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Universidade de São Paulo

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – FFLCH


Grupo de Estudos de Adaptação e Tradução – GREAT
Great Online Translation/ Adaptation School – GOTAS
Curso de Extensão Universitária – A Babel da Poética e Literária: a tradução em vários
idiomas
21.09.2021 – Aula 4: Tradução de literatura infantil: estudo de duas traduções para o
português de Revolting Rhymes de Roald Dahl
Prof. Mestre Valquiria Pereira Alcantara

Conceitos fundamentais
A criança e a infância
Zohar Shavit
“A sociedade está tão habituada com infância, assim como a existência de livros para
crianças, que se esquece que ambos os conceitos, infância e livros para crianças, são
relativamente recentes; ou seja, a percepção atual de infância está muito distante daquela
que havia há somente dois séculos atrás. Além disso, literatura para crianças começou a
ser desenvolvida somente depois de a literatura para adultos ter se tornado uma instituição
bem estabelecida. Livros especialmente para crianças eram raramente escritos até o
século dezoito e a indústria do livro para crianças teve seu florescimento somente na
segunda metade do século dezenove.” (SHAVIT, 2009, p. 3, tradução nossa)
O Iluminismo propiciou mudanças ideológicas que favoreceram a alteração da percepção
em relação às crianças.
Perrault: presença de tom irônico e final trágico no contos; dualidade de leitores (criança
como leitora oficial e adultos como leitores não oficiais); sistema educacional difuso;
poucas demonstrações de afeto entre crianças e adultos; Perrault frequentava salões
aristocratas e seu ponto de vista refletia a aristocracia.
Grimm: ausência de tom irônico e presença de tom ingênuo e final feliz; inicialmente os
contos não eram necessariamente direcionados às crianças, mas foram feitas alterações
com este intuito; sistema educacional mais bem estruturado; demonstrações de afeto entre
crianças e adultos; adultos assumem a responsabilidade de proteção e educação das
crianças; livros foram vistos como instrumento pedagógico.
Robert Darnton
“[...] contos tradicionais são documentos históricos. Eles evoluíram ao longo de muitos
séculos e se modificaram de acordo com diferentes tradições culturais. Longe de
expressar características internas imutáveis dos indivíduos, os contos sugerem que houve
mudanças na maneira de pensar.” (DARNTON, 1984, p. 13, tradução nossa)
Concentrou estudos no período do Antigo Regime e apresenta reflexões acerca do ponto
do vista dos camponeses: condições precárias de vida, alto índice de mortalidade entre
crianças e mulheres, crianças e adultos compartilhavam o mesmo ambiente e as tarefas
para subsistência da família.

Colin Heywood
“[...] A primeira é a de que a infância deve ser compreendida como uma construção social.
Em outras palavras, os termos “criança” e “infância” serão compreendidos de formas
distintas por sociedades diferentes. [...] O segundo elemento do novo paradigma é de que
a criança é uma variável da análise social, a ser analisada em conjunto com outras, como
a famosa tríade classe, gênero e etnicidade. [...] A terceira afirmação era a de que as
crianças devem ser consideradas como partes ativas na determinação de suas vidas e das
vidas daqueles que estão a seu redor. Pode-se dizer que um dos principais pontos fracos
da ênfase inicial neobehaviorista na socialização era sua redução das crianças a
receptáculos passivos dos ensinamentos adultos.” (HEYWOOD, 2004, pp. 12,13)

Literatura infantil
Há diversos pesquisadores, mas julgamos mais apropriadas as definições de Lucia
Pimentel Góes “linguagem carregada de significados até o máximo grau possível e
dirigida ou não às crianças, mas que responda às exigências que lhes são próprias.”
(GÓES, 2010, p. 27)
Ligia Cademartori
“As obras infantis que respeitam seu público são aquelas cujos textos têm potencial para
permitir ao leitor infantil possibilidade ampla de atribuição de sentidos àquilo que lê. A
literatura infantil digna do nome estimula a criança a viver uma aventura com a linguagem
e seus efeitos, em lugar de deixá-la cerceada pelas intenções do autor, em livros usados
como transporte de intenções diversas, entre elas o que se passou a chamar de
“politicamente correto”, a nova face do interesse pedagógico, que quer se sobrepor ao
literário.” (CADEMARTORI, 2010, p. 17)
Estudos da Tradução – enfoque funcionalista
“[...] a produção de um texto alvo funcional, mantendo-se uma relação com um
determinado texto fonte que é especificada de acordo com a função pretendida ou exigida
do texto alvo (skopos). A tradução permite que um ato comunicativo aconteça, o que de
outra forma não seria possível devido às barreiras linguísticas e culturais.” (NORD, 2016,
p. 61)
Com o objetivo de desenvolver um método para formação de tradutores, Nord desenvolve
um conjunto de questões para auxiliar a análise do texto de partida e de chegada dando
suporte às decisões tradutórias. São analisados fatores extratextuais, intratextuais e para
analisar efeitos do texto, não propostas questões, mas alguns aspectos são identificados.

Modalidades de tradução
Francis H. Aubert (2006) propõe uma revisão dos procedimentos identificados por Vinay
e Darbelnet (1958/1972):
1. Omissão
2. Espelhamento – 2.1 Empréstimo; 2.2 Decalque
3. Literalidade – 3.1 Transcrição; 3.2 Tradução palavra por palavra; 3.3 Transposição; 3.4
Explicitação
4. Equivalência – 4.1 Implicitação; 4.2 Modulação; 4.3 Adaptação
5. Tradução Intersemiótica
6. Erro

Transtextualidade ou transcendência textual segundo Gérard Genette


“tudo que o coloca em relação, manifesta ou secreta, com outros textos.” (GENETTE,
2006, p. 7)
Identifica cinco relações textuais:
Intertextualidade: “[...] uma relação de co-presença entre dois ou vários textos [...]”
(GENETTE, 2006, p. 8)
Relação entre texto literário e paratexto: título, subtítulos, intertítulos, prefácios, notas,
ilustrações etc.
Metatextualidade: “[...] relação, chamada mais corretamente de ‘comentário’, que une um
texto a outro texto do qual ele fala, sem necessariamente citá-lo.” (GENETTE, 2006, p.
11)
Arquitextualidade: “[...] conjunto das categorias gerais ou transcendentes – tipo de
discurso, modos de enunciação, gêneros literários, etc – do qual se destaca cada texto
singular” (GENETTE, 2006, P. 7)
Hipertextualidade: “[...] toda relação que une um texto B (que chamarei de hipertexto) a
um texto anterior A (que, naturalmente, chamarei hipotexto) do qual ele brota de uma
forma que não é o comentário.” (GENETTE, 2006, 12, grifos do autor)
Genette propõe uma classificação taxinômica da qual depreendemos o conceito de
paródia: “um hipertexto que resulta de uma transformação lúdica de um hipotexto.”
(ALCANTARA, 2018, p. 36)
Quanto à tradução, Genette “aponta como mais proveitoso discutir e identificar, de um
lado, os textos que são mais passíveis de serem afetados pela tradução – entre os quais se
incluem os textos literários – e os textos que tendem a ser menos afetados por ela, ou seja,
todos os demais textos.” (ALCANTARA, 2018, p. 36)

Tradução de literatura infantil


Riitta Oittinen
Aspectos referentes à tradução de literatura infantil: “[...] o livro para crianças usualmente
apresenta texto verbal e ilustrações em interação, formando um todo;” (ALCANTARA,
2018, p. 37) leitura em voz alta; produzido por adultos para crianças; “[...] aspectos
linguísticos e estéticos interferem nas decisões do tradutor [...]” (ALCANTARA, 2018,
p. 37); avaliação da adequação do tema diretamente relacionado à ideologia vigente na
sociedade de chegada.

Gillian Lathey
Ressalta a importância de levar em conta o duplo leitorado, ou seja, o adulto e a criança
e as camadas de sentido perceptíveis de formas diferentes pelos leitores de acordo com
suas experiências; também ressalta a importância da voz narrativa que pode ser um
narrador onisciente e veicular ironia (perceptível para o adulto) ou pode ser um narrador
personagem permitindo maior aproximação com a criança. Apresentar a obra do ponto de
vista da criança é desafio maior.
Ambas Oittinen e Lathey destacam a relevância da imagem de criança prevalente por
interferir na decisão de domesticação ou estrangeirização.
Zohar Shavit
“A autoimagem do sistema infantil é determinada, como qualquer outra autoimagem, por
pontos de vista externos e internos, mutuamente dependentes, de fatores sociais em uma
dada cultura. O ponto de vista externo está associado a como outros sistemas consideram
o sistema infantil, enquanto o interno refere-se a como o sistema vê a si próprio.”
(SHAVIT, 2009, p. 34, tradução nossa)
“O que possibilita o aparecimento do texto ambivalente para dois grupos de leitores do
ponto de vista estrutural é o fato de que o texto é composto de pelo menos dois modelos
diferentes e coexistentes – um, mais estabelecido, e outro menos. O primeiro é mais
convencional e endereçado ao leitor infantil; o outro, endereçado ao leitor adulto, é menos
estabelecido, mais sofisticado e, às vezes, baseado em distorção e/ou adaptação e
renovação do modelo mais estabelecido. Isso é obtido de várias maneiras: parodiando
alguns elementos; introduzindo novos elementos no modelo (às vezes de outro modelo
estabelecido); alterando a motivação de elementos existentes; mudando funções e
hierarquia dos elementos; ou alterando os princípios de segmentação do texto.”
(SHAVIT, 2009, p. 68, tradução nossa)
Segundo Shavit, a afiliação de um texto ao sistema literário infantil deve-se observar:
“[...] a afiliação do texto a modelos existentes; a integralidade dos modelos primários ou
secundários do texto, o grau de complexidade e sofisticação do texto. o ajuste do texto a
propósitos ideológicos e didáticos; e o estilo do texto” (SHAVIT, 2009, p.115, tradução
nossa)

Funções e relações entre textos verbal e visual segundo Sophie Van der Linden
Textos verbal e visual interagem e a leitura tem como ponto de partida um ou outro texto.
Aquele a partir do qual se inicia a leitura assume a primazia em relação ao outro.
Relação de redundância: congruência do discurso com sobreposição total ou parcial.
Função de repetição e função de seleção.
Relação de colaboração: construção do discurso por meio da articulação do texto verbal
e das imagens; sentido emerge da articulação de ambos.
Função de revelação e função completiva.
Relação de disjunção: narrativas paralelas, sem ponto de convergência; há quebra de
expectativa.
Função de contraponto e função de amplificação
Referências
CADEMARTORI, Lígia. O que é literatura infantil. 2ª ed., São Paulo: Brasiliense, 2010
(Coleção Primeiros Passos, 163).
DAHL, Roald. Revolting Rhymes. Illustrated by Quentin Blake. London: Puffin Books,
2001
______. Historinhas em versos perversos. Ilust. Quentin Blake. Trad. Luciano Vieira
Machado. São Paulo: Salamandra/ Moderna, 2007.
______. Histórias em versos para meninos perversos. Ilust. Quentin Blake. Trad. Luísa
Ducla Soares. Lisboa: Editorial Teorema, 2010.
DARNTON, Robert. The Great Cat Massacre and other episodes in French cultural
history. New York: Basic books, 2009. (edição não mencionada)
EASTWOOD, John. Oxford Guide to English Grammar. Oxford: Oxford University
Press, 1995 (second impression)
GENETTE, Gérard. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. 2ª ed., Belo Horizonte:
Edições Viva Voz, 2006.
GÓES, Lúcia Pimentel. Introdução à Literatura para Crianças e Jovens. São Paulo:
Paulinas, 2010.
HEYWOOD, Colin. Uma história da infância: da Idade Média à época contemporânea
no Ocidente. trad. Roberto Cataldo Costa. Porto Alegre: Artmed, 2004.
LATHEY, Gillian. Translating Children’s Literature. London: Routledge, 2016.
______. (editor) The Translation of children’s Literature: A Reader. Clevedon:
Multilingual Matters Ltd, 2006 (Topics in Translation: 31)
LINDEN, Sophie Van der. Para ler o livro ilustrado. trad. Dorothée de Bruchard. São
Paulo: Cosac Naify, 2011.
NORD, Christiane. Análise textual em tradução: bases teóricas, métodos e aplicação
didática. Coordenação da tradução e adaptação Meta Elisabeth Zipser, São Paulo: Rafael
Copetti Editor, 2016.
OITTINEN, Riitta. “No Innocent Act: On the Ethics of Translating for Children”, In:
COILLIE, Jan Van & VERSCHUEREN, W. P. (edited by) Children’s Literature in
Translation: Challenges and Strategies. London: Routledge, 2006, p. 35-45.
ROSAS, Marta. Tradução de humor: transcriando piadas. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002.
SHAVIT, Zohar. Poetics of Children’s Literature. Athens/ London: University of
Georgia Press, 2009 (paperback edition)

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