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ALAN RICARDO DUARTE PEREIRA é doutorando em História pela Universidade
Federal de Goiás (UFG); Bolsista da Capes.
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CAMILA SILVA CABRAL é graduada em Pedagogia pela Universidade Federal de Goiás
(UFG).
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Há muitas formas de conceituar a modernidade. pela automatização das esferas de valores
Antes de qualquer coisa, há uma distinção entre (separação entre o público e o privado). Por outro
moderno, modernidade e modernismo. lado, no presente trabalho consideramos
Conforme esclarece Le Goff (1994, p. 174) na modernidade do ponto de vista histórico, ou seja,
obra História e memória, moderno vem do latim, como um processo decorrente das
modernus, e deriva de dois radicais, modus transformações na sociedade ocidental entre os
(agora mesmo) e hodierno ou hodie (hoje). Desse séculos XVI e XVIII. Nessa perspectiva,
modo, moderno significa aquilo que se realiza no modernidade se configurou a partir de mudanças
agora, no presente e que se contrapõe, portanto, no campo político (contrato social ou a formação
ao velho. Por sua vez, modernidade carrega uma do Estado Moderno), econômico (nascimento do
polissemia mais complexa e difícil de capitalismo) e cultural (centralidade da educação
caracterizar. Há a conceituação do sociólogo e da razão). Por último, a ideia de modernismo se
Max Weber, em Ensaio de sociologia, que refere ao movimento literário-artístico caudatário
entende modernidade pela centralidade da do século XX e, portanto, ligado às vanguardas
racionalidade ou “razão instrumental” e também intelectuais.
Em geral, há alguns indicadores para se Outrossim, de todas as transformações
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identificar o processo modernizante na vinculadas à modernidade é na ciência
sociedade ocidental. Podem-se destacar ou no pensamento intelectual que
três esferas que sustentaram a encontramos o solo mais fértil. Não há
modernidade: os aspectos políticos, como falar de modernidade sem se
econômicos e culturais. Mais referir minimamente aos grandes
exatamente, a modernidade trouxe uma pensadores que se destacaram neste
nova forma de organização política período: René Descartes, Francis Bacon,
chamada genericamente de Estado Galileu Galilei, Isaac Newton, etc. Foi a
nacional. Segundo Paula (2000, p. 16), o partir da ciência que as ideias sobre a
Estado moderno é caracterizado pela modernidade floresceram e ganharam
autonomia em relação a outras esferas – aceitação. Por conseguinte, a maioria dos
como, por exemplo, a esfera religiosa autores da modernidade buscaram
e/ou econômica – e detém o poder incansavelmente realizar uma profunda
normatizador. Ou seja, o governante é crítica às explicações religiosas e
aquele que, além de respaldar suas ações mitológicas. Com efeito, diante do
pelo direito, é responsável por perpetuar processo de “desencantamento do
a hegemonia do interesse público sobre mundo” – conforme asseverou Max
os interesses privados. Diante isso, a Weber –, a modernidade colocou no
marca indelével do Estado moderno foi a centro do pensamento científico a
defesa dos direitos públicos – ou do bem chamada “razão instrumental”. Na
comum – frente aos interesses de ordem compreensão de Max Weber (1994)
privada (BOBBIO, 2017, p. 15). numa obra clássica, Economia e
sociedade: fundamentos da sociologia
Por outro lado, a modernidade se compreensiva, a “razão instrumental” foi
distinguiu dos demais períodos aquela que, durante a modernidade,
históricos pelo desenvolvimento de uma lançou as bases para o desenvolvimento
nova ordem econômica, a saber: o da ciência. De igual forma, a
capitalismo. Observamos que, diferente sociabilidade tecida na ordem capitalista
da sociedade da Antiguidade clássica orientou-se pela ciência e, sobretudo, a
e/ou medieval, é no período moderno partir do cálculo e da relação entre meios
que o modo de produzir e circular e fins. Nesse sentido, Max Weber (1994)
mercadorias adquiriu feições diferentes. nos ajuda a entender a modernidade na
A divisão do trabalho na produção, na medida em que identifica, mais ou
qual o trabalhador não acompanhava menos entre os séculos XV até XVIII,
mais todo o processo, e as técnicas uma “revolução” cultural no Ocidente.
introduzidas com a Revolução Industrial, Quer dizer, nos termos do respectivo
fizeram da modernidade o berço do autor, o núcleo estruturante da
capitalismo. Ao mesmo tempo em que a modernidade trouxe a autonomização
indústria se tornou o lugar consagrado das esferas de valores: a ética, a ciência,
das relações entre trabalhador e a artes, entre outros aspectos.
proprietário – ou o burguês –, a cidade se Em face disso, a educação assumiu papel
metamorfoseou, por extensão, no espaço fundamental na modernidade. Ora, se a
das sociabilidades modernas. Portanto, o ciência se tornou uma das marcas do
símbolo maior da modernidade foi, viver moderno, isso significa que tal
eventualmente, a cidade com seus modelo de sociedade precisava de
aparatos – comércio, indústrias, órgãos instituições que garantissem uma
políticos, escolas, etc. formação racional. É, portanto, a partir
dessa perspectiva que podemos entender decorrência da Revolução Industrial.
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a ênfase que a modernidade – e, Nesse sentido, as ideias iluministas
especialmente, o Iluminismo – dava à retomaram a razão como pilar no
educação. Nesse sentido, observamos desenvolvimento social já introduzido
que esse período foi rico em fatos e pelos renascentistas, mas a ênfase não foi
estudos sobre a educação masculina. mais na contemplação do mundo e, sim,
Mas deixa uma grande lacuna no quesito em conhecê-lo e dominá-lo. O
da educação feminina, constando poucos Iluminismo se expandiu para outros
estudos e relatos sobre o tipo de países como, por exemplo, a Prússia que
educação designada às mulheres. ainda era regida pelo Absolutismo
Algumas questões surgem ao constatar monárquico. De tal sorte que os reis
tal aspecto: afinal, o projeto de educação percebendo a crise que se alastrava e
da modernidade se refere destruía esse regime, adotaram, por
exclusivamente aos homens? É a conseguinte, o que ficou conhecido
modernidade uma modernidade para como despotismo ilustrado ou
homens? Qual o sentindo da palavra esclarecido. Em resumo, tal regime de
“educação universal” se, do ponto de governo pressupunha que, politicamente,
vista social, as mulheres e demais classes o rei continuava como soberano, mas
subalternas não participaram do projeto com influências iluministas. Para tanto,
de educação da modernidade? Diante segundo o historiador Anderson (1987),
disso, o presente artigo busca analisar a tratava de conciliar a secularização da
educação no período Iluminista e vida com o poder religioso e, ao mesmo
problematizar a persistência da tempo, com o crescimento da burguesia
concepção masculina como o sexo e a decadência da nobreza.
“único” e “digno” da educação durante a
modernidade. Ao mesmo tempo, realiza- No mesmo sentido, a autora Aranha
se uma incursão sobre o papel da mulher (2006) ressalta que a política
nas discussões sobre a educação. Mais educacional ganhou centralidade nesse
exatamente, como forma de verticalizar período em prol de escolas leigas (sem
a análise, o estudo se centrou nas obras interferência religiosa), gratuitas e
de Mary Wollstonecraft e Jean-Jacques obrigatórias tendo como responsável o
Rousseau, que tinham concepções Estado. Muitos filósofos ascenderam
antagônicas sobre o mesmo tema. nesse momento em defesa de suas
tendências que tiveram influências no
Iluminismo e a modernidade âmbito educacional, podendo citar o
Em linhas gerais, o Iluminismo surgiu na francês Diderot com a Enciclopédia. Na
Europa e foi um movimento intelectual respectiva obra iluminista, a educação é
que marcou o século XVIII, também tratada como uma esfera que se vincula
conhecido como Século das Luzes, em com o Estado moderno e, enquanto tal, é
que se pregava a razão (luz) contra o um direito universal.
Antigo Regime que foi considerado
No contexto do Iluminismo, o filósofo
como A idade das trevas pelos
Rousseau foi um dos principais
renascentistas.
defensores da educação. Suas obras –
A Europa nesse século passou por especialmente Emílio ou da educação –
grandes transformações. Em outras contribuíram com uma pedagogia
palavras, há o aparecimento da burguesia ilustrada naturalista, na qual o sujeito da
como principal classe do capitalismo e as educação não era mais o professor e seu
mudanças que foram geradas em saber inquestionável, mas o aluno com
suas particularidades. Importante concorrido para a educação de
algumas raparigas portuguesas 145
perceber que, durante o Iluminismo,
Rousseau utilizou da pedagogia (1996, p. 87).
naturalista como uma proposta para a
educação. Grosso modo, o naturalismo Aos homens era dedicado um futuro
se relaciona com a busca da natureza do brilhante. Estudavam desde pequenos,
indivíduo e, mais exatamente, a sua ingressavam em universidades e
vocação humana. A educação proposta tornavam-se filósofos, escritores,
por ele frisa a espontaneidade original, médicos, participavam de debates
que o indivíduo domine a si próprio. No intelectuais, tinham status social.
entanto, para esse pensador iluminista a Consoante Ribeiro (2002), mesmo não
educação também tinha seu lado tendo uma educação específica para
negativo, pois colocava a criança em mulheres, já iniciara a necessidade de
contato com os vícios mundanos. escolas femininas no século XVIII. No
fundo e mais concretamente, nada foi
Século XVIII: educação ou instrução feito em relação à educação das
do sexo feminino? mulheres, visto que, de modo geral,
Em conformidade com Arilda Ines M. nessa época tinha-se a visão de que a
Ribeiro (2002), Sebastião José de mulher não poderia ter uma ascensão
Carvalho e Melo – também conhecido social em relação ao homem. Isso se
como o Marquês de Pombal – era um traduziu em termos de erudição, pois ser
déspota esclarecido e fez inúmeras cientista ou portador de conhecimentos
reformas em Portugal durante o governo sublimes recaía socialmente ao homem.
do rei D. José I. Além das reformas de Essa imagem cristalizou-se
cariz mercantilista e secular introduzidas profundamente na época do Iluminismo
em Portugal em pleno século XVIII, a quando, de fato, o pensamento científico
mudança mais significativa provocada encontrou um solo fértil no berço da
por Pombal foi, no entanto, na área da burguesia nascente. Procurava-se uma
educação. Pombal instituiu o que ele nova explicação para os fenômenos do
denominou de aulas régias2 e estruturou mundo e, diante disso, a ciência se
os chamados Estudos Menores3 – e mais apresentou como uma narrativa plausível
tarde criou os Estudos Maiores4. Apesar para o entendimento das coisas. Nesse
disso, essas reformas não fizerem sentido, a vinculação do “homem culto”
referência à educação da mulher e coincidiu com o movimento Iluminista.
tampouco criaram escolas régias para o
Ademais, atinente à educação nesse
sexo feminino.
período nota-se que era difícil ou
De acordo com Adão apud Ribeiro, praticamente inexistente ter mulheres na
roda dos iluministas. Mais grave ainda
Na verdade, o ensino feminino não
mereceu então dos meios eram as academias criadas
governamentais uma atenção especificamente para leitura de obras
especial, cabendo a ordens religiosas filosóficas que contavam genericamente
provenientes da França (Ursulinas e com a presença de homens. Por
Visitação) o mérito de terem conseguinte, as poucas mulheres que
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A utilização do termo “régias” explica-se Nessa reformulação de ensino, era ministrada a
porque a instituição escolar pertencia a partir de língua moderna, matemática e ciências da
então ao Estado e não tinha influência da religião. natureza.
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Estudos Menores é semelhante ao ensino
fundamental e médio.
conseguiam adentrar nesses nichos Em termos gerais, no filme a rainha
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intelectuais eram severamente criticadas Carolina Matilde se casou com o rei
e tratadas, não raro, com descaso. Christian VII da Dinamarca e, desde
Observa-se que professores do sexo tenra idade, foi criada unicamente para
masculino trabalhavam e faziam as um momento: o casamento. Sua
mesmas tarefas das professoras, no educação abarcava modos de uma moça
entanto, sua condição econômica e, saber falar e se portar perante o marido e
sobretudo, a questão de gênero incidia a sociedade, maneiras de se vestir, dotes
diretamente no reconhecimento social de específicos de aquisição – como, por
seu trabalho. As mulheres que se exemplo, saber tocar algum tipo de
“aventuravam” a ir contra as concepções instrumento erudito – e prover filhos da
da época e se fixavam nessa carreira, relação conjugal. Era uma infâmia social
deveriam ensinar a fiar, bordar, cozinhar, às mulheres – em especial aquelas
cortar. Ou seja, recaía sobre as mulheres ligadas a realeza – ter relacionamentos
funções essencialmente domésticas, a fora do casamento, enquanto o rei se
fim de se tornarem boas esposas e, encontrava nos prostíbulos da época sem
consequentemente, mães. Como informa nenhum tipo de mácula para sua honra.
Arilda Ribeiro,
Recebido em 2017-09-15
Publicado em 2018-01-01