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O Estado, o Poder e os Aparelhos Repressivos: um debate sobre a proposta poulantziana


de transição para o socialismo-democrático •

1 Introdução

A presente comunicação realiza um debate teórico acerca das relações entre o


poder, o Estado e os aparelhos repressivos na questão da transição para o socialismo,
conforme concebida por Poulantzas na obra “O Estado, o Poder o Socialismo”. Na primeira
parte procuro mostrar, de maneira crítica, como os conceitos de poder e Estado estão
imbricados, apesar de diferentes, e qual o papel e a importância que os aparelhos repressivos
têm para esses conceitos e para a teoria política poulantziana de um modo geral. Na segunda
parte discuto a proposta de Poulantzas para um socialismo-democrático, enfatizando
particularmente a questão da transformação dos aparelhos repressivos: a negligência do tema
e o caráter problemático da proposta.

2 O Estado, o Poder e os Aparelhos Repressivos

Poulantzas define o Estado capitalista como o lugar central do exercício do poder,


o dispositivo (o conjunto dos aparelhos) que concentra, materializa e propaga o poder para
representar e organizar, em longo prazo, os interesses políticos da burguesia. Antes de
avançar nesse conceito é necessário compreender o que parece ser o elemento central e
também o mais problemático dessa definição: o “poder”. Apesar desta ser uma definição
fundamental no livro, é somente na segunda parte da obra que Poulantzas irá apresentá-la:

Por poder se deve entender a capacidade, aplicada às classes sociais, de uma, ou de


determinadas classes sociais em conquistar [e defender] seus interesses
específicos. O poder referido às classes sociais é um conceito que designa o campo
de sua luta, o das relações de forças e das relações de uma classe com uma outra.
[...] A capacidade de uma classe em realizar seus interesses está em oposição à
capacidade (e interesses) de outras classes: o campo do poder é portanto
estritamente relacional” [...] O poder de uma classe significa de início seu lugar
objetivo nas relações econômicas, políticas e ideológicas, lugar que recobre as
práticas das classes em lutas, ou seja as relações desiguais de


Cléber da Silva Lopes, mestrando em Ciência Política pelo IFCH/Unicamp
2

dominação/subordinação das classes estabelecidas na divisão social do trabalho, e


que consiste em relações de poder. 1

Tal conceito subscreve o poder às relações conflituosas entre as classes, ou seja, à


luta de classes que emerge em decorrência da separação do trabalhador direto de seus meios
de trabalho e posse. Essa definição, no entanto, torna-se problemática em razão de uma tese
que Poulantzas levanta já na Introdução do livro. Na verdade, Poulantzas lança duas teses
acerca do poder. Sustenta primeiramente que “as relações de poder, como é o caso da divisão
social do trabalho e da luta de classes, ultrapassam de muito o Estado” 2 . Tese importante,
pois atribui às relações de poder a primazia sobre os aparelhos que as encarnam
(principalmente o Estado), e que deve ser retida para o entendimento da proposta poulantziana
de transição para o socialismo-democrático que será discutida mais adiante. Todavia, o que
obscurece o conceito supracitado é a tese de que “as relações de poder não englobam
completamente as relações de classe e podem ultrapassar as próprias relações de classe” 3 .
Segundo essa tese, a divisão em classes não é o terreno exclusivo da constituição de todas as
formas de poder, embora nas sociedades de classe todo poder assuma um significado de
classe. Ora, se o poder também deriva e está inscrito em relações outras que não as de classe,
caso por exemplo do poder nas relações de gênero (homem-mulher), citado pelo próprio
Poulantzas, o conceito de poder formulado na segunda parte do livro mostra-se insuficiente.
Ainda que numa sociedade capitalista todo poder adquira contornos de classe, a
especificidade, os fundamentos e a materialidade das outras formas de poder não podem ser
reduzidas e identificadas unicamente às relações de classe. Assim, quando Poulantzas define o
poder como uma relação de força entre classes em luta, deixa de fora da definição outros
poderes que não os de classe. Formula assim um conceito contraditório e inadequado ao
conjunto do livro. A explicação para isso talvez se deva à influência que a obra de Focault
exercia sobre o autor no momento em que repensava sua teoria política. De qualquer modo,
essa questão merece uma discussão mais aprofundada, o que me desviaria demasiadamente
dos objetivos iniciais deste trabalho. Voltemos então ao conceito de Estado.

Se o Estado é o lugar que concentra e materializa o poder, entendido


fundamentalmente como uma relação de dominação/subordinação de classe, ele próprio deve

1
Nicos Poulantzas. O Estado, o poder e o socialismo. 4º ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 149.
2
Ibid., p. 34.
3
Ibid., p. 41.
3

ser entendido como uma relação. Deriva daí uma das teses centrais do livro de Poulantzas,
que irá definir o Estado capitalista não como....

[...] uma entidade intrínseca mas, como aliás é o caso do ‘capital’, como uma
relação, mais exatamente como a condensação material de uma relação de forças
entre classes e frações de classe, tal como ele expressa, de maneira sempre
específica, no seio do Estado”. [...] [Desse modo], o Estado é o lugar de
organização estratégica das classes dominantes em sua relação com as classes
dominadas. É um lugar e um centro de exercício do poder, mas que não possui
poder próprio. 4

Este lugar-centro de exercício do poder é constituído de uma materialidade


determinada, expressa em dezenas de aparelhos que se dividem, segundo Poulantzas, em três
tipos: aparelhos repressivos, aparelhos ideológicos e aparelhos econômicos 5 . Como parte
constituinte do Estado, esses aparelhos também são atravessados pelas relações de força que
compõem o poder do Estado. São, portanto, impregnados pelas lutas entre classes e frações de
classe que compõem o bloco no poder 6 . Essas lutas assumem a forma de contradições
internas entre os diversos aparelhos de Estado e no interior de cada um deles, seguindo linhas
de clivagem ao mesmo tempo horizontais e verticais. Tais lutas e contradições, no entanto,
ocorrem dentro de determinados limites, pois, segundo Poulantzas, o Estado apresenta uma
unidade de aparelhos, um centralismo que lhe permite assegurar a unidade conflitual da
aliança que constitui o bloco no poder. Essa unidade-centralização, própria à organização
hierárquica-burocratizada do Estado, ocorre através de uma cadeia de subordinação de
determinados aparelhos a outros sob o domínio do aparelho ou setor do Estado (Exército,
partido político, ministério, etc) que cristaliza os interesses da fração hegemônica no poder. A
unidade-centralização do Estado resulta também do fato das classes dominadas estarem
presentes no Estado enquanto classes dominadas, nisso residindo a especificidade das relações
de força que o Estado condensa.

Apresentado o conceito de poder e de Estado de Poulantzas, pode-se agora definir


qual o papel e o lugar que os aparelhos repressivos de Estado têm e ocupam dentro desses

4
Ibid., p. 130 e 150.
5
Essa divisão dos aparelhos de Estado diferencia Poulantzas de L. Althusser, que dividi o Estado apenas em
aparelhos repressivos e ideológicos.
6
O conceito de “bloco no poder” é usado para indicar as várias classes e/ou frações de classe, organizadas sob a
hegemonia de uma delas, que compõem o poder numa situação concreta. Esse conceito permite explicar as
classes no poder referindo-se às formações sociais (real-concreto) e não apenas aos modos de produção (geral-
abstrato). Assim, um bloco no poder pode ser formado tanto pela classe dominante (e suas frações) do modo de
produção predominante (burguesia, no caso do modo de produção capitalista), quanto pela classe dominante
proveniente de outros modos de produção (caso da aristocracia rural, por exemplo).
4

conceitos. Na teoria política poulantziana, como em boa parte da teoria política marxista, o
poder, a violência (repressão) e o Estado aparecem estritamente relacionados. A coerção e
ameaça sobre o corpo são, segundo Poulantzas, condições para a existência e manutenção do
poder nas sociedades modernas. O poder e o domínio moderno baseiam-se na violência física,
embora ela não transpareça no cotidiano. Nas formas de poder e domínio das sociedades
modernas os vários procedimentos de criação de consenso (produzidos em grande parte pelos
aparelhos ideológicos) desempenham o papel principal, mas a violência física continua a ser o
elemento central e determinante do poder político. Segundo Poulantzas...

[...] a violência física monopolizada pelo Estado sustenta permanentemente as


técnicas do poder e os mecanismos do consentimento, está inscrita na trama dos
dispositivos disciplinares e ideológicos, e molda a materialidade do corpo social
sobre o qual age o domínio, mesmo quando essa violência não se exerce
diretamente. 7

Assim, na teoria política poulantziana a organização material do poder deve ser


apreendida como relação de classe em que a violência física organizada é a condição da
existência e garantia da reprodução do poder. Violência que nas sociedades de classe
encontra-se monopolizada pelo Estado, mais especificamente pelos seus aparelhos
repressivos: exército, polícia, magistratura, sistema penitenciário, etc. Tais aparelhos ocupam
e desempenham, portanto, um papel fundamental para a existência e reprodução do poder nas
sociedades modernas: são decisivos para assegurar a dominação burguesa e a reprodução
ampliada do capital.

Se os aparelhos repressivos têm essa importância central para a existência do


poder de Estado e manutenção da ordem burguesa, supõe-se que seja um tema de grande
importância para a esquerda numa proposta de transição para o socialismo. Passo então a
analisar como Poulantzas coloca essas questões, ou seja, como vê o problema da transição
para o socialismo, particularmente no que se refere à transformação do Estado e dos seus
aparelhos repressivos.

7
Ibid., p. 79.
5

3 A Transição para o Socialismo-Democrático e os Aparelhos Repressivos de Estado

Antes de entrar propriamente no tema da transformação do Estado e dos seus


aparelhos repressivos, é importante dizer que o debate que Poulantzas realiza a respeito da
transição para um socialismo-democrático está centrado no problema das relações entre
socialismo e democracia na questão da transformação do Estado. Não há dúvida de que a
transformação do Estado é um problema essêncial para a construção de um socialismo
democrático, mas seguramente não é o único. Se construir o socialismo significa abolir o
conjunto das relações de poder numa sociedade determinada, não basta nem transformar-
destruir os aparelhos de Estado, nem acabar com as classes sociais, já que as relações de
poder não se restringem ao Estado e às classes. Essas questões, assinaladas por Poulantzas na
Introdução do livro, não são sequer mencionadas em sua proposta de transição para o
socialismo, o que certamente se deve às flutuações em torno do seu conceito de poder, ora
amplo, ora restrito às classes sociais. Assim, o debate realizado por ele a respeito da transição
gira fundamentalmente em torno de qual seria a melhor via para a construção de um
socialismo que fosse democrático: uma estatal-reformista, que se restrinja a reformar o Estado
para construir um “Socialismo de Estado”; uma revolucionária, que oponha e substitua numa
situação de duplo poder o Estado burguês burocrático-representativo por um Estado popular e
verdadeiramente democrático; ou uma via processual que articule a democracia-parlamentar
burguesa e suas instituições com a democracia direta na base, mas sem abdicar de uma
transformação radical do próprio Estado, via esta defendida por Poulantzas. Nesse debate, os
aparelhos repressivos de Estado aparecem de maneira apenas marginal. Mas creio ser possível
e necessário trazê-lo para o centro da discussão, mesmo porque Poulantzas, apesar de abordar
de maneira insatisfatória o tema, confere a ele grande importância ao sugerir que numa
transição para o socialismo as transformações do Estado devam começar justamente pelos
aparelhos repressivos: o exército e particularmente a polícia.

Feita essas observações, volto ao debate: por que Poulantzas considera a via
processual a mais adequada para transitar de maneira democrática para um socialismo que
também deve ser democrático? A proposta de Poulantzas de transição para o socialismo
decorre, naturalmente, de sua própria concepção de Estado, que pretende se opor a duas outras
formulações, a do Estado-coisa e a do Estado-sujeito, cujos desdobramentos políticos levaram
6

ao fenômeno do “estatismo” 8 do tipo stalinista (totalitário) e social-democrata (autoritário). A


primeira formulação, presente no marxismo da 3º Internacional, via o Estado como um
instrumento passivo, sem nenhuma autonomia, manipulável por uma única classe ou fração de
classe, em suma, como uma ditadura de classe. Essa visão levou a crer que o Estado, enquanto
instrumento, poderia ser utilizado pela classe operária, mediante a tomada do poder, numa
transição para o socialismo. No caso do Estado-Sujeito, concepção que, segundo Poulantzas,
esteve presente entre um certo “tecnocratismo de esquerda”, a autonomia do Estado era
considerada absoluta na medida em que ele deteria um poder próprio. Aqui, predominou
igualmente a visão de que o Estado poderia, através de uma elite esclarecida de esquerda,
engendrar uma sociedade socialista segundo o modelo do “Socialismo de Estado”.

Ao não interpretarem o Estado como uma relação de força entre classes,


condensada de maneira específica em aparelhos dotados de materialidade própria e
relativamente autônomos, essas correntes teóricas não perceberam, segundo Poulantzas, o fato
de que Estado não pode, por uma simples mudança de poder, engendrar o socialismo, já que o
peso específico e o papel próprio dos aparelhos e agentes de Estado sempre se manifestam,
através de suas estruturas e posições, como resistências às mudanças. Se o Estado capitalista
não pode, através de uma mudança do poder de Estado (o operariado substituindo a
burguesia), construir o socialismo sem degenerar-se em estatismo, é necessária que este seja
“transformado radicalmente” para que haja uma efetiva transição para o socialismo. Mas
Poulantzas entende a transformação radical do Estado de maneira bastante heterodoxa.

Para alguns dos clássicos do marxismo - Marx, Engels, Lênin e outros -


transformar o Estado significava destruir os diversos aparelhos que o compunham,
substituindo-os por instituições não-burocráticas e populares, conforme o modelo de Estado
legado pela Comuna de Paris e pelos Soviets da Revolução Russa, que inspiraram
respectivamente Marx e Lênin 9 . No que tange aos aparelhos repressivo, tais mudanças
ocorreriam através da substituição do exército permanente e da polícia separada do povo pelo
armamento direto e imediato das classes dominadas organizadas em milícias populares. Essa
destruição-substituição do Estado, como dito, ocorreria em bloco através de uma luta frontal
8
Poulantzas utiliza o termo “estatismo” para indicar a monopolização acentuada, pelo Estado, do conjunto de
domínios da vida econômico-social e política, cujas conseqüências levaram ao declínio decisivo das
instituições da democracia política e à draconiana restrição, e multiforme, das liberdades formais conquistadas
pelas classes populares. (Ibid, p. 207-254).
9
As referências específicas são Karl Marx. Guerra Civil na França. São Paulo: Global, 1986; e V. I Lênin.
Teses de Abril: sobre as tarefas do proletariado na presente revolução. São Paulo: Acadêmica, 1987. Uma
exposição das duas experiências encontra-se em V. I. Lênin. O Estado e a revolução: o que ensina o marxismo
sobre o Estado e o papel do proletariado na revolução. São Paulo: Hucitec, 1979.
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(levante revolucionário) numa situação de duplo poder. Poulantzas, no entanto, não acredita
que esta seja a melhor via para o socialismo. Segundo ele, a concepção de Estado que orienta
essa estratégia é a do Estado-coisa, instrumento de dominação burguesa, daí a proposta de sua
destruição-substituição por um segundo poder popular, paralelo e exterior ao Estado. Para
Poulantzas, os riscos de estatismo dessa via seriam consideráveis, já que o segundo poder
poderia facilmente transformar-se num Estado proletário centralizador e controlado de cima
pelo partido revolucionário único.

Poulantzas defende então um caminho diferente ao da destruição-substituição do


Estado e ao da construção do socialismo pelo próprio Estado. Propõe uma via democrática
para o socialismo que articule a luta das massas no seio do Estado com as lutas das
organizações de base com o objetivo de modificar as relações de força no interior dos
aparelhos de Estado, considerados por ele espaços de lutas políticas. Essas lutas ocorreriam
através de uma longa batalha que teria, simultânea e necessariamente, que ser acompanhada
por transformações dos aparelhos e pessoal de Estado, já que eles detêm materialidades e
características próprias que impedem a alteração das relações de força no seu interior. Assim,
para escapar dos limites impostos pela própria materialidade do Estado seria imprescindível
que as massas atuassem no interior do Estado articuladas e apoiadas por movimentos e
organizações situadas fora do Estado. É essa a estratégia que Poulantzas sugere para transitar
ao socialismo sem cair no fenômeno do estatismo.

Diante dessa proposta, não há como deixar de questionar acerca de sua


viabilidade, visto que a alteração das relações de força no interior do Estado suporia, para se
efetivar, a transformação dos aparelhos de Estado, que por sua vez deveria ocorrer mediante a
alteração das relações de força no interior do próprio Estado. Em que medida e de que modo
as classes dominadas, através de suas organizações de base, poderiam intervir para romper
esse círculo, Poulantzas não dá nenhuma indicação. Não toca, desse modo, no que me parece
ser o ponto nodal de sua proposta.

Em relação aos aparelhos repressivos de Estado, Poulantzas reconhece a sua


importância primordial numa transição para o socialismo, mas diz pouca coisa a respeito.
Considera ser necessário transformá-los, mas indica um caminho incerto e não diz em que
direção deveriam ocorrer as transformações: reforma parcial dos exércitos permanentes e
forças policiais; destruição dessas instituições para a formação de milícias populares, segundo
8

o modelo da Comuna de Paris e aquele sugerido por Lênin; ou ainda uma combinação dos
dois formatos. Na única passagem em que trata do assunto, Poulantzas se resume a dizer que:

A modificação da relação de forças no seio do Estado diz respeito ao conjunto de


seus aparelhos e seus dispositivos: não diz respeito apenas ao parlamento ou, como
exaustivamente se repete hoje em dia, aos aparelhos ideológicos do Estado,
considerados detentores doravante do papel determinante no Estado ‘atual’. Esse
processo se amplia igualmente, e em primeiro lugar, aos aparelhos repressivos de
Estado, aqueles que detêm o monopólio da violência física legítima: o exército e
particularmente a polícia. Embora não seja obrigatório esquecer o papel próprio
desses aparelhos (o que acontece freqüentemente em certas versões das vias
democráticas para o socialismo, baseadas em geral numa meia interpretação de
algumas teses de Gramsci), não se deveria acreditar que a estratégia de uma
modificação da relação de forças interna ao Estado só seria válida exclusivamente
para os aparelhos ideológicos, e que os aparelhos repressivos (que estariam,
realmente, vedados às lutas populares) só poderiam ser tomados frontalmente do
exterior: em suma não se trata de acumular duas estratégias mantendo para os
aparelhos repressivos aquela do duplo poder. É evidente que a modificação interna
das relações de forças nos aparelhos repressivos coloca problemas particulares e,
portanto, temíveis: mas, o caso de Portugal demonstrou-o perfeitamente, esses
mesmos aparelhos são atravessados pelas lutas das massas populares. 10
(Sublinhado por mim).

Nessa passagem, Poulantzas levanta questões de grande importância, mas de


maneira bastante vaga. Afirma ser possível transformar os aparelhos repressivos de Estado
através de uma mudança interna de suas relações de força, mas observa que tal mudança
coloca “problemas particulares” e “temíveis”, sem no entanto discorrer sobre o que seriam
esses problemas. Supõe que o leitor saiba, ou então espera que deduza. Numa passagem de “A
Crise das Ditaduras”, Poulantzas dá algumas pistas do que supostamente poderiam ser esses
problemas temíveis. Diz ele, ao comparar os regimes ditatoriais com os regimes fascistas:

[...] as contradições internas destes regimes [as ditaduras de Portugal, Grécia e


Espanha] se manifestaram por excelência dentro do aparelho militar que,
precisamente, detém, além do mais, o poder das armas (e não no partido e na
burocracia, aparelhos dominantes dos regimes fascistas), o que contribui para
tornar as contradições internas muito mais temíveis neles do que as contradições
nos regimes fascistas. 11

Diante dessa passagem é possível especular que, na citação anterior, ao usar os


termos “problemas particulares” e “temíveis”, Poulantzas se referia ao fato de que as

10
Poulantzas, O Estado, o poder, o socialismo, cit, p. 287.
11
Id. A crise das ditaduras: Portugal, Grécia e Espanha. 2º ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, p. 82.
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contradições no interior dos aparelhos repressivos podem assumir a forma de lutas violentas.
E isso não apenas porque tais aparelhos, particularmente o exército e as polícias, detêm as
armas de fogo, mas também porque apresentam uma materialidade própria - são organizados
de maneira hierárquica, centralizada, unitária e com uma ideologia própria - que os leva a
punir sumariamente qualquer espécie de “motim” ou divergências que possam ameaçar a
unidade interna, de modo que os acirramentos dos conflitos em seu interior têm grandes
possibilidades de se converterem em confrontos sangrentos e, nos casos mais graves, em
guerra civil. A materialidade institucional desses aparelhos apresenta-se, desse modo, como
um obstáculo considerável à alteração das relações de força no seu interior. Nesse sentido, as
considerações feitas por Poulantzas na segunda parte do livro, onde debate a questão do
“pessoal do Estado”, parecem bastante oportunas para o caso dos militares e policiais. Em
algumas passagens Poulantzas diz que as revoltas protagonizadas pelo pessoal de Estado são
vividas nos termos da ideologia dominante - cuja função é construir o cimento interno dos
aparelhos de Estado e da unidade de seu pessoal - tal como ela se cristaliza na estrutura do
Estado. Assim, tais revoltas não colocariam em questão a reprodução da divisão social do
trabalho nos aparelhos de Estado e nem dariam importância à divisão política dirigentes-
dirigidos próprias ao Estado. Além do mais, o lugar que o pessoal de Estado ocupa na divisão
social do trabalho, personificada pelo Estado, tende a levá-los a uma aproximação das massas
apenas sob a condição de uma determinada continuidade que sustente o Estado 12 .

Se os aparelhos repressivos de Estado forem pensados nesses termos, de fato, eles


apresentam limites e resistências muito mais sérias e contundentes do que a dos demais
aparelhos, o que permite levantar as seguintes questões: é possível transformar os aparelhos
repressivos de Estado, dada as particularidades que os caracterizam, através da modificação
interna das relações de forças que os atravessam? Em outras palavras, é possível transitar para
o socialismo sem cair numa situação de duplo poder, ou seja, de enfrentamento violento entre
exército/polícia (divididos ou não) e massas organizadas em armas? Ou ainda: seria possível
caminhar em direção ao socialismo de maneira pacífica? Neste caso, Poulantzas não nutria
esperanças e reconhecia que “a via democrática para o socialismo certamente não será uma
simples passagem pacífica” 13 . Mas acreditava ser possível transformar os aparelhos
repressivos de Estado pela modificação interna de suas relações de força. Crença que, no
momento, possivelmente se apoiava nos acontecimentos que despontaram em Portugal em

12
Id. O Estado, o poder, o socialismo, cit., p. 156-163.
13
Ibid., p. 269.
10

meados dos anos 70, quando um grupo de oficiais (capitães) das Forças Armadas (o
Movimento das Forças Armadas/MFA) derrubou, de maneira pacífica e com o apoio maciço
da população, a ditadura salazarista e deu início a um movimento revolucionário-socialista, a
“Revolução dos Cravos”. Poulantzas chega a citar o caso de Portugal para dizer que os
aparelhos repressivos de Estado são de fato atravessados pelas lutas populares, e assim
corroborar sua proposta de transição para o socialismo. O que não cita é que a experiência
revolucionária de Portugal, após um breve êxito, fracassou. Evita assim de analisar as causas
que levaram ao fracasso da “Revolução dos Cravos”, que terminou justamente com um golpe
deferido por setores do Exército leais à burguesia interna, com o apoio do imperialismo
internacional 14 . Se o caso de Portugal de fato mostrou que os aparelhos repressivos de Estado
são atravessados pelas lutas populares, mostrou também que, a pretexto de manter a
hierarquia interna, as Forças Armadas tendem a agir de maneira conservadora.

Desse modo, considero no mínimo duvidoso que os aparelhos repressivos possam,


a partir das lutas internas, mesmo quando apoiadas por movimentos populares,
transformarem-se em Forças Armadas e policiais revolucionárias-socialistas, como defendia
Poulatzas. Como dito, a materialidade e as especificidades desses aparelhos e do seu pessoal
tendem a resistirem fortemente a mudanças radicais, principalmente no que se refere a sua
própria re-estruturação, e conseqüentemente a se portarem, no geral, de maneira conservadora
e impeditiva numa transição para o socialismo.

14
Segundo Secco, a Revolução dos Cravos chega ao fim quando o sexto governo provisório, chefiado pelo
almirante Pinheiro Azevedo, intervém na base área de Tancos, a pretexto de conter uma sublevação de
paraquedistas, e expurga das Forças Armadas os militares comprometidos com a Revolução. (Lincoln Secco.
“Trinta anos da Revolução dos Cravos”. Revista Adusp, nº 33, out. 2004, p. 12).

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