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ISSN: 0102-6992
revistasol@unb.br
Universidade de Brasília
Brasil
Costa, Sérgio
O Brasil de Sérgio Buarque de Holanda
Sociedade e Estado, vol. 29, núm. 3, septiembre-diciembre, 2014, pp. 823-839
Universidade de Brasília
Brasília, Brasil
D
Raízes do Brasil:
os ensaos dos anos 30 promoeram uma renenção ntelectual da nação Sérgo Buarque
braslera e contrbuíram sgn caamente para construr a (auto)magem de Holanda. Die
Wurzeln Brasiliens.
até hoje assocada ao país. A prmera destas obras é Casa-Grande & Senzala, Berln: Suhrkamp,
de 19331, na qual Glberto Freyre dssole – ao menos em um plano dscurso – o 2013, p. 235-269.
Tradução, autorzada
dlema racal do Brasl. Contrarando as representações racstas domnantes à épo- pelo edtor alemão,
ca, Freyre mostra que a mscgenação racal não era uma debldade, e sm um snal realzada por Iasmn
Goes.
da grandeza do Brasl, já que a mesçagem é justamente o que constuía a den-
dade naconal. ** Professor de
socologa da
Amérca Lana
A segunda obra é o ensao aqu apresentado, Raízes do Brasil2. Quando o lro fo pu- do Department of
Polcal and Socal
blcado na então captal Ro de Janero, em 1936, o Brasl já era ndependente há mas Scence, Instute
de cem anos. A escradão haa sdo abolda em 1888, o país era uma repúblca for- for Lan Amerca
Studes, Free
mal desde 1889 e apenas começaa a se emancpar da domnação eercda pelas ol- Unerstät Berln
garquas agráras. Com seu ensao, Sérgo Buarque de Holanda buscaa conceber um e pesqusador
assocado do Centro
país lre dos cacques ruras e mostrar que camnho deera ser trlhado pela anga Braslero de Análse
colôna para se conerter em uma nação democráca e moderna3. No entanto, o lro e Planejamento
(Cebrap), São Paulo.
não constu apenas um projeto normao, é também analíco. Para arcular suas <sergo.costa@
sões, Buarque de Holanda mergulhou profundamente na hstóra braslera e de- fu-berln.de>
As quase 30 edções de Raízes do Brasil lançadas até agora em português foram suces- 2. Sérgo Buarque
samente ampladas e corrgdas pelo autor. O lro fo traduzdo para o espanhol, o de Holanda. Raízes
do Brasil. 12. ed.
talano, o francês, o japonês e o alemão; em 2012, fo publcada uma ersão em nglês. Ro de Janero:
A lteratura secundára correspondente podera preencher uma bbloteca ntera e até José Olympo, 1978
[1936].
hoje os crícos têm dscussões acaloradas sobre a nterpretação correta de cada capítu-
lo. Desde 2004 este mesmo uma ersão cnematográ ca, por meo da qual o premado 3. Nestes termos,
a metáfora das
dretor Nelson Perera dos Santos qus prestar uma homenagem a Buarque de Holanda. “raízes” descree
Como um lro de quase 80 anos de dade anda é capaz de manter seu “frescor”5? menos a busca por
uma orgem e mas
Por que é capaz de arrebatar seus letores como poucas obras de não cção? Não a possíel relação
nantes perante os noos agrupamentos urbanos que ganhaam sbldade por meo de 28. Francsco José
grees e protestos33. O racsmo de Olera Vanna despolza estes protestos ao retratá- Olera Vanna.
Evolução do povo
-los como epressão de uma “psco sologa” subersa, “ecessa”, “rregular” e “des- brasileiro. São Paulo:
connua”, cujo maor nmgo sera “[o] poder que mpõe, que ordena, que dscplna, Montero, 1923.
que coage, que restrnge, que encarcera [...]”34. 29. Glberto Freyre,
op. ct.
O autor de Raízes do Brasil opôs-se a essa noção de que o Brasl deera ser drgdo 30. Henrch Kreger.
por uma elte branca: Die Rassenfrage in
Brasilien. Archiv für
Rassen- und Gesells-
Against Oliveira Vianna’s suggeson that our past and our future cha sbiologie, . 34,
were Aryan, I placed the inheritance from the Indian and the ma- n. 1, p. 9-56.
do com Freyre, os portugueses teram projetado nas Índas brasleras sua preferênca 32. Cao Prado
pelas mouras. Júnor. Evolução
políca do Brasil e
outros ensaios. São
No que dz respeto aos ndígenas, o papel da índa é ressaltado – segundo Freyre, Paulo: Braslense,
1957 [1933].
suas amplas capacdades culnáras e sobretudo seu senso de lmpeza, dlgênca e
establdade emoconal teram sdo ncorporados à socedade braslera. O índo (ho- 33. Nesta
nterpretação da
mem), por outro lado, tera marcado o caráter braslero de manera negaa em r- funconaldade
tude de sua falta de dscplna, bem como de seu desrespeto à propredade prada e políca das
teoras racas de
à ordem da le. Os negros, por sua ez, teram dado forma à conduta eíel e casual Olera Vanna,
dos brasleros. Freyre rejeta decddamente qualquer nsnuação de nferordade sgo Vanlda Paa.
Olera Vanna:
ntelectual entre negros e opna que sua posção socal nferor tera razões mera- naconalsmo ou
mente hstórcas36. racsmo? Encontros
A conênca entre brancos e negros, senhores e escraos, é detalhada no capítulo 3 45. Lla Schwarcz.
Sérgo Buarque
por meo da dscussão do patrarcado rural. Aqu, as propredades ruras são descrtas de Holanda ou a
como um sstema fechado no qual fazenderos dspõem de um poder decsóro lm- “hstóra como
comprmdo” de
tado. Dentro das fronteras de um lafúndo, renaa de fato – e mutas ezes também longa duração.
constuíram como Estados soberanos em consonânca com o modelo do state buil- 51. Sérgo Buarque
ding europeu. A nal, era necessáro mtar os angos mpéros colonas, em seus a- de Holanda, op. ct.,
1978, p. 134.
lores e nstuções, para poder lbertar-se deles. Segundo Holanda, porém, faltaam à
hstóra lano-amercana as duras lutas pelo progresso lberal, das quas haam sur-
gdo na Europa tanto os noos atores polícos quanto as consequentes mudanças na
estrutura de poder do Ancien Régime.
Na Amérca Lana, o lberalsmo fo transmdo como uma mera fórmula, a ser rees-
da pelas eperêncas hstórcas locas:
Neste caso, o lberalsmo como dscurso se separou da democraca como forma efea
de goerno. Ao m e ao cabo, uma pequena mnora, que haa lderado os momen-
tos de ndependênca, até resgatou e fez uso da retórca da lberdade, mas connuou
a agr de manera despóca. O lberalsmo como dscurso e a democraca como forma
de conênca políca só poderam ser conclados depos de uma reolução a longo
prazo e de uma tomada do poder pelo poo. Segundo Buarque de Holanda, portanto,
Estudos mas recentes nesse campo apontam para as lmtações analícas dos en-
foques que partem de uma separação smplsta entre famíla e Estado, legaldade e
legaldade, nteresses parculares e normas unersas, pré-moderndade e modern-
dade, como postulaa Buarque de Holanda com base em Ma Weber. Especalmente
No entanto, uma críca equlbrada não pode dssocar tetos de seus contetos. É
sabdo que Raízes do Brasil não nasceu num colóquo pós-estruturalsta no lmar do
Século XXI. É, antes, uma resposta aos desa os polícos do seu tempo – a propósto,
muto proaelmente a melhor resposta possíel. Vsto desta manera, Buarque de
Holanda desconstró os dscursos de poder dos olgarcas, dos racstas, dos româncos
naconalstas. Neste processo, a dealzação da Europa é o preço netáel da posção
por ele adotada: a “Europa hper-real”59 era o ponto de fuga necessáro para orentar 59. Dpesh
Chakrabarty.
o projeto de construção de uma socedade moderna onde colonalsmo, escradão e Provincializing
patrarcado rural haam deado tantos escombros . Europe. Postcolonial
thought and
historical di erence.
Se hoje, 77 anos depos da publcação de Raízes do Brasil, lançamos uma mrada sobre 2. ed. Prnceton:
Prnceton Unersty
o país, a conclusão é clara. Entre os quatro deas de socedade obserados nos anos Press, 2007, p. 45.
30 e lustrados pelas já menconadas obras de Olera Vanna, Glberto Freyre, Cao Aqu, na erdade, a
epressão “Europa”
Prado Júnor e Sérgo Buarque de Holanda, são as concepções de Holanda que mas se representa um
apromam do Brasl moderno e urbano no ano de 2013. Ocdente magnáro.
A nal, Buarque de
Holanda tratou de
É erdade que o pensamento de Olera Vanna nsprou goernantes autortáros posconar o Brasl
em um conteto
como Getúlo Vargas e Golbery do Couto Sla, o estrategsta políco da dtadura m- mas amplo, no
ltar60. No entanto, seu projeto racsta de socedade nunca se concrezou. A nação qual os Estados
Undos e os países
mesça dealzada por Freyre tee um papel hstorcamente decso na superação lano-amercanos
do racsmo bológco, e o dscurso da mesçagem connua n uencando a automa- eram referêncas
mportantes ao lado
gem de mutos brasleros. Contudo, no Brasl atual, as etncdades e raças que o ds- da Europa.
curso da mesçagem buscou unr parecem querer encontrar seus lugares parcula-
60. Em entresta
res no âmbto das representações mulétncas e mulrracas da nação. Tas grupos datada de 1981,
energam, no dscurso da mesçagem, acma de tudo uma deologa que legma Holanda a rma:
“Anda hoje, o
a opressão de negros e ndígenas. A superação de uma socedade de classes, que Golbery acredta
de certa forma está conectada à perspeca marsta de Cao Prado Júnor, tam- pamente em tudo
o que o Olera
pouco se concrezou. Mesmo assm, o apelo à superação das desgualdades socas Vanna escreeu...”
mas grtantes no âmbto do sstema captalsta – como pareca preferr Buarque de Ver Sérgo Buarque
de Holanda. Corpo
Holanda – tem um espaço destacado na agenda políca do Brasl contemporâneo. e alma do Brasil.
Como no caso dos alores lberas do século XIX, trata-se aqu da dealzação de um Entrevista, op. ct.,
p. 11.
mundo (anda?) muto dstante e alheo à realdade epermentada pelos brasleros
em sua da dára.