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Entre o canto e a caneta: oralidade, escrita e

conhecimento entre os Guarani Mbya*

Adriana Queiroz Testa


Universidade de São Paulo

Resumo

O tema das relações entre oralidade e escrita é apresentado em


grande parte dos estudos e programas dedicados à questão da
educação escolar indígena, mas raramente é tomado como proble-
ma central para a compreensão dos processos de ensino-aprendi-
zagem nos contextos em que a escola se faz presente. Por outro
lado, autores que se dedicam a essa questão enfatizam quase exclu-
sivamente a escrita em detrimento da oralidade. Nesse sentido, as-
sociada à necessidade de uma discussão teórica de maior fôlego,
percebe-se a falta de análises que se dediquem à compreensão do
papel e dos significados da escrita e da oralidade entre diferentes
povos indígenas. No intuito de contribuir para o aprofundamento e
a ampliação desse debate, o presente artigo procura discutir a
temática, pautando-se numa abordagem que permite caminhar
entre a leitura de textos especializados e relatos que registram in-
terpretações de pessoas Guarani Mbya. Os relatos colhidos e
textualizados durante sete anos de pesquisa e convivência com os
Mbya em diferentes aldeias das regiões sul e sudeste permitem
repensar a oralidade e a escrita como aspectos importantes num
conjunto mais amplo de processos de produção, aquisição e
transmissão de conhecimento. Desse ponto de vista, a educação é
concebida num sentido amplo que não se reduz à escolarização.

Palavras-chave

Educação escolar indígena — Oralidade — Escrita — Guarani Mbya.

Correspondência:
Adriana Queiroz Testa
Rua Barroso Neto, 342, ap. 124
05585-010 - São Paulo – SP
e-mail: a.testa@ig.com.br

* Esta pesquisa foi desenvolvida com o


apoio financeiro da FAPESP.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 34, n.2, p. 291-307, maio/ago. 2008 291
Between lyrical and literate: orality, writing and
knowledge among the Mbya Guarani*

Adriana Queiroz Testa


Universidade de São Paulo

Abstract

The theme of the relations between orality and writing can be found
in most studies and programs dedicated to the issue of the school
education of indigenous populations, but it has seldom been taken
as the central problem in understanding the teaching-learning pro-
cesses in the contexts where schools take part. In fact, authors that
deal with this question emphasize almost exclusively writing, and
tend to forget about orality. In this sense, associated to the need for
a deeper theoretical discussion, one can observe the lack of analyses
dedicated to comprehend the role and meaning of writing and
orality among the various indigenous peoples. With the purpose of
contributing to expand and advance the debate, this article seeks to
discuss the theme based on an approach that allows us to move
between the reading of specialized texts and reports that register
interpretations by Mbya Guarani individuals. The testimonies
collected and transcribed during seven years of research and living
with the Mbya in different villages in the South and Southeast
regions of the country allowed us to reconceptualize orality and
writing as important aspects within a wider group of processes of
production, acquisition and transmission of knowledge. From this
viewpoint, education is conceived in a wide sense that cannot be
reduced to schooling.

Keywords

Schooling of indigenous peoples — Orality — Writing — Mbya Guarani.

Contact:
Adriana Queiroz Testa
Rua Barroso Neto, 342, ap. 124
05585-010 - São Paulo – SP
e-mail: a.testa@ig.com.br

*
This research was sponsored by
FAPESP.

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Xeramoi [nosso pajé] sempre fala para nós educação escolar indígena, percebe-se a neces-
que as palavras dos livros duram pouco. Ele sidade de pensá-los no âmbito de um contex-
fala que pode deixar os juruá [pessoas não to educacional mais amplo que não se restrin-
indígenas] escreverem seus livros, porque um ge à escolarização.
dia tudo isso vai acabar. O papel rasga, quei- Desse modo, o presente artigo busca dis-
ma ou se molha na água e derrete, já a pala- cutir o tema das relações entre oralidade e es-
vra que é falada dentro de cada um não mor- crita, caminhando entre textos especializados e
re. Ela passa por dentro de mim e passa por considerações apresentadas por pessoas Guarani
dentro dos outros e, mesmo quando eu mor- Mbya no seu pensar os processos de produção,
rer, as palavras que forem verdadeiras vão aquisição e transmissão de conhecimentos1. No
continuar circulando entre meus filhos e ne- intuito de contextualizar o tema central deste
tos. (Verá Mirim, Aldeia Tekoá Pyaú, 2006) artigo, inicio com uma discussão geral sobre o
conhecimento como processo, tomando como
No contexto atual de políticas públicas norte a noção mbya de que o conhecimento
de educação escolar indígena, no qual a pro- pode ser entendido não como um objeto a ser
posta de uma educação diferenciada, específica, acumulado e transmitido, mas como possibilida-
bilíngüe e intercultural freqüentemente enfatiza de relacional de busca e comunicação.
a alfabetização em língua indígena e o registro
escrito de conhecimentos indígenas como mei- Conhecimento como busca e
os de “valorização e preservação” culturais, a comunicação
citação de Verá Mirim nos indica a necessidade
de colocar certos pressupostos em suspensão, Tomar o conhecimento como tema de
de forma que possamos vê-los e revê-los partin- estudo não se restringe ao levantamento do
do de outros lugares ou perspectivas. que se sabe, mas significa explorar a questão
As considerações apresentadas neste ar- de como se sabe e conhecer os caminhos que
tigo são uma reelaboração de questões aborda- dão acesso a esses saberes. Se a discussão de
das na pesquisa de mestrado Palavra, sentido e temas como territorialidade, economia, religião,
memória: educação e escola nas lembranças parentesco e noção de pessoa tem exigido uma
dos Guarani Mbya (Testa, 2007). Por meio de atenção à importância que os Guarani dão à
um trabalho de coleta e textualização de nar- mobilidade e, com isso, à busca produtiva de
rativas e experiências com colaboradores que lugares e relações, a transmissão de conheci-
vivem em diferentes aldeias das regiões sul e mentos e a aprendizagem também podem ser
sudeste, foi possível acompanhar como temas abordadas como processos de deslocamento e
fundamentais aos processos de conhecimento comunicação entre espaços e interlocutores
– tais como memória, esquecimento, oralidade, diferentes. Com isso, subverte-se o que encon-
escrita, experiência, tradução, saber e poder – tramos em boa parte das etnografias sobre os
se fazem presentes na vida de professores e Guarani Mbya, pois em vez de fazer um inven-
outras pessoas guarani mbya que não estão tário dos modos de vida ou dos saberes como
necessariamente ligadas à educação escolar. conjunto de características e produtos culturais,
Tomando essas narrativas e experiências acompanha-se a realização dos processos de
como ponto de partida, é possível tecer obser- conhecer, levando a sério a idéia freqüentemente
vações sobre as (im)possíveis relações entre repetida pelos Mbya de que a vida de cada um
educação escolar e outros processos de produ- é seu caminho de buscar e aprender.
ção, aquisição e transmissão de conhecimento
desenvolvidos pelos Guarani Mbya. Assim, ao 1.As citações de pessoas Guarani Mbya são seguidas pelo nome, aldeia
problematizar temas caros aos debates sobre e ano de registro de cada fala.

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Desde a década de 1950, difundiu-se na rudimentar e ignorando o uso de metais e
literatura a divisão dos Guarani em três subgrupos: de qualquer sistema de escrita, as nossas
Kaiova, Mbya e Nhandeva. Segundo Schaden populações aborígines têm culturas relati-
(1962), tal divisão se justificaria por diferenças lin- vamente rígidas e estáveis. O apego à tra-
güísticas e culturais, mas a maioria dos Guarani usa dição constitui freio constante às inovações
como autodenominação Nhandeva (nossa gente). e mudanças. A idéia de progresso não exis-
Atualmente, há aproximadamente 30 mil Guarani te. Os objetivos de vida, de há muito bem
no Brasil, sendo cerca de 6 mil Mbya. definidos, não deixam lugar para dúvida e
Sob abordagens diferentes, os processos garantem a segurança de atitudes. (p. 9)
de produção, aquisição e transmissão de conhe-
cimento permeiam boa parte da literatura sobre A definição que Schaden oferece de tra-
os Guarani, embora raramente sejam o tema dição em oposição à inovação é esclarecedora
central. Textos que datam do início do século quando procuramos entender sua opção por
passado até a produção mais recente oferecem tomar os Guarani como foco privilegiado de
múltiplas pistas para se caminhar pelas noções estudo dos impactos aculturativos do contato
de conhecimento paralelas ou subjacentes às interétnico. Ao enfatizar um conjunto de carac-
outras prioridades adotadas pelos autores na terísticas e elementos culturais em detrimento de
construção de suas descrições e argumentação. uma abordagem que considera os processos de
À luz disso e reconhecendo que a educação não transmissão de conhecimentos, relações, objetos
pode ser desvinculada do seu contexto de rea- e substâncias como tradicionais, Schaden não
lização e dos seus protagonistas, convém apre- podia compreender que para os Guarani relaci-
sentar uma síntese dessa literatura, retomando a onar-se com o Outro, seja este indígena, não-
proposta de cada texto e suas possíveis contri- indígena, humano ou não-humano, está no
buições para o entendimento do tema em foco. cerne das suas tradições. Em outros termos, a
De Nimuendajú (1987)[1914] até meados abordagem da aculturação impede a percepção
da década de 1970, os Guarani apareceram na de que a alteridade é motor das tradições.
literatura vinculados, sobretudo, à problemática da Por outro lado, no estudo da organização
aculturação (Nimuendaju, 1954; 1987; Cadogan, social guarani, Schaden (1962) concebe cada
1960; 1967/68; Schaden, 1962; 1964; 1974). aldeia como uma unidade, onde a fragmentação
Trata-se de uma abordagem que apresenta inven- dos grupos que constituiriam essa unidade ideal
tários da “cultura” guarani como conjunto de ca- é tomada como sinal de desintegração causada
racterísticas em processo de perda ou descreve a pelo contato com a sociedade não indígena.
organização social enfatizando o contato Ladeira (1992; 2001) e Pissolato (2006), no en-
interétnico como fator de desintegração. Dos au- tanto, percebem a formação de grupos de paren-
tores desse período, os textos de Egon Schaden são tes e a eventual cisão de um grupo em relação a
bastante ilustrativos dos pressupostos e desdobra- outro, que pode resultar na constituição de um
mentos dos estudos da aculturação. novo tekoa2 no interior de uma mesma terra in-
Num texto sobre a educação entre diversos dígena ou em outro local, como característica da
povos indígenas, Schaden (1974) apresenta uma organização social mbya, para a qual a dinâmica
síntese clara dos pressupostos que orientaram seus fluida das relações é altamente produtiva.
trabalhos e o de colegas do mesmo período:
2. O termo tekoa é freqüentemente reduzido como equivalente de aldeia.
No entanto, tomando-o como substantivo constituído por teko, conceito que
Dispersos pelo território em pequenos gru- remete a um modo próprio de viver num mundo de relações, onde é pos-
pos mais ou menos autônomos e isolados, sível usar o termo para se referir inclusive ao modo de viver próprio de
vários seres não-humanos, percebe-se que o tekoa não se refere aos limi-
vivendo em íntima associação com a natu- tes de uma aldeia, mas indica um espaço onde se tecem relações entre
reza, possuindo uma tecnologia bastante parentes de um grupo local.

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A noção de pessoa é central às concep- xamanísticas de produção de parentesco que
ções guarani acerca da produção, transmissão e reside a produção de conhecimento, ou seja,
aquisição de conhecimento (Schaden, 1974; La- como Testa (2007) propôs, a não ser que insis-
deira, 1992; Pissolato, 2006; Testa, 2007). Para tamos em reduzir o conhecimento à educação
Schaden (1974), a noção de pessoa guarani está escolar, os processos de produção, aquisição e
centrada numa “teoria das almas” (p. 11), segun- transmissão de conhecimento estão no centro
do a qual cada indivíduo portaria duas almas. No do cotidiano guarani de caminhar entre e se
caso dos Mbya, Pissolato (2006) descreve duas relacionar com parentes, outros humanos e
almas: ã e nheë. A primeira está ligada ao corpo não-humanos, evidenciando o exercício dessas
e é freqüentemente associada à sombra da pes- almas em comunicação e deslocamento.
soa, enquanto o nheë, às vezes denominado ayvu, A partir da década de 1970, contrapon-
também significa fala e é central ao conhecimento do-se às abordagens da aculturação até então
na medida em que possibilita a comunicação. predominantes no âmbito dos estudos sobre os
Cadogan (1960) associa a capacidade de comu- Guarani, Hélène Clastres (1978) destaca a neces-
nicação à interlocução que se mantém com os sidade de prestar atenção aos discursos destes
deuses, na medida em que estes fazem circular para compreender a importância e os significa-
palavras entre quem se lembra deles e com eles dos que atribuem a diferentes aspectos da
se comunica. Testa (2007) sugere que o papel do cosmologia e do cotidiano. A partir disso e ba-
nheë nos processos de conhecimento está asso- seando-se nos relatos dos cronistas acerca dos
ciado à idéia de mobilidade, -guatá (caminhar), antigos Tupi e Guarani, Clastres pôde aproximar-
pois ao caminhar e se relacionar entre perspecti- se de uma abordagem que enfatiza a continui-
vas diferentes, humanas e não-humanas, o nheë dade em vez de ruptura, mudanças e perdas.
exerce sua capacidade de adquirir e transmitir Considerando que as palavras para os
conhecimento e poderes. Mbya têm sentido, no duplo entendimento do
Em relação à origem e ao destino do termo, revelando significados e também possuin-
nheë ou ayvu, os autores aqui citados são do origem e direção, tornando-as potencialmen-
unânimes em afirmar que eventualmente voltam te produtivas de saberes e ações, a proposta de
às regiões celestes de onde partiram, mas as seguir as palavras dos Guarani na compreensão
reflexões que derivam disso, no que tange ao dos seus significados e percursos é fundamental
conhecimento, são diversas. à investigação das trajetórias de produção, trans-
Schaden (1962; 1974) enfatiza que os missão e aquisição de saberes.
Guarani dos três subgrupos descrêem da eficácia Nesse sentido, percebe-se que muitos dis-
de quaisquer medidas pedagógicas para a forma- cursos remetem a uma associação entre conheci-
ção da pessoa, investindo toda sua energia em mento e fortalecimento. Os Mbya dizem que
“medidas e precauções de natureza mágica” quem tem conhecimento saberá e conseguirá se
(1974, p. 11). Ao descrever tais medidas e pre- fortalecer e estender os benefícios disso para além
cauções, ele inclui a série de cuidados tomados do seu grupo de parentes. Os discursos guarani
pelos pais que acompanham a gestação até os sobre a destruição da Terra, mencionados por
primeiros anos de uma criança e que podem se Clastres (1978), Nimuendaju (1987) e Ladeira
estender a todos os parentes próximos e, por (1992; 2001), podem ser entendidos nesse con-
outro lado, os rituais que se destinam a “contro- texto, pois embora a vida nessa Terra seja
lar o desequilíbrio” provocado por acontecimen- insatisfatória — imagem imperfeita e corruptível
tos individuais ou coletivos, como nascimentos, do mundo divino —, os Guarani se esforçam por
doenças, mortes, viagens etc. (1962, p. 85). fazê-la durar, seja a existência de cada pessoa ou
Pissolato (2006), no entanto, sugere que mesmo a continuidade desse planeta face à sua
é justamente nesses cuidados e nas práticas inevitável destruição.

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Pissolato (2006) afirma que o tema da tua num universo de comunicação compartilha-
cataclismologia não tem entre os Mbya o mes- da. No caso do xamanismo, esse aspecto é par-
mo relevo encontrado em outros grupos ticularmente enfatizado: sejam palavras dirigidas
guarani, sugerindo que a preocupação não se aos deuses no intuito de adquirir conhecimento
centraria na continuidade de existência dessa e capacidades ou aquelas que buscam persuadir
Terra em si, mas no envio contínuo, por parte uma alma de uma pessoa doente a permanecer.
das divindades, de almas e saberes que permi- O que está em questão é a habilidade de profe-
tam a continuidade dos Mbya. Meus próprios rir as ayvu porã (“belas palavras”), que possibili-
dados, no entanto, apontam para uma relação tam ouvir as mensagens divinas e ser escutado.
maior entre a existência dessa Terra, o envio Tomo, como exemplo disso, a fala de um xamã
contínuo de almas e esforços para a produção mbya que havia acabado de tratar uma criança
de pessoas mbya. Ilustrativa desse ponto é a pequena que sempre adoecia:
afirmação comum entre os Mbya de que esse
mundo deixará de existir quando os deuses Eu conversei com a alma dela. Ela não quis
deixarem de enviar almas mbya ou quando os mais ficar porque já viu muita tristeza aqui
mbya não conseguirem mais ouvir e ser ouvi- na terra. Parece só uma criança, mas sua
dos pelos deuses. alma sabe tudo que acontece e ficou triste
Para Pissolato (2006), a idéia dessa Terra com os parentes. Aquela alma não vai mais
e dos atuais Mbya serem imagens daquela ficar, já foi embora. Por isso eu pedi para os
humanidade divinizada dos primeiros tempos deuses mandarem outra alma para ela e
está relacionada à possibilidade de manter uma agora o nome dela mudou. (Karaí Tataendy,
comunicação contínua com as divindades, re- Tekoa Ytu, 2006)
cebendo, destas, forças e saberes existenciais.
Nesse sentido, se essa Terra está fadada a pe- Se a transmissão de conhecimento en-
recer, a continuidade de vida nela expressa o volve o esforço para se comunicar, indicando o
vínculo com os imortais. fluxo contínuo de saberes que se adquirem de
Por ora, interessa reconhecer que a pro- uma exterioridade divina, vinculada aos Mbya
dução dessa continuidade se articula à produ- por uma linguagem que os deuses comparti-
ção, aquisição e transmissão de saberes. No lham com eles, desde o envio de almas-nomes
entanto, não se tratam de quaisquer saberes. Por que se tornam meio privilegiado de comunica-
serem enviados pelas divindades imortais, são ção e interpretação de saberes-poderes, não se
uma espécie de sabedoria infinita, aquela cuja ignora o papel do conhecimento nas relações
trajetória de transmissão não se interrompe. É que se travam com outra exterioridade, povo-
nesse sentido que os Mbya podem conceber ada por subjetividades às quais se procura
uma distinção entre os conhecimentos escolares, negar a possibilidade de comunicação.
principalmente informações impressas nos livros Assim, os saberes e as forças adquiridos
e os conhecimentos que se adquirem por comu- na comunicação com os deuses são canalizados
nicação com os deuses ou que se conhecem por para lidar com essa exterioridade perigosa, tema
meio das palavras de outras pessoas. cuja discussão assume diferentes formas entre os
No sentido de contribuir para o aprofun- Mbya, conforme avaliam seu contexto de
damento dessas questões, proponho que a aqui- enunciação. Nesse sentido, quando se dirigem a
sição e a transmissão de conhecimento estão platéias não indígenas, freqüentemente incorpo-
atreladas à comunicação que se desenvolve, no ram às suas falas elementos de um contexto
eixo vertical, entre humanos e deuses e, no eixo discursivo ambientalista, apropriando-se de no-
horizontal, dos humanos entre si, sugerindo que ções que atribuem aos povos indígenas um tipo
parte importante do processo de conhecer se si- específico de relação com a natureza. Nesses

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casos, podem se apresentar como “protetores” Extremamente reservados sobre seus cantos,
da natureza e contribuir para reforçar a idéia de os xamãs afirmam terem cantos próprios. O
que povos indígenas vivem em harmonia com que é privativo, na verdade, é menos a canção
ela. No entanto, quando falam entre si, a natu- propriamente dita que a comunicação com
reza é povoada por seres que representam a algum domínio sobrenatural que o canto re-
alteridade em relação aos humanos, relação essa presenta. O canto é assim a emanação de uma
que pode ser contrária às ações e aos interesses relação, construída durante a iniciação, trans-
dos humanos. Nesses casos, a natureza se revela mitindo a palavra das entidades paie. (p. 67)
nos discursos não como uma extensão harmô-
nica da vida guarani, mas como local de nego- No caso dos Mbya, é no reconhecimento
ciação e também agressão. de uma fonte de autoria externa que a fala apre-
A escolha contextual de discursos e conhe- sentada a seguir enfatiza as precauções que devem
cimentos a serem comunicados pode ser compre- ser tomadas na transmissão de conhecimentos.
endida como aspecto relacionado à gestão do
conhecimento. Para Simon Harrison (1995), o Nós temos que ter muito cuidado com o
conhecimento pode ser concebido como recurso que uma pessoa conta para nós, porque
cujos processos de produção, aquisição e trans- essa voz que fala não é da pessoa, mas de
missão são culturalmente construídos de acordo Nhanderu [Deus], então tem que ter muito
com o valor e o significado que é atribuído a esse respeito pelas palavras que vêm desse outro
conhecimento. Sua discussão se centra na circu- mundo, e só pode contá-las para quem
lação do conhecimento, enfatizando que a valo- também vai ter esse respeito. Às vezes, a
rização deste pode estar atrelada à sua circulação gente fala uma coisa que vai ser muito im-
ampla ou a restrições que o tornam acessível a portante para a pessoa e para sua vida, mas
poucos. Entretanto, em vez de tratá-las como al- ela não entende ou não sabe para o que
ternativas polares, Harrison afirma que em cada ela vai usar esse conhecimento. É como a
contexto há uma combinação específica de própria mão; ela é feita por Nhanderu e
ambas as estratégias. qualquer coisa que a pessoa quiser fazer de
Considerando a gestão de conhecimen- bom com a mão, ela vai conseguir, porque
to entre os Mbya, sugiro que a ênfase está nos Nhanderu vai dar força, mas a mão também
caminhos de acesso ao conhecimento. Assim, tem a força para fazer mal e até destruir as
mais do que possuir os conhecimentos, os coisas que o próprio Nhanderu criou. É a
Mbya se preocupam em se apropriar de um mesma coisa com o conhecimento, ele pode
conhecimento cuja autoria e “propriedade” si- ser usado para fazer o bem ou o mal. É por
tuam-se numa exterioridade. Isso parece ir de isso que quando xeramoi vai ensinar alguma
encontro com o que Manuela Carneiro da Cu- coisa ele primeiro pede para Nhanderu para
nha (2004) observa na etnologia amazônica, na saber se ele pode revelar esse conhecimento.
qual se percebe que o conhecimento é conce- (Tupã Mirim, Tekoá Pyaú, 2004)
bido como “empréstimo” que é incorporado,
tendo sua origem numa exterioridade. Fica clara aqui a noção de que as pessoas
No mesmo sentido, Dominique Gallois não possuem definitivamente os conhecimentos
(1996) fala que, no caso waiãpi, os cantos são que adquirem, antes as acessam continuamente
um elemento relacional, nos quais o xamã para colocá-los em circulação. Assim, é prestigiado
transmite as palavras dos outros e, assim, o que não aquele que possui muito conhecimento, mas
está em foco não é a posse dos cantos ou aquele que demonstra a capacidade de acessá-lo
palavras, mas a aquisição do acesso à comuni- e mobilizá-lo, seja na cura, na liderança de um
cação com diferentes domínios. grupo ou no aconselhamento. Sua distribuição é

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valorizada não apenas na condição de disponi- ela e Nhanderu. Nesse momento, ela começa
bilizar muitos conhecimentos continuamente, mas a ver tudo que está em volta: o solo, as árvo-
também de saber restringir sua circulação entre res, as cachoeiras e várias outras coisas. [...]
aqueles que saberiam aproveitá-los. É nesse sen- Se você pensar nisso tudo, você vai perceber
tido que os xamãs podem deixar de identificar que está num espaço muito pequeno do
publicamente as origens de determinadas agressões mundo e ele é feito de muitas coisas que
ou salientam a necessidade de não compartilhar você não consegue enxergar, por isso você
certos conhecimentos com pessoas não indígenas nunca sabe onde vai pisar. Muita gente não
ou mesmo com parentes. Nesse contexto, a ênfa- acredita nessas coisas porque não consegue
se não está numa noção de propriedade em si, enxergá-las, e as pessoas só acreditam naqui-
mas sobre suas condições de uso. lo que vêem. O tijolo a gente vê, você mesma
Por outro lado, o conhecimento adquiri- está vendo este chão, mas não está vendo o
do por experiência própria também é valorizado que está além dele. Na verdade, você não está
pelos Mbya. Como Carneiro da Cunha (2004) vendo nada mais do que o chão. É por isso
aponta para vários povos ameríndios, entre os que as pessoas não acreditam, mas eu acredi-
quais eu sugiro incluir os Mbya, os critérios de to porque nhanheramoi [nosso xamã] fala
valorização e veracidade do conhecimento es- que é assim e você sabe que o que eles dizem
tão associados a uma experiência que se viveu acontece mesmo. É assim que as doenças são
pessoalmente. Assim, quando se aceita que vistas pelo médico guarani. A kunhã karaí
cada pajé tenha seu próprio estilo, coloca-se [mulher xamã] consegue ver o efeito das coi-
em pauta a idéia de que o conhecimento ad- sas acontecendo. Ela consegue ver os espíri-
quirido e mobilizado por cada um deles é fru- tos das coisas que atingiram a pessoa doente.
to de uma experiência pessoal de comunicação (Verá Nhamandu Mirim, Parati Mirim, 2005)
com os deuses, construída por meio de uma
vivência individual. O que para Carneiro da Tendo em vista que o processo de trans-
Cunha estaria associado à idéia de que “ver” ou missão de conhecimento é relacional, conside-
“ouvir” não são dados, mas demandam uma ra-se também a experiência daquele que o
aprendizagem. Portanto, aquele que conta adquire e o ponto de vista a partir do qual ele
porque viu ou ouviu algo pessoalmente eviden- interpretará os conhecimentos. Nesse sentido,
cia ter adquirido o saber-poder que possibilita há uma tentativa, como no caso das situações
tal experiência. de aconselhamento, de falar pautando-se nas
Eu sugiro, portanto, que o conhecimen- suas próprias experiências de vida e na interpre-
to xamanístico, associado à comunicação, está tação que se faz das experiências narradas por
relacionado aos sentidos e à importância que se aquele a quem os conselhos se dirigem. Num
lhes atribui, aspecto pouco tratado na literatura trabalho anterior (Testa, 2007), procurei enten-
sobre os Mbya, mas recorrente nas elaborações der a comunicação como situação em que se
mbya sobre o xamanismo, quando afirmam que procura aproximar-se do ponto de vista do
o xamã é aquele que “vê” o movimento e o outro. Essa aproximação que permitiria aos
tempo das coisas e seres ou aquele que “ouve” interlocutores situarem-se no mesmo universo
as mensagens dos deuses. de linguagem compartilhada pode ser interpre-
tada como forma de administrar os desdobra-
A pessoa que faz essa cura, ela vê o movi- mentos que os conhecimentos e as palavras
mento e a velocidade das coisas. Por isso, têm a partir da sua transmissão.
quando ela vai consultar uma pessoa que está É nesse sentido que entendo as afirma-
doente, ela pega o petÿguá [cachimbo] e fica ções dos Mbya quando indicam os cuidados que
fazendo seu trabalho só com Nhanderu. Só se deve ter na escolha dos conhecimentos

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disponibilizados para diferentes pessoas, pois se pelos deuses ou oriundos da própria vivência, o
dizem que a palavra pronunciada adequadamen- conhecimento também é condição para se fazer
te pode entrar no outro e servir como remédio, o caminho, na medida em que é necessário saber
também dizem que a palavra que se perde no distinguir, evitar ou suportar obstáculos que po-
meio do caminho entre interlocutores ou que dem ser encontrados no meio do percurso.
toma um sentido “desviado” pode trazer preju- Nesse sentido, sugiro que o nhe’ë pode
ízos, inclusive para aquele que a pronunciou. caminhar em diversos sentidos e circunstâncias,
Dentre os prejuízos citados, estão: os conflitos seja na reza e nos cantos quando se comunica
que afloram quando um xamã revela o agente com os deuses e acessa os conhecimentos por
responsável por alguma agressão, a doença, o eles disponibilizados, seja nos sonhos em que é
enfraquecimento ou a perda de capacidades possível receber visitas e conhecimentos de ou-
xamanísticas que um xamã pode experimentar tras almas ou colocar-se em movimento visitan-
caso suas palavras sejam apropriadas por outros do parentes, regiões distantes ou mesmo a mo-
de forma inadequada ou sejam reveladas a pes- rada de Nhanderu, ou na conversação entre almas
soas que não deveriam ter acesso a elas. que, conforme os Mbya indicam, exige por si uma
complexa transação entre palavras-almas que flu-
A palavra tem que entrar e ficar no coração em entre os eixos vertical e horizontal.
ou no pensamento da outra pessoa. Quan- Enfim, o que está em pauta quando se
do o xeramoi ou eu mesmo falamos é tam- trata do conhecimento são os caminhos que
bém um remédio. Se uma pessoa está triste mobilizam corpos, almas e relações, e talvez
ou preocupada, nossa palavra serve para seja por isso que os Mbya falem constantemen-
tratar a pessoa, mas se a pessoa não quer te em “alcançar” e “achar” quando tratam da
ouvir, isso volta para nós mesmos e faz aquisição de saberes e capacidades. Nesse sen-
mal. (Karaí Tataendy, Tekoá Ytu, 2007) tido, se não usam o verbo “fazer” para falar do
conhecimento, minha hipótese é de que a pro-
Tendo em vista o objetivo de abordar a dução de conhecimento não é problematizada
transmissão de conhecimento e a aprendizagem com a mesma ênfase com que são sua aquisi-
como processos de comunicação e deslocamen- ção e transmissão, justamente porque a auto-
to entre espaços e interlocutores, passo agora a ria de grande parte do conhecimento se situa
tratar desse segundo aspecto que coloca em numa exterioridade, cabendo aos humanos in-
foco a noção de que o conhecimento é apreen- vestir nas suas vias de acesso. Em consonância
dido na disposição de estar atento às experiên- com isso, em vez de tomar o conhecimento
cias que se tem nos caminhos percorridos. como objeto produzido a ser adquirido, acumu-
Um colaborador mbya de Schaden (1962) lado e transmitido, entender o conhecimento
certa vez destacou: “Sem caminho, não se che- como rede de caminhos que articulam pesso-
ga ao lugar que se pretende alcançar” (p. 173). as, deuses e outras subjetividades permite rea-
Sugiro que essa afirmação pode ser compreendida lizar uma pesquisa focada nos processos de
no duplo sentido que tem a mobilidade para os conhecer e não necessariamente presa a um
Mbya: no deslocamento físico e no trabalho de inventário do que é conhecido.
deslocamento que têm as almas (nhe’ë) nos ca-
minhos de acesso à comunicação entre humanos Oralidade e escrita nos
e deuses. Essas duas formas de entendimento da caminhos do conhecimento
mobilidade são complementares, assim como é
dialética a relação entre conhecimento e caminho, Tomando como ponto de partida a
no sentido de que se o caminho é condição para questão: Quais os sentidos da educação esco-
a aquisição de conhecimentos disponibilizados lar indígena nos contextos múltiplos de produ-

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ção, aquisição e transmissão de saberes desen- as de vida, o narrador doa ou empresta algo
volvidos pelos Guarani Mbya?, é possível pen- que lhe constitui, por isso, receber suas pala-
sar as relações entre oralidade e escrita na vras é relacionar-se, não apenas com o
educação (escolar) indígena sem cair automa- interlocutor e todos os saberes e as experiên-
ticamente nas armadilhas de pressupostos uni- cias que o constituem, mas também percorrer
versais. Portanto, ao abordar essa questão, pro- as perspectivas que ele acessa para receber ou
curo articular algumas ponderações registradas produzir esses saberes.
nesses anos de pesquisa e convivência com os Nesse sentido, podemos, como Menezes
Mbya a um conjunto de leituras para explorar de Souza (2006) sugere, pensar o saber como
(sem a pretensão de esgotar) certos paradoxos perspectiva (alguém só conhece aquilo que vê
que a educação escolar indígena nos apresenta. e a partir de onde vê). Assim, na relação de
Maurício Gnerre (1987) afirma que as ensino-aprendizagem, fica clara a necessidade
relações entre escrita e sociedade se tornaram de experimentar lugares diferentes, sejam pers-
objeto de estudo sistemático em meados do pectivas ou deslocamentos. O xamã se aproxi-
século XVII, quando o confronto de europeus ma dos deuses para aprender os caminhos que
com o que eles percebiam como “povos sem deverá seguir e as orientações que deverá trans-
escrita” gerou formas de pensar essa diferença mitir aos companheiros. Seja no sonho ou na
como deficiência, estabelecendo-se uma espé- reza, sua capacidade de aprender e ensinar
cie de linha imaginária, evolutiva e progressiva dependem de um trabalho de deslocamento e
na qual situavam diversas sociedades segundo tradução, de um caminhar flutuante e fluente
a utilização ou não da escrita alfabética. entre perspectivas e interlocutores diferentes.
Por outro lado, o contato de povos indí- Conceber os processos de conhecimento
genas no Brasil com a escrita nos leva a percorrer como relação não deixa de suscitar os perigos
outros percursos de reflexão. A fala de Verá que caminhar entre os meandros da alteridade
Mirim na abertura deste artigo desloca a relação evoca. Esse problema é abordado pelos Guarani
entre escrita e memória, sugerindo que, em vez quando falam não apenas dos perigos enfrenta-
de preservar a memória, a escrita se perde, en- dos no acesso ao conhecimento, mas também do
quanto as palavras suspiradas no interior de cada perigo de se expor como portador desse conhe-
um e distribuídas coletivamente se mantêm nos cimento, pois este se desloca entre possibilida-
caminhos de circular conhecimentos. des ou estados provisórios que não devem ser
Para retomar sua fala, é importante lem- polarizados ou pensados separadamente.
brar a importância que a palavra-falada-cantada
tem para os Guarani, a começar pela concep- Quando os juruá vêm aqui perguntar da
ção de que o termo nhë’é se refere simultane- nossa religião, não podemos dizer muito
amente à palavra e à alma. Assim, a palavra porque tem uma parte que é segredo e se
assume um papel privilegiado no universo de falarmos disso, o próprio Nhanderu castiga.
relações, colocando-se como elemento que Até um pajé não pode ficar falando que ele
serve para unir ou separar, igualar ou distinguir é pajé que é forte e tudo mais. Quando você
pessoas e perspectivas. tem sabedoria, você tem que pegar seu
Por outro lado, essa associação entre petÿguá e fumar, fazer sua reza, ter muito
palavra e alma traz consigo a idéia de que, nas amor por todo mundo, mas não pode ficar
trocas entre interlocutores, as palavras-almas contando o que sabe e o que faz, até mes-
que passam entre narrador e ouvinte não se mo para os parentes. Eu estou fazendo um
limitam a sons depositários de sentidos. Mais treinamento com os mais velhos, mas é mui-
do que uma situação de expressão verbal, por to difícil para ser pajé. Não é todo mundo
meio da narração das suas próprias experiênci- que consegue porque tem muita provação,

300 Adriana TESTA. Entre o canto e a caneta: oralidade, escrita e conhecimento...


até da própria comunidade tem provação, Um passo nesse sentido seria prestar
dizendo que aquele não é pajé, que não mais atenção não apenas ao que os índios di-
tem força, que é mentira. Alguém também zem sobre suas tradições orais, mas também às
pode fazer maldição contra você, então é suas reflexões sobre a escrita, de modo a não
muito difícil mesmo. Então, você tem que ter reproduzir a dicotomia “povos com escrita/
muito cuidado. Tem que pegar seu petÿguá e povos sem escrita” sob o disfarce de “antropó-
fazer sua reza para ter força, saúde e bastante logos, pedagogos ou lingüistas que falam da
vida. É por isso que estou vivo até hoje, por- escrita/índios que apresentam seus conhecimen-
que faço minha reza e até meus parentes tos orais para serem registrados em escrita”.
que estão longe também fazem sua reza, Considerando isso, quando iniciei o tra-
pedindo proteção para nós todos. (Içário, balho de campo na aldeia de Parati Mirim, um
Aldeia do Tapixi, 2006) dos professores guarani, ao tomar meu proje-
to de pesquisa em suas mãos, confrontou-me
A exposição até aqui de algumas conside- com o seguinte problema:
rações sobre o conhecimento nos permite explo-
rar outra questão: nesse universo em que saber é Tem muita coisa escrita aqui, mas quem é que
necessariamente relação e não apenas expressão, entende tudo isso? A gente precisa escrever
qual o lugar das palavras escritas? Entretanto, menos e entender mais. Nós já estamos fa-
antes de caminharmos por esse dilema, caberia zendo a nossa parte, fazendo um esforço
retomar alguns dos pressupostos que colocamos enorme para escrever projetos e entender to-
em suspensão no início deste texto. dos esses documentos escritos. Quando é que
Grande parte dos estudos que se dedicam vocês vão fazer sua parte: aprender nossa lín-
à discussão da oralidade e da escrita toma a gua e aquilo que é falado e não apenas aqui-
escrita como central, demonstrando timidez na lo que vocês lêem? Quando é que vocês
compreensão dos processos de transmissão oral juruá vão preparar seus ouvidos e corações
(Goody, 1968; 1993; 1995; Vernant, 2002; para entender as palavras dos mais velhos?
Detienne, 1998). Embora tratem da escrita em (Verá Nhamandu Mirim, Parati Mirim, 2004)
contextos diferentes, a escrita é predominante-
mente percebida por esses autores como meio de Na medida em que seu contato com os
formulação do pensamento abstrato, discursivo cursos de magistério e os conflitos na aldeia
e crítico e de atribuir uma forma preservada, fixa sobre o papel da escola intensificavam, Verá
ou congelada a idéias e conhecimentos. Consi- Nhamandu Mirim confrontava todos com a
derando que tais estudos atribuem pesos desi- ambivalência que ele detectava nas relações
guais à apreciação da oralidade e da escrita e entre oralidade, escrita, xamanismo, escola,
que partem de lugares de enunciação embebidos política indigenista e política guarani. Ou me-
pelas águas mornas da escrita alfabética, sua lhor, ele se posicionava diante de seus interlo-
perspectiva da oralidade e da escrita não pode cutores guarani ou não-indígenas partindo de
ser tomada como neutra ou universal. Deve-se, lugares de enunciação diferentes e marcados
portanto, reconhecer esses lugares de enun- por ambigüidade, seja como professor, secretá-
ciação (Bhabha, 1994) e a necessidade de co- rio da Associação da sua aldeia ou participan-
nhecer e reconhecer outras perspectivas ou, te dos saberes e fazeres xamanísticos.
como Chakrabarty ( apud Menezes de Souza, Nesse sentido, ao se deparar com a re-
2006) sugere, provincializar as concepções oci- clamação das outras lideranças de que uma
dentais se quisermos ter acesso a outras formas escola boa é igual à escola dos não-indígenas,
de se pensar os processos de produção e con- inclusive com professores não indígenas, pois
sumo de conhecimentos. muitos esperavam que a escola fosse um espa-

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ço para aprender os conhecimentos dos não- vê” pode não ser igual ao conhecimento-visão de
indígenas e não um espaço para “aprender a outra pessoa, porque ambos vêem-conhecem de
ser Guarani”, Verá Nhamandu Mirim recolocou lugares e perspectivas diferentes.
o problema, associando a educação ao conhe-
cimento xamanístico: “Se esses funcionários da Eu acho que deve ser difícil para o juruá
Secretaria de Educação ou da Funai têm tanto entender isso... eu não sei se um dia ele vai
conhecimento assim, por que vocês não pedem chegar a entender isso. É uma coisa que até
para eles virem na opy [casa de rezas] fazerem para nós Guarani é um mistério que a gente
reza quando vocês estão doentes?”. não revela, a gente não vê. Só a pessoa que
Essa questão inquietante traz à tona tem a capacidade consegue ver e dizer isso.
dois pontos fundamentais: os conflitos entre Eu mesmo faço parte da comunidade e te-
lideranças e a participação (freqüentemente nho minha reza que eu faço na opy, mas eu
estratégica) de funcionários indigenistas nessas não sou curador, então, eu não posso jamais
situações e, por outro lado, a concepção de chegar para alguém e dizer que sou. (Verá
que o conhecimento não se dissocia de uma Nhamandu Mirim, Aldeia Parati Mirim, 2005)
teoria guarani de entendimento, isto é, de que
o conhecimento e sua eficácia se produzem nas Nesse contexto em que o conhecimento se
relações entre parentes, deuses e outras subje- constrói como perspectiva e relação, a palavra
tividades. Assim sendo, os funcionários não escrita traz certo paradoxo, pois a multiplicação
indígenas teriam acesso a apenas uma parcela de textos em língua guarani ou português, esti-
dessas relações e saberes, já que se excluem das mulada pelas políticas oficiais de educação esco-
redes de parentesco e da religiosidade guarani. lar indígena nem sempre encontra ressonância
Portanto, o que parece estar em jogo não nos discursos guarani. Poderíamos até dizer que
é apenas a exposição de diferentes visões de para muitos Guarani a escrita não é uma forma de
mundo, mas o entendimento do que é o conhe- registrar ou “representar” suas palavras (almas)
cimento propriamente dito e os caminhos para a faladas e que as formas guarani de conceber o
aquisição deste. Quando Verá Nhamandu Mirim conhecimento colocam certo pressuposto de
pede para as lideranças pensarem se chamariam universalidade do uso e da significação da escri-
os funcionários da Secretaria de Educação ou da ta em cheque. Para ilustrar esse ponto, voltemos
Funai para cuidar dos doentes na casa de rezas, às palavras de Verá Nhamandu Mirim:
ele não está preocupado apenas em delimitar o
campo de atuação deles, mas coloca em xeque a Um dos professores da aldeia falou para os
confiança que as lideranças depositam nos co- evangélicos que não precisava de uma Bí-
nhecimentos especializados desses agentes, rea- blia porque seu petÿguá era seu livro, é
firmando que o conhecimento guarani está asso- dele que vêm as palavras de Nhanderu; é
ciado ao xamanismo e que a capacidade através dele que a pessoa conversa com
xamânica se revela por meio de uma “visão” que Nhanderu e recebe seus conhecimentos.
possibilita o acesso a seres invisíveis e a capaci- Para nós é assim: quando você pega o
dade de se comunicá-los, manipulá-los ou afastá- petÿguá, você está parando naquele mo-
los para orientar, proteger e curar as pessoas. mento para você pensar, você está trazendo
Como ele enfatiza, esse não é um conhe- algo diferente para dentro de você. É bem
cimento acessível aos não-indígenas nem a todos diferente de ficar com um livro na mão es-
os Guarani. O que nos leva a perceber que o tudando porque com o petÿguá você tem a
conhecimento não é igual para todos ou, em liberdade de falar o que você sente, naque-
outras palavras, se conhecer é ver, como Menezes la hora você tem liberdade!
de Souza (2006) sugere, o que uma pessoa “sabe- Se você tiver fé mesmo e acreditar em

302 Adriana TESTA. Entre o canto e a caneta: oralidade, escrita e conhecimento...


Nhanderu, a casa de reza está lá, a hora que e essas coisas para a sala de aula. Então, a
você quiser, você pode ir lá. É assim, nin- gente fica sempre nesse conflito. (Poty Poran,
guém vai impor regras do que você tem que Aldeia Tekoá Ytu, 2004 )
falar, você vai falar tudo que tiver que falar...
para Nhanderu. Então, o petÿguá é como se Está claro para essa professora que suas
fosse um livro do jeito guarani, só que é dife- opiniões se formaram num conjunto de experiên-
rente de um livro, é claro. Não tem nenhum cias que ela compartilha com outros professores
mistério. Eu fiz essa comparação porque com guarani que, como ela, são jovens lideranças
o livro, você tem que aprender o que está no escolarizadas que aderem, em grande medida, à
livro e não o que você sente e quer falar, en- concepção, freqüentemente defendida pelos
tão na minha religião, eu não quero um livro, movimentos indígenas, de uma educação escolar
eu quero conversar com Nhanderu, não com indígena específica e diferenciada, na qual a es-
um livro. (Verá Nhamandu Mirim, aldeia de cola é um espaço permeado pelos conhecimen-
Parati Mirim, 2005) tos e meios de aprendizagem guarani:

Se o livro é percebido como limitado no Se você pensar bem, a maioria dos professo-
registro e na transmissão de saberes, deparamo-nos res, pelos menos aqueles com quem tenho
com outro desencontro entre os pressupostos que contato, inclusive de outras aldeias, pensa
nutrem as políticas oficiais de educação escolar como eu. Eles querem trazer a tradição, a
indígena e as formas guarani de pensar a relação cultura, a visão de mundo guarani para dentro
entre conhecimento e a língua materna. Em outros da escola. A gente quer trabalhar a língua
termos, a idéia de que o registro escrito e a guarani, a gente quer trabalhar a matemática
gramatização de uma língua serviriam para guarani, a gente quer trabalhar com as brin-
“preservá-la” é incomensurável com algumas con- ca-deiras guarani, a gente quer reforçar a cul-
cepções guarani, o que transparece no desejo de tura. (Poty Poran, Aldeia Tekoá Ytu, 2004)
muitos de que sua língua não seja ensinada na
escola ou nos livros. No entanto, essa questão não É nesse sentido que ela pensa a alfabeti-
está fechada, pois existe muita disputa em torno do zação em língua indígena como forma de valo-
papel da escola nas aldeias guarani. rização da língua materna, pois a influência da
Sugiro que uma possibilidade para explo- escrita é tão significativa, a seu ver, que a língua
rar os diferentes aspectos dessa disputa seria em que se aprende a escrever pode ganhar uma
caminhar entre as palavras de alguns protago- importância considerável na vida das pessoas.
nistas das escolas guarani, reconhecendo que,
mesmo diante da complexidade que suas opi- [...] eu acho que se a criança aprender a es-
niões colocam, elas certamente não esgotam crever primeiro em guarani, ela vai ter mais
todas as perspectivas e lugares de enunciação orgulho da língua dela e vai ter menos peri-
envolvidos nesse conflito. go de perder essa língua, porque a gente
sabe que quando o pessoal é alfabetizado
Por exemplo, teve uma reunião em que uma numa língua estrangeira, aquela língua es-
das lideranças queria que as crianças tivessem trangeira acaba se tornando mais importante
aula só em português, mas ela não é a única do que a língua materna, já que é a língua
que pensa assim. Muitas lideranças querem escrita. (Poty Poran, Aldeia Tekoá Ytu, 2004)
que as crianças tenham só português, ma-
temática, história e outras matérias iguais à Por outro lado, o esforço para compre-
escola juruá. Enquanto eu, como educadora, ender a opinião das outras lideranças de que
quero trazer a tradição, quero trazer a cultura “escola boa é escola igual à escola dos juruá”,

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fez com que essa professora se deparasse com o num espaço movediço de conflito e disputa.
a concepção de que a língua está diretamente A história de vida do professor guarani
associada à alma e ser Guarani é ter alma Arlindo Tupã Veríssimo, principal colaborador
guarani, o que significa falar guarani. do Missionário Robert Dooley (1982), expressa
a força desses processos de elaboração de sig-
Numa reunião de pais, eu tive um insight : nificados e experiência. Ele apresenta seu tra-
uma das lideranças falou assim: “As crian- balho no SIL como um projeto de realização
ças nunca vão perder a língua guarani por- pessoal e meio para garantir os objetivos do seu
que elas são Guarani” [...] eu fui para opy e grupo de parentes próximos, e não como um
fiquei pensando muito, me esforçando para processo pelo qual ele foi treinado para dar
entender o pensamento das outras pessoas. continuidade às atividades do SIL.
Aí, eu lembrei que na opy, o xamoi (xamã)
sempre fala que në’é é nossa fala, mas tam- Quando aprendi a escrever meu nome e fui
bém é nossa alma. [...] Então, se a alma é aprendendo as palavras, eu fiquei maravi-
guarani, sua fala também é guarani, e quan- lhado e queria estudar e aprender mais. [...]
do a pessoa fala que quem é Guarani nunca Eu queria mesmo trabalhar em pelo menos
vai perder a língua guarani é porque a pes- quatro ou cinco aldeias diferentes aqui no
soa não vai perder sua alma. (Poty Poran, Paraná. Meu interesse era de pesquisar a
Aldeia Tekoá Ytu, 2004) língua mesmo, então o missionário gostou,
concordou comigo e disse que era disso
Por outro lado, a escrita pensada como que eles precisavam. [...] Como eu falei, eu
meio de preservação da língua é outro proble- ia buscando pesquisa, buscando a língua
ma que permeia os discursos dos Guarani e de em toda parte dos Guarani, então assim a
seus interlocutores não indígenas. Tomo como gente conseguiu. [...] E foi nesse trabalho
exemplo dessa questão alguns trechos da his- que eu pude realizar meu sonho de conti-
tória de vida de Arlindo Tupã Veríssimo, profes- nuar estudando, fazendo essa pesquisa
sor guarani do Rio das Cobras, no Paraná, e com a língua e a escrita guarani. (Arlindo
colaborador do programa de educação escolar Tupã Veríssimo, Aldeia Tapixi, 2006)
do Summer Institute of Linguistics (SIL), insti-
tuição missionária que atua há mais de vinte Na sua experiência de trabalhar na tradu-
anos nesse estado. Essa instituição mantém ção da Bíblia e de outros textos para o guarani
uma proposta de evangelização em língua na- ou na elaboração de uma gramática guarani, ele
tiva que inclui a tradução e a impressão de não identifica uma contribuição que se restrin-
textos bíblicos. Daí a ênfase que se dá a pes- ge às iniciativas do empreendimento missioná-
quisas lingüísticas e ao treinamento de nativos rio, mas percebe essa trajetória como a constru-
que possam traduzir, ler, escrever e dar conti- ção do seu papel de professor, algo que lhe
nuidade ao trabalho missionário, tudo susten- permite, inclusive, ocupar um lugar de destaque
tado por um discurso que relaciona a escrita à como liderança, não apenas em sua aldeia, mas
sobrevivência de uma língua e de uma cultura na prefeitura local e nos seus contatos com
(Hvalkof; Aaby, 1981). professores guarani de outras regiões.
No entanto, por outro lado, esse projeto
missionário se coloca num espaço de confronto de Eu já tinha esse interesse dentro de mim, já
diferentes lugares de enunciação (Bhabha, 1994), vinha 25 anos com esse sonho de trabalhar
pois nos seus processos de construção de signifi- em cima da escritura, do escrito, e fazer
cados para a escrita e a escola, os Guarani deslo- um pequeno livro e cartilha para meu povo
cam o encaminhamento desse projeto, colocando- aprender. [...] Então, dá para ver que esse

304 Adriana TESTA. Entre o canto e a caneta: oralidade, escrita e conhecimento...


trabalho não começou há pouco tempo; ele ca. Ao descrever a expansão dos idiomas espa-
já era pensado. Era meu interesse e o inte- nhol e português pelas colônias, ele recorre a
resse de toda a comunidade também. E registros do século XIV para demonstrar o quan-
agora o município já está me reconhecen- to estava claro para alguns compiladores de
do e me nomearam para representante da gramáticas que a língua constituía arma eficaz
educação indígena guarani aqui de Rio das no processo de conquista. O mesmo autor nos
Cobras. Isso facilita também para gente criar lembra da República platônica, onde uma versão
um pequeno livro ou uma cartilha que pode do mito da nomeação originária se expressa por
abranger todo o estado do Paraná. Pelo meio do legislador que escolhe e impõe ao
menos, foi isso o que eu pensei. Como eu mundo de objetos seus nomes apropriados.
tinha muito apoio do missionário, eu conse- Para Bakhtin (1979), a fixação gramati-
gui tudo isso e agora deu certo. (Arlindo cal de uma língua é ocupação dos “herdeiros e
Tupã Veríssimo, Aldeia Tapixi, 2006) epígonos dominados pela palavra alheia que
parou de ressoar”. Por isso, segundo o mesmo
A experiência de participar da elaboração autor, o processo de sistematização gramatical
de uma gramática em língua guarani tem um geralmente se restringe
peso muito grande sobre a forma como esse
professor pensa sua língua, algo que não coin- [...] ao campo das línguas mortas e, ainda,
cide necessariamente com as outras perspecti- somente nos casos em que essas línguas
vas apresentadas até aqui. perderam, até certo ponto, sua influência e
seu caráter autoritário sagrado. A reflexão
Eu queria ficar um pouco de tempo em lingüística de caráter formal-sistemático foi
cada lugar para eu poder aprender as dife- inevitavelmente coagida a adotar em rela-
renças de dialeto de cada lugar e entender ção às línguas vivas uma posição conserva-
melhor a língua e a cultura. Foi assim que dora e acadêmica, isto é, a tratar a língua
a gente criou até um dicionário, junto com viva como se fosse algo acabado, o que
a lingüística. A gente precisa sempre estu- implica uma atitude hostil em relação a to-
dar junto com a lingüística para pegar as das as inovações lingüísticas. (p. 89)
formas certas, para escrever as normas cer-
tas também, porque, imagine só, se eu es- Conclusão
crevesse do jeito que eu estou falando, as
normas não seriam corretas, não é verdade? Neste texto, procurei discutir a educação
Tudo isso a gente tem que estudar e en- escolar indígena num contexto mais amplo e
tender primeiro para conseguir escrever a específico de produção, aquisição e transmissão
forma certa. E foi nesse trabalho que eu de conhecimento, reconhecendo que uma com-
pude realizar meu sonho de continuar estu- preensão densa desse contexto se faz fundamen-
dando, fazendo essa pesquisa com a língua tal quando se pretende tomar a escolarização
e a escrita guarani. (Arlindo Tupã Veríssimo, indígena como objeto de reflexão e trabalho. Em
Aldeia Tapixi, 2006) se tratando das relações entre oralidade e escrita,
além de um certo conhecimento acumulado
A preocupação de Arlindo Tupã Veríssimo acerca dos impactos sociais e históricos da es-
com a normatização da sua língua nos leva a crita, o contato crescente de grupos indígenas
lembrar que essa prática não é sem conseqüên- com a escrita, principalmente nos programas de
cias. Gnerre (1987) aponta para uma relação educação escolar, traz novos desafios e inquie-
direta entre a imposição de uma forma lingüís- tações que são férteis não apenas para se pen-
tica e práticas de dominação política e simbóli- sar a oralidade e a escrita na educação indíge-

Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 34, n.2, p. 291-307, maio/ago. 2008 305
na, como também para repensar os rumos que to indiquem a necessidade de pensar os proces-
trilhamos nas escolas não indígenas. sos de aquisição, produção e transmissão de
As considerações apresentadas ao longo conhecimentos a partir dos lugares que os
do artigo nos permitem observar que a educa- interlocutores indígenas ocupam, esses lugares
ção escolar indígena não é um objeto, mas sim não são fixos ou únicos. Assim sendo, não
um processo em elaboração que envolve agen- podemos tratar a discussão sobre educação es-
tes e narradores cujas perspectivas não podem colar indígena como se fosse uma mesa de de-
ser compreendidas se nos limitarmos a catego- bates na qual de cada lado haveria um “repre-
rias estanques ou tomarmos certas categorias sentante autorizado” de cada “unidade”, afinal
como se fossem universais. É possível perceber de contas e desde o princípio, o processo é
que, embora muitas das falas guarani neste tex- mais complexo e híbrido.

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Palavra, memória: educação e escola nas lembranças dos Guarani Mbya. 2007. Dissertação (Mestrado)-
Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

VERNANT, J. P. Entre mito e política


política. São Paulo: EDUSP, 2002.

Recebido em 19.04.06
Aprovado em 21.06.07

Adriana Queiroz Testa, pedagoga e mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo,
trabalha no Centro de Trabalho Indigenista e é colaboradora do Núcleo de História Indígena e do Indigenismo da USP.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 34, n.2, p. 291-307, maio/ago. 2008 307

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