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ISBN 978-85-7734-684-4
1. Economia - Ensaios 2. Economia - Brasil - Ensaios 3. Relações internacionais
19-1739
CDD 330
Índices para catálogo sistemático:
1. Economia - Ensaios
CAPÍTULO 1
Reforma da arquitetura financeira mundial: FMI e G20
CAPÍTULO 2
BRICS e banco dos BRICS
CAPÍTULO 3
Nação, nacionalismo, caráter nacional
Nacionalismo e desenvolvimento
Nação versus globalização
A Marselhesa brasileira
Amazônia – de quem é?
Nacionalismo em Fernando Pessoa
Uma visita aos Estados Unidos
Síndrome de degredado
Caráter nacional – franceses e brasileiros
Brasil, um país desarmado
Dois partidos
Brasil, Estados Unidos, China
CAPÍTULO 4
Economia política brasileira
CAPÍTULO 5
Perfis
Brizola em 1961
Nenhuma derrota é definitiva
Cinco anos em cinquenta
Um iconoclasta
O maior brasileiro de todos os tempos
Um brasileiro
Um artista
A plataforma cedeu
Tempo cruel
Lembranças de um outro Brasil
CAPÍTULO 6
Humor econômico e outras crônicas
Obra de ficção?
O título do meu livro de 2000 era uma homenagem a Nelson Rodrigues. Foi
o mais bem-sucedido dos livros que publiquei, tendo chegado a três
edições. Parece-me, entretanto, que houve um ligeiro mal-entendido, que
terá contribuído para as vendas. É que o título, mero eco de A vida como ela
é… do grande cronista, fez crer que se tratava de obra didática, em que o
leitor não especializado encontraria, finalmente, um retrato da economia
como ela realmente é…
Involuntária propaganda enganosa. Só até determinado ponto, porém.
Os meus livros nunca foram didáticos, é certo. Mas procuro escrever de
forma acessível e sempre fui um adepto da busca das ideias claras. A escrita
hermética, contorcida pode ser um sinal de confusão no pensamento.
Sempre tive horror instintivo ao uso mistificador do jargão ou da linguagem
matemática, tendência comum em economia e outras disciplinas. Abusar
das palavras ou dos símbolos é o atalho para a estagnação do conhecimento.
O título deste livro também pode ser enganoso, mas em sentido
completamente diferente. A alguns pode parecer que é uma obra de ficção.
Nos tempos de Temer e, sobretudo neste início de governo Bolsonaro, o que
temos senão uma tentativa de reduzir o país à condição de quintal do
Grande Irmão do Norte? No caso do governo Bolsonaro, a tendência é mais
descarada, mais acintosa. E, por isso mesmo, já provoca reações crescentes.
As indignidades da política externa do atual governo recolocaram a defesa
da soberania nacional como questão não só central, mas urgente e
inadiável. De todos os cantos do país, começa uma marcha batida, uma
longa caminhada que resultará, ao fim, espero, na ejeção dessa lamentável
geração de entreguistas que empolgou o poder central desde 2016, a mais
recente leva de descendentes de Calabar e Joaquim Silvério dos Reis.
Percebo, de repente, que estou adotando um tom impróprio, de palanque
improvisado, que não condiz com a palavra escrita. Peço desculpas, leitor,
mas prefiro não cortar. A situação emergencial que vivemos permite
sacrificar a boa forma.
O árduo caminho da cabeça à página
O meu leitor-alvo continua sendo não só o economista e nem
principalmente o economista, mas antes o leigo inteligente, com interesses
variados e certo lastro cultural. Espero que não seja uma espécie em
extinção.
E, no entanto, ao contrário do que talvez pareça, escrevo com
dificuldade. Escrever, confesso, é frequentemente penoso. Em geral,
escrevo e reescrevo, muitas vezes. Tenho enorme dificuldade de começar.
Coloco-me diante do computador e vou buscando as palavras, o tom. O
caminho da cabeça à pena é tão mais longo e árduo – notava mesmo um
Kafka! – do que da cabeça à língua. Escreve-se para um ausente – um leitor
imaginário, possivelmente inexistente. Não temos o feedback corretor. Por
isso, para mim foi sempre indispensável combinar a escrita com a
interlocução presencial, em conferências, aulas, diálogos, debates. A
comunicação verbal alimenta a escrita e vice-versa. Não sou daqueles que
consegue, produtivamente, se isolar em uma torre de marfim qualquer,
trancar portas e desfiar tratados.
Tratados? Nem pensar. Não tenho inclinação nem capacidade para o
sistemático e nem fôlego para o texto longo. Espero que os ensaios mais
longos deste livro, os três que relatam os meus oito anos em Washington,
tenham ficado legíveis. Procurei escrever da forma mais leve possível,
mesmo sobre temas complexos, sem simplificar demais, porém, e sem
subestimar a inteligência do leitor. Na minha opinião, o texto deve ser curto,
de preferência. Quando tive que me estender um pouco mais, procurei
compensar com a segmentação do texto, lançando mão sempre que possível
de subtítulos provocativos ou instigantes, como faço nesta própria
apresentação.
O ideal seria escrever aforismos. Infelizmente, porém, são poucos os
que praticam com sucesso a forma breve. E, claro, pouquíssimos os que
podem reivindicar para si, como fez Nietzsche, em um dos seus (não tão
raros) momentos de imodéstia, a capacidade de dizer em poucas páginas o
que qualquer outro não dizia em um volume inteiro.
Romantismo cético?
Nacionalistas são, via de regra, românticos incorrigíveis, inclusive este
que vos fala. Vinda de um economista com experiência como pesquisador e
professor, além de passagens pelo governo e por órgão internacionais, a
afirmação pode soar estranha, talvez espalhafatosa. À primeira vista,
romantismo parece não combinar bem com economia e atividade pública.
Costuma ser execrado pelos acadêmicos e científicos como “ideologia” e
pelos pragmáticos e realistas como “messianismo”. Antônio Carlos
Magalhães, o realista par excellence da política brasileira de outros tempos,
costumava estigmatizar o ministro da Fazenda Dilson Funaro, à boca
pequena, no auge do Plano Cruzado, como “messiânico”. Eu trabalhava na
época com Funaro e não me escapava o peso que essa designação
carregava.
Na esfera pública, deve-se admitir, o romântico pode ser especialmente
perigoso. Um caso extremo de romântico extraviado na política foi Hitler,
com os efeitos que se viu. Hitler ecoava, no fundo, o romantismo de todo
um povo e sem isso não teria chegado aonde chegou. O romantismo na sua
trajetória acidentada de 200 anos, nasceu na Alemanha, nela chegou a seu
auge e suas expressões mais instigantes e nela, também, produziu o seu
maior desastre.
De qualquer maneira, não vamos exagerar na advertência. Em favor dos
românticos, diga-se que os grandes problemas não podem ser resolvidos
pelos realistas, que tendem ao conformismo, à rotina. Estes são excelentes
na administração do dia a dia, mas nunca estão à altura das situações-
limites. São os românticos que entram em ação nas emergências. Foi Joana
d’Arc e não o ardiloso Carlos VII quem salvou a França. Sem ela, Carlos
nem teria sido coroado, morreria o delfim que Joana encontrou. O que eram
Churchill e De Gaulle, para lembrar outros exemplos, senão românticos?
Não apenas isso, certamente: também eram, em igual medida, frios,
calculistas, racionais. Contudo, o que os destacava da maioria dos políticos
era o fato de serem visceralmente românticos. De Gaulle, não por acaso, era
devoto de Joanna d’Arc, a quem homenageia lindamente em célebre
passagem das suas memórias de guerra. Sem a emergência provocada pelo
surgimento de um romantismo sinistro na Alemanha, Churchill e de Gaulle
jamais teriam sido chamados à liderança de seus países. De Gaulle teria
feito brilhante carreira militar e ponto final. Churchill terminaria a vida
como político inconfiável e colecionador de fracassos. Os britânicos,
sintomaticamente, despacharam o herói de guerra para casa, na primeira
eleição depois da vitória na Segunda Guerra. Assim como os franceses
prenderam e condenaram Joana d’Arc à morte, quando a emergência havia
sido superada, graças a ela em grande medida. Como costuma acontecer aos
heróis, ela se tornara um estorvo para a administração da normalidade.
Tudo isso é muito discutível, claro. Estou pegando, sem querer, uma
Paris-Tóquio. O que queria registrar aqui é algo mais limitado, mais
pessoal. O romantismo de que sou capaz é hesitante, meio capenga. Sou, ao
mesmo tempo, e em contradição com o espírito romântico, eminentemente
cético. Nunca se viu, que eu saiba, um projeto de romantismo cético que
tivesse sido bem-sucedido. A contradição é flagrante demais para não ter
efeito paralisante. Um romantismo assim é talvez mais matéria de sonho do
que de ação prática.
Mesmo assim, parece-me importante que o impulso romântico seja
controlado, em boa medida, pela cautela cética. Os referidos perigos do
romantismo resultam, em última análise, dos riscos de tentar ultrapassar
prematuramente o horizonte do iluminismo. Não estamos ainda em
condições de fazê-lo. Os inúmeros seguidores vulgares de Nietzsche,
inclusive vários nacional-socialistas, que se julgavam “além do bem e do
mal”, ficaram, como vimos, muito aquém do bem e do mal. Thomas Mann,
que foi, até o fim da vida e apesar de tudo, ao mesmo tempo nietzschiano e
wagneriano, se debateu com essa e outras questões correlatas ao reavaliar,
em 1947, a obra de Nietzsche no ensaio A filosofia de Nietzsche à luz da
nossa experiência – vale dizer, à luz de Hitler. Sobre todo o romantismo
tardio, sobre Wagner ainda mais nitidamente do que sobre Nietzsche, Hitler
lançou uma sombra sepulcral, forçando, quer se queira quer não, uma
reconsideração geral da crítica ao iluminismo. Para um nietzschiano como
Mann, essa reconsideração pode ser particularmente difícil de empreender
em profundidade, pois o iluminismo é, em certas modalidades, uma vertente
tardia do cristianismo, uma espécie de secularização do cristianismo. E, no
entanto, o século XX não mostrou a que abismos soltar as amarras do
cristianismo e da moral cristã pode nos levar?
A maior acusação ao romantismo não se fez ainda: é a de que ele representa a verdade
interior da natureza humana. Os seus exageros, os seus ridículos, os seus poderes vários
de comover e de seduzir, residem em que ele é a figuração exterior do que há mais dentro
na alma, mas concreto, visualizado, até possível, se o ser possível dependesse de outra
coisa que não o Destino.
1 Lucian Pye, citado em Henry Kissinger. On China. Nova York: Penguin Books, 2012, p. 11.
2 Josef Steindl. “Reflections on the present state of Economics”. In J.A. Kregel (org.). Recollections
of Eminent Economists, vol. I, Londres: MacMillan Press, 1988, p. 97.
3 Publicado em Barbosa Lima Sobrinho et alii. Em defesa do interesse nacional: desinformação e
alienação do patrimônio público. São Paulo: Paz & Terra, 1994, p. 99-144. Foi republicado junto
com várias outras obras escritas por ele em livro organizado por mim e editado pelo Itamaraty, por
iniciativa do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães: Paulo Nogueira Batista Jr. (org.). Paulo
Nogueira Batista: pensando o Brasil – ensaios e palestras. Brasília: Fundação Alexandre Gusmão,
2009.
4 Ver, por exemplo, Joseph A. Schumpeter. History of Economic Analysis. Nova York: Oxford
University Press, 1954, p. 41-4.
5 Johann Gottfried Herder. Another Philosophy of History and Selected Political Writings, 1ª edição:
1774. Indianapolis: Hackett Publishing Company, 2004. Uma discussão instigante da obra de Herder
e do seu contexto histórico pode ser encontrada em vários escritos de Isaiah Berlin, entre eles: The
Roots of Romanticism. Princeton: Princeton University Press, 1999, p. 46-67.
CAPÍTULO 1
A eclosão da crise
A deficiência da abordagem padrão se tornou óbvia com a eclosão da crise.
A onda de liquidez produzida pelas políticas monetárias expansionistas dos
bancos centrais emissores de moedas de reserva – adotada primeira e
principalmente pela Reserva Federal dos EUA, mas também pelo Banco
Central Europeu e pelos bancos centrais do Japão e da Inglaterra –
contribuiu para criar problemas formidáveis para os mercados emergentes.
As economias emergentes sofreram menos com a crise internacional e se
recuperaram mais rapidamente – um fator que reforçou sua atratividade
para os investidores internacionais. Os diferenciais de taxas de juro e de
crescimento econômico entre os mercados emergentes e as economias
avançadas geraram grandes fluxos de capital das últimas para os primeiros.
Para além desses fatores cíclicos, parece ter ocorrido uma reavaliação
dos riscos internacionais em favor dos mercados emergentes, isto é, uma
realocação de portfólios que pode levar a um aumento mais duradouro da
oferta de capitais. Isso tem seu lado positivo, é claro, mas muitos países
emergentes terão de lidar com um embarras de richesses.
Já se falou da “maldição dos recursos naturais”. Poderia se falar,
igualmente, da “maldição da superabundância de fluxos de capitais”. Uma
das piores coisas que pode acontecer a um país é cair nas graças dos
mercados internacionais de capital.
A crise nas economias avançadas, especialmente na zona do euro,
mostrou, mais uma vez, que as entradas de capital podem ser uma faca de
dois gumes. Mudanças na disponibilidade de empréstimos e investimentos
externos podem acontecer rapidamente, e de maneira imprevisível. Se o
país receptor das entradas de capital estiver despreparado, essas reviravoltas
repentinas podem causar grandes danos à economia e ao sistema financeiro,
a exemplo do que se viu nos casos da Grécia, da Irlanda e de Portugal.
Ainda é muito difundida a avaliação de que os fluxos de capital são
benéficos para os países que os recebem. Essa visão não é de todo errônea;
pode-se construir um argumento plausível em sua defesa. Mas o mínimo
que se pode dizer é que ela não se coaduna com a experiência recente e
remota. Muitas economias foram desestabilizadas – em alguns casos,
literalmente destruídas – pela liberalização imprudente das contas de
capital, pelos aumentos súbitos na entrada de capitais e por sua posterior
reversão. Fora da zona do euro, alguns países emergentes do Leste Europeu
também foram fortemente atingidos; a Romênia e a Letônia, por exemplo.
A Islândia foi outro caso chocante.
Um aspecto nem sempre devidamente considerado nas discussões da
crise na zona do euro é o papel desempenhado pelo ciclo de
expansão/recessão associado ao livre movimento de capitais. As entradas
abundantes de capital possibilitaram políticas fiscais pró-cíclicas, rápido
crescimento do crédito e elevados déficits de conta corrente na periferia da
zona do euro, assim como na Islândia e em economias emergentes no Leste
Europeu. A inversão aguda dos fluxos depois da crise de 2008 forçou essas
economias a se submeterem a penosos processos de ajuste. Com o passar do
tempo, provavelmente nos daremos conta de que políticas de gestão das
contas de capital podem ser necessárias não apenas em mercados
emergentes, mas também para economias avançadas.
Um código de boa conduta, diretrizes fortes e uma estrutura comum que regulem a
possibilidade de implementar os controles de capital quando necessários devem definir as
condições sob as quais as restrições aos movimentos de capitais são legítimas, efetivas e
apropriadas em uma dada situação. Se concordarmos com essas regras, senhoras e
senhores, será uma grande evolução na doutrina do FMI em benefício dos países
emergentes, que sofrem com a excessiva volatilidade dos movimentos de capitais. É
razoável, hoje, dado o crescente impacto dos movimentos de capitais, que o FMI possa
emitir recomendações para um país apenas no que diz respeito a seu balanço de
pagamentos em conta corrente e não à conta de capital? Gostaria que alguém me
explicasse por que uma recomendação é legítima e a outra, ilegítima. Expandir a
supervisão do FMI para incluir esses aspectos me parece crucial. No longo prazo, a
França – e estou dizendo isso agora – é favorável a uma modificação no Convênio
Constitutivo do FMI para ampliar sua autoridade de supervisão. Sim, se decidirmos por
mais coordenação, mais regras e mais supervisão, então precisamos decidir qual
organização é responsável por impor tais regras e conduzir essa supervisão. Para a França,
está claro. É o FMI.5
Keynes e White
Assegurar movimentos livres de capitais não era parte das atribuições
originais do FMI. O Artigo VI do Convênio Constitutivo sempre existiu,
desde o começo. Tentativas equivocadas de alterar ou suprimir esse artigo
no fim dos anos 1990 não tiveram resultado. Na época, a cadeira brasileira
no FMI estava entre as que se opunham à tentativa de estabelecer a
liberalização das contas de capital como obrigação.
Aqueles que conhecem a história do FMI sabem que os principais
fundadores da instituição, John Maynard Keynes e Harry Dexter White,
tinham aprendido com a aguda instabilidade causada pelo laissez-faire com
relação aos movimentos internacionais de capital no período entre as duas
Guerras Mundiais. Keynes explicou, à época da criação do Fundo, que os
países-membros teriam “o direito explícito de controlar todos os
movimentos de capital”.6 Cada país pôde escolher entre manter todas as
transações livres ou adotar controles. Se um país escolhesse a segunda
alternativa, Keynes acreditava que deveria ficar a critério de cada um
“descobrir seus próprios métodos”.7
Keynes e White estavam certos. Desde a crise internacional em 2008, o
pêndulo novamente oscilou do laissez-faire em direção ao reconhecimento
de que a forte regulação e a supervisão das atividades financeiras são
indispensáveis para o funcionamento estável e eficiente de uma economia
de mercado. Os movimentos de capitais não fogem à regra.
1 Tradução, revista pelo autor, de texto publicado originalmente sob o título “The IMF, capital
account regulation, and emerging market economies”, em Boston University, Regulating Global
Capital Flows for Long-run Development, Pardee Center Task Force Report, Boston, 2012.
2 José Antonio Ocampo. Reforming the International Monetary System. United Nations University,
World Institute for Development Economics Research, 2011.
3 Olivier Blanchard. What I Learnt in Rio: Discussing Ways to Manage Capital Flows, resumo da
conferência sobre Gestão da Entrada de Capitais nos Mercados Emergentes, organizada pelo
Ministério da Fazenda do Brasil e pelo Fundo Monetário Internacional, Rio de Janeiro, maio de 2011.
4 Nicolas Sarkozy. Lancement de la Présidence Française du G20 e du G8. Palais de l’Élysée,
janeiro de 2011.
5 Id. Address by the president of the French Republic. Abertura do Seminário do G20 sobre a
Reforma do Sistema Monetário Internacional, Nanjing, China, março de 2011.
6 John Maynard Keynes. The Collected Writings of John Maynard Keynes, Volume XXVI, Activities,
1941-1946. Shaping the Post-War World: Bretton Woods and Reparations. Londres: MacMillan &
Cambridge University Press, 1980, p. 17.
7 Id. The Collected Writings of John Maynard Keynes, Volume XXV, Activities, 1940-1944. Shaping
the Post-War World: The Clearing Union. Londres: MacMillan & Cambridge University Press, 1980,
p. 325.
UM NACIONALISTA NO FMI: A ESTRUTURA
DA INSTITUIÇÃO E O PAPEL DO BRASIL1
Entre 2007 e 2015, fui diretor executivo pelo Brasil e diversos outros
países no Fundo Monetário Internacional, em Washington, D.C. O texto
que se segue e os dois subsequentes são baseados na minha experiência
nesse período, principalmente no FMI, mas também como delegado
brasileiro nas reuniões do G20 e dos BRICS. O primeiro texto trata,
sobretudo, da estrutura e funções da instituição, do papel do Brasil e da
minha fase inicial na Diretoria Executiva.
1. Indicação controversa
Quando fui indicado para o cargo de diretor executivo no FMI, em fevereiro
de 2007, houve alguma agitação na imprensa brasileira. Nos principais
jornais, a reação foi preponderantemente negativa. “Mais uma decisão
equivocada do governo Lula”, dizia-se. “Como é possível indicar para o
cargo um crítico do FMI?”, perguntava-se com certa indignação. Era
verdade, eu estava realmente entre os críticos da instituição e havia
publicado diversos trabalhos acadêmicos e artigos na imprensa, desde a
década de 1980, em que fazia reparos à sua governança e atuação. Além
disso, fizera parte da delegação brasileira que teve negociações tensas e sem
resultado com o FMI em 1985, no início do governo Sarney.2 E, mais
importante, fora um dos artífices da moratória unilateral de 1987 que,
embora não tenha atingido as dívidas do Brasil com organismos
multilaterais como o FMI ou o Banco Mundial, não era nada bem-vista em
Washington, por suposto. O pior de tudo, acredito, é que nunca renegara
essa decisão polêmica. Não sou contra a autocrítica, claro, mas tenho por
outro lado sempre presente a advertência irônica de Nietzsche de que não
devemos abandonar nossos atos à própria sorte.
Respondi na época às críticas essencialmente da seguinte maneira:
estava indo para Washington não para trabalhar pelo FMI, tal qual se
apresentava, mas para tentar contribuir para mudá-lo. Frisei, em particular,
que aceitara representar o Brasil e outros oito países na Diretoria Executiva
da instituição, mas que trabalharia no e não para o FMI. Entretanto, essa
linha de argumentação, que segui em artigos e entrevistas, não estava
inteiramente correta.
A verdade é que, embora tivesse estudado a instituição e até tido contato
direto com ela entre 1985 e 1987, como representante do governo brasileiro,
eu não a conhecia tão bem quanto imaginava. Uma coisa aprendi nos mais
de oito anos em que ficaria no FMI: é muito difícil, talvez impossível,
realmente conhecer uma instituição desse tipo, entender como ela funciona,
sem passar por lá, sem ter a vivência da instituição. Notei que muitos
pesquisadores e estudiosos, mesmo renomados, se equivocavam
repetidamente quando escreviam e opinavam sobre o FMI, especialmente
quando se aventuravam no terreno das recomendações. Havia exceções
notáveis, entre elas, por exemplo, José Antonio Ocampo, o jornalista
especializado em assuntos do FMI, Paul Blustein e, no Brasil, Fernando
Cardim de Carvalho. Mas, de uma maneira geral, as contribuições externas
para a análise e a reforma do FMI deixavam a desejar.
No começo, foram muito importantes as informações e orientações que
recebi dos meus dois antecessores no cargo: Eduardo Loyo, a quem
substituí, e Murilo Portugal, que fora diretor executivo por quase sete anos,
imediatamente antes de Loyo. O primeiro fez uma passagem de serviço
cuidadosa e profissional, e continuou me ajudando com a maior boa
vontade depois do retorno ao Brasil. Murilo Portugal ocupava, quando
cheguei a Washington, o cargo de vice-diretor-gerente na Administração do
FMI; para conversar com ele bastava descer um andar. Murilo era ligado
aos tucanos, ocupara posições importantes na Fazenda no período Malan,
chegara a ser vice-ministro de Antonio Palocci e seria depois presidente da
Febraban. Com essa trajetória, desnecessário dizer que era muito
conservador; ele temia provavelmente que um economista nacionalista, e
mais à esquerda, pudesse derrapar e comprometer as tradições da cadeira
brasileira na Diretoria do FMI. Fez então o possível para me orientar e
catequizar; não absorvi a catequese, mas não posso negar que aprendi muito
com ele, tirando partido da sua longa experiência na instituição.
Graças a Murilo e Loyo, logo compreendi que o papel do diretor
executivo do FMI era mais complexo do que a esmagadora maioria dos
outsiders imaginam. O seu papel é duplo, na verdade. Por um lado,
representa um ou mais países na instituição. Por outro, tem
responsabilidade fiduciária por ela, isto é, obrigação de zelar pela
instituição e seus interesses. Em outras palavras, e contrariamente ao que eu
dissera ao rebater as críticas à minha indicação, eu iria trabalhar, sim, para
o FMI e não apenas no FMI representando o Brasil e outros países.
A função de diretor executivo no FMI (e o mesmo vale para o Banco
Mundial) é, assim, essencialmente diferente da de embaixador na ONU ou
na Organização Mundial do Comércio (OMC), por exemplo. O nosso
embaixador na ONU é funcionário do governo brasileiro; o diretor
executivo é funcionário do FMI. Na ONU ou na OMC, o embaixador lança
o voto do país; no FMI, o diretor vota como pessoa. Ao longo dos mais de
oito anos em que ocupei o cargo, sempre procurei corrigir – sem muito
sucesso – a tendência da mídia brasileira a me apresentar como
“representante brasileiro no FMI”, designação incompleta, pois não levava
em conta o fato de eu representar outros oito (mais tarde, dez) países e,
mais importante, ignorava toda uma dimensão essencial do trabalho da
Diretoria, que é cuidar dos interesses da instituição. Onde reside o interesse
da instituição em cada situação particular nem sempre é fácil de identificar,
o que frequentemente dá margem a divergências e debates. Em todo o caso,
a obrigação existe e é parte essencial do trabalho dos diretores.
Esses dois lados do trabalho do diretor executivo nem sempre são fáceis
de conciliar, podendo haver conflito, em determinadas situações, entre
representar um país e zelar pela instituição. Pude verificar que os diretores
de países desenvolvidos, com raras exceções, não hesitavam em sacrificar o
interesse da instituição quando este contradizia de forma flagrante o
interesse nacional do país ou países que representava. Outros, os mexicanos
e outros latino-americanos por exemplo, procuravam exercer um papel de
mediação entre o FMI e os países da sua cadeira. O meu mais importante
antecessor, Alexandre Kafka, figura lendária no FMI, que ocupou o cargo
de diretor por 32 anos, procurava fazer esse papel de mediação, como pude
verificar no período em que estive no governo brasileiro de 1985 a 1987,
primeiro como secretário de assuntos econômicos do ministro do
Planejamento, João Sayad, e depois como assessor para assuntos de dívida
externa do ministro da Fazenda, Dilson Funaro. Funaro, outra figura
lendária, não tinha a menor paciência com o FMI e acabava tratando Kafka
com certa rispidez, como representante da instituição e não do Brasil na
instituição.
Tudo isso, como eu disse, é difícil de perceber de fora. A razão é que as
instituições multilaterais como o FMI costumam ser de grande
complexidade e transparência limitada. A sua atuação é, em geral, muito
variada e costuma estar submetida não só a regulamentos intrincados, mas
também a regras não escritas e práticas não codificadas ou codificadas de
forma pouco clara. A transparência é muito relativa. Todas as instituições
multilaterais prestam homenagem a esse princípio – é obrigatório nos dias
que correm. Mas há muita hipocrisia nisso, hipocrisia que, como dizia La
Rochefoucauld, nada mais é do que a homenagem do vício à virtude. O
vício se impunha, na prática, com certa frequência – seja pela não
divulgação pura e simples de certos fatos ou decisões, seja pela sua
divulgação de modo obscuro, pouco acessível, ou em linguagem
desnecessariamente técnica e específica, em “fundese”, como se diz na
instituição. Essa dissonância entre discurso e prática me irritava, em
especial quando escondia questões de interesse dos países emergentes e em
desenvolvimento. Não foram poucas as vezes em que provoquei e
ridicularizei um pouco meus colegas de Diretoria e da Administração,
relatando uma das histórias prediletas de Abraham Lincoln, célebre por suas
anedotas. Um rapaz, em busca de emprego público, tinha que responder a
um questionário, contava Lincoln. Tudo corria bem até que o candidato se
deparou com uma pergunta delicada: Causa da morte do pai? É que seu pai
fora enforcado como ladrão de cavalos. O candidato pensou, pensou, até
que veio a luz: “Meu pai participava de uma cerimônia pública quando a
plataforma cedeu”.3 Pois bem, “a plataforma cedeu” era um artifício
adotado recorrentemente pelo FMI.
Nessas condições, como esperar que um outsider tenha plena
compreensão do funcionamento de instituições como o FMI? Entre os
poucos pesquisadores externos que têm sucesso em superar essas barreiras
estão aqueles que, como o já mencionado Paul Blustein, no caso do FMI, ou
Christopher Humphrey, no caso do Banco Mundial e outros bancos
multilaterais de desenvolvimento, fazem extensas e minuciosas entrevistas
com pessoas que integram ou integraram a Administração, as Diretorias e o
staff dessas instituições.4
Recebi o convite do então ministro da Fazenda, Guido Mantega, com
alguma hesitação. Estava bem em São Paulo e não tinha grande interesse
em residir no exterior. Já havia recusado convite anterior de Mantega para
assumir o cargo de diretor executivo no BID, também em Washington. Mas
o FMI era uma instituição mais importante e que guardava mais relação
com a minha área de conhecimento e experiência. Mesmo assim, fiquei em
dúvida. O FMI atravessava na época uma fase não muito boa. Vivia uma
espécie de crise de identidade. Só um país de mais peso – a Turquia – tinha
um programa de financiamento e ajustamento com a instituição; os demais
devedores, não muito numerosos, eram países menores ou de menor nível
de desenvolvimento. O FMI era um corpo de bombeiros num mundo em
que não havia quase incêndios, como se dizia na época. Alguns
consideravam o Fundo uma instituição decadente, que precisaria se
reinventar. Depois de muito refletir, resolvi aceitar o convite, imaginando
ficar apenas um ou dois anos. Nos primeiros meses em Washington, não
foram poucas as dificuldades de adaptação e aprendizado, relatadas em
outro texto neste livro.5 O ex-ministro da Fazenda, Luiz Carlos Bresser
Pereira, antecipara essas dificuldades em artigo que publicou na Folha de
S.Paulo, em meio à controvérsia sobre a minha indicação, intitulado “Um
nacionalista no FMI”. De fato, como todo nacionalista, eu era cético, em
alguma medida, sobre a relevância e a utilidade da esfera multilateral – e
muito desconfiado das intromissões das entidades sediadas em Washington,
que considerava uma fachada “global” utilizada, com frequência, para
avançar os interesses dos Estados Unidos e demais países desenvolvidos
que as controlam.
O quadro mudaria radicalmente com a crise em 2008. Menos de um ano
depois da minha chegada a Washington, apareceria uma gravíssima crise
financeira, a pior desde a Grande Depressão dos anos 1930, que teve início
no mercado de hipotecas de alto risco e se espalharia como fogo em palha
para o resto do sistema financeiro dos Estados Unidos e da Europa,
provocando grandes deslocamentos econômicos e uma série de
repercussões internacionais. Não era propriamente uma “crise global”,
como insistiam em dizer os americanos e europeus, interessados em
arregimentar apoio de outros países para enfrentar seus problemas, mas
essencialmente uma crise financeira do Atlântico Norte, como notava um
dos meus colegas de Diretoria, o indiano Rakesh Mohan. De qualquer
maneira, a crise recolocou o FMI no centro da cena. O corpo de bombeiros
voltou à ativa. Muitos países recorreram ao apoio financeiro do Fundo,
inclusive europeus, classificados como desenvolvidos, algo que não se via
desde a década de 1970.
A presença em Washington, dentro do FMI, se tornou muito mais rica e
interessante do que eu antecipara ao aceitar o convite. Acabaria ficando
mais de oito anos na função, até junho de 2015, quando me mudaria para
Xangai para assumir o cargo de vice-presidente brasileiro no novo banco de
desenvolvimento criado pelos BRICS.
Não pretendo neste texto e nos dois que se seguem cobrir todas as áreas
de atuação do FMI, nem mesmo toda a atuação da cadeira brasileira na
Diretoria Executiva de 2007 a 2015, que foi vasta e variada. O propósito é
selecionar alguns aspectos, controvérsias e episódios marcantes, que
possam ser reveladores de como funciona o FMI, de como atuam os
principais países, do papel do Brasil nesse período e, de forma mais ampla,
de como se organiza e reorganiza a governança global em tempos de crise
aguda. Não vou seguir sequência rigidamente cronológica, o que poderia
ser maçante, mas tratar o assunto por tópicos. Procurarei também evitar
repetir outros textos deste livro que abordam questões relacionadas ao FMI,
ao G20, aos BRICS e à crise internacional.
Super-representação europeia
A super-representação da Europa no FMI é um problema tão ou mais grave
do que o excessivo poder dos Estados Unidos. Ela tem três dimensões:
1) A regra informal que reserva o cargo mais alto da Administração a
um europeu; todos os 11 diretores-gerentes do FMI foram europeus até
agora (cinco franceses, dois suecos, um belga, um holandês, um alemão e
um espanhol).
2) O elevado poder de voto agregado dos europeus, da ordem de 30%
do total e muito superior a seu peso na economia internacional. O declínio
gradual do peso das economias europeias na economia mundial desde o
século passado não tem se refletido, na mesma medida, em ajustamento das
quotas relativas e poder de voto dos europeus.
3) O número excessivo de cadeiras na Diretoria comandadas por
europeus, 8, às vezes 9, das 24. Houve algum rearranjo nas cadeiras
europeias com a reforma de 2010, mas essas mudanças foram mais
cosméticas do que reais, como explicarei quando tratar dessa reforma mais
à frente.
Nos meus mais de oito anos no FMI, os europeus foram quase sempre a
principal fonte de resistência à reforma da instituição. Devo ressalvar que
alguns diretores de pequenos países europeus – ainda que lutassem,
compreensivelmente, para preservar a sua super-representação –
costumavam se destacar pela qualidade da atuação na defesa da instituição e
das prerrogativas da Diretoria contra as intrusões da Administração, entre
eles o belga Willy Kiekens, o austríaco Hans Prader e os suíços Thomas
Moser e René Weber. Mas a atuação dos grandes europeus – os alemães, os
franceses, os ingleses, os italianos e os espanhóis – era geralmente nefasta,
de defesa coordenada e intransigente do status quo institucional, com
poucas contribuições ao trabalho da Diretoria e tentativas recorrentes de
submeter a ação do Fundo a suas agendas nacionais.
As manobras dos europeus não deixavam de ter aspectos cômicos.
Sempre orgulhosos e preconceituosos, custariam muito a aceitar certas
implicações da crise do euro, entre elas a necessidade de que alguns países
da área monetária se submetessem à tutela e às condicionalidades do FMI –
condicionalidades que europeus e outros estavam acostumados a
recomendar e aplicar a países latino-americanos, caribenhos, africanos ou
asiáticos – mas só a esses. No início da crise, os europeus, estranhamente,
começaram a falar publicamente em criar um “Fundo Monetário Europeu”.
Nessa época, eu costumava provocá-los em reuniões da Diretoria,
indagando: “Por que criar um Fundo Monetário Europeu, se ele já existe –
exatamente este aqui, em Washington?”
Do G7 ao G20
No período pré-crise de 2008, a estrutura não residente de governança do
FMI tinha um reforço crucial, do ponto de vista das nações desenvolvidas: a
dominância do G7, que exercia, entre outros papéis, o de principal foro para
cooperação econômica e financeira internacional. O G7 – integrado pelos
Estados Unidos, os quatro grandes países europeus (Alemanha, França,
Reino Unido e Itália), Canadá e Japão – reunia-se periodicamente,
deliberava sobre as principais questões internacionais e proporcionava,
sempre que necessário, orientações para a ação do FMI e do Banco
Mundial. O IMFC não ousava desafiar o que vinha do G7. Havia, portanto,
uma hierarquia informal do G7 para o IMFC e o FMI como um todo.
A profunda crise nos sistemas financeiros americano e europeu, a partir
de 2008, modificou tudo isso. Com significativa participação do Brasil, que
exercia a presidência de turno do grupo em 2008, o G20 foi convertido em
foro de líderes e substituiu o G7 como principal foro para cooperação
econômica e financeira internacional.23
Ocorre que a composição do G20, que, como vimos, também deliberava
por consenso, era mais favorável a nós do que a do IMFC, principalmente
por sofrer menos da super-representação europeia. Os europeus faziam o
possível para corrigir esse problema, tentando por manobras variadas
aumentar a sua representação no G20. Mas não foram muito bem-
sucedidos,24 em parte por objeções dos emergentes, mas sobretudo pela
oposição dos Estados Unidos, tanto no final do governo Bush como no
governo Obama.
Como foro de líderes (presidentes ou primeiros-ministros), o G20 logo
adquiriu importância relativamente ao IMFC, foro de nível ministerial, e
passou a deliberar também sobre as grandes questões do FMI. O Brasil, que
atuava em todos os níveis, passou a privilegiar o G20. Para mim, tornou-se
fundamental garantir presença como delegado brasileiro, não só no IMFC,
algo que era meio automático, mas sobretudo no G20 e, depois, nos BRICS.
Só uma pequena minoria dos diretores executivos, e nenhum na mesma
medida que eu, tinha esse papel múltiplo, o que acabava me proporcionando
certa vantagem em relação a meus colegas. Isso só era possível porque tinha
acesso não só ao ministro da Fazenda, Guido Mantega, que depositava
confiança em mim, mas também ao presidente da República – algo raro
entre os diretores do FMI. Essa assimetria, conto en passant, provocava
ressentimentos, sobretudo entre os europeus que resistiam ferozmente à
reforma do FMI, levando até a situações cômicas. Nas reuniões do comitê
administrativo da Diretoria do FMI, havia tentativas recorrentes e até
mesquinhas de cortar o meu orçamento de viagem – mas consegui escapar
dessas tentativas, com apoio dos outros diretores de países em
desenvolvimento e até de alguns desenvolvidos.25
Mesquinharias à parte, o que os europeus realmente fizeram,
principalmente no período Lagarde, foi manobrar para que as deliberações
do IMFC, mais favoráveis aos europeus, prevalecessem sobre as do G20,
quando conveniente para eles, o que frequentemente era o caso no que se
referia à reforma de quotas e governança do FMI. Praticava-se o “forum
shopping”, como ressaltavam repetidamente os brasileiros nas reuniões do
G20, no IMFC e na Diretoria do FMI. Os europeus argumentavam, Lagarde
à frente, que o G20, diferentemente do IMFC, não fazia parte da estrutura
do FMI – argumento que nunca fora usado, diga-se, quando o FMI seguia
disciplinadamente as orientações do G7.26 Os grandes países europeus,
membros plenos do G20, tinham um pouco mais de dificuldade de fazer
esse “forum shopping”, mas se escondiam para esse fim atrás dos europeus
menores, que não eram membros do G20 e resistiam naturalmente a aceitar
as suas deliberações.
O financiamento do FMI
Como o FMI financia suas atividades de emprestador? Esse é um lado
menos conhecido do funcionamento da instituição. Para entendê-lo, é
preciso reconhecer, primeiramente, que o Fundo é um reserve pooling
arrangement (um arranjo de compartilhamento de reservas), a exemplo do
que são a Iniciativa de Chiang Mai, criada por países do Leste Asiático, sob
liderança do Japão, da China e da Coreia do Sul, e o Arranjo Contingente
de Reservas (ACR), estabelecido posteriormente pelos BRICS.38 O FMI é,
de longe, o mais importante desses arranjos e tem peculiaridades
importantes. Primeiro, é muito maior do que quase todos os demais arranjos
de compartilhamento de reservas existentes. Só o Mecanismo Europeu de
Estabilidade (European Stability Mechanism – ESM), criado pelos
membros da zona do euro após a crise, pode ser comparado ao Fundo em
termos de volume de recursos à disposição. Segundo, o FMI é um actual
(real ou efetivo) reserve pooling arrangement, isto é, um arranjo em que os
países participantes efetivamente depositam suas contribuições,
denominadas quotas, e não um arranjo virtual como são Chiang Mai e o
ACR.39 Terceiro, o FMI é uma instituição de grande porte que, para além de
prover apoio a países-membros com dificuldades de balanço de
pagamentos, exerce atividades variadas de surveillance, pesquisa
econômica aplicada, assistência técnica e treinamento. Chiang Mai tem um
escritório relativamente pequeno, sediado em Singapura, que acompanha as
economias dos 13 países-membros e se apoia, em parte, nos relatórios do
FMI. O ACR dos BRICS ainda não estabeleceu sua unidade de
surveillance, prevista no Tratado que o constituiu.40
Como funciona, em teoria, um arranjo de compartilhamento de
reservas? Na essência, é um acordo ou arranjo internacional, mediante o
qual países se associam para estabelecer o compromisso de socorrer dentro
de certos limites, em caso de dificuldades cambiais, qualquer dos países
participantes, obedecidas determinadas regras preestabelecidas. Quando o
pool é suficientemente amplo em termos de recursos e participantes, pode-
se estabelecer que qualquer país envolvido em uma operação de socorro a
outro país-membro tenha, ele mesmo, o direito de invocar problemas
próprios de balanço de pagamentos para sair da operação e receber
antecipada e imediatamente os recursos emprestados, com sua saída sendo
coberta pelos demais credores. Se essa hipótese de saída for crível e bem
formulada, pode-se continuar tratando recursos desembolsados como parte
das reservas internacionais dos países emprestadores. Um arranjo de
compartilhamento de reservas constitui, assim, um mecanismo de criação
de reservas internacionais. Esses arranjos funcionam bem se contam com
um número razoável de países fortes e quando os membros estão sujeitos a
riscos assimétricos.
Ao FMI se aplicam essas considerações gerais, mas com ressalvas
importantes. Como o Fundo pretendia, desde o início, ter caráter global ou
quase global, o arranjo de compartilhamento de reservas que está no seu
cerne reflete, necessariamente, as características do que é conhecido, talvez
impropriamente, como “sistema monetário internacional”. Trata-se de um
sistema pouco sistemático que foi se formando ao longo do tempo, aos
trancos e barrancos. Funciona com base em algumas moedas nacionais,
principalmente o dólar, e uma moeda regional – o euro. Não existe moeda
internacional; o único arremedo de moeda internacional, o Direito Especial
de Saque (DES), criado no âmbito do FMI em 1969, funciona basicamente
como unidade de conta para a própria instituição. Os americanos nunca
permitiram que o DES se desenvolvesse como moeda, o que ameaçaria
potencialmente o papel do dólar.
Esse sistema assistemático confere alguns privilégios aos emissores de
moedas de liquidez internacional, especialmente do dólar – privilégios
exorbitantes, na célebre expressão de Charles de Gaulle. Um deles, nem
sempre lembrado, é a possiblidade de participar de arranjos de
compartilhamento de reservas sem dificuldade, pela simples emissão (ou
compromisso de emitir) moeda nacional ou regional. Os demais
participantes de arranjos de compartilhamento participam com reservas
adquiridas a certo custo fiscal ou de balanço de pagamentos.
No caso do FMI, os participantes entram com quotas. O arranjo é
engenhoso e repleto de detalhes importantes que remontam, diga-se de
passagem, mais a White do que a Keynes. Para não sobrecarregar os países
mais vulneráveis, o que incluía, no início, os europeus devastados pela
Segunda Guerra, estabeleceu-se que as quotas poderiam ser integralizadas,
em grande parte, nas moedas nacionais dos países-membros, estabelecendo
certa simetria entre os emissores de moeda de liquidez internacional e o
resto do mundo. Só os países com forte posição de balanço de pagamentos
estariam comprometidos a transformar suas quotas em moeda de liquidez
internacional, conforme as necessidades do FMI como emprestador. Para
tal, o país teria que integrar o que viria a ser conhecido como Plano de
Transações Financeiras (Financial Transactions Plan – FTP). O Brasil, por
exemplo, até onde sei, nunca fora parte do FTP ou de mecanismos
equivalentes anteriores, e só aderiu a ele em 2009, primeiro passo no
caminho que faria do país, inesperadamente, um dos credores da instituição.
O ônus de participar do FTP é relativamente pequeno, pois ao ter suas
quotas eventualmente mobilizadas pelo FMI, um país não perde reservas,
apenas registra uma mudança na sua composição, com eventual perda
modesta em termos de remuneração média das reservas.41 Forma-se uma
rede de segurança, que permite a um país credor obter de volta, sem
empecilhos, liquidez internacional em caso de dificuldades próprias. Essa é,
por assim dizer, a mágica de arranjos de compartilhamento de reservas
amplos, com grande número de participantes. E quanto maior o número de
membros e mais espalhados geograficamente, maior tende a ser o número
de países com balanços de pagamentos fortes e menor a chance de que os
membros estejam sujeitos a riscos simétricos.
As quotas servem, na verdade, a três propósitos. O primeiro é, como
explicado, o de constituir o capital próprio do Fundo e financiar suas
atividades de emprestador. O segundo é servir de referência ao cálculo do
acesso de cada país-membro aos empréstimos do FMI. O “acesso normal”
de um país aos recursos do Fundo, determinado por regras mutáveis, é um
múltiplo da quota. Mas são comuns os casos de “acesso excepcional” em
que os tetos normais são ultrapassados por larga margem. Há regras,
aprovadas pela Diretoria, para fornecer acesso excepcional, mas ocorrem
também situações estranhas em que as regras não são propriamente
respeitadas ou são modificadas de forma improvisada. Esse seria o caso da
Grécia, por exemplo, em circunstâncias que, como explicarei, levaram a
considerável abalo na credibilidade do FMI.
O terceiro propósito das quotas é servir de principal determinante do
poder de voto dos países-membros.42 Pelas explicações dadas
anteriormente, não é difícil perceber que a demanda por quotas é superior à
oferta. Uma quota maior favorece o acesso a recursos do FMI e aumenta o
poder de voto do país. É verdade que o aumento da quota implica aumento
da obrigação potencial de financiar o Fundo, se o país for membro do FTP,
mas isso envolve, como mencionado, apenas mudança potencial na
composição das reservas e tem, na pior das hipóteses, um custo modesto de
oportunidade. Os países que dominam a instituição não encontram,
entretanto, muita motivação para aumentar as quotas – a menos que, ponto
crucial, as quotas relativas (quota shares) sejam preservadas. A cada rodada
de aumento das quotas, os países emergentes e sub-representados
vislumbram a oportunidade de modificar o seu status na instituição. Uma
discussão sempre difícil é a determinação da forma de calcular as quotas
relativas e, portanto, o poder de voto de cada país.
Para os países dominantes, a solução tem sido postergar o aumento dos
recursos em tempos de “paz” e, em tempos de “guerra”, recorrer em larga
medida a arranjos paralelos em que os países são chamados a emprestar
reservas ao Fundo, sem adquirir quotas. Voltariam a recorrer a esse
expediente, em escala sem precedentes, para enfrentar os efeitos da crise de
2008. Isso era o ideal para eles; fortalecia-se a instituição sem obrigá-los, de
imediato, a abrir mão de um centímetro de poder de voto. O Brasil e outros
emergentes com reservas elevadas foram chamados a participar como
credores, e acederam.
Repare, leitor, que tecnicamente o que se faz é constituir arranjos de
compartilhamento de reservas paralelos, adicionados ao sistema de quotas.
A participação dos países pode-se dar de duas formas: a) bilateralmente,
com o país abrindo linhas de crédito ou adquirindo títulos emitidos pelo
FMI; ou b) em esquemas plurilaterais, como o New Arrangements to
Borrow – NAB (Novos Arranjos para Emprestar), que existia desde 1998 e
foi consideravelmente ampliado e reformulado depois da crise de 2008. Em
ambas as formas, os participantes comprometem-se a emprestar até um
certo limite e os recursos eventualmente desembolsados têm liquidez
garantida, continuando a fazer parte das reservas do país emprestador.
4. O Brasil no FMI
Nossa cadeira no FMI raramente era designada como Brazilian chair. A
referência era a Mr. Loyo’s chair ou Mr. Nogueira Batista’s chair – e as
outras 23 cadeiras da Diretoria também eram quase sempre referidas pelo
nome do diretor, e não pelo nome do país de origem do diretor. Prefiro usar
a designação imprópria para facilitar a exposição e, também, para não dar
ao leitor impressão de personalismo. Mas é importante entender por que a
designação considerada mais correta menciona o nome do diretor e não o
do país. A principal razão é que esse era um meio, entre diversos outros, de
que se valiam os guardiões da estrutura legal do FMI para lembrar a todos
que os diretores eram officials of the Fund (funcionários do Fundo), não
apenas country representatives (representantes de país ou países). Já
mencionei essa dualidade do papel do diretor executivo. A questão é
complexa do ponto de vista jurídico, e há extensa literatura especializada a
respeito. Não quero entrar em detalhes, mas vale mencionar que existe até
mesmo uma interpretação, não aceita por todos os especialistas, de que o
papel de official of the Fund, isto é, a responsabilidade fiduciária, deve
prevalecer sobre o de representação.
Da minha parte, havia certa resistência, sobretudo no início, em aceitar
esse lado do papel do diretor. A razão é que eu tinha, não sem motivos,
certa antipatia pela instituição, reflexo da relação historicamente tumultuada
do Brasil com o Fundo e da minha condição de nacionalista visceral, de
quatro costados, por parte de pai e mãe, como mencionei na apresentação
deste livro. Entendia perfeitamente o que dissera DSK quando aceitou o
convite do então presidente da França, Nicolas Sarkozy, para assumir o
cargo de diretor-gerente do FMI: “Je reste français, je reste socialiste.”
Poderia tranquilamente parafraseá-lo e dizer: “Continuo brasileiro, continuo
nacionalista.”
Mas isso tudo era, por assim dizer, meia verdade. Com o passar do
tempo, fui percebendo que a responsabilidade fiduciária pela instituição era
realmente parte essencial da nossa função, como haviam me advertido meus
antecessores no cargo. Era, por exemplo, argumento poderoso contra
diretores europeus e americanos, especialmente os primeiros, que em certas
ocasiões se comportavam, desbragadamente, como representantes de seus
países de origem, em flagrante contradição com sua responsabilidade
fiduciária. Embora disfarçada pelas habituais hipocrisias e por truques de
linguagem, essa contradição me parecia, às vezes, muito clara, e eu podia
me valer desse argumento para inibir e constranger manobras de adversários
na Diretoria. Funcionava, além disso, como certa proteção contra
interferências indevidas de Brasília – embora esse problema raramente
aparecesse, em razão da minha afinidade com o ministro Mantega, que foi
governador do Brasil em quase todo o período em que estive na Diretoria
do FMI. A situação mudaria radicalmente com a substituição de Mantega
por Levy, em janeiro de 2015, como conto depois.
A designação “cadeira brasileira” é imprecisa por outra e mais óbvia
razão. A cadeira brasileira, assim como 16 outras da Diretoria, é uma
multicountry chair (uma cadeira com múltiplos países). A nossa tinha nove
países quando cheguei a Washington; o número aumentaria para 11 com a
entrada da Nicarágua, de Cabo Verde e de Timor-Leste e a saída da
Colômbia em 2012. Para que todos os países-membros tenham
representação na Diretoria, sem ampliá-la para dimensões inviáveis,
formam-se constituencies, para usar o linguajar do Fundo, regidas por
acordos entre os países que definem o funcionamento da cadeira e, em
especial, a distribuição de cargos de diretor, diretor alterno e assessores.
Esse também é o caso, por exemplo, da cadeira da Índia e, como já
indiquei, das duas da África Subsaariana. Os latino-americanos estão
espalhados por três cadeiras: a nossa; uma cadeira sul-americana que inclui
Argentina, Peru, Chile e alguns países sul-americanos; e uma cadeira quase-
latino-americana, integrada por México, Venezuela, alguns outros latino-
americanos e, também, Espanha. As sete single country chairs (cadeiras de
um só país) são as dos Estados Unidos, Alemanha, França, Reino Unido,
Japão, China e Arábia Saudita.
Os países que detêm single country chairs tendem a valorizar muito
essa condição e consideram-na uma questão de prestígio nacional. Mas logo
descobri que isso era tolice. Admitindo-se que o diretor executivo e sua
equipe estejam dispostos a trabalhar intensamente – hipótese nem sempre
verdadeira, reconheço – representar vários países era um grande trunfo. Não
tanto pela questão de poder de voto – os países pequenos, e mesmo os
médios, acrescentavam poucos votos às cadeiras – mas pela variedade de
experiências que uma constituency proporcionava ao diretor. O diretor de
uma constituency tomava contato com uma série de dimensões do trabalho
do Fundo a que nunca teria acesso se representasse um só país. Aprendia
com as autoridades dos países que representava e também com os
integrantes do staff que cuidavam desses países ou dos temas de política
institucional relacionados a eles. Podia, assim, adquirir influência no
trabalho do FMI em várias áreas.
No processo de reforma da governança do FMI depois da crise de 2008,
houve um esforço, do qual participei, de convencer os europeus com single
country chairs a formar constituencies com outros países para permitir a
redução do tamanho da Diretoria ou a diminuição do número de cadeiras
comandadas por europeus. Quando falava com ingleses, franceses ou
alemães a esse respeito, no G20 e no FMI, a reação era de desagrado e até
certa irritação, como se eu estivesse tentando manipulá-los. Não conseguia
convencê-los de que era a minha opinião sincera.48 Nesse ponto, estava, de
novo, de acordo com os americanos, que há muito preferiam uma Diretoria
menor e com menos europeus. Mesmo que não fosse possível reduzir o
número de cadeiras, tendo em vista a quantidade de países-membros do
FMI, era certamente desejável diminuir o número de diretores e alternos
europeus. Por causa das artimanhas dos europeus, pouco conseguiríamos
nessa área, como veremos.
A cadeira brasileira incluía, quando cheguei, os seguintes oito países,
além do Brasil: a Colômbia, país de tamanho médio, e diversos menores:
Equador, Guiana e Suriname, na América do Sul; Panamá, na América
Central; e República Dominicana, Haiti e Trinidad e Tobago, no Caribe. A
constituency era regida por um acordo que havia sido negociado por Murilo
Portugal. Havia uma vulnerabilidade do Brasil, nunca divulgada, que só
seria resolvida no meu período como diretor executivo. As quotas têm uma
outra implicação prática, além das que já expliquei, pouco conhecida fora
do FMI: são elas que servem de referência para definir a composição da
Diretoria. É com base nas quotas relativas e no poder de voto que delas
decorre, que os países podem pleitear cadeiras exclusivas ou a liderança de
cadeiras multicountry, além de aspectos menos significativos, mas, ainda
assim, importantes para os países e o funcionamento das constituencies,
como a indicação de diretores alternos, de assessores de diferentes níveis e
até, em algumas cadeiras, de assistentes administrativos. A quota brasileira,
que era pequena, podia dar margem a dúvidas sobre se teríamos condições
de manter o comando permanente de uma cadeira na Diretoria. É que no
longo período de 32 anos, de 1966 até 1998, em que Alexandre Kafka foi o
diretor executivo, a quota relativa e o poder de voto do Brasil sofreram
erosão gradual. Com a entrada de novos países no FMI, o nosso peso
relativo foi diminuindo mais do que deveria, considerando o tamanho do
país e da sua economia. Kafka se tornara o decano da Diretoria e tinha, por
sua inteligência e experiência, grande influência na instituição; não dava
importância ao tamanho relativo da quota e ao poder de voto do Brasil.
Murilo e Loyo tentariam, sem sucesso, corrigir essa vulnerabilidade, que só
seria removida com as reformas de 2008 e 2010.
Porém, nesse meio tempo, abriu-se um problema. Os nossos acordos de
constituency no FMI e no Banco Mundial venciam em 2004.49 Colocou-se
então o problema de que o tamanho da quota brasileira no FMI, que caíra
para apenas 1,4%, não nos dava a segurança de reter, sem rotação com
outros países da cadeira, a posição de diretor executivo. Como o Brasil
atribuía, com razão, mais importância a isso do que à nossa posição relativa
na Diretoria do Banco Mundial, Murilo acabou aceitando rotação
assimétrica na posição de diretor no Banco Mundial em troca da
preservação do comando brasileiro contínuo na nossa cadeira no FMI.50
Assim, o quadro que encontrei quando cheguei a Washington era de
uma cadeira comandada pelo Brasil, que indicava um brasileiro para a
eleição pelos demais países da constituency. Por norma do FMI, a cada dois
anos, ocorriam eleições para diretores, ou antes, se um diretor, por alguma
razão, renunciava ao cargo ou não conseguia completar o mandato. Para
pertencer a uma constituency, bastava que um país, mais precisamente o seu
governador no FMI, ou na sua ausência o governador alterno devidamente
autorizado, votasse no nome indicado pelo país que comandava a cadeira.
Na cadeira comandada pelo Brasil, por acerto interno dos países expresso
no acordo de constituency, a Colômbia tinha o direito de indicar o diretor
alterno. Os demais países indicavam senior advisors (assessores sêniores)
ou advisors (assessores), por períodos determinados, conforme a
importância de cada um em termos de quotas relativas. O Brasil tinha
também, ponto crucial, uma vaga de assessor sênior. Tudo isso estava
previsto no acordo de constituency negociado por Murilo Portugal. Do
ponto de vista jurídico, esses acordos eram acertos informais que não
poderiam, em nenhuma hipótese, sobrepor-se a ou violar a estrutura legal
do FMI. Mesmo assim, eram quase sempre respeitados religiosamente. A
distribuição dos países em cadeiras era notavelmente estável, e raramente
ocorriam migrações de uma constituency para a outra. Essa tradição de
estabilidade seria rompida pela cadeira brasileira, com a já referida entrada
de três países e a saída da Colômbia. Houve, também, na mesma época,
mudanças nas cadeiras europeias, por força da reforma de governança e
quotas de 2010, que se revelariam, contudo, menos significativas do que
pareciam à primeira vista. Os europeus, como eu aprenderia, eram
especialistas em window-dressing, operações de fachada e mudanças
cosméticas que preservavam, ou até aumentavam um pouco, sua influência
na Diretoria.
1 Texto concluído em junho de 2019. Agradeço os comentários e sugestões de Hector Torres, Pedro
Fachada, Felipe Santarosa e Sergio Xavier Ferreira, sem responsabilizá-los pelas opiniões expressas
ou pelos erros e omissões remanescentes.
2 A chefe de missão do FMI, responsável pela tentativa de negociar um novo acordo com o governo
Sarney, ainda era a chilena Ana Maria Jul, que, embora fosse funcionária de escalão médio do FMI,
ficara célebre no Brasil pelo seu papel nas tumultuadas negociações com o ministro Delfim Netto
durante o governo Figueiredo nos anos iniciais da década de 1980.
3 Sobre Abraham Lincoln, ver neste livro p. 401 e 402.
4 Outras fontes potencialmente importantes são os escritórios ou grupos de avaliação independente
dessas instituições. Os trabalhos do Independent Evaluation Office (IEO) do FMI costumam ser
interessantes e podem ser encontrados na página da instituição na internet. Também vale a pena
consultar os trabalhos do ex-historiador oficial da instituição, James Boughton, especialmente os que
publicou a título pessoal. Embora com menos independência, o departamento de pesquisa do FMI
também produz working papers ou outras publicações que ajudam, às vezes, a entender como
funciona a instituição.
5 Ver p. 418-9.
6 A esmagadora maioria do corpo técnico está em Washington; apenas uma pequena parcela trabalha
em escritórios de representação em alguns países, geralmente de maior porte ou que estão executando
programas de financiamento e ajustamento com o FMI. Nesse ponto, o Fundo é muito diferente do
Banco Mundial, que possui pesada estrutura fora de Washington e grande número de funcionários
espalhados pelo mundo.
7 Para alguns aspectos desse debate macroeconômico ver neste livro p. 43-53.
8 Ver neste livro p. 258-9.
9 Com as reformas de 2008 e 2010, a participação dos países desenvolvidos no poder de voto
diminuiu de 60% para 55% do total.
10 O processo de coordenação entre os BRICs, inclusive na Diretoria do FMI, começou em 2008, por
iniciativa da Rússia. Ver neste livro p. 235-7.
11 Ver neste livro p. 50-3.
12 Na prática, isso significa a disposição dos diretores minoritários de juntar-se a ou acompanhar o
consenso (join or go along with the consensus), ainda que possam ter expressado reservas ou
discordâncias por escrito e em intervenções verbais.
13 No caso dos suíços, havia um fator estrutural que os diferenciava dos demais europeus: a relativa
independência do país, que não pertence à União Europeia. No caso dos diretores belga e austríaco, o
que pesava eram as qualidades pessoais, inclusive a longa experiência de FMI e a disposição de atuar
com certa autonomia no interesse da instituição.
14 Em uma delas, a cadeira do México e da Venezuela, o comando é compartilhado em regime de
rotação com a Espanha, o que reduz para 11, em certos períodos, o número de cadeiras lideradas por
países emergentes ou em desenvolvimento.
15 No meu período na Diretoria, Peter Gakuno e Moeketsi Majoro foram exceções notáveis no
comando da cadeira africana anglófona, principalmente o primeiro.
16 Pelo acordo que rege a cadeira africana anglófona, há uma rotação simétrica no posto de diretor
entre os 23 países-membros; em consequência, um sul-africano ocupa o posto de diretor a cada 46
anos. Para aumentar a sua presença na Diretoria, a África do Sul tem lutado pela criação de uma
terceira cadeira africana. Isso foi alcançado no Banco Mundial, onde se criou uma 25a cadeira,
integrada por África do Sul, Angola e Nigéria. Pessoalmente, não simpatizava muito com a ideia,
apesar da presença da África do Sul nos BRICS a partir de 2011. Não via muita vantagem em ampliar
uma Diretoria já grande demais para criar o que arriscaria ser mais uma cadeira relativamente
passiva, com tendência a seguir os acionistas majoritários. A minha relutância desagradou os sul-
africanos que batiam muito nessa tecla.
17 Constituency é o termo usado no FMI, e também no Banco Mundial, para designar grupos de
países que votam em um só diretor executivo e integram assim uma cadeira da Diretoria.
18 A frase-padrão, repetida mecanicamente por diretores ou membros da sua equipe, é: “We agree
with the thrust of the staff appraisal.” (“Estamos de acordo com a essência da avaliação do staff.”)
Os relatórios do staff submetidos à apreciação da Diretoria contêm, quase sempre, uma seção
intitulada staff appraisal, que resume as principais conclusões. Muitas cadeiras, até de países
desenvolvidos, se limitavam, por comodismo ou cautela, a parafrasear, às vezes simplesmente repetir,
trechos do staff appraisal. Na cadeira brasileira, isso era terminantemente proibido. Nos nossos
pareceres escritos e intervenções verbais, a minha orientação era evitar frases feitas e concordâncias
automáticas. Procurávamos estudar os assuntos e fazer contribuições relevantes ao debate,
expressando com frequência críticas ao trabalho do staff e às propostas da Administração. Não
agradávamos, mas suscitávamos respeito.
19 As reuniões plenárias do Conselho de Governadores ocorrem uma vez por ano, em outubro, mas
têm pouca importância. É principalmente uma oportunidade para os governadores de países pequenos
(ou seus alternos) discursarem sobre temas da agenda do FMI e da economia internacional.
20 A diferença é que, às vezes, por acertos internos das constituencies, o comando da cadeira no
IMFC diverge do comando na Diretoria.
21 Criou-se um comitê semelhante no Banco Mundial, denominado Comitê de Desenvolvimento
(Development Committee).
22 Como os ministros de Finanças e presidentes de Bancos Centrais vivem assoberbados por
questões quase sempre mais importantes, a atuação no Conselho Ministerial ficaria,
preponderantemente, em mãos de funcionários de terceiro ou quarto escalão, como os secretários de
assuntos internacionais dos ministérios de Finanças ou diretores da área internacional dos bancos
centrais. Eram esses funcionários os que se mostravam, às vezes, mais sensíveis à argumentação da
Administração e dos europeus. A nós, diretores, cabia cobrir esse flanco, o que fizemos com sucesso.
23 Ver neste livro p. 36-7.
24 A Holanda e a Espanha tentaram, com apoio dos europeus do G20, se incorporar ao grupo. A
Holanda, diga-se de passagem, era o mais conservador dos pequenos europeus. A Espanha
conseguiria o status de convidado permanente, mas não chegou a ser aceita como membro pleno. O
governo brasileiro, por afinidades socialistas, tendia a apoiar a entrada da Espanha. Marco Aurélio
Garcia, prestigiado assessor internacional do presidente Lula, simpatizava com as pretensões
espanholas, então governada pelo Partido Socialista. Mas era, no meu entender, um erro de avaliação.
A Espanha, no FMI e no G20, não se distinguia em nada da posição conservadora e imobilista dos
outros grandes europeus. Cheguei a levar o assunto diretamente ao presidente Lula, que me explicou
que o presidente George W. Bush era contrário à entrada de mais europeus. Na primeira reunião de
líderes do G20, em Washington, em novembro de 2008, George W. Bush que, como anfitrião,
presidia o encontro, ostensivamente evitou conceder a palavra ao presidente do governo espanhol,
segundo me relatou Lula.
25 Gastava-se tempo enorme com a discussão de novas regras e procedimentos que pudessem
resultar em restrição às viagens de trabalho da cadeira brasileira e de algumas outras. Certa vez, em
reunião do comitê administrativo da Diretoria, o diretor suíço, René Weber, comentou ironicamente
que lhe parecia um verdadeiro absurdo dedicar horas e horas ao que era, no fundo, uma tentativa de
“ground Mr. Nogueira Batista” (de me aterrar ou deixar de castigo). Sendo eu funcionário do FMI, o
governo brasileiro não teria condições de arcar com o custo das minhas viagens relacionadas ao G20
e aos BRICS. A minha pretensão, afinal vitoriosa, de custear essas despesas de viagens (minhas e, às
vezes, de alguns assessores) com o orçamento da cadeira brasileira se baseava juridicamente na
possibilidade que têm os diretores executivos de prestar assistência técnica (inclusive remunerada, o
que não era o meu caso) aos países que representam na instituição.
26 Lagarde estava, na realidade, em condições pessoais algo precárias para liderar esse tipo de
manobra, pois ela fora ministra de Finanças da França durante a fase inicial da crise, quando diversos
compromissos relativos à reforma do FMI foram assumidos no âmbito do G20 – ponto que cheguei a
ressaltar em reuniões da Diretoria. Conseguia causar algum constrangimento, mas isso não impedia
que a diretora-gerente persistisse nas suas manobras.
27 “Autoridades” é um termo ambíguo, muito usado no FMI, que esconde o fato de que os diretores,
a Administração e o staff interagem com ou consultam não necessariamente os ministros de Finanças
ou presidentes de banco central, a quem nem sempre têm grande acesso, mas funcionários de escalão
intermediário nas capitais, que não possuem papel formal no processo decisório da instituição.
28 Uma exceção importante foi a decisão de emprestar recursos ao FMI, que foi tomada pelo
presidente. Ver neste livro p. 406-7.
29 Vigora, também, a prática de receber visitas intermediárias do staff, as chamadas mid-cycle staff
visits, entre uma e outra consulta anual do Artigo IV.
30 A Nicarágua, durante o governo de Daniel Ortega, chegou a executar de forma bem-sucedida um
programa de financiamento e ajustamento com o FMI.
31 Os principais são o World Economic Outlook, o Global Financial Stability Report e o Fiscal
Monitor. Podem ser interessantes, também, os relatórios econômicos sobre as diferentes regiões do
mundo. Todos esses documentos estão disponíveis na página do FMI na internet.
31 Sobre isso, ver Independent Evaluation Office (IEO), IMF Performance in the Run-Up to the
Financial and Economic Crisis: IMF Surveillance in 2004-07, agosto de 2011. Disponível em:
<https://ieo.imf.org/>.
33 Ver neste livro p. 48-9.
34 No caso de países pequenos ou menos desenvolvidos, os relatórios do Artigo IV constituem, não
raro, a principal, às vezes a única, fonte de informações abrangentes e relativamente confiáveis sobre
a economia do país, e a sua publicação tem repercussão considerável.
35 Essa descrição se aplica às linhas tradicionais de empréstimo do FMI. A verificação de metas
pode ser menos frequente, no caso de empréstimos precaucionais (que não envolvem desembolso
imediato de recursos). No caso de linhas criadas durante a crise, as condicionalidades são bem mais
leves ou até inexistentes, como discutido mais à frente.
36 Com frequência, os pacotes financeiros de apoio a países com problemas graves de balanço de
pagamentos estão centrados no FMI, mas contam com apoio paralelo e vinculado de outras fontes
multilaterais ou nacionais de financiamento. Isso envolve, em diversos casos, não só recursos
oficiais, mas também de origem privada, como ocorreu nos pacotes financeiros montados durante a
crise internacional da dívida externa da década de 1980, especialmente para países da América
Latina. Ver a respeito, por exemplo, Paulo Nogueira Batista Jr. “Países devedores e bancos
comerciais em face da crise financeira internacional”. Estudos Econômicos. Instituto de Pesquisas
Econômicas, Universidade de São Paulo. v. 14, n. 3, setembro-dezembro de 1984. A presença do
FMI funciona como uma garantia ou segurança para os demais financiadores, permitindo alavancar
recursos financeiros de outras fontes.
37 Isso leva a que os programas patrocinados pelo FMI contenham frequentemente medidas duras de
ajustamento, mais ou menos inevitáveis nas fases avançadas de uma crise. Como o Fundo sempre
frisa em defesa própria, nessas situações ocorre uma transferência de responsabilidade ou culpa para
a instituição, agravando sua impopularidade em muitos países.
38 Sobre o ACR ver neste livro p. 238-47. Ver, também, Jonnas Vasconcelos. BRICS: agenda
regulatória. 2018. Tese de doutorado, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2018, p.148-167. Disponível em: <https://bdpi.usp.br/item/002910177>.
38 Nesses arranjos virtuais, as reservas compartilhadas permanecem com os bancos centrais
nacionais, que são quase sempre os depositários das reservas internacionais dos países, e só são
mobilizadas quando há necessidade efetiva de desembolso.
40 Embora sejam entidades independentes, Chiang Mai e o ACR têm vínculo específico com o FMI,
conhecido como IMF-link, estabelecido voluntariamente por seus fundadores. Por não se sentirem
suficientemente seguros para emprestar grandes quantias a países em dificuldades, sem garantia de
que estes venham a corrigir seus desequilíbrios, os credores potenciais em Chiang Mai e no ACR
tiveram a preocupação de definir que a provisão de recursos, para além de certos limites de acesso,
tenha como pré-requisito um acordo de ajustamento com o FMI. Em outras palavras, esses novos
arranjos de compartilhamento de reservas pegam carona na capacidade que tem o FMI de monitorar
as economias nacionais e, quando for o caso, impor condicionalidades. Sobre o IMF-link no ACR Ver
neste livro p. 243-4. Ver, também, Jonnas Vasconcelos, op. cit., p. 161-163.
41 Os participantes do FTP se dispõem a fornecer dólares ou outras moedas de liquidez internacional
até o limite da sua quota no FMI, obtendo em troca ativos líquidos emitidos pelo FMI. Pode haver
um custo de oportunidade, na medida em que a remuneração oferecida pelo FMI for inferior à que se
obtém em aplicações seguras e líquidas no mercado. Porém, a diminuição na remuneração média das
reservas, quando ocorre, não é normalmente significativa.
42 O outro determinante do poder de voto são os chamados votos básicos, distribuídos em montante
igual a todos os países-membros para favorecer os menores e menos desenvolvidos.
43 Ver neste livro p. 406-7.
44 O presidente Lula levava as questões com bom humor. Em alusão à minha aversão nacionalista à
instituição a que pertencia, ele costumava exclamar quando me encontrava: “Fora daqui, o FMI!”
45 Certa vez, visitei o ex-presidente Lula no Instituto Lula, em São Paulo, e contei a ele a minha
surpresa com a capacidade que tinha a presidente Dilma de dominar os temas nas áreas em que eu
atuava, chegando a corrigir seus auxiliares em questões muito específicas. Lula escutou, com certo ar
cético, e discordou: “Está errado isso; presidente da República não deve entrar em detalhes e
substituir-se aos assessores.”
46 Ver neste livro p. 238-9.
47 A questão, evidentemente, é muito mais complexa e controvertida. Procurei destrinchá-la em livro
que publiquei na época: Da crise internacional à moratória brasileira. São Paulo/Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1988. Na entrevista coletiva que concedeu após o fim da cúpula, Dilma Rousseff explicou
que o Brasil estava considerando se participaria ou não da segunda rodada, mas só o faria em
circunstâncias bem determinadas, e não pelos “belos olhos do Paulo Nogueira Batista”, causando
sensação entre os jornalistas brasileiros e estrangeiros que me conheciam. Ao fazer a referência na
entrevista, ela confirmava que estava a par do esforço que eu fizera na montagem da segunda rodada,
e não o endossava completamente – como ficara claro, aliás, ainda que de modo implícito, no breve
diálogo que relatei.
48 Só acreditaram, talvez, quando fiz esforço bem-sucedido para ampliar o número de países na
cadeira brasileira, trazendo Nicarágua, Cabo Verde e Timor-Leste. Mas aí passaram a me acusar, à
boca pequena, de ter “roubado” países de outras cadeiras, perturbando o status quo da Diretoria.
49 Como a composição das nossas constituencies no FMI e no Banco Mundial são muito
semelhantes, os dois acordos costumam ser negociados simultaneamente.
50 Pelo acordo negociado, o Brasil girava com Colômbia e Filipinas na indicação do cargo de diretor
executivo no Banco Mundial, com o Brasil ocupando o cargo por oito dos 12 anos do acordo e os
outros dois países dividindo os outros quatro anos. Com o crescimento do Brasil dentro do FMI, isso
se tornou desnecessário e, em 2016, quando eu já não estava mais no FMI e venceram os acordos de
constituency de 2004, o Brasil passou a não mais aceitar a rotação no Banco Mundial.
51 No meu período, sobressaíram-se Ketleen Florestal, do Haiti, Kevin Finch, de Trinidad e Tobago,
e Manuel Coronel, da Nicarágua.
52 Os assessores enviados por Trinidad e Tobago, sempre funcionários do Banco Central daquele
país, geralmente se destacavam e ajudavam consideravelmente no trabalho da cadeira. Um deles,
Jwala Rambarran, que trabalhou com Murilo Portugal como assessor sênior, seria depois presidente
do Banco Central de Trinidad e Tobago, e governador alterno do país no FMI durante grande parte do
meu período como diretor, muito contribuindo para o nosso trabalho. A cadeira funcionava como
celeiro de presidentes do Banco Central, eu costumava dizer em reuniões da constituency, pois em
certo momento dois dos presidentes de banco central em exercício, Tombini e Rambarran, haviam
ocupado na nossa cadeira o cargo de assessor sênior.
53 Para um breve relato dessas divergências Ver neste livro p. 245.
54 Para as duas cadeiras africanas subsaarianas, o segundo alterno era um cargo adicional, como
previsto na reforma de 2008. Para as outras cadeiras com sete países ou mais, permitiu-se que uma
posição de assessor sênior fosse convertida em segundo alterno.
55 Eu procurava, além disso, ajudar alguns dos outros países da cadeira nas relações bilaterais com o
Brasil – por exemplo, Haiti, Suriname, Panamá e Timor-Leste –, o que reforçava os meus laços com
esses países. Também por isso teriam pouca repercussão nos nossos países as tentativas que fariam
dentro do FMI para me desestabilizar.
56 Eu seria eleito e reeleito pelo Brasil e demais países da constituency cinco vezes, a primeira para
completar o mandato interrompido de Loyo e depois, a cada dois anos, mais quatro vezes, a última
em outubro de 2014.
57 Murilo Portugal. “Improving IMF governance and increasing the influence of developing
countries in IMF decision-making”. In: Ariel Buira (editor). Reforming the Governance of the IMF
and the World Bank, G24 Research Program. Londres: Anhem Press, 2005, p. 79 e 80.
58 Até a reforma de 2010, os diretores dos países com as cinco maiores quotas – Estados Unidos,
Japão, Alemanha, França e Reino Unido – sequer tinham mandato e eram, assim, demissíveis ad
nutum. Com a entrada em vigor da reforma, todos os 24 diretores passaram a ser eleitos para
mandatos de dois anos.
59 A iniciativa, que já existia no Banco Mundial, buscava que o Fundo desse atenção especial aos
problemas específicos dos países em desenvolvimento muito pequenos, com até 1,5 milhão de
habitantes. Na nossa cadeira, os estados pequenos, por essa linha de corte, são Trinidad e Tobago,
Guiana, Suriname, Cabo Verde e Timor-Leste.
A LUTA PELA REFORMA DO FMI1
Manobra perigosa
Mal podia imaginar que estava em curso uma operação para contornar o
diretor brasileiro e, com apoio aparente de Brasília, aprovar uma
pseudorreforma, uma falsa reforma que perpetuaria o status quo no FMI. O
canal para essa manobra era o G20. Criado em 1999 por iniciativa dos
Estados Unidos, no governo Clinton, era um foro de nível – teoricamente –
ministerial, que reunia ministros de Finanças e presidentes de Banco
Central. Estávamos àquela altura a mais de um ano de distância da
transformação do G20 em foro de líderes e, posteriormente, em principal
mecanismo para cooperação econômica e financeira internacional em
substituição ao G7. Com a longa (e enganosa) estabilidade e tranquilidade
na economia mundial, a já mencionada Great Moderation, foros como o
G20 estavam relativamente dormentes. Os ministros de Finanças e
presidentes de Banco Central pouco participavam e davam limitada atenção
a suas deliberações. O G20 convertera-se, essencialmente, em um foro onde
funcionários de segundo, terceiro ou até quarto escalão dos governos e
bancos centrais se encontravam para trocar ideias e, às vezes, tratar de
temas como a reforma do FMI ou do Banco Mundial. O Brasil, por
exemplo, se fazia representar pelo secretário de assuntos internacionais da
Fazenda, funcionário de terceiro escalão do ministério, e pelo diretor de
assuntos internacionais do Banco Central. No linguajar do G20 e do FMI,
esses representantes brasileiros e suas contrapartes de outros países eram
apresentados, ou se apresentavam, como Deputy Minister of Finance (vice-
ministro de Finanças) e Deputy Central Bank Governor (vice-presidente do
Banco Central), o que dava, em diversos casos, uma impressão exagerada
da sua efetiva importância. Dependendo do assunto, não era incomum que
os países se fizessem representar no G20 também por seus diretores
executivos no FMI ou no Banco Mundial.
No caso do Brasil, o principal operador no G20 naquela época era o já
mencionado secretário Melin, que estudara economia no Reino Unido e,
entre outros aspectos um pouco cômicos, falava inglês fluente, mas com um
forçado e ligeiramente ridículo sotaque britânico. Era um funcionário bem
irresponsável, que conseguia enganar por algum tempo, blefando
desbragadamente. Saberia, depois, que ele tentava maximizar seu papel no
governo brasileiro perante os colegas de G20, citando repetidamente o
presidente Lula, como se tivesse acesso direto a ele.
Uma casualidade abriu grande espaço para as manobras do secretário
brasileiro. Havia, no G20, que não tinha (e até hoje não tem) secretariado
próprio, a tradição de conduzir os trabalhos por meio de uma “Troika”,
presidida pelo país que exercia naquele ano a presidência de turno do G20 e
integrada pelo país que exercera a presidência no ano anterior e pelo que
exerceria a presidência no ano seguinte. Em 2007, a presidência era da
África do Sul; a Austrália tinha sido presidente em 2006 e o Brasil seria
presidente do G20 em 2008. Esse arranjo conferia ao secretário Melin a
condição de integrante da Troika.
Pude perceber mais tarde que o secretário brasileiro caíra na tentação
tão comum entre latino-americanos e outros, de tentar se validar
individualmente como “membro responsável da comunidade internacional”.
Essa expressão, aparentemente simpática, escondia outra coisa totalmente
distinta – a disposição de integrantes das elites de países menos
desenvolvidos, o Brasil entre eles, de prestar serviço aos poderes
estabelecidos em nível internacional e se cacifar para, se possível, receber
apoio para cargos e benesses de vários tipos. Nos meus mais de dez anos
fora do Brasil, pude confirmar, aliás, o quanto esse comportamento é
comum – e, acrescento, os brasileiros não estão (ou não estavam)
necessariamente entre os piores. Mexicanos, chilenos e colombianos, por
exemplo, mostravam-se, não raro, mais ansiosos e afoitos para
desempenhar esse tipo de papel(ão).
Nesse período, os deputies do G20 se arvoravam a tomar parte, até
decisiva, na reforma de quotas e voz do FMI. A África do Sul, sub-
representada na Diretoria do FMI, tinha inclinação natural a tirar o tema da
órbita dos diretores. A Austrália, como aprenderia ao longo dos anos, era
basicamente linha auxiliar dos Estados Unidos e do Reino Unido, e quase
nunca estava do lado dos EMDCs. O secretário brasileiro entrou de gaiato
nesse navio.
Tudo estava sendo feito sem o meu conhecimento, embora dissesse
respeito a área de atribuição do diretor executivo no FMI. A aspiração do
secretário brasileiro, depois descobri, era ser visto como honest broker
(intermediário honesto) entre desenvolvidos e emergentes. Comportava-se,
porém, como gullible broker (intermediário crédulo) na melhor das
hipóteses – isto é, excluindo aquelas mais tenebrosas de oportunismo
pessoal –, ao emprestar o nome do Brasil para endossar propostas que
emasculavam a reforma de quotas e voz, deixando a participação dos
EMDCs como um todo e do Brasil individualmente basicamente intocadas.
Era o complexo de vira-lata, com falso sotaque britânico.
O risco para mim era de desmoralização e perda de autoridade em
assunto central para o diretor executivo. As posições do Brasil no G20, que
eu desconhecia, não guardavam qualquer parentesco com as que eu
defendia na Diretoria do FMI. Felizmente, eu mantivera o ministro Mantega
informado sobre o assunto, em linhas gerais, coisa que o seu assessor, algo
amador, aparentemente não fizera – e isso seria de grande valia no choque
que se aproximava.
Estou me alongando um pouco no relato desse episódio porque ele é
paradigmático dos desafios que representantes de países em
desenvolvimento são obrigados a enfrentar na capital do Império.
Ingenuamente, eu informava o próprio secretário sobre a evolução do tema
em Washington e procurava interagir com ele, relevando sua tentativa
atabalhoada de demitir e substituir Helio Mori. Tinha poucos meses no
cargo e me deixava iludir pelo discurso “progressista” do secretário. Fui
iludido, também, pela orientação que recebi do meu amigo, o embaixador
Samuel Pinheiro Guimarães, que, como mencionei, ocupava o cargo de
secretário-geral ou vice-ministro no Itamaraty. Samuel repetia que “o nosso
homem” na Fazenda era Luiz Melin – e não o diplomata Marcos Galvão,
que exercia a função de chefe de gabinete do ministro Mantega.4 Eu
respeitava muito o secretário-geral do Itamaraty e, também, embora tivesse
menos contato direto, o chanceler Celso Amorim. Mas a “dica” do meu
amigo estava totalmente errada e, por conta dela e da minha inexperiência,
quase tomei uma bola nas costas. Começara a desconfiar um pouco, é
verdade, depois da tentativa de substituir Mori. Ficara, inclusive, a sensação
de que Melin funcionava como uma linha auxiliar do Itamaraty, dentro do
Ministério da Fazenda – à revelia, claro, do ministro Mantega – pela forma
estranha como ele se referira a “combinações” com o ministro Amorim.
Mas prevaleceram a minha ingenuidade e a confiança no velho amigo
Samuel Pinheiro Guimarães.
Demorei a me dar conta do que estava acontecendo e permiti que se
abrisse um tremendo flanco. Enquanto eu atuava, inocentemente e
desinformado em Washington, avançava a passos largos no G20 a
articulação da Troika. O que me ajudou, entretanto, é o fato de ser difícil
evitar vazamentos em um foro tão grande como o G20 – 20 membros ou 40,
se contarmos que cada integrante participava por meio do Ministério de
Finanças (ou seu equivalente) e do Banco Central.5 O primeiro vice-diretor-
gerente, número 2 da Administração do FMI, o americano John Lipsky,
passou a dizer à boca pequena que eu não representava a real posição do
Brasil em matéria de reforma do FMI, informação importante que me
trouxeram alguns aliados e simpatizantes. Hector Torres, experiente diretor
alterno na cadeira da Argentina, com quem muito aprendia, também me
transmitiu algumas informações sobre a estranha atuação do secretário
brasileiro. Paradoxalmente, a informação decisiva, que me deu a dimensão
do que estava ocorrendo, veio de um europeu – o diretor executivo
finlandês, Tuomas Saarenheimo. Embora os países europeus pequenos não
fossem membros do G20, a União Europeia era. Por meio das instâncias do
bloco, países como a Finlândia eram informados sobre o andar da
carruagem. Meu colega finlandês de Diretoria veio me visitar, contou tudo o
que estava acontecendo no G20, em especial a atuação do brasileiro, e –
ponto crucial – me passou documentos internos da Troika e do G20,
inclusive assinados pelo próprio Melin, que revelavam toda a extensão do
desastre – em uma palavra: a anulação quase total da reforma de quotas e
voz, com colaboração voluntária e ativa do Brasil, ou mais precisamente de
uma autoridade fazendária que falava em nome do governo brasileiro.6
Fiquei em estado de choque. Lembrei-me de Nelson Rodrigues:
“Subdesenvolvimento não se improvisa – é obra de séculos.” Descobrira,
espantado, que havia um acordo praticamente pronto, ou pelo menos em
estado avançado de formulação, que nada ou quase nada trazia para o Brasil
e os EMDCs no seu conjunto. O desempenho da Troika estava abaixo da
crítica, o brasileiro e o sul-africano haviam feito trabalho quase completo de
entrega em domicílio, com o australiano ajudando e acompanhando tudo
aquilo com satisfação, naturalmente.
Embate na retaguarda
Só me restava uma alternativa: voltar sem demora a Brasília e verificar, in
loco, se o secretário de assuntos internacionais tinha – pior cenário –
cobertura do ministro da Fazenda para sua atuação. Não podia ter certeza de
nada. Àquela altura ainda não conhecia tão bem o ministro Mantega e era
difícil acreditar que o secretário iria tão longe sem ter apoio, pelo menos
parcial, do próprio chefe. Mas não podia deixar barato e parti, sem
hesitações, para a confrontação. Aqueles que me conhecem sabem que sou
melhor nesses embates do que nas articulações que exigem mais paciência,
habilidade e diplomacia. O secretário receberia um contravapor que não
estava nos seus planos de grande articulador internacional.
Pedi audiência ao ministro Mantega e relatei, da melhor maneira que
pude, lutando com o estresse que a situação inevitavelmente provocava, o
que estava acontecendo no G20 e no FMI. Para meu alívio, Mantega se
declarou desinformado das atividades do seu secretário e disse, com todas
as letras, “essa não é a posição do Brasil”. Convocou, imediatamente, o
secretário que, ao adentrar o recinto, mostrou-se surpreso com a minha
presença. Confrontado com meu relato por Mantega, tentou negar, mas
ficou sem ação quando mostrei os documentos do G20 que traziam sua
assinatura. Foi uma débâcle. Eu, sempre emotivo, acabei exagerando e fui
desnecessariamente ríspido com o assessor do ministro. Mantega conteve
meus excessos, mas determinou claramente que Melin voltasse atrás e
renegasse todas aquelas posições na próxima reunião do G20.
Vitória acachapante, com um senão – a confrontação fora custosa: meu
estilo abrasivo, que tinha dificuldade de controlar em situações de estresse,
sobretudo nos anos iniciais da minha passagem pelo FMI, deixava uma
marca negativa e confirmava os rumores de radicalismo e intransigência
que circulavam a meu respeito. Os embates dentro do Ministério da
Fazenda acabariam vazando para a imprensa brasileira, dando ocasião a
mais uma rodada de ataques contra mim em alguns dos principais jornais.
Lembrei-me de uma frase atribuída ora a Churchill, ora a Oscar Wilde:
“People have been spreading the wildest rumors against me – and the worst
part is that about half of them are true!” (“Estão espalhando os rumores
mais selvagens a meu respeito – e o pior é que cerca de metade deles são
verdadeiros!”) Consolava-me pensar que, se isso acontecia com homens
extraordinários como Churchill ou Wilde, um simples economista não
tinha, na verdade, do que reclamar.
Lembre-se, leitor, que eu era na ocasião ainda muito verde no cenário
em que estava operando. Morava sozinho em Washington e não tinha
amigos próximos, nem pessoas de confiança com quem pudesse conversar
abertamente. Isso viria com o tempo. Relatei a carga emotiva que a situação
representava para mim em artigo que publiquei na época em um jornal
brasileiro, contando um sonho que tive com meu pai, que morrera em
1994.7 Não podia, evidentemente, falar com a franqueza de que estou me
valendo neste livro e só podia aludir ao problema que estava enfrentando.
Mesmo assim, foi arriscado publicar um artigo tão emotivo (ainda hoje,
mais de dez anos depois, me emocionei ao reler a passagem sobre meu pai),
pois podia ser interpretado como sinal de fraqueza por meus adversários,
não só no Brasil, mas até mesmo no FMI.8
Tudo considerado, permanece difícil avaliar se foi certa ou errada,
apropriada ou exagerada, a minha reação algo violenta. Mesmo em
retrospecto, é difícil julgar. Como a negociação dentro do G20 já estava
muito avançada, talvez só uma intervenção muito vigorosa, capaz de
convencer o ministro da Fazenda e intimidar o secretário, poderia salvar a
situação. A atuação desastrada do secretário nos levara, por assim dizer, à
beira de um precipício.
1 Texto concluído em junho de 2019. Agradeço os comentários e sugestões de Hector Torres, Pedro
Fachada e Felipe Santarosa sem responsabilizá-los pelas opiniões expressas ou pelos erros e
omissões remanescentes.
2 Havia resistência, compreensível, a usar a designação emerging countries para países de civilização
milenar como a China e a Índia. A Rússia, também de civilização antiga e na condição de ex-
superpotência, era outro país que resistia a aceitar essa designação. A solução foi usar o termo
emerging market countries para englobar os países em desenvolvimento economicamente mais
avançados.
3 Entre eles, a Venezuela, a Líbia, o Iraque e outros países exportadores de petróleo.
4 A minha tendência era interagir com Galvão, único membro da equipe de Mantega que eu
conhecera anteriormente, por ter trabalhado com ele em projeto de pesquisa sobre o tema da
globalização alguns anos antes. Sabia que ele era politicamente conservador, pois havia ocupado
posições de confiança nos governos tucanos e até no governo Collor, mas respeitava a sua
competência profissional. Galvão seria secretário-geral do Itamaraty no governo Temer.
5 No caso brasileiro, a condução do assunto FMI era liderada pelo representante da Fazenda, reflexo
do fato de que o governador do Brasil no Fundo era o ministro da Fazenda e não, como em outros
países, o presidente do Banco Central.
6 Em retrospecto, entendo melhor do que na época as motivações de Saarenheimo. A posição da
Finlândia e de outros países europeus era o espelho da posição da África do Sul. Esta última tinha
assento no G20, mas estava sub-representada na Diretoria. O representante sul-africano no G20
chegava a hostilizar os diretores executivos que participavam das reuniões do G20, como pude
testemunhar em reunião de que participei no Rio de Janeiro, antes de assumir o cargo em
Washington. Já a Finlândia, assim como outros europeus menores, tinha representação na Diretoria,
ainda que em regime de rotação, mas não no G20 – a não ser, indiretamente, via União Europeia.
Assim, era natural que o finlandês não aceitasse de bom grado a tentativa de deslocar o centro de
gravidade da discussão da reforma do FMI da Diretoria para o G20. Também pesavam, acredito,
fatores pessoais. Saarenheimo era preparado e inventivo e via com maus olhos o conservadorismo
estreito do acerto que estava sendo montado no G20 por deputies das capitais, que não tinham,
necessariamente, grande conhecimento dos vários aspectos e detalhes da reforma do FMI.
7 Republicado neste livro, p. 420-2.
8 Descobriria, depois, para minha surpresa, que meus artigos na imprensa brasileira eram
acompanhados no FMI e que – quando traziam críticas à atuação da Europa no FMI ou no G20 –
repercutiam às vezes, por incrível que pareça, até em capitais europeias, suscitando algumas
reclamações.
9 O discurso do secretário teve, também, aspectos cômicos, que não me escaparam apesar do clima
de tensão. O infeliz resolveu lançar mão de uma paráfrase de célebre discurso de Churchill sobre o
acordo de Munique em 1938, usando a respeito de si mesmo as palavras da Bíblia que Churchill
lançara contra Chamberlain: “Thou art weighed in the balance and found wanting” (Foste pesado na
balança e achado em falta). Eu, que conhecia bem os discursos de Churchill, escutava tudo aquilo
estarrecido, mas sem deixar de notar o lado flagrantemente ridículo da situação.
10 Pouco tempo depois, ele foi substituído por Marcos Galvão e passou à posição de chefe de
gabinete do ministro da Fazenda, sem exercer, porém, grande influência nessa nova posição.
11 Ver neste livro p. 421-2.
12 Todos esses aspectos são explicados em detalhe no documento Reform of quota and voice in the
International Monetary Fund – Report of the Executive Board to the Board of Governors, 28 de
março de 2008. Disponível em: <https://www.imf.org/external/SelectedDecisions/Description.aspx?
decision=63-2>.
13 Charles Mackay. Extraordinary Popular Delusions and the Madness of Crowds. Nova York:
Harmony Books, 1980 (1ª ed.: 1841). Charles P. Kindleberger. Manias, Panics and Crashes: a
History of Financial Crises. Nova York: Basic Books, Inc., 1978. John Kenneth Galbraith. A Short
History of Financial Euphoria. Nova York: Whitle Direct Books, 1990.
14 Paul Krugman. The Return of Depression Economics and the Crisis of 2008. Nova York/Londres:
W.W. Norton & Company, 2009. Ver, também, do mesmo autor, “Mr Keynes and the moderns”. In:
Vox, Research-based policy analyses and commentary from leading economists, 21 June 2011.
Disponível em: < https://voxeu.org/article/mr-keynes-and-moderns>.
15 Nos Estados Unidos, o déficit do governo geral foi 13,3% do PIB em 2009 e 12,6% do PIB em
2010. No Reino Unido, 10,4% e 9,3% do PIB nos mesmos anos. Na Espanha, 11% e 9,4% do PIB.
OECD Economic Outlook, novembro de 2018, anexo, tabela 31. Disponível em:
<https://www.oecd.org/eco/outlook/economic-outlook-november-2018/>.
16 Sobre a resposta da Reserva Federal à crise ver, por exemplo, Ben S. Bernanke. The Federal
Reserve and the Financial Crisis. Princeton: Princeton University Press, 2013. Bernanke foi o
chairman da Reserva Federal no período da crise.
17 Para os países da OCDE como um todo, a dívida bruta do governo geral como percentagem do
PIB subiu de 73% em 2007 para 101% em 2011 e 112% em 2014, mantendo-se próxima deste nível
nos anos seguintes. OECD Economic Outlook, op. cit., anexo, tabela 36.
18 Ver, por exemplo, neste livro, p. 423-4, 430-4 e 438-40.
19 Um relato crítico da relação entre o governo Obama e Wall Street pode ser encontrado em livro
escrito pelo ex-economista chefe do FMI Simon Johnson e o historiador James Kwak – 13 Bankers:
The Wall Street Takeover and the Next Financial Meltdown. Nova York/Toronto: Pantheon Books,
2010.
20 D.E. Moggridge. Maynard Keynes: An Economist’s Biography. Londres/Nova York: Routledge,
1992, p. 729.
21 Fighting for Britain é o subtítulo do terceiro volume da biografia sobre Keynes de Robert
Skidelsky. John Maynard Keynes. Fighting for Britain, 1937-1946, v. 3. Londres: Macmillan, 2000.
22 O último empréstimo do FMI ao Brasil fora aprovado em 2002, no fim do governo Fernando
Henrique Cardoso, e havia sido pago antecipadamente em fins de 2005, no primeiro mandato do
presidente Lula.
23 Foram contemplados, também, os bancos centrais do México, da Coreia do Sul e de Singapura.
24 Essa vulnerabilidade resultava pelo menos em parte da excessiva fidelidade desses países às
políticas econômicas aceitas como válidas antes da crise de 2008 em Washington, incluindo-se aí a
pouca importância que o FMI atribuía a manter déficits moderados no balanço de pagamentos em
conta corrente e a acumular reservas internacionais volumosas, em caráter preventivo. Ver neste livro
p. 44-5.
25 Para responder às críticas da cadeira brasileira e de outras ao que considerávamos a aplicação
inflexível e seletiva da FCL, a Administração e o staff propuseram posteriormente a criação de uma
linha intermediária, denominada Precautionary and Liquidity Line - PLL, mais maleável e com
menos exigências do que as linhas tradicionais, mas não tão maleável e inovadora quanto a FCL.
Essa linha intermediária também foi pouco usada; apenas dois países (Macedônia e Marrocos)
recorreram a ela.
26 Só chegaria até mim um outro caso, de um país pequeno, as Ilhas Maurício, pertencente à cadeira
francófona subsaariana. Autoridades desse país me procuraram para pedir apoio na sua intenção de
acessar a FCL, queixando-se inclusive da passividade e inércia do diretor que os representava,
Laurean Rutayisire – realmente muito pouco eficaz e que só se destacava na Diretoria por
intervenções obscuras e prolixas. Mas a oposição da Administração e do staff era, aparentemente,
muito grande e, antes que eu pudesse tentar ajudar, o caso das Ilhas Maurício sumiria na voragem.
27 Group of 20, London Summit - Leaders’ Statement, 2 de abril de 2009, parágrafos 17 e 19. A
alocação de direitos especiais de saque chegaria a US$ 283 bilhões. Group of 20, Pittsburgh Summit -
Leaders’ Statement, 25 de setembro de 2009, parágrafo 19.
28 Eduardo Brau & Louellen Stedman. “IMF efforts to increase the support available to members”.
IEO Background Paper, Independent Evaluation Office, BP/14/10, 8 de outubro de 2014, p. 6-8.
29 A íntegra do acordo pode ser encontrada na página do FMI na internet. Note Purchase Agreement
between the Federative Republic of Brazil and the International Monetary Fund, data de publicação:
10 de janeiro de 2010. Disponível em <https://www.imf.org/external/np/pp/eng/2010/010810.pdf>
30 A autorização diz respeito apenas aos programas do General Resource Account do FMI,
excluindo, portanto, os programas subsidiados para países de baixa renda, que são financiados de
forma separada.
31 Os 85% passaram a valer também para a admissão de novos membros no NAB e aumentos das
participações individuais, entre outras decisões.
32 International Monetary Fund. Proposed Decision to Modify the New Arrangements to Borrow
(NAB). IMF Policy Paper, 25 de março de 2010, tabela 2, p. 5. Disponível em:
<https://www.imf.org>.
33 Ibid., p. 1.
34 A ponto do secretário do Tesouro dos Estados Unidos pedir, em duas ocasiões, para comparecer às
reuniões dos ministros de finanças dos BRICs. Ver neste livro p. 40.
35 Ver neste livro p. 40-1.
36 “We recognize that the IMF should remain a quota-based organization and that the distribution of
quotas should reflect the relative weights of its members in the world economy, which have changed
substantially in view of the strong growth in dynamic emerging market and developing countries. To
this end, we are committed to a shift in quota share to dynamic emerging market and developing
countries of at least five percent from over-represented to under-represented countries using the
current IMF quota formula as the basis to work from.” Group of 20, Pittsburgh Summit - Leaders’
Statement, 25 de setembro de 2009, parágrafo 21.
37 Os europeus interpretavam sobre e sub-representação com base na fórmula de quotas. Por essa
definição: um país estava sobrerrepresentado (sub-representado) se a sua quota fosse superior
(inferior) à quota calculada pela fórmula aprovada na reforma de 2008. A fórmula favorecia os
europeus principalmente por duas razões: a) atribuía um peso expressivo à abertura da economia
(30%), que era alta no caso de países relativamente pequenos e fortemente integrados entre si como
são os europeus; e b) atribuía peso preponderante no cálculo da variável PIB (60%) ao PIB a preços
de mercado, o que favorecia os países desenvolvidos. Nós entendíamos que se devia dar maior peso
ao PIB por paridade de poder de compra, critério de mensuração que reflete o peso econômico real
dos países e é menos afetado por flutuações cambiais.
38 O peso do Brasil na economia mundial estava entre 2,7% e 2,9%, dependendo do critério de
mensuração do PIB. Com a reforma de 2008, como vimos, a quota brasileira aumentara para 1,8% e
o poder de voto para 1,7% do total.
39 Com os PIBs comparados a taxas de câmbio de mercado, apenas três países permaneciam nessa
lista dos dez maiores por território, população e dimensão da economia: Estados Unidos, China e
Brasil.
40 “Europe must make way for a modern IMF”, Financial Times, 23 de setembro de 2010.
41 A quota relativa do Brasil ficaria em 2,32%; a do Canadá, em 2,31%.
42 O texto lido pelo ministro indiano dizia: “We are disappointed with the scenarios that have been
presented to us. The shift from advanced countries to EMDCs is very small and much less than what
we had called for. However, in a spirit of compromise and to move the process forward, we could go
along with [the proposed agreement] (…) provided that: 1) The New Arrangements to Borrow are
correspondingly rolled back, when the quota increases are effective, preserving the relative shares of
the members of NAB. 2) The present flawed quota formula which does not reflect the real economic
weights of different economies is comprehensively reviewed by January 2013, so that it better reflects
the relative economic weight of the IMF members. 3) The emerging market and developing countries,
including the poorest, still do not have adequate voice and representation in the IMF and hence the
next review of IMF quotas should be completed by January 2014.” Documento citado em Paulo
Nogueira Batista Jr., “Principles for IMF quota formula reform”, trabalho apresentado em seminário
realizado na Brookings Institution, Delivering on IMF Quota and Governance Reform, Washington,
D.C., 12 de janeiro de 2012. Disponível em: <inctpped.ie.ufrj/fordconference2011>. As três
condições apresentadas pelos BRICs seriam incorporadas praticamente ipsis litteris ao comunicado
da reunião ministerial de Gyeongju e depois à declaração dos líderes do G20 em Seul.
43 IMF Quota and Governance Reform - Elements of an Agreement, 31 de outubro de 2010.
Disponível em: <https://www.imf.org/en/Publications/Policy-Papers/Issues/2016/12/31/IMF-Quota-
and-Governance-Reform-Elements-of-an-Agreement-PP4501>.
44 Com a entrada posterior da África do Sul, o poder de voto agregado dos BRICS subiria para
14,8%.
45 “IMF Survey: G20 Ministers Agree ‘Historic’ Reforms in IMF Governance”, 23 de outubro de
2010. Disponível em: <https://www.imf.org/en/News/Articles/2015/09/28/04/53/sonew102310a>.
46 Ibid.
47 A participação da União Europeia no PIB mundial, calculado por paridade de poder de compra,
era da ordem de 22% em 2009, com tendência a diminuir.
48 G20 Communiqué, Meeting of Finance Ministers and Central Bank Governors, Gyeongju, 23 de
outubro de 2010, parágrafo 5.
49 Ibid.
50 Ibid.
O IMPÉRIO CONTRA-ATACA1
Por um triz
Em julho de 2013, tivemos nova reunião da Diretoria sobre a Grécia, umas
das vezes em que resolvi me abster na decisão de liberar uma parcela do
empréstimo do FMI ao país. Ocorre que, naquele momento, a agência
Reuters estava representada em Washington por uma jornalista novata que
se atrapalhou toda ao resumir as minhas declarações. A agência colocou no
ar reportagem dela noticiando que a América Latina, representada por mim,
havia declarado oposição ao programa da Grécia. Quando consegui a
retificação, a notícia já repercutia amplamente. Por uma infelicidade,
estávamos num momento de grande falta de assunto no mundo inteiro.
Resultado: a notícia ganhou destaque imprevisto, exacerbado
evidentemente pelos erros de reportagem. A minha modesta abstenção
chegou rapidamente à primeira página de jornais como o Financial Times.
A mídia brasileira, impressionada com a repercussão, também passou a
noticiar, com destaque, a suposta oposição que o diretor brasileiro fazia à
Grécia no FMI. Ironicamente, o maior defensor da Grécia na instituição era
apresentado como contrário a que o país continuasse recebendo apoio
externo.
Ao chegar à imprensa brasileira, essas distorções entraram no radar da
presidente Dilma. Sem se inteirar do assunto, ela reagiu de forma abrupta e
precipitada. Cobrou do ministro Mantega, em termos enfáticos, que a minha
decisão fosse imediatamente retificada. “O Brasil apoia a Grécia!”,
exclamava. “Afinal, você manda ou não nesse diretor?” Foi um deus nos
acuda. Mantega passou a me procurar insistentemente para transmitir a
indignação da presidente. Ocorre que eu estava ocupado durante toda uma
manhã em uma reunião da Diretoria sobre a economia da Alemanha.
Celular no silencioso, não notava a enorme quantidade de mensagens do
gabinete do Ministro. Aflito com a veemência da presidente da República,
Mantega acabou se precipitando, por sua vez, e telefonou para Lagarde, que
não participava da reunião da Diretoria, para informar que discordava da
minha abstenção! A diretora-gerente, que me detestava cordialmente, deve
ter recebido a ligação com um sorriso de orelha a orelha. Pior: Mantega
soltou nota à imprensa para desautorizar o diretor brasileiro no FMI. Tudo
isso sem falar comigo. Um desastre completo.
A minha primeira providência foi entrar em contato com a secretaria da
Diretoria e o departamento jurídico do staff para dizer que, apesar do
telefonema do ministro brasileiro à diretora-gerente, eu confirmava a
abstenção. O staff esclareceu que a confirmação não era necessária, pois
pelas normas do FMI, encerrada uma reunião, os votos dos diretores
estavam fixados e não podiam ser revistos.
O mais importante, claro, era resolver de alguma forma a crise com o
governo brasileiro. Não era possível fingir que nada havia acontecido e
deixar por isso mesmo. Na semana seguinte, viajei a Brasília para uma
reunião com o ministro da Fazenda. Já tinha comigo, praticamente pronta,
uma carta de demissão a que daria forma final depois do encontro com
Mantega. Comecei dizendo a ele: “Sem querer, você inviabilizou a minha
permanência em Washington.” Não era o que Mantega queria. Como já tive
ocasião de dizer, estávamos, ele e eu, essencialmente de acordo em todos os
temas relevantes da agenda do FMI. O problema tinha sido a reação
tempestuosa da presidente Dilma. “Você não imagina como é difícil
trabalhar com ela”, frisou Mantega. Ele ouviu as minhas explicações sobre
a abstenção e disse, em resposta, que não discordava do voto em si, mas da
minha decisão de divulgá-lo. O importante para ele era desfazer a
impressão de que o Brasil não apoiava a Grécia. Resolvemos, então, que
seria divulgada nova nota oficial para esclarecer em definitivo a questão,
dirimir dúvidas sobre a posição do governo brasileiro e reiterar o apoio do
ministro da Fazenda ao diretor brasileiro no FMI.
A nota era um remendo, mas atendia a esses objetivos. Nela, o ministro
da Fazenda deixou claro que eu atuava em sintonia com o governo
brasileiro e contava com seu respaldo político para exercer e continuar
exercendo o cargo. O incidente foi apresentado como um problema de
comunicação. Não era mesmo muito mais do que isso. Os diretores
executivos do FMI têm de tomar diversas decisões por semana e nem
sempre é possível a consulta aos governos, reconhecia a nota. Registrou-se,
também, que o ministro da Fazenda e o diretor brasileiro no FMI avaliavam
que os programas de resgate à Grécia e outros países da periferia da área do
euro precisavam ser revistos e aperfeiçoados de modo a dar melhores
condições de recuperação a esses países.9 Foi preparada versão em inglês
que circulei amplamente dentro do FMI e para a imprensa internacional.
O incidente, embora desgastante, foi superado a partir daí sem maiores
dificuldades. Ainda não fora dessa vez que os meus adversários na
instituição conseguiriam me ver pelas costas. A cadeira brasileira
continuaria se destacando na discussão do programa da Grécia e
argumentando em favor da sua revisão.
O tempo daria razão aos críticos do programa. Mesmo dentro do FMI,
ganhou terreno aos poucos o reconhecimento de que o tratamento dado à
Grécia não era defensável. A realidade acaba se impondo. Depois de alguns
anos, já ninguém podia ignorar que o programa grego havia sido, na
verdade, uma das páginas mais infelizes da história da instituição. Em 2016,
o Escritório de Avaliação Independente publicou um relatório sobre a
atuação do FMI nas crises da Grécia, da Irlanda e de Portugal.10 No que diz
respeito à Grécia, o relatório tirou as seguintes conclusões, entre outras: a) a
decisão de não incluir uma reestruturação da dívida logo no início do
programa levou a um ajuste fiscal excessivo e a uma grande recessão; b)
essa decisão sacrificou a Grécia, mas beneficiou os credores externos
privados, que puderam cortar a sua exposure ao país graças à provisão de
recursos oficiais; c) em aspectos cruciais, o FMI aceitou se subordinar às
prioridades e decisões dos governos da área do euro; d) ao conceder
empréstimos de grande magnitude à Grécia, o FMI atuou de forma pouco
transparente e não seguiu seus próprios procedimentos; e) a Diretoria
Executiva do FMI foi mantida à margem de muitas discussões e nem
sempre foi consultada ou sequer informada de maneira apropriada.
Todas essas conclusões, sem exceção, foram tiradas pela cadeira
brasileira no calor da hora. E foram expressas por nós de forma enfática,
repetidas vezes, verbalmente e por escrito. Veja bem, leitor: no calor da
hora – e não com a confortável sabedoria ex post de quem escreve cinco ou
seis anos depois. Por assim proceder, tivemos que enfrentar hostilidade ou
represálias de outras cadeiras da Diretoria, da Administração e do staff.
Apesar dos pesares e incompreensões, inevitáveis nas circunstâncias, nossa
atuação na crise da Grécia não merece reparos.
3. A arte da traição
A despeito das suas limitações, as negociações de 2010 foram o ponto alto
dos esforços de reforma do FMI. De 2011 em diante, os ventos começaram
a soprar contra nós, dentro e fora da instituição. A chegada de Christine
Lagarde, em julho de 2011, trouxe retrocessos em vários temas, como já
mencionei, mas em especial para as reformas de governança da instituição.
Ela se mostrou, desde o início, pouco inclinada a continuá-las e mesmo a
cumprir os acordos feitos no período DSK, no âmbito do FMI e do G20.
Dava a impressão de que havia sido indicada para o posto com a missão de
dar uma freada nas reformas que erodiam ou ameaçavam erodir o peso da
Europa na instituição. Ainda que não tivesse grande liderança, a nova
diretora-gerente dispunha de experiência e audácia suficientes para
organizar manobras de contenção das reformas. Mostrou-se, em vários
momentos, pouco confiável e até desleal com os emergentes. Não podíamos
contar com ela para quase nada.
Mais importante do que esses fatores pessoais foi o que aconteceu no
plano político nos Estados Unidos. O governo Obama, como vimos,
mostrava disposição de enfrentar a resistência europeia à reforma do FMI.
Nas negociações de 2010, em Washington e na Coreia do Sul, essa
disposição atingiu seu auge. Enquanto isso, entretanto, o clima político
mudava drasticamente nos Estados Unidos, com a ascensão do Partido
Republicano e, dentro dele, das alas de extrema direita, o chamado Tea
Party, um movimento populista e retrógrado, que prefigurava o que se veria
depois com a ascensão de Donald Trump. A mudança no clima político
culminaria na fragorosa derrota dos democratas nas eleições congressuais
de novembro de 2010, resultando para o governo em perda da maioria na
Câmara dos Representantes. O presidente Obama demoraria a se recuperar
desse revés, que teria como consequência, entre muitas outras, a perda de
ímpeto reformista dos Estados Unidos no FMI.
A derrota eleitoral dos democratas levou a que o governo enfrentasse
enorme dificuldade de convencer a Câmara, controlada agora por
republicanos hostis, a ratificar a reforma de 2010. Ora, em razão da
supermaioria de 85% requerida, a reforma não poderia entrar em vigor sem
a ratificação pelo Congresso dos Estados Unidos. Estabeleceu-se, assim, um
impasse de longa duração. As novas quotas só viriam a vigorar em janeiro
de 2016, com atraso de mais de três anos em relação ao cronograma
estabelecido pelo G20 nas negociações da Coreia do Sul.
A demora do Congresso americano foi uma dádiva para os europeus,
que se aproveitariam disso deslavadamente ao longo dos anos. Pressionada
pela crise do euro, a Europa queria mais do que nunca preservar sua super-
representação no FMI, ainda que isso significasse descumprir
compromissos assumidos no G20 por seus presidentes ou primeiros-
ministros. O comportamento podia parecer vexaminoso, mas os europeus
não mostravam grande constrangimento. Confirmava-se, uma vez mais, a
advertência de Nelson Rodrigues de que a falta de escrúpulos é um traço
constitutivo dos grandes povos. Com certo cinismo, os europeus mandaram
para o espaço o acordo político expresso nos comunicados do G20. Pouco
adiantava lembrá-los, como eu fazia repetidamente, que esse acordo havia
sido chancelado por seus líderes políticos. Ou recordar à diretora-gerente
que ela havia participado, direta e pessoalmente, da negociação no G20, na
condição de ministra de Finanças da França. Lagarde e os diretores
europeus davam uma de joão sem braço, fingiam que não era com eles e
continuavam a obstruir e adiar as providências prometidas.
Os alvos da procrastinação eram os elementos prospectivos (forward-
looking elements) introduzidos pelos BRICs no acordo de 2010. O atraso do
primeiro passo – a ratificação e a entrada em vigor das novas quotas – era
usado como argumento para empurrar a um futuro indefinido os passos
seguintes: a revisão da fórmula de quotas, com conclusão programada para
até janeiro de 2013, e a nova rodada de realinhamento de quotas e poder de
voto, cuja negociação deveria ser finalizada até janeiro de 2014. Dos três
elementos prospectivos anteriormente referidos, só um seria implementado:
a transformação de grande parte do NAB em quotas, com preservação das
participações relativas no estoque remanescente.
Não havia, a rigor, justificativa para adiar nada. Mas os europeus
insistiam que, sem a implementação das quotas de 2010, não havia
condições para rever a fórmula e negociar nova reforma de quotas. Sem ter
feito o dever de casa, os americanos ficavam sem poder atuar. Os
emergentes haviam perdido essa alavanca. Em vez de contar com apoio dos
Estados Unidos, ficávamos tentando, sem muito sucesso, pressioná-los a
buscar a ratificação no Congresso. Em resposta, os americanos nos diziam
que estavam fazendo o possível, mas que a maioria republicana se negava a
colaborar. Não se podia duvidar disso: era público e notório que a oposição
se recusava a cooperar com o governo Obama. Buscava, ao contrário,
solapá-lo em todas as ocasiões possíveis. A reforma do FMI era uma entre
muitas questões pendentes de aprovação congressual. Ironicamente, um dos
argumentos levantados pelos republicanos e por economistas ligados a eles,
como John Taylor,11 era a pouca confiabilidade do FMI, demonstrada pela
forma como se deixara manipular pelos europeus na crise da Grécia…
No G20, os representantes brasileiros subiram o tom, denunciando a
quebra de confiança decorrente da interrupção da reforma do FMI. Mas o
próprio grupo perdia expressão à medida que amainava a crise econômica
dos avançados. Estados Unidos e Europa já não precisavam tanto do G20 e
suas reuniões foram ficando menos importantes. Para nós, representantes
dos BRICS, essas reuniões transformaram-se cada vez mais em ocasiões
para que nos encontrássemos à parte e cuidássemos de aprofundar nossa
coordenação. Como as equipes que nos representavam no G20 eram
basicamente as mesmas que atuavam nos BRICS, era muito conveniente
marcar nossas reuniões à margem dos encontros ministeriais ou de cúpula
do G20. No período 2012-2014, essas reuniões paralelas acabaram se
tornando mais importantes para os BRICS do que as próprias reuniões de
um G20 já meio enfraquecido e esvaziado.
Na Diretoria do FMI, os BRICS também subiram o tom. Atuando em
conjunto com alguns outros emergentes, notadamente o Irã e a Argentina,
abrimos fogo sobre a relutância dos europeus em honrar seus
compromissos. As cadeiras da Rússia, da Índia e do Brasil se destacavam
nessas discussões. Lançávamos uma bateria de argumentos em prol da
reforma, apontando para as debilidades e inconsistências da fórmula de
quotas e, também, para a dissonância entre as tendências da economia
mundial e a distribuição do poder de voto no FMI – dissonância que não
seria resolvida, lembrávamos, com a entrada em vigor das quotas acordadas
em 2010.
Com o passar do tempo e a demora no Congresso dos Estados Unidos,
aumentamos também a pressão sobre os americanos. Os diretores dos
BRICS e seus aliados chegaram a formular em detalhe uma proposta para
permitir a entrada em vigor das novas quotas mesmo sem a ratificação dos
Estados Unidos. A nossa ideia era desvincular a entrada em vigor das
quotas acordadas em 2010 dos elementos da reforma que exigiam
aprovação do Congresso americano. O problema é que isso levaria o poder
de voto deles a ficar temporariamente abaixo do limite de 15% que lhes
garantia o direito de veto em decisões cruciais. As quotas de outros países
subiriam, conforme acordado, mas o aumento dos Estados Unidos ficaria na
dependência do Congresso. A versão mais completa dessa proposta,
elaborada em 2015 pela cadeira brasileira, incluía o compromisso formal do
Conselho de Governadores e da Diretoria Executiva de não votar qualquer
decisão que exigisse supermaioria de 85% até que os Estados Unidos
pudessem ratificar a reforma e efetuar o aumento da sua quota.12
A proposta de desvinculação foi bem construída, mas sua aprovação
dependia do apoio dos Estados Unidos, que não se dispunha a seguir em
frente na base proposta por nós. Havia um aspecto significativo que
poderia, em tese, facilitar sua aceitação: a aprovação da desvinculação
dependia juridicamente apenas do Executivo americano, não do Congresso.
Como o Executivo dizia, reiteradamente, que o Congresso era a única
barreira, por que não aceitar a desvinculação? A resposta dos representantes
dos Estados Unidos era um silêncio mais ou menos constrangido. A nossa
proposta não seria aceita afinal, mas ela era sólida do ponto de vista legal e
colocava os americanos na berlinda, contribuindo em alguma medida,
acreditávamos, para induzir o Executivo a redobrar seus esforços no
Congresso.
Estávamos exercendo o “jus esperniandi” e nossa inventividade, mas
poderíamos ir até mais longe. Tínhamos, na verdade, nossa própria “bomba
atômica”: o poder de vetar a ativação do NAB – conquistado pelos BRICs,
como vimos, nas negociações de 2009 e 2010. Recorde-se que, a cada seis
meses, o FMI precisava buscar junto aos integrantes do NAB autorização
para acessar seus recursos. Como a reforma de 2010 ainda não estava em
vigor, o acesso contínuo ao NAB revestia-se de grande importância. Para
obter a ativação semestral, o Fundo precisava da concordância dos BRICS,
pois os cinco em conjunto somavam mais do que os 15% necessários para
negar o pedido. Se fincássemos o pé, o FMI ficaria sem munição, pois as
quotas eram insuficientes àquela altura.
No entanto, como toda “bomba atômica”, o poder de veto no NAB era
mais um instrumento de dissuasão do que de destruição. Bloquear o NAB e
deixar o FMI à míngua afetaria países que dependiam de empréstimos da
instituição e teria impacto desestabilizador sobre a economia mundial, que
ainda se recuperava da crise de 2008. Não éramos incendiários, e não
pretendíamos ir tão longe. Mas, a cada seis meses, fazíamos Lagarde
rebolar um pouco, com perdão da expressão.
O Brasil e os outros BRICS eram representados nas reuniões semestrais
do NAB por seus diretores executivos. Atuávamos em coordenação, mas
sob liderança, nesse tema, do Brasil, um pouco mais inclinado do que os
outros a ameaçar com o direito de veto. Apresentei várias possiblidades aos
outros diretores dos BRICS, entre elas a de indicar que só concordaríamos
com uma ativação parcial do NAB que, bem calibrada, poderia deixar o
FMI suficientemente abastecido, ao mesmo tempo em que nos permitiria
enviar um sinal amarelo aos acionistas majoritários e à Administração. O
elo fraco, entretanto, era a China, que se mostrava relutante em escalar. Em
mais de uma ocasião, Lagarde viajaria até Beijing para assegurar apoio
chinês à reativação do NAB. Depois de algumas idas e vindas, os chineses
acabavam roendo a corda. De qualquer maneira, os ruídos que emitíamos a
cada rodada de reativação do NAB lembravam a todos que os BRICS
continuavam insatisfeitos e não desistiriam facilmente da implementação da
reforma de 2010.
O nosso comportamento cauteloso fazia parte de um padrão. Os BRICS
seguiam uma linha consistentemente reformista, mas sem alarde e
radicalismo. Em outras questões que apareceram na mesma época, como a
já referida segunda rodada de empréstimos bilaterais ao FMI, também nos
mostramos moderados e cooperativos, talvez até demais. Digo demais
porque, enquanto corria a negociação da segunda rodada, foi se tornando
cada vez mais evidente que os europeus não pretendiam permitir que
levássemos adiante os elementos prospectivos do acordo de 2010.
Tínhamos, portanto, todos os motivos para não participar. Como relatei
anteriormente, a presidente Dilma abrigava sérias e fundadas dúvidas
quanto à conveniência de oferecer novos recursos ao Fundo. Mas os outros
BRICS estavam propensos a voltar a emprestar – mesmo com o atraso na
reforma. Com exceção do Brasil, os demais acabariam entrando com novos
recursos na segunda rodada em 2012 – apesar dos meus esforços em
persuadi-los de que não era apropriado continuar emprestando, em face da
demora do Congresso americano e das manobras protelatórias da diretora-
gerente do FMI e dos demais europeus. O Brasil só viria a participar da
segunda rodada muito depois, em 2016, já no governo Temer, quando o
Banco Central abriu nova linha de US$ 10 bilhões para o FMI.
A estagnação da reforma teria outra consequência, potencialmente mais
importante e duradoura: a decisão estratégica dos BRICS de trilhar um
caminho próprio no campo das organizações multilaterais. De 2012 em
diante, começamos a trabalhar seriamente na criação de instituições
independentes, que serão objeto do próximo capítulo deste livro. Entre 2012
e 2014, os BRICS negociaram com cuidado os convênios constitutivos de
um fundo monetário e de um banco de desenvolvimento, que seriam
assinados na cúpula de Fortaleza, em julho de 2014. Simultaneamente, a
China liderou a criação de um banco asiático de investimento em
infraestrutura, também visto como desafio ao Banco Asiático de
Desenvolvimento e ao Banco Mundial. Novamente, entretanto, os BRICS
resistiram à tentação de iniciar uma batalha retórica com o Ocidente e as
instituições de Bretton Woods. Desde o início, as novas entidades foram
apresentadas como complementares e não concorrentes do FMI e do Banco
Mundial. Repetíamos sempre que pretendíamos aprender e cooperar com as
entidades estabelecidas. A ninguém escapava, porém, que os BRICS nunca
teriam se dado ao trabalho e ao dispêndio de criar instituições multilaterais
se estivessem satisfeitos com as existentes. Não precisávamos dizer nada;
ficava tudo implícito. A resistência à mudança em Washington estava
levando aos poucos à fragmentação do sistema multilateral de
financiamento.
4. Sai Mantega, entra Levy: minha fase final no FMI
Enquanto avançavam essas negociações entre os BRICS, ocorria uma
reviravolta política da maior importância no Brasil, justamente o país que,
durante a maior parte do tempo, funcionara como motor do grupo. Essa
reviravolta teria impacto sobre os BRICS e afetaria, também, a minha
posição em Washington.
O primeiro sintoma dessa reviravolta se deu, paradoxalmente, logo após
a reeleição da presidente Dilma, em outubro de 2014. Em decisão que
surpreenderia a todos, a presidente reeleita resolveu substituir Guido
Mantega por Joaquim Levy no Ministério da Fazenda. A saída de Mantega
era até natural, pois ele já ocupava o cargo há mais de oito anos e dizia,
inclusive em conversas comigo, que pretendia voltar a São Paulo. O
surpreendente e inusitado foi a escolha de Levy, economista muito
conservador, formado na Universidade de Chicago, que nada tinha a ver
com as inclinações da presidente Dilma e as propostas econômicas da sua
campanha. Ela fora eleita com discurso e promessas de esquerda, mas
começava o segundo mandato governando pela direita em matéria
econômica.
Levy logo daria sinais de que não nutria grande simpatia pelo diretor do
FMI. Pouco depois de assumir o cargo, sem que houvesse surgido qualquer
desavença entre nós, ele deu sua primeira estocada. Pediu a seu secretário
executivo, Tarcísio Godoy, para me telefonar comunicando que já não era
necessária minha participação como delegado brasileiro nas reuniões do
G20 e dos BRICS. As reuniões do G20 já não pesavam muito, como relatei,
mas as dos BRICS tinham importância, pois versavam naquele período pós-
Fortaleza sobre as medidas de preparação para a entrada em funcionamento
do novo banco de desenvolvimento e do fundo monetário dos BRICS,
temas aos quais me havia dedicado sistematicamente desde 2012.
Fiquei descontente e, sempre persistente, tentei reverter a decisão do
ministro da Fazenda. Viajei a Brasília e levei o assunto a Aloizio
Mercadante, ministro da Casa Civil, de grande influência no governo.
Mercadante, que acompanhava os temas estratégicos na área internacional e
sabia o que estava em jogo nos BRICS, ouviu o meu relato e, de pronto,
empunhou o telefone e ligou para o ministro da Fazenda. Sem rodeios e
sem medir muito as palavras, disse a Levy que “o Paulo era indispensável
nos BRICS” e determinou que ele voltasse atrás. Saí da reunião satisfeito e
inquieto ao mesmo tempo. Mercadante teria mesmo condições de corrigir
Levy dessa forma, sem preparar o terreno? Logo ficaria claro que não. Levy
foi se queixar à presidente, que lhe daria apoio nesse ponto. Mercadante me
explicaria no dia seguinte que, como G20 e BRICS estavam na competência
da Fazenda, era melhor deixar que Levy decidisse quem integraria as
delegações brasileiras a partir daí. Fiquei frustrado, mas nada podia fazer. A
exclusão do delegado brasileiro com mais cancha em termos de BRICS e
G20 era um pequeno sinal de algo maior, de um processo de
enfraquecimento do governo e da progressiva erosão do poder da presidente
da República que culminaria no seu impeachment pouco mais de um ano
depois.
O encontro com Mercadante trouxe outra novidade. Ao desligar o
telefone, satisfeito em ter enquadrado Levy, Mercadante volta-se para mim
e dispara: “A presidente quer saber se você não gostaria de assumir o cargo
de vice-presidente do Banco dos BRICS em Xangai.” Foi um convite
realmente inesperado; nada fizera para pleitear o cargo e não passava pela
minha cabeça, depois de quase oito anos em Washington, me mudar para o
outro lado do mundo. Àquela altura, inclusive por motivos familiares,
queria voltar para o Brasil. Quase recusei de pronto. Felizmente, tive a
calma de agradecer o convite e pedir tempo para avaliar.
Em retrospecto, percebo que essa era uma solução inteligente nas
circunstâncias. A minha transferência para Xangai resolvia um conflito com
o ministro da Fazenda, que tinha grande apreço pelo FMI e não queria ver
um economista como eu à frente da nossa cadeira, ao mesmo tempo em que
colocava em posição estratégica no processo BRICS alguém que se
dedicara à coordenação entre os cinco países desde 2008. Porém, naquele
momento, não foi tão fácil para mim perceber que o convite era
provavelmente a melhor solução do ponto de vista político e do interesse
estratégico do Brasil.
Demoraria alguns meses a aceitar o convite. Continuei entretendo a
hipótese de ficar em Washington, mesmo em conflito com o ministro da
Fazenda, completando mandato que tinha até novembro de 2016, pois
acabara de me reeleger por mais dois anos. Teria sido um caminho difícil,
por certo, mas possível nas circunstâncias. Eu não era demissível ad nutum
pelo ministro Levy e este, embora poderoso naquele início de gestão, não
contava com a confiança total da presidente da República e teria certamente
alguma dificuldade de forçar a minha saída.
Each time a man stands up for an ideal, or acts to improve the lot of others, or strikes
out against injustice, he sends forth a tiny ripple of hope and crossing each other from a
million different centers of energy and daring, those ripples build a current which can
sweep down the mightiest walls of oppression and resistance.14
1 Texto concluído em junho de 2019. Agradeço os comentários e sugestões de Felipe Santarosa sem
responsabilizá-lo pelas opiniões expressas ou pelos erros e omissões remanescentes.
2 Infelizmente, esse substituto, Juan Carlos Jaramillo, que tinha sido integrante do staff do FMI e
conhecia bem a instituição, ficaria poucos meses no cargo. Houve uma reviravolta em Bogotá e o
governo resolveu enviar nova alterna, María Angélica Arbeláez, menos preparada e que pouco
contribuiria para o trabalho da cadeira no período em que a Colômbia ainda permaneceu conosco.
3 A África do Sul foi convidada para entrar nos BRICS em dezembro de 2010, o que resultou na
substituição do acrônimo BRICs por BRICS, incluindo-se a letra S de South Africa. Moeketsi, como
diretor pela África do Sul, passou a participar regularmente das nossas reuniões de coordenação no
FMI desde o início de 2011. Ao longo deste livro, como já indiquei, uso a sigla BRICs para o período
2008-2010 e a sigla BRICS a partir de 2011, refletindo a entrada da África do Sul.
4 Um oficial de origem judaica, Alfred Dreyfus, foi condenado por espionagem de forma
escandalosamente injusta, levando o escritor Émile Zola a se insurgir em sua defesa com o famoso
panfleto “J’accuse!”, publicado em 1898 sob a forma de carta aberta ao presidente da República. O
caso Dreyfus produziu uma crise política que se estenderia por vários anos.
5 Isso tinha ficado claro para mim pela forma como a firma de advocacia apresentara a questão aos
diretores na época. DSK acabaria inocentado pela Diretoria da acusação principal de abuso de poder
– acusação que me parecia realmente descabida –, o que permitiu a sua continuação no cargo. Mas o
prejuízo foi enorme, pois o caso chegou rapidamente à imprensa, com grande repercussão na época.
6 Ver neste livro p. 425-6.
7 Para um relato minucioso do papel do FMI no caso da Grécia, que cobre inclusive a atuação da
cadeira brasileira, ver Paul Blustein. Laid low: Inside the Crisis that Overwhelmed Europe and the
IMF. Waterloo, Canada: Center for International Governance Innovation, 2016. Ver, também, do
mesmo autor, Laid low: The IMF, the Euro Zone and the First Rescue of Greece, Center for
International Governance Innovation, CIGI Papers, n. 61, abril de 2015.
8 Estava nessa ocasião fora de Washington, em viagem de trabalho, e o que resolvi fazer foi um walk
out, algo um pouco mais forte do que deixar a cadeira vazia. Preparei um texto de crítica à condução
do programa grego, apontando inclusive irregularidades nos procedimentos adotados pela
Administração. Esse texto foi lido por um dos meus assessores diplomáticos, Felipe Santarosa, no
início da reunião da Diretoria, que era presidida naquele dia pela diretora-gerente Christine Lagarde.
Em seguida à leitura, seguindo instruções minhas, Santarosa e dois outros assessores da cadeira
brasileira retiraram-se da sala, ficando a nossa cadeira vazia.
9 “Mantega apoia Nogueira Batista após episódio da Grécia: Ministério da Fazenda divulga uma nota
dando apoio ao diretor brasileiro no FMI”, Exame, 7 de agosto de 2013.
10 Independent Evaluation Office (IEO), The IMF and the Crises in Greece, Ireland, and Portugal,
Evaluation Report, julho de 2016.
11 John B. Taylor. “Obama and the IMF are unhappy with Congress? Good. The IMF needs to get its
house in order before Washington green-lights more money”. Wall Street Journal, 13 de fevereiro de
2014.
12 Paulo Nogueira Batista Jr. & Hector R. Torres. “How to reform the IMF now”. Project Syndicate,
15 de abril de 2015.
13 Ver neste livro p. 318-20.
14 “Cada vez que um homem se levanta por um ideal, ou age para melhorar a sorte de outros, ou se
insurge contra uma injustiça, ele provoca uma pequena onda de esperança e essas ondas, cruzando-se
umas às outras de um milhão de diferentes centros de energia e audácia, formam uma corrente capaz
de derrubar as mais poderosas muralhas de opressão e resistência.”
15 “Lá se vai a sua pequena onda de esperança…”
SOBREVIVI1
Traços comuns
O que os BRICS têm em comum? Para além de todas as diferenças,
fundamentalmente o seguinte: são países de grande dimensão econômica,
geográfica e populacional. Brasil, Rússia, Índia e China fazem parte dos dez
maiores países do mundo em termos de PIB, área e população. Por isso
mesmo, todos eles têm capacidade de atuar com autonomia em relação às
potências ocidentais – os Estados Unidos e a Europa. Isso vale, sobretudo,
para os quatro integrantes originais do grupo, mas, creio, que
crescentemente também para a África do Sul.
Este é o aspecto crucial: a capacidade de decidir de forma independente.
A grande maioria dos demais países emergentes e em desenvolvimento –
mesmo os que têm certo porte – não possui essa capacidade, pelo menos
não na mesma medida. Em muitos casos, o que ainda se vê é uma relação
de estreita dependência e alinhamento mais ou menos automático aos
Estados Unidos ou aos principais países da Europa.
Essa atuação independente também reflete, evidentemente, a posição
econômico-financeira dos BRICS. Nenhum deles depende de capitais
externos europeus ou americanos ou da assistência financeira do FMI e de
outros organismos ainda controlados pelas potências tradicionais. Isso
reflete inter alia a sua solidez de balanço de pagamentos e de reservas
internacionais. Nos anos recentes, os BRICS tornaram-se inclusive credores
do FMI, participando com grandes somas dos empréstimos levantados pela
instituição para fazer face à crise iniciada nos países avançados em 2008.
1 Versão ampliada e revista de texto que serviu de base a apresentação em mesa-redonda organizada
pela Fundação Alexandre Gusmão e pelo Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, em 31 de
julho de 2012. Publicado originalmente em José Vicente de Sá Pimentel (org.). O Brasil, os BRICS e
a agenda internacional. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2013.
2 O G11 inclui as cadeiras comandadas por China, Índia, Arábia Saudita, Egito, Irã, Brasil, as duas
outras cadeiras latino-americanas, as duas da África Subsaariana e a do Sudeste Asiático.
3 Diplomata brasileiro que foi ministro das Relações Exteriores entre 2011 e 2013.
4 Em entrevista à Folha de S.Paulo, publicada em 10 de fevereiro de 2012.
NOVO BANCO
E NOVO FUNDO MONETÁRIO1
2. Estratégia geral
Em paralelo a essas atividades operacionais, foi preparada a estratégia geral
do NBD para o período 2017-2021, além dos planos e procedimentos para a
entrada de novos países-membros. Após diversas discussões minuciosas
com o Conselho de Governadores e sobretudo com a Diretoria, a estratégia
geral foi aprovada, em princípio, em abril de 2017.13 Os planos para a
expansão do número de membros também foram discutidos em detalhe com
o Conselho de Governadores e, em especial, a Diretoria. A Administração
do NBD fez, em 2016 e 2017, contatos preliminares com cerca de setenta
países de todas as regiões do mundo para sondar o possível interesse em
entrar para o banco. A receptividade foi boa, mas o processo avançaria
pouco, em razão da resistência cerrada da Rússia, ponto ao qual voltarei na
sequência. Apesar dessa resistência, o Conselho de Governadores aprovou,
também em abril de 2017, um documento que estabeleceu os termos,
condições e procedimentos para a admissão de novos países-membros.14
A ideia força que perpassava toda a estratégia do banco era a de que se
estava criando uma instituição multilateral “nova”, capaz de honrar o
próprio nome. O ponto de partida era o modelo inaugurado com o Banco
Mundial em que governos nacionais se cotizam para criar instituições
financeiras capazes de alavancar capital e apoiar o desenvolvimento
econômico e social. Reconhecia-se que tínhamos muito que aprender com
os bancos multilaterais de desenvolvimento mais antigos, não só com o
Banco Mundial, como também com os diversos bancos regionais existentes.
O NBD assinou inclusive diversos acordos de cooperação e parceria com
esses bancos. Porém, não se perdia de vista que era preciso buscar uma
nova filosofia e novas práticas. Afinal, por que os BRICS teriam se dado ao
trabalho e à despesa de criar um banco de desenvolvimento se estivessem
satisfeitos com os existentes?
A estratégia adotava, implicitamente, um princípio taoista: “Conceitos
só existem como contrastes.” Os planos da nova instituição eram
apresentados, em geral, em contraste explícito com a atuação dos bancos
mais antigos. Embora a linguagem fosse diplomática, havia a preocupação
clara em indicar que o NBD evitaria práticas tradicionais que pareciam
superadas ou problemáticas para os países em desenvolvimento. Vale a pena
resumir as principais inovações pretendidas, ainda que a grande maioria
delas não tenha ainda se concretizado, como veremos mais à frente.
O que haveria então de novo no Novo Banco de Desenvolvimento? O
Convênio Constitutivo estabelecera como mandato do banco mobilizar
recursos para projetos de infraestrutura e de desenvolvimento sustentável
nos BRICS e em outros países emergentes e em desenvolvimento.15 A
estratégia geral especificou a infraestrutura sustentável como foco do
banco, estabelecendo que cerca de 2/3 dos projetos aprovados no período
2017-2021 seriam nessa área. Infraestrutura sustentável foi definida, de
forma ampla, como aquela que incorpora critérios de sustentabilidade em
todas as fases, desde a concepção até a operação – critérios não só
econômico-financeiros, mas também sociais e ambientais. No terço
remanescente, estaria incluída a infraestrutura tradicional, além de projetos
de desenvolvimento sustentável voltados, por exemplo, para controle da
poluição, conservação da biodiversidade e adaptação à mudança climática.
O conceito de infraestrutura sustentável permitia combinar as duas
dimensões do mandato do NBD: infraestrutura e desenvolvimento
sustentável.16
Mesmo nos projetos de infraestrutura tradicional, o NBD aplicaria,
como fazem ou deveriam fazer todos os bancos multilaterais, requerimentos
sociais e ambientais para controlar efeitos negativos sobre grupos sociais ou
o meio ambiente. A diferença é que os projetos de infraestrutura sustentável
iriam além da mera mitigação de efeitos colaterais. O seu objetivo central
seria produzir impactos positivos em termos sociais e ambientais. Para tal,
decidiu-se que o banco centraria esforços em setores como energia
renovável – solar, eólica, pequenas hidroelétricas – eficiência energética,
transporte limpo, mobilidade urbana, saneamento e gestão de recursos
hídricos e de rejeitos sólidos.
Os bancos multilaterais existentes já estavam operando na área de
infraestrutura sustentável, mas a falta de foco da maioria deles, isto é, a
tendência a operar em um grande número de áreas, tornava sua atuação
menos eficaz. O Banco Mundial, notadamente, buscava cobrir todas as
posições, desde portos, estradas, aeroportos até a salvação do tigre
siberiano. A estratégia do NBD explicitava a intenção de evitar o “estilo
universal” dos bancos multilaterais tradicionais que buscam cobrir uma
enorme variedade de atividades e setores, em favor da concentração de
energias e recursos no apoio a um grupo de setores mais limitado em
escopo, mas amplo o suficiente para permitir que o banco encontrasse
projetos viáveis e desse contribuição relevante ao desenvolvimento
econômico e social.17
O NBD pretendia também incorporar a velocidade em todas as
atividades. A intenção declarada na estratégia era combinar a rapidez e
eficiência do setor privado com o rigor técnico, a elevada qualidade e o
compromisso com o bem público que caracterizam os bancos multilaterais.
Para tal, o banco se comprometia, por exemplo, a evitar “burocracia
desnecessária” na aprovação e implementação de projetos. Isso permitiria
concretizar a já mencionada meta de levar menos de seis meses, em média,
entre a identificação de projetos e sua aprovação na Diretoria.18 Esse prazo
é consideravelmente inferior ao que se observa em bancos multilaterais
mais antigos, como o Banco Mundial e o BID.19
Outro objetivo importante era emprestar, na medida do possível, nas
moedas nacionais dos países-membros, evitando risco cambial para os
tomadores e contribuindo para o desenvolvimento dos mercados de capitais
domésticos. A experiência mostrava que a prática mais comum dos bancos
multilaterais tradicionais de emprestar em dólares causava dificuldades
recorrentes na implementação dos projetos. Projetos de infraestrutura e
desenvolvimento sustentável são tipicamente de longo prazo e é, em geral,
difícil para os tomadores contratar hedge cambial para a duração dos
contratos. Além disso, a maioria desses projetos são no setor non-tradeable
da economia e não proporcionam o “hedge natural” decorrente da geração
de receitas em moeda estrangeira. Para viabilizar empréstimos em moedas
nacionais sem assumir riscos cambiais excessivos, o NBD planejava
desdolarizar em parte sua captação no mercado e explorar possiblidades de
emitir títulos nas moedas nacionais dos países-membros. Esse processo já
havia começado com a bem-sucedida emissão de um bônus em moeda
chinesa.
A estratégia frisava, além disso, que o NBD se diferenciaria do modelo
intervencionista e “salvacionista” de alguns dos bancos tradicionais,
notadamente o Banco Mundial. De novo, a linguagem adotada era
diplomática, mas ficava claro que não se pretendia ensinar e muito menos
tutelar os países tomadores, e sim respeitar suas prioridades e estratégias de
desenvolvimento. A intenção era que uma relação de igualdade, respeito
mútuo e confiança com os países-membros permeasse todos os aspectos das
políticas e operações do NBD. O respeito à soberania nacional seria de
importância central.20 O NBD não imporia condicionalidades e nem
pretendia prescrever políticas ou reformas regulatórias e institucionais aos
países tomadores. Ao contrário, tomaria como ponto de partida, sempre que
possível, as leis e os procedimentos nacionais na implementação dos seus
projetos.21
No que diz respeito a novos países-membros, os planos eram
gradualistas, mas ambiciosos. Os primeiros dois anos do banco haviam sido
dedicados à montagem da instituição, incluindo a elaboração e aprovação
das políticas operacionais básicas, a contratação de funcionários, a entrada
das primeiras parcelas de capital e a emissão do primeiro bônus. Essa
decisão fora tomada, explicava a estratégia, porque isso facilitaria a
elaboração de políticas que se diferenciariam de modo fundamental das
políticas dos bancos multilaterais existentes. Estabelecida a estrutura inicial,
seria dada a largada para a expansão do número de países-membros a partir
de meados de 2017. A ideia era incorporar aos poucos países de diferentes
tamanhos, níveis de desenvolvimento e regiões do mundo. Gradualmente,
entrariam no NBD países das Américas, da África, do Oriente Médio, da
Europa e da Ásia. Ao final do período de cinco anos coberto pela estratégia,
o NBD seria um banco global presente em todos os cantos do planeta.22
O papel aceita tudo, diria um cínico. E, de fato, há uma grande distância
entre definir e negociar todos esses objetivos meritórios e executá-los na
prática. Porém, o fato de a estratégia ter sido discutida passo a passo com o
Conselho de Governadores e praticamente parágrafo a parágrafo com a
Diretoria alimentava a percepção de que existia um compromisso real com
esses objetivos. Ademais, ela havia sido elaborada com a participação de
todos os integrantes da Administração e refletia o que o banco estava
procurando fazer, na prática, desde julho de 2015.
A percepção, contudo, se revelaria em grande medida infundada. Os
objetivos traçados na estratégia não eram irrealistas, nem excessivamente
ambiciosos, mas a capacidade de execução do banco ficaria muito aquém
do necessário para alcançá-los ou mesmo começar a alcançá-los.
3. Problemas internos
Como o passar do tempo foi ficando cada vez mais claro para mim que a
Administração do banco não estava à altura do desafio com que se
defrontava. Não havia, primeiramente, real aderência com o projeto que o
banco deveria encarnar. Eu era o único dos seus cinco integrantes que
participara do processo BRICS e que tinha, assim, uma noção precisa do
que se buscava alcançar com a criação de um novo banco multilateral de
desenvolvimento. O vice-presidente chinês, Xian Zhu, vinha de uma longa
carreira no Banco Asiático de Desenvolvimento e no Banco Mundial;
conhecia bem as qualidades e limitações desses e de outros bancos
multilaterais. Era inteligente e percebia os problemas incipientes do NBD;
ficara encarregado da área crucial de projetos e da supervisão dos
escritórios regionais que o banco viesse a criar.23 No entanto, apesar de
chinês, não era especialmente trabalhador – reflexo talvez de longa
permanência na burocracia do Banco Mundial. Já para os demais
integrantes da Administração, o NBD era simplesmente mais um emprego.
A falta de sentido de missão não era o único problema. O pior é que
dois vice-presidentes simplesmente não estavam qualificados para o cargo.
O sul-africano, Leslie Maasdorp, responsável por finanças e orçamento, não
tinha suficiente preparo técnico, nem capacidade administrativa e não se
dedicava às suas responsabilidades. Passava grande parte do tempo em
viagens e eventos, abandonando suas atribuições. O seu despreparo para o
cargo tornou-se rapidamente evidente. O caso do vice-presidente russo,
Vladimir Kazbekov, era ainda mais grave. Antes de vir para Xangai, ele
tinha sido um funcionário de nível intermediário do banco de
desenvolvimento da Rússia, encarregado de relações internacionais e
organização de eventos. No NBD, ficaram sob sua responsabilidade as áreas
de recursos humanos, comunicação, informática e administração. Todas
essas áreas sofreram com a sua falta de competência profissional. Por
exemplo, a maioria dos setores do banco ficaram estrangulados pela falta de
recursos humanos – inclusive a própria área de recursos humanos. O
processo de recrutamento foi lento, ineficiente e pouco transparente, e os
funcionários selecionados de qualidade muito desigual.
A comunicação do NBD também foi, desde o início, outro grave
problema. O NBD tem pouca presença pública e é praticamente
desconhecido, “anônimo”, como notou Jim O’Neill. Ao vice-presidente
russo falta não apenas competência profissional, mas também integridade
pessoal. No período de mais de dois anos em que estive no banco,
Kazbekov violou o Convênio Constitutivo, o código de conduta e seu
próprio contrato várias vezes. Ao comportar-se repetidamente de maneira
irresponsável, ele produzia grande estrago dentro da instituição.
O principal problema, entretanto, é o presidente do banco, o indiano
K.V. Kamath. Trata-se de um profissional experiente e inteligente, já de
certa idade, que vem de uma carreira ilustre na área bancária comercial da
Índia. Porém, chegou ao NBD em regime de pré-aposentadoria e sua
dedicação ao banco é limitada. Chega às 9h e sai às 17h, religiosamente.
Quase não sai do banco e reluta em viajar. Tem a agenda leve, com poucos
visitantes. Pouco faz para projetar a instituição e realizar contatos externos.
A sua capacidade de comunicação é pobre e a sua visível indiferença
dificulta a mobilização e motivação dos funcionários do banco. Falta-lhe
curiosidade intelectual e ele mostra pouco ou nenhum entusiasmo com o
NBD como projeto. Transmite com frequência a impressão de que está
contando os dias para o fim do seu mandato. Além disso, é pessoa tímida e
de pouca coragem. Assusta-se com facilidade e nunca entra em bola
dividida. Com esse perfil, não consegue exercer autoridade e liderança. Só
por isso, claro, os vice-presidentes russo e sul-africano podiam atuar da
maneira referida.
Os funcionários de terceiro e quarto escalão dos ministérios dos países-
membros não demoraram muito a perceber a fraqueza do presidente do
NBD, e vários deles passaram a pressioná-lo sem dó nem piedade. Para
aprovar políticas e decisões propostas pela Administração, faziam
exigências minuciosas, nem sempre relevantes ou bem pensadas. Não
ficava claro se esses funcionários tinham a cobertura de autoridades mais
altas para proceder como procediam, mas o presidente não pagava para ver.
Acovardado, empenhava-se para acomodar, de alguma forma, a grande
maioria das exigências que chegavam das capitais, mesmo as mais
estapafúrdias.
Quando da negociação do Convênio Constitutivo, recorde-se, houve a
preocupação de evitar que as decisões do NBD viessem a depender de
unanimidade ou consenso.24 Ficou estabelecido que a grande maioria das
decisões seria tomada por maioria simples; em alguns casos, previu-se o
requisito de supermaioria qualificada (de 2/3 do poder de voto total) ou
especial (quatro dos membros fundadores e 2/3 do poder de voto total).25
Como cada um dos países fundadores possui 20% do poder de voto,
nenhum deles tem poder de veto sobre decisão alguma. Evidentemente, a
exigência de unanimidade ou consenso equivaleria a conferir poder de veto
a cada um dos cinco sócios.
Ocorre que, na prática, a fraqueza do presidente do NBD permitiu que
se fosse criando uma tradição de só resolver quando houvesse unanimidade.
Muito raramente decisões eram tomadas com a discordância de algum dos
cinco. Em consequência, os assuntos trazidos à Diretoria e ao Conselho de
Governadores, mesmo os de menor importância, se arrastavam de maneira
inacreditável. A velocidade proclamada na estratégia geral do NBD, assim
como em diversos pronunciamentos do próprio presidente do banco, virou
letra morta.
A raiz dessas dificuldades estava na falta de experiência política do
presidente Kamath. Logo ficou evidente que ele não sabia lidar com os
países-membros. No período em que estive no NBD, ele não estabeleceu
contato regular com os ministros de Finanças dos países – com a exceção
do ministro do seu país natal, a Índia. As suas interações com os países
ficavam então limitadas, em geral, a funcionários de escalão médio dos
governos. Acabou aprisionado pelas burocracias dos cinco países.
O contraste com Jin Liqun, o chinês que preside o AIIB, é
constrangedor para o NBD. O AIIB, criado um pouco depois que o NBD,
tem um presidente dinâmico e criativo, que rapidamente conduziu a
instituição a uma posição de proeminência, lançando uma sombra profunda
sobre o banco estabelecido pelos BRICS. Apesar do seu foco regional – um
banco asiático que compete em princípio com o Banco Asiático de
Desenvolvimento, no qual o Japão e os Estados Unidos têm posição
proeminente – o AIIB passou a desempenhar o papel global que o NBD
estava desenhado para exercer. Enquanto isso, sob a liderança (ou falta de
liderança) do presidente Kamath, o NBD foi se cristalizando em posição
secundária. O relativo insucesso do NBD não pode, na minha avaliação, ser
atribuído a um maior apoio da China ao AIIB. Não faltou ao nosso banco
apoio do governo central de Beijing ou do governo municipal de Xangai.
Ao contrário, muito do que se conseguiu nos anos iniciais se deveu à ajuda
sistemática e profissionalmente sólida das autoridades chinesas.
A minha posição individual, registre-se também, não era das mais
confortáveis. Eu não reunia, a bem da verdade, todas as qualidades
requeridas para a função, em especial para a área de risco. Tinha muita
experiência e conhecimento de negociações multilaterais e da natureza do
trabalho em organismo internacional, depois de oito anos no FMI, no G20 e
no processo BRICS, mas não tinha conhecimento prático de bancos de
desenvolvimento. Procurava compensar essas limitações esforçando-me
para estudar e me colocar a par dos temas sob minha responsabilidade, mas
o processo era demorado e árduo. O meu temperamento, reconheço,
também não ajudava. Depois de algum tempo e repetidas frustrações, reagia
com impaciência e certa aspereza à falta de dedicação e responsabilidade
dos meus colegas russo e sul-africano. Com o russo, em particular, que era
não só incompetente como agressivo, as desavenças se multiplicaram, em
especial quando ele começou a se valer das suas atribuições nas áreas de
recursos humanos e comunicação para, por incrível que pareça, retaliar
contra seus colegas, obstruindo em especial a atuação da vice-presidência
brasileira no desempenho de suas atribuições. O vice-presidente chinês, que
tinha competência e experiência pertinente, também perdia frequentemente
a paciência com o russo e o sul-africano, cujo despreparo e incompetência
também afetavam diretamente o trabalho da área de projetos.26 O ambiente
nas reuniões internas da Administração não era dos mais construtivos, para
dizer o mínimo. O presidente Kamath assistia basicamente inerte a todos
esses conflitos, furtando-se a exercer a liderança que lhe cabia.
As limitações do comando do NBD contribuíram para contratações
infelizes para o corpo técnico do banco. É o que costuma ocorrer. Como se
diz em inglês, the rot begins at the top (o apodrecimento começa no topo).
Os cargos de diretor-geral e chefe de divisão, os mais altos do staff, foram
ocupados, com algumas exceções, por pessoas de qualificação e
competência claramente insuficientes. O funcionamento do banco sofria
com isso em praticamente todos os setores. Eu mesmo contribuí, devo
confessar, para contratações equivocadas, ao insistir na escolha de um
diretor-geral de estratégia, o brasileiro Sergio Suchodolski, que se revelaria
despreparado e inoperante. Como atenuantes para o meu erro, menciono
apenas que tive sobre ele referência muito positiva de Luciano Coutinho,
ex-presidente do BNDES, de quem o candidato à posição havia sido chefe
de gabinete. Houve também alguma pressa na escolha, pois me preocupava,
depois do impeachment da presidente Dilma, a possibilidade de que o
governo brasileiro resolvesse patrocinar a contratação para essa posição de
alguém capaz de criar problemas dentro do banco. A baixa qualidade dos
funcionários do governo Temer com quem passei a interagir só fizera
aumentar essa preocupação
Volto às consequências do impeachment na sequência. Por ora, quero
deixar registrada a minha surpresa e decepção diante da inépcia ou
despreparo de grande parte dos funcionários russos e indianos que
ingressaram no NBD, começando, obviamente, pelo presidente indiano e o
vice-presidente russo. É que nos meus mais de oito anos no FMI, aprendera
a admirar a qualidade dos diretores e assessores da Rússia e da Índia. As
cadeiras russa e indiana na Diretoria Executiva do FMI estavam entre as
melhores, mais atuantes e mais preparadas. Não esperava que seria tão
diferente em Xangai. O que salvava um pouco a situação era o desempenho
algo melhor do vice-presidente chinês e de alguns funcionários chineses,
inclusive na minha vice-presidência, que se destacavam pelo afinco e pela
seriedade. Além disso, os brasileiros, embora poucos e relativamente
jovens, trabalhavam bem e com grande dedicação, excetuado o já referido
diretor-geral de estratégia. Para esses funcionários chineses e brasileiros,
pelo menos aqueles lotados na vice-presidência brasileira, hora extra não
remunerada e trabalho em feriado ou fim de semana eram parte da rotina e
ninguém estranhava.
As críticas e os comentários anteriores, em especial os que fiz sobre
meus colegas de Administração, talvez pareçam excessivamente ad
hominem. Não se deve perder de vista, entretanto, que as qualidades
pessoais da Administração são cruciais para uma instituição como o NBD,
que começava do zero. Uma instituição já estabelecida e consolidada pode
suportar por algum tempo um comando medíocre ou inoperante. No caso do
nosso banco, onde tudo estava por se fazer, era preciso que a Administração
e a equipe técnica fossem não só competentes, mas dedicadas, dispostas
inclusive a sacrifícios pessoais. Não era o que se via na maioria dos casos,
infelizmente, em especial nos escalões mais altos do banco.
4. Contratempos políticos
As dificuldades do NBD não eram apenas internas ao banco.
Enfrentávamos, além disso, acontecimentos que afetaram as relações
internacionais e o quadro político dos países integrantes dos BRICS e que
repercutiam de alguma maneira sobre o banco.
Um deles foi a deterioração das relações entre a China e a Índia. A
China lançara em 2013 a iniciativa Um Cinturão, Uma Rota (One Belt, One
Road Initiative – OBOR) envolvendo expressivos investimentos em
infraestrutura na Ásia, África, Europa e outras regiões. A escala e ambição
dessa iniciativa preocuparam a Índia, especialmente um projeto de corredor
econômico China-Paquistão, que atravessava território contestado com a
Índia. Em 2017, chegou a haver escaramuças na fronteira entre a Índia e a
China. Os Estados Unidos – sempre interessados em atrair a Índia para uma
aliança quadripartite com Japão e Austrália, objetivando a “contenção” da
China – buscavam naturalmente tirar partido dessas discordâncias e
incidentes. As relações entre China e Índia melhorariam posteriormente,
mas o conflito entre os dois países afetou o processo BRICS em 2017,
dificultando o planejamento da cúpula daquele ano, que se realizou na
China, em setembro, na cidade de Xiamen. Também não podia deixar de ter
algum efeito sobre o banco. Por exemplo, quando o governo chinês
procurou o NBD para que assinássemos um memorando de entendimento,
com outros bancos multilaterais, indicando a intenção de apoiar e participar
da OBOR, a Índia se opôs tenazmente, embora o memorando não fosse
legalmente vinculante e tivesse caráter meramente declaratório. Depois de
muitas idas e vindas, e suando frio, o presidente Kamath colocou a questão
em votação e só a Índia se opôs. Foi a única vez, nos mais de dois anos em
que estive no banco, em que alguma decisão foi tomada sem consenso.
Mais graves para o NBD foram as consequências do conflito entre
Rússia e Ocidente desde a crise na Ucrânia e a anexação da Crimeia em
2014. Sob liderança dos Estados Unidos, mais de 40 países, incluindo todos
os desenvolvidos, passaram a aplicar sanções contra a Rússia. O país perdeu
acesso a diversas fontes de financiamento internacional. Ficou
impossibilitado, por exemplo, de tomar empréstimos no Banco Mundial e
no Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento (BERD). Até então,
a Rússia recorria a financiamentos do Banco Mundial e era o principal
cliente do BERD. Como os países desenvolvidos mantêm ampla maioria
nesses bancos multilaterais, não foi difícil para eles vetar empréstimos à
Rússia.
Inesperado, entretanto, foi o que ocorreu, pelo menos em certo período,
no AIIB, que é comandado pela China, como mencionei. Todos os
principais países europeus haviam ingressado no AIIB, a despeito, diga-se
de passagem, das objeções dos Estados Unidos. A exemplo do que ocorre
em instituições multilaterais mais antigas, os europeus passaram a atuar em
bloco no AIIB e, em certo momento, objetaram a que o banco realizasse
operações com a Rússia. O presidente Jin Liqun – assim me informaram os
representantes russos no NBD – estava de alguma maneira aceitando esse
veto, embora os europeus não tivessem votos suficientes no AIIB para
bloquear operações. A indignação dos russos com a situação era tal que
ocorreu um episódio inusitado. Em reunião ministerial dos BRICS, em
Xangai, em junho de 2017, com algo como 30 pessoas na sala, o ministro
de Finanças da Rússia, Anton Siluanov, dirigindo-se ao ministro chinês,
reclamou enfaticamente do que estava ocorrendo no AIIB, acrescentando
que essa situação só fazia aumentar a relutância da Rússia em aceitar que
começasse a entrada de novos países-membros no NBD.
Na verdade, o problema era anterior. Desde o início das operações do
banco, a Rússia tentava obstruir os planos de ampliação do número de
membros. Os demais sócios fundadores eram favoráveis à ampliação,
particularmente o Brasil e a China. A Índia, inicialmente favorável, passou
a temer que a China patrocinasse a entrada do Paquistão e perdeu
entusiasmo pela ideia, mas não chegava a obstruir e, às vezes, até ajudava.
A África do Sul não parecia seguir uma linha consistente e tendia à
neutralidade.
Dentro do banco, a força propulsora era a vice-presidência brasileira. O
assunto estava na minha órbita e dedicamos muito tempo à preparação das
condições e critérios para a entrada de novos membros, assim como ao
trabalhoso planejamento e realização dos contatos iniciais com as
autoridades de um grande número de países em 2016 e 2017. Mas cada
passo era um parto. Os representantes russos inventavam a cada momento
objeções e manobras burocráticas. Sentindo a tibieza do presidente do
banco, os russos foram endurecendo aos poucos as objeções.
Transparência, como se sabe, nunca foi o ponto forte dos russos. Na
época da negociação, nunca ficara totalmente claro porque tanto resistiam à
ideia de criar o banco, assim como o fundo monetário dos BRICS. Até a
cúpula dos BRICS em Durban, no início de 2013, os russos pareciam opor-
se a essas iniciativas. Só após Durban, a Rússia se engajou plenamente no
processo. Depois da criação do NBD, logo sentimos a relutância russa à
entrada de novos membros. Mais uma vez, não havia diálogo franco sobre
as razões dessa relutância. Com o tempo, foi possível perceber, entretanto,
que havia dois motivos para a resistência deles à ampliação do NBD.
Primeiro, a Rússia temia a entrada de seus inimigos no banco. Objetava-se,
sobretudo, no início mais discretamente, depois com mais clareza, à
participação de países desenvolvidos, particularmente daqueles que se
destacavam na aplicação de sanções contra a Rússia. Mas as objeções se
estendiam, também, ainda que de maneira menos enfática, a países em
desenvolvimento. Os russos passavam a impressão de não querer no banco
países que pudessem concorrer com eles no acesso a empréstimos do NBD.
Ironicamente, o país que até início de 2013 se mostrava o mais relutante em
concordar com a criação de um novo banco pelos BRICS, convertera-se no
mais ansioso em utilizá-lo para seus próprios fins.
Parte do problema estava, aparentemente, na natureza do processo
decisório na Rússia. Os representantes do país na Diretoria do NBD, assim
como o vice-presidente russo, viviam no temor de desagradar ao Kremlin.
Não tinham acesso aos altos escalões do governo, nem noção precisa de
como pensava o presidente Putin. Por via das dúvidas, faziam tudo para
bloquear. Em reunião formal da Diretoria, pressionado por argumentos
meus e de seus colegas de Diretoria, o diretor russo, Sergei Storchak,
deixou escapar que não podia concordar com a discussão de listas de
possíveis países-membros, pois “o meu líder [Putin] é imprevisível”. A
China, por sua vez, acabava acomodando em alguma medida as objeções da
Rússia, em parte, suponho, para compensar o que estava ocorrendo no
AIIB, em parte porque no plano estratégico-diplomático os dois países
haviam se aproximado muito, como decorrência dos choques com os
Estados Unidos, mesmo antes da eleição de Donald Trump.
Enquanto estive no banco, conseguimos alguns avanços em matéria de
novos membros, apesar dos obstáculos criados incansavelmente pelos
russos. Conseguimos, a muito custo, autorização do Conselho de
Governadores para iniciar contatos informais com potenciais interessados.
Fizemos ao longo de 2016 e 2017 sucessivas rodadas de reuniões com
autoridades de países da América Latina, do Caribe, da África, do Oriente
Médio, da Europa e da Ásia. Eu me valia, nesse processo, da experiência de
mais de oito anos na Diretoria do FMI e dos contatos que fizera nesse
período com ministros de Finanças e outros funcionários da área econômica
de muitos países. A receptividade ao NBD era variável, mas em meados de
2017 mais de 40 países haviam indicado interesse em prosseguir as
discussões, com muitos deles mostrando interesse em começar negociações
formais. Conseguimos também – de novo, a muito custo – aprovar no
Conselho de Governadores o já referido documento que estabelecia os
termos, condições e procedimentos para a entrada de novos membros.
Infelizmente, os russos logo inventaram que era preciso aprovar outro
documento, que estabeleceria os critérios para a seleção de países-membros
– mais um pretexto para prolongadas discussões na Diretoria. A verdade é
que a vice-presidência brasileira trabalhava intensamente para alcançar
resultados, afinal, relativamente modestos. Depois que fui afastado, em
outubro de 2017, o processo de ampliação do banco parece ter parado
completamente. O NBD permanece um clube de apenas cinco membros.
Enquanto isso, o AIIB, criado pouco tempo depois, conta com mais de 90
países-membros de todas as regiões do planeta, muitos dos quais países
desenvolvidos.
As crises econômicas e políticas na África do Sul e no Brasil também
contribuíram para enfraquecer o NBD. Na África do Sul, depois de
prolongada instabilidade política, denúncias de corrupção acabariam
levando à renúncia do presidente Zuma, que tivera papel importante no
processo BRICS, inclusive no lançamento das negociações formais para a
criação do NBD e do ACR na cúpula de Durban. Eu estava presente e posso
testemunhar de que sem o empenho dos sul-africanos, em especial do
presidente Zuma, teria sido difícil chegar à decisão de criar os dois
mecanismos e começar as negociações.
Mais importante, contudo, foi a crise brasileira e o impeachment da
presidente Dilma. Não quero passar a impressão, leitor, de que estou
“puxando a sardinha” para o lado brasileiro, mas gostaria de atestar, como
participante do processo desde o início em 2008, que o Brasil era o motor
dos BRICS. Embora a iniciativa original tenha sido da Rússia,27 o Brasil,
bem mais do que os outros quatro, se sobressaía pela capacidade de
formular, organizar e impulsionar o processo. Porém, com a crise que se
abateu sobre o governo Dilma a partir de 2015, a atuação do país sofreu
clara erosão. No governo Temer, o quadro piorou. Nunca se confirmaram os
rumores de que Temer se afastaria ou até abandonaria os BRICS e o banco
por eles criado, mas a participação brasileira se tornou bem menos
importante.
Dada a minha identificação com os governos Lula e Dilma, fiquei em
posição mais precária depois do impeachment. Já não tinha o mesmo acesso
e a mesma facilidade de diálogo com Brasília e podia temer que viesse de lá
alguma tentativa de me desestabilizar, ainda que eu tivesse mandato e
contrato até 2021 e não fosse demissível ad nutum. Isso acabaria
acontecendo, como relatarei28, mas ainda foi possível trabalhar
relativamente bem com Brasília, mesmo no governo Temer, enquanto o
Brasil se fazia representar na Diretoria do NBD por diplomatas de carreira.
Os embaixadores Luís Balduino e Carlos Cozendey continuaram
inicialmente nas posições de diretor e diretor alterno, respectivamente, para
as quais haviam sido nomeados no governo Dilma. Esses embaixadores
faziam parte do pequeno grupo de diplomatas que se destacaram no
processo BRICS e tinham, portanto, pleno conhecimento do que se
pretendia alcançar com a criação do banco.29 Infelizmente, acabaram
substituídos por economistas com pouca experiência e conhecimento
pertinentes e – o que é pior – cheios de noções preconcebidas e com pouca
disposição de aprender. A posição de diretor brasileiro passou a ser exercida
por Marcello Estevão, ex-funcionário do FMI, que em pouco tempo
revelaria inaptidão para o cargo. A sua atuação se caracterizava por
amadorismo e improvisação. Não foi só a representação brasileira que
perdeu qualidade. O Brasil, por acordo a que se chegou em Fortaleza,
exercia a primeira presidência da Diretoria30 e o Convênio Constitutivo
estabelecera que esse mandato seria de quatro anos.31 Com o diretor
brasileiro atuando de maneira atabalhoada, sofria não só o Brasil, mas a
Diretoria com um todo.32
Alternativas ao nacionalismo?
No período posterior à Segunda Guerra, o nacionalismo ficou estreitamente
ligado à aspiração do desenvolvimento econômico. Países como o Brasil
tentavam, à sua maneira, refazer a trajetória de outros late comers, em
outros períodos históricos – a Alemanha, os EUA, a Rússia e o Japão no
século XIX, por exemplo.10 Historicamente, o desenvolvimento esteve
sempre associado a um processo de catching up,11 de equiparação ao nível
de desenvolvimento de nações mais avançadas econômica, tecnológica e
militarmente. É no espaço nacional que se articula o esforço de recuperação
desse atraso relativo.12 Nesse sentido, a expressão “desenvolvimento
nacional” é quase uma redundância. Quase porque em determinadas
circunstâncias, relativamente raras, o desenvolvimento pode resultar de uma
ação regional em que nações geográfica e culturalmente próximas se aliam
para buscá-lo em um processo de integração profunda de suas economias e
instituições. O desenvolvimento das economias periféricas da União
Europeia é o caso mais conhecido, talvez único.
Existem alternativas ao nacionalismo? Outros caminhos para o
desenvolvimento econômico e a melhora das condições de vida na periferia
da economia internacional? Em certos meios de esquerda, deposita-se
alguma esperança na ação transnacional dos trabalhadores e dos
movimentos sociais. Seria a “globalização do trabalho”, contraposta à
“globalização do capital”. A viabilidade dessa alternativa é muito limitada,
uma vez que existem divergências fundamentais de interesse entre os
trabalhadores do centro e da periferia. Os primeiros se opõem à livre
circulação internacional do trabalho; constituem parte importante das forças
políticas que sustentam as restrições à imigração na União Europeia, nos
EUA e em outras nações desenvolvidas. Não querem imigrantes oriundos
da América Latina, da Ásia ou da África concorrendo com eles nos seus
mercados nacionais de trabalho.
Os trabalhadores dos países desenvolvidos inclinam-se também ao
protecionismo e apoiam, em geral, restrições à importação de produtos
fabricados nas economias em desenvolvimento. É o protecionismo
“politicamente correto”, que justifica os limites à importação com alegações
de que as empresas exportadoras desses países danificam o meio ambiente
ou não respeitam os direitos dos trabalhadores.
Já os trabalhadores da periferia gostariam de ter o direito de migrar para
países desenvolvidos e buscar melhores condições de remuneração e
trabalho nas nações mais avançadas. Se pudessem opinar, defenderiam a
liberalização dos mercados de trabalho. Além disso, eles são diretamente
prejudicados, em termos de oportunidades de emprego e de nível salarial
nos seus países de origem, pelas medidas que restringem o acesso das
exportações da periferia aos mercados do centro.
Em suma, a palavra de ordem de Marx e Engels – “Trabalhadores do
mundo inteiro, uni-vos!” – continua não ressoando. A defesa dos interesses
dos trabalhadores ainda depende, fundamentalmente, do que pode ser
realizado no âmbito nacional ou, no máximo, regional – quando existir um
projeto sólido de integração entre nações geográfica e politicamente
próximas.
O desenvolvimento também não pode ficar na dependência da
cooperação entre nações, da boa vontade dos países mais adiantados e da
iniciativa dos Estados no plano internacional. O comportamento dos mais
adiantados, que poderiam em tese liderar uma ação conjunta em prol do
desenvolvimento, raramente confirma essas esperanças de solidariedade. Os
Estados nacionais dos países desenvolvidos seguem as forças locais e seus
interesses. Respondem primordialmente a seus eleitorados e a pressões
domésticas. A cooperação internacional está mais presente na retórica do
que na prática dos Estados.
Um aspecto nem sempre lembrado é a relação entre nação e
democracia. Com todas as suas imperfeições e limitações, que são muitas, a
democracia só existe no plano nacional ou infranacional. Não existe
democracia no plano internacional. Os organismos multilaterais são todos
não democráticos, em maior ou menor medida. Fundo Monetário
Internacional, Banco Mundial e mesmo as Nações Unidas são estruturas
oligárquicas, controladas por um número pequeno de países desenvolvidos.
No plano internacional, estamos na fase do voto censitário. O poder de voto
e de decisão nas organizações multilaterais está estreitamente vinculado ao
poder econômico. É válido, evidentemente, continuar o esforço para
aumentar a representatividade dessas entidades e a influência dos países em
desenvolvimento sobre suas agendas e iniciativas. Mas sem ilusões. Não
estão ao nosso alcance mudanças profundas, que permitam transferir para a
órbita internacional as decisões cruciais para o processo de
desenvolvimento.
Sotaque espiritual
O nacionalismo é, na prática, a única alternativa. Nos países menos
desenvolvidos, o projeto nacional está sujeito, entretanto, a contestações
permanentes. Não raro, a contestação doméstica é mais agressiva e perigosa
do que a estrangeira. O nacionalismo sofre então uma espécie de erosão
interna. Grande parte das elites nacionais mostra-se inclinada a formas
subordinadas de inserção internacional, atuando, de modo consistente, para
bloquear a formulação e implementação de um projeto autônomo de
desenvolvimento.
Essa atuação de parte das elites locais obedece, obviamente, a
motivações econômicas concretas. As nações hegemônicas operam de
forma a beneficiar aqueles que se dispõem a cooperar com os seus projetos
de poder. Mas não se deve subestimar o papel de influências ideológicas e
fatores de ordem subjetiva. O poder se exerce não apenas nos planos
econômico, político e militar, mas também – e de forma crucial – no terreno
das ideias, das ideologias, das imagens, da cultura. Não há hegemonia que
possa prescindir do chamado soft power.
Um elemento central dessa estrutura de poder é o treinamento –
adestramento talvez seja a palavra mais adequada – das elites da periferia
nas universidades dos países centrais, nas suas instituições financeiras e em
organizações internacionais como o FMI e o Banco Mundial. É uma antiga
tradição imperial. Os romanos transplantavam os filhos dos líderes das
tribos germânicas para Roma, onde eram devidamente aculturados.
Retornavam à sua terra natal na condição de integrantes leais e assimilados
do Império Romano.13
O treinamento ou adestramento das elites periféricas tem uma dupla
dimensão. Envolve não só a transmissão de conhecimentos, técnicas e
experiência internacional, como também de valores e padrões de
comportamento. Forma-se assim uma “tecnocracia apátrida”, na expressão
de Charles de Gaulle,14 mais identificada psicológica e emocionalmente
com as nações adiantadas do que com seus próprios países de origem. A
preservação do atraso e da dependência passa a ser articulada por dentro,
sem sotaque físico, porém com um tremendo sotaque espiritual, diria
Nelson Rodrigues. Essa dominação indireta, que se faz por meio de
prepostos locais, é menos transparente e, assim, mais eficiente do que os
métodos coloniais tradicionais.
Os economistas têm dado uma contribuição especialmente nociva. Em
muitos países periféricos, os cargos mais importantes e as alavancas
decisórias nos ministérios de Finanças, do Planejamento e nos bancos
centrais acabam nas mãos de uma rede de economistas e outros
profissionais que têm “trânsito em Washington”, mas pouca identificação
real com as nações que supostamente governam e representam.
É o caminho para perpetuar a dependência e o subdesenvolvimento.
1 Versão revista e condensada de texto publicado na revista Novos Estudos CEBRAP, n. 77, março
2007.
2 Alain Peyrefitte. C’était de Gaulle. Paris: Éditions de Fallois & Fayard, 1994, p. 286.
3 Friedrich Nietzsche. Nachgelassene Fragmente, 1887-1889. In: Kritische Studienausgabe, vol. 13,
editado por Giorgio Colli & Mazzino Montinari. München: DTV/de Gruyter, 1988, p. 408.
4 Wolfgang Müller-Lauter. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. São Paulo: Annablume,
1997. Ver também Scarlett Marton. Extravagâncias: ensaios sobre a filosofia de Nietzsche. São
Paulo: Discurso Editorial & Editora Unijuí, 2000, p. 171-201.
5 Friedrich Nietzsche. Götzen-Dämmerung, 1ª edição: 1889, republicado em Friedrich Nietzsche –
Werke III, editado por Karl Schlechta. Frankfurt am Main: Ullstein, 1972, p. 404.
6 Miguel de Unamuno. A agonia do Cristianismo. 1ª edição: 1930, São Paulo: Edições Cultura,
1941, p. 43.
7 Johann Gottfried Herder. Another Philosophy of History and Selected Political Writings, 1ª edição:
1774, Indianapolis: Hackett Publishing Company, 2004; e Isaiah Berlin. The Crooked Timber of
Humanity. Princeton: Princeton University Press, 1990, p. 218-37, 243-54.
8 Em texto pouco conhecido, Marx fez um ataque veemente e violento à principal obra de List: Karl
Marx. Draft of an Article on Friedrich List’s Book: Das Nationale System der Politischen
Oekonomie, 1845. Disponível em: <https://www.marxists.org/archive/marx/works>.
9 Ver, por exemplo, Isaac Deutscher. Stalin. Bungay: Pelican Books, 1966; e John Lukacs. June
1941: Hitler and Stalin. New Haven: Yale University Press, 2006.
10 Ver Thomas C. Smith. Political Change and Industrial Development in Japan: Government
Enterprise, 1868-1880. Stanford: Stanford University Press, 1955; Alexander Gershenkron.
Economic Backwardness in Historical Perspective. Boston: Harvard University Press, 1962; e Id.,
Europe in the Russian Mirror: Four Lectures in Economic History. Cambridge: Cambridge
University Press, 1970.
11 Ver Georg Friedrich List. Sistema nacional de economia política, 1ª edição: 1841, São Paulo:
Nova Cultural, 1986; e Ha-Joon Chang. Kicking Away the Ladder: Development Strategy in
Historical Perspective. Londres: Anthem Press, 2002.
12 Luiz Carlos Bresser-Pereira. “Estratégia nacional de desenvolvimento”. Revista de Economia
Política, vol. 26, n. 2 (102), abril/junho 2006, p. 221-23.
13 Steven Ozment. A Mighty Fortress: a New History of the German People. Londres: Granta Books,
2006, p. 20.
14 Alain Peyrefitte. C’était de Gaulle. Paris: Éditions de Fallois & Fayard, 1994, p. 69.
NAÇÃO VERSUS GLOBALIZAÇÃO1
O grande jornalista Barbosa Lima Sobrinho disse, certa vez, que o Brasil
sempre teve só dois partidos: o de Tiradentes, o partido da autonomia
e da independência; e o de Silvério dos Reis, o partido da subordinação e da
entrega. O segundo partido remonta a Calabar, passa por Joaquim Silvério
dos Reis – delator da Inconfidência Mineira – e continua até hoje
solidamente instalado no governo, no Congresso, no Poder Judiciário e na
mídia.
Apesar de tudo, o prestígio de Tiradentes é imenso. Por ocasião do dia
21 de abril, o presidente Michel Temer, destacado integrante do partido de
Silvério dos Reis, teve o desplante de invocar Tiradentes, comparando-se de
certa maneira a ele…
Não vale a pena subir pelas paredes, leitor. A hipocrisia tem seus
méritos. Como dizia La Rochefoucauld, ela é a homenagem do vício à
virtude. No dia em que o vício parar de homenagear a virtude estaremos
perdidos para sempre.
Mas não quero discorrer sobre o partido de Silvério dos Reis e os seus
numerosos integrantes. Seria deprimente, para mim e para o leitor. Vamos
pensar um pouco nas nossas raízes e nos nossos mortos? É deles que podem
vir o ânimo, o élan e a energia para continuar a luta por um país criativo e
independente.
Não podemos esquecer que o Brasil produziu uma série de figuras
extraordinárias. Lembro, por exemplo, Euclides da Cunha, Mário de
Andrade, Oswald de Andrade, Heitor Villa-Lobos, Roberto Simonsen,
Gilberto Freyre, Getúlio Vargas, Juscelino Kubistchek, Lúcio Costa, Oscar
Niemeyer, Nelson Rodrigues, Ariano Suassuna e Celso Furtado. É um
grupo heterogêneo, eu sei, que inclui desde um comunista como Niemeyer
até um industrial como Simonsen, passando por um keynesiano como
Furtado, além de artistas, políticos e sociólogos. O que esses brasileiros têm
em comum? O traço que os une, a meu ver, é a convicção compartilhada
por todos eles de que o Brasil é um país especial, capaz de desempenhar um
papel importante no mundo. Em uma palavra: autoconfiança.
Nas suas Memórias de Guerra, de Gaulle escreveu que durante toda sua
vida ele sempre fizera “uma certa ideia da França” como nação
predestinada a um papel destacado e excepcional. Se acontecia, ao
contrário, da sua trajetória ser marcada pela mediocridade, pela
mesquinharia, pelo fracasso, isso parecia a seus olhos, automaticamente,
uma anomalia absurda, imputável não à França, mas aos franceses.
Todos os brasileiros que mencionei, com variações e peculiaridades,
claro, sempre fizeram “uma certa ideia do Brasil”: a de que o nosso país
pelas suas dimensões, suas qualidades, suas singularidades, está destinado a
ocupar um lugar de destaque no planeta. Megalomania? Os partidários de
Silvério dos Reis se opõem ferozmente à ideia de um Brasil grande. São os
“realistas”, os defensores dos “limites do possível”, das “utopias viáveis”.
Sofrem de nanomania, como observou o ex-chanceler Celso Amorim. A
verdade é que os brasileiros nem sempre estão à altura do Brasil.
A nanomania alimenta-se da falta de imaginação. Os partidários de
Silvério dos Reis, mesmo os mais inteligentes, se notabilizam por um
padrão de comportamento imitativo, mimético, pela aceitação acrítica dos
valores, das tendências e dos modismos que vêm dos Estados Unidos e da
Europa. O oposto disso não é o fechamento e a xenofobia, leitor, mas sim a
absorção criativa das influências externas – outro traço comum aos
brasileiros que mencionei. Essa absorção criativa foi caracterizada pelos
modernistas, por Oswald de Andrade em especial, como a antropofagia
brasileira, a capacidade de digerir e recriar as qualidades e os valores do
estrangeiro. Metáfora poderosa, que sintetiza bem o espírito de toda uma
geração de brasileiros notáveis.
Esse espírito não se perdeu. Corre no nosso sangue e nos nossos sonhos.
O capítulo de que faz parte este texto revisita alguns aspectos polêmicos
da economia política e da política econômica brasileiras. É o mais
incompleto do livro e provavelmente o mais decepcionante, considerando a
formação do autor. Ele tem, ainda assim, seu fio condutor, mesmo que
apareça pouco. Esse fio condutor é a ênfase no aspecto nacional das
questões econômicas. O propósito do presente texto é oferecer uma visão de
conjunto dos requisitos de uma política econômica nacionalista, revisitando
alguns temas clássicos da macroeconomia contemporânea à luz do interesse
nacional. A discussão tem como foco o Brasil e outros países emergentes,
mas se aplica, acredito, pelo menos em parte, até mesmo a países avançados
que, em contradição ao que normalmente pregam, praticam políticas
econômicas de corte nacionalista.
Continuo do ponto de vista, que sempre adotei, de que o nacionalismo
precisa ser, invariavelmente, ainda que sem dogmatismos e inflexibilidades,
o princípio organizador e propulsor das políticas macroeconômicas. Isso
deveria ser, mas não é, uma homenagem ao Conselheiro Acácio. É que a
macroeconomia tal como ensinada e aplicada em países como o Brasil
sofre, por um lado, do célebre complexo de vira-lata das nossas elites, que
leva muitos, talvez a maioria dos economistas a estigmatizar o nacionalismo
como uma variante do “populismo” ou como ideologia retrógrada
incompatível com a moderna “globalização”. Por outro lado, tributários que
somos das teorias gestadas nos países desenvolvidos, com hegemonia
inconteste dos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Mundial, acabamos
importando as tendências presentes nessas teorias de subestimar o peso das
especificidades nacionais e também, paradoxalmente, a dimensão
internacional da macroeconomia. Esta última é curiosa, quando se leva em
conta a importância supostamente conferida à “globalização”. Até as
décadas finais do século passado, talvez justamente por causa da hegemonia
dos Estados Unidos – superpotência e economia continental para a qual
pesam menos os fatores externos – as teorias macroeconômicas deixavam
frequentemente em segundo plano as relações da economia com o resto do
mundo. Só no período recente, ganhou mais destaque a “macroeconomia
aberta”.
Parece evidente, entretanto, que a macroeconomia deve ser
necessariamente sempre “aberta”, ou seja, não deve e, a rigor, nem pode ser
analisada com base na premissa simplificadora da “economia fechada”.
Insisto: em nenhum caso – nem nas economias continentais, nem no caso
extremo dos Estados Unidos. E não apenas no quadro contemporâneo de
alto grau de internacionalização das atividades econômicas, especialmente
financeiras, mas mesmo em períodos anteriores da história econômica. Em
outras palavras, não existem, do ponto de vista econômico, nem ilhas nem
continentes. Todos os aspectos da política macroeconômica nacional
precisam ser examinados e definidos à luz das relações com o resto do
mundo.
O que temos aqui é um paradoxo semântico. Quando se diz que todas as
dimensões da economia devem ser vistas sob o prisma da questão nacional,
afirma-se, ao mesmo tempo, que elas devem ser vistas sob o prisma das
relações internacionais. A dualidade nacional/internacional é a dualidade
fundamental e recorrente.
Logicamente, é sempre possível postular que inexiste o resto do mundo
ou que a economia sob análise não se relaciona com ele – premissa de livro-
texto antiquado, porém, que falseia a discussão desde o início. Situa-se, por
assim dizer, no campo das abstrações destrutivas do conhecimento. A
“economia fechada” é, na melhor das hipóteses, um recurso expositivo ou
didático, que terá relevância prática se, e somente se, existir algum dia um
Estado universal. Abstrações podem ser úteis, são até indispensáveis, mas
não devem, por suposto, retirar de cena aspectos essenciais dos problemas
que se pretende analisar. Como se vê, repito, nem sempre é possível evitar
homenagens ao Conselheiro, por mais que se queira. É trivial, sem dúvida,
alertar contra o risco de eliminar por hipótese aspectos centrais da realidade
– centrais no sentido de que, se excluídos, tornam a análise enganosa ou
estéril. E, no entanto, é o que volta e meia acontece no campo acadêmico –
ainda que disfarçado por linguajar obscuro ou matematizações
impenetráveis –, assim como no campo da política econômica – ainda que
dissimulado pela retórica habilidosa dos governantes ou pela propaganda
ruidosa dos grupos de poder. Estou caricaturando um pouco, é verdade, mas
a caricatura não está tão longe do que costuma ocorrer, num campo e
noutro.
Perfis
BRIZOLA EM 19611
Peço a vossa atenção para as comunicações que vou fazer. Muita atenção. Atenção,
povo de Porto Alegre! Atenção, Rio Grande do Sul! Atenção, Brasil! Atenção, meus
patrícios, democratas e independentes, atenção para estas minhas palavras! […]
O Palácio Piratini, meus patrícios, está aqui transformado em uma cidadela, que há de
ser heroica, uma cidadela da liberdade, dos direitos humanos, uma cidadela da civilização,
da ordem jurídica, uma cidadela contra a violência, contra o absolutismo, contra os atos
dos senhores, dos prepotentes. […]
Nós não nos submeteremos a nenhum golpe, a nenhuma resolução arbitrária. Não
pretendemos nos submeter. Que nos esmaguem! Que nos destruam! Que nos chacinem,
neste Palácio! Chacinado estará o Brasil com a imposição de uma ditadura contra a
vontade de seu povo. Esta rádio será silenciada tanto aqui como nos transmissores. O
certo, porém, é que não será silenciada sem balas. […]
Não desejo sacrificar ninguém, mas venham para a frente deste Palácio, numa
demonstração de protesto contra essa loucura e esse desatino. Venham, e se eles quiserem
cometer essa chacina, retirem-se, mas eu não me retirarei e aqui ficarei até o fim. Poderei
ser esmagado. Poderei ser destruído. Poderei ser morto. Eu, a minha esposa e muitos
amigos civis e militares do Rio Grande do Sul. Não importa. Ficará o nosso protesto,
lavando a honra desta nação. Aqui resistiremos até o fim. A morte é melhor do que vida
sem honra, sem dignidade e sem glória.
Temos que preparar a nova geração para enfrentar grandes desafios, pois se trata de,
por um lado, preservar a herança histórica da unidade nacional, e, por outro, continuar a
construção de uma sociedade democrática aberta às relações externas. […] Numa palavra,
podemos afirmar que o Brasil só sobreviverá como nação se se transformar numa
sociedade mais justa e preservar a sua independência política. Assim, o sonho de construir
um país capaz de influir no destino da humanidade não se terá desvanecido.
Mas o Brasil estava de tanga, estava de folha de parreira, ou pior: com um barbante
em cima do umbigo. Todo o Nordeste lambia rapadura. E vamos e venhamos: para um
povo que lambe rapadura, que sentido têm os artigos do professor Gudin? Sempre
existiram os Gudins e o povo sempre lambeu rapadura. Ao passo que o Brasil só conheceu
um Juscelino.
Pode-se admitir, para fins práticos, que a memória financeira dure no máximo uns 20
anos. Esse é normalmente o tempo que leva para apagar a recordação de um desastre e
para que alguma variante das demências anteriores se apresente e capture a mente
financeira. É também o tempo geralmente requerido para que uma nova geração entre em
cena, impressionada, como suas predecessoras, com o próprio gênio inovador.
Existe pouca coisa pior para um jogador do que duvidar de sua capacidade. Só os
obstinados são campeões. Derrotas podem ser compreensíveis, às vezes inevitáveis, mas
jamais aceitáveis. […] É bobagem essa história de que é na derrota que se aprende a
ganhar. Perder uma partida tem, sim, seus ensinamentos e lidar com a frustração é uma
lição necessária para todo tenista. Mas no dia em que um jogador se conforma com
resultados desfavoráveis, já era, pode pendurar as chuteiras.
Veneza, rente ao mar, se estendia e fazia uma barra mais importante à medida que o
sol se extinguia. Colorações fantásticas se sucediam que teriam forçado a alma mais
indigente a se emocionar. Ora tons sombrios e esses verdes profundos próprios das ruelas
misteriosas de Veneza; ora esses amarelos, esses alaranjados, esses azuis com que jogam
os decoradores japoneses. Enquanto no Ocidente o céu se liquefazia num mar ardente,
sobre nossas cabeças nuvens inebriantes de magnificência renovavam perpetuamente suas
formas, e a luz do crepúsculo as penetrava, as saturava de seus incontáveis fogos. As suas
cores delicadas e dilaceradas de lirismo se refletiam na laguna, de sorte que nós
deslizávamos sobre os céus. Eles nos cobriam, eles nos carregavam, eles nos envolviam
de um esplendor total e, por assim dizer, palpável. Vencidos por essas grandes magias,
havíamos perdido toda noção de realidade quando manchas escuras apareceram,
cresceram sobre a água, depois nos tomaram na sua sombra. Eram os monumentos dos
doges.
Q uero dar mais alguns tecos num dos meus alvos prediletos – o
rotineiro e paquidérmico presidente do Banco Central do governo
Temer, Ilan Goldfajn. Há um “gancho”, como dizem os jornalistas, talvez o
último: ele acaba de deixar o cargo. A sua gestão, que ora termina, vem
sendo celebrada em prosa e verso pelo mercado e pela mídia tradicional.
Como sempre, quem presta serviços à turma da bufunfa é tratado a pão de
ló. São os mitos que se cultivam e que ajudam a eternizar o
subdesenvolvimento.
Tenho, devo admitir, certa marcação com Goldfajn. Mas isso não me
impede de reconhecer suas qualidades. O problema, leitor, é que não as
encontro! Outro dia, por acaso, peguei pelo meio uma entrevista dele na
televisão. A entrevistadora fazia o possível para ajudá-lo. Quase
desempenhava o papel de entrevistadora e entrevistada ao mesmo tempo.
Não só fazia perguntas previsíveis, como insinuava as respostas, buscando
torná-las um pouco mais rápidas e menos monótonas. Lutava
persistentemente com a lerdeza do entrevistado, sem perturbá-lo, porém,
com perguntas inconvenientes. Não adiantou. Jogando em casa, com torcida
e juiz a favor, Goldfajn não saiu do zero a zero.
Muito pior, claro, foi a sua lerdeza na gestão da política monetária. Um
dos seus erros clamorosos foi a demora em diminuir a taxa básica de juros,
contribuindo para que a economia continuasse deprimida e com elevado
desemprego. A recuperação econômica em 2017 e 2018 acabou sendo pífia.
A inflação não alcançou o centro da meta e, em alguns períodos, nem o
limite inferior do intervalo estabelecido pelo Conselho Monetário.
A recuperação a passo de cágado, diga-se de passagem, acabou de
inviabilizar as candidaturas da direita tradicional nas eleições de 2018. Não
digo a do ex-ministro Meirelles, que era um defunto difícil de ressuscitar,
mas todas as outras – mesmo aquelas que podiam, com alguma
plausibilidade, se dissociar do governo Temer. O governo Bolsonaro
deveria, portanto, dar uma medalha a Goldfajn.
É mais fácil, reconheço, perceber o erro ex post. As decisões de política
monetária são sempre tomadas em ambiente de incerteza. Nesse caso,
porém, o quadro era bem claro ex ante. Multiplicavam-se, desde pelo
menos o início de 2018, indicações de tibieza da recuperação. As
expectativas de inflação estavam bem ancoradas e situavam-se, não raro,
abaixo da meta. A inflação corrente fechou um pouco aquém do piso da
meta em 2017 e, apesar de choques adversos (desvalorização do câmbio e
greve dos caminhoneiros), bem abaixo do centro da meta em 2018. Ao
longo de todo esse período, as medidas de núcleo da inflação, que excluem
itens de maior volatilidade e são indicadores de tendência, foram sempre
inferiores ao piso da meta. Havia, em suma, diversas evidências
contemporâneas de que a taxa básica de juro estava alta demais.
Outro fator que explica a pífia recuperação foi a lentidão da redução dos
spreads bancários (a diferença entre as taxas que os bancos cobram e as que
pagam a seus depositantes). No Brasil, esses spreads estão entre os mais
altos do mundo; são realmente pornográficos. O assunto é da alçada do
Banco Central. O que fez o nosso paquiderme para enfrentar a questão?
Com a contração nos anos recentes do crédito oferecido pelos bancos
públicos – Banco do Brasil, Caixa Econômica e BNDES –, uma forma de
dar algum alento à recuperação teria sido a expansão do crédito dos bancos
privados. Não aconteceu, pelo menos não de forma a ocupar o espaço
deixado pelas instituições públicas. A contenção destas últimas só veio
reforçar o poder do oligopólio formado pelos grandes bancos privados – o
Itaú (de onde vem e para onde possivelmente voltará Goldfajn), o Bradesco
e o Santander. O baixo grau de competição é, há tempos, uma das mazelas
de vários segmentos do sistema financeiro brasileiro. O que fez o nosso
paquiderme para enfrentar a questão?
Para coroar a gestão de Goldfajn, o Banco Central apresentou, em
janeiro, uma proposta curiosa para consulta pública. Sugeriu que parentes
de primeiro grau de autoridades e políticos sejam retirados da lista de
monitoramento obrigatório das instituições financeiras. Propôs também
remover a exigência de que as transações financeiras acima de R$ 10 mil
sejam notificadas ao Coaf (Conselho de Controle de Atividades
Financeiras), deixando aos bancos a identificação de casos suspeitos. Até
mesmo o ministro da Justiça, Sergio Moro, que não prima pela ética,
estranhou as sugestões e levantou publicamente dúvidas sobre sua
pertinência. Recorde-se que o Coaf foi o órgão que se tornou célebre por
sua atuação no caso Bolsonaro-Queiroz.
O paquiderme, afinal, merece ou não uma medalha?
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Viver sem crise é um guia de viagem para uma jornada sem percalços. Para
realizar essa viagem, é importante saber que a estrada não é sempre plana, e
aceitar isso. É importante também ter os pés fixos no chão - como ensina as
artes marciais -, ter uma visão ampla e profunda dos fatos e buscar o
próprio eixo, para, então, sentirmo-nos mais seguros para caminhar, mesmo
quando o caminho é tortuoso. Olga Curado, com sua vasta experiência em
administração de crises, que vai desde a reconstrução de imagem de
grandes empresas ao auxílio em crises de figuras importantes da sociedade,
ensina dez passos para uma viagem mais tranquila: 1- Treinar para receber;
2- Treinar para cair; 3- Não há situação absoluta; 4- Não há situação
definitiva; 5- Para cada problema há quatro saídas; 6- Convide o outro a se
mover com você; 7- A circunstância define a técnica; 8- O movimento é
feito a partir de você; 9- O ponto de atrito é o menor ponto de contato; 10-
Não há vitória.