz os parente dela vem visitar. Tô cobrando
barato, só um filho e já pode levar e entrego até na baixa
d’égua,⁵ e dispenso curioso, então só manda mensagem
cabra interessado, senão pega o beco.⁶
¹ Em dificuldades.
² Cercar, rodear.
³ De pernas tortas.
⁴ Desnorteado, sem rumo.
⁵ Lugar muito distante.
⁶ “Cai fora”.
LICENÇA PÚBLICA CREATIVE COMMONS
ATRIBUIÇÃO-SEMDERIVAÇÕES 4.0

Ao exercer os Direitos Licenciados (definidos abaixo), Você aceita e


concorda estar sujeito aos termos e condições desta Licença Pública
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contrapartida pela Sua aceitação destes termos e condições, e o
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Cláusula 1 – Definições.

1. Material Adaptado significa material sujeito a Direito de


Autor e Direitos Similares que é derivado de ou baseado no
Material Licenciado e no qual o Material Licenciado é
traduzido, alterado, arranjado, transformado, ou de outra
forma modificado de uma maneira que requeira permissão
com base no Direito de Autor e Direitos Similares detidos pelo
Licenciante. Para os fins desta Licença Pública, quando o
Material Licenciado seja uma obra musical, performance, ou
fonograma, é sempre produzido Material Adaptado quando o
Material Licenciado é sincronizado em relação temporal com
uma imagem em movimento.
2. Direito de Autor e Direitos Similares significa direito de
autor e/ou direitos similares estreitamente relacionados com o
direito de autor, incluindo, mas não se limitando a, direitos de
execução, radiodifusão, fixação de sons, e Direitos Sui Generis
sobre Bases de Dados, independentemente de como sejam
classificados ou categorizados. Para os fins desta Licença
Pública, os direitos especificados na Cláusula 2(b)(1)-(2) não
são Direito de Autor e Direitos Similares.
3. Medidas Eficazes de Caráter Tecnológico significam aquelas
medidas que, na ausência de direito para tanto, não podem ser
contornadas em jurisdições cumprindo obrigações sob o Artigo
11 do Tratado da OMPI de Direito de Autor adotado em 20 de
dezembro de 1996, e/ou acordos internacionais similares.
4. Exceções e Limitações significam utilização justa (“fair use”),
tratamento justo (“fair dealing”), e/ou qualquer outra exceção
ou limitação ao Direito de Autor e Direitos Similares que se
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5. Material Licenciado significa o trabalho artístico ou literário,
base de dados, ou outro material ao qual o Licenciante aplicou
esta Licença Pública.
6. Direitos Licenciados significam os direitos concedidos a Você
sujeitos aos termos e condições desta Licença Pública, que são
limitados a todos os Direitos de Autor e Direitos Similares que
se apliquem à Sua utilização do Material Licenciado e que o
Licenciante tem o direito de licenciar.
7. Licenciante significa o(s) indivíduo(s) ou entidade(s)
concedendo direitos sob esta Licença Pública.
8. Compartilhar significa fornecer material ao público por
qualquer meio ou processo que requeira permissão sob os
Direitos Licenciados, como reprodução, exibição pública,
execução pública, distribuição, disseminação, comunicação ou
importação, e disponibilizar material ao público, incluindo por
vias pelas quais os membros do público possam ter acesso ao
material a partir de um local e no momento individualmente
escolhidos por eles.
9. Direitos Sui Generis sobre Bases de Dados significam outros
direitos, que não o direito de autor e direitos conexos,
resultantes da Diretiva 96/9/EC do Parlamento Europeu e do
Conselho de 11 de Março de 1996 sobre a proteção legal de
bases de dados, conforme emendada e/ou sucedida, bem como
outros direitos essencialmente equivalentes em qualquer lugar
do mundo.
10. Você significa o indivíduo ou entidade que exerce os Direitos
Licenciados sob esta Licença Pública. Lhe, Seu, Sua e Suas têm
um significado correspondente.

Cláusula 2 – Âmbito.

1. Concessão da licença.
1. De acordo com os termos e condições desta Licença
Pública, o Licenciante concede-Lhe, pelo presente, uma
licença mundial, isenta de royalties, não sublicenciável,
não exclusiva, e irrevogável para exercer os Direitos
Licenciados sobre o Material Licenciado para:
1. reproduzir e Compartilhar o Material
Licenciado, no todo ou em parte; e
2. produzir e reproduzir, mas não Compartilhar,
Material Adaptado.
2. Exceções e Limitações. Para evitar dúvidas, quando
Exceções e Limitações sejam aplicáveis à Sua
utilização, esta Licença Pública não se aplica, e Você
não precisa de cumprir com os seus termos e
condições.
3. Termo. O termo desta Licença Pública está
especificado na Cláusula 6(a).
4. Meios/suportes e formatos; modificações técnicas
permitidas. O Licenciante autoriza Você a exercer os
Direitos Licenciados em todos os meios/suportes e
formatos conhecidos agora ou criados posteriormente,
e a fazer as modificações técnicas necessárias para
tanto. O Licenciante cede e/ou concorda em não
reivindicar nenhum direito que proíba Você de fazer
modificações técnicas necessárias ao exercício dos
Direitos Licenciados, incluindo modificações técnicas
necessárias para contornar Medidas Eficazes de
Caráter Tecnológico. Para os fins desta Licença
Pública, fazer simplesmente modificações autorizadas
por esta Cláusula 2(a)(4) nunca produz Material
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5. Receptores subsequentes.

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Cada receptor do Material Licenciado recebe
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ou sugerir que Você, ou que a Sua utilização do
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endossado pelo, ou tem status oficial concedido pelo,
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2. Outros direitos.

1. Direitos morais, como o direito à integridade, não são


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3. Na medida do possível, o Licenciante renuncia a
qualquer direito de cobrar-Lhe royalties pelo exercício
dos Direitos Licenciados, quer diretamente quer por
meio de uma entidade de gestão coletiva, sob qualquer
regime de licenciamento voluntário ou legal,
disponível ou compulsório. Em todos os outros casos,
o Licenciante reserva expressamente o direito de
arrecadar tais royalties.

Cláusula 3 – Condições da Licença.

O Seu exercício dos Direitos Licenciados fica expressamente sujeito às


condições seguintes.

1. Atribuição.

1. Se Você Compartilhar o Material Licenciado, Você


deve:
1. manter o seguinte, se for fornecido pelo
Licenciante com o Material Licenciado:
1. identificação do(s) criador(es) do
Material Licenciado e quaisquer
outros designados para receber
atribuição, de qualquer forma
razoável solicitada pelo Licenciante
(incluindo por pseudónimo, se
designado);
2. um aviso de direito de autor e
direitos conexos;
3. um aviso que se refere a esta Licença
Pública;
4. um aviso que se refere à exclusão de
garantias;
5. um URI ou um hyperlink para o
Material Licenciado na medida
razoavelmente exequível;
2. indicar se Você modificou o Material
Licenciado e manter uma indicação de
quaisquer modificações prévias; e
3. indicar que o Material Licenciado é licenciado
com esta Licença Pública, e incluir o texto de,
ou o URI ou o hyperlink para, esta Licença
Pública.
2. Para evitar dúvidas, Você não tem permissão sob esta
Licença Pública para Compartilhar Material Adaptado.
3. Você pode satisfazer as condições da Cláusula 3(a)(1)
de qualquer forma razoável, tendo em conta o suporte,
os meios e o contexto no qual Você Compartilhar o
Material Licenciado. Por exemplo, pode ser razoável
satisfazer as condições por via do fornecimento de um
URI ou de um hyperlink para um recurso que inclui a
informação exigida.
4. Se solicitado pelo Licenciante, Você deve remover
qualquer parte da informação exigida pela Cláusula
3(a)(1)(A) na medida razoavelmente exequível.

Cláusula 4 – Direitos Sui Generis sobre Bases de Dados.


Quando os Direitos Licenciados incluam Direitos Sui Generis sobre Bases
de Dados que se apliquem à Sua utilização do Material Licenciado:

1. para evitar dúvidas, a Cláusula 2(a)(1) concede-Lhe o direito


de extrair, reutilizar, reproduzir e Compartilhar a totalidade ou
uma parte substancial dos conteúdos da base de dados, desde
que Você não Compartilhe Material Adaptado;
2. se Você incluir a totalidade ou uma parte substancial dos
conteúdos da base de dados numa base de dados em relação à
qual Você tenha Direitos Sui Generis sobre Bases de Dados,
então a base de dados em relação à qual Você tenha Direitos
Sui Generis sobre Bases de Dados (mas não os seus conteúdos
individuais) é Material Adaptado; e
3. Você deve cumprir com as condições da Cláusula 3(a) se Você
Compartilhar a totalidade ou uma parte substancial dos
conteúdos da base de dados.

Para evitar dúvidas, esta Cláusula 4 suplementa e não substitui as


Suas obrigações sob esta Licença Pública, quando os Direitos Licenciados
incluam outro Direito de Autor e Direitos Similares.

Cláusula 5 – Exclusão de Garantias e Limitação de


Responsabilidade.

1. Salvo se o Licenciante fizer separadamente uma assunção


em sentido contrário, na medida do possível, o Licenciante
disponibiliza o Material Licenciado “no estado em que se
encontra” (“as-is”) e “como disponível” (“as-available”), e
não faz representações ou presta garantias de qualquer
tipo relativamente ao Material Licenciado, quer sejam
expressas, implícitas, legais ou outras. Isto inclui, mas não
se limita a, garantias quanto à titularidade de direitos,
potencial de comercialização, adequação a um fim
específico, não violação de direitos, ausência de defeitos
latentes ou outros defeitos, exatidão, ou existência ou
ausência de erros, quer sejam ou não conhecidos ou
detetáveis. Quando as exclusões de garantias não sejam
permitidas, na íntegra ou em parte, esta exclusão poderá
não aplicar-se a Você.
2. Na medida do possível, em nenhum caso será o Licenciante
responsável para com Você, com base em nenhum
argumento jurídico (incluindo, mas não se limitando a,
negligência) ou a outro título, por quaisquer perdas,
custos, despesas ou danos, diretos, especiais, indiretos,
incidentais, consequenciais, punitivos, exemplares ou
outros, resultantes desta Licença Pública ou da utilização
do Material Licenciado, ainda que o Licenciante tenha sido
advertido da possibilidade dessas perdas, custos, despesas
ou danos. Quando a limitação de responsabilidade não
seja permitida, na íntegra ou em parte, esta limitação
poderá não aplicar-se a Você.
3. A exclusão de garantias e a limitação de responsabilidade
acima previstas devem ser interpretadas de uma forma que, na medida
do possível, mais se aproxime de uma absoluta exclusão de, e renúncia
a, toda e qualquer responsabilidade.

Cláusula 6 – Termo e Cessação.

1. Esta Licença Pública aplica-se durante o termo do Direito de


Autor e Direitos Similares aqui licenciados. No entanto, se Você
não cumprir com esta Licença Pública, então os Seus direitos
sob esta Licença Pública cessarão automaticamente.
2. Quando o Seu direito de utilizar o Material Licenciado tenha
cessado nos termos da Cláusula 6(a), será restabelecido:

1. automaticamente a partir da data em que a violação


seja sanada, desde que seja sanada dentro de 30 dias a
contar da Sua descoberta da violação; ou
2. com o expresso restabelecimento pelo Licenciante.
3. Para evitar dúvidas, esta Cláusula 6(b) não afeta qualquer
direito que o Licenciante possa ter de obter reparação e
medidas legais cabíveis pelas Suas violações desta Licença
Pública.
4. Para evitar dúvidas, o Licenciante também poderá
disponibilizar o Material Licenciado sob termos ou condições
separados ou parar a distribuição do Material Licenciado a
qualquer momento; no entanto, tal não cessará esta Licença
Pública.
5. As Cláusulas 1, 5, 6, 7, e 8 continuarão em vigor após a cessação
desta Licença Pública.
Cláusula 7 – Outros Termos e Condições.

1. O Licenciante não estará vinculado a quaisquer termos ou


condições, adicionais ou diferentes, comunicados por Você,
salvo se expressamente acordado.
2. Quaisquer pactos, entendimentos ou acordos relativamente ao
Material Licenciado não indicados aqui são separados e
independentes dos termos e condições desta Licença Pública.

Cláusula 8 – Interpretação.

1. Para evitar dúvidas, esta Licença Pública não reduz, limita,


restringe ou impõe condições sobre qualquer utilização do
Material Licenciado que possa ser legalmente feita sem a
permissão concedida por esta Licença Pública, e não deve ser
interpretada nesse sentido.
2. Na medida do possível, se alguma disposição desta Licença
Pública for considerada inexequível, será automaticamente
reformada na medida estritamente necessária para que se
torne exequível. Se a disposição não puder ser alterada, deverá
ser removida desta Licença Pública sem afetar a exequibilidade
dos restantes termos e condições.
3. Nenhum termo ou condição desta Licença Pública será
renunciado e nenhuma falha no seu cumprimento consentida,
salvo se tal for expressamente acordado pelo Licenciante.
4. Nada nesta Licença Pública constitui ou pode ser interpretado
como uma limitação de, ou renúncia a, quaisquer privilégios e
imunidades aplicáveis ao Licenciante ou a Você, incluindo os
resultantes dos processos legais de qualquer jurisdição ou
autoridade.

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