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Pag 1 de 16 1. Introdugdo: © tema que me foi sugerido isto é, a questdo das autoridades tradicionais na sua relagio com a Administragéo n&o pode ser tratado sem, -previamente, responder a questo de saber se as autoridades tradicionais sdo ou no também administragao? A resposta a este quesito é fundamental e decisiva para tratarmos do relacionamento entre elas N&o sendo objectivo do presente seminério abordar questées teéricas, nado posso deixar de, pelo menos, registar o estado do problema e as diferentes perspectivas da sua abordagem. No contexto angolano actual so duas as perspectivas de abordagem: Por um lado, os que consideram o poder ou autoridade tradicional como uma realidade social, cultural e histérica sem, no entanto, constituir um verdadeiro poder administrativo; - Por outro lado, os que encaram o poder tradicional como uma das dimensdes do poder local, na vertente de poder originério por ser anterior ao Estado ou que até mesmo se desenvolve fora dele. Pag 2 de 16 2. A histéria recente de Angola. 2.1. Historicamente, em Angola, a actuag&o politica e consequente legitimagao estatal das = chamadas autoridades tradicionais foram encetadas no perfodo da colonizagio. Na verdade, estas autoridades que detinham algum poder efectivo sobre as populacdes foram captadas, sobretudo, para superar as dificuldades das autoridades colénias em estenderem a sua governagéo para todo o territério nacional. Assim, a partir de meados do século XX, os varios Governos coloniais adoptaram procedimentos administrativos que incluiam um esforgo de codificag&o dos ent&o designados “usos e costumes indigenas". Este esforgo, ao contrério da colonizagao britanica, nao implicava uma “partilha” de poderes entre o Estado colonial e as autoridades tradicionais, mas um progressivo enquadramento das mesmas na estrutura colonial administrativa portuguesa. Na verdade, sobretudo, com a introdugéo da reforma Administrativa ultramarina (R.A.V) as autoridades tradicionais tornaram-se parte integrante da Administragao colonial e acabaram por ser assalariados da Administragao. 2.2. Apés a independéncia, em 1975, assistiu-se, numa primeira fase a uma situagdo que podemos considerar como sendo compésita pois os sobas se n&o eram encarados como entidades a apoiar, também nado estavam sujeitos a qualquer exclusdo (como em Mogambique). Mas eram alvo de desconfianga. Pég 3 de 16 Mais tarde, sentiu-se a necessidade de um “enquadramento administrativo” das —_autoridades tradicionais, sobretudo, por razdes de um controlo efectivo das populagées. Nessa altura, o mecanismo usado foi, também o da co- optagdo através da qual alguns chefes tradicionais foram acomodados pelo poder central em particular, transformando-os em representantes locais das respectivas administragées estaduais. Entretanto, a auséncia de poderes piblicos, em certas 4reas territoriais fez com que as autoridades tradicionais fossem chamadas a exercer fungdes administrativas. 2.2.1. Hoje, de acordo com o estudo da macro-estrutura da administragdo local, “hd um grande vazio sobre o que as instituigées do poder tradicional representa questiona-se a sua legitimidade, a representatividade, os titulos, as fungdes o territério de jurisdigdo, a autonomia, o poder de deciséo e as relagées com o Estado". Diz, ainda, o estudo que, de acordo com as informagées recolhidas, as instituigdes do poder tradicional exercem as seguintes fungées: * Estabelecem a ligagio com os antepassados das linhagens dominantes; * Assumem os aspectos magico-religiosos ou fazem recurso a agentes especificos para esse efeito; Pag 4 de 16 Administram a justica; Gerem a terra, protegem-na e condicionam o acesso a ela pelos seus sibdi tos ou por estranhos; Gerem a vida comunitaria nos aspectos ligados A caga, A organizagéo dos trabalhos agricolas, a forga de trabalho, A organizagio dos sistemas de troca; Controlam os movimentos da populacio e a sua seguranga; Estabelecem normas sociais; Orientam o recrutamento de mancebos para o exército; Dinamizam a construgéo e manutengdo de infra- estruturas; Zelam pelos mecanismos de solidariedade; Negoceiam as relagdes das comunidades com os diversos agentes externos que com elas se relacionam: Estado, ONG, agéncias das Nagées Unidas, empresérios e agentes privados, etc; Estabelecem relagdes com os partidos politicos; Transmitem informag&o ao povo; So porta-vozes das comunidades; Pag 5 de 16 * Assumem-se como elementos de ligag&o com as instituigdes do Estado. 3. ° relacionamento entre as autoridades tradicionais e a Administragdo (o exemplo de dois Paises) Ainda que telegraficamente, gostaria de deixar aqui registados dos exemplos de como os poderes estaduais cuidaram, no plano legislativo e administrativo o relacionamento entre as autoridades tradicionais e a Administragao estadual. 3.1. A experiéncia mogambicana. A histéria mogambicana do relacionamento entre o Estado e as autoridades tradicionais € marcada por diversas fases. 3.1.1. Numa primeira fase, como resultado da opcdo politico-ideolégica da Frelimo, houve uma ruptura politica ndo s6 entre as autoridades tradicionais e o Estado como também entre as autoridades tradicionais com as suas populagées. © idedrio de afirmag3o de uma nova sociedade e de um novo Estado que, se supunha incompativel com a sociedade tradicional africana, implicava a sua desarticulagio e servia, por conseguinte, de fundamento para a ruptura do poder com as autoridades tradicionais. Pag 6 de 16 3.1.2. A partir de 1992 com o fim da guerra e a assinatura do acordo de paz, assiste-se a uma mudanga de atitude no xelacionamento entre o Estado mogambicano e as autoridades tradicionais. © discurso das autoridades estaduais altera-se. Nesta fase, o problema central residia na questdo da institucionalizagio ao nivel nacional e do seu enquadramento legal. & nesse sentido que, no quadro do processo de reorganizacio administrativa dos 6érgéos de poder estatal, € aprovada pela Assembleia da Repiblica, em 13 de Setembro de 1994 a Lei n° 3/94 que define a criagéo das autarquias e dos municipios. No que concerne as autoridades tradicionais, a Lei estabelece no artigo 8, § 1 que: “ 0 ministério que superintende na fungdo piblica e na administracdo local do Estado coordenaré as polfticas de enquadramento das autoridades tradicionais e de outras formas de organizacéo comunitéria pelos distritos municipais, de modo a estabelecer os mecanismos da sua participacéo na escolha e realizagdo das politicas que visem a satisfacdo de interesses especificos das populagées abrangidas”. Pag 7 de 16 No § 2 estabelece-se que: “os 6rgaos dos distritos municipais auscultam as opiniées e sugestées das autoridades tradicionais reconhecidas pelas comunidades como tais, de modo a coordenar com elas a realizacdéo de actividades que visem a satisfagéo das necessidades especificas das referidas comunidades” As Areas em que as autoridades tradicionais devem colaborar com os érgaos distritais so na gestao das terras, cobranga de impostos, manutengio da ordem, divulgagao e implementacdo das decisdes dos érgios do Estado, abertura e manuteng3o de vias de acesso, recenseamento da populagao, recolha e fornecimento de informagéo relevante A resolugdo dos problemas das comunidades, manutengdo da satide e prevengéo de epidemias e doengas contagiosas, prevengéo de incéndios, de caga e pesca ilegais, protecg&o do meio ambiente, preservacio da floresta e fauna bravia, promogio da actividade produtiva, preservagéo do patriménio fisico e cultural (artigo 9.°). Nota-se bem que esta nova Area de colaboragao entre o Estado e as autoridades tradicionais traduz-se numa reposigao quase integral das fungdes exercidas por estas para a Administragao colonial. Pag 8 de 16 Na continuagao da andélise da legislac&o produzida pelo Governo central, demonstra-se perfeitamente que a questao do enquadramento legal das autoridades tradicionais constituiu um assunto de grande importancia, sobretudo durante os anos de 1994 a 1996. © préprio Programa do Governo mogambicano, de 1995 a 1999, aprovado pela Assembleia da Reptblica, em 9.de Maio de 1995, coma resolug&o n.* 4/95, no capitulo da Organizac&o do Estado defende: “O estabelecimento de mecanismos institucionais de enquadramento das autoridades e outras formas de organizagéo social das comunidades locais que, embora ndo fazendo parte do sistema administrativo estatal e municipal, exercem influéncia relevante na sociedade civil”. Finalmente, em 20 de Junho de 2000 o Governo promulgou © Decreto n.° 15/2000, que constituiu o Gltimo e mais importante acto legislativo no processo de institucionalizagao das autoridades tradicionais. Este Decreto constitui-se como uma espécie de RAU em versao xesumida. Nesse sentido, os anteriores conceitos de autoridades tradicionais (Lei n.° 3/94, ou Lei dos Municitpios) e de lideres locais (Lei n.° 19/97, ou Lei das Terras) s&0 substitufdos pelo de autoridades comunitérias, que séo “(..) os chefes tradicionais, os secretérios de bairro ou aldeia e outros lideres legitimados como tais pelas respectivas comunidades locais” (artigo 1,8 1. Pag 9 de 16 A Lei n.* 15/2000 estabelece ainda: “No desempenho das suas fungdes administrativas, os é6rgéos locais do Estado deverao articular com as autoridades comunitdrias, auscultando opinides sobre a melhor maneira de mobilizar e organizar a participagdo das comunidades, na concepcdéo e implementagéo de programas e planos econémicos, sociais e culturais, em prol do desenvolvimento tocal” (art. 1, §2). Deste modo, as autoridades comunitarias ficam confinadas ao papel de consultores do Estado local. As 4reas funcionais de “articulac&o” atribuidas pelo Estado para actuagdo das autoridades comunitarias, conforme seu artigo 4.°, séo as seguintes: a) Paz, justiga e harmonia social; b) Recenseamento e registo da populagao; ©) Educagéo civica e elevagdo do espirito patriético; a) Uso e aproveitamento da terra; e) Emprego; £) Seguranca alimentar; g) Habitagao prépria; h) Satide ptiblica; i) Educagdo e cultura; j) Meio ambiente; k) Abertura e manutengdo de vias de acesso. Como se constata, uma parte significativa destas areas de actuagdo repde no essencial as atribuicées que as autoridades tradicionais j4 desempenhavam sob a égide do Estado colonial. 0 ponto referente a Educagdo Pag 10 de 16 civica e elevagio do espirito patriético constituiu uma atribuicdo “moderna”. 3.2. A experiéncia Namibiana. A constituigio Namibiana prevé a existéncia de um conselho dos lideres tradicionais que, em cada regiao assessora o local “government” em determinadas matérias. Esta disposicao constitucional foi, mas tarde, desenvolvida pelo act 13 of Parliament de 1997 funcionamento do conselho sSo consagrados os poderes ¢ fungSes das autoridades tradicionais e que pode ser resumido da seguinte forma: a) Promogio da paz e da aplicagio do direito costumeiro, entre as comunidades tradicionais; b) Preservar e promover a cultura e as linguas tradicionais; c) Apoiar a Policia na promogo e investigagSo de crimes; d) Apoiar e cooperar com as autoridades administrativas locais na execugdo das suas politicas e informar sobre a sua execugo nas respectivas areas; e) Assegurar que os membros da comunidade facam uma gest&o sustentével dos recursos naturais bem como o respeito e preservacéo do ambiente; Pag 11 de 16 £) Proceder ao recenseamento ¢ controlo dos membros da respectiva comunidade; g) Arrecadar e cobrar receitas. 4. © futuro relacionamento o poder tradicional e a Administracdo PGblica estadual e autérquica. Estas duas experiéncias comparativas de dois paises africanos préximos, um que compartilha connosco a fronteira sul e outro com a mesma vivéncia de colonizagéo, servem apenas para ilustrar a nossa exposigio e ajudar-nos a compreender os factos sociais, histé6ricos, jurfdicos, antropolégicos administrativos que o poder tradicional comporta. © institucionalismo tradicional —_(correntemente designado de poder tradicional ou de autoridades tradicionais) podera, finalmente, ser reconhecido no texto da constituigao angolana como uma das manifestagSes da autonomia local e, desde logo, como um elemento estruturante e qualificativo do nosso Conceito de poder local, por respeito ao peso histérico, social, cultural, politico e juridico que essa realidade (poder tradicional) representa no desenvolvimento a afirmagio global do futuro da administrag&o local auténoma no nosso pais. A abordagem do poder local, nesta perspectiva, permite de uma vez por todas superar o posicionamento timido do Estado (desde a independéncia) clarificando a sua epcéo pelo reconhecimento das_—sinstituigdes tradicionais elas préprias corporizadas de uma Pag 12 de 16 realidade juridica, administrativa, cultural e politica, em tese geral, alheia ao Estado, ou seja auténoma deste. © ‘reconhecimento do poder tradicional como uma instituiggo auténoma € um imperativo do principio do Estado democrético de direito aplicado a uma realidade especifica como a nossa. Esse reconhecimento deve permitir a clarificag&o do espacgo de intervencio das instituigdes tradicionais o qual, para efeitos de exercicio do poder local, a partida, sob o ponto de vista territorial, deve confinar-se ao espacgo que corresponde as comunas e povoagdes e, sob o ponto de vista funcional, deve corresponder a um conjunto de tarefas de gest& administrativa das comunidades locais sob a sua jurisdig&o, como por exemplo: a administragao de bens préprios e a seu cargo; promocao do desenvolvimento e da actividade produtiva; abertura e manutengio de vias de acesso; recenseamento da populagio; proteccao do meio ambiente, do patriménio fisico e cultural; divulgacdo e implementagSo das decisdes dos érg&os autarquicos e do Estado, ete. etc. A determinagio do espago de intervengdes das autoridades tradicionais deve obrigar a reflexSo sobre os modos e os efeitos praéticos de intervengao dessas autoridades nos escalées acima da comuna, quando o poder a si conferido, de acordo com usos e costumes tradicionais, se estenda até aqueles escaldes. A constituiggo poderé dar a indicag&o geral apontado para a intervengdo singular dessas entidades quer como candidatos independentes integrados em listas de Pag 13 de 16 Partidos concorrentes as eleigdes autérquicas nos xespectivos escalées acima da comuna, quer através das promogao de candidaturas independentes, quer ainda mediante a sua _necessdria_integracéo em _érgaos consultivos nacionais ou locais dedicados @ matéria do poder local (como por exemplo na Comiss&o Nacional para os assuntos locais e do poder tradicional) . Esta solugaéo permite, ab initio, acautelar uma situagio de facto e indesmentivel: as instituigées tradicionais nado tém (nem se cré que a tendéncia aponte para que possam vir a ter) capacidade de gestdo global das provincias e municipios, na configuragao territorial que a estes é atribuida actualmente, e sobretudo, tendo em atengao 0 salto que devera ocorrer na dinamica do desenvolvimento dessas circunscrigées territoriais com a jintrodugéo de verdadeiras e efectivas férmulas de descentralizacdo administrativa e financeira. Assim se deveré assumir que: a) © poder tradicional é aquele poder exercido no seio da organizago politico comunitaria tradicional, através de autoridades designadas, de acordo com os valores e normas consuetudinérias locais, visando a satisfagao dos interesse préprios definidos no seio do agregado populacional baseado no territério da comunidade; b) As instituigdes organizatérias tradicionais constituem especificas formas de organizago do Pag 14 de 16 poder local reconhecidas e respeitadas pelo Estado; Xe) As modalidades de participacao/intervencao, a organizagao, as atribuigées, o modelo(s) - tipo, as relagSes institucionais com as autarquias o regime de controlo a que estar&o sujeitas pelo Estado e em geral o regime especial das instituigées organizatérias tradicionais deverdo ser tratados em lei pr Ora se este é o futuro, os problemas sao actuais e exigem um tratamento urgente. Por essa raz&o, concordo, plenamente, com as conclusées a que chegou o estudo da Administragio Local quando exemplifica fungédes que podem ser desenvolvidas pelas instituicdes do poder tradicional, tais como: * Gestéo de terras comunitérias e participacdo na definic&o dos direito de posse ou ocupagSo, uso e fruig&o sobre os terrenos rurais comunit&rios; * Apoio ao recenseamento da populagao; * Registo de nascimento e falecimento; * Educa¢ao para a satide e cuidados prim4rios de satde; * Construgéo e manutengdo de infra-estruturas sociais (escolas, postos de satide, fontenarios, postos de abeberamento para gado) ; Pag 15 de 16 * Execugdo de programas para construgao; * Preservagéo da floresta e fauna __ bravia, nomeadamente na execugao de missdes de xepovoamento florestal; * Prevengdo e extingdo de queimadas; * Exploragdéo de recursos naturais, (lenha, carvao, materiais de construgao inertes) ; D * (Re)assentamento da populagao; * Cobranga de taxas e impostos; * Organizag&o de mercados locais. Para terminar quero reafirmar que as posigdes aqui expressas ¢ defendidas constituem convicgdes pessoais. Mas n&o as apresento de forma dogmatica e indiscutivel. Estou aberto ao dialogo e A discussao serena deste t&éo candente e apaixonante problema. Assim, agradego a atengao que me prestaram e coloco- me, desde j&, A vossa inteira disposigao para eventuais esclarecimentos. Muito obrigado! Pag 16 de 16

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