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O Luto da Criança Abrigada

Jackeline Martins Talon1

O tema adoção é permeado por muitas dúvidas e questionamentos, sejam essas no


âmbito jurídico ou nas questões psicológicas e ambientais. Os pais pretendentes a adotar
apresentam diversos questionamentos, estes que por sua vez geram ansiedades e angústias
durante o processo.

Ao entrar em um processo de adoção, é fundamental que se questionem e listem


quais são suas motivações, por qual motivo desejo adotar? O que despertou esse desejo
da maternidade/paternidade? É um desejo do casal? Tendo as respostas aos
questionamentos fica mais fácil na elaboração da idealização do filho ideal do filho real.

Um dos motivos que levam vários casais para o processo de adoção é a


infertilidade, a demora/ dificuldade em gerar um filho biológico, desta forma é de extrema
necessidade que esse casal vivencie seu luto, para que assim estejam abertos a aceitar e
se entregar totalmente ao filho real que irá chegar. Estudos no mostram que quando os
pais aceitam e acolhem o filho adotivo como real, sem as fantasias do filho idealizado,
este por sua vez aceita-os como pais.

A partir do momento que a criança chega para o casal estes se tornam pais, e a
relação de maternidade/paternidade se inicia, com todas suas alegrias e desafios. Vale
destacar, que ao aceitar a adoção aquela criança se torna filho legítimo, não existindo a
necessidade de ressaltar que a criança é adotada a todo momento, deve se construir uma
relação de amor e aceitar o filho de forma total.

Max e Dutra (2010) apud Tinoco (2011), aponta que ao colocar suas exigências
sobre o perfil do filho que desejam, muitas vezes aponta que o foco da adoção é a
necessidade de realizar seus desejos do filho ideal, mesmo que de forma inconsciente.
Em alguns casos, é uma tentativa de imitar a família biológica, e assim manter o processo
de adoção como segredo frente aos familiares e sociedade.

1
Psicóloga formada pela UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados) – CRP 14/08390-0. Email:
jackeline.talon@gmail.com
Vale destacar que a maioria das crianças que estão à espera de um lar são negras,
e os pretendentes a adoção são brancos, desse modo é preciso revisar as prioridades e
exigências ao preencher o perfil da criança que esperam, e trabalhar as projeções para
aceitar o filho real que está à espera de um lar.

Considerando esses fatores, os grupos de apoio a adoção são de extrema


importância para os pretendentes, pois é o local onde tiram suas dúvidas e expõem seus
medos e angústias, muitas vezes os pretendentes iniciam o processo com um tipo de perfil
e ao longo dos encontros alteram suas exigências, aumentando a possibilidade da chegada
de um filho real.

Entretanto quando falamos em adoção, os temas ficam mais voltados para as


questões jurídica e dos pretendentes a adoção, deixando em segundo plano a visão e os
sentimentos das crianças e adolescentes que estão abrigados à espera de um novo lar.
Desta maneira, é importante lançarmos o olhar para as crianças e entender seus
sentimentos, medos e angústias, de modo que possa nascer uma relação de amor e
cumplicidade.

Sabe-se que a família é fundamental para o amadurecimento saudável de uma


criança, as relações de apoio e afeto entre pais e filhos são fatores importantes de proteção
para o desenvolvimento.

Desta forma vemos que as crianças /adolescentes que chegam as instituições


vivenciaram rupturas destes cuidados, a maioria das crianças chegam ao lar por terem
passado por situações de abandono e negligência por parte de seus genitores. As diversas
situações pelas quais essa criança passou geram traumas e dor, ocasionando na perda de
confiança no outro e no mundo em geral, sente que não pode confiar em ninguém e que
não está seguro, temem vivenciar novo traumas e abandonos.

O processo de institucionalização é difícil e doloroso para todas as partes,


familiares, crianças e cuidadores, essa adaptação é marcada pelo processo do luto das
perdas e separações. Deve-se entender o luto como o rompimento de um vínculo, assim
na institucionalização vários lutos e angústias permeiam o psíquico da
criança/adolescente, pois envolve a prejuízo de um ou vários vínculos afetivos, esses
alteram o conhecimento que tinham do mundo e exige um processo de adaptação, e novos
significados.
Devido as rupturas daquilo que era conhecido a necessidade de se ajustar ao novo,
passa por um processo de reestruturação mental/emocional e se dá por meio de um
processo de luto, quando vivenciado adequadamente faz com que compreenda o que
aconteceu e se reorganize construindo novos significados, formando novos vínculos
dando continuidade de vida de modo satisfatório e saudável.

Os prejuízos das crianças abrigadas são muitos, além dos vínculos afetivos com
os cuidadores, envolve tudo o que conhece do mundo: brinquedos, vizinhos, amigos,
cheiros, comidas, comunidade. Se afastar de tudo isso sem ter a certeza do que a espera
faz com que intensos comportamentos de busca sejam ativados. Em um primeiro
momento pode ser difícil aceitar todo o processo, leva um tempo para que seja
internalizado e assimilado todos os acontecimentos vivenciados, é necessário ter um
espaço de escuta para auxiliar na elaboração de todos os sentimentos que a situação trouxe
à tona, desta forma por mais que volte para a família biológica um novo vínculo será
criado, pois a relação foi modificada pelos acontecimentos.

Algumas teorias do apego como a de Bowlby, afirmam que a criança desenvolve


o comportamento de apego a figura com quem mantém proximidade, geralmente a mãe,
ou aquele quem presta os cuidados, desenvolvendo assim uma relação de confiança e
proteção, sendo que este vínculo é essencial para sua saúde mental, essa experiência de
cuidado contínuo e duradouro com o cuidador geram sentimentos de prazer e satisfação
para ambas as partes, acarretando em uma relação de apego segura.

Schofield e Beek (2005) apud Tinoco e Franco (2011) destacam, que para um
desenvolvimento emocional saudável, a criança precisa acreditar que o cuidador está
disponível. Ele deve ser acessível, atento, capaz de identificar as necessidades de proteção
e cuidado, sem ser intrusivo. Assim é formada uma base segura, como denomina
Bowlby(1969/1993), e a criança sente-se livre para explorar, aprender, desenvolver-se e
manejar a ansiedade, contando que pode voltar para o cuidador diante de algum perigo
ou ameaça.

O afeto e proteção são fundamentais para formação e manutenção do apego, as


demonstrações que o cuidador é capaz de acolher. Diante disto, é importante notar que
muitas vezes a criança acolhida expressa seus sentimentos de forma intensa, e quando é
recebida no novo lar precisa ter a certeza de que a família será fonte de cuidado e proteção,
de que pode confiar, desta maneira tende a apresentar seu pior lado para saber se mesmo
mostrando seu íntimo, será amado e acolhido. Um dos motivos pelos quais a criança
apresenta este tipo de comportamento é por ter tido muitas rupturas, o processo de apegar-
se e perder quando ocorre sucessivas vezes, faz com que demore para confiar e apegar
novamente.

As reações mais comuns das crianças institucionalizadas: choro, tristeza,


depressão, raiva, culpa, angústia, apatia, comportamentos agressivos/regressivos, queda
no rendimento escolar, ansiedade, dificuldade de concentração, somatização, problemas
alimentares e de sono.

É inevitável que durante a fase de adaptação aconteçam alguns episódios de


estresse, e alguns comportamentos extremos, que são comparados a crises de
desobediência, birras e testes gerando desconforto e até irritação, nesses momentos os
pais devem tentar permanecer o mais calmo possível e acolher os sentimentos que surgem
da criança, ajudar a nomear estes sentimentos e também expor os seus, essa troca
fortalecerá os vínculos, a criança começara a perceber que tem um ambiente seguro e de
proteção e que não precisa se preocupar com sua sobrevivência. Porém cabe ressaltar que
esse acolhimento não significa fazer e realizar todos os desejos da criança e não ter regras,
mas sim demonstrar que mesmo não cedendo a todas as vontades é uma fonte de proteção
e confiança.

Qualquer ameaça ou risco de perda desse laço gerará uma ação eu vise
preservação. Quanto maior o risco da perda, mais intensa serão as atitudes – agarrar,
chorar, experimentar a raiva, ou intensa aflição, protestar –quanto mais segura a criança
se sentir com a relação mais escassas e amenas serão as reações.

Importante dar voz a criança, pois esse processo de rupturas e mudanças é muito
difícil, gera medos, e incertezas, desse modo a criança vive com fantasias e expectativas,
está sempre a espera. Guarda consigo as memórias boas que viveu até então, e muitas
vezes os seus cuidadores eram bons em alguns momentos e são essas memórias afetivas
que irão cultivar na esperança de que possa voltar a tê-las novamente. O apego a estas
memórias é como uma proteção, e irão levar consigo para nova família, e junto a estas
memórias estarão suas fantasias da família dos sonhos, a família idealizada, aquela dos
contos de fadas que aparecem nas histórias infantis.

Algumas vezes diante da família real o sonho parece ter acabado por não ser aquilo
que imaginou. É nesse momento que podem aparecer os conflitos, se os pais não
estiverem seguros e bem resolvidos quanto a imagem do filho ideal/real essas projeções
podem entrar em atrito e gerar um mal-estar.

No processo de abrigamento, que geralmente envolve experiências negativas, a


criança sente ter pouco ou nenhum controle sobre sua vida e de todo entorno, além de
uma intensa falta de confiança no adulto, porque sente que foi abandonado.

Por desejar segurança, e o medo de ser novamente abandonada, a criança busca


ter controle de tudo o tempo todo, usa de mecanismos de defesa e de manipulação, procura
satisfação imediata e é pouco tolerante a frustrações, esses comportamentos tendem a
ficar mais amenos na medida em que sentem que o ambiente é confiável.

Hughes (2014) no diz que muitos cuidadores sentem dificuldades em lidar com as
crianças, questionando sua capacidade de cuidar e acabam atribuindo essa dificuldade a
problemas de comportamento da criança, algumas vezes o sentimento de raiva e
impotência acabam interferindo na relação com a criança, algumas dessas reações só
aumentam a desconfiança e dificuldade de criar vínculos na criança.

Sabe-se que no abrigamento a proposta é criar um ambiente familiar, para que as


crianças não sintam tanto essa transição e se sintam acolhidas, amadas, porém são muitas
crianças para poucos cuidadores, de forma que não conseguem dar atenção necessária
para cada criança e atender suas demandas de atenção e afeto.

Assim, os sentimentos das crianças são ampliados, pois vivenciam muitas perdas
e a falta de acolhimento dos sentimentos faz com que se expressem de forma mais forte
e exagerada, afim de chamar a atenção para si. É comum, as crianças abrigadas serem
rotulados e “diagnosticadas”, queixas de mau comportamentos, agressividade são comuns
nos relatos das cuidadoras.

A criança só está tentando entender e vivenciar todas as mudanças, assimilar o


novo e buscar um ambiente que possa confiar, o medo de ser abandonada novamente é
muito real e muitas vezes até palpável, toda vez que uma criança sai do abrigo indo de
volta para sua família extensa ou adotiva, ou algum cuidador é desligado o medo de
permanecer ali sem ter afeto ou uma família para chamar de sua a assombra.

Um esvaziamento psíquico vai sendo produzido em decorrência de poucas


manifestações de investimento na vida de uma criança precocemente abandonada. Há
pouco espaço para que ela possa falar de seu sofrimento e de sua incompreensão sobre o
que possa ter ocorrido em sua história. Quanto mais transcorre o tempo sem que lhe sejam
fornecidas informações e não havendo espaço para externalizar, a criança pode começar
a alimentar-se de defesas mágicas, para sucumbir suas angústias. Na medida em que o
trabalho do luto não pode ser feito, cristaliza-se uma idealização dos pais de origem. A
criança se agarra a um amor idealizado para dar conta de uma espera constantemente
frustrada.

Bowlby destaca que o sucesso da nova relação não está vinculado ao


esquecimento das relações anteriores, as relações pode se manter distintas e presentes, o
novo cuidador precisa estar seguro, a criança não pode sentir que deve escolher, isso fará
com que resista a se adaptar à nova relação, afinal é parte de sua história, suas relações e
vivências, essas devem ser elaboradas de forma saudável através da escuta, de um bom
ambiente e vínculo com o adulto, esses fatores fazem com que a elaboração do luto
acontece de forma natural e saudável.

Segundo James (1994), a criança só poderá explorar a situação traumática e


elaborar o luto quando sentir que está em um ambiente seguro e que não precisa se
preocupar com a sua sobrevivência.

Quanto maior for a de-privação, mais difícil será fazer com que a criança confie
no ambiente, neste sentido, destaca-se a importância dos pais de sobreviverem aos ataques
de raiva da criança que vivenciou a adoção, pois a raiva somente pode existir nesta quando
o ambiente é confiável.

A mudança de família exige que acriança lide com dificuldades próprias de terem
sido adotadas e de terem ficado institucionalizadas, sendo que a separação da família
consanguínea e o processo de transição de um local de convivência para outro é um
momento permeado de angústias, o medo do novo, do que irá encontrar na nova casa?
Como serão esses pais? Será que serei amado? São muitos os questionamentos que
permeiam o psíquico da criança. Lembrando que por melhor que seja a instituição ela não
possui condições de se dedicar as demandas de todas as crianças acolhidas, Winnicott
ressalta que, a necessidade de atenção do mundo externo é de grande importância no
desenvolvimento da criança.

O sentimento de pertencimento de uma criança a uma nova família exige que


ocorra o luto pela família consanguínea, e da mesma forma os pais que vivenciaram a
adoção também precisam realizar um trabalho de luto da criança imaginária pela criança
real, sendo esse processo fundamental para a consolidação dos vínculos e para o processo
de amadurecimento psíquico da criança.

Ambiente suficientemente bom, em que a criança se sinta seguramente sustentada,


acolhida e pertencente aquela família. O ambiente suficientemente bom é constituído por
toda família no provimento de afeto, proteção, segurança e cumplicidade.

A criança adotada maior, vive um processo de regressão psíquico, que remete a


um estado imaginário próprio do recém-nascido, levando a percorrer fases da constituição
do self novamente e a viver um segundo nascimento. É importante que a criança tenha
espaço para falar de seu sofrimento e incompreensão de sua história, podendo externalizar
suas dúvidas para que assim ela não precise alimentar-se de defesas mágicas contra
angustias e possa tornar-se sujeito ativo diante do processo de mudança que vivencia.
(Hueb, 2016) apud Tinoco e Franco (2011).

Ozoux-Teffaine (2004) o período inicial, no qual se procura incorporar o modelo


da nova família, costuma ser seguido por uma fase de desilusão estruturante, marcada por
atitudes agressivas. A necessidade de se separar-se da pele comum, criada na constituição
de uma identidade especifica, daria início ao processo doloroso do qual se espera que os
pais consigam suportar as tensões, os ataques de fúria, o silencio. A autora entende que a
criança ao vivenciar angústias persecutórias, rejeita e faz rejeitar-se. A criança precisa
atravessar essa posição esquizo-paranoide no sentido de posição depressiva, renunciando
a atração das primeiras imagos parentais, para vincular-se aos pais adotivos reais. Espera-
se que os adotantes sejam capazes de não ferir profundamente sua capacidade parental e
sua autoestima, que possam conter e serem depositário da memória da criança, facilitando
uma regressão necessária, que precede a retomada do processo de desenvolvimento.

Um dos medos dos adotantes é da criança rejeita-los e ficar preso na relação com
a família biológica, por este fato tendem a evitar falar do processo da adoção com a
criança e não lhe dão espaço para que essa fale de como era sua vida anteriormente, porém
é necessário que haja momentos para esses diálogos, para que a criança vivencie esse
processo de transição e conheça sua história de maneira total, e assim acolha a família
real desapegando de suas fantasias e construindo sua identidade total, a partir de toda sua
história e trajetória de vida, por mais doloroso que tenha sido é importante que abrir o
diálogo para os questionamentos e dúvidas que a criança trará a respeito dos seus
genitores.
É preciso respeitar a trajetória de vida de cada indivíduo, sejam dos pais ou a
criança, cada um teve suas vivências até se encontrarem e a partir deste encontro juntos
vão construir novos capítulos.

Referências Bibliográficas.

Morelli, Ana B., Comin, Fabio Scorsolini, Santeiro, Tales Viera. (2025) – O “lugar” do
filho adotivo na dinâmica parental: revisão integrativa da literatura. Psic. Clin., Rio de
Janeiro, vol. 27, n. 1, p. 175 – 19.

Tinoco, Valéria; Franco, Maria Helena P. (2011). O luto em instituições de abrigamento


de crianças. Estudos de Psicologia I Campinas I 28(4) I 427-434.

Alvarenga, L. L. & Bittencourt, M. I. G. F. (2013). A delicada construção de um vínculo


de filiação: O papel do psicólogo em processos de adoção. Pensando Famílias 17(1), 41-
53.

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