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F UNDAMENTOS S ÓCIO-H ISTÓRICOS

DA É TICA P ROFISSIONAL S ERVIÇO


Cristiane Gonçalves de Souza
Flavio José Souza Silva
Leandro Rocha da Silva
Mariana Souza Campos
Samya Katiane Martins Pinheiro
CAPÍTULO 4 - O DEBATE HISTÓRICO DA ÉTICA
PROFISSIONAL NO SERVIÇO SOCIAL
BRASILEIRO
Cristiane Gonçalves de Souza
Objetivos do capítulo
Ao final deste capítulo, você será capaz de:
• Entender os pressupostos éticos norteadores dos códigos de ética da tradição conservadora, relacionando
com os pressupostos teóricos e filosóficos que os sustentavam.
• Refletir sobre a construção do ethos no cotidiano do exercício profissional, identificando a importância do
Código de Ética do Assistente Social para os rumos da profissão.

Tópicos de estudo
• Fundamentos teóricos e filosóficos da ética profissional
• Neotomismo
• Positivismo
• Funcionalismo
• Os códigos de ética anteriores ao movimento de reconceituação do serviço social brasileiro
• Antecedentes do movimento de reconceituação
• O Código de Ética (1947, 1965, 1975 e 1986)

Contextualizando o cenário
A dimensão ética e política do serviço social é definida por princípios e valores fundamentados no projeto
profissional, que indica o papel social da profissão. O posicionamento político contido no atual projeto profissional
defende princípios, como a equidade e justiça social, na perspectiva da universalização dos direitos sociais como
elemento indispensável para a materialização da cidadania.

Essa dimensão ético-política se expressa no compromisso da categoria profissional no enfrentamento das


múltiplas expressões da questão social. Contudo, nem sempre esse compromisso norteou a formação e
intervenção profissional.
No contexto brasileiro, desde sua gênese como profissão, o serviço social recebeu influência de diferentes
fundamentos teóricos e filosóficos que objetivavam imprimir um ethos profissional. Diante disso, quais foram as
bases históricas, teóricas e filosóficas presentes nos primeiros códigos de ética profissional do serviço social?

4.1 Fundamentos teóricos e filosóficos da ética profissional


Não há uma única teoria ou concepção de homem e de mundo, portanto, não existe uma só concepção filosófica
capaz de elucidar a relação que o ser humano estabelece com o mundo e com a natureza. Logo, não se pode
pensar na existência histórica de uma ética universal.

Fundamento se relaciona com a ideia de base/suporte, assim, serão apresentadas as diferentes bases teóricas e
filosóficas que, no contexto histórico brasileiro, sustentaram a formação e prática profissional do serviço social.
4.1.1 Neotomismo

O neotomismo é a retomada, nos séculos XIX e XX, da filosofia de Tomás de Aquino, por meio encíclica papal
Rerum Novarum do Papa Leão (BARROCO; TERRA, 2012).

CURIOSIDADE
O conjunto de doutrinas teológicas e filosóficas de São Tomás de Aquino é conhecido como
tomismo, considerado o ponto culminante do pensamento escolástico, com destaque para a
busca pela harmonia entre o racionalismo aristotélico e a tradição do cristianismo.

O neotomismo se configura como base da Doutrina Social da Igreja Católica:

Oriundos de um pensamento filosófico de bases teológicas, os fundamentos e os valores afirmados


pelo neotomismo só têm sentido no interior de uma lógica que supõe a aceitação de determinados
princípios absolutos: a existência de Deus, de uma essência humana predeterminada à história e de
uma ordem universal eterna e imutável, cuja ordenação e hierarquia se reproduzem socialmente nas
diferentes funções exercidas por cada ser, em relação à sua natureza e às suas potencialidades.
(BARROCO; TERRA, 2012, p. 43-44).

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Portanto, a compreensão do neotomismo pressupõe a ideia da existência divina, do metafísico. Barroco e Terra
(2012) destacam que o pensamento neotomista se baseia nos seguintes elementos.

Estrutura do pensamento neotomista

O neotomismo se baseia em princípios metafísicos porque parte do pressuposto de uma concepção divina de
homem e mundo e são a-históricos, já que advoga por uma “[...] existência humana transcendente à história,
doadora de valores a todos os seres humanos” (BARROCO; TERRA, 2012, p. 44). Ou seja, os valores não são
concebidos como construção histórica e social, mas, sim, por meio da lógica de que pertence à natureza humana
que vem de Deus. Nessa perspectiva, o neotomismo tem como pressuposto os seguintes valores.

Valores do neotomismo

A defesa de tais valores abstrai os principais determinantes para o entendimento da produção da desigualdade
social, tendo em vista que parte da ideia de uma natural sociabilidade do homem e compreensão da sociedade
como união dos homens para realizar o bem comum.

A importância da abordagem do pensamento neotomista reside no fato de que essa doutrina é incorporada como
norteadora do processo de formação e exercício profissional dos assistentes sociais na gênese da profissão no
Brasil. Nessa época, os preceitos neotomistas fundamentaram e contribuíram para formulação dos primeiros
objetivos profissionais, fornecendo as diretrizes para o primeiro Código de Ética Profissional, que será estudado
mais adiante.

4.1.2 Positivismo

O positivismo ou filosofia social positivista, utilizado como fundamento teórico-filosófico no serviço social
brasileiro em meados da década de 1940, tem como principal representante o francês Augusto Comte (1798-1857),
conhecido como o “pai” da sociologia e um grande intelectual de seu tempo (RIBEIRO JUNIOR, 2001).

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Sua obra foi desenvolvida no período em que a sociedade europeia lidava com os impactos da Revolução Industrial
(1760) e da Revolução Francesa (1789), marcos do período conhecido como Idade Moderna. Nesse contexto, Comte
propôs uma reforma da sociedade em que vivia, partindo da reforma intelectual plena do homem, transformando
a forma de pensar dos indivíduos por meio das ciências (RIBEIRO JUNIOR, 2003).

Ribeiro Junior (2003, p.18) explica que, para Comte, o termo positivo designa:

[...] o real frente ao quimérico, o útil frente ao inútil, o certo frente ao incerto, o preciso frente ao vago,
o relativo frente ao absoluto, o orgânico frente ao inorgânico, e o simpático frente à intolerância. Seu
método de trabalho é o histórico genético indutivo, ou seja, observação dos fatos, adivinhando-lhes
por indução as leis da coexistência e da sucessão, e deduzindo dessas leis, por via da consequência e
correlação, fatos novos que escaparam da observação direta, mas que a experiência verificou.

Dessa forma, enquanto teoria e método de investigação, o positivismo privilegia a dedução e observação aparente
dos fenômenos sociais, em que a experiência empírica tem primazia. Assim, o método positivista trabalha com
relações aparentes dos fatos e limita a teoria àquilo que pode ser verificado (YAZBEK. 2009).
O método indutivo utilizado pelo positivismo é um raciocino que considera certa quantidade de fatos para chegar à
conclusão de que se trata de lei universal. Por exemplo: o corvo 1 é negro, o corvo 2 é negro, o corvo 3 é negro, o
corvo N é negro, assim, todo corvo é negro (LAKATOS; MARCONI, 2003).

Para Ribeiro Junior (2003, p. 15): “O positivismo é, portanto, uma filosofia determinista que professa, de um lado, o
experimentalismo sistemático e, de outro, considera anticientífico todo estudo das causas finais”. Tem como
suposto a lógica de que:

[...] a sociedade, a vida social, é regida por leis naturais universais e invariáveis. E que, nesse sentido, a
melhor metodologia para conhecer a vida social seria a mesma empregada para estudar a vida natural:
a observação com objetividade científica – neutra, livre das ideologias. (CHAGAS, 2015, p. 170).

Chagas (2015) salienta que, na teoria positivista, a ideia de classe social não é considerada, aspecto que pode ser
resultado do processo histórico em que Comte se inseria, que é o:

[...] período posterior à Revolução Francesa, quando a burguesia havia ascendido ao poder e lutava
pela sua manutenção contra os interesses da nascente classe trabalhadora – um momento de grandes
convulsões sociais e políticas. Nesse período, desenvolvem-se ideologias para dar sustentação aos
interesses que disputavam os rumos da história. Comte vincula-se à parcela da burguesia que defendia
um regime ditatorial e buscava impedir qualquer ameaça revolucionária. (CHAGAS, 2015, p.170).

É sob esse aspecto que se convencionou classificar o positivismo como uma teoria conservadora, que buscava
desenvolver argumentos teóricos capazes de garantir a manutenção da ordem vigente burguesa.

PAUSA PARA REFLETIR


Qual a diferença entre o neotomismo e o positivismo no que se refere à prática profissional do
serviço social?

O positivismo foi a primeira teoria sociológica a fundamentar a formação e exercício profissional do serviço social,
referencial que contribuiu para a naturalização da desigualdade social. Essa corrente forneceu as primeiras bases
para a profissão se tecnificar, ou seja, ofereceu uma metodologia teórica de análise e de intervenção profissional,
ainda que com limites. Segundo Yazbek (2009), essa dinâmica foi importante para a profissão, que buscava
imprimir um caráter profissional a sua prática, mediante adoção de teorias advindas da sociologia.

Comte lançou as bases para uma teoria sociológica voltada para a explicação da ordem e da regulação social, que
mais tarde passaria a ser elemento central do paradigma funcionalista.

4.1.3 Funcionalismo

O funcionalismo herdou como ponto de partida a seguinte lógica do positivismo: a sociedade é um organismo em
que cada parte tem uma função específica e contribui para o funcionamento do todo (CABRAL, 2004). Emile
Durkheim foi influenciado por Comte e a teoria positivista e, embora tenha abandonado os preceitos dessa teoria,
reteve o método positivista de analisar a sociedade da mesma forma que se analisa as ciências naturais.
BIOGRAFIA
Nascido em 15 de abril de 1858 em Épinal, na França, Émile Durkheim, ao lado de Max Weber,
pode ser visto como o fundador da sociologia como disciplina acadêmica.

De acordo com Giddens (1997, p. 178):

[...] as obras de Durkheim oferecem uma fonte próxima para o funcionalismo tanto em antropologia
quanto em sociologia. Mas a obra de Durkheim também teve um efeito amplo e mais difuso, como um
estímulo para as tradições centrais do pensamento social contemporâneo em que a finalidade de
atingir uma ‘ciência natural da sociedade’ é considerada desejável e factível.

No final do século XIX e início do século XX, a sociedade e, consequentemente, as relações sociais passavam por
profundas transformações que resultaram das duas grandes revoluções: Industrial e Francesa. Nesse cenário,
Durkheim buscava desvelar os aspectos inerentes para o bom funcionamento da sociedade, assim, certos termos,
como integração social, eram relevantes para seu pensamento e entendimento das mudanças que se processavam
no período em que viveu:

Considerado um holista metodológico, distinguindo entre causas, funções e estruturas, Durkheim


enriqueceu o pensamento de seus antecessores e forneceu uma sólida base para o desenvolvimento
do paradigma funcionalista. Quanto à sua teorização, Durkheim se situa no contexto da sociologia da
regulação. Sua sociologia reflete uma preferência pela ordem como força principal nas questões
sociais [...]. (CABRAL 2004, p. 4).

Para Durkheim, a tarefa do sociólogo era explicar os determinantes sociais do comportamento, portanto, nesse
sentido, cabia uma investigação sobre deveres, leis e costumes. Diante de um contexto social que passava por
grandes transformações, em que observava o aumento populacional da pobreza, por exemplo, procurou investigar
sobre os elementos constitutivos da solidariedade, a qual, em sua teoria, era dividida em mecânica e orgânica.

Divisão da solidariedade
“A solidariedade mecânica seria originária das semelhanças e vincularia diretamente o indivíduo à sociedade”.
Por sua vez, “[...] a solidariedade orgânica baseia-se nas diferenças entre os indivíduos e na afirmação da
individualidade” (ARAÚJO, 2005, p. 69), visto ser associada às sociedades industriais e ao trabalho, em que cada um
cumpre sua função.

Diferenças entre as solidariedades mecânica e orgânica

Durkheim destacava que, para se viver em sociedade, era necessário o alcance do consenso, em que a
solidariedade ocupa papel determinante, considerando que na sociedade da indústria havia possibilidade de
perda da capacidade da solidariedade, o que seria algo patológico (ARAÚJO, 2005).

O método de investigação de Durkheim está descrito em sua obra As Regras do Método Sociológico (DURKHEIM,
2007), considerado um clássico da sociologia, que prioriza o ensino da análise do objeto de estudo de forma que a
subjetividade não interfira. Os valores, as inclinações, os vícios e as paixões não podem influenciar a análise dos
elementos que compõem a sociedade, e o investigador deve se esforçar por alcançar a objetividade, não se
envolvendo com seu objeto de análise.

Portanto, Durkheim (2007) sugere que a realidade social deve ser analisada como fatos sociais, com
imparcialidade, objetividade e neutralidade, não permitindo que a subjetividade interfira na pesquisa, análise ou
objeto de estudo.

Para o pensador, os fatos sociais são elementos que constituem a realidade e são identificados por três
características comuns, os que você poderá cer, clicando nos cards a seguir.

Exteriores
Existem fora dos indivíduos e pertencem à realidade com elementos que não dependem deles;

Coercitivos
Exercem influência nos indivíduos, os quais se sentem coagidos a agir ou não agir de determinada maneira em
detrimentos desses fatos sociais;

Gerais
Servem para todos, aplicando-se a todas as pessoas que fazem parte de uma sociedade (CABRAL, 2004).
Como exemplo, tem-se a família, que se configura como um fato social exterior, coercitivo e geral. Essa instituição
existe independentemente do sujeito e coage os indivíduos a agirem de determinada maneira ou não. Além disso,
faz parte de toda a coletividade e atinge todos os indivíduos.

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Para Faleiros (1996),o funcionalismo no serviço social implica uma intervenção profissional norteada pelo
ajustamento, treinamento, adaptação, submissão e ausência de análise dos elementos sócio-políticos e
econômicos que produzem as expressões da questão social.

CURIOSIDADE
O funcionalismo recebeu influências de outro positivista além de Comte: Herbert Spencer, que
também influiu na formação de Durkheim (CABRAL, 2004).

Assim, o funcionalismo não permite uma visão real do contexto social, não evidencia as contradições existentes
entre as classes sociais e tende a culpar os indivíduos por seus problemas sociais tanto no âmbito individual
quanto coletivo.

4.2 Os códigos de ética anteriores ao movimento de


reconceituação do serviço social brasileiro
Ao longo da história profissional do serviço social, foram instituídos diversos Códigos de Ética Profissional. O 1.º foi
publicado em 1947, o 2.º, em 1965 e o 3.º, em 1975. Em 1986, foi publicado o 4.º Código de Ética Profissional,
considerado um marco histórico por ter inserido os conteúdos teóricos da teoria social crítica, como resultado do
movimento de reconceituação do serviço social.
PAUSA PARA REFLETIR
Qual a importância da incorporação da teoria social crítica para o código de ética profissional do
Serviço Social?

O Código de Ética de 1986 apresenta a lógica de politização da profissão, indicando que a categoria defende um
projeto profissional alinhado com as necessidades e demandas dos usuários atendidos.

4.2.1 Antecedentes do movimento de reconceituação

O serviço social emergiu no Brasil enquanto categoria profissional em meados da década de 1930, com a atribuição
de intervir na realidade social dos indivíduos de forma a integrá-los a determinada visão de sociedade. Analisando
esse período inicial, Iamamoto (2000, p. 20) afirma que: “Diferenciado da caridade tradicional, vista como mera
reprodução da pobreza, o Serviço Social propõe uma ação educativa entre a família trabalhadora, numa linha não
apenas curativa, mas preventiva dos problemas sociais”. Nessa perspectiva, influenciada pela Doutrina Social da
Igreja Católica, a profissão era vista como apostolado e missão.

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Iamamoto (2000) explica que o processo de secularização e tecnização do serviço social ganhou tônus com o
desenvolvimento das escolas de Serviço Social e com a aproximação dos conceitos das ciências sociais, em
meados de 1940. Nesse período, o serviço social:

[...] passa da influência do pensamento conservador europeu, franco-belga, nos seus primórdios, para
a sociologia conservadora norte-americana, a partir dos anos 40. Incorpora a noção de comunidade
como matriz analítica da sociedade capitalista e como projeto norteador da ação profissional. Mas a
comunidade é erigida como ótica de interpretação da sociedade capitalista quando já deixou de ter
contrapartida histórica, isto é, quando a sociedade encontra-se estruturada não mais segundo os
princípios das relações comunitárias, mas conforme os parâmetros da racionalidade burguesa, da
reprodução do capital. (IAMAMOTO, 2000, p. 26).

A adoção de um arranjo teórico-doutrinário-operativo trouxe à profissão a dualidade entre seu investimento no


processo de tecnificação e seu caráter missionário, bem como entre sua diretriz de humanização das relações e sua
tendência inicial de ajustamento dos indivíduos com a superação individualista e moralizadora dos problemas
oriundos das expressões da questão social.

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Em meados da década de 1960, a tecnificação da filantropia passou a ser problematizada pela profissão, o que
permitiu o acesso a novos conteúdos. Nesse processo, o serviço social no contexto latino americano passou por um
redimensionamento de sua imagem como profissão, que repercutiu no serviço social brasileiro. Esse momento
reivindicava uma revisão teórica, metodológica e técnica, capaz de capacitar a profissão na inserção dos espaços
profissionais que se ampliavam no contexto da ditadura militar. Assim, iniciou-se o movimento de reconceituação
do serviço social, um momento de reflexão, abertura e de renovação da profissão.

O movimento não ocorreu de forma homogênea, no que tange ao conteúdo teórico que o norteou, assim, havia
profissionais que ainda reivindicavam a necessidade de situar o Serviço Social no contexto das contradições
geradas pela sociedade capitalista, considerando que a profissão deveria buscar um posicionamento ético-político.

Netto (2010) identifica três projetos profissionais distintos que eram defendidos no interior da categoria
profissional: modernização conservadora, reatualização do conservadorismo e intenção de ruptura. Clique no
recurso a seguir, para conhecer esses três projetos.

• Perspectiva modernizadora
A perspectiva modernizadora buscava alinhar o serviço social às requisições sócio-políticas do período
ditatorial, mantendo a matriz positivista. Mesmo com um maior investimento no caráter técnico da
profissão, preservava aspectos de cunho moralizador e individualista.
• Reatualização do conservadorismo
Por sua vez, os profissionais que se localizavam na vertente reatualização do conservadorismo
argumentavam que a teoria positivista não contribuía para a compreensão do vivido humano, assim,
buscavam na fenomenologia e em referenciais teóricos da psicanálise e psicologia elementos capazes de
favorecer a compreensão do indivíduo e de sua subjetividade. Essa vertente é considerada conservadora,
tendo em vista que não considera as contradições de classe e a desigualdade social como fruto dessa
contradição. Os problemas sociais e sua análise se centram no indivíduo, responsabilizando-o.

• Intenção de ruptura
A vertente intenção de ruptura, alicerçada na teoria social crítica, em meados da década de 1960, já se fazia
presente na categoria profissional, no entanto, com a Ditadura Militar, apareceram limites para seu
avanço. Em meados da década de 1970, essa vertente se fortaleceu e adentrou a década de 1980
confirmando sua hegemonia no processo de formação e exercício profissional. O resultado foi a elaboração
do Código de Ética de 1986, que ganhou densidade teórica no ano de 1993, com nova revisão do texto.

4.2.2 O código de ética (1947, 1965,1975 e 1986)

O primeiro Código de Ética Profissional do Serviço Social foi instituído em 1947 com base filosófica pautada no
positivismo, sem abandonar alguns elementos do neotomismo. Nesse período, a ação profissional era tida como
vocação, com ênfase para o compromisso religioso. Assim, o Código de Ética estava voltado ao humanismo
católico, e o trabalho dos assistentes sociais se restringia à doutrinação e ao assistencialismo (BARROCO; TERRA,
2012).

O texto do código afirmava que: “O Serviço Social [...] trata com pessoas humanas desajustadas ou empenhadas no
desenvolvimento da própria personalidade”. (ABAS, 1947 apud BARROCO; TERRA, 2012, p. 45). Sua relação com o
beneficiário estava ligada à concepção de caridade, por meio de auxílios materiais e aconselhamentos. A prática
consistia em ações com cunho educativo e atividades que materializavam uma prática profissional de viés
moralizante (BARROCO; TERRA, 2012).

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Cardoso (2006, p. 79) sinaliza que, nesse período, a profissão se identificava com a teoria positivista e sua base:

[...] ético-filosófica é a ética tradicional, baseada nos valores humanista-cristãos e, politicamente


compromissada com o projeto conservador numa ação profissional que reproduzia a manutenção do
sistema capitalista, através de atitudes fundadas na lógica da coersão social, do assistencialismo, do
apaziguamento e da adequação do indivíduo à sociedade e suas normas.

Posteriormente, o Código de Ética de 1965 apresentou alguns elementos que denotavam certo avanço no que se
refere aos pressupostos doutrinários religiosos, conforme é possível observar no fragmento a seguir: “O assistente
social estimulará a participação individual, grupal e comunitária no processo de desenvolvimento, propugnando
pela correção dos desvios sociais” (CFAS, 1965 apud BARROCO; TERRA, 2012, p. 45).

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O Código de Ética de 1965 trazia a ideia de que competia aos assistentes sociais realizar intervenções com o
pressuposto de correção dos desvios sociais, com vistas ao alcance do desenvolvimento social. Os fundamentos
teórico-filosóficos do positivismo e funcionalismo consistiam em uma das bases desse código, tendo em vista a
lógica de ajuste e adequação social.

Em 1975, apresentou-se um novo Código de Ética, formulado e debatido ainda durante a Ditadura Militar, quando,
no contexto da profissão, a vertente intenção de ruptura já havia estabelecido contato com a teoria social crítica.
Entretanto, o texto do código manteve as características conservadoras e afirmava que: “O assistente social deve:
participar de programas nacionais e internacionais destinados à elevação das condições de vida e correção dos
desníveis sociais” (CFAS, 1975 apud BARROCO; TERRA, 2012, p. 45).

Além da concepção funcionalista, o código apresentava teor fenomenológico, visto ter recebido influência da
vertente reatualização do conservadorismo, a julgar que a profissão era responsabilizada por corrigir as disfunções
pessoais e sociais da população atendida. Nesse momento, a ação profissional se centrava no indivíduo “[...] numa
perspectiva ‘psicologizante’, sem perspectivas de uma intervenção coletiva que propusesse a ultrapassagem dessa
ordem social, o que em última instância acabava por reforçar também o ‘ajustamento’ do indivíduo” (CARDOSO,
2006, p. 115).
PAUSA PARA REFLETIR
Ao recorrer ao conteúdo da fenomenologia, o serviço social buscava elementos que permitissem
o entendimento a respeito do comportamento dos indivíduos, com uma metodologia que se
relacionasse ao tratamento social

Nesse período o termo funcionamento psicossocial era de uso recorrente no processo interventivo, referindo-se à
forma com que um indivíduo interagia em sua situação pessoal-social. “Esse funcionamento é influenciado pela
interação dinâmica das forças biológicas e psicológicas dentro da pessoa e pelas características externas físicas e
sociais da situação” (NORTHEN, 1984, p. 29).

Em 1986, foi instituído um novo Código de Ética, que apresentou o reconhecimento da dimensão política da
profissão, como evidencia o seguinte trecho:

A sociedade brasileira, no atual momento histórico impõe modificações profundas em todos os


processos da vida material e espiritual. Nas lutas encaminhadas por diversas organizações nesse
processo de transformação, um novo projeto de sociedade se esboça, se constrói e se difunde uma
nova ideologia. (CFAS, 1986 apud BARROCO; TERRA, 2012, p. 47).

Nesse contexto, de forma ainda incipiente, a categoria reconheceu a necessidade de organização e luta pela
construção de uma nova ordem societária, buscando se apoiar em uma visão histórica de análise da sociedade e da
constituição de processos de desigualdade social. Barroco e Terra (2012) sinalizam que a conjuntura da
redemocratização brasileira favoreceu esse processo no interior da profissão.

O diagrama a seguir resume as características dos Códigos de Ética de 1947, 1965, 1975 e 1986.

Características dos Códigos de Ética do Serviço Social

Os Códigos de Ética são organizados em torno de um conjunto de princípios, valores e deveres que buscam
orientar e definir os rumos da intervenção profissional do serviço social. O referencial teórico fornece a
fundamentação da concepção ética que deve ser resguardada pelos profissionais.

Proposta de atividade
Agora é a hora de recapitular tudo o que você aprendeu neste capítulo! Elabore uma síntese de até 20 linhas,
destacando as principais ideias abordadas ao longo do capítulo. Ao produzir sua síntese, considere as leituras
básicas e complementares realizadas.
Recapitulando
Apresentamos as bases históricas, teóricas e filosóficas que compareceram nos códigos de ética profissional de
1947, 1965, 1975 e 1986 do serviço social. Para tanto, abordamos o neotomismo e suas principais concepções, na
perspectiva de localizá-lo como doutrina religiosa. Igualmente, foi necessário contextualizar os principais
pressupostos das teorias positivista e funcionalista.

Um dos principais elementos que diferenciam o neotomismo do positivismo é o fato de que o primeiro tem como
suposto uma doutrina religiosa, assim não pode ser considerado como teoria científica. Por sua vez, o positivismo
consiste em uma teoria sociológica que forneceu elementos técnicos e metodológicos para a intervenção do
serviço social.

A teoria social crítica, inserida, ainda que de forma incipiente e com pouca maturidade teórica, no Código de Ética
de 1986, favoreceu ao serviço social a compreensão da contradição de classes e o reconhecimento de que a
desigualdade social não se trata somente de problema individual, mas, sobretudo, de macro societário, ou seja, é
produzida pela sociedade capitalista. Portanto, a partir de então, a formação e prática profissional dos assistentes
sociais passou a priorizar a defesa de um projeto ético-político com ênfase na ampliação e garantia dos direitos
sociais.

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