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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
MESTRADO EM EDUCAÇÃO

FLÁVIO EDUARDO DA SILVA ASSIS


(DUDU DE MORRO AGUDO)

RAP NA BAIXADA, RAP NO MUNDO - O RAPLAB

TECENDO REDES EDUCATIVAS

NITERÓI/RJ - 2020
FLÁVIO EDUARDO DA SILVA ASSIS
(DUDU DE MORRO AGUDO)

RAP NA BAIXADA, RAP NO MUNDO - O RAPLAB

TECENDO REDES EDUCATIVAS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Educação, da Faculdade de
Educação da UFF, como requisito obrigatório
para obtenção de título de Mestre em
Educação.
Linha de Pesquisa: Estudos dos Cotidianos da
Educação Popular (ECEP).

Orientadora:
ProfªDrª. Nivea Andrade

Niterói-RJ
2020
Ficha catalográfica automática - SDC/BCG
Gerada com informações fornecidas pelo autor

S586r Silva assis, Flávio Eduardo da


Rap na Baixada, rap no mundo : O RapLab tecendo redes
educativas / Flávio Eduardo da Silva assis ; Nivea Maria da
Silva Andrade, orientadora. Niterói, 2020.
107 p. : il.

Dissertação (mestrado)-Universidade Federal Fluminense,


Niterói, 2020.

DOI: http://dx.doi.org/10.22409/POSEDUC.2020.m.07513064792

1. Rap. 2. Narrativa. 3. Juventude. 4. Rodas de Conversa. 5.


Produção intelectual. I. Silva Andrade, Nivea Maria da,
orientadora. II. Universidade Federal Fluminense. Faculdade de
Educação. III. Título.

CDD -

Bibliotecária responsável: Thiago Santos de Assis - CRB7/6164


FLÁVIO EDUARDO DA SILVA ASSIS
(DUDU DE MORRO AGUDO)

RAP NA BAIXADA, RAP NO MUNDO - O RAPLAB

TECENDO REDES EDUCATIVAS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Educação, da Faculdade de
Educação da UFF, como requisito obrigatório
para obtenção de título de Mestre em
Educação.

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________________________
Dra. Nivea Maria da Silva Andrade – UFF
Orientadora
____________________________________________________________
Dr. Valter Filé (José Valter Pereira) – UFF
Membro Interno
____________________________________________________________
Dra. Adriana Facina Gurgel do Amaral – UFRJ
Membro Externo
____________________________________________________________
Dr. João Luiz Guerreiro Mendes – IFRJ
Membro Externo
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente a Deus e a meu pai Xangô, em quem deposito minha fé particular.
Quem ilumina os caminhos trilhados e distribui gratuitamente forças para superar os
obstáculos.

À minha mãe e meu pai (in memoriam), Lúcia e Guilherme, parceiros da vida, pelo apoio
incondicional, pelo incentivo, paciência e pela criação que tive. Pela visão de mundo que me
ajudaram a desenvolver, lutando sempre contra as injustiças, por um mundo melhor e mais
amoroso.

À Fernanda Rocha, minha companheira, pelas fortes palavras de incentivo que não me
deixaram esmorecer por nem um minuto, pela paciência e compreensão durante este intenso
processo que passamos juntos.

Aos meus filhos Beatriz Dias e Eduardo Rocha por renovarem minhas esperanças a cada dia.

Ao meu amigo de outras vidas, Samuca Azevedo, sempre presente, colaborador e disposto a
ouvir e refletir comigo durante horas sobre as tracks dessa dissertação.

À CAPES por tornar possível o desenvolvimento desta e tantas outras importantes pesquisas.

À UFF e a todos os funcionários que me deram grande suporte durante esses dois intensos
anos, em especial a Secretaria da PPGEdu e os terceirizados.

À minha orientadora, que realmente me orientou nesse mergulho sem precedentes na minha
vida, Dra Nivea Andrade, obrigado pela competência, humildade, amizade e coerência com os
princípios de uma educação libertadora, obrigado por estar ao meu lado em todos os momentos
desta pesquisa. Seus elogios me fizeram acreditar que era possível, e suas cobranças me
encheram de coragem para mergulhar cada vez mais fundo nos estudos com os cotidianos.
Você é uma pessoa iluminada.

Aos membros da banca pela pronta disponibilidade e contribuições assertivas e cuidadosas:


Valter Filé, Adriana Facina e João Guerreiro, muito obrigado.

Aos educadores Antônio Feitoza e Cleber Gonçalves, profissionais da educação que, mesmo
diante de tantos desafios, não esmorecem e continuam na luta.

Aos sujeitos dessa pesquisa que me acolheram de forma afetuosa em todos os nossos encontros
e com os quais vivi experiências únicas que levarei por toda a minha vida.
Aos amigos do Quilombo Enraizados pelo incentivo, pela torcida e pela ajuda: DJ Dorgo,
Imperatriz, Moonjay, Lisa Castro, Laica, I Go, Marcelo Peregrino, TK, Caslu, Fitu, Átomo,
Ninja, Ocibar, Einstein NRC, LC e tantos outros.

Aos amigos que conheci no Mestrado, com os quais aprendi, ensinei e dividi momentos únicos,
em especial Beto, meu camarada pra vida, que mostrou os pontos de fuga nos momentos mais
tensos dessa caminhada.

Às amigas do grupo de pesquisa JICs que me deram as mãos em todos os momentos: Patrícia
Temporim, por me acolher desde o primeiro dia, indicando os caminhos menos nebulosos; Bia
e Julia pela paciência na minha preparação para a qualificação.

Aos amigos do hip hop, em especial Mad, Slow da BF, FML, Átomo, DJ Moska, Luck, DMC
e Cacau, por compartilharem suas histórias e vivências do hip hop na Baixada Fluminense.
RESUMO
Esta pesquisa busca narrar o desenrolar dos encontros com jovens moradores das
periferias do Rio de Janeiro, dentro e fora do ambiente escolar, para a prática do RapLab, uma
atividade que provoca a produção do conhecimento em rede através do rap, numa
experimentação de composição coletiva a partir de uma roda de conversa onde discute-se um
tema proposto pelos próprios jovens. São esses encontros, que embolam arte com educação, rua
com escola, educandos e educadores que pretendo narrar no decorrer da pesquisa, onde tento
refletir sobre: Como essa composição coletiva se desenvolve? Quais os seus efeitos e
desdobramentos possíveis? O que também importa nessa pesquisa é a movimentação da
juventude periférica e suas táticas contra a subalternidade, seu protagonismo, entre outras
inúmeras situações que aparecem durante esses encontros. Ouço e leio a todo tempo que nos
estudos com os cotidianos as certezas não existem, mas é na prática que percebemos os encantos
e desesperos de se pesquisar com os cotidianos. Tenho aprendido que pesquisar com os
cotidianos é se preparar para os entroncamentos e bifurcações, é caminhar pelo desconhecido, é
ir sem saber pra onde está indo e por isso ter de redobrar as atenções, principalmente nos
detalhes, nas sobras. É olhar, quando possível, para onde ninguém quer olhar, é tatear, ouvir,
falar, silenciar, dar importância para o que muitos acham que não tem importância. A
metodologia utilizada são as conversas, apesar de admitir que, como diz Nilda Alves, "em
relação ao método, tenho que começar por admitir que estou sempre cheio de dúvidas e sobre ele
tenho muito que aprender" (ALVES, 2001. p14). A pesquisa utilizou o apoio teórico em autores
como Nilda Alves, Paulo Freire, Spivaki, bellhooks, entre outros.

Palavras-chave: conhecimento em rede, rap, narrativa, rodas de conversa, juventude.


ABSTRACT

This study seeks to narrate the unfolding of encounters, both within and outside of the
school environment, with young residents of Rio de Janeiro’s peripheries as a part of RapLab,
an activity and methodology that promotes knowledge networks through the experience of
collectively composing a rap song based on group discussions of a theme chosen by the youth. I
aim to detail these encounters, which intertwine art and education, the street and the classroom,
learners and educators, through a reflection on the following questions: How does this collective
composition develop? What are its positive effects and outcomes? This study also takes into
account the maneuvering of youth from the periphery and their strategies of agency and against
subalternity that emerged during these encounters. I always hear and read that in research with
everyday life there are no certainties, but rather that it is in practice that we perceive the joys and
despairs of doing research with everyday life. I have learned that research with everyday life is
preparing ourselves for crossroads and bifurcations, is walking towards the unknown, is going
without knowing to where, and that’s why we redouble our attention, especially of details and
the obscured. It’s looking, whenever possible, where no one else has looked before and feeling,
listening, speaking, silencing and giving importance to that which many feel is unimportant.
This project utilized conversations as a methodology, despite admitting that, just as Nilda Alves
states, “as far as method is concerned, I have to begin by admitting that I am always full of
doubt and still have much to learn” (ALVES, 2001. p14). This study uses a theoretical
framework based on the work of Alves, Paulo Freire, Spivak, bellhooks, and others.

Key-words: knowledge networks, rap, narrative, group discussions, youth


LISTA DE IMAGENS

Figura 1 - Cena do filme 'Na Ondas do Break' [Beat Street], de 1984 ........................................ 18
Figura 2 - Foto publicada no Jornal O São Gonçalo, em 26 de novembro de 2001, com alguns
dos primeiros jovens integrantes do Enraizados, dentre eles Dudu de Morro Agudo, Bolinho, K2
e Pluto........................................................................................................................................... 34
Figura 3 - Foto publicada no Jornal O Dia, em 14 de maio de 2006, com alguns dos primeiros
integrantes do Enraizados em Morro Agudo, dentre eles Dudu de Morro Agudo, Velho, Kall
Gomes, Short, Suellen Casticini, Léo da XIII, Lisa Castro e Átomo. ......................................... 35
Figura 4- Jovens participantes do RapLab, durante a campanha Jovem Negro Vivo.................. 42
Figura 5 - Equipamentos utilizados durante a atividade RapLab................................................. 45
Figura 6 - Estudantes experimentando a Mashine ....................................................................... 47
Figura 7 - Estudantes participando do RapLab ............................................................................ 51
Figura 8 - Personagem criado por um dos jovens que participou da atividade, inspirado na roda
de conversa e na composição da música ...................................................................................... 53
Figura 9 - Jovens se apresentando na escola enquanto outros alunos assistem .......................... 67
Figura 10- Jovens participantes do RapLab cantando no show ................................................... 88
Figura 11 - Encontro RapLab na Gávea ....................................................................................... 94
Figura 12 - Meninas gravando durante o RapLab ........................................................................ 98
Figura 13- Mad, DMC e Simone Oliveira, no Quilombo Enraizados. Novas histórias sobre o hip
hop na Baixada Fluminense ....................................................................................................... 100
SUMÁRIO
INTRO ..................................................................................................................................... 10

TRACK 01 - HISTÓRIAS DO HIP HOP ............................................................................ 16

TRACK 01:01:00 – O HIP HOP NA BAIXADA FLUMINENSE ...................................... 21


TRACK 01:02:00 - EU SOU DE MORRO AGUDO ........................................................... 28
TRACK 01:03:00 - ENRAIZADOS: UMA ESCOLA DE HIP HOP? ................................ 33
TRACK 02 - O RAPLAB COMO UM PROVOCADOR DE CONVERSA PARA UMA
EDUCAÇÃO DEMOCRÁTICA: (COMO TERMINA UMA CONVERSA?) ................. 44

TRACK 02:01:00 - O RAP E A EDUCAÇÃO: QUANDO APRENDER FAZ SENTIDO 54


TRACK 02:02:00 - CONVERSAS E DISPUTAS NO AMBIENTE ESCOLAR ............... 59
TRACK 02:03:00 - TESSITURA DE NOVOS CONHECIMENTOS ................................ 63
TRACK 03 - JOVENS SUBALTERNIZADOS E A ARTE COMO TÁTICA CONTRA
A SUBALTERNIDADE (PESQUISADOR E MILITANTE) ............................................ 69

TRACK 03:01:00 – A LINGUA: DANDO UM PAPO DIRETO E RETO ......................... 84


TRACK 03:02:00 – AS PRETAS E OS PRETOS ............................................................... 90
SAMPLEANDO ...................................................................................................................... 99

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 103


INTRO
RIO 2017

NA BAIXADA HÁ DECADÊNCIA NO TRANSPORTE,


ESQUECIMENTO JÁ É NATURAL NA ZONA "MORTE"
O CAOS IMPERA E PRA GENTE NINGUÉM LIGA
JUVENTUDE PERTURBADA NÃO SABE SE É DANDARA OU FRIDA.

SOFRIDA. ÀS QUATRO A DONA MARIA NO JAPERI


VIDA CORRIDA. TRAMPAR OU SORRIR?
UPP TÁ AÍ, TEMOS QUE DISCUTIR.
VEIO PROTEGER OU PRA TIRAR MINHA VIDA?

A POLÍCIA ESCULACHA SEM DÓ, E O PIOR, O B.O.


TEM GENTE QUE DUVIDA.
O BOYZINHO TÁ NA PRAIA SOB O SOL DO SAARA
OS HOMENS [POLICIAIS] ME PARAM COM O CANO NA CARA

LEMBRA O FATO? 174. RETRATO. CENTRAL.


CANDELÁRIA, NOVA IGUAÇU, VIGÁRIO GERAL

UM RIO DESIGUAL ENTRE O ÓDIO E O AMOR


2017 E AQUI NADA MUDOU.

NADA MUDOU, SANGUE NA VIELA


MAIS UMA MORTE, CHORO NA FAVELA.
A AMBULÂNCIA NÃO SOCORREU
NÃO RESISTIU, ELE FALECEU.

DESDE MENOR ACOSTUMADO


CARICATURA, RETRATO-FALADO
REALIDADE DIFERENTE DA TV
NÃO É O QUE ELES MOSTRAM PRA VOCÊ

DIFÍCIL CRESCER ENTRE MONSTROS, FAZENDO O BEM,


E NÃO SE CORROMPER.
POLÍTICO ROUBA MERENDA, SER CONDENADO É LENDA.
SEGURANÇA É MAIOR CAÔ, OS CANAS BATEM EM PROFESSOR.

10
E AÊ DOUTOR ENGRAVATADO, ANDA DE CARRO IMPORTADO
ROUBA O DINHEIRO DO POVO E EU PEGO O BUSÃO LOTADO.
CHEGA!!! NÃO VOU MAIS ME OMITIR
VOU CUSPIR TUDO O QUE EU GUARDO, CÊS VÃO TER QUE ME ENGOLIR.

Dei muitas voltas pra começar a escrever esta introdução, não sabia como e
por onde começar, pois são muitas as ideias permeando minha cabeça simultaneamente
para encontrar uma forma de apresentar este início de pesquisa.
Optei pela redundância de começar pelo começo, do que primeiro me veio à
cabeça, soltando os fios um a um, tentando fazer com que aos poucos este mosaico se
torne inteligível, por isso inicio apresentando o trecho de uma música composta
coletivamente por onze jovens (Inbute, Léo da XIII, Soneca, Baltar, Torrxs, Oreo, 15,
Marcão Baixada, Ruiva, Olem X e Einstein NRC) moradores da Baixada Fluminense1 e
da Zona Norte, onde, durante uma roda de conversa, falaram sobre seus bairros a partir
de suas experiências e vivências, orientados pelo desafio de projetar como seria a vida
nestes locais após os Jogos Olímpicos que aconteceram no Rio de Janeiro em 2016.
Durante o processo, esses jovens, que considero importante frisar que não são
quaisquer jovens, mas jovens moradores de periferia, lugares onde os direitos básicos
quase sempre são negados, produziram conhecimento sobre seus bairros, juntos.
Discutiram, disputaram, trocaram, aprenderam e ensinaram uns com os outros,
produziram conhecimento em rede (ALVES, 2005).
Antes de mais nada, gostaria de dizer que me esforcei para escolher um
trecho da música "Rio 2017", mas concluí que apenas um trecho não refletiria a
complexidade da mensagem desta música, por isso preferi deixá-la na íntegra.
Esta música é a sobra da conversa que foi estabelecida entre esses jovens. É o
resultado do que depois de muita disputa, sobrou. É a parte democrática do processo de
aprendizado, onde, se não todos, pelos menos a maioria concordou e assim, só assim,
eternizaram essa discussão na letra desta música. Música esta que é um misto de
sentimentos e significações, ao mesmo tempo que é crítica é um protesto. É também um
grito de socorro, uma homenagem, uma proposta de esperança e um chamamento para a
luta contra toda e qualquer força hegemônica.

1
Baixada Fluminense é o nome que se dá à região em redor do município do Rio de Janeiro, englobando
13 municípios, totalizando cerca de 4 milhões de habitantes.

11
Gostaria de chamar a atenção para o fato de esta ser uma música que só foi
possível ser tecida por esses onze jovens, naquele espaçotempo2. Essa prática, que
provoca a produção do conhecimento em rede através do rap, chama-se RapLab, e são
esses encontros que embolam arte com educação, rua com escola, educandos e
educadores que pretendo narrar no decorrer desta pesquisa, tentando analisar e
responder: De que maneira esta prática compõe coletivamente? Quais os seus efeitos e
desdobramentos?

Seria possível educadores fazerem uma conexão entre essa composição e o


chamado currículo escolar? Os depoimentos de Cleber Gonçalves e de Mariana Paixão,
professores de CIEPs em Morro Agudo, Nova Iguaçu e Cidade dos Meninos, em Duque
de Caxias, após a realização desta atividade em suas escolas, me fazem acreditar que
sim, contudo, não pretendo com esta pesquisa, de forma alguma, considerar o RapLab
como uma atividade mágica que solucionará os problemas da educação no país. Muito
pelo contrário, a ideia aqui é apresentar uma atividade que talvez possa somar com
outras milhares no projeto de educação democrática.

Tento aqui escrever para todos, "narrar a vida e literaturizar a ciência"


(ALVES, 2001), no desejo de que esta pesquisa seja lida e compartilhada por artistas do
hip hop, educadores e educandos, e que possa contribuir de alguma forma com a
comunidade escolar, aproximando a cultura hip hop e a educação, evidenciando que esta
é uma relação intrínseca.

Os primeiros encontros do RapLab dentro das escolas se deram por conta do


convite dos educadores Cleber Gonçalves e Antônio Feitoza, que desejavam
proporcionar uma experiência diferenciada para os estudantes da escola em que
trabalham.

Considero importante também, me apresentar, mesmo que rapidamente, para


explicar o porquê do desejo em trabalhar com o rap nesta pesquisa. Me chamo Flávio

2
No campo dos cotidianos utilizasse comumente palavras escritas de forma aglutinada, como:
‘aprenderensinar’, ‘espaçostempos’, ‘práticasteorias’,entre outras. A professora Nilda Alves nos explica
que:“Para mostrar a única possibilidade de existência desses termos − um tem relação com o outro e só
existe nesta relação – os juntei em uma única palavra.” (ALVES, 2001). “Dessa maneira busca superar a
dicotomia herdada do período no qual se “construiu” a ciência moderna” (ALVES, 2003).

12
Eduardo, sou conhecido no mundo hip hop como Dudu de Morro Agudo, por residir no
bairro Morro Agudo, em Nova Iguaçu. Sou rapper desde os 14 anos de idade e coordeno
uma instituição de hip hop chamada Instituto Enraizados, com sede também em Morro
Agudo, onde são comuns os encontros com - e entre - jovens e a prática de produção
colaborativa.

Inicialmente, quando me veio a ideia de iniciar o mestrado, não pensava em


pesquisar o RapLab como um espaçotempo de produção de conhecimento em rede, pois
acreditava se tratar de uma outra coisa, talvez um método ou uma técnica de
composição (o que também pode ser). A partir do momento que começamos a praticá-lo
também dentro de escolas, passei a acreditar que poderia ser uma ferramenta para
auxiliar os professores e estudantes em suas aulas (o que também pode ser).

Mas ao iniciar a pesquisa fui aprendendo com a ajuda de Nilda Alves, que na
pesquisa com os cotidianos "preciso executar um mergulho com todos os sentidos no
que desejo estudar", além de se fazer necessário "ampliar o que é entendido como fonte
e a discussão sobre os modos de lidar com a diversidade, o diferente e o heterogêneo", e
que "o conjunto de teorias, categorias, conceitos e noções que herdamos da ciência
moderna, são limites" (ALVES, 2001, p.15).

Fazendo o movimento de teoriapraticateoria, mergulhando mais fundo nos


encontros e dialogando com autores como Paulo Freire, que me apresentou a educação
como prática de liberdade, fui percebendo que a riqueza do RapLab está também no
processo, nas conversas, nas diferentes lógicas e nas múltiplas reflexões, na
impossibilidade de definir seu rumo, e que apesar de ter um planejamento, este não é
engessado, possibilitando que os encontros aconteçam sempre de forma diferente,
mesmo que com as mesmas pessoas.

Ouço e leio a todo tempo que nas pesquisas com os cotidianos as certezas não
existem, mas é na prática que você vai percebendo os encantos e desesperos de se
pesquisar com os cotidianos. Tenho aprendido que pesquisar com os cotidianos é se
preparar para os entroncamentos e bifurcações, é caminhar pelo desconhecido. Como
expliquei no resumo, é ir sem saber pra onde está indo e por isso ter de redobrar as
atenções, principalmente nos detalhes, nas sobras. É olhar, quando possível, para onde

13
ninguém quer olhar, é tatear, ouvir, falar, silenciar, dar importância para o que muitos
acham que não tem importância.

Como diz Nilda Alves, "em relação ao método, tenho que começar por
admitir que estou sempre cheio de dúvidas e sobre ele tenho muito que aprender"
(ALVES, 2001. p14), contudo vou me utilizando das conversas com os jovens, cujos
resultados são sempre imprevisíveis.

Nesta pesquisa dialogo com diferentes autores, que pensam a partir de


perspectivas bem diferentes, inclusive são de regiões diferentes, Spivaki, da Índia,
bellhooks, dos Estados Unidos, Paulo Freire e Nilda Alves que apesar de serem do
Brasil, ainda assim tem suas diferenças, entre outros. Nilda Alves se diferencia bastante
de todos eles, onde a bellhooks não tem uma perspectiva marxista, mas dialoga com
Paulo Freire, que é marxista, assim como a Spivaki.

Mas eu acredito, assim como Nilda Alves nos ensina, que precisamos virar de
ponta a cabeça, beber em todas as fontes, pois nos cotidianos a teoria não pode ser
apoio, mas algo que a gente vai além, sendo assim, posso trabalhar com esses autores.

No primeiro capítulo, que tratamos aqui como “Track 01” para fazer alusão a
um termo usado nas produções musicais de hip hop, que serve para enumerar as faixas
musicais de um disco, tento contextualizar a cultura hip hop arriscando fazer de forma
resumida uma apresentação da cultura hip hop desde sua criação, no bairro do Bronx,
em Nova Iorque, nos Estados Unidos, até chegar em Morro Agudo, Nova Iguaçu, no
Brasil, assim como apresentar alguns dos personagens que, segundo a história oficial,
fundamentaram esta cultura. Conto uma das diversas possíveis histórias do hip hop na
região da Baixada Fluminense, as peculiaridades dos bairros de periferia, as táticas
(CERTEAU, 1998) da juventude do hip hop, e o processo de produção do conhecimento
em rede pelos participantes do Instituto Enraizados. Apresento com mais detalhes como
se dá a prática do RapLab e como a pesquisa com os cotidianos foi transformando o
meu entendimento sobre o que era esta prática.

No Track 02 conto como o RapLab foi parar dentro da escola e narro uma
série de encontros com os jovens, onde fui percebendo a horizontalidade nas rodas de
conversa, o protagonismo dos mesmos, as táticas para burlar as regras, além de aprender

14
a valorizar o conhecimento que os estudante traziam de suas vivências; o esforço dos
educadores Cleber Gonçalves e Antônio Feitoza que buscam um projeto de educação
democrática ao criaram maneiras de levar os estudantes para perambular (ANDRADE,
2014) pela cidade, acreditando que o aprenderensinar é possível em toda parte, não
somente dentro dos muros da escola, gerando assim um currículo escolar que vai muito
além do capital cultural (BOURDIEU, 1998).

No Track 03 narro os encontros com os jovens fora do ambiente escolar, e


com a ajuda de Spivaki (2010), tento discutir a arte como tática contra a subalternidade
e se os encontros do RapLab podem potencializar a emancipação desses jovens. Tento
também entender os movimentos da juventude - e o papel do pesquisador - contra a
subalternidade. Também busco com a ajuda de Fanon (2008) e bellhooks (2017) olhar
mais atentamente para as táticas da juventude preta contra o racismo.

15
TRACK 01 - HISTÓRIAS DO HIP HOP
O hip hop, como todo movimento entrelaçado à história da diáspora africana,
carrega consigo muitas histórias em torno da sua criação, localizadas no Atlântico negro
como nos lembra Paul Gilroy (GILROY, 2001). Histórias que não têm origem em um
ponto fixo no tempo e no espaço, mas sempre se encontram. Por isso trarei aqui alguns
personagens da cultura hip hop, que aparecem em várias narrativas difundidas entre os
praticantes desta manifestação cultural.

No filme documentário Hip Hop Evolution (2016), o DJ Grand Wizzard


Theodore, do grupo Fantastic Five, narra a sua versão do hip hop, contando que este foi
criado por Kool Herc na década de 70, nos guetos dos Estados Unidos, mais
precisamente no bairro do Bronx:

"No South Bronx, onde morávamos, as pessoas estavam sofrendo. Havia


pais solteiros vivendo da assistência social. As pessoas não trabalhavam,
não havia empregos. Não dava pra ir em certas áreas. Nessa, naquela...
Havia assassinatos, assaltos. Pessoas eram mortas pela polícia, pessoas
pegando prisão perpétua. Era aquele ponto de ebulição de dar à luz a
alguma coisa do nada. E de toda a turbulência e agitação, nasceu o hip
hop".

Kool Herc nasceu em Kingston, Jamaica, e foi morar em Nova Iorque, nos
Estados Unidos, no fim dos anos 60. Ele já trabalhava com música em seu país de
origem, onde os Sound Systems eram comuns. Os Sound Systems são equipes de som
compostas por grandes caixas de som empilhadas, muito parecidas com as equipes de
som dos bailes funks da década de 90 no Rio de Janeiro.
Em Nova Iorque, Herc começou a levar a cultura jamaicana para as ruas do
Bronx, sendo, segundo esta narrativa, o responsável pelo surgimento das Block
Parties3, da popularização dos Sound Systems e da inserção dos toasters nas suas
festas. Os toasters eram os mestres de cerimônia, os artistas responsáveis por
apresentar as atrações e animar as festas, muito comuns na Jamaica, eles rimavam
sobre assuntos polêmicos como sexo, drogas e a violência nas ruas de Kingston
(LEAL, 2007, p.20-28).
Kool Herc, ainda segundo a narrativa do documentário, também foi o
responsável por uma técnica performática, utilizando dois discos vinis idênticos, onde
ele mixava as músicas num loop, dando a impressão de uma música instrumental
3
Block Parties são festas de rua.

16
infinita. Ele batizou essa técnica de breakbeat, técnica esta que em seguida foi aderida
por vários outros DJs, como Grandmaster Flash e Afrika Bambaataa. Este último foi
considerado o responsável por unir os quatro elementos que caracterizam esta
manifestação cultural: o rap, o break, o DJ e o graffiti. Segundo consta na história
oficial, Bambaataa foi também quem batizou esta manifestação com o nome de hip
hop.
A narrativa difundida pelo documentário conta ainda que em 1973, Kool
Herc fez a festa de aniversário de 16 anos de sua irmã, sendo esta considerada a
primeira festa de hip hop do mundo, tornando-se manifestação muito popular no
Bronx.
No dia 12 de novembro do mesmo ano, o DJ Afrika Bambaataa fundou a
Universal Zulu Nation, considerada por muitos como a primeira organização de hip
hop, cujo objetivo era promover encontros, palestras e aulas, com o intuito de
transformar positivamente o comportamento dos integrantes das gangues de rua
(LEAL, 2007).
Ainda seguindo esta narrativa cronológica, Sérgio Leal (2007), também
conhecido no hip hop brasileiro como DJ TR, conta que em 1983, o break dance, um
estilo de dança vindo do Bronx, chegou em São Paulo, e um ano depois, a partir
também da estréia do filme "Na Onda do Break" nos cinemas, se espalhou por todo o
Brasil, tomando conta do imaginário de parte da juventude. "Em solo brasileiro [...] os
nomes que primeiro saltam à língua quando se quer falar de continuadores do hip-hop
afro norte-americano são Nelson Triunfo, Thayde e DJ Hum, Ataliba e a Firma e
Racionais MCs” (MESSIAS, 2015, p.26).
Conforme nos conta Cesar Alves (2004), Nelson Triunfo nasceu em
Pernambuco, mas na década de 70 morou na Bahia, no Distrito Federal e em São
Paulo, onde, após se envolver com a soul music, formou o grupo Black Soul Brothers e
logo depois formou o grupo de dança Funk & Cia.

17
Figura 1 - Cena do filme 'Na Ondas do Break' [Beat Street], de 1984

Fonte:Hulle Brasil
Nelson Triunfo, em entrevista cedida ao escritor Alessandro Buzo4, conta a
sua história do início do hip hop no Brasil:
Entre 1983 e 1984, muitos guardas implicavam com a gente, por isso não
tínhamos um lugar definido para dançar, mas geralmente ficávamos na região
central. [...] Na maioria das vezes, ficávamos ali nos arredores das ruas 24 de
maio, Barão de Itapetinga e Dom José de Barros, ali na Praça da República.
Às vezes, dançávamos na Sé. [...] A roda de break nas ruas, cresceu e logo
apareceu na mídia, em jornais e revistas. Ainda em 1984, essa repercussão
levou a gente para a televisão, quando eu e outros b.boys5 participamos da
abertura da novela Partido Alto, misturando movimentos de break com
passos de samba. [...] Em 1985, tive um problema de saúde, machuquei o
joelho e precisei me afastar um pouco da dança. Foi quando o João Break e o
Luizinho, irmão dele, levaram o break para a estação São Bento do metrô. E
ali se formou o embrião do hip hop brasileiro, porque o espaço começou a se
popularizar e a atrair muita gente que hoje é referência nacional, como os
Racionais, Thaide, o Dj Hum, os grafiteiros Osgemeos, o Marcelinho Back
Spin e muitas outras pessoas. (BUZO, 2010, p25-26)

Embora essas narrativas tenham essas datas, elas tem origem e redes muitos
anteriores, como por exemplo em movimentos e manifestações musicais da diáspora
negra da década de 70, como o soul music, que tem a ver com toda a discussão de uma
cultura negra.
Quando esses jovens brasileiros, na década de 80, se aproximaram do break

4 Alessandro Buzo é um escritor, ativista social, colunista, repórter e cineasta brasileiro. Disponível em:
http://editoranos.com.br/nossos-autores/alessandro-buzo. Acesso em: 17 mar. 2019.
5 Bboys são dançarinos de break dance, um dos elementos do hip hop.

18
estadunidense foi porque eles já traziam consigo essa dimensão da corporeidade, de
uma dança negra que foi muito discriminada por estar relacionada ao mexer o corpo,
que data da chegada dos africanos no Brasil, a partir do Atlântico negro, onde “as
formas culturais estereofônicas, bilíngües ou bifocais foram originadas pelos – mas
não mais propriedade exclusiva dos – negros dispersos nas estruturas de sentimento,
produção, comunicação e memória (GILROY, 2001, p.35)”.
Essas histórias do hip hop tem a ver com demandas de corporeidade, de
musicalidade, que são bem anteriores a chegada do hip hop oficialmente no Brasil na
década de 80, com raízes na diáspora negra.
A estação de metrô São Bento, em São Paulo, hoje é considerada pelos
praticantes como o berço do hip hop brasileiro, onde além da dança, se desenvolveram
também os outros elementos do hip hop, como o graffiti, o DJ e o rap, e onde, como já
foi dito, pela ótica da história oficial, iniciaram os pioneiros do hip hop no país, como
Thaíde, que começou sua carreira como dançarino de break e depois migrou para o
rap, atualmente também é apresentador de TV.
[Na] década de 1980, o adolescente Altair Gonçalves [que mais tarde
assumiria como nome artístico Thaíde] despertou de sua sonolência graças
à chamada de uma reportagem no já tradicional Comando da Madrugada
[...]. Do alto do beliche no barraco que dividia com seus pais, mais três
famílias, várias crianças e cachorros [...]. A reportagem tinha como tema
um dos hoje clássicos bailes blacks que aconteciam nos anos 70 e 80. No
centro, um grupo formava uma roda onde exibia um verdadeiro espetáculo
de movimentos robóticos e bem ensaiados, tendo à frente uma figura de
sotaque nordestino e ostentando uma enorme cabeleira blackpower [Nelson
Triunfo] (ALVES, 2004, p7-8).

Percebe-se que o hip hop aparece tanto no Bronx quanto em São Paulo
como uma possibilidade de protagonismo para os jovens das periferias e rapidamente
vai se espalhando em rede, conectando outros e outros jovens, que juntos treinam,
ensinam e aprendem as técnicas de dança, DJ, graffiti e rap.
Ele se espalha justamente porque se conecta às redes desses jovens, que são
anteriores a uma invenção do hip hop, que tem a ver com essa relação diaspórica.
No Rio de Janeiro, no início da década de 90, o hip hop ganhou maior
projeção a partir do rap, com a criação da ATCON (Associação Hip Hop - Atitude
Consciente).
Em 1992, no Rio, organizara-se pela mobilização popular e contra o
racismo, a ATCON - Associação Atitude Consciência e daí surgiu o grupo
Consciência Urbana, liderado por Big Richard; NAT; Poesia Sobre Ruínas;
Damas do Rap; Filhos do Gueto; Gabriel O Pensador e Geração Futuro,

19
liderada por MV Bill. (MESSIAS, 2015, P.26)

Essa é uma dentre tantas outras histórias, mas achei importante resgatar um
pouco dessa dimensão para fazer o movimento de pensar o hip hop na Baixada
Fluminense.

20
TRACK 01:01:00 – O HIP HOP NA BAIXADA FLUMINENSE
É um desafio enorme fazer uma história do hip hop na Baixada Fluminense,
quase uma aventura, visto que a história dita oficial sobre o hip hop no Estado do Rio
de Janeiro, que foi publicada em alguns livros e revistas, não passa por esta região. Se
resume, como foi dito no capítulo anterior, na criação da ATCON nos anos 90, na
cidade do Rio de Janeiro. É bom lembrar que a ATCON tem sua importância,
principalmente enquanto movimento político, contudo “sua característica se baseia
quase que 100% no elemento rap (LEAL, 2007, p.50)” e assim as histórias do hip hop
na Baixada Fluminense ficaram mais uma vez à sombra do Rio de Janeiro.
Tive que mergulhar em águas profundas para fazer essa conexão com o
passado. Para isso precisei conversar com pessoas que viveram os primórdios do hip
hop na Baixada Fluminense e que ainda hoje estão em atividade, praticando suas artes.
São eles: Wladimir Augusto Silva de Souza (Mad) 50 anos; Luiz Cláudio Pontes os
Santos (Slow da BF), 46 anos; Julio Cesar de Oliveira da Silva, (DJ Moska) 40 anos;
Fagner Medeiros de Lima (FML), 37 anos.
A ideia aqui é tecer uma narrativa, de forma cronológica, a partir das
conversas que tive individualmente com esses importantes personagens, e então
montar o mosaico a partir das interseções destas conversas até conectar com a tal
história oficial, em meados dos anos 90.
Inicialmente eu queria pensar essa historia única, entretanto a conversa com
eles me ajudou a entender que esta não existe, pois a cada passo que eu dava em
direção ao passado do hip hop na Baixada Fluminense, que em parte é meu passado,
eu o via em movimento.
Abri mão de tentar tornar esta a história oficial do hip hop da Baixada
Fluminense, para torná-la mais uma das histórias, porque para além de uma única
história há uma série de pessoas que estão trabalhando para que essas manifestações
culturais aconteçam.
Entendi os perigos da “história única, que cria estereótipos. E o problema
dos estereótipos não é que eles sejam mentira, mas que eles sejam incompletos. Eles
fazem uma história tornar-se a única história” (ADICHIE, 2009).
Sendo assim, durante as conversas fui guiado de volta ao passado e logo no
início garantiram-me que é quase impossível saber quem realmente foi o precursor ou
quem foram os precursores do hip hop na Baixada Fluminense, assim como é

21
impossível afirmar, ainda que haja uma narrativa oficial, que a origem geográfica do
hip hop está no Bronx ou em qualquer outro lugar, pois assim como toda a música
negra, a origem é diaspórica, se dá no Atlântico negro (GILROY, 2001).
Se o processo de educação se dá em rede, entendo então que um foi
aprendendo com o outro, entendendo com o outro, ouvindo o outro, se auto
influenciando, e ainda que o Bronx tenha sido muito importante, as influencias de
outras temporalidades e de outros espaços geográficos para o desenvolvimento do hip
hop foi muito grande.
Paul Gilroy nos conta que
“a cultura hip hop foi fruto mais da fecundação cruzada das culturas
vernaculares africano-americanas com seus equivalentes caribenhos do que
do florescimento pleno formado das entranhas do blues. O catalisador
imediato para o seu desenvolvimento foi a relocação de Clive “Kool DJ
Herc” Campbell de Kingston para a rua 168 no Bronx. A dinâmica
sincrética da forma foi ainda complicada por uma contribuição claramente
hispânica e uma apropriação dos movimentos de break dance que ajudaram
a definir o estilo em seus estágios iniciais” (GILROY, 2001, p.211)

Na Baixada Fluminense não foi diferente, pois se hoje é difícil transitar por
este extenso território por conta da precariedade dos transportes públicos, imaginemos
como era difícil também a comunicação entre esses jovens no início dos anos 80,
período que eles narram suas histórias. Acreditam que certamente existiram jovens,
como eles à época, em bairros afastados, praticando isoladamente um dos elementos
do hip hop, sendo influenciados por suas redes e demandas, por que o hip hop chegava
nas juventudes por diversas vias, desde as escolas, os bailes, os novos vizinhos e
parentes vindos de outras cidades, fita k7, VHS e TV a cabo para os mais abastados.
O DJ, o break e o rap chegaram na Baixada Fluminense pelas vias musicais,
de forma separada, e por último chegou o graffiti.
No início dos anos 80, segundo Mad, a ideia do hip hop difundido nos
Estados Unidos, com quatro elementos, ainda não era tão popular por aqui, apesar da
juventude brasileira já se relacionar com eles. No fim dos anos 80, com a
popularização dos discos lançados em São Paulo, ficou mais nítido que, nos Estados
Unidos, esses quatro elementos faziam parte de uma mesma cultura.
Mad, morador do bairro Chatuba, em Mesquita, no passado dançou break e
cantou rap. Atualmente é formado em produção cultural no Instituto Federal do Rio de
Janeiro e pesquisa o movimento soul na Baixada Fluminense. Conta que uma das

22
poucas diversões para os jovens da Baixada Fluminense nos anos 70 era o baile soul,
mas que ele chegou no baile já na virada do soul para o eletrofunk, em 1982.
A primeira vez que eu cheguei no baile devia ser meado de 82, tinha um
grupo de dança que eu não esqueço o nome, era Dance Funk New [...]
Tinha um concurso de dança que movimentava a cidade, no Mesquita
Futebol Clube, [...] Vinha grupo de diversos bairros dali de Mesquita, da
Chatuba, da Coréia, de Banco de Areia, de Santo Elias, que iam disputar
entre si ali e iam ganhar o troféu, não vou dizer do melhor, mas o destaque
do momento. [...] E eu entrei no baile e eles dançavam um passe, e num
determinado momento da música eles param o passe e começam a dançar
[como] um robô, meio arcaico, muito arcaico. Aí quando eu vi esse robô,
que já era um prenúncio do break, eu fiquei muito impactado com aquilo.
[...] A minha mãe perdeu a gente naquele momento, eu e meu irmão
entramos no baile uma noite e dali pra frente a gente passou nossa
juventude indo pra esse baile que era o Mesquita Futebol Clube. [...] O
eletrofunk trouxe pra nós o primeiro elemento do hip hop, que é o break.
(MAD, 2019)

Slow da BF, que morou em Nilópolis, São João de Meriti e Duque de Caxias
quando criança, começou muito cedo a frequentar as feiras de discos e os bailes porque
seu pai era DJ (é até hoje).

DJ Moska, que morava em Vigário Geral, no Rio de Janeiro, e mudou-se para


a cidade de Queimados ainda criança, nos conta que também teve a influência de um
DJ, mas nesse caso foi o seu tio, que freqüentava os bailes soul e também fez a transição
para o eletrofunk. Todas as músicas que tocavam no baile, também tocavam na sua
casa.

A presença do DJ foi de total importância tanto nesta transição do baile soul


para o eletrofunk quanto nas transições futuras até chegarmos ao modelo de baile funk
no qual o hip hop da Baixada Fluminense foi forjado.

Os DJs de baile não eram como os DJs de hip hop, porque esse sempre foi
uma figura muito difícil. O Mad nos conta que teve vários grupos e nunca teve um DJ.
O DJ que estava inserido dentro do contexto do hip hop era aquele que faz scratch6, que
faz back to back7, que domina as pickups8, isto é, um DJ de performance. Já os DJs de
baile tinham como principal função mixar uma música com a outra e eram eles que
traziam as novidades musicais de fora do Brasil, e um disco bastante importante, que fez
parte da infância e da formação artística tanto do Mad quanto do Slow e do DJ Moska,
foi o disco Planet Rock, do Afrika Bambaata.

É importante ressaltar a importância dos DJs nesse contexto, visto que eles
entendiam as redes e a demandas das pessoas da Baixada Fluminense e a partir daí

6
Scratch é uma técnica utilizada pelos DJs produzir sons ao movimentar o disco de vinil pra frente e pra
trás, arranhando-o com a agulha.
7
Back to back é uma técnica utilizada pelos DJs para repetir um trecho da música a partir de duas cópias
do mesmo vinil.
8
Toca discos.

23
apresentavam músicas que se entrelaçavam com essas redes e que tinham a ver com as
demandas desses jovens.

Os DJs foram personagens fundamentais para o movimento hip hop no Brasil,


contudo sem as demandas da juventude da Baixada Fluminense, sem a história da
música negra brasileira, sem o movimento soul, talvez o hip hop não encontrasse a força
necessária para se desenvolver por aqui, pois ainda que aqui chegue coisas de fora, elas
precisam de alguma forma se relacionar com as nossas redes, pois nossas redes estão
sendo tecidas há muito tempo.

Nos anos de 1984 e 1985 aconteceu no Brasil inteiro a chamada “febre do


break”, por diversos motivos, dentre eles a própria demanda da juventude, mas também
por causa de filmes como o Beat Street9.

Slow da BF chama as pessoas que dançavam break antes dessa data de “foras
da curva”, e o Mad era um “fora da curva”.
Todas essas rodas de break começaram em 84 e 85. Os casos mais raros são
antes disso [...] Todo mundo que fez antes de 84 e 85 era fora da curva. São
as pessoas mais importantes porque eles realmente começaram, por algum
motivo, antes da Febre do Break. O Luck deve ter começado em 84 e 85, mas
em 87 ele já tinha uma crew, já tinha um grupinho. O Genaro também.
(SLOW DA BF, 2019)

Luck, que atualmente mora no Bronx, em Nova Iorque, é considerado hoje


um dos mais importantes nomes do break no Rio de Janeiro, fundou o GBCR (Grupo de
Break Consciente da Rocinha), mas é oriundo do bairro Austin, em Nova Iguaçu, onde
começou a dançar por volta do ano de 1984 e, em 1986 começou a se desenvolver na
dança com a ajuda do Mad, que migrou da Chatuba para Austin, porque os bailes em
Mesquita começaram a mudar o formato, segundo ele, não valorizando mais os
dançarinos de break.
Em 1986 eu vou pra Austin, onde conheço o Luck e o Genaro, conheço o
Punk, o Dionísio, uma galera que dançava em Austin, [...] Parecia que era
outro tempo, quando eu cheguei em Austin. Parecia que eu estava há dois,
três anos atrás, no meu baile [...] nessa época que eu cheguei em Austin o
pessoal já não estava mais dançando break em Mesquita, a gente precisava
procurar outros ares pra dançar, porque não tinha mais referência de break na
minha cidade. A galera já estava naquela onda de trenzinho [...]Quando eu
cheguei em Austin, todo mundo veio falar comigo, aí eu virei pros meninos e
falei: - A gente é famoso aqui hein?! (MAD, 2019)

Em 1987, mesmo antes de saber da existência da cultura hip hop, Slow da BF


começava a arriscar suas primeiras composições de rap dentro da escola. Mesmo os
dançarinos de break e os DJs da Baixada Fluminense que já estavam em atividade, não
identificavam o que eles faziam como elementos que estavam inseridos no modelo de
cultura hip hop norte americana.

9
Beat Street é um filme de 1984 que mostrar a cultura do hip hop de Nova Iorque.

24
Eu era muito bom na escola. Eu fazia redação e ficava pensando, antes de
saber que existia hip hop, que se eu conseguisse colocar rima nas coisas que
eu escrevia, aquilo ia parecer com o que aqueles caras estavam cantando.
(SLOW DA BF, 2019)

A partir de 1988, alguns dançarinos de break começaram também a cantar


rap, e um dos possíveis motivos foi o fato de a “gravadora Eldorado ter lançado a
coletânea Hip Hop Cultura de Rua, revelando grandes nomes do rap nacional, como
Thaíde e DJ Hum (LEAL, 2007, p.154)”. Essa coletânea se espalhou por todo o Brasil e
entrou com força na Baixada Fluminense fazendo com que muitos jovens que
praticavam outras manifestações culturais sofressem uma metamorfose e começassem a
migrar para o rap, como por exemplo o Cacau Amaral, que tinha uma banda punk
fundada em 1985 e então fundou o grupo Baixada Brothers ao lado do DJ DMC, que
por sua vez vinha do skate.

Aconteceram alguns movimentos na cidade do Rio de Janeiro nessa época,


uns encontros na rua da Carioca, liderados pelo DJ Malboro e em seguida na Praça Sans
Pena, na Tijuca, liderados por Def Yuri, e o Mad participou, além desses encontros,
também de alguns encontros da ATCON anos depois.

O primeiro movimento foi na Carioca em 88, depois em 89 aconteceu o


movimento da Sans Pena, e como eu trabalhava na Sans Pena, todo sábado
estava ali dançando e fazendo um som. E eu lembro que foi depois disso que
eu subi num palco pela primeira vez. Num palco de baile funk. (MAD, 2019)

Os bailes funks se tornaram a casa do hip hop na Baixada Fluminense, não


tinha como diferenciar o funk do hip hop. Era tudo uma coisa só. Era lá que os
dançarinos de break se encontravam pra dançar, onde os MCs cantavam suas letras e os
DJs mixavam suas músicas, e o entendimento de que aquilo fazia parte de uma mesma
cultura chamada hip hop ia ficando mais nítido.
Eu comecei a ter noção das coisas quando eu descobri o Thaíde, porque nas
letras dele falava de hip hop. Pra mim, foi o cara que me deu o primeiro start
do que era essa parada. Ele era um B.Boy que cantava rap e tinha um DJ
atuante, e a união dessas coisas que era hip hop. Eu sempre gostei muito de
pesquisar, tinhas as revistas antigas, então eu fui descobrindo o hip hop por
isso, ouvindo disco, o que os caras falavam e pesquisando literatura, em
coisas escritas em jornais e revistas, porque não tinha muita mídia, não tinha
internet e eu não ia pra São Paulo. Lá em São Paulo era muito mais forte que
aqui. (SLOW DA BF, 2019)

Nos bailes funk da Baixada Fluminense, o Miami Bass, isto é, as músicas


mais dançantes, mais rápidas, que segundo a história oficial vinham do sudeste da
Flórida, nos Estados Unidos, era chamado de funk, enquanto as músicas mais lentas,
com batidas arrastadas, que vinham de Nova Iorque, eram conhecidas como “rasteiro”.
Eram as músicas de artistas como o Ice T, KRS One etc, e que hoje há o entendimento

25
de que tanto o Miami Bass quanto o rasteiro, eram somente rap de regiões diferentes dos
Estados Unidos.

Durante a década de 90 houve uma disputa entre os MCs de funk e os MCs de


hip hop, onde os MCs de funk diziam que cantavam rap e os rappers, que eram os MCs
do hip hop, começaram a dizer que cantavam hip hop.

Naquela época a gente tinha que se destacar da galera do funk. Começou a


separar o Miami Bass da galera que fazia o Def, mais pra Nova Iorque. A
galera do funk dizia que cantava rap e a gente dizia que cantava hip hop.
Hoje eu discordo de mim mesmo totalmente, em gênero, número e grau. Era
tudo rap, a galera fazia uma rima, era periférico, era de uma galera preta.
Num momento a gente vai se dividir porque a gente não queria ser igual a
essa rapaziada do funk. (MAD, 2019)

O elemento do hip hop que demorou a chegar na Baixada Fluminense foi o


graffiti, como nos conta Mad:
Mas aqui na Baixada Fluminense a gente não desenvolvia um elemento do
hip hop, que foi o último a chegar, o graffiti. Esse a gente demorou muito a
entender, a gente ouvia falar dessa parada de graffiti, até por que a gente
tinha visto “Beat Street”, que trouxe todos esses elementos, mas no Rio de
Janeiro não existia grafiteiro. O primeiro grafiteiro que eu vi na minha vida
foi o Paulo, que é de Realengo. O cara que começou a pintar, que me fez
entender o que era o graffiti, mas a primeira vez que eu fui em São Paulo, em
1990, já tinha grafiteiro, já tinha os riscos, não com essa intensidade, com
Spray, porque Spray era uma coisa difícil, mas a galera já estava pintando de
uma forma, porque lá tinha esse entendimento e aqui a gente tava boiando
nessas questões dos elementos do hip hop. (MAD, 2019)

O grafiteiro FML, morador de Austin, percebeu os elementos do hip hop


como fios soltos. Começou ouvindo rap no início dos anos 90, em seguida conheceu a
pixação dentro de escola e só então foi conhecer o graffiti, através de uma reportagem
no Jornal O Dia, sobre o grafiteiro Fábio Ema, de São Gonçalo, mas FML nos conta que
ainda não tinha noção do que era o hip hop.

Ouvia rap, mas não tinha noção do que era o hip hop, até eu começar a
conhecer essa questão do graffiti em si, que foi através de uma matéria que
saiu com o Fábio Ema no jornal. Aí me deu certeza de que eu queria fazer
aquilo, eu só não sabia como. Eu achava legal que a ferramenta que era
utilizada era o spray, a mesma da pixação, só que aquilo ali, o graffiti,
agregava pra comunidade onde ele morava e eu queria fazer algo pela minha
comunidade também. (FML, 2019)

A partir da segunda metade dos anos 90 o hip hop se alastrou pela Baixada
Fluminense fazendo emergir uma série de artistas e grupos organizados que estão em
atividade até hoje. Grupos estes que tiveram acesso a filosofia do hip hop norte
americano e então adaptaram às suas realidades e começaram a buscar novas formas de

26
valorização para região em que viviam, inclusive através de seus nomes artísticos e de
seus grupos, como podemos citar os grupos Fator Baixada, Da Baixa e Baixada
Brothers, além do coletivo M2HBF (Movimento Hip Hop da Baixada Fluminense) e o
próprio Slow da BF, onde BF significa Baixada Fluminense, que até o ano de 1994 era
conhecido como MC Cacau e cantava funk nos bailes de Duque de Caxias.

FML nos conta que antes dele, já havia muitos grafiteiros atuantes na Baixada
Fluminense, como o Dante, de Mesquita, o KDO, de São João de Meriti, entre outros,
mas o que chamou sua atenção foi uma conversa que teve com o Luck no ano de 2017.

É até engraçada uma conversa que tive com o Luck, ele dizendo pra mim que
morou em Austin, que começou a dançar break em Austin. Algumas pessoas
que [...] começaram a dançar com ele, são meus vizinhos. É muito
interessante quando a gente começa a descobrir a potência da Baixada
Fluminense, quando se ouve falar de hip hop, de berço do hip hop no Rio,
todo mundo fala de Lapa, mas aí você começa a descobrir que a área que
você mora também é uma potência bem grande dentro do hip hop [...] e hoje
eu tenho o prazer de conhecer esse cara. (FML, 2019)

Há muito o que narrar desta história, que volto repetir, é uma história entre
várias outras, com muitas disputas, conquistas e conflitos. Mas esta pesquisa tem
outras pretensões, que buscam percorrer o movimento hip hop que pulsa na prática
RapLab, nascida em Morro Agudo, Nova Iguaçu. Por este motivo, preciso me
apresentar, reconhecendo junto aos Estudos com os Cotidianos, que pesquisa pode ser
feita em primeira pessoa.

27
TRACK 01:02:00 - EU SOU DE MORRO AGUDO
Nasci e cresci em Morro Agudo, bairro da cidade de Nova Iguaçu, na
Baixada Fluminense. Na adolescência, não conhecia outros lugares senão por filmes,
então achava que as atrocidades que aconteciam no meu bairro eram normais. Hoje,
lendo como era a vida no Bronx, em Nova Iorque, percebo que não era muito diferente
da nossa vida em Morro Agudo quando eu conheci o hip hop. O rapper GOG, em
1994, já tinha razão quando dizia na música "Brasília Periferia" que: "Periferia é
periferia em qualquer lugar, é só observar".
Mas afinal de contas, o que é periferia? Recorro aos trabalhos de Tiaraju
D´Andrea (2013) e Giselle Tanaka (2013) para refletir um pouco mais sobre esta
palavra que habita a fala do rap, que é bem entendida por quem é habitado por ela, mas
que talvez possa gerar dúvidas no meio acadêmico. Como nos alerta D`Andrea (2013),
este termo, publicizado no Brasil das últimas décadas, é polissêmico e “escorregadio
em sua definição” ( D´ANDREA, 2013, p.35).
Para Tanaka (2013, p.23) o termo periferia começou a ser utilizado pela
academia a partir da década de 70, o que segundo D’Andrea (2013, p.35-44) seria para
descrever “o fenômeno urbano e social” que acontecia na cidade de São Paulo, onde o
termo foi utilizado com maior profundidade e escala. Contudo, afirma ainda que a partir
dos anos 90, o termo passou do campo da ciência ao campo da produção artística, onde
foi então resignificado sobretudo pelos jovens de periferia “que potencializaram a
utilização desse termo, já com outros significados e figurações”. Em seguida, o termo
foi resignificado pela indústria, por volta do ano de 2002, através de filmes como
Cidade de Deus (2002).
Para estes autores, "a construção do que se convencionou chamar de periferia
urbana [...] é uma obra coletiva que foi sendo materialmente construída à margem dos
processos formais de produção da cidade, regulados pelo estado" (TANAKA, 2006,
p.23), isto é, "os bairros e cidades dormitório, onde predominam residências de
população pobre trabalhadora" (TANAKA, 2006, p.45), que “incapaz, pelos baixos
salários, de arcar com um aluguel ou de adquirir uma habitação em locais providos de
serviços urbanos[...] tem como única opção a autoconstrução na periferia" (TANAKA,
2006, p.46).
Na década de 90, jovens artistas da cultura hip hop como os Racionais MCs,
Thaide e GOG, contribuíram para resignificar e ampliar o conceito de periferia, pois o

28
"cerne da preponderância do discurso deste movimento cultural foi, sem dúvida, o fato
de falarem da periferia sendo moradores de periferia. O falar 'de dentro' foi utilizado
como recurso para relativizar outros postos de observação" (D’ANDREA, 2013, p.46).
Este falar de dentro, muitas vezes denunciava, trazendo visibilidade para os
problemas que somente os moradores desses locais conheciam, ao mesmo tempo que
criava uma nova narrativa, pois "[...] o movimento artístico foi um dos que melhor
catalisou as impossibilidades da política, passando a fazer política por meio da atividade
artística, consolidando periferia como um modo compartilhado de estar no mundo"
(D’ANDREA, 2013, p.45).
Em 1994, como já foi dito, o rapper brasiliense GOG, narrava em sua música
‘Brasilia Periferia’ que a “periferia é periferia em qualquer lugar, é só observar. Baú
sempre lotado, vida dura, cheia de sonhos. Não importa, seja no varejão, na Agrovila
ou em Santo Antônio, periferia cresce todo dia, já se perdeu de vista” (GOG, 1994).
Alguns anos depois, já em 1997, o grupo Racionais MCs, na música
‘Periferia é Periferia (Em qualquer lugar)’, sampleia, isto é, utiliza trechos de outros
grupos de rap para produzir uma nova música, e faz o seguinte refrão para descrever o
bairro do Capão Redondo, em São Paulo: “Aqui a visão já não é tão bela, não existe
outro lugar, periferia, gente pobre” (RACIONAIS MCS, 1997).
E por último, o rapper Thaíde, em 2000, na música ‘Sangue Bom’ faz uma
comparação que converge com a que faço no início deste capítulo, quando comparo o
bairro do Bronx, em Nova Iorque, com Morro Agudo, em Nova Iguaçu: “o problema
que tem na sul, também tem na leste, é o mesmo da norte, igual o da zona oeste [...] por
isso não tem essa de área melhor e pá, periferia é periferia em qualquer lugar”
(THAIDE E DJ HUM, 2000).
Foram músicas como essas que contribuíram para que os jovens de periferia,
principalmente os praticantes da cultura hip hop, tivessem um olhar diferenciado e mais
atento para os bairros em que moravam, e a partir de então era uma prática comum, falar
de suas comunidades, às vezes denunciando as mazelas, outras vezes exaltando as
especificidades do local, coisas que somente os crias10 podem dizer, pois, como diz
Racionais MCs (1997): “só quem é de lá sabe o que acontece”.
É importante dizer que apesar de ter tido uma infância e adolescência

10
“Cria” é uma gíria usada nas periferias do Rio de Janeiro para descrever que alguém nasceu, cresceu e
por isso conhece as especificidades de determinado local.

29
recheada de acontecimentos prazerosos, ao lado de pessoas incríveis - e por isso
inesquecíveis, experienciando atividades que talvez só pudessem ter sido vividas nas
ruas de Morro Agudo, também não é possível negar que no final da década de 80 vivi
experiências não tão legais na rua em que morava. Na minha adolescência, vi alguns
amigos se envolverem com as drogas consideradas ilícitas. Em pouco tempo, estavam
comercializando e em seguida matando uns aos outros.
Há um rapaz no bairro que viu o seu melhor amigo ser assassinado. Ele
estava ao seu lado quando o mesmo tomou uma saraivada de tiros. O assassino? Um
outro amigo de infância. Mais de uma década depois, ele desenvolveu síndrome do
pânico, e segundo os familiares, o médico disse que não foi simplesmente por ele ter
presenciado a morte de um amigo, mas por ele não ter cuidado do trauma.
Eu certamente fui um privilegiado, pois meus pais, apesar disso tudo, ainda
tinham como prioridade os meus estudos. Entretanto, eu tinha diversos problemas com
a escola. Na escola onde estudei toda a minha infância e adolescência, como era uma
das únicas escolas particulares e mais caras do bairro, havia muitos alunos da classe
média de Morro Agudo, a maioria meninas e meninos brancos. Quase ninguém da rua
em que morava estudava nela, então eu era um dos únicos alunos pretos da escola e
sofria uma perseguição sem fim. Era oprimido diariamente por causa da minha cor, do
meu cabelo, e outras coisas mais. Dificilmente eu tentava resolver com conversa,
quase sempre resolvia com briga, o que me colocava, na visão dos profissionais da
escola, como um dos alunos mais indisciplinados daquele lugar.
Diariamente pensava em formas diversas de como não ir para a escola.
Inventava com frequência histórias de que estava passando mal, até que um dia bolei
um plano, como contei em um trecho do livro que escrevi:
Quando criança, eu era sempre o primeiro lugar na escola, até que cheguei
na sexta série e comecei a desandar. Em 1990, com apenas 11 anos de
idade, gazetei aula por quase um ano, foi inevitável a reprovação. Minha
mãe, que sempre acompanhava minhas presenças na escola através dos
carimbos na caderneta escolar, não desconfiava das minhas travessuras
porque eu mandei fazer um carimbo de presença idêntico ao da escola.
(DUDU DE MORRO AGUDO, 2010, p.22)

Minha mãe era severa, sempre que eu saía da linha a correção vinha em forma
de uma surra. Acho que essa foi a última vez que apanhei. Ela me disse que não me
bateria mais. Daí comecei a pensar táticas (CERTEAU, 1998) para que tanto os
professores quanto os alunos começassem a me dar uma trégua. Uma dessas táticas era

30
ocupar meu tempo criando músicas sobre o conteúdo das aulas que eu não entendia
bem. Isso às vezes me rendia boas notas. Próximo a data das provas eu ensinava outros
alunos a compor, mas o resultado não era tão bom pra todos, contudo essa aproximação
melhorava minha relação e convivência com eles, além de ser bastante divertido.
Eu escrevia sobre tudo o que me angustiava. Na minha família não havia
artista, a gente não ia a cinema, teatro, museu etc. Meu único contato com a arte eram os
discos que meu pai ouvia dentro de casa, discos de Tim Maia à Roberta Miranda. Até
que conheci o Funk Carioca em 1993, e me apaixonei pelo ritmo, pelas letras e pelos
artistas, que eram jovens iguais a mim.
Em 1993, o funk carioca ficou muito forte e presente na minha vida, e
comecei a arriscar algumas composições. Justamente quando ele deixa de
aparecer nas páginas culturais dos jornais e passa a frequentar as páginas
policiais. Creio que esse foi meu primeiro contato com a produção de arte:
fazer letras de música. O processo de criação me fascinou, e depois que vi
minha letra de rap pronta tive vontade de mostrar para alguém, mas sentia
muita vergonha (DUDU DE MORRO AGUDO, 2010, p.30).

Conheci o rap em 1994, através de uma fita cassete, bastante influenciado


pelas letras dos raps de artistas como o Gabriel O Pensador, Racionais, GOG e Thaíde,
como conto em um outro trecho do livro "Enraizados: os híbridos glocais11":
Nesse mesmo ano, 1994, eu saí do lava-jato porque estava pleiteando fazer
um estágio na Petrobras Distribuidora. O meu tio Humberto trabalhava lá e
estava me ajudando a conseguir uma vaga. Nessa época [eu] ouvia muito
rap, GOG, Thaíde, DJ Hum e não posso esquecer do Consciência X Atual.
Tudo era na base da fita cassete. Lembro que fui numa excursão pra
Lambari, em Minas Gerais, e um moleque, achando que eu morava por lá,
me emprestou uma fita do CXA (Consciência X Atual). Eu trouxe pro Rio e
mostrei pro Luciano[...] e a partir de então começamos ouvir somente CXA.
(DUDU DE MORRO AGUDO, 2010, p.45)

Como outros adolescentes negros, pobres, moradores de bairros de periferia,


bairros estes que eram retratados pela mídia hegemônica como local violento, tinha
diversos problemas para me relacionar com o mundo, por conta do racismo, da
desigualdade social, da falta de oportunidades, da escassez de opções de cultura e lazer, entre
outras coisas.
Tive muitas das respostas que buscava ouvindo os raps de grupos como
Racionais MCs, grupo este formado também por jovens que moravam em um bairro
violentado, neste caso o Capão Redondo, bairro da periferia da Zona Sul de São Paulo.

11
Na expressão de Robertson (2000): glocalização, processo que expõe a complementação e a unidade
entre as pressões globalizantes e as locais. Enraizado na rede rizomática: simultaneamente, local e global
– ação política local e produção cultural global. (AGUIAR e SCHAUN, 2010).

31
Passei a utilizar o termo "bairro violentado" ao invés de "bairro violento"
quando ouvi a explanação de um amigo, o ambientalista Carlos Leandro de Oliveira,
conhecido internacionalmente como Carlos Greenbike, morador da cidade de
Queimados. Em forma de crítica, Greenbike chama atenção para a violência sofrida
pelo bairro, quando o mesmo foi citado no Atlas da Violência de 2018 como a cidade
mais violenta do país.
Falando da periferia violentada, os Racionais relatavam seus cotidianos e
suas táticas de sobrevivência, denunciavam a violência policial, o descaso do poder
público e as diversas mazelas que viviam, mas também contavam as histórias do povo
preto, e a partir daí eu começava a sentir orgulho ao invés de vergonha da minha cor e
da história dos meus ancestrais. A partir da narrativa de suas músicas, outros jovens
como eu, de outras periferias espalhadas pelo Brasil, começavam a olhar para o seu
bairro de forma diferenciada. A juventude pobre brasileira experimentava uma espécie
de catarse coletiva. As letras de rap nos convidavam a refletir sobre nossa condição e a
partir daí, começávamos a criar novas letras de rap que se conectavam com outros
jovens. Então o hip hop, a partir do rap (e de outros elementos, mas de outras formas)
foi capaz de tecer uma grandiosa rede de produção de conhecimento entre esses jovens
que viviam em situações de subalternidade.
Com 18 anos de idade comecei a interagir com outros jovens artistas de
diversas partes do Brasil e aos poucos íamos aprendendo a lidar com o mundo e
consequentemente relatávamos essas experiências em nossas músicas, afim de
registrar o nosso ponto de vista sobre aquele espaçotempo.

32
TRACK 01:03:00 - ENRAIZADOS: UMA ESCOLA DE HIP HOP?
Vinte e seis anos depois que Kool Herc deu início ao hip hop no Bronx, foi
criado o Movimento Enraizados, em Morro Agudo, Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, atual
Instituto Enraizados, para conectar jovens de periferia que praticavam as artes
integradas do Hip Hop (DJ, Break, Rap e Graffiti).
Em 1999 eu [Dudu de Morro Agudo] já escrevia umas letras de rap e tinha
ouvido alguns grupos como Thaíde e DJ Hum e GOG, mas não sabia nada
de hip hop, então decidi criar uma maneira de conhecer umas pessoas que
me ensinassem o que era essa cultura. Eu tinha receio de dizer que não
conhecia ninguém e as pessoas não me aceitarem, então comprei uma
revista e escrevi três cartas para uns endereços que havia na última página
da revista, dizendo que fazia parte de uma organização de hip hop chamada
Movimento Enraizados, mas na verdade essa organização só existia na
minha cabeça. As cartas foram para o Rodrigo Dimenor, de São Paulo, para
o Cassiano Pedra, da Paraíba e para o Gil BV, do Piauí. (BUZO, 2010,
p.179)

Assim nasceu o que hoje é o Instituto Enraizados, a partir de três cartas


enviadas para jovens de três estados brasileiros. Aos poucos, jovens como o Dinho K2,
o Bolinho, o Fiell e o Wilson Nenem foram se conectando ao Enraizados e uma nova
rede de juventudes começou a ser tecida. Inicialmente, mesmo sem saber o que era o
hip hop, a gente seguia a mesma lógica das outras organizações de hip hop que
apareciam pelo mundo, pois nossos “objetivos básicos se desdobravam em três: criar
uma agradável diversão e uma arte séria para os rituais dos jovens; criar novas
maneiras de escapar da miséria social; e explorar novas respostas para significado e
sentimento em um mundo dirigido pelo mercado” (DARBY, D., & SHELBY, T.,
2016, p.15).
Antes de o Enraizados se firmar em Morro Agudo fisicamente, a instituição
era um tanto quanto virtual, conectava pessoas através de um site na internet. Depois,
lentamente, os artistas começaram a propor e participar de atividades.
Tudo pra mim era muito novo, cada momento era um grande aprendizado,
até que comecei a procurar artistas de hip hop no meu bairro, mais precisamente
rappers, e para meu espanto já existiam muitos, como o Kall Gomes e Dr Jack, do
grupo Fator Baixada; a Lisa Castro e o Átomo, do grupo Ultimato a Salvação, e o
precursor do hip hop na Baixada Fluminense, Genaro, conhecido como B.Boy Gero,
que foi responsável pela iniciação de muitos jovens na cultura hip hop.

33
Figura 2 - Foto publicada no Jornal O São Gonçalo, em 26 de novembro de 2001, com alguns dos
primeiros jovens integrantes do Enraizados, dentre eles Dudu de Morro Agudo, Bolinho, K2 e Pluto.

Fonte: Jornal O São Gonçalo


Começamos a nos reunir em praças, realizar festas nas ruas, elaborar
fanzines e produzir discos. As pessoas estranhavam a forma como nos vestíamos,
sempre com roupas muito largas, imitando os jovens de São Paulo, que por sua vez
imitavam os jovens norte americanos.
A maneira como os jovens do hip hop - e consequentemente do Enraizados -
se comportavam, se relacionavam e se expressavam, na época, ia na contramão do
12
padrão hegemônico. Da mesma forma que o movimento dos jovens do Rolezinho
(PINHEIRO-MACHADO e SCALCO, 2010), no final de 2017, causou desconforto na
classe média ao marcarem seus encontros nos Shoppings das grandes metrópoles, os
jovens do hip hop causavam estranheza com sua forma de vestir e se comportar num
local elitizado.
Guardadas as devidas proporções e diferenças, em ambos os casos, os
protagonistas eram, em sua essência, jovens negros e moradores de periferias urbanas.
Por causa desses comportamentos fora do padrão hegemônico e de uma forma
peculiar do fazer artístico, o hip hop e seus integrantes foram vistos durante anos
somente como problema. Por conta disto, muitas portas e oportunidades foram negadas
durante décadas, mas por outro lado, também por causa destes fatores e de alguns outros

12
O rolezinho é um encontro coordenado via redes sociais por centenas de jovens em locais públicos.

34
como a falta de recursos financeiros, os jovens artistas do hip hop precisavam se
reinventar com freqüência e hackear outras culturas, tecnologias de produção e
comunicação, para prosseguirem praticando sua arte.

Figura 3 - Foto publicada no Jornal O Dia, em 14 de maio de 2006, com alguns dos primeiros
integrantes do Enraizados em Morro Agudo, dentre eles Dudu de Morro Agudo, Velho, Kall Gomes,
Short, Suellen Casticini, Léo da XIII, Lisa Castro e Átomo.

Fonte: Jornal O Dia


Hackear é um termo muito utilizado na informática para definir invasões de
redes seguras de computadores, onde muitas vezes jovens ou grupo de jovens que
militam por alguma causa, em uma situação de enfrentamento, invadem o sistema de
grandes corporações, causando prejuízos financeiros e/ou desgaste na imagem.
Mas é também um conceito que ganhou outros significados fora do mundo da
informática, atualmente utilizado em outras áreas principalmente para explicar que uma
regra foi burlada, ou para desconstruir pensamentos tidos como verdades absolutas, mas
sempre nessa relação de disputa de oprimidos contra opressores.
Utilizo este termo aqui na mesma perspectiva do que Certeau (1998) chamava
de tática onde "o fraco deve tirar partido de forças que lhe são estranhas".
Para Certeau (1998) tática se difere de estratégia, pois a estratégia é utilizada
pelos detentores de poder, que podem traçar seus planos isolados em um ambiente, onde
são capazes de planejar suas ações sem uma interferência externa, com condições de

35
testar e manipular situações. Já a tática é a ação do oprimido, que precisa jogar com as
peças que estão postas à mesa, tendo sempre que improvisar com as possibilidades
daquele momento, "a sua síntese intelectual tem por forma um não discurso, mas a
própria decisão, ato e maneira de aproveitar a ocasião" (CERTEAU, 1998, p.47).
Ainda hoje os jovens integrantes do Enraizados se educam uns aos outros,
produzindo conhecimentos técnicos, artísticos e tecnológicos durante as atividades
comuns do dia a dia, conforme a experiência e a demanda de cada um, assim como
produzem e compartilham, desde o início da instituição, os códigos de convivência nas
periferias, pois tudo o que se faz no Enraizados, se ensina. Importa ressaltar que este
processo não se faz sem tensão, sem a disputa necessária a um projeto que tem a
pretensão de ser democrático.
É comum meninas e meninos procurarem o Enraizados buscando aprender
alguma técnica artística e ser acolhido por outro(a) menino(a) com o mesmo perfil, onde
o que chega, achando que vai somente aprender, acaba também ensinando, não somente
o conteúdo relacionado com a arte que ele está interessado, mas este entrelaçado com
outros.
Essa forma de produção de conhecimento, em rede, sem hierarquia, às vezes
são desconsiderados pela ideia hegemônica de educação, contudo Nilda Alves (2001)
nos explica, que "há um modo de fazer e criar conhecimento no cotidiano, diferente
daquele aprendido, na modernidade, e não só, com a ciência", entretanto "eles só podem
começar a ser explicados se nos dedicarmos a perceber as intrincadas redes nas quais
são verdadeiramente enredados". (ALVES, 2001, p.1)
As pessoas convivem umas com as outras e o saber flui, pelos atos de quem
sabe-e-faz, para quem não-sabe-e-aprende. Mesmo quando os adultos
encorajam e guiam os momentos e situações de aprender de crianças e
adolescentes, são raros os tempos especialmente reservados apenas para o
ato de ensinar. (Brandão, 1981, p.18)

A partir de 2007, após a criação e inauguração do Espaço Enraizados13, em


Morro Agudo, a organização se popularizou, ganhando prêmios internacionais e
reconhecimento do poder público nas esferas municipal, estadual e federal14, além de
inserções em jornais, revistas e na TV.
13
Sede do Enraizados, o espaço que funcionava como Centro Cultural do bairro Morro Agudo, com
biblioteca, sala de informática, sala de cursos, estúdio e espaço para shows com estrutura de palco e som.
14 O Movimento Enraizados ganhou os prêmios Cultura Viva e Cultura Hip Hop, do Ministério da
Cultura, Diploma Heloneida Studart de Cultura, da ALERJ, prêmio Iguacine, da prefeitura de Nova
Iguaçu, além do prêmio Maison de France, em Nancy, na França.

36
Outros jovens, que até então não se identificavam com a cultura hip hop,
começaram a se interessar em aprender as técnicas do hip hop, mas para o Enraizados
só fazia sentido ensinar as técnicas artísticas se fossem acompanhadas das histórias do
movimento e dos valores da organização. Então, surgiu daí, em Morro Agudo, a escola
de hip hop "Enraizados na Arte", que foi realizada durante os anos de 2009 à 2014.
No Enraizados a gente inventou a prática RapLab e o objetivo era realizar
algo diferente do que já havia sido feito com o rap, isto é, algo que fosse além das aulas
de escritura de rimas. A ideia era desenvolver algo capaz de fazer com que uma pessoa
que nunca teve contato com o rap pudesse experimentar o processo de composição, mas
foi somente durante a pesquisa com os cotidianos que percebi que este era um processo
de produção de conhecimento em rede.
O RapLab é uma prática de aprender e ensinar em rede, contudo eu acreditava
que era uma coisa que eu aplicava com um grupo de jovens para ter um rap composto
ao fim do encontro, mas fui descobrindo que na verdade existe uma horizontalidade.
Existe o afeto. Todo mundo participa desse processo de conhecimento.
A prática do RapLab provoca a produção do conhecimento em rede, usando o
rap como um espaçotempo de ensinoaprendizagem de trabalho coletivo, e de leitura de
mundo, além de nos possibilitar uma experimentação política para um projeto de
educação democrática. Fui aos poucos, percebendo que o mais importante era o
processo e não o produto.
Simultaneamente o RapLab nos permite trabalhar com artefatos tecnológicos
como os equipamentos de gravação de áudio, aplicativos, smartphones e computadores
para pesquisa na internet. Fui compreendendo que a criação através da tessitura de
frases e de rimas é um provocador de conversas para uma educação democrática.
Sobre a educação democrática, Paulo Freire nos ensina que:
A prática educativa implica ainda processos, técnicas, fins, expectativas,
desejos, frustrações, a tensão permanente entre prática e teoria, entre
liberdade e autoridade, cuja exarcebação, não importa de qual delas, não pode
ser aceita numa perspectiva democrática, avessa tanto ao autoritarismo
quanto à licenciosidade. (FREIRE, 1997, p.56)

Uma das principais experiências que tive com o RapLab foi num evento de
atividades culturais da Campanha Jovem Negro Vivo, promovido pela Anistia
Internacional em junho de 2016, no Parque de Madureira. O evento foi realizado com o
objetivo de lançar o relatório (2015) "Você matou meu filho: homicídios cometidos

37
pela polícia militar no Estado do Rio de Janeiro", onde era necessário transformar os
dados deste relatório em algo que a juventude pudesse compreender, principalmente a
juventude negra, que era o público alvo.
Era necessário que os jovens participantes da atividade compreendessem o
tema proposto, que no caso eram os dados do relatório e transformassem em algo que
pudessem repassar para outros jovens. A Anistia Internacional para atingir esse objetivo
convidou o Instituto Enraizados para realizar a atividade RapLab em um workshop que
durou três horas e contou com a participação de 17 jovens, de diferentes comunidades
do Rio de Janeiro, que compuseram coletiva e colaborativamente a música Jovem
NegroVivo15.

Normalmente decidimos o tema da música através de uma votação entre os


participantes, mas neste caso o tema foi definido previamente pela Anistia
Internacional. A música seria sobre o "extermínio da juventude negra", por isso, antes
de começarmos a atividade, tanto os jovens que se inscreveram para participar do
RapLab, quanto o jovens que participariam de outras atividades, assistiram a um vídeo
com alguns dados do relatório e a uma palestra com Diogo Silva, campeão pan-
americano (2007) e mundial (2009) de taekwondo, sobre racismo, esporte e juventude.

É possível realizar enquetes, jogos de memória e outras dinâmicas para


problematizar o conhecimento do tema proposto, mas como já havíamos assistido a uma
apresentação e a uma palestra, e tínhamos um tempo limitado, decidimos nos reunir em
uma sala e iniciar uma conversa sobre o conteúdo da apresentação e da palestra. Os
jovens trouxeram experiências pessoais de quando tiveram seus direitos violados,
contaram inúmeras histórias, questionaram a ação da polícia em alguns territórios do
Rio de Janeiro em detrimento de outros, e a todo tempo, a partir de pesquisas no
telefone celular, trouxeram mais informações sobre o tema que estava sendo discutido.
Mais do que discutirem e compreenderem o relatório da Anistia Internacional, aqueles
jovens estavam produzindo os seus próprios relatos, suas próprias narrativas.

É preciso, pois, que eu incorpore a ideia que ao narrar uma história, eu a faço
e sou um narrador praticante ao traçar/trançar as redes dos múltiplos relatos

15 A música, o vídeo e a letra podem ser acessados nesse link:


http://www.enraizados.com.br/index.php/RapLab-participa-de-atividade-com-anistia-internacional-e-
lanca-musica-e-video-contra-o-exterminio-da-juventude- negra

38
que chegaram/chegam até mim, neles inserindo, sempre, o fio do meu modo
de contar. Exerço, assim, a arte de contar histórias, tão importante para quem
vive o cotidiano do aprender/ensinar. (ALVES, 2001. p.33)

Após essa conversa pedimos que eles nos dissessem as dez palavras que mais
chamaram a atenção deles durante toda a atividade. Essas palavras foram escritas em
forma de lista, uma abaixo da outra, em um quadro, onde todos podiam ver. No RapLab
essas palavras servem para orientar os participantes na hora da composição.

As palavras ditas pelos jovens foram:

ÁFRICA,

JOVEM,

HISTÓRIA,

VÍTIMA,

FAMÍLIA,

ESTATÍSTICA,

BURGUESIA,

DISCRIMINAÇÃO,

PERIFERIA e

SANGUE.

Depois pedimos que um dos jovens nos dissesse uma frase contendo uma
dessas palavras, contudo havia uma regra, a pessoa que dissesse uma frase, não poderia
participar da criação da frase seguinte, cabendo a outro participante a tarefa de fazê-la,
utilizando outra palavra da lista com a incumbência de construir a rima.

A primeira frase dita por um dos jovens foi:


"O jovem negro é o guerreiro da favela".
Nesta primeira frase, o mesmo utilizou como base a palavra "jovem", que
estava no quadro. Em seguida outro jovem utilizou a palavra "vítima" e produziu a frase
seguinte, complementando a frase anterior e rimando:

39
"Vítima do genocídio que acontece nela".
Para falar sobre a importância dessas regras nesse processo, pego emprestado
um exemplo de Certeau (1998) ao dizer que estas regras "seria[m] o equivalente daquilo
que as regras de metro e rima eram antigamente para os poetas: um conjunto de
imposições estimuladoras da invenção, uma regulamentação para facilitar as
improvisações. (CERTEAU, 1998, p.50)
Esse processo de composição dura até conseguirmos produzir oito rimas ou
quando se esgota o prazo de aproximadamente uma hora. Durante a palestra e
apresentação do relatório obtivemos alguns dados, que por mais que soubéssemos que
essas coisas aconteciam, a gente não tinha proporção do tamanho do estrago. A partir do
momento que tivemos posse desses dados, o debate ficou mais aguçado, e todos,
meninas e meninos, pretos e brancos, participaram do debate e da composição.
Debateram, colocaram seus pontos de vista, e compuseram a música abaixo:

JOVEM NEGRO VIVO


O JOVEM NEGRO É O GUERREIRO DA FAVELA
VÍTIMA DO GENOCÍDIO QUE ACONTECE NELA
A BURGUESIA QUER O EMBRANQUECIMENTO DA NAÇÃO
NOS DEIXAM A MARGEM COM A SUA DISCRIMINAÇÃO
EU VEJO SANGUE NA CALÇADA
O MESMO SANGUE QUE FOI DERRAMADO PELO HOMEM DE FARDA
82 JOVENS SÃO MORTOS TODOS OS DIAS
77% SÃO NEGROS DA PERIFERIA
SERÁ UMA UTOPIA MUDARMOS ESSA ESTATÍSTICA?
PODEMOS FAZER ISSO COM NOSSA EXPRESSÃO ARTÍSTICA
A COR DA ÁFRICA É A MINHA HISTÓRIA
NÃO PERDEMOS A GUERRA, ESTAMOS NUMA TRAJETÓRIA
PRA QUEM DESDE ZUMBI AINDA É TRATADO COMO ESCÓRIA
TANTO NA LUTA DOS VIVOS, QUANTO DOS MORTOS EM GLÓRIA
DIARIAMENTE EU VEJO UM BOING NEGREIRO CAIR
COMO DANDARA TEMOS QUE LUTAR E RESISTIR
HONRANDO A LUTA DE NOSSOS PAIS
SALVANDO O FUTURO DE NOSSOS FILHOS
EU QUERO O JOVEM NEGRO VIVO!

40
A surpresa veio na hora da gravação, quando dois dos jovens brancos,
Gustavo e Albert, não quiseram participar da gravação da música. Foi um momento de
tensão, que apesar de não ter gerado um grande conflito, causou um mal-estar, e eu não
sabia como lidar com aquela situação. Então eles mesmos explicaram o motivo.

Disseram que não se sentiam bem cantando sobre algo que não dizia respeito
diretamente a eles, que achavam que não tinham o direito de ter a voz deles
reivindicando algo que eles não viviam/sofriam, que eles não sentiam na pele,
literalmente na pele. Naquele momento a conversa tomou um outro rumo: A
importância da participação ou não dos brancos na luta do povo preto contra o racismo.
Entre os participantes havia muitos jovens que já participavam de atividades
de formação política, que discutiam essa temática, havia jovens que militavam, por
exemplo, no movimento negro, jovens que participavam de atividades do Teatro do
Oprimido, jovens da cultura hip hop, entre outros, contudo havia também outros jovens
que estavam pela primeira vez participando desse tipo de atividade.
Um dos jovens, chamado Jamal, tomou a frente, num movimento de
acolhimento e disse que a luta contra o racismo não é só dos pretos, assim como a luta
contra o machismo não é uma luta exclusiva das mulheres, e a luta contra a homofobia
não é um luta somente dos homossexuais, mas uma luta do ser humano, então por isso
era importante a participação de todos na música.
Foi uma cena de arrepiar, e tenho certeza que a partir dessa troca, dessa
conversa, ninguém saiu daquele encontro da mesma forma que chegou. Houve uma
empatia, um afeto, um gostar, um respeito e a partir daí, um acolhimento, de tentar
entender o lugar do outro, a dificuldade do outro, o que outro sentia naquele momento e
de tentar trazer algum tipo conforto e de orientação sobre a discussão em questão.

41
Figura 4- Jovens participantes do RapLab, durante a campanha Jovem Negro Vivo

Fonte: Hulle Brasil

Acredito que são debates e conversas como essa, na sua transparência,


sinceridade e horizontalidade, que transformam vidas. Penso que esses debates
deveriam acontecer com mais frequência dentro dos muros da escola - não somente nas
salas de aula. Entendo que a vida na escola é corrida, o tempo é raro, a dificuldade dos
professores em equacionar as tarefas diárias é enorme, e agora frequentando mais a
escola e trocando experiências com os profissionais tenho ainda mais consciência dessas
dificuldades. Ainda assim, sigo provocando e acreditando numa educação libertadora
(FREIRE, 2017).
Lembro que, na adolescência, por volta do ano de 1993, não era comum
atividades envolvendo o hip hop dentro dos muros da escola, contudo a partir de 2010,
principalmente por causa do RapLab, o Enraizados começou a receber convites de
professores para realizar atividades dentro das escolas.
Minha experiência ao transitar pelos corredores das escolas, de poder me
relacionar de uma outra forma, que não era a mesma da minha infância, com estudantes
e professores, de poder participar de uma série de encontros onde pude aprenderensinar
utilizando o rap, me afetou a ponto de eu querer mergulhar mais fundo no cotidiano
desses encontros que são costurados por uma rede de afetos.

42
A ideia de ingressar no mestrado me veio inicialmente a partir de uma
conversa despretensiosa com um amigo professor, após a realização de um RapLab na
escola em que ele trabalha em Morro Agudo.
Cleber Gonçalves, professor de geografia, durante a atividade me chamou de
professor, diversas vezes, talvez entendendo que naquele encontro animado com os
alunos, para compor um rap, estivéssemos produzindo conhecimento. Certamente
percebeu algo naquele encontro que até então eu não havia percebido.
Após essa conversa, tentei ficar mais atento aos detalhes das atividades,
principalmente com os estudantes nas escolas. Comecei a perceber que o RapLab era
mais que uma oficina de composição coletiva de rap em tempo recorde, mas ainda
assim acreditava que era um método que podia ser aplicado com os alunos e que os
ajudaria a burlar o método hegemônico utilizado nas escolas.
A vontade de ingressar no mestrado aumentou bastante, e com ela o medo e a
insegurança do que eu podia encontrar em uma universidade branca de classe média,
sensação que em parte foi se dissipando no decorrer das aulas, da relação com os
colegas e professores, e quando aos poucos fui descobrindo autores que me fizeram
perceber que o RapLab é um dos tantos exemplos de produção do conhecimento em
rede, como nos apresenta Nilda Alves, e uma relação de horizontalidade, como nos
mostra Paulo Freire, apesar de reconhecer que a universidade continua branca e de
classe média.

43
TRACK 02 - O RAPLAB COMO UM PROVOCADOR DE CONVERSA PARA
UMA EDUCAÇÃO DEMOCRÁTICA: (COMO TERMINA UMA CONVERSA?)
No quadro de funcionários de um Centro Integrado de Educação Popular
(CIEP)16, em Nova Iguaçu, no estado do Rio de Janeiro, mais precisamente situado no
bairro Morro Agudo, existem dois educadores muito dedicados e comprometidos com o
processo educativo dos estudantes,são eles Antônio Feitoza, poeta e animador cultural17
e o professor Cleber Gonçalves, que já apresentei anteriormente. O compromisso desses
educadores fica evidente principalmente na forma como se dá o aprenderensinar, pois
entendem, como nos ensina Paulo Freire, que "o educador já não é o que apenas educa,
mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser
educado, também educa (FREIRE, 2017, p.44).
Com base nesse entendimento o professor Cleber me procurou para que
juntos pensássemos em uma atividade que o ajudasse a criar novas possibilidades para
os estudantes da turma de correção de fluxo18, pois ele gostaria de ir além do que
estava prescrito, e tentar novas experiências. Sabendo ele que as pessoas são diferentes,
com histórias, vivências e oportunidades diferentes, provocou-me a pensar em algo
para transformar o conhecimento trazido pelos estudantes em um processo de
aprendizagem coletiva, em um processo de constante aprenderensinar, numa produção
coletiva de conhecimento.
Ir além do quadro e do giz é uma questão e um desejo para educadores
progressistas que desejam transformar a pedagogia para dialogar com as múltiplas
linguagens dessa nova geração de estudantes, conectados e dinâmicos. Utilizar arte e
artefatos tecnológicos em sala de aula esperando bons resultados sem pensar em uma

16
Os CIEPs foram criados na década de 80 por Darcy Ribeiro, quando era Secretário da Educação no Rio
de Janeiro, no governo de Leonel Brizola (1983 – 1987 e 1991 – 1994).
17
O trabalho de animação cultural desenvolvido nos CIEPs, é uma proposta do educador Darcy Ribeiro.
Esta proposta possui como finalidade interagir a cultura da comunidade com o sistema formal de ensino,
procurando criar uma ponte de mão dupla entre a escola e a vida comunitária.
18
Medida política e estratégica [que justifica o argumento] de adequar a série à idade dos alunos no
ensino fundamental. [Embora a justificativa seja adequar a série à idade dos alunos, na prática a correção
de fluxo funciona para retirar os alunos da estatística das provas de avaliação da rede,e retirá-los mais
rapidamente da escola, sem de fato oferecerem a eles uma oportunidade de aprendizado mais cuidadosa].
MENEZES, EbenezerTakuno de; SANTOS, Thais Helena dos. Verbete correção de fluxo escolar.
Dicionário Interativo da Educação Brasileira - Educabrasil. São Paulo: Midiamix, 2001. Disponível em:
<http://www.educabrasil.com.br/correcao-de-fluxo-escolar/>. Acesso em: 28 de maio 2018.

44
mudança na pedagogia e na relação entre professor e estudante no processo de
aprendizagem, pode não surtir os efeitos desejados.

Trocamos algumas ideias e juntos percebemos, baseado na minha


experiência enquanto rapper, que o rap poderia ser um ótimo espaçotempo para que
os saberes dos estudantes dialogassem com o currículo escolar, que era a intenção
inicial do professor. Sugeri e apresentei o RapLab aos educadores, que concordaram
em realizar algumas atividades de forma experimental.
No primeiro encontro com os estudantes, para apresentar o RapLab, levei
uma série de equipamentos de áudio. Eles costumam ficar eufóricos com a
possibilidade de manuseá-los. Entre os equipamentos estão um laptop, uma caixa de
som, microfones, fones de ouvido e uma Maschine, que se misturam - não sobrepõem
- com revistas, canetas, canetinhas, cartolinas, o giz e o quadro, os materiais escolares
do dia a dia da escola.

Figura 5 - Equipamentos utilizados durante a atividade RapLab

Fonte: Hulle Brasil

É difícil definir o que é a “Maschine”, mas de grosso modo, diria que é um


aparelho eletrônico capaz de fazer música a partir de qualquer som, entretanto apesar
de ser um aparelho muito bonito, colorido, com aparência de brinquedo de criança, é

45
também muito difícil de manusear por causa da enorme quantidade de botões e
funções, além de ser muito caro, custa em média quatro mil reais, um valor bastante
alto para as famílias de classe trabalhadora.
Tomei a liberdade de apresentar aos leitores este equipamento em específico
para narrar o caso a seguir, onde um grupo de adolescentes com média de idade de 15
anos, que, ao se depararem pela primeira vez com a Maschine ficaram impressionados
e não conseguiam tirar os olhos do equipamento, talvez por causa das diversas cores
que se revezavam entre os botões a cada tom da música que tocava.
Como de costume, saí da sala de aula para tomar um café com os outros
professores antes da atividade enfim começar. Após alguns minutos, começamos a
ouvir uma batida de funk carioca vindo da sala de aula. Quando chegamos, havia seis
meninos em volta da mesa, dois tocavam funk no equipamento, um cantava e os outros
três dançavam.

Naquele momento, seis adolescentes da turma de correção de fluxo, que


supostamente tinham dificuldade de aprendizagem, conseguiam fazer, de uma forma
que eu nunca havia feito antes, aquilo que eu demorei semanas para aprender, após
muito estudo e pesquisa. Nesse momento o educador se tornou educando e o educando
assumiu o papel de educador. Educávamos uns aos outros, desconstruindo a ideia de
educação bancária, tão criticada por Paulo Freire, quando o mesmo afirma que "os
homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo. Mediatizados pelos
objetos cognoscíveis que, na prática bancária, são possuídos pelo educador que os
descreve ou os deposita nos educandos passivos"(FREIRE, 2017, p.44).
Percebi, com a ajuda de SOARES e SANTOS (2012), que a Maschine era
um artefato escolar, assim como a revista, o giz, o livro, o quadro e tantos outros.
artefato escolar é, portanto, tudo aquilo que, independente do contexto de
sua criação, propósito, função e manual de instruções é usado por
professores e alunos em suas práticas cotidianas de aprenderensinar,
dentrofora das escolas, de modo a alargar as possibilidades para a
realização dos currículos compreendidos como redes de relações,
significações, saberesfazeres e poderes. (SOARES e SANTOS, 2012,
p.310).

46
Figura 6 - Estudantes experimentando a Mashine

Fonte: Hulle Brasil

Assim estávamos educadores e educandos, trazendo para a sala de aula


nossos conhecimentos tecidos cotidianamente, atravessados por nossa experiência de
vida. E se me permitem fazer uma analogia, era como se fizéssemos uma sopa, onde a
sala de aula era um grande caldeirão e cada um de nós, educadores e educandos,
trazíamos um ingrediente diferente para misturar com os outros, depois de a sopa
pronta, cada um tomava um pouquinho dela, com todos os outros ingredientes, inclusive
o seu próprio.
Isto é, naquele momento cabia a cada um de nós colaborar com aquilo que
tinha e retirar o que precisava desse imenso caldeirão de novos conhecimentos.
Propus então, aos outros educadores, aproveitando a atmosfera criativa que se
formara na sala de aula, que iniciássemos a atividade RapLab sem o tema que já
havíamos definido anteriormente, mas a partir de um tema decidido pelos estudantes em
sala de aula.

Na turma, havia um jovem que devia ter uns 13 anos de idade, e era
aparentemente um líder da turma. Quando ele chegou na sala, os outros jovens ficaram
eufóricos e queriam estar sempre por perto dele. Ele desafiava os professores o tempo
todo. Ele era o jovem visto como problemático por alguns professores e pela direção da
escola.
Quando pedi que os estudantes escolhessem um tema, inicialmente nenhum
deles se sentiu à vontade de responder, mas com um pouco de conversa eles foram
falando palavras como favela, periferia, escola, vida, drogas e rap. Então decidi
desafiar o jovem líder, que desafiava os professores, e perguntei que tema ele sugeriria.
Com um sorriso provocador, ele disse a palavra “sapão”.

47
Inicialmente eu achei que fosse o MC Sapão19, porque já havia um
movimento em direção ao funk carioca, movimentação que eles faziam antes do início
da atividade, e o MC Sapão, por sua vez, era uma referência nesse estilo musical.
Mesmo tendo quase certeza que eu estava certo em relação ao cantor, resolvi perguntá-
lo o que era “sapão”, e o jovem com ar de deboche e altamente desafiador me disse que
sapão era simplesmente um sapo grande, em seguida todos os participantes riram,
pularam e bateram nas cadeiras.
Os outros professores ficaram preocupados, pois ali havia um momento de
tensão, de disputa, e eles temiam que os estudantes ficassem eufóricos demais, ao
ponto de não permitirem a realização da atividade. Contudo, o RapLab é realizado a
partir do diálogo, então enquanto há diálogo entendemos que a atividade está dando
certo.
Entrei no jogo do estudante desafiador e então propus que votássemos na
melhor proposta de tema, e em uma votação unânime, o “sapão” venceu, confirmando
o papel de liderança do jovem.
Começamos a atividade conversando sobre o tal “sapão”, quem ele era, de
onde ele vinha, o que ele comia, etc. Os estudantes se divertiam muito durante a
criação imaginosa do personagem, falavam sem parar.
Quando nós, educadores e educandos, nos permitimos entrar nesse novo
mundo imaginativo e trocar ideias através da conversa, não tínhamos a certeza de onde
este caminho podia nos levar. Em uma conversa não sabemos como será o seu fim. Ali
não havia a hierarquia de onde quem sabe mais legitima - ou não - o que quem sabe
menos diz. Durante esta conversa, não havia quem quisesse convencer o outro, mas
havia a vontade de colocar suas ideias em campo. Não há como duvidar que havia sim
uma disputa por espaço de fala e de ideias, uma tensão expressa pela escolha do tema.
Mas esta tensão era também parte do diálogo e da produção do conhecimento já que
diálogo não é consenso.
Como ALVES (2001) nos explica, quando pesquisamos com os cotidianos,
precisamos olhar com outros olhos. Nós, educadores, precisávamos estar mais atentos
àquele momento, potencializando as questões que em uma situação comum poderia
parecer secundária, mas que nos estudos com os cotidianos podem ser muito mais

19
MC Sapão é um cantor de funk carioca.

48
mobilizadoras da aprendizagem do que o livro e a escrita no quadro.
Cada um contribuía da maneira que podia, educadores e educandos, a partir
do conhecimento que tinha para compartilhar. Todos os estudantes daquela sala, sem
exceção, tinham um aparelho celular e, apesar de a conexão na rede de internet da
escola ser proibida, alguns deles descobriam a senha e compartilhavam uns com os
outros, hackeando mais uma vez a estrutura escolar, que não permitia que os alunos
utilizassem a rede de internet da escola argumentando que eles não prestariam atenção
às aulas e que ficariam o tempo todo nas redes sociais, além de deixar a conexão mais
lenta.
Realmente, por causa do excesso de celulares conectados na rede da escola, a
conexão estava lenta e então alguns estudantes pediam para os professores
compartilharem as redes wi-fi20 de seus celulares, mas alguns professores não sabiam
como fazer para compartilhar a rede e os estudantes habilidosamente os ensinava.
Devidamente conectados à rede, eles pesquisaram sobre o “sapão”, como por
exemplo, do que os sapos se alimentavam, as diferentes espécies, onde viviam, etc., e a
partir daí produziram a história, muito criativa, que deu origem a letra de rap abaixo:

SAPÃO

O SAPÃO PULA NO LAGO


COME MOSQUITO PARA NÃO FICAR MAGRO
SE SECA COM UM PANO E MORA NO PÂNTANO
ELE É TÃO BAFUDO QUE ME CAUSA ESPANTO
ELE É MUITO GORDO E VIVE NO LODO
É NOJENTO E O CORPO ENTRA EM DESACORDO
FICA CAMUFLADO NUMA FOLHA VERDE
O SAPO JOGA A LÍNGUA NA PAREDE
BRINCA COM O SAPÃO MEUIRMÃO
BRINCA COM SAPÃO MEU IRMÃO, TENTA NÃO
BRINCA COM O SAPÃO MEU IRMÃO
BRINCA COM SAPÃO

20
Wi-fi, ou wireless é uma tecnologia de comunicação que não faz uso de cabos. Disponível em:
<https://www.significados.com.br/wi-fi>. Acesso em: 15 de fev 2019.

49
Os educadores conseguiram interagir com os estudantes sobre biologia,
língua portuguesa, história, geografia e muitas outras disciplinas do dito currículo
escolar a partir da composição da letra acima.
Na hora do ensaio foi outra festa, os estudantes trabalhavam com o corpo e
com interpretação, dançavam enquanto cantavam, gesticulavam imitando um sapo.
Enquanto uns cantavam, outros faziam fotos e vídeos com os próprios aparelhos
celulares e enviavam uns para os outros.
Geralmente o uso de celulares e outros artefatos tecnológicos são proibidos
durante as aulas, regras quase sempre burladas pelos estudantes, contudo os "artefatos
técnicos e tecnológicos diversos (nem sempre considerados apropriados ao contexto
escolar) entram nas escolas pelas mãos e/ou através das experiências de alunos e
professores" (SOARES e SANTOS, 2012, p.309), então considero que seria
interessante tentar resignificar ou ampliar a gama de possibilidades do seu uso, se
possível potencializando a experiência em sala de aula, pois "analisar os usos que os
alunos e professores fazem desses artefatos em suas operações cotidianas pode ser uma
possibilidade para percebermos sentidos, significações, conhecimentos e invenções que
com eles se produzem" (SOARES e SANTOS, 2012, p.312).
Quando enfim começamos a gravação, criou-se uma nova atmosfera de
curiosidade e descobrimento, pois nenhum deles havia participado antes de uma
experiência do tipo. Nenhum deles jamais havia gravado em um estúdio. Uns ficaram
com vergonha inicialmente, mas todos participaram. Nenhum deles queria deixar a
chance passar.
O estudante que era a liderança e desafiava todos os professores, nessa etapa
da atividade era o mais participativo, o que mais auxiliava para o bom andamento da
atividade, incentivando todo o grupo a participar.
Ao final, fizemos um coral, onde todos cantaram juntos, e foi a hora mais
incrível da atividade, pois no início da aula, era nítido que haviam grupos na sala de
aula que disputavam o poder do território da escola a todo tempo, mas na hora do
coral, deixaram a diferença de lado, pelo menos temporariamente, para participarem
juntos da gravação.

50
Figura 7 - Estudantes participando do RapLab

Fonte: Hulle Brasil

Enquanto eu editava a música eles continuaram cantando repetidamente,


umas vinte vezes, sem parar. Quando terminei a edição, disse que quem tivesse um
pendrive poderia levar a música pra casa naquele momento, mas quem não tivesse,
poderia baixar depois no site do Instituto Enraizados21. Então muitos dos participantes
propuseram outras formas de distribuição da música, que ia desde transferência por
22
bluetooth , envio por email, envio por whatsapp23, publicação no soundcloud, etc. E
alguns dos educadores desconheciam totalmente boa parte dessas tecnologias de
comunicação e informação e mais uma vez inverteu-se a lógica de educador e
educando, pois
para além das diretrizes curriculares, das expectativas sociais e do fato das
escolas estarem ou não equipadas com tais tecnologias, professores e alunos
vão aprendendo uns com os outros, a utilizar artefatos técnicos para

21
O endereço do Portal Enraizados é www.enraizados.com.br.
22O Bluetooth é uma tecnologia de comunicação sem fio que permite que computadores, smartphones,
tablets e afins troquem dados entre si e se conectem a mouses, teclados, fones de ouvido, impressoras,
caixas de som e outros acessórios a partir de ondas de rádio. Disponível em
<https://www.infowester.com/bluetooth.php>. Acessado em: 17 mar. 2019.
23Whatsapp é um software para smartphones utilizado para troca de mensagens de texto
instantaneamente, além de vídeos, fotos e áudios através de uma conexão a internet. Disponível em
<https://www.significados.com.br/whatsapp>. Acessado em: 17 mar. 2019.

51
produzir tecnologias de ensinoaprendizagem que quase sempre atendem e
transbordam as demandas das disciplinas. (SOARES e SANTOS, 2012,
p.312-313).

Durante pelo menos as duas semanas seguintes, a música do “Sapão” havia


se espalhado pelos celulares de centenas de estudantes da escola e era comum ouvir
nos corredores meninos e meninas cantando, causando curiosidade e estranhamento
por parte dos profissionais da escola que, por não participarem da atividade, não
sabiam o que significava essa música, que já não era ouvida somente dentro dos
muros da escola, mas que ali havia iniciado.
A escola, mesmo que por um curto momento, havia sido tomada por uma
nova energia, um novo movimento, um outro balanço. Lembrei-me da primeira vez
que entrei neste CIEP, cinza e frio, pois não havia alunos e nem profissionais
circulando. Vi muitas grades, portas de ferro e concreto por todos os lados. Ao
mesmo tempo que parecia proteger, também afastava. Subi a rampa que dá acesso às
salas de aula e ouvi o barulho de uma sirene que indicava que era a hora do almoço.
Derrepente os corredores se encheram de vida, muito barulho, crianças sorrindo,
gritando e correndo. Aquela escola estava viva.
No mês seguinte, após a repercussão da atividade, a partir de uma
mobilização dos professores, os estudantes foram convidados a apresentar a música
do “Sapão” no seminário “A Baixada que queremos – Juventudes, Território e
Participação”24, em Engenheiro Pedreira, Japeri, Rio de Janeiro, onde três jovens da
escola puderam se apresentar. Curiosamente foram os ditos jovens problemáticos.
No seminário eles eram os jovens protagonistas que discursavam, sob o
olhar atento de dezenas de pessoas, sobre o processo de produção de uma música que
eles mesmos compuseram, junto com outros estudantes, de uma escola pública, a
escola deles próprios.

24
Seminário sobre políticas públicas, cursos de formação de gestores públicos e criação de kits
didáticos multimídias sobre exercício da cidadania em parceria com universidades públicas, como a
Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Disponível em:
<http://baixadaparacima.blogspot.com/p/feitos-extraordinarios-direcao-da.html>. Acesso em: 15 fev.
2019.

52
Figura 8 - Personagem criado por um dos jovens que participou da atividade, inspirado na roda de
conversa e na composição da música

Fonte: Hulle Brasil

Durante essa incrível experiência, percebi que "o que de fato interessa nas
pesquisas com os cotidianos são as pessoas, os praticantes, [...] porque as vê[vejo] em
atos, criando conhecimentos e significações, o tempo todo." (ALVES, 2003, p.6)

53
TRACK 02:01:00 - O RAP E A EDUCAÇÃO: QUANDO APRENDER FAZ
SENTIDO
A cada encontro que acontecia com os educadores e estudantes do CIEP, em
Morro Agudo, mais aumentava o meu interesse em realizar atividades com os jovens
de periferia, envolvendo o rap, principalmente quando os educadores me relataram
questões relacionadas com a mudança de comportamento de alguns estudantes após a
participação em atividades culturais dentro da escola. Os educadores Cleber Gonçalves
e Antônio Feitoza sempre se empenharam ao máximo para proporcionar novas e
diferenciadas experiências para as(os) estudantes, também fora dos muros da escola,
buscando ir além das redes de conhecimento destes que, assim como eu na infância e
adolescência, com a família, não tem acesso a equipamentos culturais como museus,
teatros e cinemas, e a alguns bens como quadros, livros e a dita música erudita.
É recorrente a visita dos estudantes desta escola a estes locais, contudo, tais
atividades somente acontecem por iniciativa dos educadores que entendem a
importância dessa relação dos estudantes com o mundo além escola.
GARCIA (1999/2000) com toda sua experiência e por ter acompanhado
professoras e professores por todo o Brasil, afirma que "[...] não são poucos [os
professores e professoras] que tentam remar contra a maré e romper com o destino
anunciado de fracasso das classes populares na escola... E o fazem com paixão, sem o
que não há possibilidade de sucesso na escola (p.38)".
Certa vez, nesta escola, os educadores tiveram que - metade por obrigação e
metade por vontade própria - produzir uma música e um vídeo para um concurso interno
da rede estadual, que a escola participaria. Os educadores, e por sua vez a escola, não
possuíam alguns equipamentos de som e imagem. Decidiram, portanto, recorrer a
parcerias externas, fazendo com que, desta vez, ao invés de a escola perambular pela
cidade, a comunidade que entraria na escola, ampliando ainda mais as possibilidades de
produção do saber.
A escola perambulante é tecida por todos estes percursos de aprenderensinar,
pois reconhece a sua incapacidade de controlar os processos de conhecimento
de cada um. Sendo perambulante, esta escola permite aos estudantes se
sentirem pertencentes a um lugar até então distante de suas redes. Ao
caminharem pela cidade, conhecendo ruas, histórias e lugares, os estudantes
tecem novas significações e conhecimentos com seus passos, se inscrevendo
na gestação do tecido urbano. (ANDRADE, 2014)

54
Já conhecendo o RapLab, me convidaram novamente para realizar a atividade
com o objetivo de compor uma música e produzir um vídeo com a participação dos
estudantes, cujo o tema deveria estar diretamente ligado aos Jogos Olímpicos. Este tema
era uma das regras do concurso que a escola estava participando.
Como desta vez a ideia não era somente compor uma música, mas também
produzir um vídeo, ao invés de trabalharmos em três horas, trabalharíamos em seis,
divididas igualmente em dois dias.
A ideia inicial era compor um rap sobre os diversos esportes olímpicos, mas a
partir dos diálogos estabelecidos, percebi que havia grande resistência por parte dos
estudantes por causa do desconhecimento de boa parte desses esportes, como por
exemplo o badminton, um esporte inglês, parecido com o tênis; e o rugby, um outro
esporte inglês, bastante confundido com o futebol americano.
Apesar de alguns deles já terem ouvido falar de esportes como esgrima, golfe,
hipismo, entre outros, não havia nenhuma relação afetiva entre eles e esses esportes.
Ainda assim, o fato de não conhecerem esses esportes gerou uma curiosidade que serviu
de combustível para que os educadores sugerissem que eles realizassem pequenas
pesquisas. De certo que eu também não conhecia muitos destes esportes e fui
conhecendo junto com estes jovens que ali estavam, num processo de aprenderensinar.
Ali, naquele espaço de criação de conhecimentos múltiplos não era possível
planejar ou prever o que viria a seguir, estávamos todos imersos e em busca de novos
caminhos, decidindo juntos quais caminhos seguir quando deparados com as
bifurcações naturais do trajeto e através do movimento denominado por Nilda Alves
(2005) como teoria-prática-teoria, conseguíamos avançar aos poucos na tessitura de
conhecimento em rede.
Meninos e meninas contaram diversas histórias de experiências e lembranças
que tiveram com o futebol, nas ruas, na escola, em estádios, etc. Dentre as diversas
histórias que trouxeram, pudemos perceber que nas periferias existem diversas
modalidades de futebol, com regras próprias, como por exemplo, o chamado
"golzinho", "travinha" ou simplesmente "pelada", onde normalmente ficam três atletas
em cada equipe, não há goleiro, o gol é uma trave bem pequena, que pode ser feita de
cano PVC, com latas ou apenas com um par de chinelos. Normalmente são cinco
minutos de jogo ou a primeira equipe que fizer dois gols ganha a partida. Mas também
existem modalidades como "um toque", "altinho", "bobinho" entre outras.

55
Eu também lembrei de histórias da minha infância, dos campeonatos de
futebol que participei, das "peladas" que joguei, inclusive na quadra daquele CIEP, e
contava com emoção quando era me dada uma oportunidade.
O futebol é um esporte popular nas periferias brasileiras, acredito que dentre
tantas as possibilidades seja também por sua sociabilidade, o que também me leva a
acreditar ser um dos motivos que faz com que o rap seja tão praticado nas periferias de
todo o mundo.
Durante a atividade os educadores enxergaram a possibilidade de trabalhar
outros temas, como o meio ambiente e a relação dos estudantes com a escola, mas
principalmente a ética (respeito mútuo, justiça, diálogo, solidariedade), porque um dos
jovens, com deficiência motora e cognitiva, que chamaremos aqui de Claudio Jorge, era
constantemente desrespeitado pelos outros estudantes, que o agrediam física e
verbalmente. Segundo os educadores da escola essa prática contra ele era recorrente.
No decorrer do bate-papo sobre as experiências que o futebol proporciona e
proporcionou na vida de cada um, os estudantes contaram histórias de quando se
sentiram desrespeitados, às vezes por policiais, outras vezes por criminosos, nos campos
de várzea do bairro em que moram. Em seguida, foram convidados a fazer uma reflexão
sobre suas próprias atitudes, principalmente suas atitudes contra os seus colegas da
escola.
Dessa maneira horizontal, começamos uma discussão sobre o (que chamam
de) bullying25 a partir da vivência dos educandos, respeitando suas opiniões, mas
também conduzindo e sendo conduzidos por um novo caminho de experimentação de
produção do conhecimento. Cruzamos uma estrada inteira, saindo aparentemente de
uma discussão sobre esportes e entrando então em um outro campo sem perder o fio da
meada, porque "esses conhecimentos e as formas como são tecidos exigem que
admitamos ser indispensável, ao contrário, mergulhar inteiramente em outras lógicas
para apreendê-los e compreendê-los" (ALVES, 2005, p.19).
Os professores disseram-me que a escola tentou, por vezes, mas sem sucesso,
a pedido da Secretaria de Educação, realizar uma campanha contra o bullying.
Entretanto não obtiveram os resultados esperados, engajamento dos estudantes, nem

25
Segundo a Lei nº 13.185/ 2016, o bullying é a intimidação sistemática, violência física ou psicológica
em atos de humilhação ou discriminação, como ataques físicos, insultos, ameaças, comentários e apelidos
pejorativos, entre outros.

56
com os que sofriam e nem com os que praticavam. Ao meu entender, a escola deveria
tentar realizar uma campanha contra processos de opressão e marginalização com a
participação dos estudantes, horizontalmente, e não de cima pra baixo, com conteúdo
propagandista, como os professores disseram-me que foi feito.
A ação de um educador humanista, revolucionário, identificando-se, desde
logo, com a dos educandos, deve orientar-se no sentido da humanização de
ambos. Do pensar autêntico e não no sentido da doação, da entrega do saber.
Sua ação deve estar infundida da profunda crença nos homens. Crença no seu
poder criador. (FREIRE, 2017, p.51)

Após essa reflexão os estudantes foram questionados, como motivo de


provocação, sobre qual era o significado das Olimpíadas. Então foi comum aparecerem
palavras como amizade, amor, respeito, coragem e determinação. Por conseguinte
Claudio Jorge disse: - "Tio Dudu, temos que ter amor por nossas amizades".
Claudio Jorge apesar de ser um dos jovens mais discriminados da escola, foi,
sem sombra de dúvidas, o mais participativo na atividade, foi o que colaborou com a
primeira palavra na hora de compor o rap, abrindo caminho para os outros estudantes;
foi o que disse a primeira frase da música; e também foi o primeiro a gravar no estúdio.
Todos os outros estudantes, talvez pela primeira vez, o seguiam e o respeitavam.
A discussão em torno do tema "Olimpíadas" nos levou por caminhos
inimagináveis e impossíveis de serem previstos ou programados. Nesse sentido, coube a
nós, educadores, passear por esses caminhos junto com os educandos, descobrindo e
explorando cada novo subtema que surgia.
Foi uma discussão rica, onde os 20 estudantes, juntos, compuseram a música
abaixo, que levava o nome da escola.

É O ESPORTE, TRANSFORMANDO O MUNDO INTEIRO


AMOR PELA AMIZADE
NAS OLIMPÍADAS MOSTRANDO A FORÇA DE VONTADE
LUTANDO PELA IGUALDADE, BUSCANDO A LIBERDADE
NO MEIO DA SOCIEDADE COM INSPIRAÇÃO,
CORAGEM, RESPEITO E DETERMINAÇÃO
COM EXCELÊNCIA O RIO DE JANEIRO SÓ TEM CAMPEÃO
É O ESPORTE TRANSFORMANDO O MUNDO INTEIRO
TRAZENDO ALEGRIA PARA O POVO BRASILEIRO.

57
A composição acima surgiu a partir de uma disputa, que gerou um novo
ponto de vista coletivo, é o resultado dos pontos de convergência de um processo
democrático de tomada de decisão coletiva.
Entendo que considerar o que o educando sabe, pensa e sente é fundamental
para que todo o processo faça sentido para ele. Desta forma, ele se sente parte do
processo e

percebendo e vivendo acontecimentos nos múltiplos cotidianos em que vivo,


ser capaz de buscar aproximar os conhecimentos criados em cada um,
trançando analogias que melhor me permitam compreender o cotidiano
vivido nas escolas para ser capaz de trançar melhor as redes necessárias ao
entender. (ALVES, 2001. p22).

Ao estabelecer uma relação de parceria e confiança com os educandos,


deixando de lado o peso da reprovação de suas ideias, mas ao contrário disto,
incentivando sua participação na atividade, foi possível perceber em pouco tempo a
mudança em seu comportamento, que antes era de extrema desconfiança,
principalmente pelo fato de eles não terem escolhido estar ali participando desta
atividade. Foram de alguma forma forçados pelos professores, por uma participação
supostamente mais natural e espontânea. A desconfiança aos poucos foi ficando de lado,
e a parceria foi se estabelecendo de forma um pouco mais natural.
Considero que o afeto foi fundamental neste processo, contudo:
dito assim, pode parecer que tudo ficaria reduzido a afeto. Por favor, não.
Não se trata de mais uma investida psicologizante. Trata-se apenas de
considerar que quando alguém ensina e alguém aprende, também está
presente, ainda que escondida, esta coisinha complicada e mal explicada, que
entra sem pedir licença, e que às vezes ajuda e outras vezes atrapalha.
(GARCIA, 1999/2000, p.33).

58
TRACK 02:02:00 - CONVERSAS E DISPUTAS NO AMBIENTE ESCOLAR
A cada passo percebo que na pesquisa com os cotidianos, os desafios são
diários, a cada momento algo novo e diferente pode acontecer. Notei que as coisas
saírem do controle é quase uma regra. Então porque tentar controlar? Porque não deixar
as coisas fluírem, apenas tentando orientar, sem amarrar nas nossas certezas, mas
permitindo que caminhe e nos leve para estradas até mesmo desconhecidas, para que
juntos, educadores e educandos, possamos aprender?
Quanto mais nós educadores entendemos e aceitamos a nossa incompletude,
mais nos permitimos ao novo, caminhamos com mais determinação rumo ao
desconhecido e incentivamos a descoberta. Peço licença a Paulo Freire, mais uma vez,
para utilizar aqui um de seus ensinamentos, quando o mesmo diz que "o educador que,
ensinando geografia, 'castra' a curiosidade do educando em nome da eficácia da
memorização mecânica do ensino dos conteúdos, tolhe a liberdade do educando, a sua
capacidade de aventurar-se. Não forma, domestica." (FREIRE, 1996, p.24)
Considero que vez ou outra seja necessário que o educador permita deixar-se
conduzir pelos educandos, como fizemos neste caso, quando após a gravação da música,
alguns jovens a copiaram para seus pendrives, outros colocaram em seus celulares e em
seguida enviaram para outros jovens por bluetooth, enquanto alguns solicitavam que a
música fosse enviada para seus e-mails como uma forma de backup, isto é, uma cópia
de segurança, e alguns, para facilitar o acesso de outras pessoas, pediram que a música
fosse postada no soundcloud, uma plataforma online de publicação de áudio.
Há muito que se trabalhar nas escolas com artefatos culturais diversos,
produzidos com finalidades não necessariamente educativas (caixa de ovos,
copos plásticos, cordas, rolos de papel higiênico, vela, purpurina, revistas,
brinquedos etc), ela ganha outros contornos nos dia de hoje. Isso porque a
intrusão desses novos artefatos nas escolas não depende mais apenas de uma
decisão do sistema educacional ou do projeto pedagógico de uma unidade
escolar específica ( SOARES & SANTOS, 2012, p.309).

É notório que os estudantes da turma de correção de fluxo, cujo o rendimento


escolar é supostamente defasado, dominavam com maestria as novas tecnologias de
informação e comunicação, onde muitas vezes o educador é quem tem um
conhecimento defasado.
Como manter as práticas pedagógicas atualizadas com esses novos processos
de transação de conhecimento? Não se trata aqui de usar a tecnologia a
qualquer custo, mas sim de acompanhar consciente e deliberadamente uma
mudança de civilização que questiona profundamente as formas
institucionais, as mentalidades e a cultura dos sistemas educacionais

59
tradicionais e sobretudo os papéis de professor e de aluno. (LÉVY, 1999,
p.172)

A euforia foi grande. Eles queriam mostrar para todos a música que acabaram
de criar, então começaram a dispersar. Por outro lado, havia um problema, pois ainda
era preciso pensar no roteiro do videoclipe para gravarmos no dia seguinte. Não havia
muito tempo para detalhar, então simplesmente combinamos que o videoclipe seria
sobre um jogo de futebol na escola. Todavia, sugerimos que todos pensassem nos
detalhes em casa para que pudéssemos gravar no prazo de três horas no dia seguinte.
Este processo de gravação de vídeo era extremamente novo, não somente
para os estudantes, mas também para mim e para os outros educadores. Estávamos
todos nós, educadores e educandos, no mesmo quarto escuro, e confesso que por
algumas vezes pensei na hipótese de algo dar muito errado e por isso não concluirmos o
videoclipe.
Eu jamais me questionei se deveria ou não continuar com esse processo, pois
mesmo sabendo que havia a possibilidade de algo não dar certo, ou não acontecer
conforme eu esperava que acontecesse, considero que essa é a magia da pesquisa com
os cotidianos, são as incertezas, e assim como ALVES (2001, p.23) nos conta, "mais
uma vez [...] vou ter que me lançar 'no mergulho' sem a 'bóia' que as categorias e as
classificações significam, admitindo que esse estado de absoluta instabilidade e
insegurança é o único 'abrigo' que me é concedido".
No dia seguinte, alguns estudantes chegaram com propostas para a gravação e
com aquilo que, segundo eles, seria o roteiro, praticamente pronto. A sinopse26 do
videoclipe dizia o seguinte:
Um estudante, o Claudio Jorge, estará sentado em um banco,
sozinho, como de costume, com uma bola embaixo do pé.
Triste, porque ninguém quer brincar com ele, até que uma
menina vai em sua direção, pega a bola e o chama para
jogar. Aquela brincadeira vai contagiando toda a escola com
o 'espírito do esporte', até que todos estão na quadra
jogando. Claudio Jorge dá o passe, de cabeça, para que o
jogador mais habilidoso marque o gol. Então todos
comemoram o feito coletivo. O jogador que fez o gol
cumprimenta Claudio Jorge com um aperto de mão e então
uma das meninas o abraça e ele sorri orgulhoso de si.

26
Relato breve sobre de um filme, de um livro.

60
A teoria estava perfeita. A escola parou para a gravação do clipe. Contudo
tivemos alguns desafios a serem enfrentados, como por exemplo, o videoclipe teve que
começar a ser gravado de trás pra frente, porque os estudantes começaram a jogar bola
na quadra e não queriam mais parar. Só consegui entender essa atitude depois, quando
enfim conversei com alguns professores, que me informaram que a quadra
frequentemente ficava trancada e os estudantes não tinham acesso para práticas
esportivas.
O que acontecia naquele espaçotempo ficava mais compreensível pra mim a
cada mergulho que eu dava no cotidiano daquela escola, entendendo as entrelinhas dos
acontecimentos, confirmando o que ALVES (2005, p.20) afirma quando diz que "é
necessário executar, assim, um mergulho com todos os sentidos no que se quer estudar".
Como tínhamos o roteiro em mãos, gravamos as últimas cenas primeiro,
gravamos a parte final, onde o Claudio Jorge daria o passe de cabeça para que o outro
jovem marcasse o gol da vitória.
Tentamos por quase 20 vezes para que o Claudio Jorge acertasse a cabeçada
na bola. Alguns estudantes já estavam impacientes, enquanto outros torciam para que
ele acertasse. Ele tentava cabecear, e por algumas vezes achei que ele errava
propositalmente, como tática para continuar sendo o centro das atenções. Até que de
repente ele acertou e todos comemoraram.
Na cena final do clipe, uma das alunas deveria abraçá-lo e então ele, por sua
vez, sorriria. Contudo algumas meninas não queriam abraçá-lo, até que uma delas
decidiu que o faria, e fez. Mas abraçou de repente, antes do combinado, e o rapaz por
sua vez deu o sorriso mais espontâneo, lindo e sincero que jamais seria possível em uma
interpretação. Era uma poesia, que por sorte - e um ensinamento que tive com Eduardo
Coutinho lendo suas entrevistas - estávamos gravando o tempo todo. Ele diz que é
importante "filmar sempre o acontecimento único, que nunca houve antes e nunca
haverá depois" e foi o que fizemos (COUTINHO, 2009. p21).

Depois disso alguns estudantes continuaram jogando bola na quadra,


enquanto outros desceram para o pátio para gravar o início do videoclipe. Após todo o
processo de gravação, fomos, eu e alguns estudantes, editar o vídeo, enquanto outros
continuaram jogando futebol na quadra. Pude perceber que, apesar de muitos terem

61
participado da composição, da gravação, da elaboração do roteiro e da filmagem,
algumas coisas ainda não faziam sentido para eles, pois nunca tinham composto e
gravado uma música, nunca tinham visto um software de edição de vídeo, não
conheciam o processo de montagem, a sincronização do áudio com o vídeo, entre outras
coisas, mas quando viram o vídeo pronto... Eureka27!
Criação parece ser um aspecto decisivo no processo de
construção/apropriação de conhecimentos que deve se dar numa sala de aula,
posto que não acreditamos em simples assimilação. Mas ainda que se tratasse
de simples assimilação, cada um de nós assimila aquilo que pra nós tem
sentido. E o que tem sentido pra nós que não nos afete afetivamente?
(GARCIA, 1999/2000, p.35).

Parecia que finalmente tudo aquilo havia feito sentido de uma só vez, e como
resultado surgiram muitas propostas de novas músicas e roteiros para novos clipes e
filmes, sobre assuntos variados, inclusive surgiu também a proposta para a produção de
um evento de lançamento da música e do videoclipe dentro da escola. Um evento que
fosse aberto para a comunidade, para que seus amigos e parentes pudessem participar.

27
Eureka é uma interjeição que significa “encontrei” ou “descobri”, exclamação que ficou famosa,
atribuída mundialmente a Arquimedes de Siracusa.

62
TRACK 02:03:00 - TESSITURA DE NOVOS CONHECIMENTOS
Perceba que 20 adolescentes conversaram a respeito dos Jogos Olímpicos,
pesquisaram, debateram, compuseram coletivamente uma música, ensaiaram,
prepararam o roteiro de um videoclipe e filmaram, sem a imposição dos educadores
sobre o que deveria ou não ser discutido ou feito, onde os educadores apenas
propuseram o tema e provocaram a discussão.
A partir de conversa e afeto, o conhecimento foi sendo tecido como uma rede,
nos levando para um lado, depois para o outro e então para frente, formando uma rede
educativa. Lembrei-me de SOARES & SANTOS (2012, p.320) quando dizem que "a
noção de redes educativas refere-se aos espaçotempos plurais e diversos onde os
praticantes ensinamaprendem instituindo assim suas itinerâncias cotidianas no e com o
mundo".
No momento em que a atividade acontecia, tudo me parecia profundamente
natural, contudo, após o término, em uma conversa de avaliação com os educadores,
algumas colocações de ambos me chamaram a atenção, principalmente quando eles
disseram que os estudantes que inicialmente participariam das atividades, seriam apenas
os da turma de correção de fluxo, mas que outros estudantes se interessaram pela
atividade, inclusive algumas meninas se inscreveram por iniciativa própria, o que não é
comum nas oficinas de rap, onde o número de participantes do sexo masculino é sempre
maior. Fato que precisa ser mais discutido.
O que chamou muito a nossa atenção foi a curiosidade e o interesse de alguns
estudantes que, inicialmente não se inscreveram para participar da atividade, mas na
hora em que estava acontecendo, ficaram olhando pela fresta da porta, logo depois
entraram e foram para o fundo da sala, onde observaram por um curto período de
tempo, talvez para fazer o reconhecimento e se familiarizarem, mas logo em seguida
começaram a participar, colaborando com suas opiniões e pontos de vista sobre o que
estava sendo discutido.
Concordo com ALVES (2001, p.18) quando diz que "torna-se necessário, se
quero trabalhar com o cotidiano escolar, entrar nas salas de aula de baixo, desse prédio,
e sentir a falta de luz e o cheiro de mofo", pois seria impossível entender o
comportamento dos estudantes, sem viver e sentir o que eles vivem e sentem no dia a
dia da escola, o que, no meu caso, só foi possível conversando com professores, com os
estudantes e vivendo o ambiente escolar.

63
Quanto aos estudantes e ao evento que estavam planejando, acredito que
mesmo sabendo que a direção da escola provavelmente não permitiria mais da metade
das atividades que estavam propondo, naquele momento eles se permitiram sonhar, e as
propostas foram surgindo aos montes.
Uma das tarefas mais importantes da prática educativo-crítica é propiciar as
condições em que os educandos em suas relações uns com os outros e todos
com o professor ou a professora ensaiam a experiência profunda de assumir-
se. Assumir-se como ser social e histórico, como ser pensante, comunicante,
transformador, criador, realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque é
capaz de amar. (FREIRE, 1996, p.22)

Então os educadores começaram a questionar a relação da escola com a


comunidade, pois os estudantes naquele momento, durante aquelas atividades, estavam
comprometidos com a escola como nunca antes, e provavelmente não lutar por uma
escola que fosse mais aberta, uma escola que dialogasse com os estudantes, talvez
iniciasse um processo de regressão da participação dos mesmos.
Foram dois meses de negociação entre os estudantes e os educadores; e entre
os educadores e a direção da escola, até que chegaram a um acordo: a realização de um
evento cultural aberto à comunidade.
Na negociação entre os estudantes e os educadores, ficou acordado que os
educadores negociariam com a direção da escola a participação da comunidade no
evento e que também tentariam conseguir os equipamentos necessários para a realização
das atividades. Ficaram os estudantes incumbidos de participar de todo o processo de
produção do evento, desde a limpeza do espaço, antes e depois do evento, da
divulgação, da montagem dos equipamentos, da participação das atividades etc.
E na negociação entre os educadores e a direção da escola ficou acordado
que toda a responsabilidade sobre o evento seria dos dois educadores, e que a escola não
teria recursos para a realização do evento. Então os educadores precisaram mais uma
vez fazer parcerias com a comunidade para conseguir uma série de equipamentos e
recursos para a compra de água e alimentação, além de iniciar um processo de
sensibilização dos estudantes, pois se algo desse errado, provavelmente nunca mais
outro evento deste tipo aconteceria na escola.
Dois meses depois, o evento finalmente aconteceu, em parceria com o
Instituto Enraizados e outros parceiros locais. Os portões do colégio foram abertos para
a comunidade, para que familiares e amigos dos estudantes participassem, contudo uma

64
viatura policial, solicitada pela direção da escola, ficou fazendo a escolta durante todo o
tempo em que o evento aconteceu.
Era nítido que a direção da escola estava preocupada com a realização do
evento e/ou que algo saísse do controle. O carro de polícia também poderia servir para
intimidar os alunos e evitar uma possível depredação da escola ou até mesmo inibir o
consumo de maconha, o que normalmente não acontecia nas dependências da escola,
mas foi algo pontuado pela direção e alguns professores durante as reuniões onde eram
negociadas as condições para a realização do evento, já que esse seria um evento aberto
para toda a comunidade.
Fato é que parte do corpo da escola se encontrou cético em relação aos
benefícios que essas ações trazem para o desenvolvimento dos estudantes, contudo:
[...] sabemos também que na escola há movimentos de resistência, ligados a
projetos sociais emancipatórios, que lutam para que os 'deserdados da terra',
como denunciava Fanon, tenham acesso a um vocabulário crítico que
contribua para o fortalecimento de sua cultura e o seu próprio fortalecimento
pessoal. (GARCIA, 1999/2000, p.38)

Pude ter uma longa conversa com algumas lideranças da escola, os alunos e
alunas mais populares, que segundo os professores são os que causam mais problemas
por indisciplina. Tive uma conversa sincera e objetiva. Disse para eles que se algo desse
errado no evento, talvez nunca mais pudéssemos fazer outro do tipo nas dependências
da escola, então antes mesmo que eu terminasse de falar, um deles disse-me: "Então eu
nem vou vir, porque eu me conheço e sempre que eu estou muito feliz, eu faço alguma
besteira".
Então eu disse que ao invés de ele não ir no evento, poderia me ajudar na
produção, tentando prever os possíveis problemas e resolver os que não conseguíssemos
prever. No dia do evento, esses meninos e meninas usaram a blusa da produção, uma
blusa azul, diferente das outras que estavam sendo distribuídas para o restante dos
alunos, e só o fato de colocarem uma blusa diferente, que estava sendo usada por
professores, artistas e produtores, já causou uma mudança de comportamento. Criou-se
uma atmosfera de responsabilidades que talvez nunca tenham sido passadas para eles
nas dependências da escola, mas durante todo o evento eles cuidaram de cada detalhe,
propuseram melhorias e resolveram algumas questões, como por exemplo o fato de
alguns alunos saírem com frequência da escola para fumar embaixo da passarela que
fica em frente à escola.

65
Como havia um carro de polícia circulando a escola, os alunos-produtores
ficaram preocupados e então fomos verificar se os meninos estavam fumando maconha,
mas não estavam, eles estavam fumando cigarro. E mesmo assim não queriam fumar
dentro da escola para, segundo eles, não faltarem com o respeito.
Os estudantes das escolas do entorno também participaram do evento, assim
como rappers, DJs, grafiteiros, BBoys, jogadores de basquete, atores, poetas e skatistas
do bairro e de outras cidades.
É importante ressaltar que, ao lado dessa escola onde estava acontecendo o
evento, há outra escola, também CIEP, mas um CIEP bilíngue, onde a maioria dos
estudantes não reside no bairro. Logo a relação entre os estudantes e até mesmo entre os
professores das duas escolas era quase nula. A escola bilíngue era conhecida entre os
estudantes como a escolas dos playboys e a outra escola como a escola dos favelados.
O dia desse evento foi um divisor de águas, ou melhor, um misturador de
águas, pois vários estudantes da escola bilíngue entraram pela primeira vez nesta escola
para participar do evento, e participaram tanto da batalha de MCs quanto do microfone
aberto28.
Todos os estudantes da escola participaram do evento, neste dia a aula não foi
no formato considerado tradicional. Alguns professores participaram, outros olharam de
longe e muitos foram embora sem colaborar com a atividade, apenas liberaram seus
alunos para que os mesmos participassem.
Os educadores, através de seus parceiros, conseguiram pistas de skate,
aparelhagem de som para oficina de DJs, decoflex29 para oficina de breakdance, spray
para oficina de graffiti, realizaram batalha de MCs, sarau de poesias, houve debates, os
estudantes se apresentaram artisticamente e apresentaram a música e o videoclipe
produzidos coletivamente.
O jovem Claudio Jorge, protagonista do videoclipe também foi o protagonista
de toda a ação. E quando foi perguntado sobre o significado do RapLab, ele disse: - “É
a chance de conseguir o que você quer pela música ou pela educação”.

28
Momento no evento em que as pessoas podem participar artisticamente.
29
Tapete de borracha utilizado para a prática de breakdance.

66
Figura 9 - Jovens se apresentando na escola enquanto outros alunos assistem

Fonte: Hulle Brasil

O animador cultural Antônio Feitoza concluiu que o objetivo desse tipo de


atividade é “aproximar mais a escola da comunidade, porque além de você abrir a
escola, tem um retorno para a escola e pra comunidade”.
Edméa Santos e Conceição Soares (2012), narrando uma experiência vivida
durante uma atividade em uma escola da rede de ensino do município do Rio de Janeiro,
onde mobilizaram estudantes, professores, diretoras, pedagogas, pais e pessoas da
comunidade, nos contam que:
o que mais chamou atenção foi que todos aprenderam praticando, avaliando,
fazendo e refazendo, compartilhando, improvisando com o que tinham à
mão, buscando recursos na comunidade. Alunos e professores
aprenderamensinaram uns com os outros, desestabilizando configurações
hegemônicas nas relações poder/saber (SOARES & SANTOS, 2012, p.318).

Através do rap, fomos percebendo novamente aquilo que Nilda Alves (2005)
chama de “redes de conhecimentos e significações”, quando o rap se constituiu no
espaçotempo de ampliação das nossas redes, processo sempre coletivo de tessitura,
gerando um currículo escolar que vai muito além de um capital cultural (BOURDIEU,
1998) ou conhecimento hegemônico, pois circula e vai além das nossas próprias redes.
Fomos todos nos sentindo capazes de tecer novos conhecimentos, e tornando-
nos livres da verticalização hierárquica da lógica de ensino bancário das escolas,

67
sabendo que podemos produzir um novo conhecimento amanhã que superará o de hoje,
que por sua vez se dispõe a ser ultrapassado por outro amanhã (FREIRE, 1996) como
concluiu um dos estudantes, que aparentava ter uns 13 anos de idade: - “Eu sempre
gostei de vir pra escola, mas com o projeto RapLab eu gostei mais ainda, comecei a
fazer graffiti e já tô bom”.

68
TRACK 03 - JOVENS SUBALTERNIZADOS E A ARTE COMO TÁTICA
CONTRA A SUBALTERNIDADE (PESQUISADOR E MILITANTE)

Após algumas experiências promovendo encontros dentro do ambiente


escolar utilizando o rap como campo para a produção do conhecimento em rede, houve
uma mudança na direção da escola em questão e no quadro de profissionais, o que
dificultou a continuidade dos encontros e por conseguinte da pesquisa dentro daquela
escola.

A fim de resolver esse problema e continuar a pesquisa, decidi investigar se


fora da escola as pessoas que por ventura se interessariam em participar de tal atividade
voluntariamente seriam também jovens de periferia, visto que dentro do ambiente
escolar os participantes eram sempre “indicados” pelos diretores e professores, e com
frequência esses eram os ditos jovens “problemáticos”30 ou com alguma suposta
defasagem no aprendizado.

Em posse destas questões, em março de 2018, afim de uma experiência mais


profunda e demorada nos encontros do RapLab, ao invés de apenas um encontro de três
horas dentro de uma escola, propus uma série de encontros com jovens de várias
escolas, em um centro cultural na Pavuna, zona norte do Rio de Janeiro. Visto que não
havia mais a preocupação com a limitação do tempo, poderíamos alongar mais a
discussão.

A ideia era reunir um grupo heterogêneo e discutir, num movimento


dialógico, assuntos trazidos pelos jovens, vividos em seus cotidianos e que eles
considerassem relevantes. Para que os jovens ficassem sabendo dos encontros, publiquei
um post nas redes sociais explicando do projeto, e os interessados e as interessadas em
participar deveriam preencher um simples formulário. No material de divulgação, havia
um convite para que se inscrevessem para participar de uma oficina gratuita de rap, mas
não havia muita explicação, somente que ao final da atividade gravaríamos um rap, e
que seria algo prazeroso, como costumávamos divulgar nas escolas.

Não havia muitos critérios definidos para a participação, como escolaridade e


faixa etária, para que qualquer pessoa que tivesse interesse em participar não

30 Dentro das escolas em que desenvolvi a prática do RapLab, os jovens “problemáticos” eram os jovens
que frequentemente colocavam à prova as regras da escola, não respeitando a autoridade dos diretores e
professores.

69
encontrasse dificuldade. Como não estabeleci critérios, qualquer pessoa, de qualquer
idade, gênero e que morasse em qualquer lugar poderia participar se assim desejasse.
Também não estipulei número de participantes.

A ideia era, ao invés de realizar um encontro de três horas para compor um


rap, como normalmente acontecia, conversar mais sobre o tema proposto por eles, isto
é, fazer uma imersão maior, mais demorada, no intuito de ouvir suas demandas,
angústias e necessidades, formar uma rede heterogênea de jovens, entretanto
continuando com a ideia da experimentação na produção coletiva de conhecimento.

O formulário de inscrição ficou disponível por uma semana apenas, e cerca


vinte pessoas se inscreveram. Entrei em contato com todos os inscritos, informando que
haviam sido selecionados para participar da atividade, mas somente seis pessoas
compareceram no primeiro dia da atividade. Durante os meses de encontro, cerca de dez
pessoas diferentes participaram do processo, mas as dez pessoas nunca estiveram todas
no mesmo dia, somente as seis que foram no primeiro encontro mantiveram uma
frequência na participação.

Nesta turma, tínhamos em um extremo o Alessandro, um menino de doze


anos de idade, e no outro o Saulo, um homem de 43 anos. O Alessandro já havia
participado anteriormente de uma atividade do RapLab onde compusemos uma música
sobre a dengue. Na época, sua mãe o levou para experimentar e ela acabou participando
também, auxiliando na produção da atividade, compondo, ensaiando e gravando a
música. Ele gostou tanto que, quando a mãe viu que haveria um novo encontro, logo o
inscreveu novamente, sem mesmo perguntar se ele queria participar, porém quando
finalmente o perguntou, ele não hesitou. Disse que com certeza participaria.

Desta vez não propus um tema, apenas perguntei se gostariam de discutir


sobre algum tema específico, e então começaram a propor temas como política,
corrupção, racismo, etc. Um deles, Gabriel, um jovem de 18 anos, estudante de uma
escola pública da Baixada Fluminense, e que a partir das manifestações de 2013
começou a integrar um grupo organizado de estudantes, propôs que falássemos sobre a
atual situação do país, pois abarcaria todos os temas propostos até então. Todos
concordaram e então decidimos conversar sobre o Brasil.

No primeiro dia de encontro, realizamos uma dinâmica de apresentação, para

70
que pudéssemos nos conhecer. A dinâmica consistia em falar o nome, o bairro que
morava e caso estudasse ou trabalhasse poderia também falar o nome da escola ou o
local que trabalhava, e todos interagiriam a partir daí.

Ninguém no grupo trabalhava formalmente, e dos dez jovens que


participaram dos encontros, apenas um estudava. Todos estudaram em escolas públicas
e fizeram muitas críticas negativas sobre a escola, nove moravam na Baixada
Fluminense e um na Pavuna31, bairro da zona norte do Rio de Janeiro onde acontecia a
atividade. Parte do grupo apesar de saber que Pavuna é um bairro que faz parte do
município do Rio de Janeiro, considera o bairro como parte da Baixada Fluminense, por
sua estética bastante parecida com os municípios da região e, segundo eles, pelo visível
abandono do poder público. Pavuna também é periferia.

Com essa atividade de dinâmica de apresentação, pude responder uma das


questões propostas para a pesquisa, comparar os participantes da atividade dentro e fora
do ambiente escolar, que era basicamente o mesmo. Então percebi que isso era muito
pouco, ainda restava tentar saber com mais profundidade quem eram esses jovens, quais
seus desejos, sonhos, anseios, medos etc. Quais eram suas táticas (CERTEAU, 1998)
para enfrentamento desse mundo tão desigual. No decorrer dos encontros fui me
envolvendo e percebendo uma forte movimentação desses jovens contra a
subalternidade (SPIVAK, 2010) e então comecei a questionar meu papel de pesquisador
nesse processo, sem saber até que ponto eu podia/devia interferir, amplificando a voz
desses meninos e somando nessa luta contra a subalternidade. O meu papel de
pesquisador e de militante se embolavam e isso me angustiava.

Percebi uma empolgação muito grande em todos, menos no Alessandro, pois


ele estava visivelmente se sentindo um peixe fora d'água. Creio que estaria mais à
vontade para participar se estivesse com crianças da sua idade. Tentei por diversas vezes
chamá-lo para integrar o grupo, mas ele sempre ficava de lado, às vezes do lado de fora

31 Com características residencial e industrial, a Pavuna é um bairro de classe média da Zona Norte,
fazendo divisa com Anchieta, Guadalupe, Costa Barros, Coelho Neto, Acari, Irajá, Jardim América e
Parque Colúmbia, além do município de São João de Meriti. Com uma área total de 8,3 mil quilômetros
quadrados, possui uma das maiores populações entre os bairros cariocas, com mais de 97 mil pessoas. Seu
Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é de 0,790, o 99º melhor da cidade, segundo dados de 2010
do IBGE. Disponível em: <http://www.multirio.rj.gov.br/index.php/leia/reportagens-
artigos/reportagens/593-um-passeio-pela-historia-da-pavuna > Acesso em: 17mar.2019.

71
do círculo formado pelo grupo.

A discussão sempre era em torno de política e corrupção, com base nas


notícias dos telejornais, principalmente dos telejornais da Rede Globo de Televisão.
Todos concordavam entre si que a Rede Globo manipulava a notícia, e esse assunto
rendia críticas e acusações do tipo: - Você diz que a Globo manipula, mas não deixa de
assistir. E os acusados se defendiam com respostas como: - Eu não assisto. Minha mãe
é quem assiste, e como eu estou em casa, acabo vendo uma coisa ou outra, mas é por
tabela.

O exercício de ouvir esses jovens em suas demandas, suas críticas e suas


análises sobre os meios de comunicação, a política (e os políticos), o futuro, a violência,
a ética, entre outras coisas, me faz comparar suas vidas e vivências dentro e fora da
escola.

Esses jovens subalternizados (SPIVAKI, 2010) tem reivindicações diversas e


voz (no sentido literal), mas eles podem falar? Quem os ouve? A utilização do termo
subalterno, segundo Spivak (2010, p.12), não pode ser usado para se referir a qualquer
cidadão marginalizado, como apresenta Almeida, no prefácio do livro “Pode o
subalterno falar?”:

Para ela[Spivaki] o termo deve ser resgatado, retomando o significado que


Gramsci lhe atribuía ao se referir ao “proletariado”, ou seja, àquele cuja a
voz não pode ser ouvida. O termo subalterno, Spivaki argumenta, descreve
“as camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos modos específicos
de exclusão dos mercados, da representação política e legal, e da
possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social dominante.
(SPIVAKI, 2010,p.12)

No sentido literal sim, esses jovens têm voz e podem falar, mas a questão que
tento responder mais adiante com a ajuda de Spivaki é: Quem os ouve? Qual o impacto
que as suas vozes causam na sociedade?

Alessandro não tinha proposto nenhuma palavra, mas percebi que ele ficava
atento à discussão, principalmente na parte onde conversávamos sobre a série “O
Mecanismo”,32 da Netflix33.

32 O Mecanismo é [uma série da Netflix], uma obra de ficção baseada [teoricamente] em fatos reais da
operação Lava Jato, do cineasta brasileiro José Padilha. Disponível em:
<https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43550506 > Acesso em: 17 mar. 2019.

72
Uma série ficcional que retrata a Operação Lava Jato34, e que gerou uma
grande discussão nas redes sociais, pois em um dos episódios, atribuíram uma fala
polêmica do Romero Jucá35 ao personagem do ex-presidente Luiz Inácio Lula da
Silva36. Alessandro ficou bastante interessado na série, mas não sabia o que era
Operação Lava Jato, a não ser pelo que assistia na TV.

A manipulação de um fato, com aparente objetivo de desorientar a opinião


pública, foi um dos pontos altos da discussão. Se bem que, em dado momento, o assunto
debatido era classe social, e por isso a palavra burguesia era falada por todos, o tempo
todo, até que, pela primeira vez, o Alessandro participou da conversa, e fez a seguinte
pergunta: - Mas o que é burguesia?

Todos entreolharam-se e fizeram um longo silêncio de cerca de dez segundos,


antes de começarem a gargalhar copiosamente. Eu intervi e pedi que respondessem ao
menino, então todos começaram a falar juntos, cada um dando a sua definição particular
para o significado de burguesia. Então perguntei se era possível que todas as respostas
estivessem certas, se burguesia poderia ter tantas definições, inclusive antagônicas.
Alguns deles argumentaram que talvez sim, dependendo do contexto aplicado. Outros
disseram que não, impossível ter tantas definições. Então perguntei qual parecia a mais
correta. Venceu a definição de que a burguesia era o capitalista.
Marcos, um dos jovens participantes, não satisfeito saiu da sala e retornou
com um dicionário nas mãos, dizendo em voz alta que “burguesia é a classe social
ligada às atividades urbanas, formada por profissionais liberais e proprietários de

33A Netflix é considerada a líder mundial em transmissão online de séries e filmes no smartphone.
Disponível em: < https://www.microsoft.com/pt-br/p/netflix/9wzdncrfj3tj?activetab=pivot:overviewtab>
Acesso em: 17 mar.2019.
34 [Segundo o Ministério Público Federal] a operação Lava Jato é a maior investigação de corrupção e
lavagem de dinheiro que o Brasil já teve. Disponível em: <http://www.mpf.mp.br/para-o-cidadao/caso-
lava-jato/entenda-o-caso> Acesso em: 17 mar. 2018.
35 Romero Jucá Filho ou simplesmente Romero Jucá (Recife, 30 de novembro de 1954) é um
economista, empresário e político brasileiro. [...] É alvo de doze inquéritos no STF, a maior parte fruto
das investigações da Operação Lava Jato. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Romero_Juc%C3%A1 em: 26 out. 2018.
36 Luiz Inácio Lula da Silva, Luis Inácio Lula da Silva ou Lula iniciou sua carreira política em 1980,
quando fundou o Partido dos Trabalhadores (PT). Foi eleito deputado em 1986 e presidente por dois
mandatos consecutivos entre 2002 e 2010. Na sua gestão como presidente, lançou programas sociais
como o Bolsa Família e o Fome Zero. Em 12 de julho de 2018, aos 71 anos de idade, Lula foi condenado
em segunda instância a 12 anos e um mês de prisão pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de
dinheiro. Nas eleições deste ano, teve sua candidatura indeferida pelo TSE. Disponível em: <https://tudo-
sobre.estadao.com.br/lula-luiz-inacio-lula-da-silva> Acesso em: 17 mar. 2018.

73
negócios e comércios, indústrias e finanças”. E complementou dizendo que “o burguês
é o que ou quem pertence à classe média e vive com relativo conforto”.
Eu perguntei onde ele tinha pego aquele dicionário, pois por um momento
acreditei que ele carregava sempre um dicionário na mochila. Mas não. Ele disse que
havia pego no quintal do centro cultural onde estávamos, pois lá havia uma geladeira
biblioteca, cheia de livros, e ele já havia visto que tinha um dicionário lá, mas achou
que nunca iria usá-lo.“Até que hoje ele foi bastante útil, vou usá-lo com mais frequência
para ter certeza e não pagar mico nas discussões. Apesar de que eu disse desde o início
que a burguesia era a classe média”, disse o jovem participante orgulhoso de si.
Todos então foram conferir no dicionário se realmente ele estava falando a
verdade e não satisfeitos foram conferir no celular, fazendo uma pesquisa rápida no site
de buscas do Google37.
Eu fiquei intrigado com essa sede de conhecimento, essa disputa que havia
acontecido e perguntei se na escola também era assim, quando alguma dúvida aparecia.
E um deles disse que não, que na escola é bastante diferente, porque os professores
costumam chegar com algo formatado e quando surge alguma dúvida, os estudantes
nem perguntam nada para não estender mais a aula, porque a vontade é apenas de ir
embora o quanto antes. Penso que os professores são pressionados a correrem contra o
tempo para “darem todo o conteúdo” prescrito, perdendo a oportunidade de
proporcionar momentos como este, de criação, de dúvida, de debates.
Então perguntei porque na nossa atividade eles estavam tão empenhado em
saber o que significava burguesia? Todas as respostas me levaram a entender que a
excitação foi por conta de uma disputa. Pois uma criança havia perguntado algo que eles
não sabiam responder, ou achavam que sabiam e perceberam que não sabiam. E de
repente estavam todos disputando pra saber quem estava certo.
Percebi que o papel do protagonismo foi fundamental para o interesse no
processo de pesquisa, então continuei mergulhado na minha pesquisa, pois como nos
explica Nilda Alves (2005, p.19) "esses conhecimentos e as formas como são tecidos
exigem que admitamos ser indispensável, ao contrário, mergulhar inteiramente em
outras lógicas para apreendê-los e compreendê-los".
Eu os provocava a todo tempo, estava imerso na pesquisa e embolado com os

37 Google é uma empresa de tecnologia que lançou um serviço de buscas na internet onde é possível
pesquisar sobre qualquer assunto. É atualmente o serviço de busca mais utilizado no mundo.

74
sujeitos, por isso mais uma vez questionei meu papel nesse processo, se o pesquisador e
o militante não estavam em conflito, se não estava direcionando de alguma forma a
atividade. Decidi, portanto, que me envolveria menos nesse processo de composição.
Apenas falei as regras e os deixei desenvolver a letra da música, enquanto eu estava
num canto da sala fazendo outras atividades que não tinham uma relação direta com a
pesquisa.
Pâmela Passos, professora, historiadora e militante dos direitos humanos,
narra em um artigo, suas inquietações durante uma pesquisa nas favelas de Acari e
Dona Marta, onde também questionou seu papel de pesquisadora e de militante.
"O embate entre a pesquisadora e a militante [...], exemplifica a constante
inquietação durante a pesquisa. Mas o que deve entrar e o que dever sair
quando compomos o relato de uma pesquisa? Qual a linha que define,
quando estamos no campo, o que é pesquisar e o que não é?". (LACAZ;
PASSOS; LOUZADA, 2013, p.217)

Lendo o artigo de Passos me identifiquei com o que ela diz, mas consegui
perceber uma diferença entre os meus conflitos e os dela, visto que para Passos a
questão tratava da aceitação dela por parte dos sujeitos, num território que não era o
dela, por mais que ela se enxergasse enquanto militante dos direitos humanos, estivesse
familiarizada com aquele território, entendendo as dificuldades e contribuindo na luta da
população daquela região. Ainda assim, ela era vista como "visitante", como uma
estrangeira, era percebida como um corpo estranho que circulava pelas favelas de Acari
e Santa Marta, sendo afetada por isso.
"A expressão era: 'Tá sumida!'. Por vezes alternada ou complementada por:
'Esqueceu da gente?'. Essas frases são recorrentes no encontro entre pessoas
que não se veem por algum tempo, o que era uma realidade. Assim sendo,
por que isto me gerou tanto incômodo? [...]
A resposta que encontro é: isso desestabilizava minhas certezas em relação
ao meu pertencimento a esses locais, ou ainda, inspirando-me nos conceitos
de Guatari e Rolnik (2010), esse processo me desterritorializava. [...]
Podendo descolar-me da culpabilização oriunda da sobreimplicação, pude,
então , compreender a importância desta ruptura, ainda que desconfortante."
(LACAZ; PASSOS; LOUZADA, 2013, p.219)

O meu conflito se deu sob outra perspectiva, quase o oposto ao que Passos
vivenciava, apesar de nas duas situações, nossos conflitos estarem de alguma forma nos
causando inseguranças quanto as nossas pesquisas. Eu estava muito confortável no
campo de pesquisa, com os sujeitos e com a atividade. Os sujeitos da minha pesquisa
não me viam como pesquisador. Não importava o que eu dissesse, o rapper e o militante
se sobrepunham ao pesquisador. E era daí que vinha a minha insegurança, eu estava
inseguro por causa da academia, que era onde eu ainda me sentia o estrangeiro. Eu

75
achava, portanto, que minha presença estava de alguma forma interferindo na pesquisa e
não sabia como a academia enxergaria esse processo. Eu não queria parecer antiético ou
manipulador. Por isso, decidi me distanciar do processo de produção do RapLab, já que
o meu incomodo não era enquanto militante, mas enquanto pesquisador e a minha
dúvida era de que forma isso influenciaria na pesquisa.

Assim como Pâmela Passos, eu me questionava a todo momento:


"A todo momento me vinha a pergunta: o que estamos fazendo aqui? No
linguajar do funk, estávamos 'juntos e misturados'. Os desafios decorrentes
dessa percepção foram e são muitos. A militância e a pesquisa se misturaram
de maneira indissociável; recusando-nos a tentar produzir uma situação
laboratorial para fictícia separação desta mistura". (LACAZ, PASSOS e
LOUZADA, 2013, p.217)

O fato de eu ser do meio que estou pesquisando, me deixou tenso, mas fui
entendendo que esses percursos não deixam de ser incômodos ou tensos quando a gente
está trabalhando com os estudos com os cotidianos, pois deixamos nítido que não
estamos ali para narrar o outro, o nosso papel precisa ser coerente e sincero desde o
início, mesmo que a gente tenha intenções.
No caso de Passos isso se percebe com mais nitidez quando ela narra o
episódio que ficou na lanhouse por cerca de quinze minutos esperando o Nivaldo –
proprietário - e foi o tempo suficiente para ela perceber que era uma estrangeira, pois
um menino pediu para o outro parar de xingar porque ela estava ali presente, e eu
entendo pela narrativa dela que xingar era algo corriqueiro entre os frequentadores da
lanhouse.
As constatações de Pâmela Passos a “[permitiram] não apenas identificar
algumas imbricações, como a inocência, ainda que não consciente, de pensar que [ela]
estava totalmente misturada com o campo” (LACAZ; PASSOS; LOUZADA, 2013,
p.220), mas independente das nossas posições enquanto pesquisadores e militantes, o
nosso “objetivo não era apagar [a nossa] presença para, com isso, relatar melhor o
meio, e sim poder estar de uma forma diversa, compreendendo que [nossa] presença
como [pesquisadores] sempre será percebida, ainda que de maneiras distintas".
(LACAZ; PASSOS; LOUZADA, 2013,p.220).
Enfim, Pâmela Passos me ajudou a compreender que "fica patente que não
pesquisamos sobre algo, mas com esses sujeitos e, nesse modo de pesquisar, objeto de

76
pesquisa e pesquisador se forjaram em meio às interferências que essa mistura nos
possibilitou" (LACAZ; PASSOS; LOUZADA, 2013, p.221).
No meu caso, percebi então que eles ali me viam como parte do processo,
parte da equipe, parte da turma. Eu não era o professor ou o pesquisador, a pessoa que
tinha uma posição hierárquica maior ou diferente, eu era simplesmente um igual.
Conforme afirma Spivaki (2010, p.19) "questionar o lugar do investigador permanece
sendo uma crença sem sentido em muitas das críticas recentes".
Reparei que os ânimos estavam acirrados, o tom de voz deles começou a
aumentar, mas eu somente olhava às vezes pra ver o que acontecia, até que um deles me
perguntou o que eu achava sobre algo que eles estavam discutindo. Eu disse que era pra
eles resolverem sozinhos, pois eu não queria me meter. Então o Marcos me questionou:
- “Se não é pra participar, pra que você veio aqui?”.
Então, depois que fui chamado à atenção, decidi voltar e participar da
discussão de diversas formas.
Apesar de considerar a música que é tecida coletivamente durante a atividade,
algo extremamente importante, eu considero ainda mais importante o processo que nos
leva a compor esta música, isto é, a roda de conversa e o jogo da composição. Entendo,
como Eduardo Coutinho (2009, p.312), que “existem discursos [e músicas] que só
nascem porque estamos ali realizando a atividade, é extraordinário por causa disso".

Uma grande tensão surgiu no momento em que eles não queriam parecer
contraditórios na música. Em um trecho eles escreveram a seguinte frase:
Então reaja, saia da matrix
Fecharam a conta e venderam o Lula de vilão na Netflix
A burguesia se sente feliz
O mecanismo continua trabalhando em prol da sua matriz

E em outro momento, escreveram o seguinte:


com dinheiro na cueca dizem que minha arte é crime
eu faço pra burlar a pobreza, porque isso me deprime

Segundo o Marcos, o político que estava com dinheiro na cueca era do PT38,
e falar mal do PT depois de falar bem do Lula seria contraditório. E um outro jovem, o
Gabriel, que fez a segunda frase, não concordava. Ele disse que é um fato, e que se o
político é do PT ou não, não importa.

38
Partidos dos Trabalhadores

77
Então pedi que cada um me contasse a sua versão da história desde o início.
Fui para um canto da sala e conversei com o Marcos, enquanto os outros jovens
continuavam a compor.
Dudu: Marcos, o que aconteceu?
Marcos: O que ocorreu foi o seguinte, eu fiz uma
consideração. Falei, olha só Gabriel, vamos ter cuidado
com o que a gente coloca porque eu não me recordo quem
foi, mas o dinheiro na cueca aconteceu no período do
governo Lula, e em umas rimas antes a gente tinha, não
defendido o Lula, mas dito que colocaram ele de ladrão na
história. Tudo bem que é na Netflix, mas quem está
escutando [a música] pode achar que a gente está isentando
o Lula, e logo após estamos falando de uma coisa errada
que aconteceu durante o governo dele.

D: Não pode ser contraditório na música?


M: Vale a pesquisa, só isso. Pra ver se foi algum dos aliados
dele [Lula], ou da oposição.

D: E qual era a rima que o Gabriel queria colocar na


música?
M: É tipo que eles [os políticos] tão fazendo uma parada
[errada] e dizendo que o que a gente faz é crime, tá ligado?

D: Como assim, o que a gente faz?


M: Ah, tipo protesto, intervenções culturais, essas coisas.
Como a gente falou ali em cima, que eles precarizam os
meios de nós expressarmos os nossos sentimentos.

D:E o que é precarizar?

M: Precarizar é tornar inviável. Precarizar é tipo, tá


precário o serviço, o serviço tá fora da condição ideal de ter
continuidade, de ser feito da maneira correta.
Depois de ouvir o Marcos, chamei o Gabriel para conversar a respeito da
discussão, e então pude ouvir a versão dele da mesma história.
Dudu: Gabriel, o que aconteceu lá que eles não querem
deixar a sua parte na música?
Gabriel: Ah mano, a gente tá construindo aqui o projeto do
RapLab. Daí eu falei uma frase e o cara [Marcos]

78
perguntou pra mim se eu estava maluco. Que a gente iria
entrar em contradição se a gente colocasse aquela frase
que eu falei, porque ele acha que a gente defendeu o Lula
anteriormente, sendo que não. A gente apenas citou um fato
de que a Netflix vendeu o Lula como o vilão, mas em
nenhum momento a gente se posicionou dizendo que o Lula
tá certo, de que o Lula é bonzinho e tal. E eu falei a frase
porque eu acho isso né, a questão é que a neurose toda que
gerou disso, é que a frase tinha morrido, mas a galera quis
colocar e eu disse que tinha esquecido.
D: E qual era a frase, você já lembrou?
G: Com dinheiro na cueca dizem que minha arte é crime.
D: E o que significa isso?
G: Eu citei o político que foi pego no mensalão e colocou
dinheiro na cueca e que deu esse escândalo todo. E na
verdade é pra toda essa galera da alta sociedade, essa
galera que tem dinheiro e que faz esse tipo de coisa. Mas
diz que a gente que faz, por exemplo, poesia marginal, que
faz rap, é que somos os criminosos da parada.
D: E quem era esse homem que colocou o dinheiro na
cueca?
G: Era o secretário de organização do PT. Era o cara que
fazia parte do partido do Lula, só que não ficou claro na
matéria se ele era parceiro do Lula, por que o PT tem
várias correntes.
D: E se ele fosse realmente parceiro do Lula, por que não
caberia colocar tua frase na música?
G: Aí eu acho que é outro debate. Porque eu acho que a
gente não defendeu o Lula em momento nenhum. A gente
não disse que o Lula é bonzinho. Uma coisa é você dizer
que o Lula foi vendido por uma coisa que ele não fez e
depois narrar um outro fato, pois estamos fazendo um rap e
o que estamos relatando são fatos, um fato da Netflix e o
outro do Mensalão.

79
Então decidi falar com o Marlon, um outro participante que não estava
diretamente envolvido na discussão.
Marlon, vocês pesquisaram quem era o homem que estava
com dinheiro nacueca?
Sim. Só um minuto que está carregando aqui no celular.

“A prisão de José Adalberto Vieirada Silva, secretário de


organização do PT no Ceará, serviu para agravar a crise
numa já fragilizada cúpula do PT. O assessor do deputado
José Nobre Guimarães, irmão de José Genuíno, foi preso no
aeroporto de Congonhas, em São Paulo, ao tentar
embarcar num vôo para Fortaleza com duzentos mil reais
dentro de uma mala, além de cem mil dólares escondidos na
cueca. O episódio serviu de estopim para afastamento do
presidente do PT”.

D: E o que você acha disso tudo?


Primeiramente eu acho que tem muito José nessa história.
(risos)
Bem, eu acho a frase do Gabriel uma boa frase, mas
realmente deixaria uma brecha para alguém lançar esse
questionamento mais a frente, então se a gente fosse colocar
isso na música, a gente deveria ter uma boa justificativa pra
ter colocado. E acho que essa justificativa deveria vir do
Gabriel.

Percebi, durante essa minha provocação, que eles estavam muito conscientes
sobre a atual situação política do país, e que estavam cientes do papel de cada um deles
nesse contexto. Ficou evidente nas acaloradas discussões durante os encontros, onde os
assuntos orbitavam em torno da situação política do país, quase sempre com escândalos
de corrupção, mas também sobre suas experiências pessoais, sobre o dia a dia de cada
um deles.

Nilda Alves alerta-nos que:

As mudanças na história são, assim, trançadas em nosso dia-a-dia de modos


não detectáveis no momento mesmo de sua ocorrência, mas em lances que
não prevemos, nem dos quais nos damos conta no momento em que se dão
e onde se dão, mas que vão acontecendo (ALVES, 2003,p.66).

E isso ficou indubitável na letra de rap, principalmente nos trechos abaixo:

80
A opressão vem de todos os lados
Dos fardados, engravatados.
Como alvo?Favelados
Não tem jeito, pra quem tem o poder eu sou suspeito
Com dinheiro na cueca dizem que minha arte é crime
Não tem emprego pra minha gente
eles divulgam nos jornais que a economia tá quebrada

Naquele momento, eu, enquanto pesquisador, mais uma vez questionei o meu
papel, pois apesar de compreender quando Spivaki (2010, p.30) diz que "de fato a
experiência concreta que garante o apelo político de prisioneiros, soldados e estudantes
[jovens subalternizados] é revelada por meio da experiência concreta do intelectual,
aquele que diagnostifica a episteme" amplificando a voz dos jovens através da pesquisa,
senti que ainda faltava algo e então me provoquei para tentar encontrar uma forma a
mais de amplificar a voz desses jovens.
O que fazer com essa música? Como fazer para que outras redes ouvissem as
suas reivindicações, histórias, angústias, ideias, etc? Qual o meu papel?
Não via como uma obrigação, mas acreditava que, de forma natural, podia
colaborar para proporcionar momentos em que eles pudessem falar por si, para públicos
diferentes dos que estavam acostumados. Situação que só consegui equacionar com a
ajuda dos próprios jovens com o fim dos encontros, como narrarei mais à frente.Após
dois meses de encontros semanais, concluímos a composição da música.

PAÍS DO CAOS

VIVEMOS NO PAÍS DO CAOS


ONDE O IMPERIALISMO EXTERMINA EM NOME DA TAURUS/COLT
NUM BRASIL DIVIDIDO ENTRE HOMENS BONS E MAUS
QUE LIMITAM A EDUCAÇÃO PRA QUEM TEM A COR DA NOITE

O MILITARISMO É O VENENO DA NAÇÃO


E O FASCISMO SE ACENDE POR CONTA DA FALSA INFORMAÇÃO
SE VENDE A IDEIA QUE A SAÍDA É A INTERVENÇÃO
DIZEM QUE É PRECISO PARA ACABAR COM A CORRUPÇÃO

A OPRESSÃO VEM DE TODOS OS LADOS


DOS FARDADOS, ENGRAVATADOS, COMO ALVO: FAVELADOS

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ACOSTUMADOS A DAR GOLPE DE MORTE NA PRESIDÊNCIA
REFORMAM A PREVIDÊNCIA E O POVO SOFRE A CONSEQUÊNCIA

ENTÃO REAJA, SAIA DA MATRIX


FECHARAM A CONTA E VENDERAM O LULA DE VILÃO NA NETFLIX
A BURGUESIA SE SENTE FELIZ
O MECANISMO CONTINUA TRABALHANDO EM PROL DA SUA MATRIZ

ELES TEM MEDO DA NOSSAVENDETA


IMAGINE TODO FAVELADO COM PAPEL ECANETA
ELES TEM MEDO DA NOSSAVENDETA
IMAGINE TODO FAVELADO PORTANDO UMAESCOPETA

O ABANDONO DO GOVERNO QUE PREJUDICA O SUJEITO


PRECARIZA NOSSOS MEIOS DE EXPRESSAR OS SENTIMENTOS
NÃO TEM JEITO, PRA QUEM TEM O PODER EU SOU SUSPEITO
TÔ QUASE EXPLODINDO IGUAL COCA-COLA COM MENTHOS

E A HISTÓRIA MOSTRARÁ QUEM TEM A VERDADEIRA CULPA


OS ELEITOS PROMETEM, NÃO CONSEGUEM E INVENTAM UMA DESCULPA
COM DINHEIRO NA CUECA DIZEM QUE MINHA ARTE É CRIME
EU FAÇO PRA BURLAR A POBREZA, PORQUE ISSO ME DEPRIME

E A CRISE ATACA NOVAMENTE,


ENGRAÇADO QUE ELA SEMPRE ATACOU MINHA QUEBRADA
NÃO TEM EMPREGO PRA MINHA GENTE
ELES DIVULGAM NOS JORNAIS QUE A ECONOMIA TÁ QUEBRADA

ATUALIDADE HIPÓCRITA,
A PROPRIEDADE CONTINUA INTACTA
E O PÓ QUE TÁ COM SENADOR? E PORQUE ISSO NÃO IMPACTA?
ESSA MATÉRIA NO JORNAL VAI SER COMPACTA.

Por ora, gostaria de ressaltar que, ao gravarmos a música acima, percebi que
este também, além da pesquisa, era um movimento contra a subalternidade (SPIVAKI,
2010), onde os jovens podiam falar por si, ecoando através da música as suas
demandas e angústias, sem intermediários.

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E a partir dessa experiência, enquanto intelectual, venho pensando formas
de:
[...] criar espaços por meio dos quais o sujeito [jovem] subalterno possa
falar para que, quando ele o faça, possa ser ouvido(a). [...] não se pode falar
pelo subalterno, mas pode-se trabalhar contra a subalternidade, criando
espaços nos quais o subalterno possa se articular e, como consequência,
possa também ser ouvido. (SPIVAKI, 2010,p.14)

Eu, que além de pesquisador, sou também rapper, preto e nascido na


Baixada Fluminense, compartilho com o sentimento de Spivaki (2010, p.49) quando a
mesma relata que “esse acidente de nascimento e de educação, me proveu um sentido
do cenário histórico, um domínio de linguagens pertinentes que são ferramentas úteis
para um bricoleur [...]”. E essa série de encontros com esses jovens, que foram
materializados e compactados em uma letra de rap, após horas de conversas, de disputas
e concessões, que por sua vez também pode ser (e é) usada como poesia, “é capaz de
dizer, em poucas palavras, aquilo que na pesquisa levamos quinze anos para acumular”
(ALVES, 2003, p.62).

83
TRACK 03:01:00 – A LÍNGUA: DANDO UM PAPO DIRETO E RETO
Após a série de encontros que resultaram na composição coletiva da música
País do Caos, pensei em continuar minha pesquisa me reunindo com um outro grupo de
jovens, repetir o processo, porém os atuais não demonstravam uma pré-disposição em
deixar de comparecer aos encontros.
Vi então a oportunidade de ir além, e percebi que havia a possibilidade de
amplificar ainda mais a voz desses jovens, convidei-os a participar do show de
lançamento do meu disco39, que aconteceria no mês seguinte, no palco principal do
centro cultural que estávamos realizando as atividades.
Ali vi também a oportunidade de praticar a educação libertadora que tanto venho
falando, esperando que eles ocupassem os espaços vagos e que disputassem outros
espaços já ocupados, que ajudassem na construção de algo novo. Nem eu sabia até onde
estava disposto a me entregar nesse processo, mas eu estava disposto a experimentar.
bellhooks diz que:
"Quando nós, como educadores, deixamos que a nossa pedagogia seja
radicalmente transformada pelo reconhecimento da multiculturalidade do
mundo, podemos dar aos alunos a educação que eles desejam e merecem.
Podemos ensinar de um jeito que transforma a consciência, criando um clima
de livre expressão que é a essência de uma educação em artes liberais
verdadeiramente libertadora" (hooks, 2017, p.63).

Clima de livre expressão, talvez fosse esse o termo que eu procurava em meu
subconsciente, pois já havia conseguido escapar dos muros da escola para experimentar
esse processo de produção do conhecimento em rede em outros ambientes, que apesar
de ser menos formal, ainda promovia alguns procedimentos e etapas enrijecidas, mas
em um processo ainda mais aberto, onde todos podiam se expressar mais livremente, o
resultado era totalmente imprevisível.
Eles ficaram um tanto surpresos com o convite e então começamos a
conversar sobre como poderia ser a apresentação, mas creio que até aquele momento
eles não haviam entendido, ou eu não havia me expressado bem, que eles fariam parte
do show, cantando, recitando, dançando, da forma que eles considerassem que ficaria
melhor.
"No papel de professora, tive de abrir mão da minha necessidade de
afirmação imediata do sucesso no ensino (embora parte da recompensa seja

39
No dia 15 de setembro de 2018, aconteceu o show de lançamento do meu novo disco intitulado “O
Dever Me Chama”, na Arena Carioca Jovelina Pérola Negra, na Pavuna.

84
imediata) e admitir que os alunos podem não compreender de cara o valor de
um certo ponto de vista ou de um processo" (hooks, 2017, p.60).

Eles tinham total liberdade para fazerem o que quisessem. Durante as quatro
semanas seguintes, conversamos sobre como seria a apresentação e como cada um de
nós poderia colaborar.
Então para uma das intervenções que pensamos para o show, em uma espécie de
encenação teatral, nós faríamos sorteios para que houvesse uma interação com a platéia,
onde os sorteados deveriam ir até o palco e recitar uma poesia ou cantar uma música
para poder ganhar um brinde, sendo que o primeiro número que sortearíamos seria um
número que não foi distribuído para a platéia e então um de nós iria ao palco recitar uma
poesia. A partir daí, nós acreditavamos que encorajaríamos o público para que este
também fosse ao palco recitar quando enfim houvesse o sorteio verdadeiro.
Precisávamos definir algumas questões referentes ao espaço em que estávamos e
para isso tínhamos que conversar com o administrador do espaço cultural, cujo o nome
é Anderson Barnabé, para sabermos o que poderíamos e o que não poderíamos fazer
durante o espetáculo.
Pedi que algum dos meninos fosse chamar o Anderson, e pra minha surpresa o
Alessandro levantou-se e foi, ele já se sentia bastante à vontade entre nós, já estava mais
falante. Quando o administrador do espaço chegou na sala em que estávamos e
começamos a conversar, a forma como eles se dirigiam a ele era diferente de como eles
conversavam entre si e diferente da forma como eles escreviam as composições de rap
durante a atividade.
Normalmente nas rodas de conversa entre jovens nas esquinas ou até mesmo
dentro das escolas, as gírias prevalecem, mas quando vão se dirigir aos diretores e
professores, eles mudam significativamente a forma de falar.
Quando vão procurar um emprego eles sabem que a colocação de uma gíria na
construção de uma frase pode custar a vaga, então eles se apropriam da fala do opressor
como tática (CERTEAU, 1998) para alcançarem o que almejam.
Confesso que por diversas vezes, durante a atividade, pedi que traduzissem pra
mim o que significava algumas expressões que utilizavam. Dia desses, eu estava
atrasado, então mandei uma mensagem para um dos meninos dizendo que já estava
chegando. Como resposta, ele disse apenas: “Brota, cria!”.

85
Às vezes, minha relação com a academia e/ou em reuniões com diretores de
grandes empresas, me afastam do que bellhooks chama de vernáculo negro: “Percebi
que corria o risco de perder minha relação com o vernáculo dos negros porque também
eu raramente o uso nos ambientes predominantemente brancos onde geralmente me
encontro, tanto como professora quanto na vida social" (hooks, 2017, p.229).
É literalmente como falar outro idioma, se você está na rua, é como se você
estivesse em um determinado país, a partir do momento que entra num ambiente
predominantemente branco, você precisa se expressar de outra forma, pois senão as
pessoas literalmente não vão te entender, mas neste nosso caso, ainda há o peso do
racismo, e esses jovens sabem muito bem disso, pois além de não os entender, ainda
irão os julgar como inferiores.
Como nos conta Fanon, em ‘Pele Negra, Máscaras Brancas’:
"Nada de mais sensacional do que um negro que se exprime corretamente,
pois, na verdade, ele assume o mundo branco. [...] Com o negro civilizado a
estupefação chega ao cúmulo, pois está perfeitamente adaptado. Com ele o
jogo não é mais possível, é uma perfeita réplica do branco. Diante dele, é
preciso tirar o chapéu". (FANON, 2008, p.48)

E nas ruas, quando aparece um novo jovem na roda de conversa, onde a gíria
predomina, e este traz um português mais rebuscado, recai sobre ele um olhar como se
fosse um estrangeiro. Fanon também nos conta que “em um grupo de jovens antilhanos,
aquele que se exprime bem, que possui o domínio da língua, é muito temido; é preciso
tomar cuidado com ele, é quase um branco. Na França se diz: falar como um livro. Na
Martinica: falar com um branco." (FANON, 2008, p.36)
Mas nesse nosso caso, em específico, durante o nosso show poderíamos nos
expressar da forma que quiséssemos, e nada mais justo que usássemos a linguagem das
ruas, o vernáculo dos negros (hooks, 2017) com a qual estamos mais acostumados,
aquela com a qual nos sentimos mais completos, “resgatando a nós mesmos e as nossas
experiências através da língua. Procuramos criar um espaço de intimidade. Incapazes de
encontrar esse espaço no [português] padrão, criamos uma fala vernácula fragmentária,
despedaçada, sem regras (hooks, 2017, p.233).”
Assim, pensamos qual de nós poderia subir ao palco nesse primeiro momento
para a encenação com o objetivo de incentivar o público. Não lembro bem, mas acho
que o Marlon disse que seria legal se o Alessandro pudesse fazer esse papel. O
Alessandro era o menino mais novo do grupo, aquele com doze anos de idade. E ele

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concordou. Ele perguntou como seria. Então eu expliquei: -"Todos na platéia assim que
entrarem no teatro receberão uma poesia, onde no verso haverá um número. Eu estarei
no palco, avisarei ao público que a partir daquele momento começará um sorteio,
entretanto o primeiro número sorteado será o seu. Então você levantará a mão e irá até
o palco e recitar uma poesia".
Então ele me fez outra pergunta: - Mas que poesia eu vou recitar?
O Marlon interviu e disse que ele poderia recitar a música País do Caos que a
gente havia acabado de compor, fiquei somente observando o diálogo, pois "[...] uma
das minhas estratégias de ensino consiste em redirecionar a atenção deles, tirando-a da
minha voz e dirigindo-a para as vozes uns dos outros (hooks, 2017, p.202)”. Aqui a
bellhooks está utilizando a palavra estratégia embora eu acredite que isso se aproxime
muito mais da tática de Certeau (1998) do que da estratégia.
O Alessandro num primeiro momento concordou, mas em seguida ele
perguntou se ele poderia criar a sua própria poesia, enfim estava encontrando a sua
própria voz, e bellhooks nos ensina que "achar a própria voz não é somente o ato de
contar as próprias experiências. É usar estrategicamente esse ato de contar - achar a
própria voz para também poder falar livremente sobre outros assuntos." (hooks, 2017,
p.199).
Eu achei incrível o que aquele menino havia acabado de dizer. Primeiro ele
aceitou subir num palco, durante um show, para recitar uma poesia. Em seguida, ele se
permitiu compor a sua própria poesia. No fundo, sem a intenção de subestimá-lo, eu
acreditei que na hora do show, por conta da pressão do momento, ele poderia vir a
travar, o que seria extremamente normal quando nos deparamos com uma situação nova
e de tanta tensão como essa, contudo "nas minhas aulas [atividades/shows], não quero
que os alunos [participantes] corram nenhum risco que eu mesmo não vou correr, não
quero que partilhem nada que eu mesmo não partilharia (hooks, 2017, p.35).”
A partir desse encontro o Alessandro não apareceu mais nas atividades. Eu
enviava mensagens pelo grupo que mantínhamos no Whatsapp, mas ele não respondia,
achei que ele não participaria mais do show, e me senti culpado por colocar tamanha
pressão no menino.
Empolgado em ampliar a experiência, decidi convidar outros participantes de
edições anteriores do RapLab, como os que participaram da atividade com a Anistia
Internacional.

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O time era formado por Moonjay, Imperatriz, Ninja, Caslu, Dorgo, Baltar,
Shu, Ocibar, Igo, Rebeca, Samuca, Einstein, Passarinho, Fitu, PJ, Marcinho,
Alessandroo e Camila.

Figura 10- Jovens participantes do RapLab cantando no show

Fonte: Hulle Brasil


Mais da metade deles levavam suas poesias para os transportes públicos da
cidade, recitavam além de suas próprias poesias, também poesias e letras de rap de
jovens poetas de outros bairros de periferia. Éramos aproximadamente dezessete
pessoas participando de todo o processo do show, sem contar com a participação real do
público.
No dia da atividade, estávamos todos tensos. Como de costume, em
produções de médio porte como era o caso desse show, as coisas costumam sair do
controle e quem está produzindo precisa lidar bem com a pressão e administrar os
problemas.
No meio dessa tensão chegou o Alessandro, acompanhado por seu avô. Ele
disse que participaria do show, como combinado. Eu perguntei por que ele havia faltado
a tantos encontros e ele não soube explicar, então eu perguntei se ele faria a intervenção
como havíamos combinado. Ele confirmou. E quando perguntei se ele recitaria a música
País do Caos, disse que não, que havia feito a sua própria poesia. Sacou o telefone
celular do bolso e me mostrou duas ou três rimas.

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Ele estava em dúvida se a poesia estava boa ou não. Marlon, que estava ao
lado, disse que estava ótima, Alessandro ganhou a confiança que precisava e disse que
havia feito um final para a poesia, enfiou a mão em um dos bolsos e retirou um papel
todo amassado. Quando desamassou, ali havia mais uma rima. Incrível.
Na hora marcada começamos a sessão de “papo reto”, jogando nossas
verdades, a nossa forma, o nosso vernáculo negro (hooks, 2017), sem maquiagem, no
público. O rap vinha do palco, cru, carregado de gírias, assim como as poesias que
vinham das vozes femininas que passeavam pela plateia: - “Nóis vai” não é erro de
português, erro de português foi a colonização. (ENRAIZADOS NO VAGÃO, 2018)”
"Na cultura popular negra contemporânea, o rap se tornou um dos espaços
onde o vernáculo negro é usado de maneira a convidar a cultura dominante a
ouvir - a escutar - e, em certa medida, a ser transformada. Entretanto, um dos
riscos dessa tentativa de tradução cultural é que ela venha a banalizar o
vernáculo negro. Quando jovens brancos imitam essa fala dando a entender
que ela é característica dos ignorantes ou daqueles que só se interessam por
divertir os outros ou parecer engraçados, o poder subversivo da fala é
ameaçado". (hooks, 2017, p.228)

Como combinado, chamei o número treze e esperei, caso o Alessandro não


comparecesse, não tínhamos em mente um plano B, teríamos que resolver no improviso.
Olhei para platéia e não consegui avistá-lo por causa da luz forte que impedia
que quem estivesse no palco enxergasse o público. Quando chamei pela segunda vez,
eis que ele aparece e sobe ao palco, saca o telefone do bolso e recita a sua poesia para o
público, que em seguida o aplaude. Lindo.
"O poder dessa fala não é simplesmente o de possibilitar a resistência à
supremacia branca, mas também o de forjar um espaço para a produção
cultural alternativa e para epistemologias alternativas - diferentes maneiras de
pensar e saber que foram cruciais para a criação de uma visão de mundo
contra-hegemônica". (hooks, 2017, p.228)

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TRACK 03:02:00 – AS PRETAS E OS PRETOS
Durante o mês de agosto de 2018, um dos encontros do RapLab foi realizado
num espaço cultural da Gávea, com jovens estudantes de uma escola pública da Zona
Norte, moradores das comunidades da Mangueira e Providência, à convite do SESC.
A experiência de trabalhar com jovens estudantes para além dos muros da
escola me animou a participar deste encontro, porque acredito que esta é uma forma de
a escola perambular pela cidade (ANDRADE, 2014), e que são vários os espaçotempos
onde é possível a prática do aprenderensinar, inclusive nas ruas, e é nas ruas que me
reencontro com os estudantes longe dos muros da escola, ainda que por muitas vezes
ainda murados com seus uniformes e olhares.
A professora, responsável pelos estudantes, ao mesmo tempo em que parecia
cética quanto ao resultado da atividade, demonstrava também que desejava o melhor
para os “seus” estudantes. Num movimento paradoxal de desejar a mudança, mas
afastar o novo, o diferente. Que quando ouve a palavra rap expõe todo o seu preconceito
sem ao menos precisar dizer uma palavra, apenas com a expressão do seu rosto.
Ela também desejava que a “oficina de rap” acabasse o quanto antes, palavras
dela, que desde o início fez questão de não participar, pois já “imaginava” ou tinha
certeza, do que seria realizado ali.
Por outro lado, os jovens participantes, extremamente abertos para uma nova
e diferente experiência, conseguiram se conectar rapidamente à atividade, com um tema
- escolhido por eles, onde puderam expor seus pontos de vista e relatar suas vivências.
A atividade aconteceu em tempo recorde, cerca de uma hora, por conta da
desorganização dos produtores do evento, mas deu tudo certo. O dar certo aqui não se
resume em somente conseguir compor ou gravar a música, mas permitir que a rede de
conhecimento seja tecida, que se crie um campo de produção de conhecimento onde os
jovens participem. Um encontro do RapLab nunca é igual ao outro, pois ele é pautado
no cotidiano, no afeto, nas pessoas, por isso há sempre uma tensão inicial, uma disputa,
algumas vezes poucos participam efetivamente, outras vezes todos participam.
Em alguns grupos, os participantes optam visivelmente por uma atividade
pautada no consenso, em outros grupos a característica maior é o conflito, mas sempre
dá certo, porque dar certo é propor a experiência, dialogar, falar, ouvir, mesmo que a
resposta seja negativa aos meus interesses ali.

90
"A prática do diálogo é um dos meios mais simples com que nós, como
professores, acadêmicos e pensadores críticos, podemos começar a cruzar as
fronteiras, as barreiras que podem ser ou não erguidas pela raça, pelo gênero,
pela classe social, pela reputação profissional e por um sem-número de outras
diferenças". (hooks, 2017, p.174)

A ideia não é simular conflitos e outras situações do cotidiano, pois durante o


processo eles realmente surgem, assim como suas soluções. Dessa vez, o tema escolhido
foi "preconceito". Houve outras sugestões, inclusive um jovem sugeriu como tema "o
cotidiano", mas foi voto vencido também, assim como eu.
Como já havia comentado anteriormente, a presença de meninas nos
encontros do RapLab são sempre raras, e quando acontece, elas sempre estão em menor
número, mas não dessa vez. Mais de 90% deste grupo era formado por meninas,
meninas pretas.
Dessa vez fiz um papel de provocador, num primeiro momento perguntando o
que era preconceito. Um dos poucos meninos que participava da atividade levantou a
mão e começou a contar uma história, talvez para exemplificar aquilo que ele não
conseguia conceituar. Ele disse que a polícia o parou, perto de sua casa, e o ofendeu.
Segundo ele, que estava com outros amigos brancos, a situação de desrespeito ocorreu
porque ele era pobre, mas principalmente porque era preto, e que isso era preconceito.
Um outro menino do grupo concordou e disse já ter passado por isso também.
Lendo ‘Pele Negra, Máscaras Brancas’, de Frantz Fanon, senti um
desconforto na consciência, como diz Lewis R. Gordon, no prefácio do livro, (FANON,
2008, p.14) principalmente quando ele faz a pergunta: “O que quer o homem negro? [...]
O negro quer ser branco”, responde.
Como assim o negro quer ser branco? Fiquei indignado. Seguindo com a
leitura, fui digerindo cada página, refletindo a respeito, trazendo para o pessoal, minha
vivência como homem preto, morador de periferia, e pude então concluir que quando
um grupo de jovens passa por uma blitz da polícia militar do Rio de Janeiro, com
certeza os jovens negros desejam ser brancos (FANON, 2008), mesmo que
inconscientemente, mas o ser branco não é no intuito de negar sua negritude, mas de
trazer sua humanidade, de ser um igual, ou seja, de passar despercebido a abordagem
policial.
"Deslizo pelos cantos, captando com minhas longas antenas axiomas
espalhadas pela superfície das coisas [...] deslizo pelos cantos, permaneço

91
silencioso, aspiro ao anonimato, ao esquecimento. Vejam, aceito tudo, desde
que passe despercebido!". (FANON, 2008, p.108)

Ao escrever este capítulo da dissertação, veio à minha lembrança a primeira


vez que tive contato com o racismo, mesmo sem saber o que era – o que só foi possível
entender anos depois a partir dos raps que ouvia – aquilo me afetou profundamente.
Eu, filho único, sempre fui amado e respeitado no seio familiar, era tratado
como um príncipe. Primeiro neto da minha avó materna, eu tinha minhas regalias, mas
quando passei a socializar como externo e frequentar outros ambientes, como a casa de
alguns colegas brancos, fui perdendo minha inocência racial da forma mais dura e cruel
que há, com dedos apontados, críticas infundadas e piadas racistas. Eu tinha apenas
onze anos e o mundo já me fazia mal, o mundo era ruim, o mundo me trazia
sentimentos que “o preto ignora enquanto sua existência se desenvolve no meio dos
seus; mas ao primeiro olhar branco, ele sente o peso da melanina (FANON, 2008,
p.133)".
A cada história que as meninas e meninos do grupo contavam, eu me
identificava, percebia que já havia passado vinte e cinco anos e muita coisa permanecia
da mesma forma de sempre.
Algumas meninas trouxeram histórias que me chamaram atenção. Uma delas,
prontamente apoiada pelas outras, disse que há um preconceito estético, e que elas
sofrem muito por isso. Não é somente a cor da pele, mas o tamanho da pessoa, o tipo de
cabelo, o peso, a testa… e quando ela disse “a testa”, eu fiquei surpreso, nunca tinha
ouvido falar que uma pessoa sofria preconceito por causa de sua testa, nem mesmo na
minha adolescência, quando eu ainda frequentava a escola, mas isso foi quase
unanimidade entre as meninas do grupo, que disseram que as pessoas implicavam com
elas porque as suas testas eram grandes, isto é, fora de um padrão considerado aceitável.
Lembro que na década de 90, era comum, nos classificados dos jornais, as
vagas de emprego terem em seu texto acrescido uma mensagem onde se exigia boa
aparência, e ter boa aparência significava não ser negro ou ser o mais branco possível.
Com 15 anos fui tentar um estágio em uma empresa na cidade de Nova
Iguaçu, quando cheguei ao local, tinha apenas uma pessoa para disputar a vaga comigo,
era um jovem branco. Automaticamente eu olhei pra ele e senti que a vaga seria dele,
mas continuei, tentei vestir ao máximo minha máscara branca, tentei ser branco de todas
as formas (FANON, 2008), do comportamento à roupa, à maneira de falar, de me

92
comportar..., já estava com uma roupa social, que normalmente eu não vestia, e meu
cabelo crespo estava bem penteado, eu havia treinado minha fala, tentaria usar um
português formal, mas havia uma coisa que não dava pra eu esconder ou fingir, a cor da
minha pele, eu era preto e isso estava na cara, isso também significava que o outro
jovem era o dono da boa aparência.
Fanon (2008) nos traz uma reflexão muito interessante quando diz que
vivemos em uma sociedade onde a regra de humanidade é branca, muitas vezes usar a
máscara branca é uma estratégia de sobrevivência. Acredito que Fanon (2008), assim
como bell hooks (2017), utiliza neste caso a palavra estratégia na mesma perspectiva
que Certeau (1998) entende como tática.

A frase abaixo ilustra bem esta fala:

"o judeu só não é amado a partir do momento em que é dectado. Mas comigo,
tudo toma um aspecto novo. Nenhuma chance me é oferecida. Sou
sobredeterminado pelo exterior. Não sou escravo da 'ideia' que os outros
fazem de mim, mas da minha aparição." (FANON, 2008, p.108)

O jovem branco que disputava a vaga comigo também tinha certeza que seria
ele quem conseguiria o estágio. Depois desse dia, nós ficamos amigos e conversamos
bastante a respeito desse episódio de nossas vidas. Ele afirmou que não é racista, até se
ofendeu, mas tentou se aproveitar de algo que ele considerava normal na sociedade em
que vivemos, "uma sociedade é racista ou não o é (FANON, 2017, p.85)" e a nossa é, e
muito, e ele reconhecia o privilégio de ter nascido branco.

Dias depois, uma vizinha, cujo o número do telefone eu havia deixado como
telefone de recado, me trouxe a inesperada notícia, a vaga do estágio era minha.
Mas como explicar? Eu acredito que o que fez toda a diferença nesta situação
era fato de a responsável pelo RH da empresa, que nos entrevistou, ser uma mulher
negra. No dia da entrevista ela ficou muito tempo conversando com o outro jovem e
quase não conversou comigo, apenas confirmou as informações do meu currículo e
perguntou porque eu queria trabalhar na dita empresa. Eu tinha certeza que ela não tinha
gostado de mim, pois ela não olhou em momento algum diretamente pro meu rosto, e eu
acho que também não olhei pra ela. Acontece que foi ela quem me orientou durante
quase um ano que estive na empresa, e essa empresa foi um dos locais que eu mais senti
o peso do racismo em toda a minha vida, de todas as formas possíveis.

93
Figura 11 - Encontro RapLab na Gávea

Fonte: Hulle Brasil


Eu aprendi a revidar e a me camuflar quando necessário, de certo é que
aprendi a me proteger do mundo. Lembrei muito desta história enquanto ouvia as
meninas do RapLab me contando dos preconceitos sofridos. Pesquisador, militante,
rapper, homem negro. Estas minhas redes me constituíam e não poderia esquecê-las
agora.
Estava curioso para saber como as meninas resolviam suas questões, e cada
uma me contou uma tática diferente para amenizar o dito problema e passar
despercebida pela patrulha estética. Algumas delas recorriam a penteados, outras a
lenços, bonés, franjas, etc…, isto é, vestiam suas máscaras brancas. É fato que algumas
simplesmente ignoravam, mas impossível negar que isso as machucava muito.
Aos poucos fui concordando com FANON, e acreditando que:
"o negro não deve mais ser colocado diante desse dilema: branquear ou
desaparecer, ele deve poder tomar consciência de uma nova possibilidade de
existir; ou ainda, se a sociedade lhe cria dificuldades por causa de sua cor, se
encontra em seus sonhos a expressão de um desejo inconsciente de mudar de
cor, meu objetivo não será dissuadi-lo, aconselhando-o a 'manter as
distâncias'; ao contrário, meu objetivo será, uma vez esclarecidas as causas,
torná-lo capaz de escolher a ação (ou a passividade) a respeito da verdadeira
origem do conflito, isto é, as estruturas sociais (FANON, 2008, p.95-96).”

Muitas histórias foram surgindo a partir da ótica das meninas, que eram
maioria. Elas expuseram que sim, há o preconceito racial, mas muitos outros também
existem, e parece que todos estão diretamente ligados ao racismo, ou segundo minha

94
interpretação, são potencializados pelo racismo. Uma delas falou sobre o preconceito
contra as religiões de matriz africana, uma outra falou sobre homofobia, e uma terceira
sobre a pobreza em si, pois segundo ela, muitas são julgadas simplesmente por morarem
em favela, mas todos esses problemas ficam maiores se você é preto ou preta.
Eram todos e todas muito jovens, tinham em média quinze anos de idade, mas
todos traziam histórias sobre como já sofreram racismo, eram diferentes narrativas,
alguns casos bem parecidos, mas era incrível como elas e eles já desenvolviam formas
próprias de se defenderem e revidarem. Tento imaginar como elas e eles tiveram o
primeiro contato com o racismo. Impossível não fazer uma conexão com minha
realidade, com minha trajetória, que deve ser a mesma história, ainda hoje, de várias
crianças e jovens pretos pobres que nascem nas periferias e interiores desse país.
As pessoas pretas desenvolvem neuroses ainda quando crianças, no primeiro
contato com o racismo, e isso nos persegue durante toda a vida. Ainda hoje, mesmo
tendo uma consciência racial, uma consciência sobre meus direitos, ainda sim não me
sinto à vontade em alguns ambientes predominantemente brancos; mesmo não
infringindo nenhuma lei, sinto um desconforto ao cruzar com um carro de polícia, ao
entrar em uma loja de shopping, ao sentar no assento de um avião. Crianças pretas
aprendem desde cedo as gavetas da sociedade.
A criança que deixa o meio familiar reencontra as mesmas leis, os mesmos
princípios, os mesmos valores. Uma criança normal, crescida em uma família
normal, será um homem normal. [...] Uma criança negra, normal, tendo
crescido no seio de uma família normal, ficará anormal ao menor contacto
com o mundo branco. [...] não se poderia ser mais enfático; existem Erlebnis
(vivências) determinadas na origem das neuroses." (FANON, 2008, p.128-
129)

Já eu, encarnando o meu papel de provocador, fiz uma pergunta que


normalmente faço nas atividades do RapLab quando o tema tem a ver com racismo,
preconceito, desigualdade, etc…
Perguntei qual a porcentagem de pretos e brancos no Brasil. Apesar de,
segundo a Agência IBGE (2017), existirem 54.9% de negros e pardos no país, sempre
trabalho com a hipótese de sermos um país com metade da população preta e a outra
metade composta por pessoas brancas, para poder fazer a provocação a seguir.
Alguns deles disseram que havia mais brancos e outros disseram que havia
mais pretos. Então perguntei quem ali era preto e quem era branco. Alguns deles,
mesmo com a cor da pele bem clara, se consideravam pretos, ao contrário do que

95
acontecia na minha infância, quando negávamos todos os atributos como cabelo, lábios,
nariz etc… o que importava para nos livrarmos do peso de sermos negros e negras, era a
cor da pele. E para amenizar criávamos diversas variações para não sermos chamados
de negros, por isso era comum nos definirmos como moreninhos, moreno claro, pardo
etc.
Enquanto no passado nem os jovens pretos queriam ser identificados como
pretos, atualmente no Instituto Enraizados, alguns jovens brancos, se auto intitulam
“afrobeges”, claro que não passa de uma brincadeira carregada de afeto, que significa
que os mesmos estão somando na luta do povo preto para a desconstrução desses
preconceitos e estereótipos que foram criados no passar de tantos anos.
Quando já havíamos definido quem eram os pretos e quem eram os brancos
na sala de aula, onde os pretos eram maioria. Informei que no Brasil os pretos também
são maioria, mas que ali trabalharíamos como a hipótese de termos 50% de pretos e
50% de brancos no país.
Com esse novo dado e trabalhando na lógica de que o Brasil é um país onde
os direitos e oportunidades são iguais, perguntei a eles quantos médicos pretos eles
conheciam.
Normalmente a resposta é nenhum ou um médico. Ali não foi diferente.
Continuei então a provocação e fiz a seguinte pergunta: - Se metade da população é
preta e a outra metade é branca, num país onde os direitos são iguais e as oportunidades
são pra todos, porque quase não existem médicos pretos? A lógica não deveria ser 50%
de médicos pretos e 50% de médicos brancos?
Se assim fosse, essa minha pergunta sobre a quantidade de médicos pretos
existentes no Brasil, se tornaria uma pergunta idiota e sem sentido. Então um dos
meninos disse que iria reparar na Clínica da Família40 que fica perto de sua casa, mas
que ele podia afirmar que todo mundo lá era preto, os seguranças, a faxineira e as
atendentes, mas que ele tinha certeza que a médica era branca.
O depoimento deste jovem, conectando o assunto tratado naquele momento
com sua realidade, me fez pensar novamente nas escolas, na ideia de uma pedagogia
libertadora, sendo assim acredito que "[...] um assunto diferente e mais radical não cria

40As Clínicas da Família são administradas pelas prefeituras e contam com profissionais do Programa
Saúde da Família [....] foram criadas para acompanhar de perto os pacientes do bairro. Disponível em:
<https://www.saude.rj.gov.br/perguntas-frequentes > Acesso em: 16 de fev. 2019

96
uma pedagogia libertadora; que uma prática simples, como a de incluir a experiência
pessoal, pode ser mais construtiva e desafiadora que o simples ato de mudar o currículo
(hooks, 2017, p.198).”
A partir dessa discussão, muitos outros exemplos, pontos de vista,
proposições foram surgindo, até que o nosso tempo para o bate papo se esgotou, e então
começamos o processo de composição da música. As dez palavras facilitadoras foram:
RACISMO,
BRASIL,
PRECONCEITO,
DESIGUALDADE,
COR,
NEGROS,
CIDADÃO,
RELIGIÃO,
SOCIEDADE e,
MALDADE.
As meninas eram muito animadas e participativas. Como o tempo estava
curto, propus fazermos apenas quatro rimas para dar tempo de ensaiar e gravar a
música. Todos concordaram e então foi o que fizemos.
Com a letra pronta ficaram ainda mais animados com o resultado e então
começamos a ensaiar e sem que eu percebesse, a professora já estava no meio do grupo,
integrada ao coro e cantando bem alto.

O RACISMO NÃO É COISA QUE SE BRINCA


CADA UM TEM SUA COR, TEM SUA GINGA
ESTOU CANSADA DESSA SOCIEDADE, COM TANTA MALDADE
É A MAIOR PALHAÇADA ESSA DESIGUALDADE
PRECISAMOS DE NEGROS NA MEDICINA
O BRASIL QUE EU QUERO, É COM MAIS DISCIPLINA
INDEPENDENTE DA SUA RELIGIÃO
VOCÊ TEM QUE SER TRATADO COMO CIDADÃO.

97
Figura 12 - Meninas gravando durante o RapLab

Fonte: Hulle Brasil


Nessa atividade aprendi muito com essas meninas e suas táticas diárias de
luta contra o padrão estético, contra o racismo e o machismo. Ao final da atividade, a
professora tentou me persuadir a realizar essa atividade em sua escola, para outros
jovens, mas como contra proposta sugeri que ela os levasse um dia no Quilombo
Enraizados, em Morro Agudo, para continuarmos essa perambulação pela cidade,
aprendendo com as trocas, com as experiência e com os detalhes.
Carolyn, aluna de bellhooks, durante uma aula disse que "quando você
aprende a se examinar criticamente, vê tudo ao seu redor com um outro olhar (hooks,
2017, p.159).” Seguimos então tecendo redes de conhecimento, agora talvez
enxergando, não com os mesmos olhos, mas com olhares semelhantes e mais próximos
que antes.

98
SAMPLEANDO
Para terminar este texto e iniciar as minhas considerações (que nunca são
finais) sobre esta pesquisa, peço licença para fazer mais uma de minhas analogias. No
início, quando cheguei na universidade com o intuito de pesquisar a atividade RapLab,
foi como se eu aceitasse o desafio de pular do alto de uma colina, sem pára-quedas, e
tivesse de construir asas durante minha queda para não me esborrachar no chão.
Um desafio e tanto. Tive medo, muito medo de não conseguir tal feito, pois já
nos primeiros momentos algumas de minhas certezas foram por terra, pois fui
descobrindo que a prática RapLab não era aquilo que eu achava que era, ou melhor, era
aquilo também, um método, uma técnica de composição, uma ferramenta para auxiliar
os professores e estudantes em suas aulas, mas era também muitas outras possibilidades,
um espaçotempo de produção de conhecimento em rede e um provocador de conversas
para uma educação democrática.
Aos pouco fui aprendendo que nas pesquisas com os cotidianos as certezas
não existem, mas é na prática que você vai percebendo os encantos e desesperos de se
pesquisar com os cotidianos, e a partir daí meu medo foi se dissipando aos poucos e eu
comecei a planar, reparando na paisagem do percurso, olhei para lugares que não havia
olhado antes, dei importância para o que achava que não tinha importância e segui em
frente.
Percebi que pesquisar com os cotidianos é se preparar para os entroncamentos
e bifurcações, é caminhar pelo desconhecido, é ir sem saber pra onde está indo e por
isso ter de redobrar as atenções, principalmente nos detalhes.
Com Nilda Alves (2001) aprendi que na pesquisa com os cotidianos "preciso
executar um mergulho com todos os sentidos no que desejo estudar", então mergulhei
fundo, tão fundo que no Track 01, o primeiro capítulo desta dissertação, ao escrever
sobre a história do hip hop, percebi que não há somente uma história, a oficial, mas
muitas outras histórias tão importantes quanto esta. Com Chimamanda Adichie (2009)
aprendi sobre os perigos de uma história única e com Paul Gilroy (2001) percebi que
quando se trata de música negra, é impossível ter a certeza de uma origem geográfica ou
de quem são os precursores de determinado estilo musical, pois sua origem é diaspórica,
se dá no Atlântico negro.
Mergulhei fundo no meu passado ao pesquisar e escrever sobre o hip hop na
Baixada Fluminense vi o meu próprio passado se movimentando, minhas certezas se

99
esvaindo, ao mesmo tempo em que percebi a riqueza em cada uma das tantas histórias
que ouvi sobre o hip hop na região. Sim, são muitas as histórias sobre o hip hop na
Baixada Fluminense, e todas são importantes.

Figura 13- Mad, DMC e Simone Oliveira, no Quilombo Enraizados. Novas histórias sobre o hip hop na
Baixada Fluminense

Fonte: Hulle Brasil

Narrei, no track 2, as experiências que tive realizando as atividades do


RapLab dentro dos muros da escola, a oportunidade de ouvir os estudantes e produzir
conhecimento horizontalmente, a partir da vivência de cada um. Respirei o ar da escola
e participei do dia a dia dos profissionais, com os estudantes busquei pensar o RapLab
como um provocador de conversas para uma educação democrática, pensando como
uma conversa termina, e percebi que ela não termina, ela se desenrola em novas
possibilidades e não nos permite saber onde vai nos levar.

Entendi que considerar o que o educando sabe, pensa e sente é fundamental


para que todo o processo faça sentido para ele, pois desta forma, ele se sente parte do
todo. Assim como Alves (2001, p.22) sigo “buscando aproximar os conhecimentos
criados em cada um, trançando analogias que melhor me permitam compreender o
cotidiano vivido nas escolas para ser capaz de trançar melhor as redes necessárias ao
entender”.

100
Dentro da escola por várias vezes me percebi perdido e me deixei ser
conduzido pelos estudantes, algumas vezes duvidei da capacidade deles e fui
surpreendido em todas elas.
Quanto mais nós educadores entendermos e aceitarmos a nossa incompletude,
mais nos permitiremos ao novo, caminharemos com mais determinação rumo ao
desconhecido e incentivaremos a descoberta, pois como Paulo Freire (2012, p.24) nos
ensina, “o educador que [...] 'castra' a curiosidade do educando, [...] não forma,
domestica”.
A incompletude do professor é um tema que gostaria muito de continuar
pesquisando, pois durante as atividades do RapLab com os jovens dentro e fora dos
muros da escola me senti ignorante em muitos momentos e fui aprendendo junto com os
estudantes, acredito que ainda há muito o que pesquisar e o RapLab nos dá
possibilidade para tal.
No track 3 narro vivências com o RapLab fora dos muros da escola, onde
discuto a subalternização e a arte como tática contra a subalternidade, além de
questionar e tentar entender o meu papel enquanto pesquisador e as táticas da juventude
preta contra o racismo.
Aprendi com Spivaki (2010) que a utilização do termo subalterno, que no
decorrer da dissertação utilizei subalternizado, não pode ser usado para se referir a
qualquer cidadão marginalizado, pois o termo descreve “as camadas mais baixas da
sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão dos mercados, da
representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos no
estrato social dominante” (SPIVAKI, 2010, p.12).
Percebi que apesar desses jovens subalternizados terem voz literalmente, na
prática eles não podiam falar para a sociedade, pois eles não eram ouvidos, e cabe a
mim enquanto pesquisador criar canais, fora do contexto que eles já vivem, para que
eles possam falar por si e que possam ser ouvidos sem intermediários.
E a partir dessa experiência, enquanto intelectual, venho pensando formas
de:
[...] criar espaços por meio dos quais o sujeito [jovem] subalterno possa
falar para que, quando ele o faça, possa ser ouvido(a). [...] não se pode falar
pelo subalterno, mas pode-se trabalhar contra a subalternidade, criando
espaços nos quais o subalterno possa se articular e, como consequência,
possa também ser ouvido. (SPIVAKI, 2010, p.14)

101
Conto a experiência de um show em que esses jovens subalternizados
participaram enquanto artistas e produtores, e de como percebi, discutindo a língua com
a ajuda de bellhooks (2017), que esses jovens dominavam o vernáculo dos negros, mas
sabiam muito bem a hora de vestir a máscara branca (FANON, 2008) e falar o
português formal, como tática contra a subalternidade, na perspectiva de Certeau
(1998).
Lendo ‘Pele Negra, Máscaras Brancas’, de Frantz Fanon, senti um
desconforto na consciência, como diz Lewis R. Gordon, no prefácio do livro, (FANON,
2008, p.14) principalmente quando ele faz a pergunta: “O que quer o homem negro? [...]
O negro quer ser branco”, responde.
Como assim o negro quer ser branco? Fiquei indignado. Seguindo com a
leitura, fui digerindo cada página, refletindo a respeito, trazendo para o pessoal, minha
vivência como homem preto, morador de periferia, e pude então concluir que quando
um grupo de jovens passa por uma blitz da polícia militar do Rio de Janeiro, com
certeza os jovens negros desejam ser brancos (FANON, 2008), mesmo que
inconscientemente, mas o ser branco não é no intuito de negar sua negritude, mas de
trazer sua humanidade, de ser um igual, ou seja, de passar despercebido a abordagem
policial, isto é, recorrendo mais uma vez a Certeau (1998), vestir a máscara branca é
também uma tática dos pretos.
A minha experiência em percorrer os caminhos que percorri durante essa
pesquisa, aos poucos entendendo as maravilhas e angústias de se pesquisar com os
cotidianos, perceber as riquezas escondidas nas coisas mais simples, impactando e
sendo impactado pelos sujeitos desta pesquisa e tecendo redes de conhecimento, me
fizeram ter a certeza que fiz a escolha certa em pular do alto daquela colina, pois ao
final desta pesquisa percebo que consegui construir minhas asas e já estou a voar, meio
desajeitado confesso, mas enxergando novas possibilidades no horizonte e com a
sensação que posso alçar vôos bem mais altos.
Termino desejando que esta pesquisa possa chegar a muitos educadores,
estudantes e artistas, que a prática do RapLab possa contribuir para o projeto de
educação democrática que buscamos, que a educação seja pública desde a infância até a
universidade, e que esta seja cada vez mais preta.

102
REFERÊNCIAS
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TEDGlobal, jul. 2009. Disponível em:
https://www.ted.com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_the_danger_of_a_single_story
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mais pardos e pretos. 2017. Disponível em
https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-
noticias/noticias/18282-populacao-chega-a-205-5-milhoes-com-menos-brancos-e-mais-
pardos-e-pretos. Acesso em: 15/01/2020

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103
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