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Revista Filosofia Capital


ISSN 1982 6613 Vol. 6, Edição 12, Ano 2011.

O PADRÃO DO GOSTO EM DAVID HUME

THE STANDARD OF TASTE IN HUME

STIGAR, Robson1

RESUMO

O presente artigo procura destacar a definição de gosto para David Hume, que entende que o
gosto é uma questão de habito, ou seja, varia conforme a realidade vivida. Para Hume não há
nenhuma definição metafísica de arte.
Palavras-chave: Ceticismo; Gosto; Sentimento.

ABSTRACT

This article seeks to highlight the definition of love to David Hume, who believes that the
taste is a matter of habit, or varies with the lived reality. For Hume there is no definition of
metaphysical art.
Keywords: Skepticism; Taste; Feeling.

1
Licenciado em Ciências Religiosas, Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia, Aperfeiçoamento em Sociologia
Politica, Especialista em Filosofia da arte, Especialista em Catequética, Especialista em Ensino Religioso, Especialista em
Psicopedagogia, Especialista em História do Brasil, Especialista em Educação, Tecnologia e Sociedade, MBA em Gestão
Escolar, Mestre em Ciências da Religião na PUCSP; Email: robsonstigar@hotmail.com.

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Introdução dos sentimentos e faculdades” (HUME,


1973. p. 319). Assim, a sensibilidade
Este escrito pretende discorrer consiste em perceber a variação das
inicialmente sobre a Filosofia em geral do pequenas diferenças de paladar, “de
pensador escocês David Hume, destacando maneira semelhante, a rápida e aguda
seu caráter cético em relação ao percepção de beleza deve ser a perfeição de
pensamento Filosófico, ou seja, na nosso gosto mental, nenhum homem pode
possibilidade epistemológica de sentir-se satisfeito consigo mesmo se
conhecimento. Posteriormente pretendo suspeitar que lhe passasse despercebida
discorrer sobre a noção de sentimento, visto qualquer excelência ou deficiência de um
que única coisa verdadeira é o sentimento. discurso”.
Hume foi um marco em seu tempo Contudo, é essa capacidade de
porque se diferenciou dos demais percepção que torna o ser humano mais
pensadores britânicos, seu esforço nobre, ou seja, “a delicadeza do gosto pelo
intelectual procurou mostrar a influencia espírito ou pela beleza será sempre uma
dos padrões tradicionais no comportamento. qualidade desejável, porque é a fonte de
“o método de sua filosofia consiste na todos os mais finos e inocentes prazeres de
observação e generalização, sob a forma de que é suscetível da natureza humana”
leis, das regularidades detectadas em (HUME, 1973, p. 319).
padrões ordenados e estáveis do Portanto, Hume entende que a pratica
comportamento humano. Ele pretende é indispensável para o bom exercício da
explicar nossa experiência moral, arte e a compreensão da beleza. Com efeito,
epistêmica, estética e política. No Tratado, procura eliminar todo o tipo de pré-conceito
isso equivale a mostrar como funciona a e definição a priori de arte e beleza, o
mente humana”. (GUIMARAES apud habito se sobrepõe a tudo isso.
BRITO, 2008, p. 339).
Impressões e ideias
A filosofia de Hume
O ponto de partida da teoria do
O grande ideal de Hume é demonstrar conhecimento de David Hume (1711-1776)
como o entendimento humano funciona. é uma classificação de tudo aquilo que se
Assim, a estética também é uma questão de dá a conhecer como sendo de dois tipos:
gosto. Por ser um feixe de percepções a, impressões e ideias.
mente humana, podemos distinguir
facilmente sentimentos e percepções. Cada um admitirá prontamente que há
Para Hume, “mesmo os homens de uma diferença considerável entre as
parcos conhecimentos são capazes de notar percepções do espírito, quando uma
as diferenças de gosto dentro do estreito pessoa sente a dor do calor excessivo
ou o prazer do calor moderado, e
circulo de suas relações, inclusive entre
quando depois recorda em sua
pessoas que foram educadas sob o mesmo memória esta sensação ou a antecipa
governo e quem desde de cedo foram por meio de sua imaginação. Estas
inculcados os mesmos preconceitos” faculdades podem imitar ou copiar as
(HUME, 1973, p. 315). percepções dos sentidos, porém nunca
No entender de Hume “a capacidade podem alcançar integralmente a força
de perceber de maneira mais exata os e a vivacidade da sensação original. O
objetos mais diminutos, sem permitir que máximo que podemos dizer delas,
nada escape à atenção e à observação, é mesmo quando atuam com seu maior
reconhecida como a perfeição de cada um vigor, é que representam seu objeto de

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um modo tão vivo que quase podemos método e regularidade. E isto é tão
dizer que o vemos e que o sentimos. visível em nossos pensamentos ou
Mas, a menos que o espírito esteja conversas mais sérias que qualquer
perturbado por doença ou loucura, pensamento particular que interrompe
nunca chegam a tal grau de a sequencia regular das ideias é
vivacidade que não seja possível imediatamente notado e rejeitado
discernir as percepções dos objetos. (HUME, 2000, p. 39).
Todas as cores da poesia, apesar de
esplêndidas, nunca podem pintar os O princípio de semelhança é aquele
objetos naturais de tal modo que se que quando vemos algo, por semelhança,
tome a discrição pela paisagem real. associamos a outro; por exemplo: um
O pensamento mais vivo é inferior à quadro conduz naturalmente nossos
sensação mais embaçada (HUME,
pensamentos para o original. O princípio de
2000, p. 35).
contiguidade nos traz a ideia de vizinhança,
As impressões são os dados de proximidade; por exemplo: quando se
fornecidos pelos sentidos, tantos internos, menciona um apartamento de um edifício,
como a percepção de um estado de tristeza, naturalmente se introduz uma investigação
quantos externos, como a visão de uma ou uma conversa acerca dos outros
paisagem. O que tenho de mais vivo em apartamentos do mesmo edifício. O
minha mente são impressões dos sentidos princípio de causalidade nos traz a ideia de
no momento em que ocorrem: aquilo que causa e efeito; se pensamos acerca de um
vejo aquilo que ouço, e tudo aquilo que os ferimento quase não podemos furtar-nos de
sentidos produzem em mim é o que é mais refletir sobre a dor que o acompanha.
forte em minha mente.
As ideias são representações da Dúvidas céticas sobre as operações do
memória e da imaginação e resultam das entendimento
impressões como cópias modificadas. Se é
possível pensar no sabor de uma maçã, essa Como objetos da razão, isto é, da
ideia não é tão forte quanto saborear a maçã investigação humana, as associações de
e ter a impressão viva do seu sabor. Não ideias classificam-se em relação de ideias e
encontro impressões complexas, mas ideias relação de fatos. As primeiras
sim existem simples e complexas. Minha correspondem às ciências matemáticas,
ideia de maçã é uma ideia complexa cujas cujas ideias, imediatamente perceptíveis,
ideias simples são a sua cor vermelha, sua são claras e distintas. Suas proposições, por
textura crespa, seu sabor doce, etc. isso, são demonstradas pela simples
Para Hume, o conhecimento só pode operação do pensamento e não dependem
ser resultado da associação de ideias, isto é, de algo existente em alguma parte do
da conexão de várias impressões por meio universo.
de suas cópias, formando ideias complexas. Outro é o caso da relação de fatos, a
Hume enumera três princípios de que correspondem todas as associações de
associação das ideias: semelhança, ideias por causalidade. Aqui, o que conta
contiguidade espacial e temporal, e não é o encadeamento lógico das ideias,
causalidade. mas a experiência: quem nunca tenha
sofrido um ferimento não poderá jamais lhe
É evidente que há um princípio de associar a ideia de dor, pois na ideia de
conexão entre os diferentes ferimento não há nada que conduza racional
pensamentos ou ideias do espírito e necessariamente à de dor. Causa e efeito
humano e que, ao se apresentarem à são eventos distintos e não há nenhum
memória ou a imaginação, se termo intermediário que os una em uma
introduzem mutuamente com certo relação necessária; cada vez que algo nos
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feriu tivemos também a impressão de dor. grau e crença. Para isso Hume dá o seguinte
A certeza só pode ser uma crença. exemplo: se um dado fosse marcado com
Vimos o sol nascer ontem e hoje, e disso um algarismo em quatro faces e com outro
formamos a crença? Para Hume, a resposta algarismo nas restantes seria mais provável
é apenas uma: por repetição de experiências que saísse uma das quatro do que das duas.
semelhantes, isto é, por hábito (ou
costume). Habituamo-nos a sentir dor Embora não haja tal coisa como acaso
quando nos ferimos e acreditamos que o no mundo, nossa ignorância da causa
mesmo ocorre com todas as afirmações real de qualquer evento tem igual
influência sobre o entendimento
sobre relações de fato, que constituem as
gerado equivalente tipo de crença ou
ciências da natureza. opinião (HUME, 2000, p.71).
Visto que todas as vezes que a
repetição de um ato ou de uma
Todavia se mil faces fossem
determinada operação produz uma marcadas idênticas e apenas uma fosse
propensão a renovar o mesmo ato ou a diferente a probabilidade seria maior. Com
mesma operação, sem ser impelida a probabilidade das causas ocorre o mesmo
por nenhum raciocínio ou processo de que com a dos acasos. Há algumas causas
entendimento, dizemos sempre que que são inteiramente uniformes e constantes
esta propensão é o efeito do costume. na produção de determinado efeito e não
Utilizando este termo, não supomos apresentam nenhum exemplo de falha ou
ter dado a razão última de tal irregularidade em seu procedimento. Por
propensão. Indicamos apenas um exemplo: o fogo tem sempre queimado e
princípio da natureza humana, que é
asfixiado a todo ser humano.
universalmente reconhecido e bem
conhecido por seus efeitos. Talvez Hume afirma que ficará satisfeito se
não possamos levar nossas os filósofos virem quão deficiente são todas
investigações mais longe e nem as teorias vigentes quando discorrem sobre
aspiramos dar a causa desta causa; objetos tão curiosos e sublimes. Este texto
porém, devemos contentar-nos com procura destacar a definição de gosto
que o costume é o último princípio enfatizando as concepções de arte. Por isso
que podemos assinalar em todas as Hume entende que o gosto é uma questão
nossas conclusões derivadas da de habito, ou seja, varia conforme a
experiência (HUME, 2000, p. 61). realidade vivida. Não há, portanto nenhuma
definição metafísica de arte.
O ceticismo torna-se inevitável: o
conhecimento científico, que sempre Ensaios morais, políticos e literários.
pretendeu guiar-se pela razão e pela
evidência da intuição e da demonstração Para Hume, “mesmo os homens de
para estabelecer relações de causa e efeito, parcos conhecimentos são capazes de notar
tem bases não racionais, como a crença e o as diferenças de gosto dentro do estreito
hábito. circulo de suas relações, inclusive entre
pessoas que foram educadas sob o mesmo
A probabilidade governo e quem desde de cedo foram
inculcados os mesmos preconceitos”
Hume diz que há uma probabilidade (HUME, 1973, p. 315).
que resulta de uma superioridade de Deste modo, há diferentes concepções
possibilidades a favor de uma das partes e, de gosto que impliquem em diferentes
à medida que a superioridade aumenta, entendimentos acerca do juízo sobre o belo.
exercendo as possibilidades opostas, recebe Nesta perspectiva existe uma
um aumento proporcional gerando maior contraditoriedade entre esses gostos na
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historia. falacioso e seremos incapazes de avaliar a
Assim, “é natural que procuremos católica e universal beleza” (HUME, 1973,
encontrar um padrão de gosto, uma regra p. 317).
capaz de conciliar as diversas opiniões dos Assim, a sensibilidade consiste em
homens, pelo menos uma decisão perceber a variação das pequenas diferenças
reconhecida, aprovando uma opinião e de paladar, “de maneira semelhante, a
condenando outra” (HUME, 1973, p. 316). rápida e aguda percepção de beleza deve ser
Porem, esta busca nos parece um tanto a perfeição de nosso gosto mental, nenhum
difícil dada à multiplicidade de gostos homem pode sentir-se satisfeito consigo
existentes. mesmo se suspeitar que lhe passou
Os indivíduos percebem a beleza de desapercebida qualquer excelência ou
modo distinto, por isso “beleza não é uma deficiência de um discurso”.
qualidade das próprias coisas, existe apenas Contudo, é essa capacidade de
no espírito que as contempla, e cada percepção que torna o ser humano mais
espírito percebe uma beleza diferente” nobre, ou seja, “a delicadeza do gosto pelo
(HUME, 1973, p. 316). Por conseguinte, espírito ou pela beleza será sempre uma
tentar estabelecer uma beleza real ou uma qualidade desejável, porque é a fonte de
deformidade real é infrutífero na mesma todos os mais finos e inocentes prazeres de
proporção de determinar uma doçura real que é suscetível da natureza humana”
ou um amargor real. (HUME, 1973, p. 319). Portanto, a maneira
Segundo Hume o fundamento da de ser aprovado é seguir os costumes
composição artística é a experiência, estabelecidos pelas nações. Contudo, é na
portanto não pode ser dado a priori e nem pratica das artes que se verifica grande
confundida com uma conclusão abstrata do qualidade e delicadeza.
entendimento.
A metafísica em Hume
Mas, embora todas as regras gerais da
arte assentem unicamente na A seção IV da Investigação sobre o
experiência e na observação dos entendimento humano é uma parte da obra
sentimentos comuns da natureza em que o ataque à razão e à metafísica é
humana, não devemos supor que, em
feito de maneiras clara por David Hume.
todos os casos, os homens sintam de
maneira conforme a essas regras.
Uma das questões cruciais da existência é
Estas emoções mais sutis do espírito o suceder dos acontecimentos. Hume diz
são de natureza delicada e frágil, que não se pode basear em nenhuma
precisam do concurso de grande espécie de raciocínio formal a inferência e
numero de circunstancias favoráveis as analogias que fazemos em relação aos
para fazê-las funcionar de maneira efeitos de causas semelhantes nas questões
fácil e exata, segundo seus princípios de fato.
gerais e estabelecidos. (HUME, 1973, Não há como saber uma coisa antes
317). que ela aconteça. Hume ataca o pensamento
que vai para além dos testemunhos presente
Desta forma, toda definição de beleza dos sentidos e registros da memória. Na
depende da delicadeza de espírito e do seção V, Hume apresenta duas soluções
contexto existente, bem como momento e para as dúvidas acima mencionadas. A
lugar adequado. Por isso, é indispensável primeira diz não ser nenhum argumento
“uma perfeita serenidade de espírito, que nos leva a inferir de qualidades
concentração de pensamento, a devida sensíveis semelhantes efeitos semelhantes,
atenção ao objeto: se faltar qualquer dessas mas sim o hábito e a experiência.
circunstancias, nosso experimento será Como fonte de tudo que há em nosso

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pensamento, são esses “grandes guias de
tudo o que acontece na vida humana” que A verdade do sentimento.
sedimentam e dão origem a nossa
preferência de uma probabilidade por Existe uma Filosofia que distingue
outra. O interessante é notar que o pensar e sentimento de julgamento e por isso impede
o sentir estão ligados e se afetam de forma de alcançar intento em nossa tarefa. “O
recíproca, visto que nunca estamos apenas sentimento está sempre certo – porque o
pensando ou apenas sentindo, mas sempre sentimento não tem outro referente senão
fazendo os dois ao mesmo tempo, embora ele mesmo, e sempre real, quando alguém
em graus diferentes que se alteram. tem consciência dele” (HUME, 1973, p.
O conceito de juízo como a união de 316). Por isso, um sentimento somente
sujeito e predicado pode ser determinado a pode ocorrer quando da conformidade entre
priori. Também é sabido a priori que não ele à realidade. Portanto, não existe beleza
conhecemos o objeto tal como ele é em si, em objeto a beleza é subjetiva.
mas tão somente a nossa representação Os indivíduos percebem a beleza de
deste. Se suprimíssemos essa noção de modo distinto, por isso “beleza não é uma
representação, e tentássemos perceber o qualidade das próprias coisas, existe apenas
objeto, não teríamos como reconhecer nos no espírito que as contempla, e cada
objeto ligações entre eles. espírito percebe uma beleza diferente”
A problemática de Hume em relação (HUME, 1973, p. 316).
a causa-efeito é respondida com a Por conseguinte, tentar estabelecer
afirmação de que a causa e feito só é válida uma beleza real ou uma deformidade real é
no âmbito dos juízos hipotéticos, podendo infrutífero na mesma proporção de
ser entendido como parte da experiência e determinar uma doçura real ou um amargor
dos fenômenos. Os juízos racionais são real. Isto é, a dificuldade para relacionar
universais e necessários apenas no nível sentimento e forma, portanto a delicadeza,
fenomênico. que é a sensibilidade às emoções mais sutis
Deste modo, há diferentes concepções com o sentido da arte.
de gosto que implicam em diferentes Assim, a sensibilidade consiste em
entendimentos acerca do juízo sobre o belo. perceber a variação das pequenas diferenças
Nesta perspectiva existe uma de paladar, “de maneira semelhante, a
contraditoriedade entre esses gostos na rápida e aguda percepção de beleza deve ser
historia. Se olharmos a realidade mais de a perfeição de nosso gosto mental, nenhum
perto percebemos que a histórica se mostra homem pode sentir-se satisfeito consigo
ainda mais controversa e desafiadora. mesmo se suspeitar que lhe passou
Segundo o autor desapercebida qualquer excelência ou
Contudo, universalizar tal preceito deficiência de um discurso”.
implica em desconsiderar a diversa Portanto, Hume entende que a pratica
quantidade de gostos existente. Assim, “é é indispensável para o bom exercício da
natural que procuremos encontrar um arte e a compreensão da beleza. Com efeito,
padrão de gosto, uma regra capaz de procura eliminar todo o tipo de pré-conceito
conciliar as diversas opiniões dos homens, e definição a priori de arte e beleza, o
pelo menos uma decisão reconhecida, habito se sobrepõe a tudo isso.
aprovando uma opinião e condenando As impressões são os dados
outra” (HUME, 1973, p. 316). Porem, esta fornecidos pelos sentidos, tantos internos,
busca nos parece um tanto difícil dada à como a percepção de um estado de tristeza,
multiplicidade de gostos existentes. quantos externos, como a visão de uma
paisagem. O que tenho de mais vivo em
minha mente são impressões dos sentidos

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no momento em que ocorrem: aquilo que associação das ideias: semelhança,
vejo, aquilo que ouço, e tudo aquilo que os contiguidade espacial e temporal, e
sentidos produzem em mim é o que é mais causalidade. O princípio de semelhança é
forte em minha mente. aquele que quando vemos algo, por
semelhança, associamos a outro; por
Cada um admitirá prontamente que há exemplo: um quadro conduz naturalmente
uma diferença considerável entre as nossos pensamentos para o original.
percepções do espírito, quando uma
pessoa sente a dor do calor excessivo É evidente que há um princípio de
ou o prazer do calor moderado, e conexão entre os diferentes
quando depois recorda em sua pensamentos ou ideias do espírito
memória esta sensação ou a antecipa humano e que, ao se apresentarem à
por meio de sua imaginação. Estas memória ou a imaginação, se
faculdades podem imitar ou copiar as introduzem mutuamente com certo
percepções dos sentidos, porém nunca método e regularidade. E isto é tão
podem alcançar integralmente a força visível em nossos pensamentos ou
e a vivacidade da sensação original. O conversas mais sérias que qualquer
máximo que podemos dizer delas, pensamento particular que interrompe
mesmo quando atuam com seu maior a seqüência regular das ideias é
vigor, é que representam seu objeto de imediatamente notado e rejeitado
um modo tão vivo que quase podemos (HUME, 2000, p. 39).
dizer que o vemos e que o sentimos.
Mas, a menos que o espírito esteja Como objetos da razão, isto é, da
perturbado por doença ou loucura, investigação humana, as associações de
nunca chegam a tal grau de ideias classificam-se em relação de ideias e
vivacidade que não seja possível
relação de fatos. As primeiras
discernir as percepções dos objetos.
Todas as cores da poesia, apesar de
correspondem às ciências matemáticas,
esplêndidas, nunca podem pintar os cujas ideias, imediatamente perceptíveis,
objetos naturais de tal modo que se são claras e distintas. Suas proposições, por
tome a discrição pela paisagem real. isso, são demonstradas pela simples
O pensamento mais vivo é inferior à operação do pensamento e não dependem
sensação mais embaçada (HUME, de algo existente em alguma parte do
2000, p.35). universo.
Outro é o caso da relação de fatos, a
As ideias são representações da que correspondem todas as associações de
memória e da imaginação e resultam das ideias por causalidade. Aqui, o que conta
impressões como cópias modificadas. Se não é o encadeamento lógico das ideias,
penso no sabor de uma maçã, essa ideia não mas a experiência: quem nunca tenha
é tão forte quanto saborear a maçã e ter a sofrido um ferimento não poderá jamais lhe
impressão viva do seu sabor. Não encontro associar a ideia de dor, pois na ideia de
impressões complexas, mas ideias sim, ferimento não há nada que conduza racional
existem simples e complexas. Minha ideia e necessariamente à de dor.
de maçã é uma ideia complexa cujas ideias
simples são a sua cor vermelha, sua textura O ceticismo
crespa, seu sabor doce, etc.
Para Hume, o conhecimento só pode O ceticismo torna-se inevitável: o
ser resultado da associação de ideias, isto é, conhecimento científico, que sempre
da conexão de várias impressões por meio pretendeu guiar-se pela razão e pela
de suas cópias, formando ideias complexas. evidência da intuição e da demonstração
Hume enumera três princípios de para estabelecer relações de causa e efeito,

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tem bases não racionais, como a crença e o anterior a Kant estava polarizada entre
hábito. O que Hume diz é que somente racionalistas e empiristas. Ao ler Hume,
existe nossa experiência de que uma coisa Kant buscou um modo de demonstrar que a
segue outra, que os padrões de uma razão não é soberana sobre as leis da
experiência passada se repetem e dão a natureza e não pode estabelecer relações de
ilusão de causa e efeito, e simplesmente causalidade sobre elas. Pode apenas, através
porque A foi seguido de B, tomo A como da repetição, fazer associações resultantes
causa necessária de B. Assim, a experiência do hábito.
individual influi no padrão de arte e na A recepção kantiana da tese
percepção de beleza do individuo. defendida por Hume suscitou a proposta de
Hume diz que há uma probabilidade modificar a maneira tradicional de construir
que resulta de uma superioridade de a teoria do conhecimento, que buscava
possibilidades a favor de uma das partes e, eliminar ou os sentidos, ou a razão. Assim
à medida que a superioridade aumenta, sendo, essa nova proposta aliava a parte
exercendo as possibilidades opostas, recebe empírica à parte racional, ou seja, o método
um aumento proporcional gerando maior científico fundamentado nos juízos
grau e crença. sintéticos a priori. Kant, ao perceber o
Há algumas causas que são movimento de Hume contra a metafísica,
inteiramente uniformes e constantes na retirou-a do campo epistemológico e a
produção de determinado efeito e não colocou como fundamento da moral.
apresentam nenhum exemplo de falha ou Assim, para Hume, o conhecimento
irregularidade em seu procedimento. Por se dá a partir da experiência. A razão nunca
exemplo: o fogo tem sempre queimado e pode nos mostrar a conexão de um objeto
asfixiado a todo ser humano. Embora não com outro, a não ser através da experiência,
haja tal coisa como acaso no mundo, nossa e pela observação da conjunção deles em
ignorância da causa real de qualquer evento todas as ocorrências passadas. Contudo,
tem igual influência sobre o entendimento quando a mente passa da ideia ou impressão
gerado equivalente tipo de crença ou de um objeto para a ideia ou crença de
opinião (HUME, 2000, p. 71). outro, esse processo não é determinado pela
Hume também afirma que há, razão, mas por certos princípios que
contudo, outras causas que têm sido associam as ideias desses objetos e reúnem-
consideradas irregulares e incertas. Por nos na imaginação.
exemplo: o ruibarbo (planta medicinal) nem
sempre tem se mostrado purgativo as todas O Método de Hume
as pessoas que o tomam. Os filósofos não
atribuem esta falha (quando a causa deixa Hume quisera ser Newton. O
de produzir seu efeito habitual) a uma subtítulo de seu Tratado da Natureza
irregularidade da natureza, pelo contrário, Humana é, nesse sentido, bastante
supõem que algumas causas desconhecidas, esclarecedor: "Uma tentativa de introdução
situadas na estrutura dos elementos, têm do método de raciocínio experimental nas
impedido a operação. ciências morais”. A análise psicológica do
A teoria Humeana teve como entendimento operada por Hume parece, à
consequência o “despertar” do filosofo primeira vista, muito próxima da de Locke.
iluminista Immanuel Kant (1724-1804) de Ele parte do princípio de que todas as
seu “sono dogmático” e o fez criar sua nossas "ideias" são cópias das nossas
filosofia crítica2. A estrutura do pensamento "impressões"3, isto é, dos dados empíricos:

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Entendida como a faculdade da razão de se auto criticar Percepções instantâneas de objetos que nos afetam e
e estabelecer seus limites. pelos sentidos são levadas ao intelecto.

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impressões de sensação, mas, também, vai ferver; prevejo a ebulição dessa água,
impressões de reflexão (emoções e portanto, tiro "de um objeto uma conclusão
paixões). Não é este o ponto de vista que o ultrapassa".
tradicional do empirismo que vê na Hume não encontrará, em nenhum
experiência a fonte de todo saber? setor da experiência, uma impressão
Na realidade, o método de Hume concreta de causalidade que torne legítima
pode ser apresentado de maneira mais essa idéia de causa que pretendemos ter:
moderna. Sua filosofia coloca, sob o nome a) Consideremos, de início, a
de "impressões", aquilo que Bergson mais experiência externa: vejo que o movimento
tarde denominará os dados imediatos da de uma bola de bilhar é seguido do
consciência e que os fenomenologistas movimento de outra bola com que a
denominarão a intuição originária ou o primeira se chocou, assim como vejo que o
vivido. Ao falar de fenomenologia aquecimento é seguido da ebulição: vejo,
contemporânea, Gaton Berger escrevia: É então, que o fenômeno A é seguido do
preciso ir dos conceitos vazios, pelos quais fenômeno B Mas o que não vejo é o
uma idéia é apenas visada, à intuição direta porquê dessa sucessão. É certo que posso
e concreta da idéia, exatamente como Hume repetir a experiência e que, cada vez em que
nos ensina a retornar das idéias para as a repito, o fenômeno B se segue ao
impressões. (SARTRE apud BERGER, fenômeno A. Mas isto não esclarece nada.
2002, p. 542). b) Examinemos agora essa
Para Hume, ir da idéia à impressão experiência, simultaneamente interna e
consiste em apenas perguntar qual é o externa, que faço a todo momento em que
conteúdo da consciência que se oculta sob sinto o poder da minha consciência sobre
as palavras. Fala-se de substância, de meu corpo. Não terei aqui a chave do
princípios, de causas e efeitos etc. Que princípio de causalidade. Se quero levantar
existe verdadeiramente no pensamento o braço, levanto-o. Não é evidente que
quando se discorre sobre isso? As quais minha vontade é a causa do movimento de
impressões vividas correspondem todas meu corpo? Mas, se refletirmos bem, essa
essas palavras? Aquilo que Hume chama de experiência não é menos clara do que a
impressão e que ele caracteriza pelos precedente. Constato duas coisas:
termos "vividness", "liveliness" é o inicialmente, que quero levantar o braço,
pensamento atual, vivo, que se precisa em seguida, que ele se levanta.
redescobrir sob as palavras (no empirismo c) Quer dizer enfim da esperiência
de Hume, diz Laporte, há que ver "antes o puramente interior da sucessão de minhas
ódio ao verbalismo do que o preconceito do próprias idéias? Deve admitir que minha
sensualismo"). reflexão atenta é causa das idéias que me
Aos olhos de Hume, a noção de ocorrem? Mas, de saída, segundo os casos
causalidade4 é muito enigmática porque, em ou os momentos, as idéias ocorrem ou não.
nome desse princípio de causalidade, a todo Pela manhã, elas ocorrem melhor do que à
momento afirmamos mais do que vemos, tarde (em alguns) e melhor antes da
não cessamos de ultrapassar a experiência refeição do que após. Ainda aqui constato a
imediata. Por exemplo, em nome do existência de uma sucessão entre meu
princípio de causalidade (as mesmas causas esforço de atenção e minhas idéias, mas não
produzem os mesmos efeitos ou o vejo conexão necessária entre os dois fatos.
aquecimento da água é causa da ebulição), Por conseguinte, a conclusão se
afirmo que a água que acabo de pôr no fogo impõe. Não existe nenhuma impressão
autêntica da causalidade. O que acontece é
4
No entender de Hume não existe lei de causalidade, tudo que eu acredito na causalidade e Hume
depende do habito, nada garante que o sol ira nascer explica essa crença, partindo do hábito e da
amanhã, por exemplo.

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associação das idéias. Por que será que coisas, que facilmente desliza de um estado
espero ver a água ferver quando a aqueço? psíquico a outro e constrói o mito da
É porque, responde Hume, aquecimento e personalidade, coleção de haveres
ebulição sempre estiveram associados em heteróclitos que é dado como um ser. Pois,
minha experiência e essa associação ou eu sou meus "estados" e minhas
determinou um hábito em mim. Coloco a "qualidades" e não sou eu mesmo, ou então
água no fogo e afirmo, em virtude de sou eu mesmo e nada mais.
poderoso hábito: vai ferver. Só que Hume é o primeiro a
Hume afirma que se for estabelecida reconhecer que seu ceticismo, por mais
"uma conclusão que projeta no futuro os absoluto que seja, é artificial. Hume, como
casos passados de que tive experiência", é todo mundo, quando coloca a água no fogo,
porque a imaginação, irresistivelmente está persuadido de que ela vai ferver.
arrastada pelo peso do costume, resvala de Quando reflete como filósofo, em seu
um evento dado àquele que comumente o gabinete, ele é cético. A crença no princípio
acompanha. Aparento antecipar a de causalidade, absurda no plano da
experiência quando, na verdade, cedo a reflexão, é natural, instintiva. A teoria de
uma tendência criada pelo hábito. Por Hume, por conseguinte, é simultaneamente
conseguinte, a necessidade causal não um dogmatismo instintivo e um ceticismo
existe realmente nas coisas."A necessidade reflexivo.
é algo que existe no espírito, não nos Ceticismo e dogmatismo não se
objetos." apresentam nele segundo os domínios do
saber, mas segundo os níveis do
O Empirismo pensamento. Ninguém mais do que ele
separou filosofia e vida. Ele filosofa
O empirismo de Hume surge então ceticamente segundo uma reflexão rigorosa
como um ceticismo; explicar e dissolvente. Podemos então qualificar, de
psicologicamente a crença no princípio de certo modo, como "humorístico" o
causalidade é recusar todo valor a esse ceticismo desse filósofo inglês que, por
princípio. De fato, não existe, na idéia de outro lado, ousou dizer que convinha a um
causalidade, senão o peso do meu hábito e cavalheiro pensar como os whigs... e votar
da minha expectativa. Espero como os tories.
invencivelmente a ebulição da água que Essa complexidade da filosofia de
coloquei no fogo. Mas essa expectativa não Hume torna mais difícil a elucidação de sua
tem fundamento racional. filosofia religiosa. Consideremos, por
O princípio de causalidade, exemplo, o célebre Ensaio Sobre os
inteiramente explicado por uma ilusão Milagres. Ele parece ter sido escrito sob a
psicológica, não tem o menor valor de ótica da filosofia das luzes: o milagre é
verdade. Pascal, que já esboçara essa impossível porque contraria a experiência,
análise psicológica da indução, dizia em as leis da natureza.
fórmula surpreendente: "Quem reduz o Em suma, Hume se apóia no
costume a seu princípio, anula-o". determinismo físico para rejeitar a realidade
Segundo Hume é também a do milagre e no determinismo psicológico
imaginação que identifica o eu com o que para explicar sua ilusão tenaz. Mas como
ele possui ou, como dizemos, o ser e o ter. Hume pode apoiar-se no determinismo,
Em última instância, eu tenho reputação e uma vez que sua crítica da causalidade fez
mesmo lembranças, idéias e sonhos do desse próprio determinismo uma ilusão
mesmo modo que tenho esta roupa ou esta psicológica? Pascal, fundamentava-se
casa. É simplesmente a imaginação, hábil precisamente numa crítica análoga à de
em mascarar a descontinuidade de todas as Hume para afirmar a possibilidade do

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milagre. Ressuscitar, dizia, não é mais de conceitos e experiência. O que no fundo
misterioso do que nascer. "O costume torna importa, diz Hume, é como nos sentimos
um fácil, sua falta torna o outro impossível: em relação a esse comportamento. O seu
popular maneira de julgar". trabalho gerou a doutrina do
O ceticismo de Hume é um instrumentalismo, que declara que uma
psicologismo. Hume questionou esta ação é razoável se e somente se ela serve os
crença, notando que se é óbvio que nos objetivos e desejos do agente, quaisquer
apercebemos de dois eventos, não temos que estes sejam.
necessariamente de aperceber uma conexão Assim, se você quiser comer uma
entre os dois. E como havemos nós de nos folha de alumínio, a razão lhe dirá onde
aperceber desta misteriosa conexão senão encontrar uma folha de alumínio, e não
através da nossa percepção ? haverá nada de irracional em a comer ou
Hume sugeriu duas justificações em o desejar. O instrumentalismo passará a
possíveis e rejeitou ambas. O problema ser uma visão ortodoxa da razão prática em
permaneceria em aberto, até que Karl economia, teoria das escolhas racionais e
Popper5 o solucionou. A primeira algumas outras ciências sociais. Mas alguns
justificativa avançada por Hume é que por comentadores argumentam que Hume foi
razões de necessidade lógica, o futuro tem mais além do niilismo, e disse que não há
de ser semelhante ao passado. Porém, nada de irracional em deliberadamente
Hume nota que podemos conceber um frustrar os seus próprios objetivos e desejos
mundo errático e caótico onde o futuro não ("eu quero comer folha de alumínio, por
tem nada que ver com o passado ou então, isso deixa-me selar a minha boca").
mais submissamente, um mundo tal como o Este argumento contra os
nosso até ao presente, até que certo ponto as fundamentos da moralidade na razão é hoje
coisas mudam completamente. um dos argumentos pertencentes ao arsenal
A segunda justificação, mais do anti-realismo moral. Conforme,
modestamente, apela apenas para a Abbagnano (2001), o filósofo Humeano
segurança passada da indução: sempre John Mackie argumentou que para os factos
funcionou assim, por isso é provável que morais serem factos reais sobre o mundo e
continue a funcionar. No entanto, como ao mesmo tempo, intrinsecamente
Hume lembrou, esta justificação apenas usa motivastes, eles teriam de ser fatos muito
um raciocínio circular, justificando a estranhos. Temos pois todos os motivos
indução por um apelo que requer a indução para desacreditá-los.
para ter efeito. Todos nós já notamos o aparente
A questão da identidade pessoal conflito entre o livre-arbítrio e o
torna-se assim uma questão de caracterizar determinismo: se as nossas ações foram
a coesão frouxa da experiência pessoal determinadas há milhões de anos atrás,
vivida. (Notar que no Appendix do tratado, como poderá ser que elas dependem de
Hume diz misteriosamente que ele estava nós? Mas Hume notou um outro conflito,
insatisfeito com o seu julgamento do Eu, que torna o problema da livre vontade num
sem no entanto ter regressado a esta denso dilema: a livre-vontade é
questão. incompatível com o indeterminismo.
Mas Hume negou que a razão tivesse Como é que alguém pode ser tido por
algum papel importante em motivar ou responsável pelo seu caráter? A livre-
desencorajar o comportamento. No fundo, a vontade parece requerer o determinismo,
razão é apenas uma espécie de calculador porque senão o agente e a ação não
estariam conectados do modo necessário
5
POPPER, Karl, Conjecturas e refutações. Coimbra: por ações livremente escolhidas. Sendo
Almedina, 2003. assim, quase todos nós acreditamos no

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livre-arbítrio, a livre vontade parece Foi provavelmente Hume quem,
inconsistente com o determinismo, mas a juntamente com os seus colegas do
livre-vontade parece requerer o Iluminismo escocês, avançou pela primeira
determinismo. vez a ideia de que a explicação dos
princípios morais deverá ser procurada na
A Causalidade e a Razão utilidade que eles tendem a promover.
Reale (1991) esclarece que o papel de
Na visão de Hume, o comportamento Hume não deverá ser descrito com exagero,
humano, como tudo o mais, é causado pois, foi o seu compatriota Francis
(causal). Por isso mesmo, se tomamos as Hutcheson que cunhou o slogan utilitarista
pessoas como responsáveis pelas seus atos, "a maior felicidade para o maior número".
devemos focar a recompensa ou a punição Mas foi através da leitura do
de forma a que eles façam aquilo que é "Tratado" de Hume que Jeremy Bentham
moralmente desejável e evitem aquilo que é sentiu pela primeira vez a força do sistema
moralmente repreensível. utilitário: ele "sentiu como se escamas
Segundo Hume, a razão não é tivessem caído dos seus olhos". No entanto,
antagônica aos sentimentos do qual as duas o "proto-utilitarismo" de Hume é muito
são intimamente ligadas por associações. peculiar, da nossa perspectiva. Ele não
De tal maneira que a primeira ligado por pensa que a agregação de unidades
associações de causa e efeito só se toma cardinais de utilidade será a fórmula para
sentido quanto este é ligado pelas paixões. atingir a verdade moral.
Assim, o belo, de pende da sutiliza do Uma forma de apoiar a religião é por
sentimento, uma vez que o sentimento apelo a milagres. Mas Hume argumentou
sempre esta correto. O belo é uma que no mínimo, os milagres não poderiam
construção, mediante a percepção pelos conferir muito apoio à religião. Há vários
sentimentos de cada individuo particular. argumentos sugeridos pelo ensaio de Hume,
Hume notou que muitos escritores todos eles à volta do seu conceito de
falam do que deve ser, na base de milagre: nomeadamente a violação por
enunciados acerca do que é. Mas parece Deus das leis da Natureza. Um argumento é
haver uma grande diferença entre o de que é impossível violar as leis da
enunciados descritivos (o que é) e Natureza.
enunciados prescritivos (o que deveria ser). Outro argumento afirma que o
Hume apela aos escritores que tomem testemunho humano nunca poderia ser
muito cuidado na mudança do enunciado de suficientemente fiável para contra-ordenar a
um estado para o outro. Nunca sem se dar evidência que temos das leis da Natureza.
uma explicação de como o enunciado- Outro argumento, menos irredutível, mais
"deve ser" é suposto seguir ao enunciado- defensável, é que devido à forte evidência
"é". Mas como exatamente é que se pode que temos das leis da natureza, qualquer
derivar o "deve" de um "é" ? pretensão de milagre está sobre pressão
Essa questão, colocada num pequeno desde o início e precisa de provas fortes
parágrafo de Hume, tornou-se uma das para derrotar as nossas expectativas iniciais.
questões centrais da teoria da ética e Este ponto tem sido aplicado
costuma ser atribuída a Hume a opinião de sobretudo na questão da ressurreição de
que tal derivação é impossível. (Outros Jesus, onde Hume sem dúvida perguntaria
interpretam Hume como dizendo que não se "o que é que é mais provável ? que um
pode ir de uma constatação factual a um homem se erga dos mortos ou que este
enunciado ético, mas que se o pode fazer testemunho esteja incorreto de uma forma
sem atender à natureza humana, isto é, sem ou de outra ?". Ou mais suavemente, "o que
prestar atenção aos sentimentos humanos). é mais provável ? que o Uri Geller pode

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realmente fazer dobrar colheres com a sua seguro, universal e necessário, mas num
mente ou que isso seja algum tipo de conhecimento sempre provável.
truque ?". Este argumento é a base do Portanto, para Hume a concepção de
movimento cético e um assunto belo depende, sobretudo do conceito
fundamental aos históricos da religião. vivenciado mediante o sentimento e as
afecções, é determinado externamente, pelo
Considerações finais habito, depende do método, da crença
religiosa ou não do individuo. Contudo,
A noçao de belo em Hume esta não existe uma definição universal sobre o
atrelada a sensibilidade que o individuo belo porque ele difere de cultura para
deve ter ao contemplar a beleza. A finesse cultura, sendo belo uma afexão empírica e
do espirito é fundamental para que o não metafísica.
individuo possa se relacionar com o belo
araves dosentimento, visto que para Humea REFERÊNCIAS
única coisa verdadeira é sentimento.
A sensação da beleza e sua percepção ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de
pelo espirito depende muito da educação Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
que este espirto recebeu. Com efeito, a BRITO, A.N. de.. Hume e o empirismo na
dúvida que emerge no individuo acerca do moral. Philósophos, São Paulo: 2001.
que realmente é belo? Seria respondida com DELEUZE, Gilles Empirismo e
a sensibilidade desenvolvida pelo individuo subjetividade: ensaio sobre a natureza
e de acordo com sua educação. Por isso, o humana segundo Hume São Paulo: 2004.
conceito de belo é determindado pela HUME, David. Investigação acerca do
vivencia do individuo acerca desta Entendimento Humano. Col. Os
realidade e não por um Deus que apriori Pensadores. São Paulo Abril, 1973.
estabeleceu o que é belo e o que é feio. _______. Tratado da natureza
Entre as artes, a superior é aquela de humana: uma tentativa de introduzir o
um produtor divino, o Demiurgo, que método experimental de raciocínio nos
compôs o universo imitando as ideias assuntos morais. São Paulo: UNESP, 2000.
verdadeiras e as formas imutáveis. KANT, Immanuel. Crítica da razão pura.
Seguindo o Demiurgo, o legislador também Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova
concebe a comunidade humana de acordo Cultural, 1999.
com as Ideias do Bem, da Justiça e da MACKIE, J. L., Hume’s moral theory. Nova
Verdade. Em terceiro lugar na hierarquia, Iorque: Routledge, 1980.
estão os poetas e os artistas que também POPPER, Karl, Conjecturas e refutações.
visam aos ideais, mas, diferentemente do Coimbra: Almedina, 2003.
Demiurgo, eles podem falhar no REALE, Giovanni, ANTISERI, Dario.
conhecimento da realidade última, História da Filosofia. Paulinas. São Paulo.
produzindo meras aparências da natureza 1991.
sensível. SARTRE, J. P. O ser e o nada: ensaio de
Por isso, a proposta de Hume resulta ontologia fenomenológica. Rio de Janeiro:
na impossibilidade de se estabelecer uma Vozes, 2002.
causalidade segura entre os eventos do SCHNEEWIND, J.B. A invenção da
conhecimento, porque a relação necessária autonomia: uma história da filosofia moral
que deveria existir na mente não implicaria moderna. São Leopoldo, Unisinos, 2001.
na existência de fato de uma junção de
causa e efeito. Portanto o filósofo inglês
não acredita em um ponto fixo e metafísico
para o saber, ou seja, o conhecimento

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