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4º Nas Nuvens...

Congresso de Música – de 1 a 8 de dezembro de 2018 – ANAIS Artigo


A canção brasileira de concerto: um exercício analítico-interpretativo
de “Sodade”

Sara Rosa Ramos Fraga1
Marcus Vinícius Medeiros Pereira2

Categoria: Iniciação Científica

Resumo: Neste artigo apresenta-se um primeiro exercício de análise com vistas à
fundamentação da performance de uma canção brasileira de concerto: “Sodade” de
Aloysio de Alencar Pinto. Este exercício está inscrito em um projeto de pesquisa
mais amplo que estuda a obra vocal deste compositor cearense, visando sua ampla
divulgação. O projeto encontra-se na interface de três grupos de pesquisa que se
dedicam à canção brasileira de concerto: Resgate da Canção Brasileira (UFMG),
Acervo de Partituras Hermelindo Castelo Branco (UFPel/UFRJ) e Africanias (UFRJ).
A metodologia de análise segue a proposta do Grupo Resgate da Canção Brasileira,
visando a inserção dos dados no seu Guia Virtual: fichas técnicas são produzidas
com dados gerais da canção; bem como comentários analítico-interpretativos
fundamentados em algumas estratégias da análise musical propostas por Jan LaRue,
da análise textual a partir das proposições de Norma Goldstein, e da análise texto
música, que busca combinar as anteriores.

Palavras-chave: Canção brasileira de concerto. Aloysio de Alencar Pinto. Análise.
Performance.

The Brazilian concert song: an analytic-interpretative exercise of “Sodade”



Abstract: This article presents a first exercise of analysis of a Brazilian concert song:
“Sodade”, composed by Aloysio de Alencar Pinto. This exercise is part of a larger
research project that studies the vocal work of this composer, aiming at its wide
divulgation. The project is at the interface of three research groups dedicated to the
Brazilian concert song: Brazilian Song Rescue (UFMG), Hermelindo Castelo Branco
Scores Collection (UFPel / UFRJ) and Africanias (UFRJ). The methodology of analysis
follows the proposal of the Research Group Brazilian Song Rescue, aiming the
insertion of the data in its Virtual Guide: technical files are produced with general
data of the song; as well as analytic-interpretative comments based on some
strategies of the musical analysis proposed by Jan LaRue, of the textual analysis from


1 Graduanda em Composição Musical, Universidade Federal de Juiz de Fora, Instituto de Artes e Design,

saraffraga@hotmail.com.
2 Doutor em Educação, Universidade Federal de Juiz de Fora, Faculdade de Educação,

marcus.medeiros@ufjf.edu.br.
Trabalho realizado com bolsa PIBIC – CNPq.

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the propositions of Norma Goldstein, and of the analysis music text relations, that
looks for to combine the previous ones.

Keywords: Brazilian concert song. Aloysio de Alencar Pinto. Analysis. Performance.


Introdução
“Do que estamos carecendo imediatamente é dum harmonisador simples mas crítico
também, capaz de se cingir á manifestação popular e representa-la com integridade e
eficiencia.”
Mário de Andrade

Desde 2003, com o lançamento do Guia Virtual Canções Brasileiras
(http://www.grude.ufmg.br/cancaobrasileira), o Grupo de Pesquisa Resgate da Canção
Brasileira (UFMG) vem dedicando-se ao estudo e à divulgação da canção de concerto
brasileira para canto e piano.
Desde então, vários outros pesquisadores vêm se dedicando à temática,
congregando esforços em prol de investigações que se debrucem sobre acervos,
intensificando o estudo e a divulgação da canção de concerto nacional. É o caso do Grupo
de Pesquisas Acervo de Partituras Hermelindo Castelo Branco, liderado pelo Prof.
Lenine Santos (UFRJ), que reuniu pesquisadores de diversas universidades brasileiras
para o estudo do acervo que dá nome ao grupo. Tal acervo foi disponibilizado pelo
Instituto Piano Brasileiro, que digitalizou cerca de seis mil páginas de manuscritos e
partituras impressas, incluindo centenas de compositores brasileiros, muitos ainda não
biografados, com muitas canções inéditas e catálogos completos de compositores já
publicados e gravados. O acervo é fruto do trabalho de toda vida do cantor, professor,
pesquisador e pianista Hermelindo Castello Branco (1922-1996).
Também o Grupo Africanias UFRJ, liderado pela Profa. Andrea Adour, tem
buscado compilar as obras de música vocal brasileira (tanto na música de concerto,
popular e de tradição oral) que possuam vocabulário africano ou africanias, com vistas à
construção de um vocabulário de léxicos africanos e africanias a partir destas obras, bem
como à construção de saberes sobre a pronúncia do português cantado a partir da
presença africana no português brasileiro. De acordo com Castro (2014, p. 1), o termo

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africanias designa o legado linguístico-cultural negroafricano nas Américas e no Caribe
que se converteu em matrizes partícipes da construção de um novo sistema cultural e
linguístico que, no Brasil, se identifica como brasileiro.
Este texto apresenta um primeiro exercício analítico-interpretativo da canção
“Sodade”, do compositor cearense Aloysio de Alencar Pinto. Este exercício está inscrito
em um projeto de pesquisa mais amplo que estuda a obra vocal deste compositor,
visando sua ampla divulgação. O projeto encontra-se na interface dos três grupos de
pesquisa acima mencionados que se dedicam à canção brasileira de concerto.
O compositor foi escolhido dentre aqueles cujas obras figuravam no Acervo de
Partituras Hermelindo Castelo Branco. Após a definição do compositor, foi possível
acessar toda a sua obra vocal (para além daquelas presentes no APHECAB, geralmente
cópias feitas pelo próprio Hermelindo Castelo Branco) junto ao Instituto Piano
Brasileiro, que também digitalizou o acervo completo de Aloysio de Alencar Pinto, doado
pelo seu filho Georges Mirault. A metodologia utilizada para a análise das canções é
aquela definida pelo Grupo Resgate da Canção Brasileira, visando a inserção de dados no
seu Guia Virtual. São elaboradas fichas técnicas das canções, identificando seus aspectos
gerais, e comentários analítico-interpretativos, escritos a partir das análises musical – a
partir de estratégias propostas por Jan LaRue (1992) em seu “Guidelines for style
analysis”; poética – seguindo as propostas de Norma Goldstein (2005) em seu “Versos,
Sons, Ritmos”; e da relação texto-música, que busca conectar as análises anteriores.
Além disto, buscou-se observar possíveis africanias na letra da canção, com o objetivo de
auxiliar na construção de um vocabulário que contribua para o entendimento de
determinadas expressões e palavras que, de outra forma, não seriam encontradas em
um dicionário comum.

1 Aloysio de Alencar Pinto
Aloysio de Alencar Pinto foi um compositor, pianista e folclorista nascido em
Fortaleza (CE) em 03 de fevereiro de 1911, e falecido no Rio de Janeiro (RJ), em 06 de
outubro de 2007. Em 1932, bacharelou-se em Direito pela Universidade do Ceará. Em
1936, concluiu o curso de piano do então Instituto Nacional de Música com Medalha de
Ouro.

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Em verbete no site do Instituto Piano Brasileiro3, Georges Mirault ressalta que o
compositor foi aluno de Godofredo Leão Veloso, Barrozo Netto e Nicolai Orloff, tendo
estudado no Conservatoire Américain no Palais de Fontainebleau, onde foi aluno de
Robert Casadesus, Marguerite Long e Nadia Boulanger, recebendo no fim do curso o
Grande Prêmio “Mention d’Honneur du Concours de Virtuosité”, láurea outorgada
alguns anos antes ao compositor norte-americano Aaron Copland. Além disso, como
pedagogo e professor de seu instrumento, teve oportunidade de orientar os estudos de
eminentes pianistas brasileiras, tais como Jacques Klein, Gerardo Parente, Maria da
Penha e Irany Leme.
No Curriculum Vitae presente entre as partituras do APHECAB, nota-se uma
forte atuação na área do folclore musical, tendo realizado um curso nesta área com
Renato de Almeida, ministrado cursos de História da Música Popular Brasileira no
Museu da Imagem e do Som (Rio de Janeiro – RJ), e atuado como Professor de Folclore
Musical no Instituto Nacional do Folclore, Fundação Nacional de Arte (FUNARTE).
Realizou pesquisas sobre a “Arte da Cantoria: Sertão do Ceará”, “Registro de Danças e
Folguedos (registro fono-mecânico, fotográfico e cinematográfico” no Litoral do Ceará, e
sobre a “Banda Cabaçal” do Nordeste. Participou dos Congressos Nacional do Folclore da
Bahia e de Alagoas, além de ter atuado como orientador musical dos conjuntos
folclóricos “Solano Trindade” (RJ), “Mercedes Batista”, “Ensemble Folclorique Brésilien”
e Festival “Theatre des Nations” em Paris – França. Foi, também, assessor e consultor do
Instituto Nacional do Folclore (FUNARTE), Comissão de Projetos Especiais (COMPROES
– FUNARTE), Conselho de Música Popular e Conselho de Música Erudita (Museu da
Imagem e do Som).
Ressalta-se sua ligação com a música popular e com o folclore, uma vez que
grande parte de sua obra vocal é constituída por harmonizações de melodias folclóricas,
bem como de melodias populares, afro-brasileiras e indígenas recolhidas por ele e por
outros pesquisadores. Destaca-se, de sua produção, o Ciclo de Canções Afro-brasileiras,
Cantos Indígenas e Acalantos Brasileiros.


3 Disponível em http://institutopianobrasileiro.com.br/enciclopledia/Aloysio-de-Alencar-Pinto. Acesso
em 03 de outubro de 2018.

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Como indica a epígrafe que abre este artigo, a harmonização de cantos
populares foi uma estratégia adotada pelos modernistas que se lançaram à procura de
uma identidade nacional. Como mostra Contier (1994, p. 33), Mário de Andrade
defendia a pesquisa do folclore como a principal fonte temática e técnica do compositor
erudito preocupado com a criação de uma música nacionalista e brasileira, durante as
décadas de 1920 e 30.
O enaltecimento da cultura popular pelos modernistas, como ponto nodal do
programa nacionalista no campo da Arte Culta, apresenta um matiz de natureza
neorromântica:
A partir dos fins do século XVIII e durante o século XIX, a cultura.
popular tomou-se uma temática significativa para os intelectuais
alemães, ingleses, finlandeses, húngaros, sérvios, russos, entre outros.
De 1774 a 1798, J.G. Herder compilou uma série de canções populares
entoadas pelos camponeses, em sua obra Volkslieder. Os italianos
identificavam essas canções através da expressão canti popolari; os
russos, de narodye pesni; e Mário de Andrade, Renato Almeida, Luciano
Gallet, Lorenzo Fernandez, de "canções populares" (CONTIER, 1994, p.
34, grifos no original).

No Brasil, na área da pesquisa folclórica, os pressupostos metodológicos e
teóricos da produção musicológica baseavam-se nos trabalhos dos alemães Curt Sachs e
Hornsbolstel, e, em especial, nas coletas realizadas por Mário de Andrade, Renato
Almeida e Oneyda Alvarenga (CONTIER, 1994, p. 34). Estes intelectuais brasileiros
estudaram o bumba-meu-boi, cheganças de marujos, cantigas infantis, entre várias
outras manifestações populares do país.
Contier (1994, p. 34-35, grifos no original) esclarece que:

Mário de Andrade, na qualidade de diretor do Departamento Municipal
de Cultura de São Paulo, iniciou a pesquisa "científica" do folclore no
Brasil, conforme declarações de Renato Almeida'. Patrocinou a ida de
uma missão de pesquisadores ao Nordeste e Norte do País em 1938,
encarregada de registar em discos (12 rotações) o folclore musical:
foram coletados 689 objetos; tiradas 751 fotografias e 1.295
fonogramas, além de alguns filmes. Esse material foi gravado em 115
discos, acompanhados de livros sobre as temáticas sonoras coletadas -
Xangô, Tambor-de-Mina e Tambor-de-Crioulo, Catimbó, Babassuê,
Chegança de Marujos e Bumba-meu-boi. Foram editados dois volumes
especiais da série Arquivo Folclórico: 1° ( ... ) Melodias Registradas por

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Meios Não- Mecânicos (570 melodias); 2°(...) Catálogo Ilustrado do
Museu folclórico (275 fotos, notas explicativas, índices do material).

Mário de Andrade, em seu “Ensaio sobre a Música Brasileira”, afirma que “uma
arte nacional já está feita no inconsciente do povo. O artista tem só que dar pros
elementos já existentes uma transposição erudita que faça da música popular, música
artítica, isto é: imediatamente desinteressada” (ANDRADE, 1972, p. 16). Portanto, as
harmonizações constituíam-se, muitas vezes, neste exercício transpositor. Não se irá
discutir aqui o mérito do programa modernista, mas, sim, destacar que Aloysio de
Alencar Pinto esteve imerso neste cenário cultural, o que pode ter influenciado
sobremaneira suas atividades como compositor – além do fato de ter sido aluno de
Renato de Almeida e de ter desenvolvido uma série de atividades profissionais ligadas
ao folclore brasileiro.
É interessante ressaltar o fato de que a melodia de “Sodade” está presente no
“Ensaio sobre a Música Brasileira” de Mário de Andrade, na seção “Canto Infantil”:


Ex. 1. Melodia da cantiga de roda “Sodade” extraída do livro “Ensaio sobre a Música Brasileira”
(ANDRADE, 1972, p. 84)

A harmonização de Aloysio de Alencar Pinto altera o andamento indicado por
Mário de Andrade: em lugar da semínima = 84 bpm, o compositor indica um Andantino,
com semínima = 66 bpm. Esta é a única alteração musical: a tonalidade é a mesma, e não

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há nenhuma alteração rítmica. Tal fato nos permite supor que o livro de Andrade pode
ter sido a fonte de recolha da melodia harmonizada por Aloysio.

2 A canção “Sodade”, harmonização de Aloysio de Alencar Pinto
Para a análise da canção “Sodade”, tomou-se como fonte o manuscrito autógrafo
encontrado no Acervo Aloysio de Alencar Pinto digitalizado pelo Instituto Piano
Brasileiro. O manuscrito consta de apenas uma página, sem indicações de data e local de
composição. Em outros manuscritos de harmonizações de Aloysio, o compositor indica
quem recolheu o tema popular. Neste, contudo, há apenas a indicação de tratar-se de
uma “cantiga de roda”. Não foram encontradas cópias da canção no Acervo de Partituras
Hermelindo Castelo Branco.

2.1 Análise Musical
A análise musical da canção fundamenta-se na observação dos parâmetros
definidos por Jan LaRue, que subdividem o fenômeno musical em partes manejáveis. Ele
recomenda, com o propósito de se obter uma análise compreensível, uma divisão em
cinco parâmetros: Som (Sound), Harmonia (Harmony), Melodia (Melody), Ritmo
(Rhythm) e Crescimento (Growth), divisão esta fundamentada em anos de experiências
práticas realizadas por meio da pesquisa e da docência.
Som (que LaRue subdivide em Timbre, Dinâmica e Textura), Harmonia, Melodia
e Ritmo são chamados elementos contributivos, enquanto que o “Crescimento” é o
elemento combinador. No parâmetro crescimento, procura-se entender a canção como
uma interação dos elementos musicais analisados separadamente. A maneira como
esses elementos se combinam define as fontes de contorno e movimento da obra,
evidenciando suas articulações.
No parâmetro Som, o harmonizador utilizou, em “Sodade”, os timbres mais
usuais do gênero canção: voz e piano, que permanecem, na maior parte do tempo, nas
regiões médias, sem grandes contrastes de alturas. O título Sodade e o fato de esta ser
uma cantiga de roda sugerem um timbre mais claro e mais suave. No piano, a escrita
parece imitar um violão, com seus acordes arpejados e com o caminho dos baixos
cantados.

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A canção não tem indicação de dinâmica. Contudo, pode-se realizar um
crescendo natural nas progressões ascendentes, bem como um diminuendo nos graus
conjuntos descendentes.
A textura da canção é do tipo sincrônica: a linha do canto sincroniza com a do
piano. Na canção o piano tem a principal função de um acompanhador, que dobra a
melodia vocal, contextualizando-a com uma harmonia.
No parâmetro Melodia, sugerido por Jan LaRue, a peça não apresenta grandes
variações, a tessitura é mediana tanto para a voz, quanto para o piano. Ambos se
estruturam por progressões ascendentes e graus conjuntos descendentes. Apenas as
duas últimas progressões são descendentes.
A melodia principal é feita pelo canto e dobrada pelo piano, que,
esporadicamente, realiza melodias secundárias. O acompanhamento é constituído por
uma linha dos baixos e por acordes.
A canção inicia-se com uma apresentação destas melodias (principal e
secundárias) acompanhadas, onde, o primeiro compassos (com anacruse) traz a melodia
do último verso das estrofes da canção. Seguem-se dois compassos de apresentação do
acompanhamento (baixos e acordes) quando, depois, o canto se inicia.
A melodia principal caracteriza-se por uma progressão melódica ascendente
que, após atingir o auge, conclui-se numa melodia descendente. A extensão vocal é de
um Mi 3 a um Ré 4, ao passo que, no piano, o âmbito vai de um Fá 1 a um Lá 4.
No parâmetro Harmonia, percebe-se uma estrutura tonal, em Fá Maior. Sua
estrutura harmônica pode ser sintetizada em um grande I – iv – V – I, com utilização
frequente da dominante da dominante (v/V) com função de quarto grau menor.
No parâmetro Ritmo, observa-se uma mudança de compasso ternário simples,
na introdução da canção, para binário simples, um pouco antes da entrada da voz. O
motivo rítmico desta canção é representado por 6 semicolcheias, 1 colcheia pontuada e
1 semicolcheia, e duas colcheias finais (com algumas pequenas variações no final no
motivo, substituindo a colcheia pontuada e a semicolcheia por uma síncope):


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Ex. 2. Motivo rítmico da canção (c. 3 – 5)

A palavra Sodade é sempre anacrústica, constituindo um motivo formado por
uma semicolcheia e duas colcheias (à exceção do final, em que o motivo constitui-se por
uma semicolcheia e duas semínimas, o que confere um sentido mais conclusivo):


Ex. 3. Motivo rítmico da palavra “Sodade” (c. 3 – 5)
No parâmetro Crescimento, a combinação dos parâmetros anteriores nos
mostra uma grande seção A, que é repetida:
• Introdução - [Anacruse – 1a metade do c. 3] - Uma pequena introdução
onde é apresentado o material rítmico, melódico e do acompanhamento,
que irá seguir por uma base de iv – I por toda a obra.
• Progressão melódica ascendente:
o [2a metade do c. 3 - 1a metade do c. 7] - Início da melodia principal
realizada pelo canto e dobrada pela MD do piano. Termina o
segundo verso com uma modulante do v/V seguindo para o V7
que encaminha para o I. Tem uma estrutura rítmica e melódica
recorrente nas progressões ascendentes.
o [2a metade do c. 7 - 1a metade do c. 9] - A parte da melodia em que
a progressão ascendente atinge o seu auge por graus conjuntos e
decresce encaminhando à frase final. Estrutura rítmica
semelhante à das frases anteriores, com uma síncope ligando o
verso à interjeição “Sodade”.
o [2a metade do c. 9 – c. 11 (1a e 2a casa)] - Última vez que o iv
aparece para um grande encadeamento de dominante,
subdominante e tônica em progressões melódicas descendentes,
usando a mesma estrutura rítmica das partes anteriores. “Sodade”

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aparece com movimento melódico ascendente, diferentemente de
todas as outras vezes.

2.2 Análise Poética
No que tange à análise textual, pode-se dizer que os versos são heptassílabos –
portanto, uma redondilha maior (com sete sílabas poéticas), intercalados por versos
interjetivos monossílabos (com uma sílaba poética) ou trissílabos (com três sílabas
poéticas) – representados por “Sodade” ou “Ai, Sodade”.
Quanto às rimas, predominam as alternadas e imperfeitas toantes (ou
assoantes), em que apenas há repetição dos sons vocálicos: desfolhou / criô; comigo /
bunito; parede / verde.
No Nível Lexical, em que se estuda os vocábulos empregados no poema, nota-se
o uso da linguagem coloquial, sendo o substantivo abstrato “Sodade” o vocábulo mais
enfático, repetido várias vezes. Esta repetição, no texto, sugere um sentido geral de algo
que não vai mais voltar, como se “Sodade” fosse um suspirar de saudade de uma
experiência passada.
No Nível Sintático, referente às organização sintática das frases, orações e
períodos, observa-se que há no poema frases verbais, ou seja, que possuem um verbo em
sua construção. O poeta também usa o modo imperativo quando o eu-lírico se refere ao
seu interlocutor: “Vá pedi a quem me criô, Ai, Sodade!” e “Arme um laço na parede;
Sodade!”.
Tratando-se do Nível Semântico – isolado por Goldstein (2005) para fins
didáticos, em que se observam as figuras de linguagem presentes no poema – nota-se a
utilização frequente de metáforas: o cravo que caiu do céu, se relacionado a outra
cantiga de roda (O cravo brigou com a rosa), pode significar o ser amado que chegou de
repente, sem avisar, e que logo se foi (desfolhou, por ter caído de tão alto). “Inda onte
apanhei um / Num laço di fita verde” parece indicar um momento, no passado, em que o
eu-lírico conseguiu um amor, alimentando suas esperanças de se casar (esperança
representada pela fita verde do laço). Contudo, a repetição dos suspiros de saudade, e o
desfolhar do cravo, sugerem a nostalgia de um desejo não realizado.

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2.3 Relação texto-música
Após análises musical e literária, observa-se na canção Sodade alguns paralelos
entre texto e música: O acompanhamento do piano, além de imitar o violão em arpejos,
ambienta a letra e enfatiza a primeira voz dobrando-a com o cantor. O ato de pintar o
sentido do texto se dá pelas progressões que sempre voltam em graus conjuntos
descendentes fazendo alusão a um suspiro nostálgico, referente a algo que está no
passado.
A palavra Sodade é sempre precedida de uma colcheia ou colcheia pontuada e
atingida por semicolcheia, dando sensação de espera, reforçando a ideia do suspiro de
“saudade”.
Entre a 2a metade do c. 7 e a 1a metade do c. 9, onde o auge da música ocorre (o
clímax da progressão e da criação de tensão), a esperança ascende em graus conjuntos
nas letras “Quem quisé casá cumigo, Ai, Sodade!” e “Inda onte apanhei um, Ai, Sodade!”,
culminando no mais sentido suspiro de saudade.

Considerações Finais
As relações texto-música possibilitam que a interpretação seja bem
fundamentada, estimulando a investigação dos graus de impostação mais adequados,
possíveis dinâmicas, timbres e toques. A canção “Sodade” caracteriza-se por uma grande
progressão ascendente que constrói-se acumulando tensão: quase nunca chega num
ápice, sempre retornando a um estágio de reinício (motivo ascendente seguido por um
motivo descendente). Esse efeito encaminha a letra do poema dando a significação
retórica de se voltar sempre para o mesmo lugar. Um estado de espírito nostálgico é
essencial para entender a relação texto-música da obra, conduzindo a interpretação
construída pelo cantor e pelo pianista.
Entende-se que Sodade seja uma canção afetuosa, delicada, contendo doses de
saudosismo, cores de esperança e tons de apelo.
O que foi considerado “linguagem coloquial” apresenta traços de africania,
especialmente no nível fonético de estruturação da língua, como na apócope do “r” no
final dos verbos (quiser/quisé; casar/casá; e pedir/pedi) e na redução do ditongo a uma

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única vogal (Saudade/sodade). Já a queda da primeira sílaba de “ainda” – “inda” – revela
o nível morfofonológico de estruturação da língua.
Percebe-se que a metodologia organizada pelo Grupo Resgate da Canção
Brasileira contribui para um entendimento mais aprofundado da canção, contribuindo
para a construção de uma performance coerente e bem fundamentada.
Aliada à criação de um glossário, com explicações sobre as africanias, possibilita
que estrangeiros possam compreender melhor o que está sendo cantado, e, ainda, que
brasileiros conheçam um pouco mais das influências africanas na construção do
português brasileiro.
Por fim, todo este esforço contribui para a divulgação da canção de concerto
nacional, contextualizando cada obra em seu período histórico, ressaltando influências
sofridas pelos compositores, e dando visibilidade à produção vocal brasileira, bem como
a compositores muitas vezes negligenciados pelos intérpretes brasileiros.


Referências
ANDRADE, Mário. Ensaio sobre a Música Brasileira. São Paulo: Martins; Brasília:
Instituto Nacional do Livro, 1972.

CASTRO, Yeda Pessoa de. Marcas de Africania nas Américas: O exemplo do Brasil.
Africanias.com, n. 6, p. 1 – 14, 2014. Disponível em:
http://www.africaniasc.uneb.br/pdfs/n_6_2014/yeda_pessoa_de_castro_n_6.pdf. Acesso
em 07 de outubro de 2018.

CONTIER, Arnaldo Daraya. Mário de Andrade e a Música Brasileira. Revista Música, São
Paulo, v. 5, n. 1, p. 33 – 47, 1994.

GOLDSTEIN, Norma. Versos, Sons, Ritmos. São Paulo: Editora Ática, 13a Edição, 2005.

LARUE, Jan. Guidelines for style analysis. Michigan: Harmony Park Press, 2nd Edition,
1992.

PINTO, Aloysio de Alencar. Sodade. Manuscrito autógrafo.



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Anexo – Partitura manuscrita – “Sodade”

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