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MEMÓRIA E NARRATIVAS ORAIS

EM ESTUDOS DE COMUNICAÇÃO Priscila F. Perazzo


Doutora em História
SOCIAL Social; professora da
Universidade IMES; co-
A Memória, como refe- “comunicação a outrem de
ordenadora do Núcleo
rencial teórico e método de uma informação, na ausência
de Pesquisadoras em
análise, passou a ser um im- do acontecimento ou do ob-
Memórias do ABC/ Uni-
portante objeto de reflexão jeto que constitui o seu mo-
versidade IMES.
de pesquisadores do século tivo” (LE GOFF, 2003, p. 421).
XX que procuram distingui-la A memória também pode
da ciência histórica, não per- ser concebida no sentido indi-
dendo de vista, por sua vez, vidual ou coletivo, relacionado humanidades, como no caso
suas possibilidades de relação às lembranças dos indivíduos da sociologia e da história, já
do presente com o passado. (HALBWACHS, 1990). Essas na primeira metade do século
Entre os pesquisadores lembranças traduzem-se em XX. Foi num tempo em que a
de diferentes áreas do conhe- representações ou símbolos, cientificidade do conhecimen-
cimento, a memória vem se cuja expressão material visu- to voltou-se para a subjetivi-
tornando objeto de estudos aliza-se no patrimônio cultural dade e o indivíduo passou a
e análises presentes em pro- das populações ou comunida- ter importância na sua condi-
postas diversas de pesqui- des, seja na forma de monu- ção singular. Essa perspectiva
sa. Preocupam-se com essas mentos, edificações arquitetô- epistemológica também se es-
questões cientistas sociais e nicas, documentos, fotografias tendeu para as preocupações
políticos, historiadores, ar- etc. Atualmente, considera-se, sociais e políticas. No campo
quitetos, artistas, arquivistas, inclusive, a expressão não ma- dos direitos, o indivíduo se
comunicadores, juristas e, terial desse patrimônio, tratan- destaca e se torna o foco das
aparentemente inusitado, até do-se de valores e significa- preocupações, sendo con-
engenheiros, físicos, adminis- dos, costumes, tradições, ex- siderado agente de sua pró-
tradores, gestores etc., além pressados por outras lingua- pria história. Foi o que se viu
de ser um elemento presente gens, como, por exemplo, a desde a Declaração Universal
nas discussões de diversos dos relatos ou narrativas orais. dos Direitos Humanos, de 10
projetos de pesquisa, núcle- Por sua vez, a memória de dezembro de 1948, como
os de estudos e programas não é um fenômeno de inte- uma nova mentalidade social:
de pós-graduação. Ora, o riorização individual, mas sim a importância do indivíduo
que leva os estudiosos, em uma construção social e um em todas as suas dimensões.
geral, a buscarem essas pos- fenômeno coletivo, dessa for- Acompanhando a sobe-
sibilidades metodológicas? ma é modelada pelos próprios rania do personagem singular,
Antes de mais nada, me- grupos sociais. A memória a importância das minorias e
mória pode ser entendida, se- não é o passado, mas a reme- o destaque para os direitos e
gundo Jacques Le Goff, pela moração desse passado feita liberdades individuais, abriu-
propriedade que as pessoas no presente de um indivíduo e se espaço para a subjetivida-
têm de conservar certas in- determinada pelas condições de na ciência. Mas o que isso
formações e, por se remeter presentes naquele momento. significa? Significa uma mu-
a um conjunto de funções psí- Nesse sentido, que fatores dança na configuração da vi-
quicas, que permite o sujeito levam os atuais pesquisadores são de mundo dos homens e
atualizar impressões e infor- e estudiosos a se interessarem mulheres do século XXI. Ou
mações passadas ou que re- pela memória como método seja, quando a dimensão indi-
presentamos como passadas. de análise de um fenôme- vidual do ser humano passou
E, ainda, o ato de rememora- no social? As preocupações a conviver ou se sobrepor às
ção requer um comportamen- científicas com a memória to- dimensões da coletividade,
to narrativo, pois trata-se da maram conta dos estudos das dos grupos homogêneos e

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da perspectiva de massas e mesmo da língua escrita. Des- ga de subjetividade, visto que
povo (enfoque e visão social se modo, a fala constituiu-se os discursos não são neutros.
da primeira metade do sécu- em elemento fundador para O narrador, de qualquer lugar
lo XX, levada às últimas con- que os relatos orais – fonte de social que narre, sempre fará
seqüências nas décadas de saberes – ficassem gravados uma edição dos fatos confor-
1930 e 1940), a subjetivida- na memória dos indivíduos, me suas crenças ou ideologias.
de dos seres humanos pôde transmitindo de geração em Permite-se, então, afirmar que
ser levada em consideração geração as crenças, magias, as narrativas orais não são
nas mais variadas dimensões os valores, a tradição acu- nem menos verdadeiras, nem
da vida privada ou pública. mulados. Esses relatos foram menos ficcionais do que mui-
E como memória se articu- perdendo aos poucos sua di- tas histórias oficiais, conside-
la à produção de subjetividade mensão mítica com a escrita. rando que os depoentes con-
(GONDAR e BARRENECHEA, Atualmente, atribui-se às tam seus “enredos” a partir do
2003, p. 7), pode-se dizer que narrativas orais uma impor- presente, numa recriação das
esta é uma das possíveis justi- tância antes a elas negada. circunstâncias que envolvem
ficativas para a atual preocupa- Vale lembrar que, conforme seu imaginário, selecionando
ção com estudos sobre a me- ALBERTI, a tradição oral, mar- fatos e acontecimentos, por
mória, ou seja, o fato de a sub- cada pela inovação e pelo es- lembranças e esquecimen-
jetividade ter se tornado um quecimento, não é a história tos, intencionalmente ou não.
elemento importante na cons- oral. No entanto, podem ocor- Ao combinar os métodos
tituição do mundo moderno. rer “pedaços” da tradição oral da história oral (constituída
Dessa forma, a narrativa nas narrativas de história de por um conjunto sistemático,
das lembranças das pessoas vida (2005, p.25). Essa inser- diversificado e articulado de
permite uma abordagem do ção de “pedaços” da tradição depoimentos gravados em
sujeito em sua dimensão his- oral nas entrevistas de história torno de um tema), com o
tórica que, por meio da sua oral podem ocorrer de forma método de história de vida,
própria experiência de vida, perceptível (por provérbios que garante à história oral ri-
gera interpretações dos acon- ou ditos populares) ou não. gor, fidedignidade e riqueza
tecimentos por ele vivencia- Quando não, os historiado- dos depoimentos coletados,
dos no tempo e no espaço. res orais podem registrar e obtém-se entrevistas que não
As lembranças pessoais se testemunhar, sem ter consci- são apenas suportes docu-
constituem em imaginários ência, o evento fundador de mentais da pesquisa social.
sociais, considerados como um grupo. Decorre que a fon- Considera-se a riqueza ines-
a faculdade do indivíduo em te pode, eventualmente, não gotável do depoimento oral
apresentar uma coisa, ou fa- servir para o que o historiador em si mesmo, como fonte
zer aparecer uma imagem e se propôs pesquisar, porém, o não apenas informativa, mas
uma relação que não são da- material gravado é importante também, “como instrumento
das diretamente na percep- porque mostra a relação das de compreensão mais amplo
ção, mas que são transfigura- memórias do depoente com e globalizante do significado
das e deslocadas, muitas ve- seu tempo, com o anterior e da ação humana; de suas re-
zes de forma simbólica, para com o futuro, interligando o lações com a sociedade orga-
criarem novas relações ine- real e o simbólico, história e nizada, com as redes de socia-
xistentes no real (LAPLATINE memória, tradição e inven- bilidade, com o poder e o con-
e TRINDADE, 1997, p. 24-25). ção. (ALBERTI, 2005, p. 27). trapoder existentes, e com os
Quando manifestada de Peter Burke (1992) obser- processos macroculturais que
forma discursiva e narrativa, vou a necessidade de con- constituem o ambiente dentro
a memória põe em evidência siderar os relatos orais, de do qual se movem os atores
um sistema de símbolos e con- forma inovadora, salientando (CAMARGO, 1990 , p. VII-VIII).
venções produzido e utilizado a importância das narrativas O tipo de entrevista deno-
socialmente (FREITAS, 2002, que partiam de mais de um minada história de vida têm
p. 47). O ato de contar histórias ponto de vista. Isso permite como “centro de interesse o
acompanha o homem desde ao pesquisador aceitar os re- próprio indivíduo na história,
o início das civilizações, antes latos orais com toda sua car- incluindo sua trajetória desde

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a infância até o momento em cem a um domínio estrito do máticas locais, às dimensões
que fala, passando pelos di- conhecimento, aplicado ape- culturais e as possibilidades
versos acontecimentos e con- nas como técnica de coleta mediadoras da comunicação.
junturas que presenciou, vi- de dados na pesquisa histó- Portanto, os métodos da me-
venciou ou de que se inteirou” rica. Sua riqueza e especifi- mória e da história oral ino-
(ALBERTI, 1990 p. 20). A histó- cidade se fazem justamente vam como instrumentos de
ria oral de vida é mais subje- na possibilidade de prestar investigação dos fenômenos
tiva que objetiva e o depoen- diversas abordagens e de se sociais, que atualmente con-
te tem “maior liberdade para mover num terreno multidis- sideram as possibilidades de
dissertar o mais livremente ciplinar (ALBERTI, 1990, p. comunicação entre culturas.
possível sobre sua experiên- 1). Esse é um dos principais Ainda nos estudos que
cia pessoal” (MEIHY, 1996, p. fatores que vem levando mui- relacionam comunicação e
35). Desse modo, a verdade tos pesquisadores, longe da inovação, outros métodos de
está intrínseca na versão do historiografia, à opção, por análise se constituem para que
próprio narrador, pois trata- vezes inovadora em suas áre- o pesquisador reflita de forma
se da sua verdade, de acor- as, de realizar um trabalho de científica a subjetividade. É
do com suas opções do que memória a partir da história possível recorrer à análise do
revelar ou ocultar. Nesse tipo oral, como forma de registrar discurso e à perspectiva das
de entrevista, as perguntas as narrativas dos indivíduos. metáforas do cotidiano para
são amplas, colocadas mais Em parte, pode-se aqui interpretar as narrativas orais
como um roteiro por parte entender as recorrências de da memória, muitas vezes re-
do pesquisador para ajudar estudos em comunicação gistradas nas formas de histó-
o depoente a conduzir sua social que se constroem por ria oral. Contudo, essas, entre
narrativa, seguindo a ordem meio da memória e das narra- outras questões, serão discu-
cronológica da vida do entre- tivas orais das pessoas. As in- tidas nas seguintes edições
vistado (MEIHY, 1996, p. 35). quietações do tempo presente de Comunicação e Inovação.
Dessa forma, os métodos determinam os objetos de es-
da história oral não perten- tudo relacionados às proble-

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