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AUTÓCTONE

Luís Fernando Veríssimo

A menina atirou o lápis sobre o caderno e ficou olhando para a rua. Era um belo dia de outono e ela
precisava escrever uma composição com a palavra "autóctone". Era um dia perfeito de outono e ela precisava ficar
ali e escrever uma composição com a palavra autóctone. E para o dia seguinte.
Autóctone.

Aquilo não era uma palavra, era um empacamento, um solavanco verbal. Uma frase com "autóctone" devia
ter avisos desde o começo, como os que colocam nas estradas antes de curvas perigosas ou defeitos na pista:
"Cuidado, autóctone adiante". Quem chegasse a "autóctone" sem estar preparado arriscava-se a capotar-se e cair
fora do texto. "Autóctone" era uma ameaça para leitor desavisado. "Autóctone" devia ser proibido. Ainda mais num
dia de outono.O que queria dizer "autóctone"?

Autóctone, autóctone...

Aurélio!

Autóctone. (Do gr. "autóchton" pelo lat. "autochtone". Adj. 2 g.) 1. Que é oriundo da terra onde se encontra...

Meu Deus... pensou a menina. Eu sou uma autóctone! Vivi todo este tempo sem saber que era uma
autóctone.

- Minha filha, diria sua mãe, que cara é essa?

Cara de autóctone. Não ia poder disfarçar. Confessaria para a sua melhor amiga, a Maura.

- Descobri uma coisa horrível a meu respeito.


- O quê? Conta!
- Eu sou um autóctone.
- Não!
- Sou.
- E isso pega?
- Não faz diferença. Você também é uma autóctone.
- EU?

Mas depois de descobrir o que era "autóctone" Maura daria um pulo de alegria, a nojenta.

Eu não sou. Eu não nasci aqui!

A menina faria a amiga jurar que não contaria para ninguém que ela era uma autóctone.

Autóctone.
Como é que alguém podia usar aquela palavra numa frase? Uma pessoa nunca mais era a mesma depois de
dizer "autóctone". A vida terminava de um lado e começava do outro lado da palavra "autóctone". A menina
suspirou. O dia ficava cada vez mais lindo e a folha de caderno à sua frente ficava cada vez mais vazia. Autóctone.
Um cachorro oriundo da terra em que se encontrava, seria um au-autóctone?

Que bobagem. Precisava pensar. Precisava encher a folha do caderno. Teve uma ideia. Escreveu: "A pessoa
pode ser autóctone ou não autóctone, dependendo do lugar onde estiver".
Leu o que tinha escrito e depois acrescentou: "Tem gente que emigra só para não ser autóctone".
Depois apagou tudo. A professora, obviamente, queria uma composição a favor de "autóctone", não contra.

Começou outra vez:

"Nós, os autóctones..."

VERISSIMO, Luis Fernando. Autóctone. Disponível em: <http://mayafelix.blogspot.com/2007/09/luis-


fernando-verssimo-3.html>

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