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Capítulo II – Cinema – Cinema
leituras de jornais de Ricardo Reis e a alguns filmes versões da realidade [...] Uma das formas que toma
que a personagem assistirá nos cinemas de rua de essa ênfase é o destaque dado aos contextos em
Lisboa. Questionando o modus vivendi de figuras que a ficção está sendo produzida – tanto pelo autor
ficcionais e o seu relacionamento com a morte, o autor como pelo leitor. Em outras palavras, as questões
retoma a criação heteronímica de Pessoa, e procura da história e da intertextualidade irônica exigem uma
consideração de toda a situação “enunciativa” ou
solucionar a possibilidade da morte introduzindo-a
discursiva da ficção. (Hutcheon 1988, 64)
em sua própria obra como a desintegradora
supremamente duvidosa do não-certo. Saramago Desse modo, conforme a autora, a metaficção
(1998) apropria-se de tal prerrogativa da criação historiográfica formula questões epistemológicas e
heteronímica, promovendo assim uma narrativa ontológicas a respeito dos “regimes de historicidade”,
funesta sobre um término já antecipado no próprio título conceito desenvolvido por Hartog (2013), ou seja, das
da obra. A criação saramaguiana possui dobradiças maneiras de se refletir e articular passado, presente
e costuras que realizam a unidade harmônica dos e futuro, compondo um misto dessas três categorias,
acordes/acordos entre os seus instáveis e inevitáveis lançando dúvidas sobre a possibilidade de qualquer
procedimentos literários. consistente “garantia de sentido”, qualquer que seja
O autor efetua, além da intertextualidade com sua localização no discurso.
textos de outros autores e de uma cinematografia da É preciso ressaltar, aliás, que cada sociedade
década de 1930, um processo de intertextualidade constrói os seus próprios regimes de historicidade,
entre os seus próprios textos, citando-se a si que dizem respeito a algo mais ativo que “época”,
próprio, espalhando por suas obras, citações que, pois é a expressão da experiência temporal, haja
de tão breves, tornam-se em mera referência, vista que organiza o passado como uma “sequência
transformando-se então, em alusão, que é menos clara de estruturas”, uma Erfahrung do tempo que conforma
e exige a competência do leitor. A esse procedimento os modos de vivenciar o próprio tempo. É preciso
tipicamente saramaguiano daremos o nome de ressaltar que o tempo, juntamente com o espaço, é
autorreferencialidade alusiva; procedimento esse em um dos a priori kantianos. Segundo Kant,
que o autor espelha a sua própria criação, caindo numa
espécie muito particular de mise en abyme. A narrativa O tempo não é um conceito empírico que derive
saramaguiana perfaz uma dobra sobre si mesma, de uma experiência qualquer. Porque nem a
descortinando uma multiplicidade de dobraduras, uma simultaneidade nem a sucessão surgiriam na
percepção se a representação do tempo não fosse
variedade de modos de dobrar a obra, levando-a ao
o seu fundamento a priori. Só pressupondo-a
labirinto infinito da dobra sobre dobra, numa ausência
podemos representar-nos que uma coisa existe
de centro em que os pontos de vista se multiplicam no num só e mesmo tempo (simultaneamente), ou em
pensamento que é posto em movimento por sínteses tempos diferentes (sucessivamente). O tempo é uma
disjuntivas, pois somos forçados a manter-nos representação necessária que constitui o fundamento
diante da disjunção, por não termos mais à nossa de todas as intuições. Não se pode suprimir o próprio
disposição a potência reconciliadora e unificadora dos tempo em relação aos fenômenos em geral, embora
princípios, onde tudo diverge na dessemelhança e no se possam perfeitamente abstrair os fenômenos do
desencontro. Assim, narrar é dobrar, duplicando o fora tempo. O tempo é, pois, dado a priori. Somente nele
com um dentro que lhe é coextensivo na busca de um é possível toda a realidade dos fenômenos. De todos
perpétuo reencadeamento que aproxime o sujeito de estes se pode prescindir, mas o tempo (enquanto a
condição geral da sua possibilidade) não pode ser
um Uno (Deleuze 1991).
suprimido. (Kant 2001, 96)
Ao tecer a narrativa de Ricardo Reis, Saramago
(1998) vai buscar uma personagem literária,
estritamente literária, para torná-la centro de uma obra Posto isto, os regimes de historicidade designam,
de metaficção historiográfica (Hutcheon 1988), cuja logo, formas específicas de experiência do tempo,
problematização do conhecimento histórico se voltará ocorrendo a dominância, em cada sociedade, de
para a necessidade e o risco de distinção entre a ficção uma das instâncias temporais sobre as outras:
e a história como gêneros narrativos. A metaficção regime de historicidade passadista ou presentista
historiográfica articula uma complexa rede institucional ou futurista. Sua função é articular as instâncias do
e discursiva de variados modos culturais, porquanto tempo, expondo/inibindo as relações hierárquicas que
promovem certas formas de experiência do tempo.
[...] esse tipo de ficção não só é auto-reflexivamente O processo de criação da metaficção historiográfica
metaficcional e paródica, mas também tem pretende, por isso, deixar visível aquele subtexto
reivindicações com relação a certo tipo de referência ideológico determinante das condições da própria
histórica recém-problematizada. Mais do que
possibilidade de produção e de sentido nas práticas
negar, ela contesta as “verdades” da realidade
e da ficção – as elaborações humanas por cujo
culturais, incorporando, desse modo, os discursos
intermédio conseguimos viver em nosso mundo. artísticos, históricos e teóricos, repensando a
A ficção não reflete a realidade, nem a reproduz. reelaboração das formas e conteúdos do passado,
Não pode fazê-lo. Na metaficção historiográfica não desafiando as fronteiras entre vida e arte, ao
há nenhuma pretensão de mimese simplista. Em jogar com as margens dos gêneros. A metaficção
vez disso, a ficção é apresentada como mais um historiográfica insere/subverte o seu envolvimento
entre os discursos pelos quais elaboramos nossas mimético com o mundo, onde todas as noções de
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AVANCA | CINEMA 2021
realismo ou referência entre o discurso da arte e Porém, o poeta clássico prefere deixar para outra
da história são definitivamente modificados através ocasião o assistir deste filme. Depois, ao ler os
da sua confrontação, eliminando a distância entre jornais, Ricardo Reis vê o anúncio do filme histórico
arte de elite e arte popular. No processo narrativo é As cruzadas, exibido no cine Politeama. O filme The
apresentado um novo modelo para a demarcação Crusades é uma produção norte-americana de 1935,
da fronteira entre a arte e o mundo, contesta-se dirigido por Cecil B. De Mille, e narra a história do rei
as verdades da realidade e da ficção, pois esta Ricardo Coração de Leão na Terceira Cruzada e sua
não reflete a realidade, e muito menos a reproduz. relação com Berengária, princesa de Navarra. No
Contesta-se a separação entre o artístico e o histórico, século XII, Jerusalém cai nas mãos dos sarracenos e
com a incorporação textual de passados intertextuais os cristãos são mortos ou vendidos como escravos.
enquanto elemento estrutural que constitui as criações Dessa forma, a Europa é conclamada a empreender
contemporâneas, funcionando como marca formal nova cruzada contra os infiéis. Para fugir de um
da historicidade da obra. Desse modo, a metaficção casamento incômodo com Alice, Princesa de França,
historiográfica problematiza a natureza da narrativa o rei da Inglaterra, Ricardo Coração de Leão, conduz
questionando a sua legitimidade enquanto projeto seus cavaleiros para a Terra Santa. Ao passar por
global de explicação. A história aproxima-se de uma Navarra, casa-se com a Princesa Berengária e a leva
fábula com uma veste tênue que pode ser rasgada junto na empreitada, porém, o casal real concorda em
facilmente por uma lâmina chamada Agora. Ou seja, que ela permaneça virgem até a vitória final. Com o
ficção e história se confundem na escritura de uma intuito de deter os cruzados, o sultão Saladino rapta
aventura, caracterizada por tentar a produção de uma Berengária, mas acaba atraído por ela. Ricardo
ficção onde os mecanismos da realidade cotidiana parte para resgatá-la e, depois de tomar Acre, põe
aglutinam-se sem dificuldade alguma às leis da seus homens no caminho da Cidade Sagrada. Após
criação artística. muitas mortes, Saladino pede uma trégua e Ricardo e
A ficção é, desse modo, a história que se torna Berengária finalmente consumam o matrimônio.
problema, que é colocada em dúvida ou em questão Após um dia inteiro fora do hotel, a personagem
pela obra literária que leva à interrogação sobre a retorna para o jantar no Hotel Bragança e sai
realidade. Nas relações entre ficção e história é a novamente para assistir ao filme sobre as cruzadas,
obra que se volta para o mundo, onde a expressão
individual adquire dimensão social; e ainda, a própria [...] que fé, que ardorosas batalhas, que santos e
expressão individual sendo um fato sociológico com heróis, que cavalos brancos, acaba a fita e perpassa
o resgate da subjetividade dos agentes históricos, na Rua de Eugénio dos Santos um sopro de religião
épica, parece cada espectador que transporta à
em que a inscrição da situação histórica no texto
cabeça um halo, e ainda há quem duvide de que a
(contexto), e vice-versa, é o signo de uma tendência
arte possa melhorar os homens. (Saramago 1998, 8)
literária e a consequente tomada de consciência
histórica. Os fenômenos sociais podem ser assim
definidos a partir das condutas individuais, e o início Em outra noite, após conversar com o doutor
da análise sociológica se dará através da ação dos Sampaio e sua filha Marcenda durante o jantar,
indivíduos, pois as estruturas sociais não possuem um Ricardo Reis sai a vagar pela cidade, entrando em
sentido intrínseco; entretanto, terão o sentido que os alguns cinemas para simplesmente ver os cartazes.
próprios indivíduos imprimem às suas ações. Logo após a mudança para sua nova residência, a
Ao manter as suas constantes andanças pela personagem almoça no restaurante Chave de Ouro e,
cidade-labirinto, o flâneur saramaguiano desce aos antes do anoitecer completo,
baixos da urbe e assiste a um filme francês, refletindo
então que os filmes são semelhantes à poesia, arte [...] compra bilhete para o cinema, vai ver O
da ilusão; basta ajeitar-lhes um espelho, que se forja Barqueiro do Volga, filme francês, com Pierre
um pântano ou um oceano. O primeiro contato da Blanchard, que Volga terão eles conseguido inventar
em França, as fitas são como a poesia, arte da
personagem Ricardo Reis com o cinema, em Lisboa,
ilusão, ajeitando-lhes um espelho faz-se de um
se dará logo após o “bodo” do jornal na Rua do Século.
charco o oceano. (Saramago 1998, 235)
Depois de entrar em duas livrarias, Ricardo Reis hesita
diante do cine Tivoli que exibe o filme Gosto de todas
as mulheres (J’aime toutes les femmes), uma produção O filme The Volga boatman é uma produção de
francesa de 1935, dirigida pelo cineasta Karel Lamac. 1926, dirigido por Cecil B. DeMille e narra a história,
A personagem Jean Morena, interpretada pelo ator durante a Revolução Russa de 1917, de uma
Jean Kiepura, é um famoso tenor de ópera que está princesa russa que, embora prometida ao príncipe,
determinado a mudar seus compromissos para ter sente-se atraída por um barqueiro do rio Volga. Esses
alguma liberdade após a apresentação. Por isso, barqueiros são pessoas simples que transportavam os
seu empresário teve a ideia de contratar Eugène nobres em carroças. O cineasta estadunidense pinta
– personagem interpretada pelo mesmo ator, um o retrato da revolução bolchevique, não na escala
trabalhador de mercearia que se parece com o política, mas num nível pessoal, conta a história de
protagonista do filme e está disposto a se tornar um amor entre um camponês e uma princesa.
cantor – para tomar seu lugar. O destino os fará mudar Sozinho em sua casa, Ricardo Reis pensa em
de lugar também nos negócios românticos. Fernando Pessoa e nos outros heterônimos, Alberto
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Caeiro, já morto, e Álvaro de Campos, que se mudara Cristãos ou ateus, em nossa universal esquizofrenia
para Glasgow. De vez em quando frequenta as salas precisamos de razões para crer neste mundo. É toda
de cinema, uma conversão da crença. Já foi feita uma grande
guinada da filosofia, de Pascal a Nietzsche; substituir
[...] a ver o Pão Nosso de Cada Dia, de King Vidor, o modelo do saber pela crença. Porém, a crença
ou Os Trinta e Nove Degraus, com Robert Donat e substitui o saber tão-somente quando se faz crença
Madeleine Carrol, e não resistiu a ir ao S. Luís ver neste mundo, tal como ele é.
Audioscópios, cinema em relevo, trouxe para casa, (Deleuze 1990, 207-208).
como recordação, os óculos de celulóide que tem
Dessa maneira, o cinema se torna a percepção
de ser usados, verde de um lado, encarnado do
outro, estes óculos são um instrumento poético, tornada linguagem integradora do homem-discurso ao
para ver certas coisas não bastam os olhos naturais. mundo natural, retratando, por conseguinte, o drama
(Saramago 1998, 325) homem/mundo. Ao fazer com que a personagem de
seu romance perambule pela cidade e assista a vários
Ricardo Reis chega a assistir às gravações de filmes, Saramago se utiliza do recurso do formal realism
A revolução de maio, filme baseado no romance (Watt 1957), cujo método narrativo incorpora uma
Conspiração, de Tomé Vieira, que lera por visão circunstancial da vida a partir de um conjunto de
recomendação de outra personagem do romance. procedimentos narrativos que são peculiares ao gênero
O longa-metragem português, realizado por António romance e, apesar de ser uma convenção, possui
Lopes Ribeiro, no ano de 1937, é uma obra de vantagens específicas, porquanto existem diferenças
propaganda ideológica do salazarismo financiada pelo importantes no grau em que as diferentes formas
Secretariado de Propaganda Nacional, comandado literárias mimetizam a realidade, o que lhe permite uma
por António Ferro. A personagem principal é um contrafação mais imediata da experiência individual
homem com inclinações comunistas que se apaixona situada num contexto temporal e espacial.
por uma mulher simpatizante da ditadura portuguesa. Segundo Lukács (2000), isso vai ocorrer porque a
Desenvolve-se, então, uma luta do bem contra o mal, arte se tornou independente dos modelos clássicos
das ideias do salazarismo contra as do comunismo. No e, atualmente, o romance já não é mais a cópia
fim, o homem acaba por abandonar os seus antigos de um modelo pré-estabelecido, mas sim uma
pontos de vista e abraça a causa do ditador Salazar. totalidade criada, visto que a “unidade natural das
O investigador Victor atua como ator no filme de esferas metafísicas” se rompeu. O romance, como
produção alemã, e mesmo após o “corta” do diretor, “epopeia da era burguesa”, estaria, desse modo,
o investigador continua a interpretar, confundido paradoxalmente condenado à fragmentariedade e à
realidade e ficção. Saramago aproveita então para insuficiência por um substrato histórico-filosófico, além
tecer críticas à polícia salazarista: de ser a “narrativa de uma era” para a qual a totalidade
extensiva da vida não se dá de modo evidente e cuja
[...] O Victor ainda vai no balanço dos desabafos, imanência tornou-se problemática apesar de possuir
não consegue calar-se, o caso para ele é a sério [...] uma intenção à totalidade. Dessa forma, na poética de
O Victor já desceu com a sua esquadra, levam os sua metaficção historiográfica, Saramago (1998) tece
prisioneiros algemados, têm uma tal consciência do
sua narrativa semelhante a um historiador que coloca
seu dever de polícias que até esta comédia levam
um problema a partir das motivações de sua própria
a sério, tudo quanto é preso deve aproveitar-se,
mesmo sendo a fingir. (Saramago 1998, 368-369) época, pois não existe uma realidade histórica que se
apresente ao historiador por si mesma; sendo assim, o
A partir desses recortes do romance saramaguiano, historiador deve escolher diante da imensa e confusa
é possível ponderar que, no cinema, a imagem-tempo realidade e agenciar a construção do documento,
comporta o cinema de ficção e o cinema de realidade, porquanto, o fato histórico é algo inventado e fabricado
confundindo as suas diferenças, e, no mesmo a partir de hipóteses e de conjunturas (Le Goff 1990).
movimento, as narrações tornam-se falsificantes e as Ao refletirmos a respeito das intrincadas relações
narrativas tornam-se simulações, pois existentes entre o fazer cinematográfico e o fazer
literário, ponderamos, conforme Ferro (1992), que
É todo o cinema que se torna um discurso indireto o romance/filme não deve ser analisado apenas do
livre operando na realidade. O falsário e sua ponto-de-vista semiológico, estético ou histórico, mas
potência, o cineasta e sua personagem, ou o sim, como uma imagem-objeto, cujas significações
inverso, já que eles só existem por essa comunidade
ultrapassam o mero cinematográfico, pois autoriza
que lhes permite dizer, nós, criadores de verdade.
uma análise sociohistórica. Dessa forma, a crítica
(Deleuze 1990, 88)
deve se integrar ao mundo que o rodeia e com o qual
se comunica, buscando compreender a realidade
Conforme Deleuze, rompeu-se o vínculo do homem que representa, já que o acontecimento, no caso, o
com o mundo, e é esse vínculo que deve tornar-se filme, “[...] testemunha menos pelo que traduz do que
objeto de crença, pois só ela poderá religá-lo com o pelo que revela, menos pelo que é do que pelo que
que ele vê e ouve. O cinema deverá filmar a crença no provoca; ele não é senão um eco, um espelho da
mundo, pois a natureza da ilusão cinematográfica é a sociedade, uma abertura” (Nora 1988, 188).
de restituir-nos a crença no mundo. Todos, Essas questões presentes no romance
saramaguiano que dizem respeito sobre os limites da
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