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Copyright © Paulo Nogueira Batista Jr.

Todos os direitos reservados.


© Casa da Palavra/LeYa, 2019

Editor executivo: Rodrigo de Almeida


Produção editorial: Anna Beatriz Seilhe
Preparação: Veridiana Cunha
Revisão: Bárbara Anaissi
Capa: Leandro Dittz
Diagramação: Selênia Serviços
Tradução de texto nas páginas 43-53: Juliana Alvim

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Angélica Ilacqua CRB-8/7057
Batista Junior, Paulo Nogueira
O Brasil não cabe no quintal de ninguém: Bastidores da vida de um economista brasileiro no
FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata / Paulo
Nogueira Batista Jr. – São Paulo: LeYa, 2019.
448 p.

ISBN 978-85-7734-684-4
1. Economia - Ensaios 2. Economia - Brasil - Ensaios 3. Relações internacionais
19-1739
CDD 330
Índices para catálogo sistemático:
1. Economia - Ensaios

Todos os direitos reservados à


Editora Casa da Palavra
Avenida Eng. Armando de Arruda Pereira, 2.937
Bloco B - Cj 302/303 B - Jabaquara
04309-011 - São Paulo - SP
www.leya.com.br
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
Nacionalismo – herança, fio condutor

CAPÍTULO 1
Reforma da arquitetura financeira mundial: FMI e G20

G20 e FMI depois da crise internacional


FMI e controle de capitais
Um nacionalista no FMI: a estrutura da instituição e o papel do Brasil
A luta pela reforma do FMI
O Império contra-ataca
Sobrevivi

CAPÍTULO 2
BRICS e banco dos BRICS

BRICS no FMI e no G20


Novo banco e novo fundo monetário
Começo auspicioso do novo banco
Primeiro triênio do Novo Banco de Desenvolvimento – promessas,
resultados, decepções
O Banco dos BRICS e a minha demissão

CAPÍTULO 3
Nação, nacionalismo, caráter nacional

Nacionalismo e desenvolvimento
Nação versus globalização
A Marselhesa brasileira
Amazônia – de quem é?
Nacionalismo em Fernando Pessoa
Uma visita aos Estados Unidos
Síndrome de degredado
Caráter nacional – franceses e brasileiros
Brasil, um país desarmado
Dois partidos
Brasil, Estados Unidos, China

CAPÍTULO 4
Economia política brasileira

Macroeconomia do desenvolvimento nacional


Independência para o Banco Central?
A busca da “agenda perdida”
Carga negativa
O grande dilema

CAPÍTULO 5
Perfis

Brizola em 1961
Nenhuma derrota é definitiva
Cinco anos em cinquenta
Um iconoclasta
O maior brasileiro de todos os tempos
Um brasileiro
Um artista
A plataforma cedeu
Tempo cruel
Lembranças de um outro Brasil
CAPÍTULO 6
Humor econômico e outras crônicas

Um sobrinho no mercado financeiro


Banhas dogmáticas
Humor econômico
Exílio
Um sonho
Independência financeira
“Trabalho de Deus”
O complexo de vira-lata
À sombra da bufunfa
O economista bufunfeiro
Está extinta a escravidão?
Exit paquiderme
As montanhas do Rio
APRESENTAÇÃO
Nacionalismo – herança, fio condutor

“A experiência é uma lanterna que se carrega ao ombro – só ilumina o


caminho percorrido.”
La Rochefoucauld

“Nunca aprendo com a experiência


– só com a dos outros.”
Bismarck

O que você, leitor, encontrará nas páginas deste livro é essencialmente


um relato, fragmentário, meio descosturado, de uma experiência
particular. Pode-se duvidar, reconheço, que isso tenha grande utilidade.
Escolhi as duas epígrafes, a de La Rochefoucauld e a de Bismarck, para
expressar ambivalência em relação ao valor da experiência.
A dúvida vale hoje mais do que nunca. Nada escapa ao efeito corrosivo
de um tempo que parece passar em velocidade sempre maior, reforçando a
advertência, velha de séculos, do moralista francês. Por outro lado, o
primeiro-ministro prussiano sugere, com ironia, que se deve ganhar tempo,
aprendendo com a experiência dos outros. Deixo ao leitor a decisão sobre
essa questão eterna e possivelmente insolúvel, mas ofereço antes de
prosseguir algumas reflexões, meros palpites talvez.
Desde que comecei a trabalhar como economista, a velocidade dos
acontecimentos foi muito maior do que eu poderia esperar. Minha primeira
passagem pelo governo coincidiu com a crise da dívida externa da década
de 1980. Fiz parte da equipe negociadora que tentou alcançar em 1985, sem
sucesso, um acordo com o FMI para substituir os programas fracassados do
período Delfim Netto. Dois anos depois, entrávamos em moratória
unilateral com os credores bancários privados, que detinham na época o
grosso da dívida externa brasileira. Como imaginar que eu mesmo seria, na
condição de diretor brasileiro no FMI, responsável pela negociação de um
empréstimo, não do FMI ao Brasil, mas do Brasil ao FMI! As reviravoltas
que o tempo traz… E, no entanto, a experiência adquirida nos anos 1980
certamente me serviu vinte anos depois. O FMI que eu reencontrei em 2007
não era e, ao mesmo tempo, era, sim, a instituição que conhecera em 1985.
“Não te banharás duas vezes no mesmo rio”, reza a mais célebre das
máximas pré-socráticas, “o rio não é o mesmo, tu não és o mesmo”. Tudo
muda, tudo se transforma – verdade inegável, mas parcial, como todas.
Mais interessante, a meu juízo, é outra observação, também atribuída a
Heráclito: “Entramos e não entramos duas vezes no mesmo rio, pois somos
e não somos.” Esses fragmentos renderam volumes. Para meus propósitos
limitados, poderia dizer simplesmente que nada escapa intacto à passagem
do tempo. E acrescentar que o tempo devolve, como que regurgita,
elementos do passado, que reaparecem modificados, metamorfoseados,
transtornados. E é isso, afinal, que confere valor ao estudo da história, às
memórias, à experiência.
No frigir dos ovos, prefiro Bismarck a La Rochefoucauld – como seria
de esperar, considerando a fase da vida em que me encontro. Os jovens não
podem avaliar o valor da experiência, pois ainda não a têm. Os mais velhos,
por seu turno, tendem a supervalorizá-la, pois é só o que lhes resta, no fim.
A estrutura deste livro é semelhante à de um outro que publiquei em
2000 sob o título A economia como ela é… – uma antologia de pesquisas,
conferências, estudos e artigos. Mas entre o livro de 2000 e este jaz toda
uma experiência de mais de dez anos em organismos internacionais,
primeiro no FMI, em Washington, e depois no banco de desenvolvimento
criado pelos BRICS, em Xangai. O núcleo deste livro são os capítulos que
tratam da minha vivência no exterior. Os capítulos 1 e 2 trazem uma
combinação de análise econômica e institucional com relatos dos bastidores
do governo brasileiro, do FMI, do G20 e dos BRICS. Joguei a pimenta dos
embates que não vêm a público na avaliação de questões impessoais como a
economia internacional, a organização da governança global e o papel de
países emergentes como o Brasil. Limitei-me, leitor, a apresentar
depoimentos sobre os episódios que vivenciei diretamente, sem
complementá-los com informações indiretas, relatadas por terceiros.
Os textos aqui incluídos foram escritos em sua maioria ao longo dos
últimos dez anos, no Brasil e durante a permanência no exterior. Os
trabalhos inéditos, redigidos em 2019, especialmente os que abordam FMI e
BRICS, correspondem a cerca de 2/3 do livro. O terço restante foi
publicado anteriormente, só que muitas vezes em livros ou periódicos de
difícil acesso, inclusive no exterior. Para esta publicação foram todos
revistos e parcialmente rescritos, sem alterar a sua essência original. Eu
mesmo os selecionei, fugindo de repetições e evitando sempre a inclusão de
textos mais perecíveis.
Não sei se fui bem-sucedido. O resultado é um livro que aborda uma
grande variedade de temas, e não só econômicos, em diferentes registros de
linguagem. Cada texto é independente e pode ser lido isoladamente. É uma
vantagem. Se quiser, o leitor pode abrir o livro em qualquer capítulo e
começar ali. Se sentir afinidade comigo, migrará a esmo para outras partes.
O percurso será um pouco acidentado, mas há um traço de união – o
temperamento do autor. Mais ou menos a mesma voz fala em cada parte do
livro, em que pese diferenças de tema, época e tratamento.
Exceções ao que acabei de dizer são o capítulo 1 – sobre FMI e
governança internacional – e o capítulo 2 – sobre BRICS e banco dos
BRICS – que ganham com uma leitura em sequência – até porque a criação
de entidades independentes pelos BRICS não é plenamente compreensível
sem levar em conta o caráter incompleto, até frustrante, do esforço de
reforma da arquitetura internacional empreendida pelo G20 após a crise
financeira de 2008. O banco e o fundo monetário dos BRICS nem
existiriam, provavelmente, se o Banco Mundial e o FMI tivessem se
mostrado mais rápidos na adaptação ao século XXI e, em especial, à
necessidade de abrir mais espaço para os países emergentes.
De qualquer maneira, não quero fazer propaganda enganosa. O que
apresento aqui não é muito mais do que uma tentativa de reunir fragmentos,
de juntar sob um só teto textos muito heterogêneos. “Reunir fragmentos”,
disse. Pior: o que fiz foi juntar cacos. Cacos da minha participação em três
grandes projetos inacabados e problemáticos: a recuperação da autonomia
da política econômica brasileira e do desenvolvimento nacional; a reforma
do FMI e da governança financeira mundial; e o projeto dos BRICS, ainda
embrionário, de constituir mecanismos independentes de financiamento
internacional.
O insucesso parcial não surpreende. Afinal, os objetivos eram
grandiosos – inalcançáveis em poucos anos e provavelmente no espaço de
uma, ou mesmo duas gerações. Mas, enfim, é o que posso apresentar.
Apesar de decepções e interrupções, o processo continua ou precisa
continuar em todas essas frentes. E este relato pode ajudar, espero, nessa
retomada.

Paciência de Jó, paciência chinesa


Vamos precisar de paciência. Não a de Jó, a cristã, a do mártir, a paciência
de quem aguarda passivamente a intervenção divina. Mas da paciência
chinesa, ativa e estratégica. A paciência que, como definiu Kafka, é uma
segunda coragem.
Vivi pouco mais de dois anos na China. E nos oito anos de Estados
Unidos interagi continuamente com diretores e delegados chineses no FMI,
no G-20 e nos BRICS. Creio ter aprendido um pouco sobre essa grande
nação – na verdade, uma civilização que, na era moderna, apenas finge ser
um Estado-nação, como observou um cientista político americano.1 A
China é quase outro planeta, diria, se o leitor permite o exagero retórico. Os
chineses, têm, por exemplo noção completamente diferente do tempo.
Civilização milenar, mentalidade correspondente. O olho no longo prazo é
traço recorrente da abordagem e atitudes chinesas em todos os temas. Nada
do curto prazismo, do imediatismo típicos do Ocidente, que têm sido tão
destrutivos e desagregadores. Ocidente do qual o Brasil, ainda que
relutante, participa como nação cultural.
Esse traço do chinês é até muito conhecido no resto do mundo. Há uma
observação do primeiro-ministro Chou Enlai, muito citada no Ocidente, que
reflete essa noção singular do tempo. Em certa ocasião, no início dos anos
1970, um jornalista estrangeiro lançou a pergunta: “Qual é, primeiro-
ministro, a sua avaliação da Revolução Francesa?” Chou Enlai respondeu:
“É cedo para dizer.” Quando estava na China, li que essa célebre resposta
foi um simples mal-entendido. Com os percalços de interpretação, Chou
Enlai entendeu, na verdade, que a pergunta se referia a maio de 1968!
Pronto. Criou-se a lenda.
Pena que tenha sido um mal-entendido. Seja como for, é indubitável que
para os chineses o tempo tem outra dimensão. Para uma civilização de
4.000 anos ou mais, uma década tem sabor de 15 minutos. Isso se reflete,
para dar exemplo de algo que vivenciei, na maneira como a China se
relaciona com o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), criado pelos
BRICS, um dos tópicos do capítulo 2 deste livro. Não se notava no
comportamento deles a busca de resultados ou vantagens rápidas, mas um
paciente trabalho para ajudar a construir, em Xangai, uma instituição
financeira global, sólida e profissional. Por isso, um dos grandes ativos do
NBD é estar sediado justamente na China e contar com o apoio sistemático
do país – não só do governo central em Beijing, mas também do governo
municipal de Xangai, como relato nos textos sobre o banco no segundo
capítulo.
A visão chinesa do tempo não é novidade, como disse. Menos
conhecida é a sua ligação com outro aspecto da mentalidade chinesa: a
visão completamente diferente, oposta mesmo, do papel e significado do
indivíduo. Somos, no Ocidente, profundamente apegados ao que se pode
chamar de “mito do indivíduo”, à supervalorização da pessoa individual. É
uma ilusão que, como tantas, tem raízes no romantismo. Com a cultura de
massas, e a massificação generalizada da vida, o véu dessa ilusão se torna
cada vez mais tênue. A pessoa, robotizada, continua se considerando um
indivíduo, com todas as prerrogativas e direitos do indivíduo, inclusive o de
ter e expressar opiniões que nem sequer tem, propriamente…
A China, que (até onde sei) nunca passou por nada comparável ao
romantismo, não sofre dessa ilusão. O indivíduo tem seu valor, sim, mas
circunscrito. O que importa, fundamentalmente, é o seu pertencimento a um
grupo maior – à família, não só ao grupo familiar nuclear, mas à família
ampliada, ao partido, à cidade, ao país, à civilização chinesa. Para eles, o
chinês individual é uma peça numa engrenagem maior, que se estende no
tempo e no espaço, pela imensidão da história e da geografia da China. Essa
concepção limitada do indivíduo, que o coloca por assim dizer no seu lugar,
a aceitação da sua transitoriedade e pertencimento a algo maior, é o que, em
última análise, viabiliza a paciência estratégica, o foco correspondente no
longo prazo. E cabe notar, aliás, que o pertencimento começa com a família.
Não por acaso, quando se apresenta ou assina, o chinês coloca em primeiro
lugar o sobrenome e depois o nome próprio.

Coerência como falta de imaginação


Espero, como todo autor, que o leitor tenha paciência com os defeitos e as
fraquezas do que estou colocando em circulação. O livro não saiu tão
desconjuntado, afinal, quanto se pode depreender do que disse até aqui.
Devo o que há de estrutura no livro, em parte, à ajuda e às sugestões
valiosas do meu editor, Rodrigo de Almeida, que leu e criticou versões
preliminares com olhar sempre agudo. Mas o que contribui, sobretudo, para
conferir unidade ao livro é uma virtude ligeiramente suspeita: a coerência
que é, segundo Oscar Wilde, a virtude dos que carecem de imaginação.
Paciência. Ninguém escapa a seu temperamento. E o temperamento, pelo
menos no meu caso, escapou ao efeito corrosivo do tempo.
Se não hesito em reivindicar a falta de imaginação como característica
pessoal, isso se deve, também, a uma intenção de induzir à aceitação dos
relatos que compõem este livro, de ressaltar que são fidedignos. O leitor
não encontrará aqui a capacidade de fabulação dos ficcionistas criativos,
claro, nem tampouco a inventividade fácil dos subliteratos, dos ideólogos
ou dos fabricantes de lendas. Tenho meus preconceitos e cacoetes, admito.
Puxo a brasa para a minha sardinha, como todo mundo, mesmo sem querer.
Mas procuro me ater aos fatos tal como inscritos na minha memória e nos
documentos. Quantas vezes tive que sacrificar pontos interessantes, frases
possivelmente bem formuladas ou de impacto, por verificar, depois, que
careciam de base factual e documental. Recorri também à memória e aos
arquivos de pessoas que trabalharam ou interagiram comigo no FMI e no
banco dos BRICS. Seja como for, não quero vender gato por lebre: a
memória e a pesquisa são sempre seletivas e, portanto, “viesadas” de uma
forma ou de outra.
Enfim, não posso me perder em digressões. Queria apenas frisar que
somos todos prisioneiros de preferências, impulsos e compulsões. E a isso
se chama estilo. Há os camaleônicos – os que conseguem encarnar espíritos
variados – e há os que têm marca registrada – que insistem em variações
sobre a mesma temática. Eu me incluo, para bem e para mal, no segundo
grupo.
Nacionalismo como fio condutor
A unidade do livro decorre em grande parte, portanto, da insistência em
alguns temas e teses. Mais do que insistência, teimosia ou obstinação. Entre
esses temas obsessivamente recorrentes, o principal, sem dúvida, é o Brasil.
E uma certa tendência a acreditar que o nosso país tem um valor muito
particular, muito especial – ainda que nós, brasileiros, nem sempre
estejamos à sua altura. Essa teimosia tem sido fonte de muita decepção,
como o leitor sem dúvida imagina. As vitórias do nacionalismo em nosso
país sempre foram episódicas. E a nossa atuação, sempre obstruída pela
poderosa quinta coluna, pelas forças enraizadas no nosso passado – de
colônia de Portugal e de economia baseada, em larga medida, desde o
começo e por quase quatro séculos, no trabalho escravo.
Hesito um pouco. Poderia agora ser mais brutal e lamentar, como muitas
gerações de brasileiros têm feito, a mediocridade e a venalidade das elites
domésticas, ou de grande parte delas. O termo “elite” talvez não seja nem o
mais apropriado, pois carrega conotação positiva que conviria evitar. Em
um célebre ensaio sobre o que ele chamou de “instinto de nacionalidade”,
Machado de Assis destacou que o país real é bom e revela os melhores
instintos, mas que o país oficial é “caricato e burlesco”.
Não quero, entretanto, reprisar essas queixas. Só não aceito a tendência,
muito comum entre nós, de insultar e estigmatizar o Brasil. Que culpa tem o
país, afinal, de ter elites ou camadas dirigentes que não chegam a seus pés?
O importante é não perder de vista a dimensão e o potencial do país.
Estamos entre os cinco países, não mais do que cinco, que figuram nas
listas dos dez maiores do mundo em termos de PIB, como de população e
território. Só os Estados Unidos e os quatro BRICs originais – Brasil,
Rússia, Índia e China – figuram nessas três listas. Temos, ademais, uma
população que se notabiliza pela criatividade, pela imaginação, pela alegria.
E ressalvados os períodos em que domina o obscurantismo, como o atual,
somos um celeiro de soft power, aceitos e recebidos com simpatia, mundo
afora. O nosso serviço diplomático, para dar apenas um exemplo, é
reconhecido em toda parte como um dos melhores do mundo. Quando a
nossa política interna se organiza minimamente, a ação internacional do
Brasil pode se fazer sentir nos quatro cantos do planeta. Foi o que vivenciei,
durante a maior parte do período em que trabalhei em Washington, como
conto no primeiro capítulo.

Obra de ficção?
O título do meu livro de 2000 era uma homenagem a Nelson Rodrigues. Foi
o mais bem-sucedido dos livros que publiquei, tendo chegado a três
edições. Parece-me, entretanto, que houve um ligeiro mal-entendido, que
terá contribuído para as vendas. É que o título, mero eco de A vida como ela
é… do grande cronista, fez crer que se tratava de obra didática, em que o
leitor não especializado encontraria, finalmente, um retrato da economia
como ela realmente é…
Involuntária propaganda enganosa. Só até determinado ponto, porém.
Os meus livros nunca foram didáticos, é certo. Mas procuro escrever de
forma acessível e sempre fui um adepto da busca das ideias claras. A escrita
hermética, contorcida pode ser um sinal de confusão no pensamento.
Sempre tive horror instintivo ao uso mistificador do jargão ou da linguagem
matemática, tendência comum em economia e outras disciplinas. Abusar
das palavras ou dos símbolos é o atalho para a estagnação do conhecimento.
O título deste livro também pode ser enganoso, mas em sentido
completamente diferente. A alguns pode parecer que é uma obra de ficção.
Nos tempos de Temer e, sobretudo neste início de governo Bolsonaro, o que
temos senão uma tentativa de reduzir o país à condição de quintal do
Grande Irmão do Norte? No caso do governo Bolsonaro, a tendência é mais
descarada, mais acintosa. E, por isso mesmo, já provoca reações crescentes.
As indignidades da política externa do atual governo recolocaram a defesa
da soberania nacional como questão não só central, mas urgente e
inadiável. De todos os cantos do país, começa uma marcha batida, uma
longa caminhada que resultará, ao fim, espero, na ejeção dessa lamentável
geração de entreguistas que empolgou o poder central desde 2016, a mais
recente leva de descendentes de Calabar e Joaquim Silvério dos Reis.
Percebo, de repente, que estou adotando um tom impróprio, de palanque
improvisado, que não condiz com a palavra escrita. Peço desculpas, leitor,
mas prefiro não cortar. A situação emergencial que vivemos permite
sacrificar a boa forma.
O árduo caminho da cabeça à página
O meu leitor-alvo continua sendo não só o economista e nem
principalmente o economista, mas antes o leigo inteligente, com interesses
variados e certo lastro cultural. Espero que não seja uma espécie em
extinção.
E, no entanto, ao contrário do que talvez pareça, escrevo com
dificuldade. Escrever, confesso, é frequentemente penoso. Em geral,
escrevo e reescrevo, muitas vezes. Tenho enorme dificuldade de começar.
Coloco-me diante do computador e vou buscando as palavras, o tom. O
caminho da cabeça à pena é tão mais longo e árduo – notava mesmo um
Kafka! – do que da cabeça à língua. Escreve-se para um ausente – um leitor
imaginário, possivelmente inexistente. Não temos o feedback corretor. Por
isso, para mim foi sempre indispensável combinar a escrita com a
interlocução presencial, em conferências, aulas, diálogos, debates. A
comunicação verbal alimenta a escrita e vice-versa. Não sou daqueles que
consegue, produtivamente, se isolar em uma torre de marfim qualquer,
trancar portas e desfiar tratados.
Tratados? Nem pensar. Não tenho inclinação nem capacidade para o
sistemático e nem fôlego para o texto longo. Espero que os ensaios mais
longos deste livro, os três que relatam os meus oito anos em Washington,
tenham ficado legíveis. Procurei escrever da forma mais leve possível,
mesmo sobre temas complexos, sem simplificar demais, porém, e sem
subestimar a inteligência do leitor. Na minha opinião, o texto deve ser curto,
de preferência. Quando tive que me estender um pouco mais, procurei
compensar com a segmentação do texto, lançando mão sempre que possível
de subtítulos provocativos ou instigantes, como faço nesta própria
apresentação.
O ideal seria escrever aforismos. Infelizmente, porém, são poucos os
que praticam com sucesso a forma breve. E, claro, pouquíssimos os que
podem reivindicar para si, como fez Nietzsche, em um dos seus (não tão
raros) momentos de imodéstia, a capacidade de dizer em poucas páginas o
que qualquer outro não dizia em um volume inteiro.

Vade retro, Conselheiro! E Descartes, também!


Sou da opinião de que todo escritor, mesmo (e talvez sobretudo) se for
também economista, precisa travar luta sem trégua contra o óbvio e o lugar
comum. Essa luta nem sempre será vitoriosa, mas cabe fazer o possível e o
impossível para não trilhar caminhos batidos e evitar homenagens ao
Conselheiro Acácio – aquele personagem do Eça de Queiroz que se
dedicava a proclamar o óbvio ululante. Bem sei que a sombra do
Conselheiro nos persegue, mas – convenhamos – quem quer ver um escritor
desfiar trivialidades? Por isso, temos que estar em permanente vigília contra
tal influência. Tanto mais que o Conselheiro – fato pouco conhecido – era
economista e, além do mais, autor de um tratado de economia política! Eça
era, sem dúvida, um homem de visão. Nos idos do século XIX, já detectou
um traço notável da tribo a que pertenço. Ludwig von Mises, um dos líderes
da escola austríaca de economia, chegou a sustentar, com certo exagero
polêmico, que a única parte sólida da economia era um conjunto articulado
de identidades e tautologias.2 Passaram-se mais ou menos cem anos desde
que essa provocação foi lançada, mas ela ainda permanece válida.
Vou mais longe. Devemos evitar, também, o celebrado senso comum. O
termo já é revelador. “Comum”, encontradiço – é o que mais rapidamente
conduz ao tédio – tédio contra o qual, dizia Nietzsche, até os deuses lutam
em vão. No Discurso do Método, Descartes toma como ponto de partida a
convicção de que o senso comum ou o bom senso, equiparado à
racionalidade, é o que há de mais bem distribuído entre os homens. E ainda
quer fazer dessa convicção, cuja fragilidade salta aos olhos, um alicerce na
busca do conhecimento seguro. Mesmo que se pudesse aceitá-la, caberia de
todo modo perguntar se a busca da segurança no conhecimento não é
ilusória e, mais importante, desinteressante, uma vez que pode desembocar
no enfadonho, no banal, no comum. Espero, leitor, não estar lhe oferecendo
nada disso. É um desafio e tanto. Nem sempre consegui ficar à sua altura.

Duas ressalvas, porém


Sinto que preciso fazer duas ressalvas. Primeira: a ambivalência e a
incerteza podem ser justificadas como valores do ângulo estético. Do
ângulo do conhecimento não cabe, claro, valorizá-las indiscriminadamente.
Reduzir a margem de incerteza é uma exigência pragmática para muitas
finalidades. É possível aumentar as chances de sucesso de ações práticas,
reduzindo previamente as margens de incerteza, por cálculos ou medidas de
precaução. Em suma, ninguém quer passar por uma ponte ambivalente
(hoje em dia, leitor, desculpe, é preciso explicar tudo…). Por outro lado,
ponto menos óbvio, a inevitabilidade da incerteza é um princípio há muito
reconhecido, até nas ciências da natureza, não mais referidas como “exatas”
– et pour cause.
Segunda ressalva: de Descartes há que se reter um atributo importante,
entre outros: a sua enfática preferência pelas “ideias claras e distintas”.
Espero que ela se reflita em todos os cantos deste livro. Já mencionei esse
ponto, procurando distinguir clareza de didatismo. Curioso é notar, observo
en passant, como muitos acadêmicos franceses, na áreas de humanas,
deixaram de ser cartesianos nesse ponto tão importante, dedicando-se a
cultuar, desde o século passado, em muitas disciplinas, inclusive na
economia, o palavrório obscuro, o jargão supérfluo, em busca de uma
aparência de sofisticação acadêmica, que esconde, não raro, a indigência ou
fragilidade das ideias subjacentes. No campo da economia anglo-americana,
esse mesmo papel vem sendo desempenhado há mais de meio século por
modelos abstratos, pelo uso mistificador da matemática no plano teórico e
da econometria no plano empírico. Tanto num caso como no outro,
deturpam-se instrumentos científicos que são legítimos e até indispensáveis
– jargão especializado no primeiro, formalização matemática e técnicas
estatísticas, no segundo – para converter a atividade acadêmica e a busca do
progresso científico no seu contrário: a mistificação e a geração de
obstáculos ao progresso e à difusão do conhecimento.
A abrangência temática do livro ajuda, espero, a espantar o tédio.
Sempre existe, por outro lado, o risco de cair no diletantismo, de abordar
questões complexas de forma superficial, turística, por assim dizer. Sempre
preferi correr esse risco a aceitar as limitações ao conhecimento que
derivam, inevitavelmente, da divisão do trabalho acadêmico. Essa divisão
tem as suas razões de ser, sem a menor dúvida. Só que, levada à risca, ela
impede de fazer pontes entre áreas diferentes do conhecimento e de tratar
como conjunto o que existe como conjunto no mundo real. Nada existe fora
do todo – falsa tautologia, que não deve ser esquecida. Segmentar é dissecar
e, em última análise, matar. Nada vive fora do todo.

Nacionalismo como herança – herança como destino


O nacionalismo perpassa praticamente o livro inteiro, mas é tema específico
do terceiro capítulo, onde é tratado em diferentes registros. Essa ideologia
ou sentimento foi a força motriz de toda a minha atividade profissional.
Escrevi “toda”, e acrescentei ênfase. Não há exagero. Foi assim mesmo,
desde os primórdios. Mas reconheço que é uma aposta insensata para quem
vive e trabalha em um país como o Brasil.
Não foi uma escolha, porém, mas sim uma herança. Nem sei se existem
escolhas, realmente. Dizia Maurice Barrès, esplêndido porta-voz do
nacionalismo francês, a quem dedico uma crônica neste livro, que somos
essencialmente o prolongamento dos nossos antepassados. Os mortos vivem
em nós, falam por nosso intermédio. Existe em cada um de nós, por assim
dizer, um determinismo da terra e dos mortos. E é nela e neles que
encontramos o nosso élan vital.
O nacionalismo é herança pelos lados materno e paterno. Sou, por assim
dizer, um nacionalista de quatro costados. Minha mãe é neta de João
Pinheiro, um dos líderes da República Velha, e sobrinha de Israel Pinheiro,
criador da Vale do Rio Doce e construtor de Brasília. Ambos foram
governadores de Minas Gerais, palco da Inconfidência Mineira. A família
Pinheiro era aliada próxima de Juscelino Kubitschek e João Pinheiro foi
uma das suas fontes de inspiração.
Meu pai, que morreu em 1994, exatamente com a idade que tenho hoje,
aparece volta e meia neste livro. Ele foi diplomata de carreira e um dos
grandes líderes do nacionalismo no Itamaraty, tanto no plano prático como
no plano doutrinário. Deixou um longo ensaio, escrito pouco antes da sua
morte, que é citado até hoje e merece realmente ser lido: “O consenso de
Washington: a visão neoliberal dos problemas latino-americanos”.3 Sua
presença se faz sentir particularmente nos dois primeiros capítulos quando
relato a minha experiência no FMI, no G20 e nos BRICS. Dele recebi
muitas oportunidades, ensinamentos e incentivos, mas também um mandato
nem sempre fácil de carregar – a defesa do interesse nacional, algo que
deveria ser patrimônio comum de todos nós, mas que muitos brasileiros
desconsideram por completo. Nesse ambiente, o preço que se paga é o
isolamento profissional e político. Mais importante, entretanto, é que ele me
deixou duas espadas – a do espírito crítico e a do espírito de combate,
espadas de que tenho me valido desde o começo, sem cessar.
Demorou até que encontrasse palavras para tratar do nacionalismo.
Nietzsche sustentava que só encontramos palavras para aquilo que já
superamos. Pode bem ser. Mas não acredito. Escrevo sobre o nacionalismo,
mas não o ultrapassei, nem desejo fazê-lo. Não é possível abandonar o
nacionalismo sem cair no vazio, num sem-número de ilusões sobre
“humanidade”, “comunidade internacional”, “cidadania global” – ficções
perigosas para países vulneráveis, que ainda buscam firmar a sua
independência.
Antigamente, costumava-se dizer, ecoando Samuel Johnson, que “o
patriotismo é o último refúgio dos canalhas”. Hoje, com muito mais razão,
poderíamos dizer que canalhas e patifes de diferentes naipes se refugiam na
condição de “cidadãos do mundo”, reivindicando-a sempre que lhes
convém. Citizen of the world, citizen of nowhere, dizia Theresa May, a ex-
primeira ministra do Reino Unido. Solavanco? Condição ideal para as elites
que escapam, por meio de artifícios variados, da tributação e da regulação
nacionais, sem, entretanto, abrir mão de correr para baixo das saias do seu
Estado nacional quando se veem ameaçados em seus interesses particulares
em qualquer lugar do planeta.
O nacionalismo é uma ideologia problemática, até perigosa. Não há
como negar. No primeiro ensaio do capítulo sobre o assunto, discuto
brevemente as ambivalências e armadilhas da história do nacionalismo.
Mas não vamos fazer disso um cavalo de batalha, como tentam os ideólogos
da “cidadania mundial”. Tudo que é humano sofre de ambivalência. Todas
as grandes ideologias têm o seu lado escuro, duvidoso, nefasto. O
liberalismo e o socialismo não fogem à regra. O socialismo pode
desembocar no stalinismo. O liberalismo, no fundamentalismo de mercado,
associado não raro a regimes ditatoriais. E o nacionalismo já desembocou
no fascismo e no nazismo e, em anos recentes, deu lugar a movimentos bem
lamentáveis dos dois lados do Atlântico Norte.
E, no entanto, a ideologia é inescapável. Vou mais longe: é um erro, e
erro até meio primário, vê-la apenas como estorvo, como algo a ser
assepticamente evitado, já que ela tem um outro lado, positivo, propulsor do
conhecimento, inclusive científico, e da ação política. Schumpeter, um dos
maiores economistas do século XX, dizia essencialmente a mesma coisa ao
frisar a importância que tem para o desenvolvimento do pensamento
econômico, e da ciência em geral, o que ele denominava “visão” – um ato
cognitivo pré-analítico, ideológico quase por definição, que fornece a
matéria-prima para o esforço analítico.4
Ideologias, em suma, podem ser instrumentos valiosos. A afirmativa
não deve surpreender. O que é a ideologia senão uma das muitas formas que
toma a paixão. E, sem paixão, dizia Hegel, nada se fez de grande na história
– nem na teoria, nem na prática. Assim, o nacionalismo, determinada forma
de nacionalismo, com traços bem brasileiros, é indispensável para o sucesso
do país. A elite brasileira, ou parte dela, não consegue provavelmente viver
com isso e, se essa visão prevalecer, pode preferir “votar com os pés”,
transmudando-se para Miami ou Portugal. Não farão grande falta.

Romantismo cético?
Nacionalistas são, via de regra, românticos incorrigíveis, inclusive este
que vos fala. Vinda de um economista com experiência como pesquisador e
professor, além de passagens pelo governo e por órgão internacionais, a
afirmação pode soar estranha, talvez espalhafatosa. À primeira vista,
romantismo parece não combinar bem com economia e atividade pública.
Costuma ser execrado pelos acadêmicos e científicos como “ideologia” e
pelos pragmáticos e realistas como “messianismo”. Antônio Carlos
Magalhães, o realista par excellence da política brasileira de outros tempos,
costumava estigmatizar o ministro da Fazenda Dilson Funaro, à boca
pequena, no auge do Plano Cruzado, como “messiânico”. Eu trabalhava na
época com Funaro e não me escapava o peso que essa designação
carregava.
Na esfera pública, deve-se admitir, o romântico pode ser especialmente
perigoso. Um caso extremo de romântico extraviado na política foi Hitler,
com os efeitos que se viu. Hitler ecoava, no fundo, o romantismo de todo
um povo e sem isso não teria chegado aonde chegou. O romantismo na sua
trajetória acidentada de 200 anos, nasceu na Alemanha, nela chegou a seu
auge e suas expressões mais instigantes e nela, também, produziu o seu
maior desastre.
De qualquer maneira, não vamos exagerar na advertência. Em favor dos
românticos, diga-se que os grandes problemas não podem ser resolvidos
pelos realistas, que tendem ao conformismo, à rotina. Estes são excelentes
na administração do dia a dia, mas nunca estão à altura das situações-
limites. São os românticos que entram em ação nas emergências. Foi Joana
d’Arc e não o ardiloso Carlos VII quem salvou a França. Sem ela, Carlos
nem teria sido coroado, morreria o delfim que Joana encontrou. O que eram
Churchill e De Gaulle, para lembrar outros exemplos, senão românticos?
Não apenas isso, certamente: também eram, em igual medida, frios,
calculistas, racionais. Contudo, o que os destacava da maioria dos políticos
era o fato de serem visceralmente românticos. De Gaulle, não por acaso, era
devoto de Joanna d’Arc, a quem homenageia lindamente em célebre
passagem das suas memórias de guerra. Sem a emergência provocada pelo
surgimento de um romantismo sinistro na Alemanha, Churchill e de Gaulle
jamais teriam sido chamados à liderança de seus países. De Gaulle teria
feito brilhante carreira militar e ponto final. Churchill terminaria a vida
como político inconfiável e colecionador de fracassos. Os britânicos,
sintomaticamente, despacharam o herói de guerra para casa, na primeira
eleição depois da vitória na Segunda Guerra. Assim como os franceses
prenderam e condenaram Joana d’Arc à morte, quando a emergência havia
sido superada, graças a ela em grande medida. Como costuma acontecer aos
heróis, ela se tornara um estorvo para a administração da normalidade.
Tudo isso é muito discutível, claro. Estou pegando, sem querer, uma
Paris-Tóquio. O que queria registrar aqui é algo mais limitado, mais
pessoal. O romantismo de que sou capaz é hesitante, meio capenga. Sou, ao
mesmo tempo, e em contradição com o espírito romântico, eminentemente
cético. Nunca se viu, que eu saiba, um projeto de romantismo cético que
tivesse sido bem-sucedido. A contradição é flagrante demais para não ter
efeito paralisante. Um romantismo assim é talvez mais matéria de sonho do
que de ação prática.
Mesmo assim, parece-me importante que o impulso romântico seja
controlado, em boa medida, pela cautela cética. Os referidos perigos do
romantismo resultam, em última análise, dos riscos de tentar ultrapassar
prematuramente o horizonte do iluminismo. Não estamos ainda em
condições de fazê-lo. Os inúmeros seguidores vulgares de Nietzsche,
inclusive vários nacional-socialistas, que se julgavam “além do bem e do
mal”, ficaram, como vimos, muito aquém do bem e do mal. Thomas Mann,
que foi, até o fim da vida e apesar de tudo, ao mesmo tempo nietzschiano e
wagneriano, se debateu com essa e outras questões correlatas ao reavaliar,
em 1947, a obra de Nietzsche no ensaio A filosofia de Nietzsche à luz da
nossa experiência – vale dizer, à luz de Hitler. Sobre todo o romantismo
tardio, sobre Wagner ainda mais nitidamente do que sobre Nietzsche, Hitler
lançou uma sombra sepulcral, forçando, quer se queira quer não, uma
reconsideração geral da crítica ao iluminismo. Para um nietzschiano como
Mann, essa reconsideração pode ser particularmente difícil de empreender
em profundidade, pois o iluminismo é, em certas modalidades, uma vertente
tardia do cristianismo, uma espécie de secularização do cristianismo. E, no
entanto, o século XX não mostrou a que abismos soltar as amarras do
cristianismo e da moral cristã pode nos levar?

Raízes românticas do nacionalismo


Essas considerações sobre românticos e realistas, romantismo e iluminismo
podem parecer, repito, duvidosas, até arbitrárias. Mas as raízes românticas
do nacionalismo são inegáveis – na Europa do século XIX e no Brasil dos
tempos da independência, por exemplo. No primeiro ensaio do capítulo
dedicado ao tema, digo que o nacionalismo não é um humanismo. Pode-se
dizer, igualmente, que o nacionalismo é um romantismo. Essencialmente,
porque é um particularismo, que se opõe – consciente e expressamente – ao
universalismo iluminista. Em uma fórmula: Herder contra Voltaire. Na
Alemanha da segunda metade do século XVIII, a insurreição romântica
remonta à obra de Johann Gottfried Herder, crítico pioneiro das
generalizações dos enciclopedistas. Defendendo os elementos não racionais
e as particularidades nacionais contra as pretensões globalizantes do
racionalismo francês, o pensador alemão tomava partido da diversidade
contra a uniformização a que tendiam os franceses.5 Os românticos, ab
initio, se colocam em oposição ao que para eles são falsas luzes, projeções e
quimeras da razão arrogante e desgovernada.
A célebre gravura de Goya, El sueño de la razón produce monstros, no
apagar das luzes do século XVIII, encerra uma ambiguidade, talvez
involuntária, que decorre de em espanhol “sueño” significar “sono” e
“sonho”. É a razão adormecida, incauta, que abre espaço para monstros? Ou
a razão sonhadora que os produz? Para a reação romântica são os sonhos
iluministas que geram monstruosidades, no limite os excessos do
jacobinismo e do terror. E romântica foi a reação nacionalista, em diferentes
partes da Europa, à Revolução Francesa e, em especial, ao imperialismo da
França napoleônica – inclusive na Espanha de Goya e nas suas gravuras
posteriores sobre a resistência espanhola.
Ao conectar-se a instintos profundos, o romantismo ganhou intensidade
e amplitude fenomenal em todo o século XIX, desaguando nos
nacionalismos em Estados nacionais pré-existentes, como França e
Inglaterra, e servindo de fermento para os nacionalismos que conduziram à
criação de novos Estados nacionais, como Itália e Alemanha. E a Fernando
Pessoa/Bernardo Soares de reconhecer, no Livro do desassossego:

A maior acusação ao romantismo não se fez ainda: é a de que ele representa a verdade
interior da natureza humana. Os seus exageros, os seus ridículos, os seus poderes vários
de comover e de seduzir, residem em que ele é a figuração exterior do que há mais dentro
na alma, mas concreto, visualizado, até possível, se o ser possível dependesse de outra
coisa que não o Destino.

O nacionalismo brasileiro tem que buscar raízes no nacionalismo


messiânico português, no Portugal das Grandes Navegações, nas
navegações que deram origem ao próprio Brasil. Uma das crônicas do
terceiro capítulo deste livro trata, não por acaso, do nacionalismo de
Fernando Pessoa.

Agonia do nacionalismo brasileiro, maldição do


gradualismo
Paro e releio o que escrevi. Percebo que preciso baixar um pouco a bola. É
que, no Brasil, o nacionalismo sempre foi uma proposta difícil, como já
adverti. Mais do que isso: sempre teve um caráter agônico. Uma das raízes
dessa agonia é óbvia, e talvez seja a principal. Não há nacionalismo sem
inclusão social e distribuição de renda. Nação sem povo é contradição em
termos.
Ora, o que sempre tivemos em nosso país é exatamente isso: os
símbolos da nação ou da pátria – sem a substância correspondente. Os
nacionalistas brasileiros estão continuamente às voltas com uma guerra
mortal contra a nossa pesadíssima herança histórica – herança ao mesmo
tempo colonial e escravista.
Ao longo da nossa história, as rupturas com essa tradição foram
parciais, incompletas – a Independência negociada com Portugal, a forma
como se deu a abolição da escravatura, a proclamação da República como
quartelada, a Revolução de 1930, o varguismo e o trabalhismo, Juscelino
Kubitschek, Ernesto Geisel e a distensão política lenta e segura, Lula e o
PT. Todas essas mudanças e evoluções da história brasileira foram
relativamente pacíficas e graduais, marcadas por tendência à conciliação
que, se nos poupava de sofrimento e de sangue, garantia de alguma forma a
continuação do velho dentro do novo. O sangue não corria, mas a história
também não. Ficava como que travada, obstruída por detritos variados,
marcas indeléveis do espírito colonial e do regime escravocrata.
Como resultado, a combinação deletéria que nos acompanha
persistentemente é a de uma camada dirigente subalterna para fora e
autoritária para dentro com um povo eminentemente pacífico, humilde e
excessivamente passivo.

Política econômica nacionalista


Esta apresentação – já um pouco longa, em contradição com a declarada
preferência pela brevidade – procura explicitar os fios condutores e as
ligações, não raro implícitas e pouco claras, entre os diferentes capítulos do
livro. Vale mencionar, ainda, que o nacionalismo do capítulo 3, além de
lastrear a minha vivência no exterior, relatada nos dois capítulos iniciais,
também serve de fio condutor à discussão da economia brasileira no
capítulo 4. Este abre com uma tentativa de delinear os aspectos centrais do
que poderia ser, nos dias de hoje, uma macroeconomia de inspiração
nacionalista, para recapitular nos textos seguintes alguns aspectos
polêmicos da economia política brasileira. Economia política, como nos
pensadores clássicos até Mill e Marx, e não economia ou economics,
designação que prevalece depois de Walras e Marshall. A razão para insistir
no nome antigo, aparentemente anacrônico, da nossa disciplina era
ressaltada por Celso Furtado que dizia nunca ter sido apresentado a um
problema econômico que não fosse, ao mesmo tempo, um problema
político.
Furtado, um dos originadores do desenvolvimentismo latino-americano,
é homenageado em uma das crônicas do capítulo 5. Passando os olhos pelos
perfis escolhidos para inclusão neste capítulo, o leitor encontrará um grupo
muito heterogêneo, que inclui economistas, políticos e artistas – brasileiros
e estrangeiros. Heterogêneo, mas não aleatório. Além de Furtado, o outro
economista incluído é John Kenneth Galbraith, brilhante defensor no século
XX das tradições da economia política clássica em meio à hegemonia do
equilíbrio geral e do marginalismo neoclássicos. Os políticos do capítulo
são Getúlio, Juscelino, Brizola e Lula, principais expoentes da tradição
nacional-desenvolvimentista brasileira, ainda que o último tenha começado
de outra forma e com outras intenções para só na Presidência da República
revelar com mais clareza a sua proximidade com essa tradição. Entre os
artistas, destacam-se Nelson Rodrigues – expoente do nacionalismo na
literatura brasileira, que aparece como contraste na crônica sobre Otto Lara
Resende – e o já mencionado Maurice Barrès, um dos grandes
representantes literários do nacionalismo francês.
O capítulo seguinte inclui crônicas escritas no espírito de Galbraith, que
considerava o humor uma ferramenta indispensável para o economista, uma
vez que grande parte do comportamento econômico, dizia ele, é
“infinitamente ridículo”. Um dos meus alvos prediletos nessas crônicas é a
tenebrosa turma da bufunfa, o poderoso grupo de financistas e plutocratas
que adquiriu tanta proeminência no mundo contemporâneo. Risível, em
especial, é o papel dos economistas bufunfeiros, os bem remunerados e fiéis
serviçais da tenebrosa. Os que se vendem são legião, pois a oferta é ampla
quando a remuneração é polpuda. Muitos desses economistas sempre foram
medianos, mas mesmo os mais inteligentes acabam reduzidos à
mediocridade, cedo ou tarde. A aplicação contínua da mente à acumulação
de dinheiro e à defesa dos interesses dos endinheirados produz perda
contínua de massa cinzenta. Depois de algum tempo, o jovem e promissor
economista fica totalmente irreconhecível – um mero soldadinho de
chumbo, perfeitamente intercambiável com os demais porta-vozes da
bufunfa. Só não o obriguem a debater frente a frente com uma economista
livre, pois isso seria uma inominável covardia.
Em outras crônicas do capítulo final, tratei de temas mais pessoais,
expressando em algumas delas emoções suscitadas pela vida em
Washington e pelas dificuldades no FMI. O livro fecha com uma pequena
homenagem à criatividade, à arte e aos artistas; e encaixa também uma
referência às montanhas da minha cidade natal, o Rio de Janeiro. Este
último artigo é dedicado à minha mulher, Lia, que fez, aliás, uma série de
observações sobre os textos do livro que tratam da minha vivência em
Washington e Xangai, vivências que foram também dela, em certa medida –
ela que me acompanhou grande parte desse tempo no exterior e a quem
sempre recorria para troca de ideias e aconselhamento.

Brasil corre perigo mortal


Caminho agora para encerrar esta apresentação. Nesses dez anos no
exterior, passei por momentos difíceis, angustiantes, muitos deles relatados
neste livro. Em muitas ocasiões, buscava socorro, não em orações, como os
religiosos, mas na arte – daí as homenagens a ela, na verdade
agradecimentos, em alguns textos dos capítulos finais. Lembrava-me, por
exemplo, do pequeno poema “Mar Português”, de Fernando Pessoa, cuja
estrofe central se desgastou de tanto que foi citada: “Valeu a pena? Tudo
vale a pena/Se a alma não é pequena.”
Tudo vale: o pranto das mães, dos órfãos, das noivas viúvas – todas as
lágrimas que salgaram o Atlântico: “Ó mar salgado”, começa o poema,
“quanto do teu sal/São lágrimas de Portugal!/Por te cruzarmos, quantas
mães choraram,/Quantos filhos em vão rezaram!/Quantas noivas ficaram
por casar/ Para que fosses nosso, ó mar!”
Só a alma grande abarca, supera e justifica todas essas perdas e todos
esses sofrimentos. No final, o poema como que decola: “Quem quer passar
além do Bojador/Tem que passar além da dor./Deus ao mar o perigo e o
abismo deu,/Mas nele é que espelhou o céu.”
Porém, a bem da verdade, nenhuma das dificuldades por que passei no
exterior se compara ao sofrimento que foi para mim, assim como para os
brasileiros que pensam e sentem como eu, o que se passou no país no fim
de 2018 e no início de 2019. Que Brasil foi esse que, confrontado com a
disjuntiva civilização ou barbárie, preferiu a segunda? Um Brasil,
certamente real, mas que nós nos recusávamos a enxergar. Ilusões perdidas!
As eleições de 2018, e não só as presidenciais, abriram as porteiras para um
Brasil primitivo, ignorante e ressentido. E colocaram no poder um governo
que, dando sequência às políticas de Temer, e radicalizando-as, pratica um
entreguismo quase sem disfarces, agora amparado pelo voto. A
subserviência das políticas econômica e externa do governo brasileiro se
torna tão chocante, tão explícita que a reação a ela deveria ser rápida e
fulminante.
Tudo se passa, leitor, como se o país tivesse sido derrotado em uma
guerra, e fosse agora governado por sátrapas, por meros prepostos de
interesses estrangeiros. O estranho, contudo, é que não houve guerra, não
houve resistência. Lembra a França de 1940, invadida e ocupada pela
Alemanha numa campanha que foi quase um passeio. É a pior forma de
derrota, a derrota sem resistência, inglória. Churchill, que liderou a
resistência bem-sucedida do Reino Unido, disse a respeito, no mesmo ano
de 1940, para inflamar os seus compatriotas: “Nations that go down
fighting rise again, but those who surrender tamely are finished.” (Nações
que sucumbem lutando, voltam a se erguer, mas aquelas que se rendem
mansamente estão liquidadas.)
Por certo ângulo, a situação do Brasil em 2019 é pior do que a da
França em 1940. Havia na decisão do desconhecido coronel Charles de
Gaulle de continuar a resistência, quando todos os escalões mais altos das
forças armadas francesas e a quase totalidade do país havia se rendido, um
elemento de romantismo, como mencionei antes, mas mesclado a um
cálculo realista de que a França Livre, que ele criara e capitaneava, não
estava sozinha no mundo. Não quero ser dramático, mas cabe a advertência
sinistra: se o Brasil sucumbir à atual onda de entreguismo, não haverá um
Churchill do outro lado do Canal da Mancha, nem um Roosevelt, do outro
lado do Atlântico Norte, para nos ajudar a recuperar a independência
nacional.
Portanto, a luta é agora. E não poderá ser delegada a ninguém. As
oposições brasileiras têm apoios e simpatias em diversos países; reina a
perplexidade em muitos setores com a degeneração do Brasil. Mas é
ilusório contar principalmente com apoio externo para superar nossos
desafios internos. Os outros têm a sua vida e os seus problemas. Não terão
grandes sobras para apoiar-nos na solução dos nossos.
Exortações têm sempre um sabor artificial, declamatório, retórico no
mau sentido. Peço desculpas por isso. Mas como não lançar mão desse
recurso já gasto na situação emergencial em que se encontra o Brasil? Não
exagero, leitor, se disser que o nosso país corre um risco mortal.
E a verdade é que este relato, fragmentário, descosturado, tem um olho
no futuro, na esperança de que o Brasil encontrará, sem grande demora, o
caminho do desenvolvimento, com justiça social, democracia,
independência. Na esperança, fundada na experiência, de que a nossa voz se
fará ouvir de novo em todos os cantos do mundo, e mais forte, em defesa de
valores humanos que o brasileiro, talvez como ninguém, tem condições de
vivenciar e transmitir: a doçura, a versatilidade, a criatividade, a
imaginação, a alegria de viver.
Este livro é dedicado, por motivos que terão ficado claros ao leitor desta
apresentação, a meu pai, Paulo Nogueira Batista, in memoriam, e à minha
mãe, Elmira Helena Pinheiro Nogueira Batista.

Florianópolis, junho de 2019.

1 Lucian Pye, citado em Henry Kissinger. On China. Nova York: Penguin Books, 2012, p. 11.
2 Josef Steindl. “Reflections on the present state of Economics”. In J.A. Kregel (org.). Recollections
of Eminent Economists, vol. I, Londres: MacMillan Press, 1988, p. 97.
3 Publicado em Barbosa Lima Sobrinho et alii. Em defesa do interesse nacional: desinformação e
alienação do patrimônio público. São Paulo: Paz & Terra, 1994, p. 99-144. Foi republicado junto
com várias outras obras escritas por ele em livro organizado por mim e editado pelo Itamaraty, por
iniciativa do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães: Paulo Nogueira Batista Jr. (org.). Paulo
Nogueira Batista: pensando o Brasil – ensaios e palestras. Brasília: Fundação Alexandre Gusmão,
2009.
4 Ver, por exemplo, Joseph A. Schumpeter. History of Economic Analysis. Nova York: Oxford
University Press, 1954, p. 41-4.
5 Johann Gottfried Herder. Another Philosophy of History and Selected Political Writings, 1ª edição:
1774. Indianapolis: Hackett Publishing Company, 2004. Uma discussão instigante da obra de Herder
e do seu contexto histórico pode ser encontrada em vários escritos de Isaiah Berlin, entre eles: The
Roots of Romanticism. Princeton: Princeton University Press, 1999, p. 46-67.
CAPÍTULO 1

Reforma da arquitetura financeira mundial:


FMI e G20
G20 E FMI DEPOIS DA CRISE
INTERNACIONAL1

A crise internacional de 2008-2009, iniciada nos sistemas financeiros


dos Estados Unidos e da Europa, teve impacto devastador sobre a maioria
dos principais países avançados. Praticamente todas as áreas da economia
foram abaladas – os bancos, os níveis de atividade e de emprego, as
políticas monetárias, as políticas fiscais, as doutrinas econômicas. Os
países emergentes também sofreram com a crise, mas vários se
recuperaram rapidamente, entre eles o Brasil.
No auge da crise, fiz uma apresentação em um seminário na Câmara
dos Deputados sobre seu significado para a reforma da arquitetura
financeira internacional e, em especial, para o Brasil. Na época, eu era
integrante da Diretoria Executiva do FMI, posto privilegiado de
observação do desenrolar da crise e seus impactos na economia mundial.
Como integrava também as delegações brasileiras às reuniões do G20 e
dos BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China),2 estava em condições de relatar
em primeira mão como a crise levara a mudanças na governança
internacional e no papel dos principais países emergentes. O texto a seguir
é a transcrição da minha apresentação.

A grave crise internacional de 2008-2009 teve efeitos importantes sobre


a governança global, as instituições financeiras internacionais e a
posição do Brasil. Ela afetou a arquitetura financeira mundial, em especial o
G20, que passou a desempenhar papel muito mais significativo. Como
sempre acontece em situações de emergência, o FMI adquiriu uma
centralidade que não costuma ter em períodos de calmaria, e a questão da
reforma da instituição entrou com força na agenda internacional. Esses são
os temas que vou abordar nesta apresentação.
Como a crise teve origem em alguns dos principais países
desenvolvidos – nos Estados Unidos e na Europa –, ela sacudiu as
estruturas mundiais de poder, as estruturas de governança e as ideologias
econômicas predominantes. Houve forte abalo nas convicções, percepções e
organizações, como não se via desde a Grande Depressão da década de
1930.
Um exemplo marcante das mudanças desencadeadas pela crise
internacional é o papel que vem desempenhando, desde o fim de 2008, o
Grupo dos 20, formado por 19 países e a União Europeia. O G20 inclui
países desenvolvidos e países emergentes ou em desenvolvimento. O Brasil
é um deles. Também a China, a Rússia, a Índia, a África do Sul, a Arábia
Saudita, a Indonésia, a Turquia, a Coreia do Sul, a Argentina e o México.
Do lado dos países desenvolvidos, o G20 inclui todos os integrantes do
Grupo dos 7 – Estados Unidos, os grandes países europeus, o Japão e o
Canadá –, além da Austrália. Antes da crise, o G20 era um foro meio
dormente, que havia sido criado em 1999, por iniciativa do governo
Clinton. Em teoria, era um foro de ministros de Finanças e presidentes de
Banco Central, mas na prática era essencialmente um grupo de secretários
de ministérios e diretores da área internacional dos bancos centrais. Com a
crise, houve a decisão de transformar o G20 em instância central. Virou um
foro de líderes, de chefes de Estado e de governo, que passaram a se reunir
no formato G20. Isso começou no fim do governo Bush, em 2008.
Um foro basicamente burocrático/técnico passou a ter caráter político.
O Brasil teve certo papel nessa transformação. O governo Lula jogou seu
peso na direção de transformar o G20 no foro principal. Porém, o mais
significativo foi a percepção dos Estados Unidos de que a magnitude da
crise exigia medidas que transcendiam o alcance do G7. Era preciso operar
num grupo que incluísse os principais países de economia emergente.
A partir do fim de 2008, o G20 passou a funcionar efetivamente como
principal mecanismo de coordenação para assuntos econômicos
internacionais em substituição ao G7, algo importante para o Brasil. Esse
caráter de principal foro de cooperação foi reconhecido formalmente na
reunião de líderes do G20, em Pittsburgh, nos Estados Unidos, em 2009.
Foi formalizado como tal no comunicado final da reunião, mas isso já vinha
acontecendo na prática, como disse, desde o fim do ano anterior. Pela
primeira vez em nossa história, o Brasil está presente naquele que é o
principal foro de cooperação econômica internacional.
Outro ponto importante: o G20 funciona por consenso. Ou seja,
teoricamente, um país sozinho pode opor-se a uma deliberação que os
outros 19 queiram tomar. Na prática, é difícil fazer isso isoladamente. Mas,
se um país tem alguma capacidade de articulação, ele pode reunir minoria
significativa diante de qualquer deliberação que lhe seja frontalmente
contrária.
Em resumo, estamos em outro mundo, bem diferente daquele em que o
G7 dava as cartas, fixava a agenda internacional e definia os parâmetros
para a atuação de organismos como o Fundo Monetário Internacional e o
Banco Mundial. Esse papel passou a ser exercido pelo G20.
A crise de 2008-2009 apressou mudanças que ocorreriam de qualquer
maneira. O peso dos países de economia emergente já vinha crescendo. A
participação dos países em desenvolvimento e de economia emergente no
PIB mundial, calculada com base em paridade de poder de compra, vem
aumentando rapidamente. No ano 2000, era da ordem de 40%. Dez anos
depois, alcançou a marca de 50%. E a tendência é que continue crescendo.
Por ter atingido fortemente os países desenvolvidos, a crise acelerou o
processo. Os países em desenvolvimento sofreram também, mas o impacto
foi menor e a recuperação começou mais cedo. A China já decolou de novo.
A Índia está em rápida expansão. O Brasil também voltou a crescer.
Esse quadro abriu a oportunidade de reformar as principais instituições
financeiras internacionais. No esforço de alcançar esse objetivo, um fator
tem sido crucial para o Brasil: a aliança com a China, a Índia e a Rússia,
como vou tentar explicar mais à frente. Isso não significa que não temos e
não faremos outras alianças. Temos as nossas alianças sul-americanas, que
também funcionam, em alguma medida, no âmbito do Fundo Monetário
Internacional e do G20. Com os Estados Unidos, em muitos pontos, temos
interesses convergentes. Há campo comum com o Japão, também, em
várias questões. Onde temos mais dificuldades é com a Europa.
Estou me referindo à área financeira internacional, ao Fundo Monetário
Internacional, ao Banco Mundial e ao G20. Nessa área, os nossos principais
pontos de conflito costumam ser com os europeus. Os brasileiros
geralmente não sabem disso. É que os europeus são bons de marketing. Os
brasileiros imaginam que eles são muito progressistas, muito esclarecidos.
A realidade é outra. A Europa é um continente ainda muito importante, mas
envelheceu. Ela continua agarrada a posições e privilégios que refletem o
peso que tinha em outros tempos. Isso é o que se vê no Fundo Monetário
Internacional e no Banco Mundial. A Europa está em posição
eminentemente defensiva. Ela é a principal força de preservação do status
quo nas entidades financeiras internacionais sediadas em Washington.
O Fundo Monetário Internacional é uma instituição ainda muito
desequilibrada em termos de distribuição de votos e poder decisório. Um
exemplo: a União Europeia tem quase um terço dos votos no Fundo
Monetário, embora responda por um pouco mais de 20% do PIB mundial.
Uma das tarefas que temos pela frente é reduzir a participação europeia,
abrindo espaço para os países de economia emergente. Não se pode dizer
que todos os desenvolvidos estão super-representados no FMI, quando se
toma por parâmetro o tamanho relativo das economias. Não é verdade, por
exemplo, que o Japão esteja sobrerrepresentado. Também não é o caso dos
Estados Unidos. O poder de voto desses dois países está mais ou menos em
linha com o seu peso na economia mundial. Onde há uma super-
representação, a meu ver muito clara, é no caso europeu.
Precisamos então abrir espaço para os países de economia emergente no
Fundo Monetário Internacional. Os Estados Unidos e o Japão compreendem
isso, mas os europeus resistem enormemente.
A resistência europeia é compreensível. Os europeus são os que têm
mais a perder com a reforma. Não é só em termos de poder de voto que eles
estão super-representados. Há também um número excessivo de diretores
executivos europeus. Eles têm cerca de um terço das 24 cadeiras da
Diretoria do FMI. Numa das cadeiras latino-americanas, a Espanha gira
com o México e a Venezuela no comando; quando a Espanha comanda,
chega a nove o número de cadeiras lideradas por diretores europeus. No
FMI, ainda não conseguimos devolver a Espanha para a Europa. E há ainda
outro ponto, mais importante: desde o início da história da instituição, por
uma regra não escrita, o cargo mais alto, o de diretor-gerente do FMI, é
sempre ocupado por um europeu.
A aliança BRICs tem sido importante no esforço de buscar a reforma
das instituições financeiras internacionais, como já mencionei. Afirma-se
com frequência que o agrupamento BRICs é artificial. A sigla, como se
sabe, foi criada por um economista de um banco de investimentos, o
Goldman Sachs. Pergunta-se: o que o Brasil tem a ver com a Rússia, a
Índia, a China? As diferenças históricas, culturais, étnicas, políticas são
enormes, não há dúvida. Mas há um ponto crucial em comum. O que
diferencia os BRICs dos demais países emergentes, no meu modo de ver, é
que os quatro países têm capacidade de atuar de forma independente. Brasil,
Rússia, Índia e China são países de grande dimensão territorial,
populacional e econômica. E mais: estão atuando de forma coordenada. Por
exemplo, no Fundo Monetário, temos uma articulação permanente das
quatro cadeiras na Diretoria Executiva – a cadeira comandada pelo Brasil
está em contato contínuo com as da Rússia, da China e da Índia. Em muitos
temas da pauta do FMI, atuamos em conjunto e definimos posições comuns.
Os ministros de Finanças dos BRICs se reúnem periodicamente, à
margem das reuniões do G20 e do FMI. Um dado curioso merece ser
mencionado. Já aconteceu duas vezes algo que seria impensável há algum
tempo: o secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Timothy Geithner,
pediu para comparecer à reunião dos BRICs, um reconhecimento de que os
Estados Unidos têm que dialogar com os BRICs em conjunto. Esses
pedidos refletem, evidentemente, não apenas a importância dos BRICs, mas
também a vulnerabilidade dos EUA em razão da sua crise financeira.
Dou mais um exemplo da atuação conjunta dos BRICs. Um dos
principais temas da reunião dos líderes do G20, em Pittsburgh, em setembro
de 2009, foi a mudança na estrutura de votos e quotas do Fundo Monetário
Internacional. O Brasil, a Rússia, a Índia, a China e outros países
emergentes, contando com certo apoio dos Estados Unidos, estão
empenhados em aumentar a sua participação e influência no FMI. A
questão entrou na pauta do G20 e do Fundo Monetário Internacional.
Processo semelhante está ocorrendo no Banco Mundial.
Em Pittsburgh, aconteceu algo inusitado. Os delegados tinham a sua
primeira reunião numa quarta-feira. Os líderes do G20 iriam se encontrar na
sexta-feira. Na quarta-feira, o que se viu foi um impasse total sobre a
questão da reforma do FMI. Os europeus não se moviam um milímetro. Os
americanos, que eram os anfitriões e estavam muito interessados em
apresentar resultados, procuraram os delegados do Brasil, da Índia e da
China e se ofereceram para fazer uma mediação com os europeus para
chegar a algum entendimento. Nós aceitamos, mas insistimos na inclusão
da Rússia.
Estabeleceu-se então a seguinte situação: os delegados dos BRICs
ficaram numa sala, os europeus noutra, e os delegados americanos iam de
uma sala para a outra! Isso durou umas seis ou sete horas até que se chegou
a uma formulação aceitável para os dois lados. Os americanos iam e
vinham, traziam novas propostas e versões de textos. Nós discutíamos entre
nós e telefonávamos para os ministros de Finanças, fazendo as devidas
consultas. O resultado foi um acordo que prevê a transferência de pelo
menos cinco pontos percentuais de quotas para os países dinâmicos,
emergentes e em desenvolvimento. A redação ficou ambígua. Os europeus
deram a sua interpretação, nós demos a nossa, e a luta continua. Mas pelo
menos chegamos a um número, a um mínimo que vai servir de parâmetro
para a reforma do FMI.
O processo de mudança do Fundo já tinha começado, mesmo antes da
fase mais grave da crise internacional. No início de 2008, conseguimos uma
redistribuição de votos, que deslocou cerca de 2,7 pontos percentuais para
países em desenvolvimento. Foi um primeiro passo. O Brasil foi um dos
principais beneficiários dessa reforma, concluída em abril do mesmo ano.
Com os entendimentos no âmbito do G20, abre-se a perspectiva de uma
nova e mais significativa rodada de revisão das quotas e do poder de voto.
Um comentário final sobre o Brasil. Quando a crise se agravou com o
colapso de importantes instituições financeiras nos Estados Unidos, em
setembro e outubro de 2008, eu não poderia imaginar que o Brasil
atravessasse tão bem a turbulência. Surpreendeu-me a nossa capacidade de
resistir. Passamos por uma recessão com dois trimestres consecutivos de
queda do PIB. Não foi fácil. Mas o fato é que o Brasil enfrentou bem os
choques externos, e foi um dos primeiros a sair da crise.
É notável, realmente extraordinário. Não poderia imaginar, quando me
mudei para Washington, em 2007, que ocorreria a maior crise financeira e
econômica desde a Grande Depressão dos anos 1930, e que o Brasil não só
não teria problemas de balanço de pagamentos, como emprestaria recursos
ao Fundo Monetário Internacional! Quem diria? Estamos negociando os
detalhes finais dessa operação, que vai colocar até US$ 10 bilhões de
reservas brasileiras em depósitos no Fundo Monetário Internacional por
meio da compra de títulos emitidos pela instituição.
Somos devedores natos, hereditários, até inadimplentes! Nunca pensei
que o Brasil seria credor do Fundo Monetário Internacional. Evidentemente,
isso reforça muito a nossa posição. É mais fácil hoje ser representante do
Brasil no Fundo do que quando chegávamos lá pedindo empréstimos. E isso
não foi há muito tempo.
A empolgação em relação ao Brasil no exterior é impressionante. Desde
que cheguei a Washington, notei que há uma discrepância acentuada entre a
avaliação preponderantemente negativa que o brasileiro tem de si mesmo e
do país, o famoso complexo de vira-lata, e a imagem muito positiva que o
Brasil tem lá fora. E o fato de o Brasil ter atravessado bem a crise reforçou
ainda mais o prestígio brasileiro no exterior. A capa da revista The
Economist desta semana traz o Cristo Redentor decolando. O nosso risco é
a famosa húbris. A grande vantagem que o Brasil tem em relação a esse
risco, o excesso de autoconfiança que gera o desastre, é que ainda existem
resquícios importantes do complexo de vira-lata, o que serve para
contrabalançar. Até que enfim o complexo de vira-lata vai servir para
alguma coisa!
Temos que ter cuidado, estamos bem, mas não estamos com essa bola
toda. Os avanços no campo internacional podem não ser duradouros. O G20
pode perder ímpeto. É um foro muito informal, o que dá margem à
manipulação. A reforma do Fundo também pode perder força à medida que
a crise internacional vá se resolvendo. E o Brasil tem que levar em conta a
possibilidade de que o próprio país já esteja virando uma espécie de bolha.
Podem-se formar bolhas no mercado acionário e no mercado cambial,
provocando excessiva valorização cambial.
Temos que ter políticas de promoção da competitividade internacional,
políticas industriais e políticas para minorar, controlar a apreciação cambial.
É importante continuar com políticas macroeconômicas prudentes,
disciplina fiscal e políticas monetárias de controle da inflação. Não
podemos permitir que desequilíbrios no balanço de pagamentos em conta
corrente voltem a aparecer de maneira significativa, tornando-nos
dependentes de capitais externos. Precisamos manter uma estrutura de
regulamentação prudencial e de controle sobre os fluxos de capital, além de
acumular reservas adicionais em ativos de liquidez internacional. As
reservas brasileiras estão crescendo, mas creio que reservas adicionais nos
fariam bem.
A situação mundial não é segura. A crise está arrefecendo, mas não
sabemos o que acontecerá. Novas temporadas de turbulência podem nos
atingir; e reservas internacionais altas, balanço de pagamentos equilibrado,
políticas fiscais e monetárias prudentes, câmbio razoavelmente competitivo
e políticas voltadas para a competitividade são indispensáveis para que o
Brasil prospere e tenha um papel cada vez mais significativo no mundo.

1Apresentação na Câmara dos Deputados, em 17 de novembro de 2009, no Seminário Internacional


Possíveis Desdobramentos da Crise Financeira Internacional, promovido pela Comissão de
Finanças e Tributação em conjunto com a Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e
Comércio. Transcrição da gravação, revista pelo autor.
2 A África do Sul só passaria a integrar o grupo mais tarde, em 2011. Para o período 2008-2010, vale
assim a sigla BRICs. Com a entrada da África do Sul, passou a ser adotada a sigla BRICS.
FMI E CONTROLE DE CAPITAIS1

A crise financeira internacional de 2008-2009 levou, como não poderia


deixar de acontecer, ao questionamento das políticas econômicas
adotadas até então. Isso afetou diversos campos da economia, incluindo, é
claro, a regulação e supervisão do sistema financeiro. A preferência anterior
pela regulação moderada e a fé nas qualidades autocorretivas dos mercados
foram substituídas por uma ênfase renovada no papel dos governos e
bancos centrais na prevenção de excessos especulativos e do acúmulo de
riscos.
Uma parte importante desse questionamento é, ou deveria ser, a
regulação dos fluxos internacionais de capital. Antes da crise, a
liberalização da conta de capital do balanço de pagamentos era
praticamente um artigo de fé em alguns círculos. O caráter benéfico da livre
movimentação de capitais era aceito sem grandes reservas por muitos países
e organizações internacionais. Controles sobre os movimentos de capital
eram estigmatizados.
Isso mudou até certo ponto. No entanto, como observou o economista
colombiano José Antonio Ocampo, há uma estranha dicotomia no
pensamento dominante pós-crise. A necessidade de regulação e supervisão
vigorosas é amplamente reconhecida – e como não poderia ser depois do
que aconteceu nos sistemas financeiros dos Estados Unidos e da Europa?
Curiosamente, esse reconhecimento não se estende na mesma medida à
regulação dos fluxos internacionais de capital. Como Ocampo advertiu, as
operações financeiras internacionais receberam atenção bem menor, como
se não demandassem regulação – ou como se não fossem parte do sistema
financeiro.2 Retornarei a esse ponto quando abordar a natureza hesitante da
mudança de curso do FMI rumo à aceitação da regulação dos movimentos
de capital.
A abordagem padrão
Antes da eclosão da crise em 2008, a abordagem padrão recomendada aos
países afetados por grandes influxos de capitais envolvia basicamente dois
aspectos: ajuste fiscal e apreciação da taxa de câmbio. Além disso, sugeria-
se que as restrições às saídas de capital fossem flexibilizadas. Essa era a
mensagem que os países recebiam do FMI, por exemplo. Nada muito além
disso. Até mesmo o acúmulo de reservas internacionais era visto com maus
olhos.
O Brasil, por exemplo, começou a acumular reservas seriamente a partir
de 2006. Isso nos beneficiaria durante a crise internacional. No entanto, em
consultas anuais ao abrigo do Artigo IV, a equipe do FMI alertava o Brasil
para o crescimento supostamente excessivo das reservas.
Mesmo no período pré-crise, a insuficiência da abordagem padrão –
deixar o câmbio subir e ajustar a política fiscal – estava relativamente clara.
As economias emergentes tinham larga experiência com os perigos da
sobrevalorização cambial. Uma moeda persistentemente forte comprometia
a competitividade internacional da economia e podia levar a déficits de
conta corrente perigosamente altos. A inversão súbita dos fluxos de capital
– uma ocorrência frequente – forçava economias a se submeterem a
dolorosos ajustes. Na América Latina, talvez mais do que na maioria das
outras regiões, ciclos de expansão/recessão impulsionados por movimentos
internacionais de capital eram um fenômeno recorrente.
A política fiscal não estava bem posicionada para responder
adequadamente a grandes movimentos de capital volátil. Em tese, os ajustes
fiscais possibilitariam políticas monetárias mais frouxas, diminuindo assim
a atratividade dos ativos financeiros domésticos para os investidores
estrangeiros. Na prática, a política fiscal é lenta, um instrumento pesado
demais para ser utilizado contra fluxos de capital velozes e imprevisíveis,
estando sempre sujeita a limitações políticas e dependendo em larga medida
de decisões parlamentares. É preciso também não perder de vista que a
política fiscal tem outros objetivos, e parece não fazer muito sentido atrelá-
la aos humores oscilantes dos investidores internacionais.
Além disso, como já observado por diversos analistas, há o que
poderíamos chamar de “o paradoxo dos fundamentos econômicos sólidos”.
Os ajustes fiscais, ao levarem a uma melhora nas contas públicas e nos
fundamentos fiscais, podem fortalecer a confiança e atrair fluxos de capital
estrangeiro adicionais.
Remover as restrições às saídas de capital pode ajudar, em alguma
medida, a atenuar as pressões de alta no câmbio, caso os residentes
aproveitem a oportunidade para investir fora do país. Mas pode também
aumentar a vulnerabilidade externa no futuro ao facilitar a fuga de capitais
em momentos de incerteza e crise.

A eclosão da crise
A deficiência da abordagem padrão se tornou óbvia com a eclosão da crise.
A onda de liquidez produzida pelas políticas monetárias expansionistas dos
bancos centrais emissores de moedas de reserva – adotada primeira e
principalmente pela Reserva Federal dos EUA, mas também pelo Banco
Central Europeu e pelos bancos centrais do Japão e da Inglaterra –
contribuiu para criar problemas formidáveis para os mercados emergentes.
As economias emergentes sofreram menos com a crise internacional e se
recuperaram mais rapidamente – um fator que reforçou sua atratividade
para os investidores internacionais. Os diferenciais de taxas de juro e de
crescimento econômico entre os mercados emergentes e as economias
avançadas geraram grandes fluxos de capital das últimas para os primeiros.
Para além desses fatores cíclicos, parece ter ocorrido uma reavaliação
dos riscos internacionais em favor dos mercados emergentes, isto é, uma
realocação de portfólios que pode levar a um aumento mais duradouro da
oferta de capitais. Isso tem seu lado positivo, é claro, mas muitos países
emergentes terão de lidar com um embarras de richesses.
Já se falou da “maldição dos recursos naturais”. Poderia se falar,
igualmente, da “maldição da superabundância de fluxos de capitais”. Uma
das piores coisas que pode acontecer a um país é cair nas graças dos
mercados internacionais de capital.
A crise nas economias avançadas, especialmente na zona do euro,
mostrou, mais uma vez, que as entradas de capital podem ser uma faca de
dois gumes. Mudanças na disponibilidade de empréstimos e investimentos
externos podem acontecer rapidamente, e de maneira imprevisível. Se o
país receptor das entradas de capital estiver despreparado, essas reviravoltas
repentinas podem causar grandes danos à economia e ao sistema financeiro,
a exemplo do que se viu nos casos da Grécia, da Irlanda e de Portugal.
Ainda é muito difundida a avaliação de que os fluxos de capital são
benéficos para os países que os recebem. Essa visão não é de todo errônea;
pode-se construir um argumento plausível em sua defesa. Mas o mínimo
que se pode dizer é que ela não se coaduna com a experiência recente e
remota. Muitas economias foram desestabilizadas – em alguns casos,
literalmente destruídas – pela liberalização imprudente das contas de
capital, pelos aumentos súbitos na entrada de capitais e por sua posterior
reversão. Fora da zona do euro, alguns países emergentes do Leste Europeu
também foram fortemente atingidos; a Romênia e a Letônia, por exemplo.
A Islândia foi outro caso chocante.
Um aspecto nem sempre devidamente considerado nas discussões da
crise na zona do euro é o papel desempenhado pelo ciclo de
expansão/recessão associado ao livre movimento de capitais. As entradas
abundantes de capital possibilitaram políticas fiscais pró-cíclicas, rápido
crescimento do crédito e elevados déficits de conta corrente na periferia da
zona do euro, assim como na Islândia e em economias emergentes no Leste
Europeu. A inversão aguda dos fluxos depois da crise de 2008 forçou essas
economias a se submeterem a penosos processos de ajuste. Com o passar do
tempo, provavelmente nos daremos conta de que políticas de gestão das
contas de capital podem ser necessárias não apenas em mercados
emergentes, mas também para economias avançadas.

A necessidade de regular os movimentos de capital


Os responsáveis pela política econômica em países emergentes estão cientes
dos riscos associados aos movimentos de capital. As experiências dolorosas
do passado estão vivas na sua memória, o que os faz relutar a expor a
economia aos perigos do endividamento externo e dos fluxos instáveis de
capital. Ainda existe, por certo, a tentação de aproveitar os tempos de
bonança, na esperança de que “desta vez será diferente”. Mesmo assim,
muitos países vêm adotando em períodos de abundância medidas para
coibir as entradas de capital ou para salvaguardar a economia dos riscos que
elas trazem. A tarefa, como sabemos, está longe de ser simples.
O acúmulo de reservas internacionais é uma alternativa. Para muitas
economias emergentes, esse tem sido um mecanismo extremamente
importante de autoproteção contra choques externos. No entanto, acumular
reservas tem suas desvantagens. Em primeiro lugar, os custos podem ser
substanciais, especialmente quando existem elevados diferenciais de taxas
de juro. Quando são baixas as taxas de juro nos países emissores de moedas
de reserva, como aconteceu após a crise de 2008, a remuneração das
reservas diminui. As taxas de juro nos países em desenvolvimento tendem a
ser maiores. Se as intervenções esterilizadas não conseguem evitar a
apreciação da moeda nacional, o custo de carregar reservas tende a ser
pesado. Esse foi o caso do Brasil, onde as taxas de juro são
persistentemente muito elevadas.
Além disso, o acúmulo de reservas internacionais é mais um exemplo
do paradoxo dos fundamentos econômicos sólidos: reservas elevadas
aumentam a percepção de que o país é seguro, e isso atrai novas entradas de
capital.
A conclusão parece inescapável: as políticas macroeconômicas – fiscal,
monetária, cambial, de acúmulo de reservas – não bastam. Há
reconhecimento crescente de que seria sensato por parte dos países
abençoados ou amaldiçoados com superabundância de capitais
internacionais recorrer a medidas macroprudenciais e controles de capital.
Para evitar o estigma atrelado ao termo “controles de capital”, o FMI
passou a utilizar a expressão “medidas de fluxo de capital” (capital flow
measures), que engloba tanto medidas macroprudenciais quanto controles
de capital.

Discussões no FMI e no G20 sobre a regulação dos


movimentos de capital
Em 2010, o FMI reconheceu tardiamente que os controles de capital e as
medidas macroprudenciais são “parte da caixa de ferramentas” da política
econômica. Foi um passo bem-vindo. A cadeira brasileira na Diretoria
Executiva do FMI vinha solicitando repetidamente que fosse reconsiderada
a relutância da instituição em aceitar que a simples combinação de ajuste
fiscal com flexibilidade cambial não resolvia os problemas de países
inundados por entradas de capital.
O reconhecimento do FMI ainda é um tanto quanto hesitante. Por
exemplo, a regulação dos movimentos de capital é vista como um último
recurso, a ser usado depois que já se tentou de tudo. Ela é apresentada como
possível complemento, e não como substituto para “políticas
macroeconômicas sólidas”. Controles de capital são considerados
instrumentos temporários, uma vez que podem ser contornados ou evitados,
perdendo efetividade com o passar do tempo. Ao mesmo tempo, e
contradizendo o argumento anterior, exagera-se a importância de possíveis
externalidades ou spillovers dos controles de capitais.
Nenhuma dessas qualificações parece convincente. Por exemplo, as
medidas macroprudenciais e os controles de capital, quando adotados numa
fase relativamente precoce, preferivelmente em combinação com outras
medidas como o aumento das reservas internacionais, podem evitar o
acúmulo de problemas cuja resolução se torna cada vez mais difícil.
Instrumentos que podem ser acionados rapidamente, tais como medidas e
controles prudenciais, são cruciais para evitar o aguçamento de
vulnerabilidades.
Até mesmo no staff do FMI não há consenso sobre essas questões.
Como observou, o economista-chefe do Fundo, Olivier Blanchard, ao
resumir uma conferência sobre fluxos de capital no Rio de Janeiro,
“deveríamos nos afastar de sequenciamentos rígidos de políticas rígidas e
caminhar em direção a uma abordagem mais fluida de utilização ‘de muitas
ou da maioria das ferramentas a maior parte do tempo’ em vez de ‘agora
esta, depois aquela’”. Blanchard também observou que evidências
apresentadas na conferência do Rio sugeriam que os spillovers entre países
receptores de fluxos de capital não são muito significativos.3
No que tange à efetividade, as experiências do Brasil e de outros países
parecem demonstrar que as medidas prudenciais e os controles de capital
podem, no mínimo, moderar a apreciação cambial, alongar o perfil dos
passivos externos e melhorar a composição das entradas de capital. O staff
do FMI tende a apoiar essa conclusão em estudos sobre experiências
nacionais.
Apesar da falta de consenso e de conhecimento robusto sobre diversas
questões, o FMI acabou oficializando uma “visão institucional” sobre
fluxos de capital em 2012. Isso ajuda os países emergentes de alguma
forma? Diria que não muito. Pode até acabar sendo contraproducente. Sob o
pretexto de permitir os controles de capital em algumas circunstâncias
específicas, é possível que o Fundo esteja buscando expandir sua jurisdição
para incluir a conta de capital do balanço de pagamentos.
Sob o Estatuto ou Convênio Constitutivo do FMI, os Articles of
Agreement, os países-membros não têm nenhuma obrigação de liberalizar a
conta de capital. Do ponto de vista jurídico, eles gozam de total liberdade
para regular os movimentos de capitais. Isso não se aplica a países que
abriram mão dessa liberdade, parcial ou totalmente, por serem membros da
OCDE, da zona do euro ou por terem assinado acordos bilaterais de
investimento ou de livre comércio com os Estados Unidos. Excetuados
esses casos, os países-membros são completamente livres, sob o Artigo VI
do Convênio Constitutivo, para adotar controles de capital. Esse artigo
postula que os “membros podem exercer os controles que forem necessários
para regular os movimentos internacionais de capital”. Sob certas
circunstâncias, o Fundo pode até requerer que os países adotem controles
para evitar o uso dos recursos da instituição para financiar a fuga de
capitais. Foi exatamente isso que aconteceu no caso da Islândia, um país
fortemente atingido pelo impacto da crise internacional sobre seu inflado
setor financeiro. A Islândia solicitou assistência financeira ao Fundo, e os
controles sobre as saídas de capital se tornaram parte importante do
programa do FMI para o país.
Alguns países desenvolvidos têm apelado ao Fundo para que estabeleça
códigos de conduta ou diretrizes para a gestão dos fluxos de capital. O
presidente da França, Nicolas Sarkozy, foi especialmente franco sobre esse
assunto ao lançar o programa para o mandato francês no G20 e no G8, em
janeiro de 2011. Ele pediu a implantação, pelo G20, de um código de
conduta e criticou a “multiplicação de medidas unilaterais” afetando o
movimento de capitais.4 O presidente Sarkozy retomou o assunto, usando
termos ainda mais fortes, na abertura de um fórum do G20 na China, em
março do mesmo ano:

Um código de boa conduta, diretrizes fortes e uma estrutura comum que regulem a
possibilidade de implementar os controles de capital quando necessários devem definir as
condições sob as quais as restrições aos movimentos de capitais são legítimas, efetivas e
apropriadas em uma dada situação. Se concordarmos com essas regras, senhoras e
senhores, será uma grande evolução na doutrina do FMI em benefício dos países
emergentes, que sofrem com a excessiva volatilidade dos movimentos de capitais. É
razoável, hoje, dado o crescente impacto dos movimentos de capitais, que o FMI possa
emitir recomendações para um país apenas no que diz respeito a seu balanço de
pagamentos em conta corrente e não à conta de capital? Gostaria que alguém me
explicasse por que uma recomendação é legítima e a outra, ilegítima. Expandir a
supervisão do FMI para incluir esses aspectos me parece crucial. No longo prazo, a
França – e estou dizendo isso agora – é favorável a uma modificação no Convênio
Constitutivo do FMI para ampliar sua autoridade de supervisão. Sim, se decidirmos por
mais coordenação, mais regras e mais supervisão, então precisamos decidir qual
organização é responsável por impor tais regras e conduzir essa supervisão. Para a França,
está claro. É o FMI.5

A cadeira brasileira na Diretoria do Fundo e a nossa representação no


G20 têm sido bastante críticas dessas tentativas de estabelecer um “código
de conduta” para a gestão dos movimentos de capital. O debate perdeu parte
de sua força ao longo de 2011. O tempo vem mostrando que o foco do FMI
e de alguns países desenvolvidos em diretrizes ou mesmo em um “código
de conduta” para os países receptores de capitais é questionável. Nessa
discussão, entre outros problemas, pouca atenção foi dada aos fatores
“impulsionadores”, os push factors, às políticas monetárias e financeiras
nos principais países desenvolvidos que deram origem a fluxos de capital
volumosos e, por vezes, prejudiciais. Enquanto o FMI e o G20
desperdiçavam tempo precioso no debate sobre um “código de conduta”
para os emergentes, a crise reemergiu nos países desenvolvidos,
especialmente na zona do euro, em consequência de níveis de
endividamento insustentáveis, sistemas bancários frágeis e, ironicamente,
dos efeitos do colapso de um ciclo de expansão de crédito impulsionado por
influxos de capital externo.
Em todo esse período, a cadeira brasileira na Diretoria do FMI
argumentou que seria inadequado e politicamente insustentável tentar usar o
poder de voto desequilibrado do Fundo, que dá peso excessivo aos
desenvolvidos, para impor as agendas desses países a países em
desenvolvimento que não estão dispostos a aceitar quaisquer restrições à
liberdade de gerir suas contas de capital.
Há uma ironia adicional aqui. Alguns dos países que estão no epicentro
da pior crise desde a Grande Depressão da década de 1930, e ainda não
resolveram seus próprios problemas, parecem ansiosos em promover a
adoção de códigos de conduta para o resto do mundo, incluindo países
emergentes que se defrontam com a superabundância de liquidez gerada
pelas políticas monetárias daqueles mesmos países. É tentador dizer:
ponham suas próprias casas em ordem antes de doutrinar novamente os
outros países. É muito cedo para esquecer que a onda doutrinadora anterior
dos países desenvolvidos – desregular, liberalizar, confiar nos mercados etc.
– terminou em lágrimas para eles e para os países em desenvolvimento que
seguiram esse credo.

Keynes e White
Assegurar movimentos livres de capitais não era parte das atribuições
originais do FMI. O Artigo VI do Convênio Constitutivo sempre existiu,
desde o começo. Tentativas equivocadas de alterar ou suprimir esse artigo
no fim dos anos 1990 não tiveram resultado. Na época, a cadeira brasileira
no FMI estava entre as que se opunham à tentativa de estabelecer a
liberalização das contas de capital como obrigação.
Aqueles que conhecem a história do FMI sabem que os principais
fundadores da instituição, John Maynard Keynes e Harry Dexter White,
tinham aprendido com a aguda instabilidade causada pelo laissez-faire com
relação aos movimentos internacionais de capital no período entre as duas
Guerras Mundiais. Keynes explicou, à época da criação do Fundo, que os
países-membros teriam “o direito explícito de controlar todos os
movimentos de capital”.6 Cada país pôde escolher entre manter todas as
transações livres ou adotar controles. Se um país escolhesse a segunda
alternativa, Keynes acreditava que deveria ficar a critério de cada um
“descobrir seus próprios métodos”.7
Keynes e White estavam certos. Desde a crise internacional em 2008, o
pêndulo novamente oscilou do laissez-faire em direção ao reconhecimento
de que a forte regulação e a supervisão das atividades financeiras são
indispensáveis para o funcionamento estável e eficiente de uma economia
de mercado. Os movimentos de capitais não fogem à regra.

1 Tradução, revista pelo autor, de texto publicado originalmente sob o título “The IMF, capital
account regulation, and emerging market economies”, em Boston University, Regulating Global
Capital Flows for Long-run Development, Pardee Center Task Force Report, Boston, 2012.
2 José Antonio Ocampo. Reforming the International Monetary System. United Nations University,
World Institute for Development Economics Research, 2011.
3 Olivier Blanchard. What I Learnt in Rio: Discussing Ways to Manage Capital Flows, resumo da
conferência sobre Gestão da Entrada de Capitais nos Mercados Emergentes, organizada pelo
Ministério da Fazenda do Brasil e pelo Fundo Monetário Internacional, Rio de Janeiro, maio de 2011.
4 Nicolas Sarkozy. Lancement de la Présidence Française du G20 e du G8. Palais de l’Élysée,
janeiro de 2011.
5 Id. Address by the president of the French Republic. Abertura do Seminário do G20 sobre a
Reforma do Sistema Monetário Internacional, Nanjing, China, março de 2011.
6 John Maynard Keynes. The Collected Writings of John Maynard Keynes, Volume XXVI, Activities,
1941-1946. Shaping the Post-War World: Bretton Woods and Reparations. Londres: MacMillan &
Cambridge University Press, 1980, p. 17.
7 Id. The Collected Writings of John Maynard Keynes, Volume XXV, Activities, 1940-1944. Shaping
the Post-War World: The Clearing Union. Londres: MacMillan & Cambridge University Press, 1980,
p. 325.
UM NACIONALISTA NO FMI: A ESTRUTURA
DA INSTITUIÇÃO E O PAPEL DO BRASIL1

Entre 2007 e 2015, fui diretor executivo pelo Brasil e diversos outros
países no Fundo Monetário Internacional, em Washington, D.C. O texto
que se segue e os dois subsequentes são baseados na minha experiência
nesse período, principalmente no FMI, mas também como delegado
brasileiro nas reuniões do G20 e dos BRICS. O primeiro texto trata,
sobretudo, da estrutura e funções da instituição, do papel do Brasil e da
minha fase inicial na Diretoria Executiva.

1. Indicação controversa
Quando fui indicado para o cargo de diretor executivo no FMI, em fevereiro
de 2007, houve alguma agitação na imprensa brasileira. Nos principais
jornais, a reação foi preponderantemente negativa. “Mais uma decisão
equivocada do governo Lula”, dizia-se. “Como é possível indicar para o
cargo um crítico do FMI?”, perguntava-se com certa indignação. Era
verdade, eu estava realmente entre os críticos da instituição e havia
publicado diversos trabalhos acadêmicos e artigos na imprensa, desde a
década de 1980, em que fazia reparos à sua governança e atuação. Além
disso, fizera parte da delegação brasileira que teve negociações tensas e sem
resultado com o FMI em 1985, no início do governo Sarney.2 E, mais
importante, fora um dos artífices da moratória unilateral de 1987 que,
embora não tenha atingido as dívidas do Brasil com organismos
multilaterais como o FMI ou o Banco Mundial, não era nada bem-vista em
Washington, por suposto. O pior de tudo, acredito, é que nunca renegara
essa decisão polêmica. Não sou contra a autocrítica, claro, mas tenho por
outro lado sempre presente a advertência irônica de Nietzsche de que não
devemos abandonar nossos atos à própria sorte.
Respondi na época às críticas essencialmente da seguinte maneira:
estava indo para Washington não para trabalhar pelo FMI, tal qual se
apresentava, mas para tentar contribuir para mudá-lo. Frisei, em particular,
que aceitara representar o Brasil e outros oito países na Diretoria Executiva
da instituição, mas que trabalharia no e não para o FMI. Entretanto, essa
linha de argumentação, que segui em artigos e entrevistas, não estava
inteiramente correta.
A verdade é que, embora tivesse estudado a instituição e até tido contato
direto com ela entre 1985 e 1987, como representante do governo brasileiro,
eu não a conhecia tão bem quanto imaginava. Uma coisa aprendi nos mais
de oito anos em que ficaria no FMI: é muito difícil, talvez impossível,
realmente conhecer uma instituição desse tipo, entender como ela funciona,
sem passar por lá, sem ter a vivência da instituição. Notei que muitos
pesquisadores e estudiosos, mesmo renomados, se equivocavam
repetidamente quando escreviam e opinavam sobre o FMI, especialmente
quando se aventuravam no terreno das recomendações. Havia exceções
notáveis, entre elas, por exemplo, José Antonio Ocampo, o jornalista
especializado em assuntos do FMI, Paul Blustein e, no Brasil, Fernando
Cardim de Carvalho. Mas, de uma maneira geral, as contribuições externas
para a análise e a reforma do FMI deixavam a desejar.
No começo, foram muito importantes as informações e orientações que
recebi dos meus dois antecessores no cargo: Eduardo Loyo, a quem
substituí, e Murilo Portugal, que fora diretor executivo por quase sete anos,
imediatamente antes de Loyo. O primeiro fez uma passagem de serviço
cuidadosa e profissional, e continuou me ajudando com a maior boa
vontade depois do retorno ao Brasil. Murilo Portugal ocupava, quando
cheguei a Washington, o cargo de vice-diretor-gerente na Administração do
FMI; para conversar com ele bastava descer um andar. Murilo era ligado
aos tucanos, ocupara posições importantes na Fazenda no período Malan,
chegara a ser vice-ministro de Antonio Palocci e seria depois presidente da
Febraban. Com essa trajetória, desnecessário dizer que era muito
conservador; ele temia provavelmente que um economista nacionalista, e
mais à esquerda, pudesse derrapar e comprometer as tradições da cadeira
brasileira na Diretoria do FMI. Fez então o possível para me orientar e
catequizar; não absorvi a catequese, mas não posso negar que aprendi muito
com ele, tirando partido da sua longa experiência na instituição.
Graças a Murilo e Loyo, logo compreendi que o papel do diretor
executivo do FMI era mais complexo do que a esmagadora maioria dos
outsiders imaginam. O seu papel é duplo, na verdade. Por um lado,
representa um ou mais países na instituição. Por outro, tem
responsabilidade fiduciária por ela, isto é, obrigação de zelar pela
instituição e seus interesses. Em outras palavras, e contrariamente ao que eu
dissera ao rebater as críticas à minha indicação, eu iria trabalhar, sim, para
o FMI e não apenas no FMI representando o Brasil e outros países.
A função de diretor executivo no FMI (e o mesmo vale para o Banco
Mundial) é, assim, essencialmente diferente da de embaixador na ONU ou
na Organização Mundial do Comércio (OMC), por exemplo. O nosso
embaixador na ONU é funcionário do governo brasileiro; o diretor
executivo é funcionário do FMI. Na ONU ou na OMC, o embaixador lança
o voto do país; no FMI, o diretor vota como pessoa. Ao longo dos mais de
oito anos em que ocupei o cargo, sempre procurei corrigir – sem muito
sucesso – a tendência da mídia brasileira a me apresentar como
“representante brasileiro no FMI”, designação incompleta, pois não levava
em conta o fato de eu representar outros oito (mais tarde, dez) países e,
mais importante, ignorava toda uma dimensão essencial do trabalho da
Diretoria, que é cuidar dos interesses da instituição. Onde reside o interesse
da instituição em cada situação particular nem sempre é fácil de identificar,
o que frequentemente dá margem a divergências e debates. Em todo o caso,
a obrigação existe e é parte essencial do trabalho dos diretores.
Esses dois lados do trabalho do diretor executivo nem sempre são fáceis
de conciliar, podendo haver conflito, em determinadas situações, entre
representar um país e zelar pela instituição. Pude verificar que os diretores
de países desenvolvidos, com raras exceções, não hesitavam em sacrificar o
interesse da instituição quando este contradizia de forma flagrante o
interesse nacional do país ou países que representava. Outros, os mexicanos
e outros latino-americanos por exemplo, procuravam exercer um papel de
mediação entre o FMI e os países da sua cadeira. O meu mais importante
antecessor, Alexandre Kafka, figura lendária no FMI, que ocupou o cargo
de diretor por 32 anos, procurava fazer esse papel de mediação, como pude
verificar no período em que estive no governo brasileiro de 1985 a 1987,
primeiro como secretário de assuntos econômicos do ministro do
Planejamento, João Sayad, e depois como assessor para assuntos de dívida
externa do ministro da Fazenda, Dilson Funaro. Funaro, outra figura
lendária, não tinha a menor paciência com o FMI e acabava tratando Kafka
com certa rispidez, como representante da instituição e não do Brasil na
instituição.
Tudo isso, como eu disse, é difícil de perceber de fora. A razão é que as
instituições multilaterais como o FMI costumam ser de grande
complexidade e transparência limitada. A sua atuação é, em geral, muito
variada e costuma estar submetida não só a regulamentos intrincados, mas
também a regras não escritas e práticas não codificadas ou codificadas de
forma pouco clara. A transparência é muito relativa. Todas as instituições
multilaterais prestam homenagem a esse princípio – é obrigatório nos dias
que correm. Mas há muita hipocrisia nisso, hipocrisia que, como dizia La
Rochefoucauld, nada mais é do que a homenagem do vício à virtude. O
vício se impunha, na prática, com certa frequência – seja pela não
divulgação pura e simples de certos fatos ou decisões, seja pela sua
divulgação de modo obscuro, pouco acessível, ou em linguagem
desnecessariamente técnica e específica, em “fundese”, como se diz na
instituição. Essa dissonância entre discurso e prática me irritava, em
especial quando escondia questões de interesse dos países emergentes e em
desenvolvimento. Não foram poucas as vezes em que provoquei e
ridicularizei um pouco meus colegas de Diretoria e da Administração,
relatando uma das histórias prediletas de Abraham Lincoln, célebre por suas
anedotas. Um rapaz, em busca de emprego público, tinha que responder a
um questionário, contava Lincoln. Tudo corria bem até que o candidato se
deparou com uma pergunta delicada: Causa da morte do pai? É que seu pai
fora enforcado como ladrão de cavalos. O candidato pensou, pensou, até
que veio a luz: “Meu pai participava de uma cerimônia pública quando a
plataforma cedeu”.3 Pois bem, “a plataforma cedeu” era um artifício
adotado recorrentemente pelo FMI.
Nessas condições, como esperar que um outsider tenha plena
compreensão do funcionamento de instituições como o FMI? Entre os
poucos pesquisadores externos que têm sucesso em superar essas barreiras
estão aqueles que, como o já mencionado Paul Blustein, no caso do FMI, ou
Christopher Humphrey, no caso do Banco Mundial e outros bancos
multilaterais de desenvolvimento, fazem extensas e minuciosas entrevistas
com pessoas que integram ou integraram a Administração, as Diretorias e o
staff dessas instituições.4
Recebi o convite do então ministro da Fazenda, Guido Mantega, com
alguma hesitação. Estava bem em São Paulo e não tinha grande interesse
em residir no exterior. Já havia recusado convite anterior de Mantega para
assumir o cargo de diretor executivo no BID, também em Washington. Mas
o FMI era uma instituição mais importante e que guardava mais relação
com a minha área de conhecimento e experiência. Mesmo assim, fiquei em
dúvida. O FMI atravessava na época uma fase não muito boa. Vivia uma
espécie de crise de identidade. Só um país de mais peso – a Turquia – tinha
um programa de financiamento e ajustamento com a instituição; os demais
devedores, não muito numerosos, eram países menores ou de menor nível
de desenvolvimento. O FMI era um corpo de bombeiros num mundo em
que não havia quase incêndios, como se dizia na época. Alguns
consideravam o Fundo uma instituição decadente, que precisaria se
reinventar. Depois de muito refletir, resolvi aceitar o convite, imaginando
ficar apenas um ou dois anos. Nos primeiros meses em Washington, não
foram poucas as dificuldades de adaptação e aprendizado, relatadas em
outro texto neste livro.5 O ex-ministro da Fazenda, Luiz Carlos Bresser
Pereira, antecipara essas dificuldades em artigo que publicou na Folha de
S.Paulo, em meio à controvérsia sobre a minha indicação, intitulado “Um
nacionalista no FMI”. De fato, como todo nacionalista, eu era cético, em
alguma medida, sobre a relevância e a utilidade da esfera multilateral – e
muito desconfiado das intromissões das entidades sediadas em Washington,
que considerava uma fachada “global” utilizada, com frequência, para
avançar os interesses dos Estados Unidos e demais países desenvolvidos
que as controlam.
O quadro mudaria radicalmente com a crise em 2008. Menos de um ano
depois da minha chegada a Washington, apareceria uma gravíssima crise
financeira, a pior desde a Grande Depressão dos anos 1930, que teve início
no mercado de hipotecas de alto risco e se espalharia como fogo em palha
para o resto do sistema financeiro dos Estados Unidos e da Europa,
provocando grandes deslocamentos econômicos e uma série de
repercussões internacionais. Não era propriamente uma “crise global”,
como insistiam em dizer os americanos e europeus, interessados em
arregimentar apoio de outros países para enfrentar seus problemas, mas
essencialmente uma crise financeira do Atlântico Norte, como notava um
dos meus colegas de Diretoria, o indiano Rakesh Mohan. De qualquer
maneira, a crise recolocou o FMI no centro da cena. O corpo de bombeiros
voltou à ativa. Muitos países recorreram ao apoio financeiro do Fundo,
inclusive europeus, classificados como desenvolvidos, algo que não se via
desde a década de 1970.
A presença em Washington, dentro do FMI, se tornou muito mais rica e
interessante do que eu antecipara ao aceitar o convite. Acabaria ficando
mais de oito anos na função, até junho de 2015, quando me mudaria para
Xangai para assumir o cargo de vice-presidente brasileiro no novo banco de
desenvolvimento criado pelos BRICS.
Não pretendo neste texto e nos dois que se seguem cobrir todas as áreas
de atuação do FMI, nem mesmo toda a atuação da cadeira brasileira na
Diretoria Executiva de 2007 a 2015, que foi vasta e variada. O propósito é
selecionar alguns aspectos, controvérsias e episódios marcantes, que
possam ser reveladores de como funciona o FMI, de como atuam os
principais países, do papel do Brasil nesse período e, de forma mais ampla,
de como se organiza e reorganiza a governança global em tempos de crise
aguda. Não vou seguir sequência rigidamente cronológica, o que poderia
ser maçante, mas tratar o assunto por tópicos. Procurarei também evitar
repetir outros textos deste livro que abordam questões relacionadas ao FMI,
ao G20, aos BRICS e à crise internacional.

2. Uma estrutura tripartite


Para entender bem os tópicos que abordarei, é necessário ter alguma
compreensão da estrutura geral do Fundo, tal como se apresenta depois de
sete décadas de evolução desde Bretton Woods. Peço a paciência do leitor
para o que vou expor nesta seção e nas seguintes: uma descrição de como
funciona a instituição, vista por dentro. Essa descrição, ainda que breve e
incompleta, pode ser tediosa, mas a alternativa de apresentar as
características institucionais em meio ao relato de decisões, controvérsias e
episódios de que participei, introduziria descontinuidades provavelmente
prejudiciais à leitura. Optei por entremear a discussão institucional com
episódios marcantes que facilitam a compreensão do funcionamento do
FMI, da Diretoria Executiva e da cadeira brasileira, amenizando ao mesmo
tempo a aridez do tema.
A estrutura do FMI tem uma parte que é residente em Washington,
D.C., e outra que funciona nas capitais dos membros. Integrado quase
sempre por ministros de Finanças ou presidentes de Banco Central, o
Conselho de Governadores é, em tese, a autoridade máxima da instituição e
muitas decisões importantes estão na sua alçada. Porém, a influência desse
Conselho é, na realidade, relativamente reduzida, por motivos que
retomarei adiante. A parte da estrutura mais importante para a instituição,
de longe, é a que reside na capital dos Estados Unidos. Ela tem três
componentes: a Diretoria Executiva, a Administração e o staff (corpo
técnico). Do ponto de vista jurídico, isto é, dos Articles of Agreement
(Convênio Constitutivo) da instituição, a Diretoria Executiva é a instância
mais importante, à qual responde a Administração. Esta, por sua vez,
comanda o staff. Na prática, a Administração – composta por um diretor-
gerente e quatro vice-diretores-gerentes – tem mais poder e influência. E o
staff, embora subordinado à Administração, tem grande peso dentro da
instituição e, em determinadas circunstâncias, pode influir mais do que a
própria Administração.
O diretor-gerente do FMI, cargo que foi ocupado pelo espanhol Rodrigo
de Rato e pelos franceses Dominique Strauss-Kahn, conhecido como DSK,
e Christine Lagarde no período em que lá estive, é equivalente ao de
presidente no Banco Mundial e outros organismos financeiros
internacionais. Por uma regra não escrita, que vigora desde a criação do
Fundo, esse cargo está reservado a um europeu e, em contrapartida, o de
presidente do Banco Mundial, a um americano. O cargo de número dois da
instituição, o primeiro vice-diretor-gerente, está reservado, por outra regra
não escrita, a um americano.
O FMI tem atualmente um staff de cerca de 2.700 funcionários,
integrado em sua maioria por economistas formados em universidades
europeias e, sobretudo, americanas.6 O nível médio é bom, superior no meu
entender ao do Banco Mundial e bem superior ao do BID, as duas outras
entidades financeiras multilaterais sediadas em Washington. Há
economistas de alta qualificação no staff. Entre os que conheci, destacava-
se Olivier Blanchard, trazido por Dominique Strauss-Kahn, e que chefiou
por muitos anos o departamento de pesquisa. Blanchard, economista
brilhante e também paciente (combinação rara), teve papel importante em
arejar o pensamento econômico do FMI, aproveitando a oportunidade
trazida pela crise de 2008.7 Um fator que explica a força da Administração
é justamente o fato de comandar um staff grande, em média competente e,
às vezes, excepcionalmente capaz. O staff atende a Diretoria, ajuda o
trabalho dos diretores (especialmente daqueles, diga-se, que representam os
principais acionistas), mas deve lealdade em primeira instância ao diretor-
gerente e ao restante da Administração.
O terceiro componente da estrutura residente do FMI é a Diretoria
Executiva. Ela começou com 12 diretores em 1946 e conta atualmente com
24, o que reflete a ampliação do número de países-membros, primeiro em
função da descolonização na Ásia, na África e no Caribe nas décadas de
1950 a 1970 e, nos anos 1990, da dissolução do bloco soviético. Todas ou
quase todas as decisões importantes são necessariamente submetidas à
Diretoria, o que a transforma em um contrapeso importante ao poder da
Administração e do staff. Ela se reúne ao menos três vezes por semana e,
não raro, todo dia, em sessões formais, informais e em comitês da Diretoria.
Há uma tensão quase permanente entre a Diretoria e a Administração, com
a segunda tentando de várias formas esvaziar o poder da primeira. Os
diretores dos países desenvolvidos, em especial o americano e os europeus,
são, às vezes, coniventes com essas tentativas, uma vez que cidadãos dos
seus países de origem comandam a Administração. O grande número de
diretores também facilita as manobras para controlar, contornar ou
enfraquecer a Diretoria. Porém, a estrutura legal do FMI, notadamente o
Convênio Constitutivo, impõe limites relativamente estreitos a essas
tentativas. E – aspecto importante – o fato de a Diretoria ser residente em
Washington cria condições para que ela possa, realmente, se inserir no
trabalho da instituição, acompanhar os detalhes e, inclusive, supervisionar a
atuação da Administração e do staff.
A questão Diretoria residente versus Diretoria não residente, cabe notar,
foi objeto de intensa controvérsia entre Keynes e White nas discussões
preparatórias da criação do FMI e do Banco Mundial, com Keynes
defendendo arduamente Diretorias não residentes, como relatarei
brevemente em outro capítulo deste livro, dedicado ao banco de
desenvolvimento que os BRICS criariam. No caso do banco dos BRICS, a
opção seria, ao menos na fase inicial, pelo modelo defendido por Keynes.8

Como são tomadas as decisões no FMI


Na Diretoria e no Conselho de Governadores do FMI (e o mesmo se aplica
ao Banco Mundial), as decisões são tomadas com base em uma distribuição
desigual de votos (weighted voting – votação ponderada), que confere aos
países desenvolvidos o controle da instituição. A maior parte das decisões
requer maioria simples. Os Estados Unidos, os principais países da Europa,
Canadá, Austrália, Japão e outras nações desenvolvidas continuam detendo,
apesar das reformas concluídas em 2008 e 2010, mais de 50% dos votos.9
Vários desses países, notadamente a grande maioria dos europeus, estão
super-representados em termos de poder de voto, quando se toma por
parâmetro o tamanho relativo das economias. Algumas decisões requerem
supermaiorias, chegando algumas delas a exigir 85% dos votos. Por
exemplo: alterações do Convênio Constitutivo ou aumentos das quotas
requerem supermaioria de 85%, com votação não só na Diretoria, mas
também no Conselho de Governadores. Esse percentual foi definido para
garantir aos Estados Unidos, que detiveram sempre mais do que 15% dos
votos, o poder de vetar decisões cruciais. Os Estados Unidos são o único
país a usufruir desse privilégio.
Chego aqui a mais um exemplo de como o desconhecimento da
instituição por parte de observadores externos leva a conclusões enganosas
e recomendações aparentemente democráticas, mas provavelmente
contraproducentes, ou pelo menos discutíveis. À primeira vista, é absurdo
que um só país tenha poder de veto em um organismo internacional.
Observadores externos apoiam, não raro, eliminar o poder de veto dos
Estados Unidos. De fato, esse poder pode trazer dificuldades sérias para a
instituição. Por exemplo, a reforma de quotas e governança de 2010 levaria
nada menos que cinco anos para entrar em vigor, em face das dificuldades
do governo Obama em conseguir a sua ratificação no Congresso.
Mas há um lado menos óbvio na questão do poder de veto. Os europeus,
liderados pelo diretor-gerente Dominique Strauss-Kahn, propuseram mais
de uma vez que se emendasse o Convênio Constitutivo para reduzir o
patamar da supermaioria de 85% para 75% ou 70%, em nome da
democratização do FMI. Proposta esperta, pois retiraria o poder de veto dos
americanos sem afetar o dos europeus. É que, na realidade, os europeus
agem de forma muito bem coordenada no FMI e constituem efetivamente
um bloco, o único que existe na instituição. Juntos eles somam cerca de
30% dos votos totais e têm, na prática, poder de veto também. Com a
redução do patamar para 75% ou mesmo 70%, os europeus poderiam
continuar com esse privilégio, suprimindo o dos Estados Unidos.
Nesse ponto, nós, emergentes, estávamos com os Estados Unidos. Os
diretores dos BRICS e de alguns outros países emergentes – liderados nessa
questão pelo diretor russo, Aleksei Mozhin, que era dos mais antigos na
instituição – eram contrários a reduzir o patamar para menos de 85%.10 A
razão é que, mesmo com a distribuição desigual dos votos, não era
impossível para os diretores dos BRICS coordenar-se entre si e com outros
diretores de países emergentes ou em desenvolvimento para alcançar os
15% necessários para vetar (ou ameaçar vetar) decisões problemáticas para
nós. Com as reformas de 2008 e 2010, que trouxeram certo crescimento do
poder de voto dos países emergentes, isso se tornou ainda mais verdadeiro.
Não antecipávamos que o Executivo americano, no governo Obama, fosse
perder tanto espaço na sua relação com o Congresso, atrasando em vários
anos a efetivação de uma reforma importante para nós. De qualquer
maneira, os americanos muito dificilmente teriam concordado com a
decisão de eliminar o próprio poder de veto – sempre poderiam vetar, ou
simplesmente indicar que vetariam, como efetivamente fizeram, qualquer
proposta que conduzisse à sua supressão. E a falta de apoio dos emergentes
à proposta europeia acabou inviabilizando-a já na partida.
O que isso significa, entretanto, para o funcionamento da instituição?
Basicamente, que emendas ao Convênio Constitutivo e reformas de quotas
e do poder de voto são sempre muito difíceis de levar adiante – dado que
podem ser bloqueadas pelo veto de um país ou de grupos coesos ou
razoavelmente coesos de países. Isso tem duas consequências práticas.
Primeira: a redistribuição do poder decisório entre os países, para refletir a
ascensão econômica das nações emergentes e em desenvolvimento,
especialmente as asiáticas, acontece de forma muito lenta. O Brasil, como
veremos, teria muito sucesso em ampliar o seu poder de voto nas reformas
de 2008 e 2010, mas fomos um caso relativamente isolado. Como muitos
países emergentes e em desenvolvimento não obtiveram resultados
expressivos e vários chegaram a perder poder de voto, não ocorreu uma
mudança de fundo nessa distribuição.
Segunda consequência – esta positiva: a dificuldade de emendar o
Convênio Constitutivo da instituição nos confere certa proteção em alguns
temas. Do ponto de vista de países como o Brasil, isso pode ser um trunfo
importante. Por exemplo, o Artigo VI do Convênio, que remonta a Keynes
e White, assegura aos países-membros a possibilidade de regular os
movimentos de capitais. Tentativas de modificar ou eliminar esse artigo na
década de 1990 foram bloqueadas por países emergentes e em
desenvolvimento que atuaram para impedir que se alcançasse a
supermaioria de 85% requerida.11 Quando os desenvolvidos não conseguem
promover as mudanças que desejam no Convênio Constitutivo, tentam (e às
vezes conseguem) valer-se da sua maioria na Diretoria e do seu controle
sobre a Administração para contornar o Convênio e forçar alterações
infraconstitucionais de legalidade duvidosa ou discutível.

Super-representação europeia
A super-representação da Europa no FMI é um problema tão ou mais grave
do que o excessivo poder dos Estados Unidos. Ela tem três dimensões:
1) A regra informal que reserva o cargo mais alto da Administração a
um europeu; todos os 11 diretores-gerentes do FMI foram europeus até
agora (cinco franceses, dois suecos, um belga, um holandês, um alemão e
um espanhol).
2) O elevado poder de voto agregado dos europeus, da ordem de 30%
do total e muito superior a seu peso na economia internacional. O declínio
gradual do peso das economias europeias na economia mundial desde o
século passado não tem se refletido, na mesma medida, em ajustamento das
quotas relativas e poder de voto dos europeus.
3) O número excessivo de cadeiras na Diretoria comandadas por
europeus, 8, às vezes 9, das 24. Houve algum rearranjo nas cadeiras
europeias com a reforma de 2010, mas essas mudanças foram mais
cosméticas do que reais, como explicarei quando tratar dessa reforma mais
à frente.
Nos meus mais de oito anos no FMI, os europeus foram quase sempre a
principal fonte de resistência à reforma da instituição. Devo ressalvar que
alguns diretores de pequenos países europeus – ainda que lutassem,
compreensivelmente, para preservar a sua super-representação –
costumavam se destacar pela qualidade da atuação na defesa da instituição e
das prerrogativas da Diretoria contra as intrusões da Administração, entre
eles o belga Willy Kiekens, o austríaco Hans Prader e os suíços Thomas
Moser e René Weber. Mas a atuação dos grandes europeus – os alemães, os
franceses, os ingleses, os italianos e os espanhóis – era geralmente nefasta,
de defesa coordenada e intransigente do status quo institucional, com
poucas contribuições ao trabalho da Diretoria e tentativas recorrentes de
submeter a ação do Fundo a suas agendas nacionais.
As manobras dos europeus não deixavam de ter aspectos cômicos.
Sempre orgulhosos e preconceituosos, custariam muito a aceitar certas
implicações da crise do euro, entre elas a necessidade de que alguns países
da área monetária se submetessem à tutela e às condicionalidades do FMI –
condicionalidades que europeus e outros estavam acostumados a
recomendar e aplicar a países latino-americanos, caribenhos, africanos ou
asiáticos – mas só a esses. No início da crise, os europeus, estranhamente,
começaram a falar publicamente em criar um “Fundo Monetário Europeu”.
Nessa época, eu costumava provocá-los em reuniões da Diretoria,
indagando: “Por que criar um Fundo Monetário Europeu, se ele já existe –
exatamente este aqui, em Washington?”

Fatores que mitigam a distribuição desigual dos votos


Como já se pode depreender do que escrevi antes, não é total o controle do
FMI pelos Estados Unidos e pela Europa, mesmo coadjuvados por outros
países desenvolvidos como Canadá, Austrália e Japão. A crise de 2008
abalou o prestígio dos americanos e europeus e enfraqueceu esse controle,
pelo menos temporariamente. Mas, mesmo antes de a crise eclodir, havia
fatores que mitigavam a distribuição desigual de votos na Diretoria. Um
deles é a tradição de decidir por consenso – não no sentido exato de
unanimidade, mas de amplo apoio e com poucas objeções fortes da parte de
diretores.12 Essa tradição não é seguida sempre à risca, longe disso, mas é
um traço da paisagem, com duas implicações. Primeira: votos contrários a
uma decisão, ou mesmo simplesmente a abstenção, acontecem na Diretoria
do FMI, mas não são muito comuns; e a abstenção tem sempre um certo
sabor de oposição – ponto que se revelaria crucial nas crises que enfrentei
por conta do programa da Grécia. Segunda implicação: a busca do consenso
permite à minoria (de votos ponderados) negociar alterações nas decisões
como preço da adesão ao consenso, desde que os diretores minoritários se
preparem e tenham capacidade de argumentar, o que nem sempre, cumpre
dizer, é o caso dos diretores de países emergentes e em desenvolvimento.
Os diretores africanos, da maioria dos países do Oriente Médio e do Sudeste
Asiático e, também, da maioria dos latino-americanos – mas não os
brasileiros (até a minha época, pelo menos) – têm comportamento
relativamente passivo e de adesão às teses da Administração e dos diretores
de países desenvolvidos.
Seja como for, a busca do consenso é sempre feita à sombra da estrutura
desigual de votação. Quando insistíamos muito em determinados pontos
que desagradavam à Administração ou aos diretores dos países
desenvolvidos, não tardávamos a ser avisados de que já existia uma maioria
com pontos de vista contrário ao nosso. “Já temos maioria” era o sinal para
indicar que o jogo estava próximo do fim. Aí cabia a nós, diretores da
minoria, avaliar caso a caso até onde insistir, without overplaying our hand
(sem abusar da sorte ou arriscar demais), isto é, avaliando com realismo se
as modificações parciais aceitas em certas decisões eram suficientes para
evitar a abstenção ou o voto contrário.
Isso conduz, de imediato, a outro fator que mitiga a distribuição
desigual de votos: a voz de cada diretor dentro da Diretoria – tanto nas
reuniões formais e informais, como nas articulações preparatórias com a
Administração, o staff e os colegas de Diretoria. Por isso, é fundamental ter
assento permanente na Diretoria – algo que, por exemplo, todos os BRICS
têm, com exceção da África do Sul. E, claro, utilizá-lo bem, indicando
pessoas capazes e dispostas a trabalhar com afinco, inovar quando
necessário e questionar o status quo. A Rússia, a Índia e a Suíça, por
exemplo, usam esse instrumento com grande eficácia, indicando em geral
diretores especialmente competentes e atuantes. Daí que a presença de um
grande número de diretores europeus acaba desequilibrando o debate. Era
tedioso ouvi-los (com exceção, para boa parte dos temas, dos já
mencionados representantes de alguns pequenos países europeus) repetir
em uníssono, basicamente com as mesmas palavras, a mesma mensagem
nas reuniões da Diretoria. Quantas vezes tive ímpeto de propor, como regra
informal, que após a intervenção do primeiro europeu se fizesse o registro
automático de que os demais compartilhavam opinião idêntica. Mas a
estocada teria sido injusta com os meus colegas suíço, belga e austríaco.13
Os diretores dos demais países desenvolvidos não se destacavam. Os
japoneses que conheci eram, não raro, inteligentes e experientes, mas
costumavam ficar apagados na Diretoria e tendiam geralmente a
acompanhar as posições da cadeira dos Estados Unidos. A passividade do
Japão contrastava de modo marcante com o seu peso econômico. Eu
costumava comentar com pessoas mais próximas que os japoneses se
comportavam, no FMI e no G20, como se a Segunda Guerra tivesse
terminado ontem. Normalmente, eles só se dispunham a falar com mais
desenvoltura nos bastidores, em reuniões bilaterais ou pequenas, e aí
traziam contribuições significativas, às vezes a favor dos emergentes. Os
canadenses e australianos não tinham praticamente nenhuma independência
em relação aos Estados Unidos e à Administração do FMI e faziam pouca
ou nenhuma diferença na instituição.
Os países emergentes ou em desenvolvimento comandam 12 das 24
cadeiras da Diretoria14 o que poderia fazer grande diferença no
funcionamento da instituição, mesmo considerando que elas detêm um
pouco menos que 40% do poder de voto. O problema, como assinalei, é que
muitos diretores desse grupo são passivos, relativamente despreparados e
propensos a seguir os americanos e europeus em muitas questões. Os
consensos do Norte exercem forte poder gravitacional sobre muitos deles.
As duas cadeiras africanas subsaarianas, principalmente a que reúne as ex-
colônias francesas, são relativamente inoperantes, com diretores que
tendem à omissão ou à colaboração com os acionistas majoritários.15 A
cadeira africana anglófona, da qual faz parte a África do Sul, é nitidamente
melhor, mas não se compara às cadeiras dos demais BRICS em termos de
independência e capacidade de atuação.16 Os latino-americanos também
não ofuscam, com exceção dos brasileiros, desde os tempos de Alexandre
Kafka, e de um diretor excepcional da Argentina, Hector Torres, que
acabaria exercendo a função de vice-diretor ou diretor alterno na nossa
cadeira – ainda que a Argentina nunca tenha feito parte da constituency17 do
Brasil. Regra geral, a maioria dos latino-americanos está sempre ansiosa
para agradar a Administração e os diretores dos países desenvolvidos, e
acaba não tendo grande papel na instituição. O mesmo comentário se aplica,
grosso modo, aos diretores do Oriente Médio – mas não aos do Irã – e aos
do Sudeste Asiático, inclusive à Indonésia que, embora seja um país de
grande porte econômico, demográfico e geográfico, tem papel modesto no
FMI e no G20. Na Diretoria houve até momentos em que o diretor da
Indonésia dava sinais de estranha dependência em relação ao diretor da
Holanda, mostrando, décadas depois da independência, respeito exagerado
à antiga Metrópole…
Não há nada mais fácil, leitor, para um diretor executivo, no FMI ou no
Banco Mundial, do que se acomodar e virar sócio de um clube confortável
em Washington. A carga de responsabilidades é pesada; o diretor está lá
para representar seu país ou um grupo de países e para cuidar da instituição
como um todo. Mas a verdade é que em uma diretoria de 24 membros (ou
25, no caso do Banco Mundial), ele pode tranquilamente se omitir,
acompanhar os consensos patrocinados pela Administração e pelos
principais acionistas, e fazer, no fundo, mera figuração.18 Não terá
problemas e será até elogiado pelo seu “espírito internacional”.
Eu mesmo não segui esse caminho. Lutei muito – talvez demais – pela
reforma do FMI e para representar os países da cadeira brasileira. A nossa
cadeira se fortaleceu, como vou relatar. Mas, principalmente por causa da
resistência dos europeus, a reforma da instituição andou menos do que se
poderia esperar e – o que é mais grave – bem menos do que os países
desenvolvidos, inclusive os grandes países europeus, haviam se
comprometido a apoiar no âmbito do G20, no auge da crise, de 2008 até
2010. Os embates no FMI e no G20 (onde atuava como delegado brasileiro)
foram tantos que acabei enfrentando muitos problemas e sofrendo até
perseguições. Volto a isso, mas já antecipo que, a bem da verdade, esses
problemas ocorreram não apenas por conta da má vontade, truculência ou
má-fé de certos adversários (inimigos, em alguns casos), mas também pelo
meu estilo pessoal, considerado abrasivo por alguns, e meu gosto
provavelmente exagerado pela polêmica. Isso nem sempre desagradava,
devo dizer. Outros diretores de países emergentes ou em desenvolvimento
tinham simpatia, respeito e até afeto por mim. Dominique Strauss-Kahn,
que foi um diretor-gerente brilhante, rebatia os meus argumentos com
inteligência, levava frequentemente a melhor e acabava se divertindo (ainda
que nem sempre). Já a sua sucessora, Christine Lagarde, menos preparada,
não suportava bem a polêmica, recebia as minhas críticas com desagrado e
acumulava rancor e ressentimentos. Mas deixo isso de lado, por enquanto, e
prossigo na discussão da estrutura geral do FMI.

O papel das capitais dos países-membros


Na estrutura legal do FMI, tal como definida primordialmente no Convênio
Constitutivo, o Conselho de Governadores (Board of Governors) é a
autoridade suprema, responsável por uma série de decisões importantes,
como já indiquei. Cada país-membro tem o direito de indicar um
governador e um governador alterno (vice-governador). A grande maioria
indica o ministro de Finanças, ou o seu equivalente, e o presidente do
Banco Central para esses cargos.
O FMI tornou-se, desde a década de 1990, depois do colapso do bloco
soviético e da própria União Soviética, uma instituição quase universal.
Atualmente, são 189 países-membros, incluindo quase todos do planeta,
com as principais exceções sendo Cuba, Taiwan e Coreia do Norte. O
grande número de governadores torna reuniões presenciais do Conselho
impraticáveis para efeito de tomada de decisão.19 O problema sempre
existiu e levou a que as decisões fossem tomadas, quase sempre, por voting
without a meeting (votação sem reunião), isto é, com os votos sendo
coletados a distância. Os governadores (ou seus alternos) votam orientados
por seus diretores e, frequentemente, com atuação direta da Administração
sobre as capitais. A influência do Conselho já fica reduzida,
automaticamente, por essa forma de decidir. Ademais, sendo os
governadores e alternos quase sempre pessoas de alta importância nos seus
governos, resta-lhes pouco tempo para dedicar-se às questões, não raro
muito específicas, e até esotéricas, do FMI.
Como assegurar, assim, que o coletivo dos governadores pudesse, de
alguma forma, ter presença efetiva na instituição? A solução encontrada, na
década de 1970, foi criar um comitê ministerial, denominado Comitê
Interino (Interim Committee) e, mais tarde, Comitê Monetário e Financeiro
Internacional (International Monetary and Financial Committee – IMFC),
com composição que basicamente espelha a da Diretoria Executiva – 24
cadeiras com a mesma distribuição de países.20 O IMFC passou a se reunir
duas vezes por ano, nas reuniões de primavera e outono do FMI e do Banco
Mundial.21 Ponto importante, porém: o IMFC tem apenas um papel de
“aconselhamento” (advisory role), pois, pela estrutura legal do Fundo, só o
Conselho de Governadores e a Diretoria Executiva podem tomar decisões.
Não há votações no IMFC e as deliberações, cujos resultados são expressos
em comunicados semestrais, resultam de “consensos”, no sentido
anteriormente explicado. O IMFC segue, portanto, o padrão de
funcionamento de fóruns informais, como o G7, o G20 ou os BRICS. Isso
cria uma oportunidade para os emergentes e em desenvolvimento, que
detêm 11 ou 12 das 24 cadeiras do IMFC. As deliberações são por consenso
e, se os representantes dos países estão bem preparados, torna-se possível
aconselhar e orientar a instituição em linha com nossos interesses.
Mas não é fácil. Como os países desenvolvidos tradicionalmente
asseguravam o controle sobre o IMFC? Repetia-se, aqui, o que se via na
Diretoria. Os desenvolvidos, em média mais preparados, tendiam a
prevalecer nas discussões. Impunham certo respeito reverencial,
principalmente os delegados dos Estados Unidos e dos principais países
europeus. A exemplo do que ocorria na Diretoria, o grande número de
cadeiras europeias dificultava avanços, especialmente em temas
relacionados a governança e quotas. Os emergentes e em desenvolvimento,
em grande parte, se omitiam ou tendiam a acompanhar a liderança dos
americanos e europeus.
Se isso não funcionava e nós conseguíamos, apesar de tudo, que o
IMFC oferecesse conselhos “inconvenientes”, a Administração e a
Diretoria, dominadas pelos desenvolvidos, faziam o possível e o impossível
para ignorá-los. Mas, de novo, o controle não era completo e nós,
emergentes, principalmente os BRICS, atuando de forma razoavelmente
coordenada, conseguíamos vencer algumas batalhas no IMFC e influir,
também por essa via, no trabalho da instituição. O nosso papel, em resumo,
era vencer batalhas nas reuniões semestrais, tirando partido da inexistência
de votos ponderados (weighted voting) no IMFC e, depois, lutar para que os
resultados tivessem alguma influência prática na Diretoria.
Tradicionalmente, alguns países desenvolvidos importantes mostravam-
se descontentes com esse arranjo. Desde a década de 1970, os europeus,
liderados pela França, buscavam apoio para a criação de um Conselho
Ministerial (Ministerial Council), com formação que espelhasse a da
Diretoria, e que decidiria com base no sistema de votos ponderados. Esse
Conselho, previsto no Convênio Constitutivo por emenda aprovada em
1978, mas que nunca fora criado, absorveria na sua alçada uma série de
poderes da Diretoria Executiva.
Dominique Strauss-Kahn decidiu retomar essa proposta. O assunto foi
debatido intensamente na Diretoria. As cadeiras dos países emergentes
eram, em sua maioria, frontalmente contrárias. A diretora americana parecia
não simpatizar com a ideia, mas também não se opunha de forma
categórica. Os diretores europeus eram quase todos favoráveis. Porém, a
criação do Conselho depende de uma supermaioria de 85% no Conselho de
Governadores. E foi por isso que conseguimos barrar a proposta, ao indicar
claramente nas discussões da Diretoria que não existia a supermaioria
requerida – uma demonstração prática de por que não era conveniente para
nós, como assinalei antes, rebaixar o piso da supermaioria de 85% para os
75% ou 70% propugnados pelos europeus. Mas foi uma discussão perigosa
para nós, diretores dos BRICS e outros países emergentes. A Administração
trabalhava, também, na nossa retaguarda, tentando convencer os nossos
ministros ou, mais frequentemente, os seus assessores – alguns deles
sempre ansiosos em desempenhar papel mais importante na estrutura do
Fundo – de que seria importante aumentar, por meio do Conselho
Ministerial, o engajamento e o poder decisório das autoridades nas
capitais.22 Havia sempre o risco de que, por um descuido nosso, a proposta
pudesse ser endossada no G20 ou no IMFC. E isso quase aconteceu, em
uma reunião G7 + BRICs, à margem de encontro ministerial do G20, em
Gyeongju, na Coreia do Sul, à qual voltarei quando tratar da reforma de
quotas e governança de 2010.

Do G7 ao G20
No período pré-crise de 2008, a estrutura não residente de governança do
FMI tinha um reforço crucial, do ponto de vista das nações desenvolvidas: a
dominância do G7, que exercia, entre outros papéis, o de principal foro para
cooperação econômica e financeira internacional. O G7 – integrado pelos
Estados Unidos, os quatro grandes países europeus (Alemanha, França,
Reino Unido e Itália), Canadá e Japão – reunia-se periodicamente,
deliberava sobre as principais questões internacionais e proporcionava,
sempre que necessário, orientações para a ação do FMI e do Banco
Mundial. O IMFC não ousava desafiar o que vinha do G7. Havia, portanto,
uma hierarquia informal do G7 para o IMFC e o FMI como um todo.
A profunda crise nos sistemas financeiros americano e europeu, a partir
de 2008, modificou tudo isso. Com significativa participação do Brasil, que
exercia a presidência de turno do grupo em 2008, o G20 foi convertido em
foro de líderes e substituiu o G7 como principal foro para cooperação
econômica e financeira internacional.23
Ocorre que a composição do G20, que, como vimos, também deliberava
por consenso, era mais favorável a nós do que a do IMFC, principalmente
por sofrer menos da super-representação europeia. Os europeus faziam o
possível para corrigir esse problema, tentando por manobras variadas
aumentar a sua representação no G20. Mas não foram muito bem-
sucedidos,24 em parte por objeções dos emergentes, mas sobretudo pela
oposição dos Estados Unidos, tanto no final do governo Bush como no
governo Obama.
Como foro de líderes (presidentes ou primeiros-ministros), o G20 logo
adquiriu importância relativamente ao IMFC, foro de nível ministerial, e
passou a deliberar também sobre as grandes questões do FMI. O Brasil, que
atuava em todos os níveis, passou a privilegiar o G20. Para mim, tornou-se
fundamental garantir presença como delegado brasileiro, não só no IMFC,
algo que era meio automático, mas sobretudo no G20 e, depois, nos BRICS.
Só uma pequena minoria dos diretores executivos, e nenhum na mesma
medida que eu, tinha esse papel múltiplo, o que acabava me proporcionando
certa vantagem em relação a meus colegas. Isso só era possível porque tinha
acesso não só ao ministro da Fazenda, Guido Mantega, que depositava
confiança em mim, mas também ao presidente da República – algo raro
entre os diretores do FMI. Essa assimetria, conto en passant, provocava
ressentimentos, sobretudo entre os europeus que resistiam ferozmente à
reforma do FMI, levando até a situações cômicas. Nas reuniões do comitê
administrativo da Diretoria do FMI, havia tentativas recorrentes e até
mesquinhas de cortar o meu orçamento de viagem – mas consegui escapar
dessas tentativas, com apoio dos outros diretores de países em
desenvolvimento e até de alguns desenvolvidos.25
Mesquinharias à parte, o que os europeus realmente fizeram,
principalmente no período Lagarde, foi manobrar para que as deliberações
do IMFC, mais favoráveis aos europeus, prevalecessem sobre as do G20,
quando conveniente para eles, o que frequentemente era o caso no que se
referia à reforma de quotas e governança do FMI. Praticava-se o “forum
shopping”, como ressaltavam repetidamente os brasileiros nas reuniões do
G20, no IMFC e na Diretoria do FMI. Os europeus argumentavam, Lagarde
à frente, que o G20, diferentemente do IMFC, não fazia parte da estrutura
do FMI – argumento que nunca fora usado, diga-se, quando o FMI seguia
disciplinadamente as orientações do G7.26 Os grandes países europeus,
membros plenos do G20, tinham um pouco mais de dificuldade de fazer
esse “forum shopping”, mas se escondiam para esse fim atrás dos europeus
menores, que não eram membros do G20 e resistiam naturalmente a aceitar
as suas deliberações.

Grau de autonomia dos diretores executivos


Os governadores do FMI e membros do IMFC, quase sempre ministros de
Finanças ou presidentes de Banco Central, embora tenham dificuldades
naturais de atuar coletivamente e de influir à distância sobre o trabalho do
FMI, sempre têm ascendência sobre seus diretores executivos. Afinal, a
indicação para o cargo advém, em geral, do governador. No meu caso, por
exemplo, o convite partiu do ministro Mantega, ainda que tenha sido
referendado pelo presidente Lula. É verdade que os diretores têm mandato
fixo, o que lhes confere em tese alguma autonomia em relação às capitais.
Mas essa autonomia é sempre relativa; os mandatos são curtos, de apenas
dois anos, e pode acontecer de o diretor ser, na prática, forçado ou induzido
a deixar o cargo no meio do mandato, por pressão da capital, como acabaria
acontecendo comigo, em 2015. Assim, os diretores sempre procuram
manter-se sintonizados com as suas autoridades nacionais.
O grau de autonomia de cada diretor é sempre função de circunstâncias
particulares. Os países desenvolvidos exercem um controle mais rigoroso
sobre seus diretores. No caso dos emergentes, a relação é, em geral, mais
“frouxa”, em grande parte por causa de estruturas menos organizadas nas
capitais. Quando fui indicado para o FMI, procurei o ex-ministro da
Fazenda Pedro Malan, que havia sido diretor executivo pelo Brasil no
Banco Mundial e no BID e, enquanto ministro da Fazenda, governador do
Brasil no FMI e no Banco Mundial, para ouvi-lo sobre o trabalho nos
organismos multilaterais em Washington. Não me esqueci de um
comentário irônico que ouvi dele a respeito da relação do diretor com a
capital: “O problema de pedir instruções é que, às vezes, elas vêm!” Antes
da minha chegada a Washington, a tradição da cadeira brasileira já era agir
de forma relativamente autônoma, sem pedir com frequência instruções à
capital e evitando, em especial, buscar as opiniões das assessorias do
Ministério da Fazenda ou escalões técnicos do Banco Central. Manteria
essa tradição.
O grau de autonomia também depende da personalidade do diretor e do
seu peso político no país de origem. Os diretores de países desenvolvidos,
em alguns casos, competentes e até muito competentes, eram em geral
funcionários de escalão médio a alto nos ministérios de Finanças ou bancos
centrais. No caso dos países em desenvolvimento, era maior a propensão a
selecionar diretores de peso intelectual ou político. Este era o caso,
historicamente, do Brasil, da Rússia e da Índia, por exemplo, ainda que
fossem raros aqueles de perfil mais acadêmico, como eu.
Esses detalhes têm mais importância prática do que pode parecer à
primeira vista. Os diretores dos países desenvolvidos e de alguns outros – a
China, por exemplo – se reportavam, por tradição, ao segundo ou terceiro
escalão dos ministérios e bancos centrais. Embora esses funcionários das
capitais não tivessem papel formal na governança do Fundo nem
necessariamente grande importância nos seus governos, presumia-se que
eles estivessem atuando sob instruções do governador ou do governador
alterno (o que nem sempre era inteira ou mesmo parcialmente verdadeiro).
Funcionários brasileiros tomavam conhecimento desse padrão de
relacionamento em outros países e se animavam, não raro, a tentar
reproduzi-lo. Desde o início, eu adotei como regra não aceitar como
instrução algo que não viesse diretamente do ministro da Fazenda,
governador do Brasil no Fundo, ou que eu não pudesse confirmar com ele.
Isso me foi de grande valia, mas não deixava de causar insatisfação aos
secretários de assuntos internacionais da Fazenda que, por vaidade ou
disputa de espaço, procuravam se imiscuir nos assuntos que eram de
competência do diretor executivo. Tive dificuldades desse tipo com três dos
quatro secretários de assuntos internacionais que passaram pelo cargo entre
2007 e 2015, principalmente com o primeiro deles, que acabaria derrubado
do cargo por conflito comigo, como contarei mais adiante.
Quando o diretor executivo atua de maneira a incomodar a
Administração do FMI, não são nada incomuns tentativas de contorná-lo.
Isso é feito de duas formas. A mais perigosa para o diretor executivo é
quando o diretor-gerente ou outro integrante da Administração tem acesso
direto ao governador e resolve fazer queixas ou reparos ao seu
comportamento, tentando verificar se ele está realmente em sintonia com a
sua capital. Christine Lagarde era especialmente propensa a esse tipo de
intervenção, mas raramente teve sucesso no meu caso. Um dos assessores
de Guido Mantega me contou que, em certa ocasião, presenciou um desses
telefonemas queixosos da diretora-gerente. Mantega ouviu tudo com
paciência e diplomacia e, ao desligar, comentou: “Era a Lagarde, de novo,
reclamando do Paulo – sinal de que ele está fazendo um bom trabalho.”
O outro caminho é explorar a vaidade – e o menor conhecimento dos
assuntos do FMI – de “autoridades”27 do segundo ou terceiro escalão dos
ministérios, pedindo ou induzindo a sua intervenção em assuntos
controvertidos em sentido contrário ao defendido pelo diretor. Isso às vezes
ameaçava dar certo no caso do Brasil, e causava algum estresse para mim.
Mas acabava conseguindo prevalecer nessas situações, lembrando, dentro
do Fundo, que a autoridade formal era do diretor, e me valendo, em
Brasília, do acesso que tinha ao ministro Mantega. Embora nem sempre
concordasse comigo, na maior parte das vezes o ministro aceitava as
minhas sugestões. Do meu lado, eu procurava, é claro, sempre implementar
e detalhar as suas iniciativas e propostas que eram, felizmente, quase
sempre úteis ou importantes.
O ministro da Fazenda tem sempre, volto a dizer, um portfólio pesado
de atribuições. Mas Mantega tinha gosto pelos assuntos do FMI e da
economia internacional e, com a crise de 2008, esses temas ganharam
preeminência natural. Várias das atividades que desenvolvi remontavam,
assim, a diálogos regulares que mantinha com o ministro. Com o presidente
Lula mantinha também contato frequente, embora ele evitasse descer a
detalhes e interferir diretamente em questões do FMI.28 Nesse particular, a
presidente Dilma, a quem tinha pouco acesso, era totalmente diferente – e
isso teve consequências positivas e negativas, como veremos.

3. Principais funções do FMI


São três as principais funções ou atividades-fim do FMI, em ordem
crescente de importância: 1) assistência técnica e treinamento; 2)
surveillance (monitoramento); e 3) empréstimos.
As atividades de assistência técnica e treinamento de funcionários
governamentais ocorrem nas áreas de expertise do Fundo: macroeconomia,
finanças públicas, políticas monetária e cambial, organização institucional
etc. Embora recebam pouca atenção externa, e mesmo interna, essas
atividades são valorizadas, de modo geral, por países menores ou menos
desenvolvidos, como pude testemunhar nas interações com países da nossa
cadeira. As autoridades desses países dão mais valor à assistência técnica e
aos programas de treinamento proporcionados pelo FMI do que às
atividades de surveillance bilateral, mais conhecidas e de mais repercussão.
A surveillance do FMI tem duas dimensões: a bilateral e a multilateral.
A primeira, às vezes confundida pela opinião pública em alguns países com
os programas de empréstimo, resulta da obrigação que têm os países-
membros de realizar consultas anuais ao abrigo do chamado Artigo IV do
Convênio Constitutivo. Embora essa obrigação tenha gerado tensões, às
vezes rumorosas, com certos países-membros, ela pode tomar um caráter
relativamente rotineiro. Na prática, isso tem significado receber a visita de
missões do staff uma vez por ano; a missão depois prepara um relatório
sobre a economia do país que é então discutido em reunião formal da
Diretoria.29
Uma questão espinhosa é a publicação do relatório, que depende de
autorização do país-membro. Não existe a obrigação de publicar, mas, ao
longo do tempo, tem havido pressão moral e política, em nome da
transparência, para que os países permitam a divulgação, e a grande maioria
concorda. O Brasil relutava, desde os tempos de Alexandre Kafka, a
autorizar a publicação dos relatórios. Eu mesmo era contrário à ideia. A
questão de fundo é que a publicação confere às atividades de surveillance
bilateral algum poder efetivo de pressão sobre o país, que é tanto maior
quanto maior for a atenção da mídia nacional aos relatórios do staff. O
ministro Mantega, depois de alguns anos, acabou se rendendo a peer
pressure (pressão dos pares) no G20, onde era lembrado, repetidamente, de
que o Brasil era um dos poucos membros, com a Arábia Saudita, a não
permitir a publicação dos relatórios do Artigo IV.
Alguns governos mais propensos à confrontação impediram por
completo a realização da surveillance bilateral do Artigo IV. Por exemplo, a
Argentina (no período dos Kirchners), a Venezuela (desde os tempos de
Hugo Chávez) e, na cadeira brasileira, o Equador (durante grande parte do
governo Rafael Correa). Não foi assim com outros governos “bolivarianos”,
Bolívia e Nicarágua, que mantiveram sem interrupções as consultas do
Artigo IV.30 No caso do Equador, conseguimos, depois de algum tempo,
convencer o governo a retomar as consultas, inicialmente sem visitas do
staff ao país.
O outro ramo da surveillance do FMI é a chamada surveillance
multilateral, atividade do staff que resulta na produção de relatórios
semestrais sobre economia mundial, estabilidade financeira e finanças
públicas, que são discutidos na Diretoria e, posteriormente, publicados.31
Esses relatórios são, em geral, úteis e trazem muita informação e análise
sobre temas macroeconômicos. Deve-se destacar o papel do departamento
de pesquisa, que costuma ser chefiado por economistas de renome e que
alimenta, com diversos tipos de trabalho de economia aplicada, não só as
atividades de surveillance, mas também as de empréstimo e de assistência
técnica e treinamento.
Há, por certo, viés doutrinário e político nesses documentos de
surveillance bilateral e multilateral. O FMI é um dos templos da ortodoxia
econômica mundial. Mas aqui cabe uma distinção, que costumava fazer o
economista cubano-americano Carlos Diaz-Alejandro, e que verifiquei ser
realmente relevante na minha passagem pelo FMI. Uma coisa, dizia ele, é a
ortodoxia teórica das universidades americanas, geralmente mais propensas
ao purismo e a prioris doutrinários; outra é a ortodoxia prática do FMI,
mitigada pelo confronto da instituição com as realidades políticas e sociais
e as restrições práticas à aplicação das doutrinas econômicas a situações
concretas. Isso sempre foi verdade, em alguma medida, mas se acentuou
com a crise de 2008 que, diferentemente de crises anteriores, teve sua
origem e palco principal em vários dos principais países desenvolvidos, os
Estados Unidos à frente.
Essa crise foi um constrangimento para o FMI, pois ficou evidente que
as suas atividades de surveillance, tanto bilaterais quanto multilaterais,
haviam falhado, não raro grosseiramente, em perceber a crise monumental
que se avizinhava.32 Basta consultar, por exemplo, os relatórios do Artigo
IV do período, digamos, de 2005 a 2007, de alguns países europeus
fortemente atingidos pela crise – Islândia, Grécia, Irlanda, Portugal ou
Espanha – que estão disponíveis na página do FMI. Mais graves foram as
omissões nos relatórios do mesmo período sobre os Estados Unidos e os
principais países europeus, em cujos sistemas financeiros se haviam
formado problemas de extrema gravidade e grande potencial destrutivo. Os
relatórios multilaterais dos anos anteriores à crise padeciam dos mesmos
problemas. Havia uma ênfase, que se revelaria equivocada, nos
desequilíbrios de balanço de pagamentos em conta corrente entre as
principais economias (os chamados international imbalances) e uma
cegueira para a dimensão especificamente financeira das questões
macroeconômicas. De maneira geral, os integrantes do staff tinham,
também, respeito ou mesmo temor reverencial pelos principais acionistas da
instituição e, se percebessem algo do que se aproximava, dificilmente se
aventurariam ou seriam autorizados a expressar preocupações em
documentos oficiais.
O que salvava um pouco o FMI era o fato de que ele estava muito longe
de ser o único a não ter antecipado a natureza e a dimensão da crise. Poucos
o fizeram. Entre as exceções estiveram os economistas Nouriel Roubini,
que era injustamente considerado catastrofista e irresponsável, e Raghuram
Rajan, que seria depois presidente do Banco Central da Índia e participaria
da articulação entre os BRICS.
Porém, não cabe, de forma alguma, desprezar o trabalho de surveillance
e pesquisa do FMI, inclusive porque esse trabalho cresceu muito em
importância com a crise de 2008. A crise encontrou o Fundo sob comando
de um diretor-gerente, Dominique Strauss-Kahn, excepcionalmente
inteligente e propenso à inovação. Como mencionei, DSK trouxe Olivier
Blanchard para chefiar o departamento de pesquisa, inaugurando uma fase
especialmente rica do trabalho de surveillance e pesquisa do FMI. Com
cautela, mas persistência, Blanchard se animava a questionar vários pilares
da ortodoxia, entre eles os efeitos da austeridade fiscal, certas
características dos regimes de metas para a inflação e a ojeriza aos controles
de capital.33 Isso ajudava o trabalho de certas cadeiras na Diretoria e no
IMFC, como a brasileira, que também procuravam questionar a ortodoxia
econômica. Não foi fácil, havia oposição, em especial da Alemanha, muito
apegada à ortodoxia. Mas houve nítida melhora da qualidade e
originalidade do trabalho. Após a saída tumultuada de DSK, e a sua
substituição por Christine Lagarde, que sequer é economista e, mais
importante do que isso, se mostrou mais propensa ao conservadorismo e ao
pensamento convencional, essa tendência positiva refluiu no FMI.
Blanchard acabaria deixando o Fundo, em 2015. Mais importante que os
fatores pessoais, foi o refluir da crise nos Estados Unidos e Europa, de 2012
em diante, o que levou a certa restauração da fé na ortodoxia. Mas essa
restauração foi apenas parcial, e os trabalhos do FMI continuam até hoje
marcados, positivamente, pelas lições da crise. Observo, de passagem, que a
instituição se tornou muito menos ortodoxa do que o que passa por
sabedoria econômica em países como o Brasil.

FMI como emprestador e interventor


A atividade realmente central do FMI, aquela que lhe confere a importância
que tem, é a de emprestar a países com problemas de balanço de
pagamentos, efetivos ou potenciais. Foi para exercer essa função que a
instituição foi criada. Só quando ela é exercida é que o Fundo tem poder
real de intervir nas políticas econômicas nacionais. E o FMI só atua,
efetivamente, como instituição central do sistema internacional, quando é
grande o número de países que recorrem a seus empréstimos.
Até 2007, houve um longo período de tranquilidade, conhecido entre
economistas do mainstream como The Great Moderation – designação
enganosa, e até ridícula, que ignorava os imensos desequilíbrios que se
acumulavam despercebidos nas instituições financeiras privadas nos
Estados Unidos e na Europa. Nesse período de paz, ou trégua, o FMI ficou
basicamente escanteado, sofrendo de certa crise existencial. Foi o que
encontrei quando cheguei a Washington, em abril de 2007. O maior risco
era o tédio – tédio contra o qual, como dizia Nietzsche, até os deuses lutam
em vão.
Esse risco se mostraria totalmente ilusório. Com a crise, aumentou
dramaticamente o número de países que precisaram recorrer à instituição.
No auge da atividade de empréstimos, chegou a mais de 50 o número de
países que recorriam ao Fundo, inclusive desenvolvidos e países emergentes
de peso, como Ucrânia, Polônia, Paquistão, México e Colômbia. O FMI
passou a movimentar, novamente, grandes somas de recursos, e a luta pelo
poder dentro e em torno da instituição se intensificou, tornando o nosso
trabalho mais difícil e arriscado, mas também mais interessante e
desafiador.
É indispensável entender como funciona o FMI nessa área crucial. Nas
atividades de surveillance bilateral e multilateral, ainda que a publicação
dos relatórios possa ter algum efeito constrangedor, as críticas e
recomendações do Fundo podem ser – e geralmente são – ignoradas pelas
autoridades nacionais, pelo menos no caso dos países maiores, tanto
desenvolvidos como emergentes.34 Mas recorrer a empréstimo do Fundo
sujeita o país às chamadas condicionalidades, isto é, à negociação e
implementação de um programa macroeconômico abrangente, consagrado
nas famosas cartas de intenção, com verificação trimestral ou semestral de
metas econômicas específicas, denominadas performance criteria (critérios
de desempenho). O não cumprimento dessas metas pode levar à suspensão
ou ao adiamento de desembolsos e, no limite, à interrupção do programa.35
A suspensão de desembolsos do FMI e, em especial, uma interrupção do
programa afetam a credibilidade do país nos mercados financeiros e podem
provocar, também, a interrupção de outros desembolsos de fontes oficiais
ou privadas, que estejam atados à execução do programa com o FMI (por
exemplo, desembolsos do Banco Mundial e de outros bancos multilaterais
de desenvolvimento, além de desembolsos de instituições financeiras
oficiais de outros países).36 Isso multiplica o poder de influência do Fundo
sobre os países que caem nos seus braços. As suas exigências podem ser
úteis e até indispensáveis, mas nem sempre o são, o que dá margem a
conflitos e insatisfação em diferentes países e, internamente, em discussões
na Diretoria. Como há um certo estigma em submeter-se ao FMI e abrir
mão de autonomia na condução da política econômica, os governos
costumam hesitar em recorrer à instituição e só o fazem, geralmente,
quando há poucas alternativas. Há exceções a essa regra, com países
buscando apoio do FMI em caráter preventivo ou quando as dificuldades
estão em fase inicial, mas o padrão mais comum é recorrer à instituição
quando a crise já está instalada.37 O FMI converteu-se, assim, em muitos
casos, num emprestador internacional de última instância, que exerce o
papel que os bancos centrais ou os ministérios de Finanças costumam
exercer em nível nacional.
Todos esses programas são submetidos à aprovação da Diretoria e sua
implementação também volta para a consideração dos diretores. Essas
discussões na Diretoria são, ao mesmo tempo, técnicas e políticas. A
dimensão política é inevitável. Como dizia Celso Furtado, não há problema
macroeconômico que não seja também um problema político. Mas as
discussões, como veremos, eram políticas em sentido mais mesquinho, pois
a Administração e grande parte da Diretoria não se vexavam em subordinar
sua atuação às agendas nacionais dos principais acionistas da instituição. Os
adversários e inimigos dos Estados Unidos e da Europa, assim como os
países mais independentes, eram tratados duramente e, em geral, nem
buscavam ou nem chegavam a iniciar discussões formais para apoio
financeiro. Já os amigos e satélites eram tratados com condescendência, o
que acabava comprometendo a credibilidade do FMI e arriscando, em certa
medida, até sua solidez financeira. No período em que estive lá, houve
alguns programas especialmente difíceis de implementar, notadamente o da
Grécia, que abordarei mais à frente.

O financiamento do FMI
Como o FMI financia suas atividades de emprestador? Esse é um lado
menos conhecido do funcionamento da instituição. Para entendê-lo, é
preciso reconhecer, primeiramente, que o Fundo é um reserve pooling
arrangement (um arranjo de compartilhamento de reservas), a exemplo do
que são a Iniciativa de Chiang Mai, criada por países do Leste Asiático, sob
liderança do Japão, da China e da Coreia do Sul, e o Arranjo Contingente
de Reservas (ACR), estabelecido posteriormente pelos BRICS.38 O FMI é,
de longe, o mais importante desses arranjos e tem peculiaridades
importantes. Primeiro, é muito maior do que quase todos os demais arranjos
de compartilhamento de reservas existentes. Só o Mecanismo Europeu de
Estabilidade (European Stability Mechanism – ESM), criado pelos
membros da zona do euro após a crise, pode ser comparado ao Fundo em
termos de volume de recursos à disposição. Segundo, o FMI é um actual
(real ou efetivo) reserve pooling arrangement, isto é, um arranjo em que os
países participantes efetivamente depositam suas contribuições,
denominadas quotas, e não um arranjo virtual como são Chiang Mai e o
ACR.39 Terceiro, o FMI é uma instituição de grande porte que, para além de
prover apoio a países-membros com dificuldades de balanço de
pagamentos, exerce atividades variadas de surveillance, pesquisa
econômica aplicada, assistência técnica e treinamento. Chiang Mai tem um
escritório relativamente pequeno, sediado em Singapura, que acompanha as
economias dos 13 países-membros e se apoia, em parte, nos relatórios do
FMI. O ACR dos BRICS ainda não estabeleceu sua unidade de
surveillance, prevista no Tratado que o constituiu.40
Como funciona, em teoria, um arranjo de compartilhamento de
reservas? Na essência, é um acordo ou arranjo internacional, mediante o
qual países se associam para estabelecer o compromisso de socorrer dentro
de certos limites, em caso de dificuldades cambiais, qualquer dos países
participantes, obedecidas determinadas regras preestabelecidas. Quando o
pool é suficientemente amplo em termos de recursos e participantes, pode-
se estabelecer que qualquer país envolvido em uma operação de socorro a
outro país-membro tenha, ele mesmo, o direito de invocar problemas
próprios de balanço de pagamentos para sair da operação e receber
antecipada e imediatamente os recursos emprestados, com sua saída sendo
coberta pelos demais credores. Se essa hipótese de saída for crível e bem
formulada, pode-se continuar tratando recursos desembolsados como parte
das reservas internacionais dos países emprestadores. Um arranjo de
compartilhamento de reservas constitui, assim, um mecanismo de criação
de reservas internacionais. Esses arranjos funcionam bem se contam com
um número razoável de países fortes e quando os membros estão sujeitos a
riscos assimétricos.
Ao FMI se aplicam essas considerações gerais, mas com ressalvas
importantes. Como o Fundo pretendia, desde o início, ter caráter global ou
quase global, o arranjo de compartilhamento de reservas que está no seu
cerne reflete, necessariamente, as características do que é conhecido, talvez
impropriamente, como “sistema monetário internacional”. Trata-se de um
sistema pouco sistemático que foi se formando ao longo do tempo, aos
trancos e barrancos. Funciona com base em algumas moedas nacionais,
principalmente o dólar, e uma moeda regional – o euro. Não existe moeda
internacional; o único arremedo de moeda internacional, o Direito Especial
de Saque (DES), criado no âmbito do FMI em 1969, funciona basicamente
como unidade de conta para a própria instituição. Os americanos nunca
permitiram que o DES se desenvolvesse como moeda, o que ameaçaria
potencialmente o papel do dólar.
Esse sistema assistemático confere alguns privilégios aos emissores de
moedas de liquidez internacional, especialmente do dólar – privilégios
exorbitantes, na célebre expressão de Charles de Gaulle. Um deles, nem
sempre lembrado, é a possiblidade de participar de arranjos de
compartilhamento de reservas sem dificuldade, pela simples emissão (ou
compromisso de emitir) moeda nacional ou regional. Os demais
participantes de arranjos de compartilhamento participam com reservas
adquiridas a certo custo fiscal ou de balanço de pagamentos.
No caso do FMI, os participantes entram com quotas. O arranjo é
engenhoso e repleto de detalhes importantes que remontam, diga-se de
passagem, mais a White do que a Keynes. Para não sobrecarregar os países
mais vulneráveis, o que incluía, no início, os europeus devastados pela
Segunda Guerra, estabeleceu-se que as quotas poderiam ser integralizadas,
em grande parte, nas moedas nacionais dos países-membros, estabelecendo
certa simetria entre os emissores de moeda de liquidez internacional e o
resto do mundo. Só os países com forte posição de balanço de pagamentos
estariam comprometidos a transformar suas quotas em moeda de liquidez
internacional, conforme as necessidades do FMI como emprestador. Para
tal, o país teria que integrar o que viria a ser conhecido como Plano de
Transações Financeiras (Financial Transactions Plan – FTP). O Brasil, por
exemplo, até onde sei, nunca fora parte do FTP ou de mecanismos
equivalentes anteriores, e só aderiu a ele em 2009, primeiro passo no
caminho que faria do país, inesperadamente, um dos credores da instituição.
O ônus de participar do FTP é relativamente pequeno, pois ao ter suas
quotas eventualmente mobilizadas pelo FMI, um país não perde reservas,
apenas registra uma mudança na sua composição, com eventual perda
modesta em termos de remuneração média das reservas.41 Forma-se uma
rede de segurança, que permite a um país credor obter de volta, sem
empecilhos, liquidez internacional em caso de dificuldades próprias. Essa é,
por assim dizer, a mágica de arranjos de compartilhamento de reservas
amplos, com grande número de participantes. E quanto maior o número de
membros e mais espalhados geograficamente, maior tende a ser o número
de países com balanços de pagamentos fortes e menor a chance de que os
membros estejam sujeitos a riscos simétricos.
As quotas servem, na verdade, a três propósitos. O primeiro é, como
explicado, o de constituir o capital próprio do Fundo e financiar suas
atividades de emprestador. O segundo é servir de referência ao cálculo do
acesso de cada país-membro aos empréstimos do FMI. O “acesso normal”
de um país aos recursos do Fundo, determinado por regras mutáveis, é um
múltiplo da quota. Mas são comuns os casos de “acesso excepcional” em
que os tetos normais são ultrapassados por larga margem. Há regras,
aprovadas pela Diretoria, para fornecer acesso excepcional, mas ocorrem
também situações estranhas em que as regras não são propriamente
respeitadas ou são modificadas de forma improvisada. Esse seria o caso da
Grécia, por exemplo, em circunstâncias que, como explicarei, levaram a
considerável abalo na credibilidade do FMI.
O terceiro propósito das quotas é servir de principal determinante do
poder de voto dos países-membros.42 Pelas explicações dadas
anteriormente, não é difícil perceber que a demanda por quotas é superior à
oferta. Uma quota maior favorece o acesso a recursos do FMI e aumenta o
poder de voto do país. É verdade que o aumento da quota implica aumento
da obrigação potencial de financiar o Fundo, se o país for membro do FTP,
mas isso envolve, como mencionado, apenas mudança potencial na
composição das reservas e tem, na pior das hipóteses, um custo modesto de
oportunidade. Os países que dominam a instituição não encontram,
entretanto, muita motivação para aumentar as quotas – a menos que, ponto
crucial, as quotas relativas (quota shares) sejam preservadas. A cada rodada
de aumento das quotas, os países emergentes e sub-representados
vislumbram a oportunidade de modificar o seu status na instituição. Uma
discussão sempre difícil é a determinação da forma de calcular as quotas
relativas e, portanto, o poder de voto de cada país.
Para os países dominantes, a solução tem sido postergar o aumento dos
recursos em tempos de “paz” e, em tempos de “guerra”, recorrer em larga
medida a arranjos paralelos em que os países são chamados a emprestar
reservas ao Fundo, sem adquirir quotas. Voltariam a recorrer a esse
expediente, em escala sem precedentes, para enfrentar os efeitos da crise de
2008. Isso era o ideal para eles; fortalecia-se a instituição sem obrigá-los, de
imediato, a abrir mão de um centímetro de poder de voto. O Brasil e outros
emergentes com reservas elevadas foram chamados a participar como
credores, e acederam.
Repare, leitor, que tecnicamente o que se faz é constituir arranjos de
compartilhamento de reservas paralelos, adicionados ao sistema de quotas.
A participação dos países pode-se dar de duas formas: a) bilateralmente,
com o país abrindo linhas de crédito ou adquirindo títulos emitidos pelo
FMI; ou b) em esquemas plurilaterais, como o New Arrangements to
Borrow – NAB (Novos Arranjos para Emprestar), que existia desde 1998 e
foi consideravelmente ampliado e reformulado depois da crise de 2008. Em
ambas as formas, os participantes comprometem-se a emprestar até um
certo limite e os recursos eventualmente desembolsados têm liquidez
garantida, continuando a fazer parte das reservas do país emprestador.

Dilma Rousseff preferia quotas


Voltarei a tratar da formação dessas linhas de crédito, marcadas por
controvérsias e tensões, mas menciono, desde logo, que a decisão do
presidente Lula de participar dos empréstimos ao Fundo foi tomada contra a
minha opinião, como conto em outro texto deste livro.43 Em retrospecto,
reconheço que o presidente estava certo, e eu errado, pelos motivos
(essencialmente políticos) que expliquei neste outro texto.44
Mas, no período da presidente Dilma, o tema voltou à baila, com a
Administração da instituição e os europeus insistindo em outra rodada de
tomada de empréstimos. Com a crise do euro, de 2011 em diante, e certa
recuperação dos Estados Unidos, o centro de gravidade da crise do
Atlântico Norte migrara para a Europa. Tendo superado as hesitações e os
preconceitos iniciais em relação a que países da área do euro recorressem
ao FMI, os europeus mostravam-se agora ansiosos em reforçar os recursos à
disposição da instituição. Naquela altura, eu já estava mais acostumado
psicologicamente à condição de credor do Fundo e, confesso, ao prestígio
que essa condição automaticamente proporcionava ao diretor brasileiro. O
ministro Mantega, que continuara no cargo no governo Dilma, também
estava muito propenso a participar e até a exercer uma certa liderança no
tema no G20 e no IMFC – em parte por motivos de prestígio nacional, em
parte por preocupações quanto aos spillovers (os efeitos de contágio) da
crise do euro, em especial seu impacto sobre as economias emergentes,
como a brasileira. Nesse meio tempo, havia ocorrido grande renovação na
Administração e na Diretoria e eu, como integrante da “velha guarda”, que
participara da primeira rodada de empréstimos ao FMI em 2009, acabei
contribuindo consideravelmente para a formulação dessa segunda rodada.
Logo verifiquei que estava errando de novo, agora no sentido contrário.
Embora o ministro Mantega e eu estivéssemos participando de boa-fé e de
forma construtiva na formulação da segunda rodada, os europeus, de forma
um tanto cínica, continuaram a sabotar a reforma de quotas do FMI.
Interessante, entretanto, foi a atitude da presidente Dilma. Ela é economista,
como se sabe, e propensa a entrar a fundo nas questões. Por conta própria,
até onde sei, ela chegou à conclusão correta. Eu tinha pouco contato direto
com ela, mas soube que, nas reuniões em Brasília, ela bradava, com a sua
habitual impaciência: “Eu não quero emprestar, de novo, ao FMI! Eu quero
quotas!” Ela não fechava as portas a entrar em uma segunda rodada, mas
mostrava hesitações legítimas.
Lula, em contraste, raramente entrava nessas questões. Não sabia, e nem
queria saber, das emaranhadas discussões do FMI e não se detinha em
questões como emprestar versus comprar quotas. Para esse tipo de questão,
ouvia seus auxiliares, especialmente o ministro Mantega, e tomava as
grandes decisões com base em suas percepções e intuições políticas.45
Tornou-se moda desancar a ex-presidente Dilma e até questionar sua
inteligência. Posso dizer que, nas minhas áreas de competência, a
participação dela foi muito mais positiva do que negativa. Sem saber muito
bem como pensava a presidente da República, e diante das trapaças dos
europeus e da diretora-gerente Christine Lagarde, eu me convertera, ainda
que tardiamente, à opinião de que os BRICS, e mesmo o Brasil
individualmente, não deveriam participar da segunda rodada, tendo em vista
os sintomas de estagnação e até retrocesso da reforma de quotas. Além
disso, não havia àquela altura argumento convincente de que os recursos à
disposição do FMI fossem insuficientes. Os Estados Unidos, diga-se,
tinham opinião semelhante, e haviam sido desde o início contrários à nova
rodada. O ministro Mantega, contudo, continuava a simpatizar com a ideia.
E os demais BRICS, com algumas ressalvas,46 também estavam abertos à
proposta.
Em Cannes, à margem da reunião de cúpula do G20, em novembro de
2011, ocorreu um episódio curioso. Conversávamos a presidente Dilma,
Mantega e eu. De repente, naquele estilo abrasivo que a caracterizava, ela
disse, dirigindo-se ao ministro: “Pare de oferecer dinheiro, Guido!” A
referência era à segunda rodada de empréstimos ao FMI. Voltando-se para
mim e me pegando vigorosamente pelo braço, reforçou: “Já ofereceram
dinheiro para você alguma vez? Já?” Mantega, meio maldosamente,
comentou: “Mas como, se ele foi o responsável pela moratória da dívida
externa?” Dilma não se deu por achada: “Mas fez a moratória porque não
deram dinheiro. Ou não foi?” Confirmei, não porque era a presidente, e uma
presidente, como se sabe, intolerante com divergências, mas porque ela
estava totalmente certa. Em termos técnicos, o que ocorrera nos anos que
antecederam a moratória de 1987 é que cessara o fluxo de dinheiro novo
dos bancos comerciais estrangeiros, mesmo em bases involuntárias, para
financiar uma parte que fosse da pesada conta de juros da dívida. Em
consequência, o Brasil vinha sendo forçado a gerar superávits comerciais
exagerados, à custa de recessão, pressão inflacionária e desequilíbrios
fiscais. A moratória fora, em última análise, um resultado dessas
circunstâncias.47
Mas não quero perder o fio da meada. A participação brasileira nos
empréstimos ao FMI teve outros capítulos, aos quais voltarei
oportunamente. Por ora, o fundamental é reter que a instituição tem dois
tipos de funding ou fontes de financiamento, com implicações muito
diferentes: as quotas – ou capital próprio – e os empréstimos – os
borrowing arrangements (bilaterais ou plurilaterais). As quotas alcançam
atualmente, depois da entrada em vigor da reforma de 2010, quase US$ 700
bilhões; os borrowing arrangements, mais de US$ 700 bilhões, o que
confere ao FMI um poder de fogo extraordinário, provavelmente bem
superior ao que seria preciso utilizar mesmo em períodos de crise
internacional. Isso dá aos países defensores do status quo o argumento de
que um novo aumento de quotas é dispensável. Aos países sub-
representados, resta arguir que os borrowing arrangements devem ser
convertidos em quotas, algo que, aliás, estava previsto nas negociações
realizadas no período da crise internacional, como explicarei mais adiante.

4. O Brasil no FMI
Nossa cadeira no FMI raramente era designada como Brazilian chair. A
referência era a Mr. Loyo’s chair ou Mr. Nogueira Batista’s chair – e as
outras 23 cadeiras da Diretoria também eram quase sempre referidas pelo
nome do diretor, e não pelo nome do país de origem do diretor. Prefiro usar
a designação imprópria para facilitar a exposição e, também, para não dar
ao leitor impressão de personalismo. Mas é importante entender por que a
designação considerada mais correta menciona o nome do diretor e não o
do país. A principal razão é que esse era um meio, entre diversos outros, de
que se valiam os guardiões da estrutura legal do FMI para lembrar a todos
que os diretores eram officials of the Fund (funcionários do Fundo), não
apenas country representatives (representantes de país ou países). Já
mencionei essa dualidade do papel do diretor executivo. A questão é
complexa do ponto de vista jurídico, e há extensa literatura especializada a
respeito. Não quero entrar em detalhes, mas vale mencionar que existe até
mesmo uma interpretação, não aceita por todos os especialistas, de que o
papel de official of the Fund, isto é, a responsabilidade fiduciária, deve
prevalecer sobre o de representação.
Da minha parte, havia certa resistência, sobretudo no início, em aceitar
esse lado do papel do diretor. A razão é que eu tinha, não sem motivos,
certa antipatia pela instituição, reflexo da relação historicamente tumultuada
do Brasil com o Fundo e da minha condição de nacionalista visceral, de
quatro costados, por parte de pai e mãe, como mencionei na apresentação
deste livro. Entendia perfeitamente o que dissera DSK quando aceitou o
convite do então presidente da França, Nicolas Sarkozy, para assumir o
cargo de diretor-gerente do FMI: “Je reste français, je reste socialiste.”
Poderia tranquilamente parafraseá-lo e dizer: “Continuo brasileiro, continuo
nacionalista.”
Mas isso tudo era, por assim dizer, meia verdade. Com o passar do
tempo, fui percebendo que a responsabilidade fiduciária pela instituição era
realmente parte essencial da nossa função, como haviam me advertido meus
antecessores no cargo. Era, por exemplo, argumento poderoso contra
diretores europeus e americanos, especialmente os primeiros, que em certas
ocasiões se comportavam, desbragadamente, como representantes de seus
países de origem, em flagrante contradição com sua responsabilidade
fiduciária. Embora disfarçada pelas habituais hipocrisias e por truques de
linguagem, essa contradição me parecia, às vezes, muito clara, e eu podia
me valer desse argumento para inibir e constranger manobras de adversários
na Diretoria. Funcionava, além disso, como certa proteção contra
interferências indevidas de Brasília – embora esse problema raramente
aparecesse, em razão da minha afinidade com o ministro Mantega, que foi
governador do Brasil em quase todo o período em que estive na Diretoria
do FMI. A situação mudaria radicalmente com a substituição de Mantega
por Levy, em janeiro de 2015, como conto depois.
A designação “cadeira brasileira” é imprecisa por outra e mais óbvia
razão. A cadeira brasileira, assim como 16 outras da Diretoria, é uma
multicountry chair (uma cadeira com múltiplos países). A nossa tinha nove
países quando cheguei a Washington; o número aumentaria para 11 com a
entrada da Nicarágua, de Cabo Verde e de Timor-Leste e a saída da
Colômbia em 2012. Para que todos os países-membros tenham
representação na Diretoria, sem ampliá-la para dimensões inviáveis,
formam-se constituencies, para usar o linguajar do Fundo, regidas por
acordos entre os países que definem o funcionamento da cadeira e, em
especial, a distribuição de cargos de diretor, diretor alterno e assessores.
Esse também é o caso, por exemplo, da cadeira da Índia e, como já
indiquei, das duas da África Subsaariana. Os latino-americanos estão
espalhados por três cadeiras: a nossa; uma cadeira sul-americana que inclui
Argentina, Peru, Chile e alguns países sul-americanos; e uma cadeira quase-
latino-americana, integrada por México, Venezuela, alguns outros latino-
americanos e, também, Espanha. As sete single country chairs (cadeiras de
um só país) são as dos Estados Unidos, Alemanha, França, Reino Unido,
Japão, China e Arábia Saudita.
Os países que detêm single country chairs tendem a valorizar muito
essa condição e consideram-na uma questão de prestígio nacional. Mas logo
descobri que isso era tolice. Admitindo-se que o diretor executivo e sua
equipe estejam dispostos a trabalhar intensamente – hipótese nem sempre
verdadeira, reconheço – representar vários países era um grande trunfo. Não
tanto pela questão de poder de voto – os países pequenos, e mesmo os
médios, acrescentavam poucos votos às cadeiras – mas pela variedade de
experiências que uma constituency proporcionava ao diretor. O diretor de
uma constituency tomava contato com uma série de dimensões do trabalho
do Fundo a que nunca teria acesso se representasse um só país. Aprendia
com as autoridades dos países que representava e também com os
integrantes do staff que cuidavam desses países ou dos temas de política
institucional relacionados a eles. Podia, assim, adquirir influência no
trabalho do FMI em várias áreas.
No processo de reforma da governança do FMI depois da crise de 2008,
houve um esforço, do qual participei, de convencer os europeus com single
country chairs a formar constituencies com outros países para permitir a
redução do tamanho da Diretoria ou a diminuição do número de cadeiras
comandadas por europeus. Quando falava com ingleses, franceses ou
alemães a esse respeito, no G20 e no FMI, a reação era de desagrado e até
certa irritação, como se eu estivesse tentando manipulá-los. Não conseguia
convencê-los de que era a minha opinião sincera.48 Nesse ponto, estava, de
novo, de acordo com os americanos, que há muito preferiam uma Diretoria
menor e com menos europeus. Mesmo que não fosse possível reduzir o
número de cadeiras, tendo em vista a quantidade de países-membros do
FMI, era certamente desejável diminuir o número de diretores e alternos
europeus. Por causa das artimanhas dos europeus, pouco conseguiríamos
nessa área, como veremos.
A cadeira brasileira incluía, quando cheguei, os seguintes oito países,
além do Brasil: a Colômbia, país de tamanho médio, e diversos menores:
Equador, Guiana e Suriname, na América do Sul; Panamá, na América
Central; e República Dominicana, Haiti e Trinidad e Tobago, no Caribe. A
constituency era regida por um acordo que havia sido negociado por Murilo
Portugal. Havia uma vulnerabilidade do Brasil, nunca divulgada, que só
seria resolvida no meu período como diretor executivo. As quotas têm uma
outra implicação prática, além das que já expliquei, pouco conhecida fora
do FMI: são elas que servem de referência para definir a composição da
Diretoria. É com base nas quotas relativas e no poder de voto que delas
decorre, que os países podem pleitear cadeiras exclusivas ou a liderança de
cadeiras multicountry, além de aspectos menos significativos, mas, ainda
assim, importantes para os países e o funcionamento das constituencies,
como a indicação de diretores alternos, de assessores de diferentes níveis e
até, em algumas cadeiras, de assistentes administrativos. A quota brasileira,
que era pequena, podia dar margem a dúvidas sobre se teríamos condições
de manter o comando permanente de uma cadeira na Diretoria. É que no
longo período de 32 anos, de 1966 até 1998, em que Alexandre Kafka foi o
diretor executivo, a quota relativa e o poder de voto do Brasil sofreram
erosão gradual. Com a entrada de novos países no FMI, o nosso peso
relativo foi diminuindo mais do que deveria, considerando o tamanho do
país e da sua economia. Kafka se tornara o decano da Diretoria e tinha, por
sua inteligência e experiência, grande influência na instituição; não dava
importância ao tamanho relativo da quota e ao poder de voto do Brasil.
Murilo e Loyo tentariam, sem sucesso, corrigir essa vulnerabilidade, que só
seria removida com as reformas de 2008 e 2010.
Porém, nesse meio tempo, abriu-se um problema. Os nossos acordos de
constituency no FMI e no Banco Mundial venciam em 2004.49 Colocou-se
então o problema de que o tamanho da quota brasileira no FMI, que caíra
para apenas 1,4%, não nos dava a segurança de reter, sem rotação com
outros países da cadeira, a posição de diretor executivo. Como o Brasil
atribuía, com razão, mais importância a isso do que à nossa posição relativa
na Diretoria do Banco Mundial, Murilo acabou aceitando rotação
assimétrica na posição de diretor no Banco Mundial em troca da
preservação do comando brasileiro contínuo na nossa cadeira no FMI.50
Assim, o quadro que encontrei quando cheguei a Washington era de
uma cadeira comandada pelo Brasil, que indicava um brasileiro para a
eleição pelos demais países da constituency. Por norma do FMI, a cada dois
anos, ocorriam eleições para diretores, ou antes, se um diretor, por alguma
razão, renunciava ao cargo ou não conseguia completar o mandato. Para
pertencer a uma constituency, bastava que um país, mais precisamente o seu
governador no FMI, ou na sua ausência o governador alterno devidamente
autorizado, votasse no nome indicado pelo país que comandava a cadeira.
Na cadeira comandada pelo Brasil, por acerto interno dos países expresso
no acordo de constituency, a Colômbia tinha o direito de indicar o diretor
alterno. Os demais países indicavam senior advisors (assessores sêniores)
ou advisors (assessores), por períodos determinados, conforme a
importância de cada um em termos de quotas relativas. O Brasil tinha
também, ponto crucial, uma vaga de assessor sênior. Tudo isso estava
previsto no acordo de constituency negociado por Murilo Portugal. Do
ponto de vista jurídico, esses acordos eram acertos informais que não
poderiam, em nenhuma hipótese, sobrepor-se a ou violar a estrutura legal
do FMI. Mesmo assim, eram quase sempre respeitados religiosamente. A
distribuição dos países em cadeiras era notavelmente estável, e raramente
ocorriam migrações de uma constituency para a outra. Essa tradição de
estabilidade seria rompida pela cadeira brasileira, com a já referida entrada
de três países e a saída da Colômbia. Houve, também, na mesma época,
mudanças nas cadeiras europeias, por força da reforma de governança e
quotas de 2010, que se revelariam, contudo, menos significativas do que
pareciam à primeira vista. Os europeus, como eu aprenderia, eram
especialistas em window-dressing, operações de fachada e mudanças
cosméticas que preservavam, ou até aumentavam um pouco, sua influência
na Diretoria.

Deficiência estrutural da cadeira brasileira: o que fiz


para superá-la
A cadeira brasileira tinha uma deficiência estrutural de funcionamento que
consegui corrigir só em parte. A questão era, em resumo, a seguinte. As
posições de diretor alterno e as de assessores – essenciais para o bom
funcionamento das cadeiras, tendo em vista o tamanho e a complexidade da
pauta de assuntos perante a Diretoria – eram preenchidas pelos países sem
que o diretor brasileiro tivesse qualquer ingerência sobre as escolhas,
embora todas as nomeações (e demissões) fossem sua prerrogativa
exclusiva, pelas normas do FMI. Problema semelhante existia em outras
cadeiras multicountry, especialmente nas de países emergentes ou em
desenvolvimento. Desde os tempos de Kafka, a cadeira sofria pela baixa
qualidade ou insuficiente dedicação da maioria dos membros não brasileiros
da equipe, ainda que houvesse exceções notáveis.51 Os brasileiros eram
competentes e dedicados, não só os diretores Kafka, Portugal e Loyo, mas
também o assessor sênior, cargo que foi ocupado por pessoas de alta
qualificação oriundas do Banco Central: Alexandre Tombini – que viria a
ser presidente do Banco Central do Brasil no governo Dilma Rousseff e,
depois de mim, diretor executivo pelo Brasil no FMI – e um economista
pouco conhecido, mas de grande experiência e capacidade de trabalho,
Helio Mori, que foi assessor sênior com Kafka, Portugal e Loyo. O diretor e
o assessor sênior brasileiros costumavam carregar a cadeira nas costas,
ocasionalmente com a ajuda do diretor alterno colombiano, quando este era
competente, e de alguns poucos assessores de outros países.52 Apesar
dessas limitações, a cadeira brasileira sempre foi forte e respeitada na
Diretoria, graças principalmente às qualidades e dedicação dos brasileiros.
O comportamento do alterno colombiano e da maioria dos assessores
oriundos dos outros países costumava ser, como me relataram e pude depois
perceber, o de agir basicamente como “representantes” de seus países no
FMI, embora não tivessem autoridade legal para tal, pois era o diretor, e só
ele, que era eleito para representar os países. Mais um exemplo, entretanto,
de como a disposição jurídica é uma, e a realidade política, outra. Na
prática, era compreensível que o alterno colombiano e os assessores dos
demais países da constituency fossem vistos dentro do FMI como
representantes de seus países. A nacionalidade sempre pesa. O problema era
mais outro: os não brasileiros, em sua maioria, pouco ou nada faziam com
alguma eficiência, senão tratar dos assuntos dos seus países – e, em alguns
casos mais graves, nem isso era bem-feito. O diretor e o assessor sênior
brasileiros viviam, portanto, sobrecarregados, tanto mais que não podiam
(ou não queriam) pedir ajuda de Brasília ou outras capitais para
desempenhar suas responsabilidades. Helio Mori era especialmente avesso
a isso. No fundo, todos seguiam a orientação irônica de Pedro Malan, a que
já me referi: o problema de pedir instruções a Brasília era que, às vezes,
elas vinham…
Pouco após a minha chegada a Washington, ocorreu um incidente que
prenunciava problemas maiores que não demorariam a se manifestar na
relação com Brasília. O secretário de assuntos internacionais da Fazenda,
Luiz Melin, estava encarregado, entre outras tarefas, de acompanhar os
assuntos do FMI para auxiliar o ministro Mantega, governador do país na
instituição. Como o ministro tem sempre muitas obrigações, os secretários
podem adquirir certo peso nos temas do FMI ou do Banco Mundial.
Tratava-se de um economista de esquerda, ligado ou filiado ao PT, e com
“excelentes posições políticas”, como se costuma dizer. Porém, como
observou certa vez Maria da Conceição Tavares, “a ideologia é uma
plataforma precária”. A observação dela se aplica não só à pesquisa
científica, mas também a atividades políticas e no âmbito do setor público,
nacional ou multilateral. “Excelentes posições” são de pouca valia, como o
leitor pode bem imaginar, se não são acompanhadas de preparo técnico,
capacidade profissional e seriedade no exercício do cargo.
O primeiro problema com Melin decorreu de uma tentativa dele de
demitir o já mencionado Helio Mori. Brasileiro de origem japonesa, Mori
era essencial para o funcionamento da nossa cadeira. Ele tinha não só a
memória do trabalho e das tradições da cadeira desde os tempos de Kafka,
como era um tremendo “carregador de piano”, dedicado, sério e, além
disso, inteligente e criativo. Um ativo indispensável, mas pouco valorizado,
pois não tinha aquelas características que brasileiros e outros latinos tanto
valorizam e sobrevalorizam: não falava bem, era mal-humorado e muito
discreto, até tímido – sem deixar de ser combativo nas reuniões de
Diretoria, quando requerido. Era provavelmente muito conservador em
termos políticos e me olhava meio desconfiado quando cheguei a
Washington. Mas nunca soube ao certo, nem quis saber, quais eram as suas
posições e preferências políticas. Nos mais de dez anos em que trabalhei em
organismos internacionais, no FMI e depois no banco que os BRICS
criariam, eu adotei, instintivamente, a postura de pouco conversar sobre
questões políticas e ideológicas com meus subordinados, inclusive e
especialmente com os brasileiros, e sobretudo no início da interação
profissional. Eram fundamentais para mim a competência técnica e a
capacidade de trabalho. Quando ocorria de um brasileiro, em Washington
ou depois em Xangai, tentar me agradar com posições supostamente
progressistas, eu logo dava um jeito de encaixar em alguma conversa uma
citação a Deng Xiaoping, que liderou a abertura e modernização da China
depois do período maoísta e costumava dizer que não lhe importava a cor
do gato, desde que caçasse ratos. Havia, por certo, algum risco em valer-se
de assessores mais conservadores, mas era um risco que eu estava mais do
que disposto a correr em nome da eficiência do trabalho. Nunca tive
problemas por causa disso, a não ser na reta final da minha permanência em
Xangai, mas aí já em um contexto político brasileiro totalmente alterado
pelo golpe parlamentar que derrubou a presidente Dilma.
Volto a 2007. Recebo, certo dia, telefonema do secretário, anunciando
que já definira um substituto para Helio Mori: um diplomata de carreira
que, segundo ele, muito me ajudaria. Não quis nem saber quem era o tal
diplomata. Deixei claro que a nomeação do assessor sênior era minha
prerrogativa e que não pretendia substituir Helio Mori. “Mas eu já combinei
com o Celso Amorim”, retrucou o secretário, estranhamente, pois ele estava
subordinado ao ministro Mantega, e não ao ministro das Relações
Exteriores. “Problema seu”, respondi, “não combinou comigo”. “Vou falar
com o ministro”, ainda ameaçou Melin, mas o assunto morreu aí mesmo.
Mori continuaria na cadeira realizando excelente trabalho até seu
afastamento muitos anos depois, por doença grave que levaria a sua morte
prematura.
Bem mais difícil foi a turbulência provocada pelo comportamento e
posterior demissão de um assessor sênior da República Dominicana, Ruddy
Santana – ilustrativa da deficiência estrutural de funcionamento da cadeira
brasileira a que me referi anteriormente. O meu antecessor, Eduardo Loyo,
economista muito capaz, mas tipo bonachão, não queria se amolar com o
que lhe parecia secundário. O dominicano se acostumou a trabalhar solto,
sem dar satisfações ao diretor brasileiro e se comportando, até mesmo, de
forma irregular no uso dos recursos da cadeira em viagens e outras
atividades, como me avisou o próprio Loyo quando fez a passagem de
serviço. Vaidoso e agressivo, valia-se de relações da sua família com o
presidente da República Dominicana, Leonel Fernández – aliás, um dos
mais brilhantes líderes políticos que conheci – para comportar-se de
maneira arrojada, maltratando integrantes do staff do FMI e ignorando ou
evitando, às vezes, até mesmo as orientações do presidente do Banco
Central da República Dominicana, governador do país na instituição. Era
uma dor de cabeça, grave sobretudo porque o país tinha, naquela altura, um
programa com o Fundo, de execução um pouco tumultuada.
O assessor dominicano dificultava tudo com seu comportamento
estabanado. Além disso, a falta de autoridade do diretor brasileiro sobre ele
era um mau exemplo para os demais integrantes da equipe, exceto Helio
Mori, que não precisava de exemplo nenhum. Comecei a me informar sobre
a situação da República Dominicana, conversando não só com o próprio
assessor dominicano, mas com o staff do FMI e com o presidente do banco
central do país, Héctor Valdez, a vice-presidente do banco, Clarissa de la
Rocha, e outros integrantes do órgão. Depois de muitas situações
desagradáveis, a gota-d’água foi quando o assessor dominicano me
interpelou, inclusive por escrito, dizendo que era inadmissível que eu
tratasse diretamente com as autoridades dominicanas, sem passar por ele.
Resolvi demiti-lo sumariamente, sem consultar ninguém. Expliquei depois
o ocorrido cuidadosamente às autoridades do Banco Central dominicano,
que receberam com satisfação, como eu previa, mas sem grande certeza, a
notícia do afastamento da figura problemática. Os membros do staff do FMI
que lidavam com a República Dominicana também respiraram aliviados.
Soube que o presidente Leonel Fernández ficara descontente com a
demissão, em razão dos mencionados laços familiares, mas acabou se
conformando, graças à atuação do experiente presidente do Banco Central.
Fiz questão de logo fazer visitas à República Dominicana e estive em duas
ocasiões com o presidente Fernández, sem levantar, claro, a questão da
demissão do assessor. Durante os meus mais de oito anos no FMI, as
minhas relações com a República Dominicana sempre foram muito boas;
era um dos países que eu pretendia trazer para o banco de desenvolvimento
criado pelos BRICS, e os dominicanos receberam bem as primeiras
sondagens. Depois desse incidente, estabeleceu-se a tradição de só enviar
funcionários do Banco Central para ocupar a posição de assessor que cabia
à República Dominicana na cadeira, o que melhorou a qualidade do
trabalho. O primeiro substituto, Julio Estrella, era uma pessoa alegre e
dedicada e, para consternação de todos, morreria subitamente anos depois,
de ataque cardíaco, no exercício do cargo. Menciono isso porque nas
perseguições que sofreria no FMI, e que relatarei depois, fui vítima da
calúnia de que o meu nível de exigência era tal que acabava levando meus
funcionários à morte ou, como no caso de Mori, a doenças incapacitantes.
Isso me deixava indignado, pois minhas relações com Estrella eram
tranquilas, e Mori, apesar de divergências ocasionais e naturais, só me dava
alegria, com a qualidade e variedade de suas contribuições.
A demissão do dominicano funcionou, acredito, como uma sacudida
geral na equipe da cadeira, que se deu conta de que o jogo começara a
mudar. Eduardo Loyo era mais preparado do que eu para diversos temas da
agenda do FMI, tinha conquistado prestígio na instituição, e não era nada
fácil substituí-lo. Mas a disciplina interna da cadeira deixava a desejar. Aos
poucos, fui motivando e pressionando a equipe para trabalhar mais e com
mais seriedade e fui, em parte, bem-sucedido. Procurava, também,
sensibilizar as autoridades dos países sobre a importância de enviar pessoas
preparadas para a nossa cadeira, sem romper com a tradição, longamente
estabelecida, de aceitar sem questionamento as indicações que vinham dos
nossos países. Mas não teria o menor sucesso com a Colômbia e a minha
alterna colombiana, María Inés Agudelo, que era arrogante, não pretendia
trabalhar e nem se interessava pela substância das nossas atribuições. Era
um problema tê-la como vice. Decidiria afastá-la, alguns anos mais tarde,
depois de muitas atribulações, e enfrentaria dificuldades ainda maiores do
que as que resultaram da demissão do dominicano. Embora a colombiana
fosse incompetente e despreparada para o cargo e estivesse em Washington
basicamente a passeio, não deixava de tumultuar nosso trabalho, por
vaidade ou outros motivos. Depois de muito hesitar, acabei decidindo correr
o risco de demiti-la. Infelizmente, a turbulência decorrente dessa decisão foi
das mais graves que enfrentaria no FMI. A repercussão seria enorme,
causando grande desgaste para mim. Tratarei dessa crise posteriormente,
pois ela só ganhou a dimensão e os desdobramentos que teve por causa dos
conflitos relacionados à reforma do FMI, tema que precisa ser abordado
antes.
No momento, o importante é reter que o progresso que se poderia fazer
na superação da deficiência estrutural da cadeira brasileira era
necessariamente limitado. Todos os países da cadeira eram emergentes ou
em desenvolvimento, vários deles pequenos, com limitações naturais
quanto à qualidade e quantidade dos seus quadros técnicos. Os resultados
que eu conseguiria alcançar motivando e pressionando a equipe
multinacional tinham limites relativamente estreitos. E ponto importante:
para o diretor brasileiro, mesmo disposto a correr certos riscos, não era
politicamente possível seguir repetidamente o caminho adotado com o
assessor dominicano e, depois, com a alterna colombiana. O que eu fiz já
era considerado excessivo. Principalmente a decisão incomum,
provavelmente sem precedentes na história da Diretoria do FMI, de demitir
a diretora alterna de outro país – e um país de certa importância como a
Colômbia. Eu entendia que estávamos ali para inovar, e não para seguir
cegamente precedentes e práticas estabelecidas, mas não podia abusar da
sorte nem superestimar o meu poder.
Acabei contornando e resolvendo parcialmente o problema estrutural da
nossa cadeira graças em grande medida ao apoio do governo, apoio que tive
durante quase toda a minha passagem pelo FMI. Funcionários do governo
brasileiro vieram trabalhar, em tempo integral, como secondees na nossa
cadeira, cedidos temporariamente com ônus para os órgãos de origem. Com
o auxílio do Banco Central, pude selecionar e trazer para a cadeira, um e,
em alguns momentos, dois economistas do banco para trabalhar conosco em
Washington. Esses economistas, de modo geral, deram contribuição
importante para a cadeira brasileira, entre eles notadamente Pedro Fachada,
que seria depois assessor sênior e diretor alterno, Luiz Mansur e Fábio
Najjarian Batista. Este último depois me acompanharia na mudança para
Xangai, realizando também trabalho notável no banco que os BRICS
criariam. Aprendi, no FMI, a valorizar os funcionários de carreira do Banco
Central do Brasil e, também, dos bancos centrais de outros países, dentro e
fora da nossa cadeira. São geralmente bem preparados e, pela formação e
experiência, se adaptam melhor do que profissionais de outras origens ao
trabalho do FMI. Outro aspecto fundamental foi o apoio do Itamaraty. Uma
inovação no meu período como diretor foi a participação primeiro de um,
depois dois diplomatas de carreira como secondees na cadeira brasileira. Há
uma dimensão diplomática na atuação do diretor do FMI que torna
potencialmente muito útil a presença desses profissionais. Entre os
diplomatas que por lá passaram destacaram-se Eduardo Saboia e Felipe
Santarosa. Evidentemente, há incompetência e preguiça em todos os cantos
e alguns dos secondees do Banco Central e do Itamaraty não deram certo na
cadeira; mas sobre esses eu tinha mais controle na admissão e demissão, e
devolvê-los ao órgão de origem não criava traumas e tensões diplomáticas
com outros países.
Tudo isso só foi possível porque eu era, por uma combinação de
circunstâncias especiais, um diretor executivo sui generis. Desfrutava da
confiança do ministro Mantega, que havia me convidado para o cargo e
seria, por muito tempo, até dezembro de 2014, ministro da Fazenda do
governo brasileiro; tínhamos afinidade de pensamento econômico e
essencialmente as mesmas opiniões sobre o posicionamento internacional
do país. Contava, além disso, com acesso ao presidente da República, no
período Lula, a quem visitava algumas vezes por ano em Brasília – e isso
era sabido por todos dentro do governo. Com sua substituição por Dilma
Rousseff perdi, infelizmente, esse acesso – talvez um blessing in disguise
(uma bênção disfarçada), tendo em vista o temperamento da presidente –,
mas tinha, de qualquer modo, afinidade natural de pontos de vista com ela
nas questões econômicas internacionais das áreas em que atuava (FMI, G20
e BRICS), tanto que muitos dentro do governo imaginavam,
equivocadamente, que eu exercia influência direta sobre ela. Aliás, sem
jamais mentir e ostentar acesso que não tinha, eu me valia às vezes desse
equívoco para vencer certas barreiras dentro do governo brasileiro. As
minhas relações com Henrique Meirelles, presidente do Banco Central no
governo Lula, eram frias e protocolares, mas eu mantinha boa relação com
o presidente do Banco Central no governo Dilma, Alexandre Tombini,
ainda que marcada por divergências no que diz respeito ao Arranjo
Contingente de Reservas (ACR) que os BRICS criariam.53 No comando do
Itamaraty, tive a sorte de encontrar embaixadores que se consideravam
discípulos do meu pai, diplomata lendário em sua época, principalmente nas
décadas de 1970 e 1980, e que era um dos líderes políticos e intelectuais da
ala nacional-desenvolvimentista da casa. Esse era o caso do chanceler Celso
Amorim, do seu secretário-geral (designação adotada no Itamaraty para o
cargo de vice-ministro) Samuel Pinheiro Guimarães e do chanceler Antonio
Patriota, que sucederia a Amorim no governo Dilma. Com todos eles
mantinha ótimas relações e podia contar com sua ajuda no reforço da
cadeira no FMI. Eram também interlocutores naturais para lidar com alguns
dos problemas que enfrentava no Fundo, assim como para concretizar
alguns objetivos que eu fixava, em acordo com e seguindo as orientações do
ministro da Fazenda. Isso continuou a valer, ainda que em menor medida,
com os chanceleres que sucederam a Patriota no governo Dilma. A minha
força como diretor no FMI era resultado, assim, de uma confluência muito
especial de fatores favoráveis.
Não foi apenas o apoio do governo brasileiro que permitiu reforçar a
cadeira e superar, em grande medida, suas deficiências de funcionamento.
Também contribuíram para tal a saída da Colômbia e a reforma de quotas e
voz de 2008. A saída da Colômbia abriu espaço, graças ao apoio do
ministro Mantega e depois de um diálogo por vezes difícil com os países da
constituency, para que eu preenchesse a vaga de alterno com um nacional
argentino, o já mencionado Hector Torres, que havia sido (e seria depois,
novamente) diretor da cadeira integrada pela Argentina. A reforma de 2008,
por sua vez, emendou o Convênio Constitutivo para permitir a nomeação de
um segundo diretor alterno para cadeiras com grande número de países.
Inicialmente, só as cadeiras com 19 ou mais países teriam direito a um
segundo alterno. Posteriormente, o patamar foi reduzido para sete países,
beneficiando nossa cadeira.54 Preenchi a vaga com outro funcionário de
carreira do Banco Central do Brasil, o experiente e competente Ivan de
Oliveira Lima. No seu auge, em 2013 e 2014, a cadeira brasileira contava
com dois alternos, escolhidos livremente por mim, três secondees
brasileiros – dois do Itamaraty e um do Banco Central –, além de alguns
assessores atuantes e eficientes de outros países da cadeira.

Crescente influência do Brasil


Uma coisa que confirmei na minha passagem pelo FMI: é impressionante o
que se consegue fazer com equipes pequenas, desde que integradas por
pessoas de qualidade, motivadas e com um propósito comum! Não convém,
leitor, necessariamente acreditar quando algum burocrata em posição de
chefia, no plano nacional ou internacional, reclama do número insuficiente
de funcionários. A cadeira brasileira teve, no máximo, 15 funcionários,
incluindo todos – diretor, alternos, assessores, secondees e assistentes
administrativos. Mesmo assim, marcávamos presença e tínhamos crescente
influência, não digo em todos os temas, pois a pauta do FMI era gigantesca,
mas em grande parte daqueles discutidos ou decididos pela Diretoria –
inclusive, destacadamente, na defesa do interesse dos nossos países na
instituição.55 Éramos temidos, respeitados ou queridos, conforme o caso,
pela Administração, os demais diretores e pelo staff.
Aqui entra um aspecto institucional importante, também desconhecido
fora do Fundo: a variabilidade da duração dos mandatos dos diretores
executivos é mais uma circunstância que pode favorecer o diretor brasileiro.
Cada cadeira tem seu próprio arranjo, mas a maioria dos diretores tem
mandatos de dois, no máximo três anos, período insuficiente para
compreender em profundidade o funcionamento da instituição. Na cadeira
brasileira, não há qualquer limite à duração do mandato. Se tiver apoio do
governo brasileiro e interesse em continuar, como foi meu caso, o diretor
pode se reeleger sucessivamente para mandatos de dois anos.56 Assim, com
o passar dos anos, acumulei considerável vantagem sobre a grande maioria
dos meus colegas de Diretoria. Poucos tinham a experiência que eu
adquirira. Quando deixei o cargo, em junho de 2015, eu era o vice-decano
da Diretoria, o segundo mais antigo. “Vice dean or dean of all vices”,
ironizava meu amigo e colega indiano de Diretoria, Rakesh Mohan,
valendo-se do duplo sentido da palavra vice em inglês (vice e vício) para
fazer alusão às polêmicas que eu costumava patrocinar. Eu mesmo
parodiava o casuísmo costumeiro do FMI, observando que, se algum dia eu
viesse a ser o mais antigo dos diretores, a instituição mudaria a regra para
designar o decano: “Afinal, perguntariam, ‘por que deve o Decano
necessariamente ser o mais antigo dos Diretores?’”, dizia, arrancando
gargalhadas dos aliados e sorrisos amarelos dos adversários.
Ironias à parte, existe na conformação da Diretoria do FMI um
problema real, que talvez deva ser corrigido, no interesse da qualidade dos
trabalhos – o mandato curto demais dos diretores. Murilo Portugal havia
publicado em 2005 extenso trabalho sobre a governança do FMI que
propunha, entre outras coisas, alongar o mandato dos diretores para seis
anos.57 Isso favoreceria o acúmulo de conhecimentos pelos diretores e
aumentaria sua independência em relação aos governos – argumentos
semelhantes aos que se usam para conceder a autonomia formal ou
independência aos bancos centrais, instituindo mandatos fixos e longos para
os presidentes e demais diretores. No FMI, essa proposta não tem
prosperado. As capitais preferem, compreensivelmente, manter os diretores
executivos sob rédea curta.58 E a Administração prefere lidar com uma
Diretoria fraca, em que predomine a rotatividade dos diretores.
Nas circunstâncias então prevalecentes, o diretor brasileiro levava certa
vantagem e a nossa cadeira se fortalecia, ano após ano, tanto em termos
absolutos, como relativamente à maioria das demais cadeiras. Sobravam,
cada vez mais, tempo, energia e capacidade para defender até países que
não faziam parte da nossa cadeira contra injustiças patrocinadas pela
Administração ou por interesses dos principais acionistas. Fomos
conquistando, aos poucos, a fama de defensores dos pequenos, pobres e
oprimidos. A cadeira brasileira se destacava, por exemplo, até na defesa de
pequenos países desenvolvidos, relativamente abandonados pelos diretores
que deveriam representá-los, tais como Islândia, Chipre e, sobretudo,
Grécia. O diretor sueco não se destacava na defesa da Islândia, o italiano
não se expunha na defesa da Grécia, nem o holandês na defesa de Chipre. O
Brasil tornara-se credor do FMI, mas o diretor brasileiro continuava com
coração de devedor, e não esquecia o que o próprio Brasil havia passado nas
mãos do FMI e outros credores externos, em outros tempos.
Bem sei, leitor, que é discutível se cabia dispender tanto tempo e
energia para interferir em temas que não diziam respeito diretamente ao
Brasil e aos demais países da nossa cadeira. Mas era o espírito do tempo,
por assim dizer. O Brasil, depois de tanto tempo de cabeça baixa, estava em
plena ascensão. Nossa popularidade no exterior batia recordes, como se
veria na Copa de 2014 e, ainda, na Olimpíada de 2016. Era imenso o
prestígio do presidente Lula naqueles anos e Dilma Rousseff, que não tinha
o mesmo poder de irradiação, herdou esse capital político internacional.
Algum leitor que porventura não simpatize com Lula ou o PT pode receber
essas palavras com desprazer e suspeita. Mas quero frisar que, digo isso
com toda a isenção, não por ouvir dizer ou ler na mídia internacional, mas
como algo que observei e vivenciei diretamente no contato com autoridades
de inúmeros países no FMI, no G20, nos BRICS e em outros foros ao longo
desses anos todos. Esse prestígio respingava sobre todos os brasileiros que
atuavam no exterior. DSK, por exemplo, era admirador declarado do
presidente Lula, o que facilitou minha vida automaticamente no período em
que ele presidiu o Fundo.
Mas não quero me adiantar no relato. Há um ponto que gostaria agora
de retomar, com mais especificidade, e que é provavelmente impossível de
perceber sem passar pelo FMI, sem a vivência da instituição: o grande
benefício potencial de comandar uma cadeira multicountry. A presença de
um grupo variado de países, mesmo pequenos, abre horizontes para o
diretor e sua equipe. A presença do Haiti, por exemplo, nos inseria nas
discussões relativas a países de baixa renda – os LICs (low income
countries), que recebem tratamento diferenciado no FMI. A presença do
Panamá, do Equador e, mais tarde, de Timor-Leste nos dava acesso direto à
experiência macroeconômica e financeira de economias plenamente
dolarizadas. Respondendo a pedidos do ministro de Finanças de Trinidad e
Tobago, Winston Dookeran; do presidente da Guiana, Bharrat Jagdeo, e do
seu ministro de Finanças, Ashni Singh; e também do presidente do Banco
Central de Suriname, Gillmore Hoefdraad, lançamos dentro do FMI a Small
States Initiative (Iniciativa dos Estados Pequenos), liderando a coordenação
das cadeiras da Diretoria de que faziam parte países pequenos.59
Com a entrada em 2012 de Cabo Verde e Timor-Leste na cadeira,
fincamos bandeira na África e na Ásia. Passamos a ser incluídos em todas
as atividades do Fundo relativas à África e à Ásia, para desgosto da
diretora-gerente Lagarde e de alguns integrantes do staff, que preferiam
lidar com cadeiras mais passivas e acomodadas. A presença de Timor-Leste
favoreceu a nossa atuação na questão dos países frágeis. Timor, nas pessoas
do primeiro-ministro Xanana Gusmão e da ministra de Finanças, Emília
Pires, exercia liderança internacional no movimento G7+. Criado em 2010,
o grupo reúne países da África, Ásia e outras regiões que se encontram em
situação especialmente frágil em razão de conflitos. Outro país da nossa
cadeira, o Haiti, também integrava o G7. Resolvemos trazer também essa
iniciativa para o FMI, liderando a coordenação de cadeiras que incluíam
países do G7+.
Não havia, dentro do FMI, grande sensibilidade no trato com esses
países. Não era nada fácil sensibilizar a Administração, o staff e outros
diretores para os problemas dos países pequenos ou frágeis. Aconteceu até
mesmo do diretor alemão reclamar da formação de um “bloco” das cadeiras
dos países pequenos na Diretoria (logo o alemão que era integrante e um
dos líderes do único bloco realmente existente no FMI – o europeu) para,
em momento seguinte, pedir a entrada no nosso grupo, causando hilaridade.
A diretora-gerente, Christine Lagarde, era algo arrogante no trato com esses
países menores e vulneráveis. Certa vez, organizei uma visita de um grupo
de autoridades de países frágeis a ela, à margem de uma das reuniões
semestrais do FMI, em Washington. O grupo de visitantes do G7+ era
liderado nessa ocasião por Xanana Gusmão, figura internacionalmente
reconhecida, que fora o líder timorense na guerra de independência contra a
Indonésia. Por arrogância ou ignorância, sem se dar conta talvez de que
estava diante do Nelson Mandela do Sudeste Asiático, Lagarde declarou no
início da reunião de que dispunha de apenas 15 minutos… As marcas do
passado colonial não são fáceis de apagar.
Seja como for, tudo isso aumentava enormemente o raio de atuação da
cadeira brasileira. Em certo momento, descobri para minha surpresa que
nós estávamos emitindo, para discussão nas reuniões da Diretoria, mais
statements ou documentos escritos do que qualquer das outras 23 cadeiras,
inclusive a dos Estados Unidos! Isso era uma anomalia, por dois motivos. O
primeiro é que os Estados Unidos, muito mais que o Brasil e os demais
países da nossa cadeira, têm um escopo de atuação global, correspondente
ao status de principal potência mundial. Segundo, o Tesouro e outros
departamentos do governo americano enviavam, não raro, mais ou menos
prontos os statements que a cadeira americana apresentava. Nós, ao
contrário, fazíamos quase tudo in house – seja por falta de recursos nas
capitais, seja porque seguíamos em relação a Brasília a já mencionada
abordagem do ex-ministro Malan.
A cadeira brasileira, lembro-me com orgulho, se transformara em uma
máquina poderosa e azeitada, que se manifestava, geralmente com
qualidade, discernimento e independência sobre todas as principais questões
do FMI e até sobre várias questões secundárias ou terciárias. Tínhamos uma
assistente administrativa colombiana, Elsa Gomes, inteligente e irônica, que
costumava me advertir com o provérbio: “Quien mucho abarca, poco
aprieta”. Havia, sem dúvida, o risco de perda de foco e qualidade. Acredito
que conseguíamos superá-lo, mas, claro, à custa de muito sacrifício pessoal
de todos. Nem todos conseguiam acompanhar esse ritmo intenso e ficavam
pelo caminho, às vezes, insatisfações e ressentimentos na equipe. Isso seria
usado contra mim quando abriram procedimentos administrativos e
investigações espúrias para tentar me desestabilizar e derrubar do cargo,
como relatarei mais adiante.
A nossa cadeira estava, certamente, entre, digamos, as três ou quatro
melhores e mais atuantes da Diretoria. Não diria a melhor, e não por falsa
modéstia. O diretor brasileiro, de temperamento arrebatado, propenso à
polêmica e à controvérsia, excessivamente combativo, terminava por
atrapalhar, em certa medida, o trabalho da cadeira – devo reconhecer. O
presidente do Banco Central do Haiti, Charles Castells, de quem me tornara
relativamente próximo ao longo dos anos e que, como a maioria dos demais
governadores dos nossos países, acompanhava de perto o trabalho da nossa
cadeira, comentou certa vez, sem referir-se diretamente a mim, que era
importante pick your battles, escolher suas batalhas. Entendi a mensagem,
mas continuei exagerando. Ninguém escapa a seu temperamento.
A forma de atuar do diretor brasileiro, impetuosa, às vezes até emotiva,
embora causasse estranheza no FMI, tinha sua razão de ser. Não eram
intervenções gratuitas, mas fundamentadas em conhecimento dos temas em
discussão. Além disso, eu sempre me pautara, em alguma medida, pela
observação de Hegel de que nada de importante se faz sem paixão. Sem
isso era difícil que eu me interessasse pelas questões do FMI e trabalhasse
de maneira intensa e produtiva. Por outro lado, reconheço, intervenções
apaixonadas, muito enfáticas e polêmicas, nem sempre eram as mais
eficazes. Mas, enfim, é difícil julgar. Deixo o leitor com essa ambiguidade e
prossigo.
O pano de fundo da atuação e influência da cadeira brasileira naqueles
anos era a ascensão do Brasil. Apesar de manter contato regular e
substantivo com o ministro Mantega, não posso dizer que a atuação da
cadeira fosse combinada em detalhes, nem sequer em linhas gerais, com o
governo e, muito menos, com o presidente Lula. Mas ela brotava,
naturalmente, da ascensão e do prestígio crescente do Brasil no período
Lula e, em menor medida, no período Dilma Rousseff. O Brasil se
comportava, nessa época, como o grande país que é. E eu, no meu canto no
FMI, e depois no G20 e nos BRICS, me orgulhava de fazer parte disso, de
ser uma peça dessa engrenagem. Bastava-me o sentimento de ser um
soldado brasileiro ou, variando e aumentando um pouco a metáfora, o
comandante de um pequeno destacamento multinacional que lutava
aguerridamente em uma das trincheiras da guerra pela ascensão do Brasil e
de outras nações emergentes no mundo.

1 Texto concluído em junho de 2019. Agradeço os comentários e sugestões de Hector Torres, Pedro
Fachada, Felipe Santarosa e Sergio Xavier Ferreira, sem responsabilizá-los pelas opiniões expressas
ou pelos erros e omissões remanescentes.
2 A chefe de missão do FMI, responsável pela tentativa de negociar um novo acordo com o governo
Sarney, ainda era a chilena Ana Maria Jul, que, embora fosse funcionária de escalão médio do FMI,
ficara célebre no Brasil pelo seu papel nas tumultuadas negociações com o ministro Delfim Netto
durante o governo Figueiredo nos anos iniciais da década de 1980.
3 Sobre Abraham Lincoln, ver neste livro p. 401 e 402.
4 Outras fontes potencialmente importantes são os escritórios ou grupos de avaliação independente
dessas instituições. Os trabalhos do Independent Evaluation Office (IEO) do FMI costumam ser
interessantes e podem ser encontrados na página da instituição na internet. Também vale a pena
consultar os trabalhos do ex-historiador oficial da instituição, James Boughton, especialmente os que
publicou a título pessoal. Embora com menos independência, o departamento de pesquisa do FMI
também produz working papers ou outras publicações que ajudam, às vezes, a entender como
funciona a instituição.
5 Ver p. 418-9.
6 A esmagadora maioria do corpo técnico está em Washington; apenas uma pequena parcela trabalha
em escritórios de representação em alguns países, geralmente de maior porte ou que estão executando
programas de financiamento e ajustamento com o FMI. Nesse ponto, o Fundo é muito diferente do
Banco Mundial, que possui pesada estrutura fora de Washington e grande número de funcionários
espalhados pelo mundo.
7 Para alguns aspectos desse debate macroeconômico ver neste livro p. 43-53.
8 Ver neste livro p. 258-9.
9 Com as reformas de 2008 e 2010, a participação dos países desenvolvidos no poder de voto
diminuiu de 60% para 55% do total.
10 O processo de coordenação entre os BRICs, inclusive na Diretoria do FMI, começou em 2008, por
iniciativa da Rússia. Ver neste livro p. 235-7.
11 Ver neste livro p. 50-3.
12 Na prática, isso significa a disposição dos diretores minoritários de juntar-se a ou acompanhar o
consenso (join or go along with the consensus), ainda que possam ter expressado reservas ou
discordâncias por escrito e em intervenções verbais.
13 No caso dos suíços, havia um fator estrutural que os diferenciava dos demais europeus: a relativa
independência do país, que não pertence à União Europeia. No caso dos diretores belga e austríaco, o
que pesava eram as qualidades pessoais, inclusive a longa experiência de FMI e a disposição de atuar
com certa autonomia no interesse da instituição.
14 Em uma delas, a cadeira do México e da Venezuela, o comando é compartilhado em regime de
rotação com a Espanha, o que reduz para 11, em certos períodos, o número de cadeiras lideradas por
países emergentes ou em desenvolvimento.
15 No meu período na Diretoria, Peter Gakuno e Moeketsi Majoro foram exceções notáveis no
comando da cadeira africana anglófona, principalmente o primeiro.
16 Pelo acordo que rege a cadeira africana anglófona, há uma rotação simétrica no posto de diretor
entre os 23 países-membros; em consequência, um sul-africano ocupa o posto de diretor a cada 46
anos. Para aumentar a sua presença na Diretoria, a África do Sul tem lutado pela criação de uma
terceira cadeira africana. Isso foi alcançado no Banco Mundial, onde se criou uma 25a cadeira,
integrada por África do Sul, Angola e Nigéria. Pessoalmente, não simpatizava muito com a ideia,
apesar da presença da África do Sul nos BRICS a partir de 2011. Não via muita vantagem em ampliar
uma Diretoria já grande demais para criar o que arriscaria ser mais uma cadeira relativamente
passiva, com tendência a seguir os acionistas majoritários. A minha relutância desagradou os sul-
africanos que batiam muito nessa tecla.
17 Constituency é o termo usado no FMI, e também no Banco Mundial, para designar grupos de
países que votam em um só diretor executivo e integram assim uma cadeira da Diretoria.
18 A frase-padrão, repetida mecanicamente por diretores ou membros da sua equipe, é: “We agree
with the thrust of the staff appraisal.” (“Estamos de acordo com a essência da avaliação do staff.”)
Os relatórios do staff submetidos à apreciação da Diretoria contêm, quase sempre, uma seção
intitulada staff appraisal, que resume as principais conclusões. Muitas cadeiras, até de países
desenvolvidos, se limitavam, por comodismo ou cautela, a parafrasear, às vezes simplesmente repetir,
trechos do staff appraisal. Na cadeira brasileira, isso era terminantemente proibido. Nos nossos
pareceres escritos e intervenções verbais, a minha orientação era evitar frases feitas e concordâncias
automáticas. Procurávamos estudar os assuntos e fazer contribuições relevantes ao debate,
expressando com frequência críticas ao trabalho do staff e às propostas da Administração. Não
agradávamos, mas suscitávamos respeito.
19 As reuniões plenárias do Conselho de Governadores ocorrem uma vez por ano, em outubro, mas
têm pouca importância. É principalmente uma oportunidade para os governadores de países pequenos
(ou seus alternos) discursarem sobre temas da agenda do FMI e da economia internacional.
20 A diferença é que, às vezes, por acertos internos das constituencies, o comando da cadeira no
IMFC diverge do comando na Diretoria.
21 Criou-se um comitê semelhante no Banco Mundial, denominado Comitê de Desenvolvimento
(Development Committee).
22 Como os ministros de Finanças e presidentes de Bancos Centrais vivem assoberbados por
questões quase sempre mais importantes, a atuação no Conselho Ministerial ficaria,
preponderantemente, em mãos de funcionários de terceiro ou quarto escalão, como os secretários de
assuntos internacionais dos ministérios de Finanças ou diretores da área internacional dos bancos
centrais. Eram esses funcionários os que se mostravam, às vezes, mais sensíveis à argumentação da
Administração e dos europeus. A nós, diretores, cabia cobrir esse flanco, o que fizemos com sucesso.
23 Ver neste livro p. 36-7.
24 A Holanda e a Espanha tentaram, com apoio dos europeus do G20, se incorporar ao grupo. A
Holanda, diga-se de passagem, era o mais conservador dos pequenos europeus. A Espanha
conseguiria o status de convidado permanente, mas não chegou a ser aceita como membro pleno. O
governo brasileiro, por afinidades socialistas, tendia a apoiar a entrada da Espanha. Marco Aurélio
Garcia, prestigiado assessor internacional do presidente Lula, simpatizava com as pretensões
espanholas, então governada pelo Partido Socialista. Mas era, no meu entender, um erro de avaliação.
A Espanha, no FMI e no G20, não se distinguia em nada da posição conservadora e imobilista dos
outros grandes europeus. Cheguei a levar o assunto diretamente ao presidente Lula, que me explicou
que o presidente George W. Bush era contrário à entrada de mais europeus. Na primeira reunião de
líderes do G20, em Washington, em novembro de 2008, George W. Bush que, como anfitrião,
presidia o encontro, ostensivamente evitou conceder a palavra ao presidente do governo espanhol,
segundo me relatou Lula.
25 Gastava-se tempo enorme com a discussão de novas regras e procedimentos que pudessem
resultar em restrição às viagens de trabalho da cadeira brasileira e de algumas outras. Certa vez, em
reunião do comitê administrativo da Diretoria, o diretor suíço, René Weber, comentou ironicamente
que lhe parecia um verdadeiro absurdo dedicar horas e horas ao que era, no fundo, uma tentativa de
“ground Mr. Nogueira Batista” (de me aterrar ou deixar de castigo). Sendo eu funcionário do FMI, o
governo brasileiro não teria condições de arcar com o custo das minhas viagens relacionadas ao G20
e aos BRICS. A minha pretensão, afinal vitoriosa, de custear essas despesas de viagens (minhas e, às
vezes, de alguns assessores) com o orçamento da cadeira brasileira se baseava juridicamente na
possibilidade que têm os diretores executivos de prestar assistência técnica (inclusive remunerada, o
que não era o meu caso) aos países que representam na instituição.
26 Lagarde estava, na realidade, em condições pessoais algo precárias para liderar esse tipo de
manobra, pois ela fora ministra de Finanças da França durante a fase inicial da crise, quando diversos
compromissos relativos à reforma do FMI foram assumidos no âmbito do G20 – ponto que cheguei a
ressaltar em reuniões da Diretoria. Conseguia causar algum constrangimento, mas isso não impedia
que a diretora-gerente persistisse nas suas manobras.
27 “Autoridades” é um termo ambíguo, muito usado no FMI, que esconde o fato de que os diretores,
a Administração e o staff interagem com ou consultam não necessariamente os ministros de Finanças
ou presidentes de banco central, a quem nem sempre têm grande acesso, mas funcionários de escalão
intermediário nas capitais, que não possuem papel formal no processo decisório da instituição.
28 Uma exceção importante foi a decisão de emprestar recursos ao FMI, que foi tomada pelo
presidente. Ver neste livro p. 406-7.
29 Vigora, também, a prática de receber visitas intermediárias do staff, as chamadas mid-cycle staff
visits, entre uma e outra consulta anual do Artigo IV.
30 A Nicarágua, durante o governo de Daniel Ortega, chegou a executar de forma bem-sucedida um
programa de financiamento e ajustamento com o FMI.
31 Os principais são o World Economic Outlook, o Global Financial Stability Report e o Fiscal
Monitor. Podem ser interessantes, também, os relatórios econômicos sobre as diferentes regiões do
mundo. Todos esses documentos estão disponíveis na página do FMI na internet.
31 Sobre isso, ver Independent Evaluation Office (IEO), IMF Performance in the Run-Up to the
Financial and Economic Crisis: IMF Surveillance in 2004-07, agosto de 2011. Disponível em:
<https://ieo.imf.org/>.
33 Ver neste livro p. 48-9.
34 No caso de países pequenos ou menos desenvolvidos, os relatórios do Artigo IV constituem, não
raro, a principal, às vezes a única, fonte de informações abrangentes e relativamente confiáveis sobre
a economia do país, e a sua publicação tem repercussão considerável.
35 Essa descrição se aplica às linhas tradicionais de empréstimo do FMI. A verificação de metas
pode ser menos frequente, no caso de empréstimos precaucionais (que não envolvem desembolso
imediato de recursos). No caso de linhas criadas durante a crise, as condicionalidades são bem mais
leves ou até inexistentes, como discutido mais à frente.
36 Com frequência, os pacotes financeiros de apoio a países com problemas graves de balanço de
pagamentos estão centrados no FMI, mas contam com apoio paralelo e vinculado de outras fontes
multilaterais ou nacionais de financiamento. Isso envolve, em diversos casos, não só recursos
oficiais, mas também de origem privada, como ocorreu nos pacotes financeiros montados durante a
crise internacional da dívida externa da década de 1980, especialmente para países da América
Latina. Ver a respeito, por exemplo, Paulo Nogueira Batista Jr. “Países devedores e bancos
comerciais em face da crise financeira internacional”. Estudos Econômicos. Instituto de Pesquisas
Econômicas, Universidade de São Paulo. v. 14, n. 3, setembro-dezembro de 1984. A presença do
FMI funciona como uma garantia ou segurança para os demais financiadores, permitindo alavancar
recursos financeiros de outras fontes.
37 Isso leva a que os programas patrocinados pelo FMI contenham frequentemente medidas duras de
ajustamento, mais ou menos inevitáveis nas fases avançadas de uma crise. Como o Fundo sempre
frisa em defesa própria, nessas situações ocorre uma transferência de responsabilidade ou culpa para
a instituição, agravando sua impopularidade em muitos países.
38 Sobre o ACR ver neste livro p. 238-47. Ver, também, Jonnas Vasconcelos. BRICS: agenda
regulatória. 2018. Tese de doutorado, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2018, p.148-167. Disponível em: <https://bdpi.usp.br/item/002910177>.
38 Nesses arranjos virtuais, as reservas compartilhadas permanecem com os bancos centrais
nacionais, que são quase sempre os depositários das reservas internacionais dos países, e só são
mobilizadas quando há necessidade efetiva de desembolso.
40 Embora sejam entidades independentes, Chiang Mai e o ACR têm vínculo específico com o FMI,
conhecido como IMF-link, estabelecido voluntariamente por seus fundadores. Por não se sentirem
suficientemente seguros para emprestar grandes quantias a países em dificuldades, sem garantia de
que estes venham a corrigir seus desequilíbrios, os credores potenciais em Chiang Mai e no ACR
tiveram a preocupação de definir que a provisão de recursos, para além de certos limites de acesso,
tenha como pré-requisito um acordo de ajustamento com o FMI. Em outras palavras, esses novos
arranjos de compartilhamento de reservas pegam carona na capacidade que tem o FMI de monitorar
as economias nacionais e, quando for o caso, impor condicionalidades. Sobre o IMF-link no ACR Ver
neste livro p. 243-4. Ver, também, Jonnas Vasconcelos, op. cit., p. 161-163.
41 Os participantes do FTP se dispõem a fornecer dólares ou outras moedas de liquidez internacional
até o limite da sua quota no FMI, obtendo em troca ativos líquidos emitidos pelo FMI. Pode haver
um custo de oportunidade, na medida em que a remuneração oferecida pelo FMI for inferior à que se
obtém em aplicações seguras e líquidas no mercado. Porém, a diminuição na remuneração média das
reservas, quando ocorre, não é normalmente significativa.
42 O outro determinante do poder de voto são os chamados votos básicos, distribuídos em montante
igual a todos os países-membros para favorecer os menores e menos desenvolvidos.
43 Ver neste livro p. 406-7.
44 O presidente Lula levava as questões com bom humor. Em alusão à minha aversão nacionalista à
instituição a que pertencia, ele costumava exclamar quando me encontrava: “Fora daqui, o FMI!”
45 Certa vez, visitei o ex-presidente Lula no Instituto Lula, em São Paulo, e contei a ele a minha
surpresa com a capacidade que tinha a presidente Dilma de dominar os temas nas áreas em que eu
atuava, chegando a corrigir seus auxiliares em questões muito específicas. Lula escutou, com certo ar
cético, e discordou: “Está errado isso; presidente da República não deve entrar em detalhes e
substituir-se aos assessores.”
46 Ver neste livro p. 238-9.
47 A questão, evidentemente, é muito mais complexa e controvertida. Procurei destrinchá-la em livro
que publiquei na época: Da crise internacional à moratória brasileira. São Paulo/Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1988. Na entrevista coletiva que concedeu após o fim da cúpula, Dilma Rousseff explicou
que o Brasil estava considerando se participaria ou não da segunda rodada, mas só o faria em
circunstâncias bem determinadas, e não pelos “belos olhos do Paulo Nogueira Batista”, causando
sensação entre os jornalistas brasileiros e estrangeiros que me conheciam. Ao fazer a referência na
entrevista, ela confirmava que estava a par do esforço que eu fizera na montagem da segunda rodada,
e não o endossava completamente – como ficara claro, aliás, ainda que de modo implícito, no breve
diálogo que relatei.
48 Só acreditaram, talvez, quando fiz esforço bem-sucedido para ampliar o número de países na
cadeira brasileira, trazendo Nicarágua, Cabo Verde e Timor-Leste. Mas aí passaram a me acusar, à
boca pequena, de ter “roubado” países de outras cadeiras, perturbando o status quo da Diretoria.
49 Como a composição das nossas constituencies no FMI e no Banco Mundial são muito
semelhantes, os dois acordos costumam ser negociados simultaneamente.
50 Pelo acordo negociado, o Brasil girava com Colômbia e Filipinas na indicação do cargo de diretor
executivo no Banco Mundial, com o Brasil ocupando o cargo por oito dos 12 anos do acordo e os
outros dois países dividindo os outros quatro anos. Com o crescimento do Brasil dentro do FMI, isso
se tornou desnecessário e, em 2016, quando eu já não estava mais no FMI e venceram os acordos de
constituency de 2004, o Brasil passou a não mais aceitar a rotação no Banco Mundial.
51 No meu período, sobressaíram-se Ketleen Florestal, do Haiti, Kevin Finch, de Trinidad e Tobago,
e Manuel Coronel, da Nicarágua.
52 Os assessores enviados por Trinidad e Tobago, sempre funcionários do Banco Central daquele
país, geralmente se destacavam e ajudavam consideravelmente no trabalho da cadeira. Um deles,
Jwala Rambarran, que trabalhou com Murilo Portugal como assessor sênior, seria depois presidente
do Banco Central de Trinidad e Tobago, e governador alterno do país no FMI durante grande parte do
meu período como diretor, muito contribuindo para o nosso trabalho. A cadeira funcionava como
celeiro de presidentes do Banco Central, eu costumava dizer em reuniões da constituency, pois em
certo momento dois dos presidentes de banco central em exercício, Tombini e Rambarran, haviam
ocupado na nossa cadeira o cargo de assessor sênior.
53 Para um breve relato dessas divergências Ver neste livro p. 245.
54 Para as duas cadeiras africanas subsaarianas, o segundo alterno era um cargo adicional, como
previsto na reforma de 2008. Para as outras cadeiras com sete países ou mais, permitiu-se que uma
posição de assessor sênior fosse convertida em segundo alterno.
55 Eu procurava, além disso, ajudar alguns dos outros países da cadeira nas relações bilaterais com o
Brasil – por exemplo, Haiti, Suriname, Panamá e Timor-Leste –, o que reforçava os meus laços com
esses países. Também por isso teriam pouca repercussão nos nossos países as tentativas que fariam
dentro do FMI para me desestabilizar.
56 Eu seria eleito e reeleito pelo Brasil e demais países da constituency cinco vezes, a primeira para
completar o mandato interrompido de Loyo e depois, a cada dois anos, mais quatro vezes, a última
em outubro de 2014.
57 Murilo Portugal. “Improving IMF governance and increasing the influence of developing
countries in IMF decision-making”. In: Ariel Buira (editor). Reforming the Governance of the IMF
and the World Bank, G24 Research Program. Londres: Anhem Press, 2005, p. 79 e 80.
58 Até a reforma de 2010, os diretores dos países com as cinco maiores quotas – Estados Unidos,
Japão, Alemanha, França e Reino Unido – sequer tinham mandato e eram, assim, demissíveis ad
nutum. Com a entrada em vigor da reforma, todos os 24 diretores passaram a ser eleitos para
mandatos de dois anos.
59 A iniciativa, que já existia no Banco Mundial, buscava que o Fundo desse atenção especial aos
problemas específicos dos países em desenvolvimento muito pequenos, com até 1,5 milhão de
habitantes. Na nossa cadeira, os estados pequenos, por essa linha de corte, são Trinidad e Tobago,
Guiana, Suriname, Cabo Verde e Timor-Leste.
A LUTA PELA REFORMA DO FMI1

No período entre 2008 e 2010, surgiram condições propícias para


reformar o FMI, a despeito das resistências de países e setores mais
apegados ao status quo. O Brasil se destacaria nesse processo, atuando
tanto no âmbito do FMI como no G20 e nos BRICS. Este texto relata os
principais aspectos das negociações e os resultados alcançados nesses três
anos, antes que as mudanças nas condições internacionais interrompessem
o processo de atualização e revisão da governança e das práticas da
instituição.

1. A reforma de quotas de 2008 – problemas em


Brasília e no G20
Quando cheguei a Washington, em abril de 2007, estava em andamento
uma reforma de quotas e voz no FMI. A crise que se abateria sobre os
sistemas financeiros americanos e europeus emitia os primeiros sinais, mas
não se percebia a dimensão da turbulência que se avizinhava. Estávamos
operando, portanto, num cenário de tipo convencional em que os
desenvolvidos não tinham, na verdade, grande razão para conceder espaço
numa instituição considerada fundamental para eles.
O impasse dentro do FMI era o que descrevi anteriormente e que
persistiria, de alguma forma, às vezes atenuado, ao longo dos meus oito
anos na Diretoria – de um lado, a aspiração dos emergentes e em
desenvolvimento por maior representação e poder de voto no FMI e, de
outro, a resistência à mudança da parte dos super-representados, a Europa à
frente. Nossos esforços acabavam neutralizados, em grande parte, pela
oposição obstinada de europeus e outros. Os americanos, no final do
governo Bush, ficavam basicamente neutros, embora dessem sinais
discretos de pender um pouco para o nosso lado. Era, pode-se dizer, uma
neutralidade benevolente. Em última análise, os Estados Unidos
compreendiam que a legitimidade e a relevância do FMI dependiam de uma
reforma da sua governança, de alguma adaptação à realidade econômica do
século XXI – um mundo em que muitos países emergentes e em
desenvolvimento cresciam rapidamente, em especial os da Ásia, e as nações
desenvolvidas, em especial as europeias, tendiam a perder peso relativo.
Esse movimento se aceleraria com a crise financeira do Atlântico Norte a
partir de 2008, mas já se desenhava desde o início do século.
A disposição dos Estados Unidos de apoiar a reforma do FMI – cabe
acrescentar – refletia, também, a percepção egoísta de que o sacrifício em
termos de posições relativas seria feito fundamentalmente pelos europeus
que estavam, como assinalei antes, flagrantemente super-representados. De
qualquer forma, os americanos não fariam o trabalho por nós – cabia às
nações emergentes, especificamente às que se consideravam sub-
representadas, liderar a pressão sobre os europeus. Os americanos não iriam
se indispor com seus tradicionais aliados, se o resto do mundo não
mostrasse vontade real de ampliar a participação no FMI.
Logo verifiquei que não havia, mesmo dentro da cadeira brasileira no
Fundo, grande confiança na possibilidade de o Brasil, em particular, obter
ganhos na reforma de quotas e voz então em curso. Helio Mori, nosso
especialista em quotas, era cético: fazia simulações e mais simulações que
mostravam grande dificuldade de fazer o Brasil avançar. A mesma
observação valia, aparentemente, para os países de mercado emergente e em
desenvolvimento considerados em seu conjunto – os EMDCs no jargão do
FMI, isto é, o conjunto dos emerging market and developing countries.2
Uma dificuldade, não a principal, mas longe de irrelevante, é que alguns
países emergentes ou de mercado emergente estavam nitidamente super-
representados, quando se tomava a participação no PIB mundial como
principal critério. A Arábia Saudita era o exemplo mais notório, mas havia
diversos outros.3
Como recém-chegado, não conhecia o assunto, altamente esotérico, em
todas suas sutilezas e detalhes. Mas pude perceber que as simulações de
cenários para a revisão das quotas feitas pelo staff do FMI, e mesmo dentro
da cadeira brasileira, padeciam de uma limitação essencial: a de aceitar
premissas e parâmetros relativamente estreitos para definir os limites do
possível. Disse a Mori nas nossas discussões internas, e ao staff do FMI
encarregado do tema, que “o Brasil não aceitaria migalhas” e insisti, sem
muito sucesso inicial, que fossem rodados cenários com outros parâmetros e
critérios capazes de resultar em aumento da quota relativa do Brasil e dos
EMDCs como um todo. Não estava ali para endossar a continuação da
distribuição desigual e defasada das quotas e votos. Nas diversas reuniões
da Diretoria sobre a reforma, apresentei esses argumentos repetidamente e
em detalhe, causando a primeira de muitas ondas de descontentamento entre
os europeus.

Manobra perigosa
Mal podia imaginar que estava em curso uma operação para contornar o
diretor brasileiro e, com apoio aparente de Brasília, aprovar uma
pseudorreforma, uma falsa reforma que perpetuaria o status quo no FMI. O
canal para essa manobra era o G20. Criado em 1999 por iniciativa dos
Estados Unidos, no governo Clinton, era um foro de nível – teoricamente –
ministerial, que reunia ministros de Finanças e presidentes de Banco
Central. Estávamos àquela altura a mais de um ano de distância da
transformação do G20 em foro de líderes e, posteriormente, em principal
mecanismo para cooperação econômica e financeira internacional em
substituição ao G7. Com a longa (e enganosa) estabilidade e tranquilidade
na economia mundial, a já mencionada Great Moderation, foros como o
G20 estavam relativamente dormentes. Os ministros de Finanças e
presidentes de Banco Central pouco participavam e davam limitada atenção
a suas deliberações. O G20 convertera-se, essencialmente, em um foro onde
funcionários de segundo, terceiro ou até quarto escalão dos governos e
bancos centrais se encontravam para trocar ideias e, às vezes, tratar de
temas como a reforma do FMI ou do Banco Mundial. O Brasil, por
exemplo, se fazia representar pelo secretário de assuntos internacionais da
Fazenda, funcionário de terceiro escalão do ministério, e pelo diretor de
assuntos internacionais do Banco Central. No linguajar do G20 e do FMI,
esses representantes brasileiros e suas contrapartes de outros países eram
apresentados, ou se apresentavam, como Deputy Minister of Finance (vice-
ministro de Finanças) e Deputy Central Bank Governor (vice-presidente do
Banco Central), o que dava, em diversos casos, uma impressão exagerada
da sua efetiva importância. Dependendo do assunto, não era incomum que
os países se fizessem representar no G20 também por seus diretores
executivos no FMI ou no Banco Mundial.
No caso do Brasil, o principal operador no G20 naquela época era o já
mencionado secretário Melin, que estudara economia no Reino Unido e,
entre outros aspectos um pouco cômicos, falava inglês fluente, mas com um
forçado e ligeiramente ridículo sotaque britânico. Era um funcionário bem
irresponsável, que conseguia enganar por algum tempo, blefando
desbragadamente. Saberia, depois, que ele tentava maximizar seu papel no
governo brasileiro perante os colegas de G20, citando repetidamente o
presidente Lula, como se tivesse acesso direto a ele.
Uma casualidade abriu grande espaço para as manobras do secretário
brasileiro. Havia, no G20, que não tinha (e até hoje não tem) secretariado
próprio, a tradição de conduzir os trabalhos por meio de uma “Troika”,
presidida pelo país que exercia naquele ano a presidência de turno do G20 e
integrada pelo país que exercera a presidência no ano anterior e pelo que
exerceria a presidência no ano seguinte. Em 2007, a presidência era da
África do Sul; a Austrália tinha sido presidente em 2006 e o Brasil seria
presidente do G20 em 2008. Esse arranjo conferia ao secretário Melin a
condição de integrante da Troika.
Pude perceber mais tarde que o secretário brasileiro caíra na tentação
tão comum entre latino-americanos e outros, de tentar se validar
individualmente como “membro responsável da comunidade internacional”.
Essa expressão, aparentemente simpática, escondia outra coisa totalmente
distinta – a disposição de integrantes das elites de países menos
desenvolvidos, o Brasil entre eles, de prestar serviço aos poderes
estabelecidos em nível internacional e se cacifar para, se possível, receber
apoio para cargos e benesses de vários tipos. Nos meus mais de dez anos
fora do Brasil, pude confirmar, aliás, o quanto esse comportamento é
comum – e, acrescento, os brasileiros não estão (ou não estavam)
necessariamente entre os piores. Mexicanos, chilenos e colombianos, por
exemplo, mostravam-se, não raro, mais ansiosos e afoitos para
desempenhar esse tipo de papel(ão).
Nesse período, os deputies do G20 se arvoravam a tomar parte, até
decisiva, na reforma de quotas e voz do FMI. A África do Sul, sub-
representada na Diretoria do FMI, tinha inclinação natural a tirar o tema da
órbita dos diretores. A Austrália, como aprenderia ao longo dos anos, era
basicamente linha auxiliar dos Estados Unidos e do Reino Unido, e quase
nunca estava do lado dos EMDCs. O secretário brasileiro entrou de gaiato
nesse navio.
Tudo estava sendo feito sem o meu conhecimento, embora dissesse
respeito a área de atribuição do diretor executivo no FMI. A aspiração do
secretário brasileiro, depois descobri, era ser visto como honest broker
(intermediário honesto) entre desenvolvidos e emergentes. Comportava-se,
porém, como gullible broker (intermediário crédulo) na melhor das
hipóteses – isto é, excluindo aquelas mais tenebrosas de oportunismo
pessoal –, ao emprestar o nome do Brasil para endossar propostas que
emasculavam a reforma de quotas e voz, deixando a participação dos
EMDCs como um todo e do Brasil individualmente basicamente intocadas.
Era o complexo de vira-lata, com falso sotaque britânico.
O risco para mim era de desmoralização e perda de autoridade em
assunto central para o diretor executivo. As posições do Brasil no G20, que
eu desconhecia, não guardavam qualquer parentesco com as que eu
defendia na Diretoria do FMI. Felizmente, eu mantivera o ministro Mantega
informado sobre o assunto, em linhas gerais, coisa que o seu assessor, algo
amador, aparentemente não fizera – e isso seria de grande valia no choque
que se aproximava.
Estou me alongando um pouco no relato desse episódio porque ele é
paradigmático dos desafios que representantes de países em
desenvolvimento são obrigados a enfrentar na capital do Império.
Ingenuamente, eu informava o próprio secretário sobre a evolução do tema
em Washington e procurava interagir com ele, relevando sua tentativa
atabalhoada de demitir e substituir Helio Mori. Tinha poucos meses no
cargo e me deixava iludir pelo discurso “progressista” do secretário. Fui
iludido, também, pela orientação que recebi do meu amigo, o embaixador
Samuel Pinheiro Guimarães, que, como mencionei, ocupava o cargo de
secretário-geral ou vice-ministro no Itamaraty. Samuel repetia que “o nosso
homem” na Fazenda era Luiz Melin – e não o diplomata Marcos Galvão,
que exercia a função de chefe de gabinete do ministro Mantega.4 Eu
respeitava muito o secretário-geral do Itamaraty e, também, embora tivesse
menos contato direto, o chanceler Celso Amorim. Mas a “dica” do meu
amigo estava totalmente errada e, por conta dela e da minha inexperiência,
quase tomei uma bola nas costas. Começara a desconfiar um pouco, é
verdade, depois da tentativa de substituir Mori. Ficara, inclusive, a sensação
de que Melin funcionava como uma linha auxiliar do Itamaraty, dentro do
Ministério da Fazenda – à revelia, claro, do ministro Mantega – pela forma
estranha como ele se referira a “combinações” com o ministro Amorim.
Mas prevaleceram a minha ingenuidade e a confiança no velho amigo
Samuel Pinheiro Guimarães.
Demorei a me dar conta do que estava acontecendo e permiti que se
abrisse um tremendo flanco. Enquanto eu atuava, inocentemente e
desinformado em Washington, avançava a passos largos no G20 a
articulação da Troika. O que me ajudou, entretanto, é o fato de ser difícil
evitar vazamentos em um foro tão grande como o G20 – 20 membros ou 40,
se contarmos que cada integrante participava por meio do Ministério de
Finanças (ou seu equivalente) e do Banco Central.5 O primeiro vice-diretor-
gerente, número 2 da Administração do FMI, o americano John Lipsky,
passou a dizer à boca pequena que eu não representava a real posição do
Brasil em matéria de reforma do FMI, informação importante que me
trouxeram alguns aliados e simpatizantes. Hector Torres, experiente diretor
alterno na cadeira da Argentina, com quem muito aprendia, também me
transmitiu algumas informações sobre a estranha atuação do secretário
brasileiro. Paradoxalmente, a informação decisiva, que me deu a dimensão
do que estava ocorrendo, veio de um europeu – o diretor executivo
finlandês, Tuomas Saarenheimo. Embora os países europeus pequenos não
fossem membros do G20, a União Europeia era. Por meio das instâncias do
bloco, países como a Finlândia eram informados sobre o andar da
carruagem. Meu colega finlandês de Diretoria veio me visitar, contou tudo o
que estava acontecendo no G20, em especial a atuação do brasileiro, e –
ponto crucial – me passou documentos internos da Troika e do G20,
inclusive assinados pelo próprio Melin, que revelavam toda a extensão do
desastre – em uma palavra: a anulação quase total da reforma de quotas e
voz, com colaboração voluntária e ativa do Brasil, ou mais precisamente de
uma autoridade fazendária que falava em nome do governo brasileiro.6
Fiquei em estado de choque. Lembrei-me de Nelson Rodrigues:
“Subdesenvolvimento não se improvisa – é obra de séculos.” Descobrira,
espantado, que havia um acordo praticamente pronto, ou pelo menos em
estado avançado de formulação, que nada ou quase nada trazia para o Brasil
e os EMDCs no seu conjunto. O desempenho da Troika estava abaixo da
crítica, o brasileiro e o sul-africano haviam feito trabalho quase completo de
entrega em domicílio, com o australiano ajudando e acompanhando tudo
aquilo com satisfação, naturalmente.

Embate na retaguarda
Só me restava uma alternativa: voltar sem demora a Brasília e verificar, in
loco, se o secretário de assuntos internacionais tinha – pior cenário –
cobertura do ministro da Fazenda para sua atuação. Não podia ter certeza de
nada. Àquela altura ainda não conhecia tão bem o ministro Mantega e era
difícil acreditar que o secretário iria tão longe sem ter apoio, pelo menos
parcial, do próprio chefe. Mas não podia deixar barato e parti, sem
hesitações, para a confrontação. Aqueles que me conhecem sabem que sou
melhor nesses embates do que nas articulações que exigem mais paciência,
habilidade e diplomacia. O secretário receberia um contravapor que não
estava nos seus planos de grande articulador internacional.
Pedi audiência ao ministro Mantega e relatei, da melhor maneira que
pude, lutando com o estresse que a situação inevitavelmente provocava, o
que estava acontecendo no G20 e no FMI. Para meu alívio, Mantega se
declarou desinformado das atividades do seu secretário e disse, com todas
as letras, “essa não é a posição do Brasil”. Convocou, imediatamente, o
secretário que, ao adentrar o recinto, mostrou-se surpreso com a minha
presença. Confrontado com meu relato por Mantega, tentou negar, mas
ficou sem ação quando mostrei os documentos do G20 que traziam sua
assinatura. Foi uma débâcle. Eu, sempre emotivo, acabei exagerando e fui
desnecessariamente ríspido com o assessor do ministro. Mantega conteve
meus excessos, mas determinou claramente que Melin voltasse atrás e
renegasse todas aquelas posições na próxima reunião do G20.
Vitória acachapante, com um senão – a confrontação fora custosa: meu
estilo abrasivo, que tinha dificuldade de controlar em situações de estresse,
sobretudo nos anos iniciais da minha passagem pelo FMI, deixava uma
marca negativa e confirmava os rumores de radicalismo e intransigência
que circulavam a meu respeito. Os embates dentro do Ministério da
Fazenda acabariam vazando para a imprensa brasileira, dando ocasião a
mais uma rodada de ataques contra mim em alguns dos principais jornais.
Lembrei-me de uma frase atribuída ora a Churchill, ora a Oscar Wilde:
“People have been spreading the wildest rumors against me – and the worst
part is that about half of them are true!” (“Estão espalhando os rumores
mais selvagens a meu respeito – e o pior é que cerca de metade deles são
verdadeiros!”) Consolava-me pensar que, se isso acontecia com homens
extraordinários como Churchill ou Wilde, um simples economista não
tinha, na verdade, do que reclamar.
Lembre-se, leitor, que eu era na ocasião ainda muito verde no cenário
em que estava operando. Morava sozinho em Washington e não tinha
amigos próximos, nem pessoas de confiança com quem pudesse conversar
abertamente. Isso viria com o tempo. Relatei a carga emotiva que a situação
representava para mim em artigo que publiquei na época em um jornal
brasileiro, contando um sonho que tive com meu pai, que morrera em
1994.7 Não podia, evidentemente, falar com a franqueza de que estou me
valendo neste livro e só podia aludir ao problema que estava enfrentando.
Mesmo assim, foi arriscado publicar um artigo tão emotivo (ainda hoje,
mais de dez anos depois, me emocionei ao reler a passagem sobre meu pai),
pois podia ser interpretado como sinal de fraqueza por meus adversários,
não só no Brasil, mas até mesmo no FMI.8
Tudo considerado, permanece difícil avaliar se foi certa ou errada,
apropriada ou exagerada, a minha reação algo violenta. Mesmo em
retrospecto, é difícil julgar. Como a negociação dentro do G20 já estava
muito avançada, talvez só uma intervenção muito vigorosa, capaz de
convencer o ministro da Fazenda e intimidar o secretário, poderia salvar a
situação. A atuação desastrada do secretário nos levara, por assim dizer, à
beira de um precipício.

Reunião do G20 em Washington


A próxima reunião do G20, marcada para Washington, no prédio do
Tesouro dos Estados Unidos, acabaria sendo, segundo alguns participantes
mais antigos, uma das mais interessantes e até dramáticas reuniões nos oito
anos de história do G20 – e isso, feliz ou infelizmente, às minhas custas.
Nesse encontro, a Troika e os países desenvolvidos, especialmente os
europeus, pretendiam bater o martelo no acordo que se desenhava ou, no
mínimo, cristalizar seus principais aspectos. Imagine, leitor, a situação do
secretário brasileiro, um dos grandes articuladores desse acordo, e agora
instruído enfaticamente pelo ministro da Fazenda a renegar tudo. He had
painted himself into a corner, como diz a expressão em inglês, não havia
mais saída elegante ou honrosa para ele. Porém, a solução que o funcionário
encontrou para seu dilema foi simplesmente inacreditável, confirmando as
piores suspeitas sobre sua incapacidade e amadorismo.
Começa a fatídica reunião do G20 no Tesouro. FMI era o tema
principal. Sentado na cadeira brasileira, o secretário brasileiro, a seu lado –
sempre silente – o diretor de assuntos internacionais do Banco Central. Eu
atrás deles, com alguns outros funcionários brasileiros, nada sabia da
armadilha montada para mim. O Brasil, como membro da Troika, foi um
dos primeiros a falar e o secretário fez um discurso grandiloquente em que
informava a todos que, lamentavelmente, sua atuação fora desautorizada
pelo governo brasileiro.9 Em conclusão, anunciou que passava a
representação do Brasil ao diretor executivo brasileiro no FMI, levantou-se
e saiu da sala! Tudo isso sem me avisar nada previamente. Não sei até que
ponto seus aliados mais próximos haviam sido prevenidos, mas a maioria
dos membros do G20 provavelmente também não sabia de nada. A
atmosfera na sala era de surpresa e choque.
O que fazer? Com a cadeira brasileira vazia, nada disse e tomei o lugar.
O secretário fizera uma manobra, na minha opinião, típica de oportunista
sem senso de oportunidade – retirou-se, tentando preservar seu capital de
homem aberto ao diálogo com a “comunidade internacional”, jogando o
ônus em cima do ministro da Fazenda do Brasil e do novo diretor brasileiro
no FMI. Melin acabaria destituído do cargo.10 Mas naquele momento the
heat was on me, a pressão estava toda sobre mim. De novo, eu estava
apenas começando no processo, não conhecia as nuances e nem a maioria
dos presentes. Era como jogar uma criança em águas agitadas, sem antes
ensiná-la a nadar – o risco de afogamento era grande. Fiquei naturalmente
aflito e apreensivo, mas tive que engolir seco e enfrentar o desafio.
Fui instado a explicar o que estava acontecendo e fiz o melhor que
pude, improvisando (não contava falar na reunião) uma intervenção
diplomática, mas firme, que reiterava as posições que vinha defendendo na
Diretoria do FMI. Expliquei por que o esboço de acordo que estava na mesa
do G20 não atendia os objetivos brasileiros. Tentei, sem grande sucesso
naquele momento, apelar para o interesse estratégico dos anfitriões do
encontro – os Estados Unidos –, argumentando que cabia a eles ajudar a
resgatar a relevância e a legitimidade de uma instituição que havia sido,
afinal, criada sob liderança americana. Apanhei feito boi ladrão. Sucessivas
intervenções de europeus, do presidente sul-africano, do australiano, entre
outros, manifestavam profundo desagrado, às vezes de forma dura, com o
que, para eles, era uma reviravolta do Brasil. O único que entrou a meu
favor na discussão foi o já mencionado Hector Torres, um dos
representantes da Argentina na reunião. O leitor precisa, neste momento,
lembrar que em 2007 os BRICS não existiam, contrariamente a algumas
versões que circulam no Brasil a esse respeito. Não tive ajuda nenhuma da
China e da Índia. E mesmo a Rússia, representada por seu diretor no FMI, o
veterano Aleksei Mozhin, que conhecia o tema das quotas como poucos,
ficou silente na reunião. Mozhin se tornaria ao longo dos anos um dos meus
principais aliados no FMI e no G20. Era um dos mais inteligentes e
experientes diretores do FMI – mas era também muito cauteloso, e não
gostava de entrar em bola dividida. Consegui, no meio do tiroteio, passar
uma mensagem a Hector Torres, instando-o a pedir ao russo que saísse do
seu mutismo. O máximo que alcancei foi uma intervenção discreta,
basicamente ineficaz, do meu futuro aliado. Devo reconhecer, porém, que
russos, chineses e indianos não tinham naquele instante – adotando uma
ótica pragmática, ainda que talvez estreita demais – grandes motivos para
entrar na refrega: o Brasil, por meu intermédio, estava sendo obrigado a
fazer todo o trabalho difícil, evitando o que seria uma derrota para esses
países e outros EMDCs. E era, de certo modo, justo que assim fosse –
afinal, o Brasil, por meio do secretário Melin, havia contribuído
decisivamente para colocar os emergentes em uma espécie de corner.
A África do Sul, que se juntaria em 2011 aos BRICS, fazia naquele
momento um papel lamentável. O representante sul-africano e chairman da
reunião era Lesetja Kganyago, sujeito expansivo e até simpático, mas que
se mostrava, às vezes, agressivo e prepotente. Ele seria, anos depois,
presidente do Banco Central da África do Sul. Lesetja estava inconformado
com o que acontecera com seu aliado brasileiro e sentia a grave ameaça ao
acordo que ele ardorosamente copatrocinara. Resolveu se juntar a europeus
e outros para me pressionar e hostilizar. Quando eu tomava a palavra para
me defender dos numerosos ataques e críticas, ele me interrompia grosseira
e repetidamente – a um ponto em que eu senti necessidade de dizer em alto
e bom som: “Não me interrompa, estou falando em nome do Brasil!” A
partir daí, ficou claro que era inútil continuar me pressionando e tentando
me intimidar. Como assinalei anteriormente, o G20 resolve por consenso. A
oposição determinada de um membro, e no caso um integrante da Troika,
tornava inviável continuar discutindo com base no acordo ou projeto de
acordo anterior. Se o leitor me permite mais um comentário sentimental, até
meio místico, diria que o que me salvou naquela reunião difícil foi a
“consultoria” a que se referiu meu pai, em sonho que tive pouco antes,
relatado em artigo que já mencionei.11 Meu pai era, por assim dizer, como
El Cid, ganhava batalhas mesmo depois de morto…
A reunião terminou com frustração generalizada dos desenvolvidos e de
alguns emergentes colaboracionistas e, claro, grande desgaste pessoal para
mim. Reunião encerrada, ainda na sala do Tesouro, a diretora executiva dos
Estados Unidos, Meg Lundsager, veio me dizer de forma um pouco
arrogante: “Você vai ter de visitar os seus 23 colegas de Diretoria, um por
um, para explicar o que aconteceu aqui hoje.”
Deixei o Tesouro contente com o resultado, mas preocupado ao mesmo
tempo com as repercussões do incidente. Hector Torres, de quem esses
embates me aproximaram mais, resumiu o ocorrido algum tempo depois:
“You crashed single handedly a G20 meeting inside the US Treasury!”
(Você travou sozinho uma reunião do G20 dentro do Tesouro dos Estados
Unidos!) Era um comentário generoso; na verdade, eu contara com a ajuda
valiosa da Argentina – graças ao próprio Hector. Mas tinha certeza de que
havia entrado automaticamente (se lá já não estava por conta de episódios
muito mais antigos) em todas as listas negras de americanos e, nesse caso,
sobretudo de europeus. Afinal, o representante brasileiro assumira, sem
querer, forçado pelas circunstâncias, um protagonismo até então raro em
foros desse tipo, mesmo da parte dos representantes dos emergentes mais
importantes. Ninguém sabia, mas era um sinal dos tempos que se
avizinhavam.
As notícias da reunião do Tesouro causaram sensação no FMI, onde
rapidamente chegaram. Havia, provavelmente, dúvidas até sobre se eu
sobreviveria ao incidente. O diretor do Canadá, Jonathan Fried, que seria
depois embaixador do país em Tóquio, sujeito bem-humorado e inclinado a
piadas, me pegou pelo braço e disse, fingindo me examinar: “Quero ver as
feridas e cicatrizes!” Humildemente, tentei seguir o conselho um pouco
arrogante da diretora americana e comecei a visitar os meus colegas
diretores, um por um. Mas eram muitos e logo cansei de repetir a mesma
história (a humildade não era tanta…). Aproveitei então uma reunião da
Diretoria para fazer uma intervenção conciliatória, que foi acompanhada
atentamente por meus colegas e pela Administração – todos queriam ouvir
o novato que barrara uma tentativa muito bem arquitetada de esvaziar a
reforma do FMI – mas errei o tom e senti, de repente, necessidade de
atalhar – “mas isso não é um discurso de despedida!” – suscitando risos dos
meus colegas. Os europeus, em geral, não acharam a menor graça – claro,
esfumara-se uma tentativa promissora de preservar intactos os seus
privilégios.

Eleição de Dominique Strauss-Kahn e conclusão da


reforma de 2008
A reforma de quotas e voz voltara praticamente à estaca zero.
Reestabeleceu-se o impasse do qual só sairíamos por causa de um evento
que surpreenderia a todos: a súbita renúncia do diretor-gerente do FMI, o
espanhol Rodrigo de Rato, que deixaria o cargo no fim de outubro de 2007.
Não vou me deter em especulações sobre as razões da sua saída precoce. O
importante aqui é registrar que ela abriria a oportunidade, que prontamente
aproveitamos, para avançar com a reforma de quotas e voz e, em especial,
para melhorar a posição relativa do Brasil.
A saída de Rodrigo de Rato suscitou outro problema de governança,
sempre latente, que seria debatido antes de retomar a discussão da reforma:
a aplicação, mais uma vez, da regra antiquada, não escrita, que garantia a
um europeu a posição número 1 na Administração. A eleição era por
maioria simples dos votos dos diretores, mas em questões de alta
visibilidade como essa todos nós atuávamos em sintonia e seguindo
instruções dos nossos países, no meu caso principalmente o Brasil, país
dominante na cadeira. Não tínhamos, os emergentes, a menor chance de
quebrar o controle europeu sobre essa posição se não houvesse a decisão
dos Estados Unidos de dissociar-se do seu acerto tradicional com eles.
Poderiam fazê-lo, mas se o fizessem não teriam garantia de obter a
contrapartida tradicional: o apoio dos europeus para a designação de um
americano na eleição do próximo presidente do Banco Mundial. Os
europeus logo se movimentaram para encontrar um sucessor para Rodrigo
de Rato. O presidente da França, Nicolas Sarkozy, rápida e
surpreendentemente apareceu com o nome de Dominique Strauss-Kahn, do
Partido Socialista, que fora ministro nos governos de Mitterrand e Jospin e
era um dos seus adversários políticos potencialmente mais importantes.
Uma interpretação plausível, que circulava na mídia francesa e
internacional, é que Sarkozy estava buscando se livrar de um concorrente,
enviando-o para um FMI que, como expliquei antes, era então visto como
esvaziado e sem maior importância. O tiro sairia pela culatra; menos de um
ano depois, com a eclosão da crise financeira nos EUA e na Europa, o FMI
voltaria ao centro da cena internacional. DSK se tornaria mundialmente
conhecido e um candidato provavelmente imbatível na eleição presidencial
francesa de 2012 em que Sarkozy buscaria a reeleição.
A indicação de DSK pelos europeus suscitou discussões movimentadas
na Diretoria. Alguns diretores de países em desenvolvimento questionavam
a regra não escrita e a hipocrisia dos procedimentos oficiais que
proclamavam eleição transparente e baseada no mérito dos candidatos. Era,
como sempre, uma eleição com resultado pré-determinado. Em uma dessas
discussões, fui um pouco mais agressivo e mencionei o quanto era de se
lastimar que o comando do FMI fosse decidido, em última análise, por
táticas político-eleitorais do presidente francês. Para quê? O diretor francês,
Pierre Duquesne, perdeu as estribeiras e, indignado, exigiu que eu retirasse
o meu comentário. Não o fiz, claro, e logo outros europeus ecoaram a
indignação do francês, criando-se um razoável tumulto. Mais uma vez, o
argentino Hector Torres veio em meu socorro, suavizando minha posição,
mas entrando essencialmente a meu favor. Mal podia imaginar que eu me
tornaria, ao longo dos anos, um dos maiores admiradores de DSK, que se
revelaria um diretor-gerente de grande liderança e aberto a inovações.
Na eleição, aconteceu algo não muito comum na história do FMI. A
Rússia que por razões um pouco obscuras (com os russos tudo é sempre
mais ou menos obscuro, como aprenderia ao longo dos anos), tinha naquela
época restrições contra DSK, apareceu com a candidatura de um ex-
primeiro-ministro e ex-presidente do Banco Central da República Tcheca,
Josef Tošovský, que era muito respeitado, na esperança de dividir os votos
europeus e somá-los aos dos emergentes para ameaçar a candidatura de
DSK. O diretor russo fazia lobby intenso pelo tcheco junto aos outros
diretores, chegando a fazer referências altamente negativas a DSK como
economista e político, adicionando toques estranhamente antissemitas
(DSK tem origens judaicas por parte paterna e materna). DSK, por sua vez,
veio da Europa duas vezes para se apresentar perante a Diretoria e visitar
individualmente todos os diretores. A sua eleição estava praticamente
garantida, mas ele planejava ganhar com ampla vantagem, se possível
esmagadora (como aconteceria), e certamente queria os votos de todos os
principais países, inclusive do Brasil. DSK começava impressionando bem
– mesmo com eleição garantida se dava ao trabalho de conversar com e
ouvir todos os diretores.
Foi aí que, combinando tudo com o ministro Mantega, fiz com ele uma
negociação de nível talvez duvidoso, tipo “mercado persa”, confesso, em
que prometi o meu voto desde que ele se comprometesse, na reforma em
curso, a garantir o aumento da quota relativa do Brasil de 1,4% para 1,8%
do total, o que pelos nossos cálculos internos era pretensão factível. Isso
tudo foi cercado de explicações e apresentado da forma mais elegante
possível, mas era no fundo um simples toma lá, dá cá. A questão da
distribuição de quotas era primordialmente política, e só secundariamente
decidida por fórmulas e cálculos. Sempre fora assim, na verdade, desde
Bretton Woods. Era perfeitamente possível encontrar fórmulas e regras
consistentes com esse aumento da nossa quota relativa. Para o Brasil, isso
era importante, entre outras razões, por causa da nossa vulnerabilidade, já
explicada, no comando da cadeira. Além disso, se acompanhada do
aumento das quotas relativas e do poder de voto de outros emergentes,
nosso aumento modificaria em alguma medida o equilíbrio decisório no
FMI, facilitando, por exemplo, alcançar o patamar de 15% requerido para
vetar decisões importantes desfavoráveis aos emergentes e em
desenvolvimento.
A negociação de “mercado persa” daria certo. Descobriria que DSK
cumpria fielmente os acordos – algo que não se pode de forma alguma dizer
da sua sucessora, aliás. De início, tive alguma dificuldade, pois alguns mais
afoitos em Brasília, nomeadamente o chanceler Celso Amorim e o assessor
internacional da Presidência, Marco Aurélio Garcia, saíram prometendo
voto no francês – Marco Aurélio por simpatias políticas com os socialistas
franceses, Celso por excesso de ativismo em área que não era dele. Mantega
teve que contê-los, a meu pedido.
Depois de alguns meses de discussões acirradas, a Diretoria aprovaria a
reforma de quotas e votos em março de 2008 por margem estreita, com
votos favoráveis de 19 das 24 cadeiras. Três cadeiras votaram contra
(Rússia, Arábia Saudita e Irã) e duas se abstiveram (Argentina e Egito). O
Conselho de Governadores confirmaria a aprovação da reforma, em abril,
ao alcançar o critério de dupla maioria previsto para esse tipo de decisão no
Convênio Constitutivo – pelo menos 85% dos votos ponderados e 3/5 dos
países-membros.
A reforma de 2008 não era uma revolução, não havia condições para
isso, mas um passo na direção da mudança desejada. O Brasil acabou sendo
um dos principais ganhadores, graças em grande medida ao acerto com
DSK. A nossa quota relativa subiu de 1,4% para 1,8% do total, como
combinado, e o poder de voto, de 1,4% para 1,7%. O Brasil foi o quarto
maior ganhador com a reforma (depois da China, da Coreia do Sul e da
Índia). Os maiores perdedores foram o Reino Unido e a França. O poder de
voto da cadeira comandada pelo Brasil aumentou de 2,4% para 2,8%. O
poder de voto dos EMDCs como um todo aumentou em 2,7 pontos
percentuais, passando de 39,4% para 42,1% do total.
Com essas mudanças, o Brasil passou de 18o para 14o entre os então
185 países-membros do FMI em termos de participação no poder de voto. A
cadeira encabeçada pelo Brasil subiu de 21a para 18a entre as cadeiras da
Diretoria. Começávamos a corrigir o declínio relativo do Brasil que
remontava, como já mencionei, ao período Kafka.
Outra mudança relevante trazida pela reforma de 2008 foi a substituição
de um cipoal de fórmulas, arcaicas e incompreensíveis, por uma única
fórmula para o cálculo das quotas relativas, na qual o PIB assumiu o papel
de variável dominante, apesar das objeções dos europeus. A fórmula ainda
padecia de problemas importantes, mas foi um avanço. Conseguimos,
também, triplicar os votos básicos, o que ajudava o poder de voto dos países
pequenos, inclusive da nossa cadeira. Estabeleceu-se, além disso, que as
cadeiras com 19 membros ou mais teriam direito a um segundo alterno,
favorecendo as duas cadeiras subsaarianas, sobrecarregadas com a
representação de um grande número de países.12
A reforma não chegava, nem de longe, a resolver os problemas de
representatividade e legitimidade do FMI. Mas foi, repito, um passo
significativo. Eu era da opinião, que mantive ao longo da minha
permanência em Washington, que a reforma do FMI precisava andar, ainda
que em etapas. Isso, a meu ver, era certamente preferível a um cenário tipo
Rodada Doha da OMC – reforma excelente, mas sem condições de ser
implementada, que ficaria ao relento por muitos anos e acabaria arquivada
para todos os efeitos práticos.

2. A crise financeira do Atlântico Norte – americanos


e europeus à beira do precipício
Enquanto concluíamos, a duras penas, a reforma de 2008, um
acontecimento muito mais importante, que resultaria em alteração radical
do ambiente econômico e político internacional e, portanto, do contexto em
que operava o FMI, estava prestes a se desencadear – a gravíssima crise que
atingiu os sistemas financeiros dos Estados Unidos e da Europa,
culminando no colapso do Lehman Brothers, em setembro de 2008.
Os bancos e outras instituições financeiras americanas e europeias
vinham acumulando, ao longo dos anos anteriores, desequilíbrios ocultos de
grande magnitude, disfarçados por complexas engenharias financeiras que
pareciam prometer o impossível – a combinação extraordinária de alta
rentabilidade com baixo risco e liquidez assegurada. No período de
calmaria que antecedeu a crise, essa promessa – típica dos episódios
especulativos – levou a comportamentos temerários, baseados em
elevadíssima alavancagem e instigados por resultados excepcionais. A
complexidade e sofisticação dos produtos financeiros oferecidos
dificultavam a percepção do que estava realmente ocorrendo – uma
gigantesca bolha financeira. Era, na verdade, mais um episódio
especulativo, não essencialmente diferente, em última análise, daqueles
descritos e analisados, por exemplo, em livros clássicos de Charles Mackay
e Charles P. Kindleberger ou, com mais graça e vivacidade, por John
Kenneth Galbraith.13
Reguladores e supervisores do sistema financeiro, nos Estados Unidos e
em diversos países europeus, não se deram conta dos problemas que se
avolumavam, deixando-se embalar por teorias que frisavam a eficiência dos
mercados e sua suposta capacidade de autorregulação. Mas os sistemas de
gestão de risco das instituições financeiras privadas falharam
fragorosamente. Outro fracasso retumbante foi o das agências de
classificação de risco – Moody’s, S&P e Fitch – que endossaram
instituições e ativos financeiros altamente problemáticos. O fracasso das
três principais agências foi tamanho que é verdadeiramente incrível que elas
tenham saído da crise com poder de atuação e controle do mercado
basicamente intactos – um exemplo, entre outros, de como o establishment
financeiro internacional conseguiria sobreviver ileso a uma crise
monumental de sua fabricação e responsabilidade. Curioso, ainda, foi
perceber a posteriori que a complexidade da engenharia financeira impedia,
ou dificultava muito, a atuação dos altos escalões das instituições
financeiras – os dirigentes, os conselheiros e os principais acionistas,
pessoas de mais idade e menos sintonizadas com as inovações financeiras
dos executivos mais jovens, que estavam na linha de frente do mercado.
Esses veteranos não entendiam plenamente os novos produtos financeiros e
os imensos riscos a eles associados. À complexidade técnica dos ativos e
práticas financeiras somava-se, claro, a conveniência de não procurar saber.
Os altos escalões, acomodados, iludidos pela calmaria sistêmica de vários
anos, registravam e embolsavam elevadíssimos salários, bônus, lucros e
dividendos, faturavam o prestígio correspondente, sem se dar ao incômodo
de realmente questionar como tudo aquilo era possível.
Quando instituições financeiras começaram a balançar e registrar os
primeiros prejuízos, desde meados de 2007, ainda era difícil perceber a real
e assustadora dimensão do problema. O primeiro grande marco, que tornou
visível para todos que os Estados Unidos estavam diante de uma grave
ameaça financeira, foi a quebra em março de 2008 do Bear Stearns,
importante banco global de investimentos, com sede em Nova York, que
acabou socorrido pelas autoridades americanas, com a Reserva Federal
financiando sua absorção pelo JPMorgan Chase.
As autoridades monetárias e fiscais americanas e europeias, em especial
os bancos centrais enquanto emprestadores de última instância, passaram a
se defrontar com o dilema clássico: risco sistêmico (systemic risk) versus
risco moral (moral hazard). Por um lado, socorrer instituições em crise,
garantir seus depositantes, investidores e credores, para além do
estabelecido nas garantias legais vigentes, afastaria, pelo menos
temporariamente, o efeito dominó e a propagação de corridas contra outras
instituições financeiras. Por outro, o socorro pronto e rápido a instituições
privadas temerárias premiaria comportamentos irresponsáveis e
incentivaria, temia-se, novas rodadas de acumulação de riscos. No episódio
Bear Stearns prevaleceu a ponta risco sistêmico do dilema, mas isso não se
repetiria, com consequências dramáticas, no caso do banco de
investimentos Lehman Brothers.
No caso do Lehman, que estourou alguns meses depois, a decisão
fatídica foi deixar quebrar. Fiquei estarrecido. Eu não fazia ideia da
extensão dos problemas acumulados no interior dos sistemas financeiros do
Atlântico Norte, nem compreendia a engenharia financeira que servira de
veículo para o episódio especulativo, mas na condição de economista
brasileiro que tinha experiência em acompanhar crises bancárias no Brasil –
inclusive, destacadamente, a crise bancária da década de 1990 que atingiu
bancos privados da importância do Nacional, Bamerindus e Econômico –, a
intuição me dizia que era um absurdo deixar um banco renomado quebrar
em meio à instabilidade já instalada. No dia seguinte à quebra do Lehman,
houve uma reunião informal da Diretoria para discutir, com ajuda dos
especialistas do staff em questões financeiras, as implicações do que estava
ocorrendo. Fiquei em minoria. Prevaleceram intervenções laudatórias da
decisão das autoridades dos Estados Unidos. O diretor italiano, Arrigo
Sadun, por exemplo, sujeito pretensioso e não muito esclarecido,
proclamou, solenemente, que os americanos, precavendo-se contra o risco
moral, haviam traçado uma linha na areia (“had drawn a line in the sand”)
– chavão algo ridículo, muito repetido, mas que no fundo traía o que
realmente aconteceria – era, sim, uma linha na areia que seria facilmente
apagada, aos pontapés, pelo drama que a não intervenção no caso Lehman
logo desencadearia.
A hegemonia do risco moral duraria poucos dias. A quebra do Lehman
gerou rápida propagação de problemas financeiros. A maior seguradora dos
Estados Unidos, American Insurance Group (AIG), sofreu impacto
devastador e teria quebrado, em poucos dias, não fosse a reversão do
posicionamento das autoridades americanas que abandonaram
atabalhoadamente o discurso do risco moral e se renderam à necessidade de
socorrer a AIG e, de alguma forma, socializar os prejuízos decorrentes da
crise. Diga-se em favor das autoridades dos Estados Unidos que o caso do
Lehman era, até certo ponto, enganoso. O banco não estava entre os
maiores e não era necessariamente tão fácil identificá-lo como “too big to
fail” (grande demais para falir). Mas ele era, sim, como se compreenderia
ex post, “too interconnected to fail” (interconectado demais para falir).
Entrelaçado de mil e uma maneiras, em geral não muito transparentes, com
muitas instituições financeiras nos Estados Unidos e em outros países, o
Lehman Brothers não poderia falir sem produzir intensa repercussão. Uma
aguda crise de confiança levaria ao colapso do crédito interbancário com
velocidade estonteante.
Não muito tempo depois, o secretário do Tesouro do governo Bush,
Hank Paulson, veio almoçar com a Diretoria do FMI – uma deferência
pouco usual, que não se repetiria nos meus mais de oito anos em
Washington. O governo americano estava, por assim dizer, matando
cachorro a gritos. O Fundo teria, inevitavelmente, papel-chave em lidar com
os destroços da crise em curso e Paulson resolvera então fazer conosco um
esforço de relações públicas. A Administração e a Diretoria,
desacostumadas a visita tão ilustre, não cabiam em si de contentamento. O
clima era basicamente de bajulação recíproca. A certa altura, entediado e
um pouco irritado pela complacência que dominava o almoço, pedi a
palavra e fiz uma pergunta simples. Queria saber se o secretário de Tesouro
não considerava, em retrospecto, que fora um erro deixar o Lehman
quebrar. Paulson tirou da algibeira, por incrível que pareça, o argumento do
risco moral. Para indignação de vários comensais, pedi de novo a palavra e
perguntei: “Mas se é assim por que socorreram a AIG poucos dias depois?”
Não obtive em resposta senão frases meio desconexas e olhares de censura
de vários lados. Pano rápido – logo providenciaram mais algumas
observações bajulatórias para tirar o secretário do fogo.
Nunca vira os americanos tão desorientados. Não havia como fugir das
consequências de uma crise financeira longamente gestada e de seus
impactos macroeconômicos, agravados por erros de gestão como a não
intervenção no caso Lehman. A situação era desesperadora, levando o
mesmo Paulson na mesma época ao gesto dramático de ajoelhar-se aos pés
de Nancy Pelosi, a presidente democrata da Câmara dos Representantes,
implorando a rápida aprovação de um gigantesco pacote de apoio às
instituições financeiras ameaçadas em sua sobrevivência. A própria eleição
de um afro-americano, Barack Obama, em novembro de 2008, no auge da
turbulência, não teria sido possível em um país conservador e racista como
os Estados Unidos, sem a crise financeira e as evidências de barbeiragem do
governo Bush na sua administração.
Peripécias à parte, o fundamental é relembrar que a crise, além de
ameaçar a sobrevivência de grande parte do sistema financeiro, provocara
um colapso da demanda privada de consumo e investimento. Evaporaram-
se as certezas econômicas e a sabedoria convencional do período pré-crise.
Hyman Minsky, o teórico da instabilidade financeira como fenômeno
endógeno e recorrente das economias capitalistas, foi redescoberto de
repente, passando a ser citado até por economistas do mercado financeiro,
normalmente um pouco ignorantes e muito apegados ao mainstream. John
Maynard Keynes ressurgiu com força – não só o Keynes mais original e
mais interessante, do capítulo 12 da Teoria Geral (o chapter 12
Keynesianism), mas até o keynesianismo dos modelos ISLM inaugurados
por Hicks e Hansen. Nos tempos da Great Moderation, a regressão
intelectual no campo da macroeconomia havia sido razoável, e até lições
elementares quanto à importância do “deficit spending” em tempos de
depressão andavam ligeiramente esquecidas, como destacaram vários
economistas na época, entre eles Paul Krugman.14
O desafio era imenso. Tratava-se da maior crise econômica desde a
Grande Depressão da década de 1930. Sem uma ação rápida e decidida dos
Estados, principalmente das autoridades fiscais e monetárias nos Estados
Unidos e na Europa, o verdadeiro risco, mais do que uma grande recessão,
inevitável àquela altura, era algo ainda pior: uma repetição da Grande
Depressão, que fora desencadeada, recorde-se, pelo colapso em série de
grandes instituições financeiras privadas nos Estados Unidos e na Europa.
Repetia-se a ameaça, afetando de novo os sistemas financeiros dos dois
lados do Atlântico Norte.
Desta vez, porém, a resposta dos governos seria totalmente distinta da
que se viu em 1929-1933. De fins de 2008 em diante, a reação da política
econômica desdobrou-se em três pilares, mais ou menos simultaneamente:
a) o fiscal; b) o monetário; e c) o socorro às instituições financeiras. No
campo fiscal, estabeleceu-se que seria importante não só permitir uma
ampliação “passiva” dos déficits públicos em consequência da recessão que
se iniciava, mas trabalhar ativamente para compensar a queda do gasto
privado com medidas fiscais contracíclicas, de diminuição de tributos e,
especialmente, aumento do gasto público. O resultado foram déficits de
dimensão assustadora, superiores em alguns casos a 10% do PIB nos anos
iniciais da crise.15 Esses déficits ocorreram a despeito do efeito atenuante
sobre as contas públicas das políticas monetárias ultraexpansionistas
adotadas pelos principais bancos centrais, liderados pela Reserva Federal
dos Estados Unidos, e a consequente queda das taxas de juro e do custo da
dívida pública. A política monetária, o segundo pilar da resposta da política
econômica, consistiu não apenas em trazer as taxas básicas de juro, aquelas
controladas diretamente pelos bancos centrais em suas operações de
mercado aberto, para zero ou próximo de zero em termos nominais, mas
também em adotar “forward guidance” (orientação prospectiva) em que o
banco central se comprometia em manter as taxas de juro próximas de zero
por período indeterminado. Ainda mais importante, foi a decisão,
principalmente da Reserva Federal, de promover o chamado quantitative
easing, expressão algo esdrúxula usada para designar a expansão deliberada
e sem precedentes do balanço da autoridade monetária, mediante a
aquisição de quantidades massivas de títulos públicos e privados para forçar
a diminuição das taxas de juro de prazo mais longo.16 Em alguns
momentos, na área do euro, em alguns outros países europeus e no Japão, as
taxas de juro de curto prazo chegaram a ser negativas em termos nominais,
o que equivalia a tributar as reservas bancárias e outros ativos líquidos.
O terceiro pilar foi a já mencionada decisão de usar recursos e garantias
públicas para socorrer as instituições financeiras. Isso resultou em tremenda
socialização de prejuízos que deixaria, menciono en passant, um rescaldo
de revolta e ressentimento nas populações americana e europeia,
constituindo uma causa importante da onda populista que atingiria muitos
países desenvolvidos no pós-crise. Em termos macroeconômicos, o
resultado foi um grande aumento da dívida pública nos países
desenvolvidos, refletindo o impacto fiscal das operações de socorro, da
recessão e das medidas contracíclicas.17
A solução teórica para o dilema do emprestador de última instância
anteriormente referido é conhecida. Para mitigar o risco moral, a
intervenção estabilizadora da autoridade pública deve preservar a
instituição financeira, quando possível, sem salvar seus administradores e
acionistas principais, submetendo-os, ao contrário, aos rigores da lei e,
quando cabível, a punições exemplares. Há duas dificuldades importantes,
porém. A primeira é onde traçar a linha entre: a) os depositantes,
investidores e credores que devem ser bailed-out (socorridos ou
protegidos), no interesse da estabilidade do sistema financeiro; e b) aqueles
que devem ser bailed-in (obrigados a contribuir com perdas para a solução
do problema), no interesse da disciplina e da responsabilização dos que
devem ser responsabilizados. A distinção entre os dois grupos de credores
ou investidores, como muita coisa em economia, parece clara em princípio,
mas é obscura na prática. A segunda dificuldade – esta provavelmente ainda
mais difícil de enfrentar – é do campo da economia política. Os
proprietários e principais dirigentes dos bancos e outras instituições
financeiras são um poderoso grupo de poder. Em linguagem marxista, são a
fração hegemônica das classes dominantes ou, de forma mais pitoresca, o
núcleo duro do que eu, em meus artigos na imprensa brasileira, chamo de
“turma da bufunfa”.18 O presidente Obama, sempre ansioso em ser aceito
pelo establishment, não tinha apetite para confrontá-los; tampouco sua
equipe econômica, que era de corte convencional. Resultado: a turma da
bufunfa escaparia essencialmente ilesa ou com pouco sofrimento.19 Uns
sobreviveriam intactos, mantendo posições e prestígio. Os gestores das
instituições mais problemáticas acabaram, em diversos casos, tendo suas
carreiras interrompidas, mas eram amparados, na saída, pelos célebres
golden parachutes (paraquedas dourados), os generosos pacotes financeiros
oferecidos aos altos executivos dos bancos quando do seu afastamento. Só
acabaram enjaulados ou submetidos a punições mais severas os outliers, os
casos mais extremos de vigarice financeira, como o notório Madoff, cujo
nome (mad) já sinalizava o pior, mas que conseguiu, por muito tempo,
enganar investidores e parceiros de negócios ou negociatas.

3. A reforma dos instrumentos de empréstimo do


FMI – retomando Keynes
Mas deixo isso tudo de lado para focar, mais uma vez, nos efeitos da crise
sobre o FMI. Um deles já abordei anteriormente: dentro do FMI, pessoas de
visão, notadamente DSK e Olivier Blanchard, aproveitaram a oportunidade
para arejar o debate macroeconômico, enfrentando, porém, as objeções da
ala mais tradicionalista do staff e da Diretoria, liderada pelos alemães. A
cadeira brasileira era a que mais se aproximava das posições defendidas por
DSK e Blanchard. A discussão foi intensa, mas nunca seria claramente
resolvida. Os argumentos da ala revisionista eram fortes, mas fortes também
eram as objeções dos defensores da sabedoria convencional. Havia em
muitos setores da instituição a convicção arraigada de que seria perigoso
permitir a consolidação de argumentos considerados heréticos. Com o
refluir da crise alguns anos depois, e a substituição de DSK por Lagarde, a
ala mais conservadora recuperaria grande parte do espaço perdido, como
indiquei anteriormente.
Outra consequência, ainda não abordada neste texto, foi a oportunidade
que se criou para reformar os instrumentos de financiamento do FMI.
Estabeleceu-se, também nesse tema, a mesma oposição básica entre, de um
lado, os que queriam aproveitar a oportunidade proporcionada pela crise
para revisitar e tornar mais atrativas e menos pesadas as modalidades de
empréstimo da instituição e, de outro, aqueles que se aferravam às práticas
tradicionais, marcadas por exigências detalhadas e condicionalidades
impostas aos devedores. A cadeira brasileira estava novamente no primeiro
grupo e exercia, nesse tópico, até certa liderança em termos de formulação
de propostas.
Uma circunstância prática reforçava a mão dos que queriam mudanças:
apesar da gravidade da crise financeira do Atlântico Norte e seus efeitos
desestabilizadores sobre as economias de diversos países, estes demoravam
muito a aceitar a necessidade de recorrer ao FMI. Era um fenômeno já visto
em diversas crises anteriores, inclusive na América Latina: o estigma
associado ao Fundo, que era forte em muitos países, transformava a
instituição em um emprestador, literalmente, de última instância, a quem só
se recorria quando não havia mais alternativa considerada viável. A
esperança dos revisionistas era de que aliviar as condicionalidades e tornar
as linhas de empréstimo mais flexíveis poderia remover, pelo menos em
parte, o estigma associado ao Fundo e facilitar sua participação na
resolução dos efeitos da crise sobre diversos países vulneráveis.
A cadeira brasileira já vinha se dedicando ao tema mesmo antes do
agravamento da crise. O ministro Mantega, no início de 2008, me pedira
que trabalhássemos na formulação de alternativas. Naquela altura, a crise
ainda não atingira os países em desenvolvimento com toda a força, mas sua
percepção, correta, é que isso era apenas uma questão de tempo. A
preocupação primordial dele era, na realidade, com a Argentina, aliada do
Brasil e um dos nossos principais parceiros comerciais. Mantega imaginava
que o Fundo talvez pudesse ajudar, desde que revisse sua forma de atuar. A
expectativa do ministro era infundada, nesse caso. A resistência à mudança
no FMI era grande. E a Argentina era um dos países em que o estigma
relacionado ao FMI era dos mais acentuados – por motivos históricos,
remotos e recentes. Por sua vez, a avaliação da instituição em relação à
Argentina no período Néstor e, depois, Cristina Kirchner se tornara cada
vez mais negativa – em parte por motivos questionáveis (a tradicional
tendência do FMI a pender para o lado dos credores em detrimento do
devedor), em parte por motivos válidos (a tendência do governo argentino a
seguir, cada vez mais, políticas econômicas inconsistentes e até mesmo a
recorrer à manipulação de dados, notadamente de inflação). Mas Mantega
tinha razão, repito, em imaginar que muitos países emergentes e em
desenvolvimento precisariam do FMI. O que ninguém sabia, àquela altura,
é que países europeus, considerados desenvolvidos, também seriam
fortemente atingidos e acabariam nos braços do Fundo.
Embora fosse difícil aplicar a ideia ao caso da Argentina, como queria
Mantega, a revisão dos instrumentos do FMI era, sim, relevante. Mesmo
antes que ele levantasse o tema, já estava em curso, um trabalho propositivo
dentro da cadeira brasileira, realizado basicamente pelo experiente Helio
Mori. Depois de diversas discussões internas, desde o início de 2008,
chegamos a uma proposta de criação de uma linha de financiamento – que
denominamos Rapid Liquidity Line (RLL) – e que apresentamos ao
ministro Mantega e, em seguida, à consideração da Diretoria, da
Administração e do staff. A ideia básica, em poucas palavras, era introduzir
nova linha no arsenal do FMI, sob a qual se forneceria apoio de balanço de
pagamentos com grande rapidez – por meio de desembolsos ou em caráter
preventivo – a países que tivessem políticas econômicas sólidas. O acesso
seria ilimitado, isto é, não haveria teto ao montante de recursos de que
disporia o país, e não seriam impostas as tradicionais condicionalidades, os
já referidos critérios de desempenho trimestrais. O staff do FMI se limitaria
a fazer uma simples checagem, semestral, para confirmar que o país
continuava a seguir políticas sólidas.
Era uma inovação que poderia ser considerada irrealista, talvez utópica,
mas que tinha raízes na história do FMI, como descobriríamos depois. O
próprio Keynes imaginava que o Fundo operaria essencialmente dessa
forma, proporcionando apoio rápido e incondicional.20 Como em muitos
outros temas, a visão de Keynes não prevalecera, e o Fundo foi se
consolidando ao longo das décadas como uma instituição que se imiscuía
em detalhes e tutelava a condução da política econômica, obedecendo a um
minucioso manual de procedimentos e atuando, por isso, com certa lentidão
e rigidez. Keynes estava adotando, nos anos 1940, o ponto de vista do
devedor – condição em que se encontrava o seu país, em razão da Segunda
Guerra Mundial. Ele estava “lutando pela Grã-Bretanha”, como frisou um
dos seus biógrafos, Robert Skidelsky.21 Assim, era possível voltar a
Keynes, como passei a fazer, para encontrar argumentos poderosos em
favor do ponto de vista da flexibilização do FMI como emprestador. O
Brasil não era mais devedor do Fundo e estava a caminho de tornar-se em
breve um dos seus credores, como mencionei, mas tinha muita experiência
como devedor da instituição, tendo sido, no passado muito recente, um dos
seus principais clientes.22 Além disso, os outros oito países da cadeira eram
todos eles países em desenvolvimento, alguns deles em pleno programa
com o FMI (República Dominicana e Haiti), outros com possível interesse
de recorrer à instituição, dependendo dos desdobramentos da crise
internacional. Não era o caso do Brasil, volto a dizer. O ministro Mantega
preocupava-se, inclusive – e com razão – que o empenho da cadeira
brasileira na reforma dos instrumentos de financiamento do FMI não fosse
interpretado como sinal de interesse do Brasil em voltar à condição de
devedor. Esse boato surgiria, de fato, dentro da instituição ao longo de
2008, mas foi fácil desmenti-lo. A posição de balanço de pagamentos e
reservas internacionais do Brasil se fortalecera muito nos anos anteriores à
crise e continuava forte apesar da turbulência no Atlântico Norte. A entrada
do Brasil no FTP, já mencionada, no começo de 2009, neutralizou
totalmente esses rumores.
A proposta da cadeira brasileira e algumas outras propostas, que iam
com mais cautela na mesma direção geral, não prosperavam facilmente
dentro de uma instituição conservadora e agarrada às suas tradições. Mesmo
DSK, que era propenso à inovação, acabou ajudando pouco nesse tema e se
rendia com certa facilidade às objeções da ala tradicionalista do staff e da
Diretoria. Depois de meses de discussão interna – e apesar do agravamento
dramático da situação financeira nos Estados Unidos e na Europa
desencadeado pelo colapso do Lehman em setembro de 2008 – o máximo
que se conseguiu foi uma vitória muito parcial: a criação, em outubro
daquele ano, de uma linha, denominada Facilidade de Liquidez de Curto
Prazo (Short-Term Liquidity Facility – SLF), que nasceu, infelizmente,
cheia de travas que impediriam sua utilização pelos países.
Passamos então mais alguns meses lutando para persuadir os setores
mais conservadores do Fundo de que era preciso ir além da natimorta SLF.
Perdemos tempo precioso. Enquanto lutávamos com as barreiras internas do
FMI, a Reserva Federal agiu rapidamente e ofereceu linhas de swap em
dólares para os principais bancos centrais do mundo desenvolvido,
facilitando a atuação de todos eles na provisão de dólares, sem restrições,
no atribulado mercado interbancário internacional. Em seguida, deu um
passo adicional, inédito, e ofereceu linhas de swap a alguns poucos bancos
centrais selecionados de países emergentes, entre eles o do Brasil.23 A
liderança estava em mãos dos Estados Unidos que, sem consultar ninguém,
simplesmente estabeleciam unilateralmente quem merecia e quem não
merecia apoio. Enquanto isso o FMI, onde nós, os emergentes, tínhamos
bem ou mal alguma influência, patinava e perdia espaço – em parte, ainda
que não apenas, por objeções da diretora executiva americana, Meg
Lundsager…
No fim de março de 2009, conseguimos finalmente aprovar na Diretoria
uma reforma ampla nos instrumentos de financiamento, em duas partes: a) a
flexibilização das linhas tradicionais do FMI (a mais importante das quais é
o Stand-By Arrangement – SBA); e b) a criação de uma linha inteiramente
nova: a Linha de Crédito Flexível (Flexible Credit Line – FCL). Era uma
das maiores reformas, talvez a maior reforma nos empréstimos e na
sistemática de monitoramento da instituição desde a sua criação em Bretton
Woods. Sem desmerecer o que estávamos fazendo, é preciso reconhecer que
isso dizia muito também do tradicionalismo e do papel das forças da inércia
dentro da instituição. E sem a crise financeira internacional então em curso,
teria sido impossível chegar aonde chegamos.
A primeira parte da reforma, embora menos espetacular, acabaria sendo
mais importante na prática, pois o SBA e outras linhas tradicionais
continuariam a ser as mais utilizadas nos anos seguintes. O novo formato do
SBA aprovado pela Diretoria permitiu consolidar mudanças significativas,
algumas das quais já vinham sendo testadas na prática. Ficou mais fácil, por
exemplo, obter acesso preventivo (isto é, sem desembolso) ao SBA em
valores elevados. Anteriormente, prevalecia o entendimento de que os
SBAs preventivos deveriam ser aprovados em quantias modestas.
Desapareceu, também, a presunção de que os empréstimos concedidos via
SBA deveriam ser distribuídos uniformemente ao longo da duração do
acordo e monitorados a cada trimestre. Dependendo das necessidades do
país e da solidez da sua política econômica, definiu-se que os SBAs
poderiam ser front-loaded (isto é, o acesso à maior parte do empréstimo
poderia ser imediato ou ocorrer nas fases iniciais do programa) e
estabeleceu-se, também, que o monitoramento do programa poderia ser
feito com menos frequência, em bases semestrais. Um pouco de cinismo,
aliado à fácil sabedoria ex post factum, sugere que a disposição de algumas
cadeiras europeias de aprovar essas mudanças refletia provavelmente a
percepção, que se avolumava gradualmente, de que europeus, inclusive de
olhos azuis, precisariam recorrer ao FMI. Seja como for, ainda que em parte
e, talvez, por motivos algo escusos, estávamos fazendo progresso, mesmo
que limitado, mesmo que demorado.
A grande inovação, entretanto, estava na segunda parte da reforma de
março de 2009: a criação da FCL. Ela era, no essencial, idêntica à proposta
da RLL, apresentada pela cadeira brasileira em meados de 2008. Na FCL,
foram removidas todas as limitações da sua antecessora, a natimorta SLF.
Ficamos, na época, naturalmente orgulhosos com um resultado que era, em
grande medida, mérito da cadeira brasileira, ainda que isso fosse raramente
reconhecido dentro e fora do FMI.
A FCL representava, realmente, uma inovação extraordinária no
funcionamento do Fundo – e, por isso mesmo, fora aprovada com muitas
objeções e até certa indignação de setores mais conservadores da
instituição. Era fácil compreender por quê. Na FCL, não haveria cartas de
intenção, critérios de desempenho, metas a cumprir ou monitoramento. Ela
ficaria disponível para países que tivessem políticas econômicas sólidas e
atendessem a critérios de habilitação preestabelecidos. A cadeira brasileira
investiu tempo considerável para assegurar, linha a linha, ponto por ponto,
que a FCL fosse aprovada dentro do espírito que presidira a proposta da
RLL e que remontava, como já indiquei, às propostas originais de Keynes
sobre a forma de emprestar do FMI.
Ficou estabelecido que os países habilitados teriam acesso rápido,
praticamente automático aos recursos do Fundo. Não haveria limite rígido
de acesso; o valor do empréstimo seria determinado caso a caso (a SLF
tinha um limite de 500% da quota). Os prazos de amortização (3¼ a 5 anos)
seriam iguais aos das linhas tradicionais (SBAs e outras) e mais longos que
os da SLF (que tinha prazo máximo de 9 meses). Além disso, uma vez
aprovada, a linha de crédito poderia ser utilizada a qualquer momento ou,
alternativamente, não ser desembolsada, ficando como instrumento
preventivo, mediante pagamento de uma comissão. O custo da linha era,
também, muito inferior ao da SLF e igual ao das linhas tradicionais.
Como se resolvia a questão de saber se um determinado país estava, ou
não, habilitado a receber apoio via FCL? A decisão da Diretoria que criou a
linha definiu a habilitação de forma flexível, como pretendia a cadeira
brasileira, estabelecendo critérios genéricos, sem quantificações. Esses
critérios nada mais eram do que os elementos básicos do que poderia ser
aceito, sem muita controvérsia, como uma política econômica adequada:
contas externas e fiscais sustentáveis, políticas monetárias e cambiais
adequadas, inflação baixa e controlada, supervisão eficaz do sistema
financeiro, estatísticas econômicas adequadas, entre outros.
Haveria, ainda assim, o risco de que esses critérios fossem aplicados de
forma excludente? Conhecendo o Fundo, acreditávamos que sim, e fizemos
o possível para mitigar esse risco. Por insistência da cadeira brasileira,
introduziu-se na FCL um dispositivo estabelecendo expressamente que um
país não precisava atender necessariamente a todos os critérios de
habilitação para ter acesso à linha. A razão para esse dispositivo era clara:
queríamos que a linha pudesse realmente ser utilizada e o acesso a ela não
fosse barrado por exigências e perfeccionismos impossíveis de alcançar na
vida real.

David contra Golias


Essa luta prosseguiria após a aprovação da FCL na Diretoria, em março de
2009. Decisões como essa são seguidas, na rotina do FMI, pela elaboração
de documentos de orientação do staff – conhecidas como operational
guidance notes –, detalhando a forma de implementar a decisão. Esses
documentos podem ser discutidos na Diretoria, mas não são submetidos à
sua aprovação. Aí moravam novos perigos. Era preciso ficar atento para
verificar se esses documentos supostamente burocráticos não deturpavam a
decisão alcançada a duras penas na Diretoria. Ao longo do tempo, isso
ocorreu algumas vezes. O diabo, como sempre, está nos detalhes: setores
conservadores buscavam recuperar o terreno perdido, reestabelecendo
controles e normas que eram, a rigor, incompatíveis com a FCL. A cadeira
brasileira se impunha, nesse caso e em muitos outros, por seu domínio do
assunto. Setores do staff e da Administração até arriscavam manobras mais
ou menos escusas, mas logo recebiam contravapor da cadeira brasileira. Em
todo o caso, era uma luta desigual, tipo David contra Golias. A pequena,
mas aguerrida, equipe da cadeira brasileira enfrentava um staff muito mais
numeroso, integrado por pessoas preparadas e que tinham, primordialmente,
incentivos para agradar a Administração, onde predominavam europeus e
americanos, e os diretores dos principais acionistas, também americanos e
europeus. Nós só conseguíamos prevalecer pelo preparo técnico e
capacidade de polemizar na Diretoria. A FCL constituía um terreno
propício para a atuação da cadeira brasileira. Mas era uma trabalheira
infindável, que demandava grande sacrifício pessoal da minha parte e da
parte da equipe.
Nesse caso, como em outros, para dar exemplo e favorecer a
mobilização dos nossos quadros, eu fazia questão de buscar que o meu
sacrifício pessoal fosse maior – o que geralmente era verdade. Com o passar
dos anos, entretanto, eu acumulava cada vez mais experiência e
conhecimento dos detalhes e podia, com menos dispêndio de tempo e
energia, compreender o essencial dos documentos do staff e descobrir onde
estavam os pontos problemáticos e como melhorá-los em benefício da
instituição e de nossos países. Assim, os integrantes da Administração e do
staff pensavam duas vezes antes de tentar manobras duvidosas em assuntos
de interesse da cadeira brasileira.
Fiquei satisfeito, é claro, com a criação da FCL, mas não me iludia. A
resistência fora tanta dentro do FMI que não podia haver dúvidas de que a
aplicação correta e justa da nova linha estava longe de garantida, havendo
sempre o risco de que as velhas práticas do FMI predominassem ou
reaparecessem sob nova roupagem. Ao longo dos anos seguintes, a cadeira
faria grande esforço para que as mudanças nas linhas tradicionais e a FCL
fossem aplicadas de forma fiel ao decidido pela Diretoria. Fomos bem-
sucedidos no primeiro ponto, mas não muito no segundo.
Uma razão é que os países europeus que precisaram, depois de muita
hesitação, recorrer ao FMI – Islândia, quatro países da área do euro (Grécia,
Irlanda, Portugal e Chipre), além de diversos países de mercado emergente
no Leste Europeu (Romênia, Letônia, Estônia, Ucrânia, entre outros) –
estavam todos em estado de tal vulnerabilidade e, em alguns casos, de
verdadeira desordem macroeconômica, que era totalmente impossível
considerá-los aptos a utilizar a FCL. Foram todos encaminhados às linhas
tradicionais, com as mudanças aprovadas em março de 2009 pela Diretoria,
e em alguns casos extremos – notadamente a Grécia – com casuísmos meio
escandalosos, de que tratarei mais tarde.
A FCL, contra nossa intenção original, acabaria sendo aplicada de
forma muito pouco transparente em benefício de um pequeno número de
Estados clientes dos Estados Unidos ou da Europa. Apenas três teriam
acesso à nova linha – o México, a Colômbia (ainda na cadeira brasileira na
época) e a Polônia. Eram países com políticas econômicas razoavelmente
arrumadas, mas que (contrariamente, por exemplo, ao Brasil e a países
emergentes do Leste da Ásia) não haviam acumulado um volume elevado
de reservas internacionais nos anos que antecederam à crise e
apresentavam, portanto, alguma vulnerabilidade às turbulências externas.24
Outro aspecto importante é que em nenhum dos três países pesava muito a
questão do estigma do FMI, o que tornava pequeno o custo político de
recorrer à instituição, tanto mais que poderiam explicar a seu público
interno, sem faltar à verdade, que não estavam se submetendo às
condicionalidades e interferências tradicionais. A FCL acabaria sendo
utilizada por eles com sucesso e de forma apenas preventiva, isto é, sem
desembolsos. Empréstimos de grande magnitude foram concedidos aos três
países, inicialmente na faixa de 900% a 1.000% das suas quotas. A FCL
viraria uma linha secundária de reservas, a custo relativamente baixo, que
seria renovada para esses três países sucessivas vezes pela Diretoria. Os
críticos dessa linha, por exemplo a cadeira da Rússia, passaram a se referir a
ela debochadamente, e não sem razão, como TCL – Three Country Line.
Com o refluir da crise financeira do Atlântico Norte, e sobretudo
quando arrefeceu a crise do euro a partir de 2012 ou 2013, as tendências
conservadoras dentro do FMI voltaram a predominar, como mencionei. A
FCL, por exemplo, passou a ser aplicada de forma rígida, seguindo um
suposto perfeccionismo em termos de habilitação, que não fazia parte do
desenho original, concebido pela cadeira brasileira
A falta de transparência tornou-se problema sério. A Administração do
FMI se valia disso para preservar o controle sobre a linha. A alegação,
legítima e defensável, é que era essencial preservar a reputação dos países
que sondassem a instituição sobre o acesso à FCL, para protegê-los de
repercussões negativas na mídia e nos mercados financeiros, em caso de
insucesso na sondagem. Assim, argumentava-se de forma persuasiva que
não era possível, nesse estágio inicial, levar a questão à Diretoria de 24
membros, mesmo em reuniões classificadas como sigilosas ou
confidenciais. O risco de vazamento era então utilizado para manter a
Diretoria à margem da triagem dos candidatos. As conversas iniciais entre
um eventual país candidato e o FMI aconteciam exclusivamente com a
Administração e o staff, com participação eventual (mas nem sempre) do
diretor e/ou de alternos e assessores que representavam o país na
instituição.
A cadeira brasileira, em especial, temida pela sua independência e
capacidade de questionar com substância as inclinações da Administração e
do staff, era mantida cuidadosamente à margem desses entendimentos –
exceto quando estava envolvido um país da própria cadeira. A Colômbia,
representada na nossa cadeira por uma diretora alterna problemática, já
mencionada, preferiu não passar pelo diretor brasileiro ao solicitar a FCL,
mesmo em se tratando de acesso a uma linha que resultara dos nossos
esforços. E, de fato, nem precisava passar por mim, pois seguia políticas
econômicas sólidas e desfrutava, além disso, do apoio que os Estados
Unidos se dispunham a dar a seus estados-clientes.
Mas o Panamá, com quem eu tinha boa relação, resolveu em certo
momento sondar a possibilidade de acessar a linha, mantendo-me a par de
tudo e pedindo a minha ajuda. Atuei de forma discreta para não prejudicar
as chances do Panamá, mas logo percebi que havia certa má vontade com o
país. Do ponto de vista macroeconômico, o Panamá reunia, no meu
entender, todas as condições para se habilitar à FCL: era uma economia
bem administrada, com desempenho excepcional que vinha sustentando ao
longo de vários anos taxas de crescimento “asiáticas”, isto é, um ritmo de
expansão só encontrado nas economias emergentes do Sul e do Leste da
Ásia.
Havia, entretanto, uma dificuldade. O Panamá era uma economia
plenamente dolarizada, que enfrentava, por isso mesmo, as inevitáveis
dificuldades de montar um esquema de emprestador de última instância
para o sistema financeiro panamenho, que é de porte considerável. As
autoridades do país queriam, inclusive, se valer da FCL para ajudá-las a
suprir essa lacuna, nem que fosse de forma transitória. Era uma aspiração
legítima, compatível no meu modo de ver com os requisitos estabelecidos
pela linha. Não foi o entendimento da Administração e do staff, por motivos
que me pareciam algo obscuros, talvez inconfessáveis. Fiquei com a
impressão de que a razão real da relutância em relação ao Panamá era a
demora do país em se adaptar aos requisitos que a OCDE, controlada pelos
Estados Unidos e demais países desenvolvidos, queria impor aos chamados
paraísos fiscais e financeiros em matéria de intercâmbio de informações
tributárias e regras contra lavagem de dinheiro e combate ao financiamento
do terrorismo, entre outras exigências. Esse objetivo poderia ser até válido,
mas nada tinha a ver com a FCL, que estava sendo usada, indevidamente,
como instrumento para impor uma agenda dos principais acionistas do FMI
ao país. O Panamá, para evitar constrangimentos, acabaria desistindo da sua
candidatura à FCL.
O caso do Panamá chegara a meu conhecimento, repito, porque era um
país da minha cadeira, que depositava confiança no diretor. Não podia saber
quantos casos semelhantes estavam acontecendo nos bastidores do FMI,
sem o meu conhecimento. O certo, apenas, é que a FCL ficaria limitada a
três países, tendo pouco efeito prático sobre a atuação da instituição.25 A
grande maioria dos países que recorreram ao FMI durante e depois da crise
foi enquadrada nas linhas tradicionais.26

4. Ação do G20 durante a crise internacional:


ampliação dos recursos do FMI
Do fim de 2008 em diante, no período pós-Lehman, o G20 passou a ter,
como mencionado anteriormente, um papel crucial no enfrentamento da
crise financeira do Atlântico Norte e seus desdobramentos internacionais.
Convertido em foro de líderes, isto é, de presidentes ou primeiros-ministros,
o G20 serviu de plataforma e mecanismo de coordenação para os principais
países desenvolvidos e emergentes. A liderança era dos Estados Unidos,
tanto nos meses finais do governo Bush como no governo Obama, e em
menor medida da Europa. Os emergentes tinham papel importante,
principalmente os BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China) que já estavam
atuando de modo coordenado desde o início de 2008, mas a hegemonia era
dos desenvolvidos.
O que queriam os países desenvolvidos do G20 naquele momento?
Primordialmente, uma ação solidária e coordenada para afastar o risco de
uma depressão econômica. O G20 constituiu-se, assim, no quarto pilar da
resposta à crise, adicionando uma dimensão internacional às iniciativas
anticrise tomadas no âmbito nacional, isto é, aos já referidos pilares fiscal,
monetário e de socorro às instituições financeiras. Buscava-se indicar, no
mais alto nível dos governos, que estava em curso uma ação conjunta de
grande magnitude, com a adoção simultânea pelos desenvolvidos e
emergentes do G20 de políticas contracíclicas para compensar o colapso da
demanda privada de consumo e investimento. Havia apoio quase geral e
irrestrito a esse propósito. Apenas a Alemanha, mais presa ao
conservadorismo fiscal e monetário, se mostraria hesitante em aderir a esse
consenso de corte keynesiano.
O FMI era uma parte importante da estratégia contracíclica. A sua
função seria impedir que países gravemente atingidos por repercussões de
balanço de pagamentos ou financeiras da crise nos Estados Unidos e nos
principais países europeus fossem forçados a adotar políticas recessivas
para fazer face a seus problemas, o que só contribuiria para aprofundar a
retração da economia mundial. A provisão de recursos por parte do Fundo
permitiria que o ajustamento nos países mais vulneráveis fosse espaçado ao
longo do tempo. E, de fato, como vimos, no auge da sua atividade como
emprestador, o FMI chegaria a socorrer mais de 50 países, não somente
emergentes e em desenvolvimento, como se esperava inicialmente, mas
alguns desenvolvidos, entre eles quatro membros da área do euro, Grécia,
Portugal, Irlanda e Chipre.
Havia, entretanto, uma dificuldade: os recursos à disposição do FMI no
início da crise eram claramente insuficientes. O aumento das quotas totais
proporcionado pela reforma de 2008 fora muito pequeno, de apenas 9,6%, e
ainda não havia entrado em vigor. Considerando quotas e empréstimos, o
volume de recursos do Fundo alcançava apenas US$ 250 bilhões. Na cúpula
de Londres, em abril de 2009, os líderes do G20 decidiram então anunciar
que os recursos da instituição seriam triplicados, passando para US$ 750
bilhões. Decidiram, também, apoiar uma nova alocação de direitos
especiais de saque do FMI, de US$ 250 bilhões, e empréstimos adicionais
de pelo menos US$ 100 bilhões por parte do Banco Mundial e outros
bancos multilaterais de desenvolvimento.27 Com o anúncio desses grandes
números para o FMI e outras instituições financeiras multilaterais, assim
como da ação coordenada contra a recessão nos países-membros do G20,
buscava-se influir sobre as expectativas dos agentes econômicos, ajudando
a conter a queda dos níveis de atividade econômica e emprego.
Qual era o ponto de vista dos emergentes nesse momento crítico?
Sabíamos, claro, que a crise era sobretudo dos Estados Unidos e da Europa,
mas temíamos que ela se espalhasse e afetasse as demais regiões do mundo.
Os principais emergentes, inclusive os BRICs, sentiam o impacto da
tempestade no Atlântico Norte, mas estavam aguentando bem o tranco.
Nenhum deles enfrentava crise grave. As suas economias, depois de
recessões não muito profundas, retomariam o rumo do crescimento. Mas
estava claro, desde 2008, que era do nosso interesse apoiar uma ação
internacional coordenada. Tendo conquistado, pela primeira vez, um
assento à mesa principal, no G20, os emergentes estavam dispostos a
mostrar solidariedade com os desenvolvidos em seu momento de suprema
aflição. Aos cálculos de interesse próprio dos emergentes em evitar a
propagação da crise, misturaram-se, talvez, algumas pitadas de vaidade e
ingenuidade. Não estávamos ainda acostumados a participar do clube
principal, e isso pesava de alguma forma. Seja como for, havia razões
objetivas de sobra para que participássemos do esforço de contenção da
crise.
O que se esperava especificamente dos emergentes? Basicamente duas
coisas. Primeiro, consideradas as condições específicas de cada economia
nacional, a adoção de políticas econômicas expansivas que pudessem
contribuir para evitar o aprofundamento e a propagação da recessão iniciada
nos Estados Unidos e na Europa. Segundo, a participação no esforço de
mobilização de empréstimos para o FMI. Países como China, Brasil, Rússia
e Índia, com posições sólidas de balanço de pagamentos e reservas
elevadas, foram instados a contribuir com empréstimos à instituição. Isso
significava, evidentemente, consagrar a centralidade de uma instituição em
que não estávamos suficientemente representados. A reforma de 2008,
como vimos, não havia sido suficiente para resolver esse problema.
O objetivo dos países desenvolvidos era reforçar o FMI sem lançar mão
de um aumento de quotas. Apelava-se para o sentido de urgência. Não havia
como aguardar a demorada negociação de uma nova rodada de revisão das
quotas, dada a situação emergencial criada pela crise nos Estados Unidos e
na Europa. Era um padrão que se repetia, como já assinalei. Em tempos de
tranquilidade, adiava-se sempre que possível o aumento e a revisão das
quotas com o argumento de que não havia necessidade. Em tempos de crise,
não havia tempo hábil de recorrer a quotas, e a alternativa passava a ser o
recurso a empréstimos.
A solução que nós, emergentes, encontramos foi caracterizar esses
empréstimos ao FMI como uma ponte para a próxima revisão de quotas.
Chegaríamos ao entendimento de que os empréstimos, de natureza
temporária, seriam convertidos posteriormente, pelo menos em parte, em
ampliação das quotas, abrindo espaço para a revisão da distribuição do
poder de voto. Apesar da recente conclusão de uma reforma de quotas e
voz, definiu-se que uma nova reforma do FMI seria negociada até janeiro
de 2011. O compromisso foi que essa reforma resultaria em quotas relativas
que refletissem o peso dos países-membros na economia mundial.
O acordo político alcançado no âmbito do G20 era, de certa forma,
inconveniente para nós. Entregávamos a nossa parte de imediato – os
recursos para o FMI – em troca de uma promessa de reforma da instituição
no futuro. Tínhamos consciência do risco de que a promessa pudesse ficar
no papel. Tentaríamos minimizá-lo especificando, de forma relativamente
detalhada, a natureza das reformas pretendidas. Essas especificações, às
quais volto mais adiante, ficaram consignadas em comunicados do G20,
inclusive dos seus líderes nas cúpulas. Mas as nossas desconfianças
persistiam, até porque observávamos nas negociações dos textos do G20 a
grande dificuldade de vencer as objeções dos europeus, que lutavam, frase
por frase, palavra por palavra, para atenuar ou esvaziar os compromissos
assumidos em relação ao FMI. Em todo o caso, ficava o constrangimento
para eles: teriam coragem de descumprir objetivos aceitos por escrito por
seus presidentes ou primeiros-ministros? O tempo mostraria, porém, que os
desenvolvidos, em particular os europeus, eram exímios praticantes da arte
da traição.
Em 2009, as dúvidas e desconfianças não prevaleceram. O importante
era agir contra a crise. O caminho mais rápido seria assinar acordos
bilaterais com países-membros. O Japão saiu na frente oferecendo um
empréstimo de nada menos que US$ 100 bilhões ao FMI, assinado em
fevereiro. Diversos outros países desenvolvidos, entre eles Alemanha,
França, Reino Unido, Itália e Canadá, também ofereceram contribuições
bilaterais. O segundo maior empréstimo veio da China, no valor de US$ 50
bilhões. Brasil e Índia entraram com US$ 10 bilhões cada.28

Brasil como credor do FMI


A participação brasileira consistiu na abertura de uma linha de crédito
temporária de até US$ 10 bilhões, na forma de um acordo de compra de
notas (Note Purchase Aggreement – NPA), com duração de dois anos, ao
abrigo do qual se fariam desembolsos mediante a compra de títulos
emitidos pelo FMI.29 Os títulos ou notas emitidos dentro desses acordos
foram desenhados para permitir que continuassem a fazer parte das reservas
internacionais do país credor, assegurando-se a sua imediata
conversibilidade em moeda de liquidez internacional, a exemplo do que já
ocorria no FTP. Além disso, os NPAs, assim como outras modalidades de
empréstimo bilateral, foram definidos pela Diretoria como linhas
temporárias, suplementares às quotas, de modo a não solapar a natureza do
FMI como instituição baseada em quotas. A função dessas linhas, como
indiquei, era servir de ponte para a nova revisão das quotas acordada pelo
G20.
Para o Brasil, a participação nessa operação foi um marco. Brasil,
credor do FMI! Quando cheguei a Washington, dois anos antes, nunca
poderia imaginar que viéssemos a emprestar dinheiro ao Fundo. Custei a
me acostumar com a ideia. O brasileiro, leitor, é um pobre e humilde ser,
sujeito a recaídas recorrentes no complexo de vira-lata, como dizia Nelson
Rodrigues. Não tinha e nunca tivera os modos, hábitos e cacoetes típicos de
um credor. Durante quase toda sua história, desde a independência, o Brasil
fora um país devedor, não raro inadimplente, às vezes escandalosamente
inadimplente. A ninguém escapava, portanto, o inusitado da situação.
O significativo não era apenas que o Brasil emprestasse recursos ao
FMI, mas especialmente que isso se desse em meio à mais séria crise
econômica internacional desde a década de 1930. Normalmente, o que se
poderia esperar em circunstâncias como essa? Ora, que o Brasil recorresse
ao Fundo. Quando os Estados Unidos espirram, a América Latina pega
pneumonia, rezava o chavão. Rompeu-se o padrão habitual: em vez de o
Brasil ir ao Fundo, o Fundo foi ao Brasil. Evidentemente, isso não teria sido
possível se não fosse sólida a nossa posição econômica e, em especial, se o
país não tivesse acumulado, no período que antecedeu a crise de 2008,
reservas internacionais superiores a US$ 200 bilhões.
Expansão e reformulação do NAB – BRICs alcançam
poder de veto
Em 2009-2010, utilizando o caminho mais rápido para aumentar seus
recursos, o FMI assinou acordos bilaterais de empréstimo com 22 países no
valor total de mais de US$ 250 bilhões. Desde o começo, entretanto, o
propósito da Administração do FMI e dos seus acionistas majoritários era
que esses acordos bilaterais fossem subsequentemente incorporados ao
NAB (New Arrangements to Borrow), esquema plurilateral de
financiamento do FMI que se desejava ampliar e reformular. A meta,
anunciada no início de 2009, era aumentar os recursos de US$ 50 bilhões
para até US$ 500 bilhões, criando uma “segunda linha de defesa”,
suplementar às quotas. Alguns países, os Estados Unidos por exemplo,
pretendiam entrar diretamente no novo esquema. Aos países que assinassem
acordos bilaterais, se proporia sua conversão em participações no esquema
plurilateral. Desejava-se, também, flexibilizar o uso do NAB, facilitando o
acesso do FMI a seus recursos.
Os emergentes, especialmente os BRICs, tinham reservas quanto a essas
propostas. Um NAB, turbinado e flexibilizado, encerrava certos perigos
para nós. A sua expansão, sem salvaguardas apropriadas, poderia limitar o
alcance da reforma de quotas e levar a atrasos na negociação. Estava-se
criando uma situação anômala: o mecanismo complementar, mais flexível,
seria pelo menos duas vezes maior do que as quotas do FMI. Munidos de
uma grande massa de recursos de uso fácil, a Administração do FMI e os
desenvolvidos não teriam, temíamos, pressa nem incentivo para concluir a
revisão das quotas.
Os BRICs indicaram inicialmente sua preferência em continuar com os
acordos bilaterais, mas sofremos grande pressão para aceitar a centralização
em um único acordo plurilateral. O pior é que os países desenvolvidos
queriam, por inacreditável que pareça, que assumíssemos o compromisso de
entrar no novo NAB às cegas, sem saber exatamente como se daria a
reformulação. Como não éramos participantes do antigo NAB, criava-se
uma situação potencialmente vexatória. Os antigos participantes, a grande
maioria deles países ou bancos centrais de países desenvolvidos, poderiam
se reunir e definir as novas regras de funcionamento, ficando os novos
participantes comprometidos de antemão em aderir ao esquema. O que se
queria, em outras palavras, é que aceitássemos uma espécie de contrato de
adesão.
Em abril de 2009, na reunião de primavera do IMFC, em Washington,
os desenvolvidos tentaram passar o trator. O Egito havia assumido a
presidência do IMFC em 2008 – fato aparentemente auspicioso, pois pela
primeira vez o foro era presidido por um país emergente. Infelizmente, isso
não ajudava nada. O Egito de Hosni Mubarak estava estreitamente alinhado
aos Estados Unidos e à Europa, e o ministro egípcio, Youssef Boutros-
Ghali, funcionava no IMFC como mera linha auxiliar da Administração do
FMI e dos desenvolvidos. Calculou-se que com os préstimos de Boutros-
Ghali se conseguiria arrematar o compromisso de todos com o novo NAB.
Não contavam, entretanto, com o Brasil, que não estava disposto a ser
levado de roldão. Uma circunstância inesperada fez com que o ministro
Mantega, que estava em Washington, não pudesse comparecer à reunião, e
eu fui escalado para substituí-lo. À volta da mesa, os outros membros do
IMFC estavam representados por ministros de Finanças ou presidentes de
banco central, o que me deixava em posição complicada. Sob a
coordenação do egípcio, formou-se rapidamente uma maioria a favor de um
compromisso imediato de todos os credores efetivos e potenciais do FMI
com o novo NAB. Argumentei então, em linha com o que combinara com
Mantega, que não se deveria pedir compromisso dos eventuais novos
membros sem que lhes fosse dada a oportunidade de participar da
reconfiguração do mecanismo. Propus uma redação para o comunicado da
reunião que condicionaria a entrada no NAB à nossa participação na
definição da sua governança. Era o óbvio, mas mesmo assim a minha
insistência no ponto causou desagrado aos americanos e europeus. Não
estavam acostumados a que representantes de países em desenvolvimento
reclamassem o direito de opinar. Fui acusado de estar bloqueando o
consenso, em momento de grave crise global, que demandava decisões
rápidas e urgentes. Alguns ministros pediam a palavra para reclamar do que
lhes parecia excesso de exigência da parte do Brasil.
Fiquei razoavelmente isolado, mas o IMFC decidia por consenso, como
já indiquei. Abria-se assim a possibilidade de que um só membro,
especialmente se contasse com certo apoio de alguns outros, inviabilizasse
o que se pretendia consagrar. Depois de sucessivas intervenções, consegui
suscitar alguns ruídos favoráveis do presidente do Banco Central da China,
Zhou Xiaochuan, e de um ou outro representante dos BRICs. Na época, o
grupo estava dando seus primeiros passos, mas já aparecia um traço que
marcaria sua atuação nos anos seguintes – o Brasil era o motor do grupo, o
país que demonstrava, em geral, mais capacidade de formular, atuar e
definir estratégias; a China, que assumiria certa liderança a partir de 2015
ou 2016, ainda se mostrava relativamente retraída.
Deu-se então uma situação desagradável, não muito comum em
reuniões plenárias desse tipo. O egípcio, vendo que o assunto estava
fugindo do seu controle, resolveu escalar, criando grande constrangimento.
Passou a desqualificar as minhas intervenções, questionando meu mandato
e minha autoridade. Chegou ao ponto de cobrar a presença do ministro
brasileiro, perguntando enfaticamente: “Onde está o ministro Guido
Mantega?” Sob pressão, resolvi dizer que Mantega estava em Washington e
poderia ser consultado. O secretário adjunto para assuntos multilaterais da
Fazenda, Álvaro Vereda, que me acompanhava na reunião, foi até o
ministro para explicar o impasse e buscar orientação. A reunião prosseguiu
com outros temas, menos importantes, enquanto o assessor saía, apressado,
para consultar Mantega. Havia certo risco na concessão que fizera ao
egípcio; o assessor poderia pegar o ministro em mau momento ou não
explicar de forma convincente o impasse. Não podia ter certeza de que
minha posição seria confirmada. Mas tudo terminaria bem. Vereda retornou
com uma nova formulação sobre o NAB, escrita por Mantega, que era
essencialmente a mesma proposta já apresentada por mim, com outras
palavras. Li então a formulação do ministro para o plenário, suscitando uma
exclamação coletiva de impaciência e frustração da parte dos
desenvolvidos. Mas estava terminado o embate. Não haveria adesão
incondicional ao NAB.
Isso acabaria sendo mais importante para nós do que eu mesmo podia
imaginar àquela altura. As negociações para ampliação e revisão do NAB
prosseguiriam ao longo dos meses seguintes, com ativa participação do
Brasil e outros emergentes, resultando em mudanças que tornaram a entrada
no mecanismo atrativa.
Detalhes técnicos à parte, havia dois temas essenciais para nós: a
tomada de decisões no novo NAB e sua relação com a nova reforma das
quotas. A etapa decisiva da negociação seria concluída seis meses depois,
em novembro de 2009, com resultados favoráveis no primeiro dos dois
temas. O segundo seria abordado de maneira mais superficial e teve a
solução basicamente transferida para as negociações relativas à reforma de
quotas em andamento.
No NAB, os recursos ficam à disposição do FMI, mas só são
transferidos quando há necessidade efetiva. Trata-se, portanto, de um
arranjo virtual de compartilhamento de reservas para retomar a linguagem
usada anteriormente. A decisão fundamental nesse arranjo paralelo diz
respeito à sua “ativação”, isto é, a autorização para que o FMI acesse os
recursos. No esquema antigo, a ativação se dava empréstimo por
empréstimo, isto é, cada vez que o Fundo aprovava um programa de
financiamento para um país-membro. A supermaioria requerida para essa
ativação era 80% do valor total do NAB, isto é, países responsáveis por
pelo menos 80% das contribuições precisavam aprovar o desembolso de
recursos.
Pretendia-se que o novo NAB fosse mais flexível, com decisões gerais
de ativação valendo por seis meses, período durante o qual o Fundo poderia
financiar desembolsos em qualquer programa aprovado.30 A pretensão era
justificável, dadas as urgências da crise internacional. Porém, a
supermaioria de 80%, inferior ao patamar habitual do FMI, colocava os
BRICs em desvantagem. As contribuições anunciadas inicialmente pelos
quatro países somavam US$ 80 bilhões (50 da China mais 10 de cada um
dos outros três), ou seja, um pouco mais de 15% do valor total que se
pretendia alcançar para o novo NAB. Além disso, uma mobilização bem-
sucedida junto aos países-membros do FMI estava levando a um valor
próximo a US$ 600 bilhões, bem acima da meta inicial.
Naquele momento, a questão que se colocava para nós, BRICs, que
estávamos atuando cada vez mais em coordenação, era saber se queríamos
ou não ter poder de veto no novo NAB, algo que não tínhamos no FMI.
Chegamos à conclusão de que, sim, era importante ter esse poder, tendo em
vista a dimensão que estava tomando o NAB, muito superior às quotas do
FMI. Para alcançar esse objetivo era importante conseguir duas coisas: a)
aumentar de 80% para 85% a supermaioria requerida para a ativação; e b)
aumentar a contribuição somada dos BRICs para um nível que garantisse
pelo menos 15% do total dos recursos.
Sem o aumento da supermaioria, a contribuição somada dos BRICs teria
que aumentar de US$ 80 bilhões para cerca de US$ 120 bilhões, algo que se
afigurava excessivo para os nossos países. A China, que já comparecera
com o segundo maior valor depois do Japão, não se sentia em condições de
oferecer mais. Combinei então, com os russos e indianos, de levarmos às
nossas capitais a proposta de aumentar para US$ 14 bilhões as
contribuições, no que fomos bem-sucedidos. O valor total dos BRICs
subiria, assim, para US$ 92 bilhões, o que nos daria poder de veto, desde
que conseguíssemos aumentar a supermaioria de ativação para 85% e que o
valor total do novo NAB não ultrapassasse muito os US$ 600 bilhões.
Teríamos sucesso nos dois quesitos. Na reunião de novembro, em
Washington, com participação de quase 40 países, a supermaioria requerida
para ativar o NAB e para algumas outras decisões seria fixada em 85%.31
Ficaria estabelecido, também, que o novo NAB não poderia ultrapassar
US$ 600 bilhões, ponto fundamental para os BRICs, pois sem um teto não
teríamos como estabelecer com segurança a contribuição requerida para
alcançar o patamar de 15%.
Não foi fácil chegar a isso. A resistência a mudanças era grande; não
havia muita disposição de ceder espaço para os emergentes, principalmente
(de novo) da parte dos europeus. A questão do nível da supermaioria deu
lugar a momentos de estresse. Em Istambul, à margem da reunião anual do
FMI, em outubro de 2009, as negociações do NAB se deram sob a
presidência do Japão. Os membros do G7 reuniram-se à parte para
coordenar posições e definir se poderiam, ou não, aceitar as pretensões dos
BRICs. Como me confidenciou o presidente japonês do NAB, Daisuke
Kotegawa, que era o diretor executivo do Japão e se tornara um amigo
próximo, o G7 estava dividido àquela altura, com os europeus ainda
renitentes. O representante da França, contou Kotegawa às gargalhadas,
chegou a dar um murro na mesa ao dizer que se opunha a que os BRICs
tivessem poder de veto.
O Japão, observo de passagem, era um membro sui generis do G7.
Único não branco do grupo, os japoneses pareciam, às vezes, não se
solidarizar totalmente com os outros seis. Sempre discretos, sem marcar
posição publicamente, os japoneses se divertiam um pouco com as
atribulações dos americanos e europeus, inclusive com a dificuldade deles
em aceitar a ascensão dos BRICs e outros emergentes.
Os europeus acabaram cedendo. O novo NAB alcançou valor próximo a
US$ 600 bilhões. Os Estados Unidos entraram com US$ 111 bilhões; o
Japão, com US$ 106 bilhões; os países da União Europeia e seus bancos
centrais, com US$ 192 bilhões; os BRICs, com US$ 92 bilhões.32 Só os
Estados Unidos e o Japão, individualmente, e os BRICs e os europeus,
atuando em conjunto, ficaram com poder de veto no NAB. A obtenção
dessa prerrogativa pelos BRICs era um resultado sem precedentes na
história do FMI, que refletia a ascensão dos emergentes e os abalos
provocados pela crise financeira do Atlântico Norte. O próximo passo seria
garantir resultado semelhante para os BRICs na reforma de quotas e poder
de voto, que já estava em negociação e tinha conclusão prevista para janeiro
de 2011.
A preocupação dos BRICs de que o novo NAB poderia atrapalhar a
reforma de quotas não foi inteiramente resolvida nessas negociações.
Conseguiríamos apenas que o prazo inicial de duração do novo NAB fosse
relativamente curto, até novembro de 2011, e que ficasse consignado que o
seu tamanho seria revisto nessa ocasião à luz do resultado da reforma de
quotas.33 Persistia, portanto, algum risco de que o NAB, ampliado e de uso
fácil, pudesse facilitar o adiamento da revisão das quotas e do poder de
voto.

5. A reforma de quotas de 2010 – fatores a nosso


favor
Em condições normais, nunca teria sido possível iniciar uma nova rodada
de reforma do FMI tão pouco tempo depois da conclusão da anterior. A
reforma de quotas e voz de 2008 fora aprovada, como vimos, em abril
daquele ano. Sem a crise internacional e o acordo político entre
desenvolvidos e emergentes no G20, a força dos super-representados no
FMI teria certamente impedido que começasse tão cedo uma nova
negociação. Mesmo assim, os diretores executivos europeus e o da Arábia
Saudita, país que também tinha a perder com a reforma, ainda fizeram o
possível para adiar e obstruir o processo. Por maior que fosse a renitência
desses diretores, não havia, contudo, como bloquear o início das discussões
da reforma, tendo em vista a meta de concluí-la até janeiro de 2011,
anunciada pelos líderes do G20 na cúpula de Londres, em abril de 2009.
Tínhamos a nosso favor, não só a crise econômica e as deliberações do
G20, mas também alguns outros fatores. Primeiro, a circunstância de termos
DSK como diretor-gerente do FMI que, embora europeu, não se deixava
dominar inteiramente pelas preocupações dos seus conterrâneos. Ele tinha a
mente aberta e percebia a importância de atualizar a governança da
instituição que estava sob seu comando. O segundo fator era a disposição
do governo Obama de jogar suas fichas em favor da reforma do FMI e
colocar pressão sobre os tradicionais aliados europeus. Essa disposição se
sentia nitidamente, na Diretoria do FMI e mais ainda no G20, em especial
no período até a derrota dos democratas nas eleições de meio de mandato
para o Congresso, em novembro de 2010, que levaria à perda da maioria na
Câmara dos Representantes e ao enfraquecimento do governo Obama. Um
terceiro fator que nos fortalecia era a crescente coordenação entre os
BRICs, que atuavam conjuntamente em prol da reforma tanto na Diretoria
do FMI como no G20. Essa coordenação começara em 2008 e já se tornara
um fato político reconhecido nos meios financeiros internacionais.34
O papel dos Estados Unidos e a coordenação entre os BRICs ganharam
destaque na cúpula do G20, realizada em Pittsburgh, em setembro de 2009,
como descrevi em outro texto deste livro.35 Depois de horas e horas de
negociação desgastante, com os europeus em bloco resistindo como sempre
de forma determinada, chegamos a alguns compromissos que entraram na
declaração dos líderes do G20 e ajudariam os emergentes nas negociações
subsequentes. Reconheceu-se, por exemplo, que a distribuição das quotas
deveria refletir os pesos relativos dos membros do FMI na economia
mundial, que haviam mudado substancialmente com o forte crescimento
dos países em desenvolvimento mais dinâmicos. Para alcançar esse
objetivo, assumiu-se o compromisso de “transferir para os países dinâmicos
de mercado emergente e em desenvolvimento quotas de pelo menos 5% de
países super-representados para sub-representados, usando a fórmula de
quotas vigente do FMI como base a partir da qual trabalhar”.36
Essa formulação abstrusa e ambígua refletia a dificuldade de mover os
europeus que, como eu disse, brigavam frase por frase e palavra por
palavra. O que havia de positivo para nós eram a meta de pelo menos 5% de
transferência de quotas e a referência à mudança de “pesos relativos” na
economia mundial, o que apontava para dar mais proeminência ao PIB no
cálculo das quotas. Isso nos favorecia e era caixão para os europeus. Havia,
contudo, algumas proteções e válvulas de escape para eles: a meta numérica
“pelo menos 5%” estava localizada na frase da declaração dos líderes,
estranhamente, entre duas noções distintas: “para países de mercado
emergente e em desenvolvimento dinâmicos”, de um lado, e “super-
representados para sub-representados”, de outro.37 A primeira noção nos
contemplava; a segunda contemplava os europeus, que conseguiram
também introduzir referência à fórmula vigente de quotas que os favorecia
– referência mitigada, porém, por um acréscimo nosso: “como base a partir
da qual trabalhar”. Enfim, meandros kafkianos de uma negociação
internacional.
O que nós, emergentes, queríamos em termos de governança do FMI se
resumia basicamente a três pontos: a) o abandono da regra informal arcaica
que reservava o cargo de diretor-gerente a um europeu; b) o reequilíbrio das
cadeiras na Diretoria Executiva, com aumento da presença de países em
desenvolvimento e diminuição do número de europeus; e c) um
realinhamento de quotas e votos, o que dependia em parte de uma nova
fórmula de quotas.
No primeiro ponto, não tínhamos apoio dos Estados Unidos, que
preferiam manter o arranjo vigente em que indicam o presidente do Banco
Mundial e os europeus, o diretor-gerente do Fundo. Tentamos, sem sucesso,
introduzir nos comunicados e documentos uma referência explícita ao
abandono da regra informal. O máximo que conseguimos foi um
compromisso genérico com uma seleção dos dirigentes dos organismos
internacionais “aberta, transparente e baseada no mérito”. Isso nada valia,
como veríamos em 2011, quando DSK foi substituído após sua prisão em
Nova York. Os europeus rapidamente apresentaram o nome de Christine
Lagarde e não aguardaram nem o fim do prazo de inscrição de candidatos
para declarar, em bloco, seu apoio ao nome da francesa.
Para o segundo ponto, contávamos, sim, com o apoio dos americanos.
Os Estados Unidos tinham, há muito tempo, a opinião de que a Diretoria
Executiva do FMI era grande demais e excessivo o número de diretores
europeus. No meu entender, os americanos estavam certos nos dois pontos.
Era muito difícil, porém, reduzir o tamanho da Diretoria, tendo em vista o
crescimento do número de países-membros ao longo do tempo. Não haveria
apoio dos emergentes para essa redução. Mais factível era consolidar os
europeus em um número menor de cadeiras e aumentar a representação dos
emergentes na Diretoria. Os europeus, entretanto, se opunham ferozmente a
essa proposta.
O terceiro ponto era o mais importante para nós. Grande parte das
discussões na Diretoria ao longo de 2009 e 2010 versaram sobre o
realinhamento de quotas e a revisão da fórmula aprovada em 2008. Essas
discussões foram, com frequência, pesadas e desagradáveis. O bloco
europeu fazia, como dizíamos na época, um stonewalling sistemático,
obstruía sem cessar, recusando-se a cooperar e resistindo até mesmo a
aceitar os compromissos consignados no G20 e no IMFC. Não queriam
mudar a fórmula de quotas e nem discutir seriamente um realinhamento.
Nós, os emergentes, em especial os diretores dos BRICs, nos
coordenávamos e discutíamos em detalhe todos os aspectos técnicos e
nuances do realinhamento e da fórmula. Prevalecíamos nas discussões da
Diretoria, mas o progresso era lento. A energia que dispendíamos para
promover as mudanças, os europeus dispendiam para bloqueá-las. Alguns
de nós, em especial o diretor russo e eu, atuávamos em duas outras frentes,
no IMFC e, mais importante, nas reuniões do G20 como delegados de
nossos países.
Para mim, havia uma outra questão crucial: a posição relativa do Brasil
que estava defasada há muito tempo, como já assinalei. O que eu
conseguira na reforma de 2008 tinha sido significativo, mas não era
suficiente. Nossa quota e poder de voto continuavam muito abaixo da
participação brasileira na economia mundial. Mais uma vez, a chave para
essa questão seria o diálogo com DSK. Na busca de soluções para a
reforma, o diretor-gerente conversava separadamente com diretores ou
grupos de diretores, buscando entender as motivações e aproximar posições.
Expliquei a ele que o Brasil continuava sub-representado quando
considerada a nossa participação na economia global.38 Mostrei a ele que só
cinco países – os Estados Unidos, o Brasil, a Rússia, a Índia e a China –
figuravam na lista dos dez maiores tanto em termos de PIB (calculado por
paridade de poder de compra) como de território e população.39 DSK logo
se daria conta de que a reforma de quotas e governança teria que ter como
um dos seus objetivos centrais colocar as dez maiores economias do mundo
– os Estados Unidos, o Japão, os quatro grandes europeus e os quatro
BRICs – como os dez maiores quotistas do FMI. Para tal, o Brasil precisaria
dar um novo salto no ranking do FMI e passar de 14o para 10o,
ultrapassando Canadá, Arábia Saudita, Holanda e Bélgica.

China não queria ofender o Canadá


Devo dizer que o diálogo com DSK pesava mais, nesse particular, do que a
coordenação entre os diretores dos BRICs, embora estivéssemos atuando há
dois anos em conjunto na questão da reforma do FMI e em outros temas.
Levei a meus colegas russo, indiano e chinês, em uma das nossas reuniões
de coordenação, a pretensão brasileira de subir para 10o no ranking. Para
minha surpresa, o diretor chinês, Jianxiong He, declarou que apoiar a
pretensão brasileira criaria dificuldades para a China, particularmente por
ofender o Canadá. Nada disse na hora, mas fiquei remoendo o assunto.
Tinha viagem marcada a Brasília e aproveitei a ocasião para levar a questão
às autoridades brasileiras. Luís Balduíno, chefe da divisão financeira do
Itamaraty, me disse, irritado: “Não querem ofender o Canadá, mas vão
ofender o Brasil.” E o ministro Celso Amorim me recomendou: “Diga a
eles que os nossos negociadores do clima ficarão sabendo disso.” É que nas
negociações sobre clima, então em andamento, a China contava muito com
o apoio do Brasil.
Voltei a Washington munido desses argumentos e, na próxima reunião
de coordenação dos diretores dos BRICs, pedi novamente apoio para a
pretensão brasileira. O chinês repetiu que não queria ofender o Canadá.
Conhecendo os chineses, a insistência no comentário deixava claro para
mim que ele discutira o assunto com Beijing. Lancei então os petardos:
“Não querem ofender o Canadá, mas estão ofendendo o Brasil.” E
acrescentei: “Os nossos negociadores do clima vão ser informados.” Foi um
choque. Esse tipo de confrontação não era nada comum em nossas reuniões
de coordenação, marcadas pela cordialidade e cooperação. O diretor russo,
Aleksei Mozhin, alarmado, reclamou: “O Paulo está agora fazendo
ameaças!” Eu retruquei: “Estou apenas dizendo o que vai acontecer.” Ficou
claro para eles que eu tinha consultado Brasília.
A mensagem chegou a Beijing, como eu esperava. Pouco tempo depois,
em reunião do IMFC, em Singapura, o vice-presidente do Banco Central da
China, Yi Gang, que assumiria mais tarde a presidência do banco, veio
conversar à parte comigo. “O presidente Lula quer muito que o Brasil seja
número 10 no FMI, não é?”, indicando que estava a par das discussões entre
os BRICs em Washington. Fiz cara de paisagem, pois a verdade é que Lula
não entrava nesses detalhes e não fazia a menor ideia do assunto, mas
expliquei a Yi Gang em que se baseava a pretensão brasileira e ele assentiu
a meus argumentos.
Esse episódio terminou mais ou menos bem, mas era revelador do
comportamento da China no FMI e mostrava os limites de uma articulação
centrada exclusivamente nos BRICs. Os chineses, diante do peso crescente
da sua economia, mostravam propensão a se distanciar dos outros BRICs e
atuar em faixa própria, como se veria em outros momentos, em especial no
uso do poder de veto no NAB e nas acusações de assédio moral que eu
sofreria.
De qualquer maneira, para que a reforma de quotas fosse bem-sucedida
não bastaria melhorar a posição relativa do Brasil. O balanço de forças
dentro da instituição só mudaria se os países emergentes e em
desenvolvimento, no seu conjunto, obtivessem aumento significativo das
quotas e do poder de voto, em linha com o que sugeriam as deliberações do
G20. Era importante, também, reduzir a presença de europeus na Diretoria e
aumentar a dos emergentes. Porém, ao longo de 2009 e 2010, foi ficando
claro para os americanos e para nós que a Europa, definitivamente, não
queria se mover. Os europeus davam todos os sinais de que não pretendiam
ceder espaço – ou que só o fariam a conta-gotas. E, para completar o
quadro, ainda queriam aproveitar a reforma para reintroduzir a proposta do
Conselho Ministerial, rejeitada por nós em discussões anteriores.

Estados Unidos jogam a “bomba atômica”


Foi aí que os americanos surpreenderam a todos, ao lançar mão de algo que
era conhecido, dentro do FMI, como “bomba atômica” e que consistia em
exercer o direito de veto e negar apoio à manutenção de 24 cadeiras na
Diretoria Executiva. Desde 1992, depois que a quantidade de países-
membros do Fundo aumentara muito com a dissolução do bloco soviético, o
Conselho de Governadores votava, a cada dois anos, para manter o número
de cadeiras da Diretoria em 24. Só que o Convênio Constitutivo do FMI
previa apenas 20 cadeiras, a não ser que se decidisse por maioria de 85%
dos votos modificar esse número. Tendo 17% dos votos, os EUA podiam
vetar a manutenção das 24 cadeiras. E foi o que fizeram nas eleições de
diretores executivos previstas para fins de 2010.
A decisão unilateral dos Estados Unidos jogou a instituição em uma
crise aberta, talvez sem precedentes, pois impedia a reconstituição da
Diretoria. A Europa tomou tremendo susto, como se notava pelo
comportamento nervoso dos diretores europeus. Não estava nos cálculos
deles que os americanos pudessem chegar a esse ponto. Mas a decisão dos
Estados Unidos também deixou desnorteada a maioria dos diretores de
países emergentes e em desenvolvimento. A forma de atuar dos americanos
contribuía para gerar confusão. Não deram qualquer aviso prévio,
provavelmente para evitar vazamentos e como tática de choque. E não se
davam ao trabalho de procurar os outros países para explicar o que estavam
fazendo. Era um exemplo de algo que experimentei mais de uma vez ao
longo dos meus oito anos em Washington – não é fácil trabalhar com os
americanos, mesmo quando se está em acordo com eles!
Independentemente do estilo agressivo e algo arrogante dos americanos,
era natural o nervosismo do nosso lado. A decisão dos EUA criava algum
risco para países em desenvolvimento, inclusive o Brasil. Se não houvesse
acordo e o número de cadeiras caísse de 24 para 20, seriam atingidas as
quatro menores em termos de poder de voto. A 24a no ranking era a dos
países africanos francófonos, a 23a era a cadeira sul-americana integrada
por Argentina, Peru, Chile e outros, a 22a era comandada pela Índia, a 21a
pelo Brasil. Se a reforma de quotas e voz de 2008 já estivesse em vigor, a
cadeira brasileira seria a 18a em termos de votos, o que nos teria tirado da
zona de risco. Porém, naquela altura, a reforma de 2008 ainda não havia
sido ratificada por um número suficiente de países.
Apesar disso, eu considerava a decisão dos EUA positiva para nós e
cheguei a publicar um artigo no Financial Times, no calor da hora,
apoiando os americanos e ressaltando o impasse criado pelo imobilismo dos
europeus.40 Os americanos me diziam que eu era o único que havia
entendido o que eles estavam fazendo. Aparentemente, não lhes ocorria
que, se só um estava entendendo, faltava um pouco de explicação da parte
deles. Na minha avaliação, que expressei no artigo publicado, o risco de
desaparecimento das quatro menores cadeiras era pequeno. O FMI seria
inconcebível com apenas uma cadeira da África Subsaariana. Também seria
inconcebível o desaparecimento da cadeira que incluía a Argentina, o Peru,
o Chile e outros países da América do Sul. Ainda mais impensável seria um
FMI sem a Índia e o Brasil no comando de cadeiras na Diretoria. Mas não
era nada inconcebível, ao contrário, um FMI com menos cadeiras europeias
e com uma redução dos votos das cadeiras europeias remanescentes. Era
isso, escrevi, que faria a instituição ficar mais equilibrada e representativa.
O importante é que a iniciativa americana colocava em movimento uma
negociação que parecia praticamente estagnada. O canhão fora apontado
para a Europa. Nos meses seguintes, eles seriam obrigados a se mover.

Negociações na Coreia do Sul – Estados Unidos,


Europa e BRICs
As negociações continuaram em Washington, na Diretoria, e – mais
importante naquele momento – no G20, que estava sob a presidência da
Coreia do Sul. A reunião decisiva foi a ministerial do G20, em Gyeongju,
na Coreia, em outubro de 2010. Os americanos, e nisso nós, emergentes,
coincidíamos inteiramente com eles, estavam determinados a alcançar um
resultado que pudesse ser levado à cúpula dos líderes dos G20, marcada
para novembro em Seul.
Representados por seus ministros de Finanças ou presidentes de banco
central, os países do G7 se reuniram à parte em Gyeongju, com DSK
presidindo a reunião. A discussão foi longa e muito tensa, sendo
interrompida diversas vezes para consultas e para dar tempo ao staff do FMI
de rodar diferentes cenários para o realinhamento das quotas. Timothy
Geithner, o secretário do Tesouro dos Estados Unidos, colocava os europeus
sob forte pressão. Soube depois que Christine Lagarde, então ministra de
Finanças da França, chegou às lágrimas, exasperada pelo que considerava
uma ruptura da tradicional aliança entre americanos e europeus.
DSK era a nossa ponte com o G7. Eu recebia dele as informações sobre
os caminhos que tomavam os entendimentos e ele, ao mesmo tempo,
buscava sentir como reagiríamos ao que estava se configurando no G7. Em
paralelo, os representantes dos BRICs se reuniam para tomar pé da situação,
pois DSK indicara que, ao término das discussões entre americanos e
europeus, a reunião seria ampliada para incluir os BRICs. Com a ajuda do
diretor chinês no FMI, Jianxiong He, expliquei aos outros representantes
dos BRICs, entre eles os ministros de Finanças da Rússia, Alexei Kudrin, e
da Índia, Pranab Mukherjee, o que estava sendo discutido no G7 e como
isso se comparava com as posições que os BRICs vinham defendendo para
as reformas.
Ao término da tumultuada reunião do G7, os BRICs foram então
convidados para discutir os elementos de um possível acordo. O formato da
reunião indicava, mais uma vez, o reconhecimento que os BRICs haviam
alcançado como mecanismo de coordenação. Por outro lado, não era ideal
para nós que americanos e europeus tivessem se posto de acordo antes de
nos chamar para o diálogo. Mas, enfim, era o que tínhamos naquele
momento. Os BRICs estavam todos representados por seus ministros ou
presidentes de Banco Central, com exceção do Brasil, que se fazia
representar pelo secretário de assuntos internacionais da Fazenda, Marcos
Galvão, e por mim, pois Mantega não pudera vir a Gyeongju. Do outro lado
da mesa, estavam os representantes do G7, quase todos de nível ministerial
– sinal da importância que se atribuía à questão do FMI naquele momento.
A Coreia do Sul, como anfitriã, também participava. A sala era pequena e
desconfortável e os assessores dos países desenvolvidos se amontavam atrás
de seus ministros, alguns em pé. Na cabeceira da mesa, DSK coordenava a
discussão, demonstrando habilidade e liderança.
Como se colocava a questão para nós, BRICs, naquele momento? O
desenho de acordo que nos estava sendo proposto continha pontos
positivos, mas não atendia inteiramente a nossas aspirações. Foram
apresentados números que mostravam, sim, uma transferência significativa
de quotas, algo como 6%, para EMDCs dinâmicos e países sub-
representados, em linha com o que havia sido anunciado como meta em
Pittsburgh. Outro ponto importante: os quatro BRICs obteriam aumento em
suas quotas relativas, principalmente a China e o Brasil. O aumento do
Brasil resultava do esforço de colocar-nos entre os dez maiores, que DSK
buscava persistentemente. Integrantes do staff que trabalhavam nos cálculos
me confidenciavam que DSK sempre dizia a eles para não apresentar
simulações em que o Brasil não fosse número 10.
O diretor-gerente do Fundo tinha, acredito, duas motivações. A primeira
era trazer o Brasil para o acordo que estava sendo montado. Não lhe
escapava que éramos, nessa questão e em outras, o motor dos BRICs; ele
percebia, também, que tínhamos certa influência sobre outros países
emergentes e em desenvolvimento. A segunda motivação, talvez mais
importante, era sua percepção de que colocar todos os BRICs, inclusive o
Brasil que estava muito defasado, entre os dez maiores quotistas seria um
elemento crucial para a divulgação do acordo. O Canadá acabou sendo
convencido, em Gyeongju, a ceder a 10a posição, ficando abaixo do Brasil
por ínfima fração.41
Havia aspectos problemáticos, porém. A transferência de 6% se dava
em grande medida à custa de outros países em desenvolvimento, que eram
considerados super-representados ou não suficientemente “dinâmicos”. Isso
se justificava no caso da Arábia Saudita e outros exportadores de petróleo,
por exemplo, mas havia muitos outros países emergentes ou em
desenvolvimento que perdiam quota relativa ou não registravam ganho
significativo. No grupo dos beneficiados estavam alguns desenvolvidos,
notadamente a Espanha, que era, de fato, um dos poucos europeus que
podia ser considerado sub-representado. A transferência líquida de quotas
para os EMDCs em conjunto não chegava a 3%. Outro problema é que não
se mexia na fórmula de quotas, que apresentava, como mencionado,
distorções importantes e favorecia a super-representação europeia.
Quando recebemos, já durante a reunião, os números e um documento
com as grandes linhas do acordo alcançado no G7, duas outras coisas me
chamaram imediatamente a atenção. Primeira: a forma como se definira a
diminuição das cadeiras europeias, tema tão caro aos americanos, era
ambígua e poderia dar margem a subterfúgios. Quando levantei dúvidas a
esse respeito, os principais assessores de Geithner, Lael Brainard e Mark
Sobel, em pé atrás dele, gesticularam para mim, agitados, indicando que era
impossível reabrir a questão. A outra coisa que me preocupou foi a inclusão
inesperada no texto do G7 da criação do Conselho Ministerial, anátema
para nós. Os europeus estavam visivelmente tentando introduzir o tema de
contrabando. No meio da reunião, levantei-me e fui até a cabeceira da mesa
reclamar com DSK de que não havíamos sido prevenidos do ressurgimento
do Conselho. Ele sabia muito bem da nossa aversão à proposta. DSK me
disse, em voz baixa: “É só o Brasil discordar com firmeza que o Conselho
cai.” E, de fato, conseguimos derrubar o Conselho, mas ficou a formulação
inadequada para a diminuição das cadeiras europeias.
A questão fundamental para nós, como já mencionei, era a transferência
de quotas para os BRICs e os EMDCs como um todo. Temíamos que seria
difícil obter a concordância dos demais países emergentes e em
desenvolvimento, dentro e fora do G20, se o acordo fosse visto como
benéfico sobretudo para os BRICs. Pedimos a suspensão da reunião para
permitir uma discussão entre nós e, aos brasileiros, uma consulta ao
ministro Mantega.
O problema continuava a ser, evidentemente, a resistência europeia à
reforma. Com o agravamento da crise na área do euro, que alcançaria o
auge no ano seguinte, aumentara ainda mais a determinação da Europa em
manter privilégios e influência no FMI. Os Estados Unidos tinham jogado a
“bomba atômica” e faziam pressão, mas não haviam conseguido dobrar os
europeus inteiramente. Do meu ponto de vista, mais uma vez, o importante
era colocar a reforma em movimento, e dar mais alguns passos à frente,
evitando reproduzir o destino da Rodada Doha da OMC. Claro que muito
pesava para mim o fato de o Brasil estar entre os principais beneficiários do
acordo que se esboçava. Mantega concordou com essa avaliação.
Com base nas informações que recebia de DSK ao longo das discussões
do G7, fui percebendo que a saída seria incluir no acordo G7/BRICs alguns
“forward-looking elements”, isto é, compromissos de resolver no futuro, até
datas determinadas, os pontos que ficariam sem solução nesta etapa da
reforma. Com a ajuda de Eduardo Saboia, diplomata que trabalhava na
nossa cadeira em Washington e que me acompanhava na reunião em
Gyeongju, coloquei no papel três pontos, que levamos aos demais BRICs
no intervalo da reunião com o G7: 1) o compromisso de rever a fórmula de
quotas até janeiro de 2013; 2) a antecipação da próxima revisão das quotas
para janeiro de 2014; e 3) o compromisso de que o NAB seria reduzido
quando da entrada em vigor do aumento de quotas que estávamos em vias
de aprovar, preservando as participações relativas dos membros. Os demais
representantes dos BRICs concordaram com as sugestões apresentadas pelo
Brasil e retomamos então a reunião com o G7. O ministro da Índia, o mais
velho entre os ministros presentes, fez a leitura dos pontos que os BRICs
gostariam de ver incluídos no acordo. A nossa aceitação do acordo ficou
condicionada à inclusão dos três pontos.42 Não houve discordâncias do
outro lado e o acordo foi concluído nessa base.
Alguns representantes dos BRICs, entre eles eu, foram escalados para
explicar o acordo a outros países emergentes do G20. Houve alguma
relutância, vencida pela presença dos forward-looking elements e pelo fato
de que a maioria dos demais emergentes do G20 ganhava em termos de
quotas relativas (as exceções eram a Arábia Saudita, a África do Sul e a
Argentina). O acordo alcançado por nós com o G7 ficaria consagrado no
comunicado da reunião de Gyeongju e foi confirmado, em novembro, na
cúpula dos líderes do G20 de Seul. A Diretoria do FMI aprovaria o acordo
também em novembro, remetendo para consideração dos governadores uma
versão ampliada e detalhada do que fora negociado na Coreia.43 A votação
no Conselho de Governadores seria concluída pouco depois, em dezembro.

Brasil na primeira divisão – limites da reforma de


2010
A reforma de 2010 foi, sem dúvida, um avanço excepcional para o Brasil.
Depois da China, o Brasil era o segundo maior beneficiário em termos de
aumento da quota e do poder de voto. Quando cheguei a Washington, em
2007, o Brasil tinha uma quota de 1,4% do total e era o 18o maior quotista.
Com a reforma de 2008, a nossa quota subiu para 1,8% e o Brasil, para 14o
do ranking. A reforma de 2010 aumentava a quota brasileira para 2,3% e
nos levava à 10a posição. O aumento acumulado em termos de poder de
voto com as reformas de 2008 e 2010 foi o maior obtido pelo Brasil em
toda a história do FMI.
Com todos os BRICs ganhando em quotas, o poder de voto somado dos
quatro países aumentava para 14,2%, próximo do patamar de 15% que
conferia poder de veto sobre decisões importantes.44 A China passava de 6a
para 3a posição no ranking; a Índia, de 11a para 8a; a Rússia, de 10a para 9a.
Ainda em Gyeongju, DSK anunciou como um dos principais resultados
da reforma a inclusão no rol dos dez maiores quotistas do FMI dos “dez
países sistemicamente mais importantes na economia global”.45 Destacou
também a transferência de 6% de quotas para EMDCs dinâmicos e países
sub-representados e outras mudanças na governança para concluir que o
acordo alcançado pelo G20 era “histórico” e “punha um fim à discussão
sobre legitimidade do FMI”.46
Era um exagero manifesto. Os países desenvolvidos continuariam com
55% do poder de voto. Os europeus haviam cedido pouco espaço: o poder
de voto agregado dos 27 países da União Europeia diminuiria apenas 1,5
ponto percentual, caindo para 29,4%, ainda muito acima do seu peso
econômico relativo.47 Em grande parte por isso, a transferência de votos
para os emergentes e em desenvolvimento era modesta, apenas 2,6 pontos
percentuais (que se somavam à transferência de 2,7 pontos obtida na
reforma de 2008). A distribuição de quotas e votos continuava a não refletir
as mudanças que vinham ocorrendo e continuariam a ocorrer na economia
mundial.
Daí a importância dos forward-looking elements introduzidos pelos
BRICs, como parte integrante do acordo, pois representavam o
compromisso com a continuação do processo de transferência de quotas e
votos no FMI. Marcar para janeiro de 2014 a conclusão da próxima revisão
geral de quotas significava antecipá-la em dois anos relativamente ao
calendário normal do FMI. Estabeleceu-se que essa nova reforma de quotas
se faria após uma revisão abrangente da fórmula de quotas, a ser concluída
até janeiro de 2013, para que ela refletisse melhor os pesos econômicos
relativos.48 Foi importante, também, estabelecer que o aumento de 100%
das quotas totais definido na reforma de 2010 seria acompanhado de uma
redução correspondente das contribuições ao NAB, pois isso diminuiria o
risco de que futuros realinhamentos de quotas viessem a ser protelados ou
limitados com o argumento de que o FMI dispunha de recursos em
abundância. Mesmo assim, os números mostravam claramente que o NAB
pós-entrada em vigor do aumento das quotas continuaria com um volume
de recursos muito expressivo – da ordem de US$ 250 bilhões – o que
levava os BRICs a querer que fosse preservado o poder de veto que
havíamos alcançado nesse mecanismo. Acordou-se, então, que as
participações relativas no NAB seriam mantidas depois da sua redução.49
Por sugestão da Turquia, incluiu-se também o compromisso de completar
os procedimentos para a entrada em vigor das quotas até o Encontro Anual
do FMI e do Banco Mundial de outubro de 2012.
Estávamos cuidando de todos os detalhes e dando o nosso melhor para
que a reforma de 2010 representasse um avanço real. O problema é que os
europeus também davam o seu melhor para tentar limitar e esvaziar a
reforma. Nada conseguimos, como antecipei, em matéria de mudança na
regra informal que reservava o cargo de diretor-gerente a um europeu.
Mesmo no ponto em que contávamos com apoio dos Estados Unidos – a
diminuição do número de cadeiras europeias na Diretoria em favor de um
aumento das cadeiras comandadas por EMDCs –, o que se conseguiu foi
ilusório.
A chave para esvaziar essa questão foi a inserção pelos europeus de
uma válvula de escape na redação do compromisso referente à Diretoria,
que ficou assim: “Maior representação para os EMDCs na Diretoria
Executiva por meio de duas cadeiras a menos de países europeus
avançados.”50 A válvula de escape era a palavra “avançados”
(desenvolvidos). Com base nisso, os europeus se mobilizariam para
aumentar a presença na Diretoria, em regime de rotação, dos EMDCs
europeus, isto é, países do Leste Europeu classificados como de economia
emergente, sacrificando em certa medida a presença dos pequenos países
europeus avançados, inclusive alguns daqueles que, como mencionei
anteriormente, se destacavam pela qualidade dos seus diretores. Em suma, a
emenda foi pior do que o soneto. Os EMDCs da Europa rezavam pela
cartilha dos principais países do continente e tinham pouco ou nada em
comum com os demais emergentes. Em retrospecto, ficou claro que os
europeus tinham levado a melhor na confrontação com os americanos em
torno da composição da Diretoria – tanto mais que conseguiram incluir na
reforma um compromisso, consignado em Resolução do Conselho de
Governadores, de manutenção em 24 do número de cadeiras na Diretoria.
Em outras palavras, foi desativada a “bomba atômica” dos americanos. As
lágrimas de Lagarde não haviam sido em vão.

1 Texto concluído em junho de 2019. Agradeço os comentários e sugestões de Hector Torres, Pedro
Fachada e Felipe Santarosa sem responsabilizá-los pelas opiniões expressas ou pelos erros e
omissões remanescentes.
2 Havia resistência, compreensível, a usar a designação emerging countries para países de civilização
milenar como a China e a Índia. A Rússia, também de civilização antiga e na condição de ex-
superpotência, era outro país que resistia a aceitar essa designação. A solução foi usar o termo
emerging market countries para englobar os países em desenvolvimento economicamente mais
avançados.
3 Entre eles, a Venezuela, a Líbia, o Iraque e outros países exportadores de petróleo.
4 A minha tendência era interagir com Galvão, único membro da equipe de Mantega que eu
conhecera anteriormente, por ter trabalhado com ele em projeto de pesquisa sobre o tema da
globalização alguns anos antes. Sabia que ele era politicamente conservador, pois havia ocupado
posições de confiança nos governos tucanos e até no governo Collor, mas respeitava a sua
competência profissional. Galvão seria secretário-geral do Itamaraty no governo Temer.
5 No caso brasileiro, a condução do assunto FMI era liderada pelo representante da Fazenda, reflexo
do fato de que o governador do Brasil no Fundo era o ministro da Fazenda e não, como em outros
países, o presidente do Banco Central.
6 Em retrospecto, entendo melhor do que na época as motivações de Saarenheimo. A posição da
Finlândia e de outros países europeus era o espelho da posição da África do Sul. Esta última tinha
assento no G20, mas estava sub-representada na Diretoria. O representante sul-africano no G20
chegava a hostilizar os diretores executivos que participavam das reuniões do G20, como pude
testemunhar em reunião de que participei no Rio de Janeiro, antes de assumir o cargo em
Washington. Já a Finlândia, assim como outros europeus menores, tinha representação na Diretoria,
ainda que em regime de rotação, mas não no G20 – a não ser, indiretamente, via União Europeia.
Assim, era natural que o finlandês não aceitasse de bom grado a tentativa de deslocar o centro de
gravidade da discussão da reforma do FMI da Diretoria para o G20. Também pesavam, acredito,
fatores pessoais. Saarenheimo era preparado e inventivo e via com maus olhos o conservadorismo
estreito do acerto que estava sendo montado no G20 por deputies das capitais, que não tinham,
necessariamente, grande conhecimento dos vários aspectos e detalhes da reforma do FMI.
7 Republicado neste livro, p. 420-2.
8 Descobriria, depois, para minha surpresa, que meus artigos na imprensa brasileira eram
acompanhados no FMI e que – quando traziam críticas à atuação da Europa no FMI ou no G20 –
repercutiam às vezes, por incrível que pareça, até em capitais europeias, suscitando algumas
reclamações.
9 O discurso do secretário teve, também, aspectos cômicos, que não me escaparam apesar do clima
de tensão. O infeliz resolveu lançar mão de uma paráfrase de célebre discurso de Churchill sobre o
acordo de Munique em 1938, usando a respeito de si mesmo as palavras da Bíblia que Churchill
lançara contra Chamberlain: “Thou art weighed in the balance and found wanting” (Foste pesado na
balança e achado em falta). Eu, que conhecia bem os discursos de Churchill, escutava tudo aquilo
estarrecido, mas sem deixar de notar o lado flagrantemente ridículo da situação.
10 Pouco tempo depois, ele foi substituído por Marcos Galvão e passou à posição de chefe de
gabinete do ministro da Fazenda, sem exercer, porém, grande influência nessa nova posição.
11 Ver neste livro p. 421-2.
12 Todos esses aspectos são explicados em detalhe no documento Reform of quota and voice in the
International Monetary Fund – Report of the Executive Board to the Board of Governors, 28 de
março de 2008. Disponível em: <https://www.imf.org/external/SelectedDecisions/Description.aspx?
decision=63-2>.
13 Charles Mackay. Extraordinary Popular Delusions and the Madness of Crowds. Nova York:
Harmony Books, 1980 (1ª ed.: 1841). Charles P. Kindleberger. Manias, Panics and Crashes: a
History of Financial Crises. Nova York: Basic Books, Inc., 1978. John Kenneth Galbraith. A Short
History of Financial Euphoria. Nova York: Whitle Direct Books, 1990.
14 Paul Krugman. The Return of Depression Economics and the Crisis of 2008. Nova York/Londres:
W.W. Norton & Company, 2009. Ver, também, do mesmo autor, “Mr Keynes and the moderns”. In:
Vox, Research-based policy analyses and commentary from leading economists, 21 June 2011.
Disponível em: < https://voxeu.org/article/mr-keynes-and-moderns>.
15 Nos Estados Unidos, o déficit do governo geral foi 13,3% do PIB em 2009 e 12,6% do PIB em
2010. No Reino Unido, 10,4% e 9,3% do PIB nos mesmos anos. Na Espanha, 11% e 9,4% do PIB.
OECD Economic Outlook, novembro de 2018, anexo, tabela 31. Disponível em:
<https://www.oecd.org/eco/outlook/economic-outlook-november-2018/>.
16 Sobre a resposta da Reserva Federal à crise ver, por exemplo, Ben S. Bernanke. The Federal
Reserve and the Financial Crisis. Princeton: Princeton University Press, 2013. Bernanke foi o
chairman da Reserva Federal no período da crise.
17 Para os países da OCDE como um todo, a dívida bruta do governo geral como percentagem do
PIB subiu de 73% em 2007 para 101% em 2011 e 112% em 2014, mantendo-se próxima deste nível
nos anos seguintes. OECD Economic Outlook, op. cit., anexo, tabela 36.
18 Ver, por exemplo, neste livro, p. 423-4, 430-4 e 438-40.
19 Um relato crítico da relação entre o governo Obama e Wall Street pode ser encontrado em livro
escrito pelo ex-economista chefe do FMI Simon Johnson e o historiador James Kwak – 13 Bankers:
The Wall Street Takeover and the Next Financial Meltdown. Nova York/Toronto: Pantheon Books,
2010.
20 D.E. Moggridge. Maynard Keynes: An Economist’s Biography. Londres/Nova York: Routledge,
1992, p. 729.
21 Fighting for Britain é o subtítulo do terceiro volume da biografia sobre Keynes de Robert
Skidelsky. John Maynard Keynes. Fighting for Britain, 1937-1946, v. 3. Londres: Macmillan, 2000.
22 O último empréstimo do FMI ao Brasil fora aprovado em 2002, no fim do governo Fernando
Henrique Cardoso, e havia sido pago antecipadamente em fins de 2005, no primeiro mandato do
presidente Lula.
23 Foram contemplados, também, os bancos centrais do México, da Coreia do Sul e de Singapura.
24 Essa vulnerabilidade resultava pelo menos em parte da excessiva fidelidade desses países às
políticas econômicas aceitas como válidas antes da crise de 2008 em Washington, incluindo-se aí a
pouca importância que o FMI atribuía a manter déficits moderados no balanço de pagamentos em
conta corrente e a acumular reservas internacionais volumosas, em caráter preventivo. Ver neste livro
p. 44-5.
25 Para responder às críticas da cadeira brasileira e de outras ao que considerávamos a aplicação
inflexível e seletiva da FCL, a Administração e o staff propuseram posteriormente a criação de uma
linha intermediária, denominada Precautionary and Liquidity Line - PLL, mais maleável e com
menos exigências do que as linhas tradicionais, mas não tão maleável e inovadora quanto a FCL.
Essa linha intermediária também foi pouco usada; apenas dois países (Macedônia e Marrocos)
recorreram a ela.
26 Só chegaria até mim um outro caso, de um país pequeno, as Ilhas Maurício, pertencente à cadeira
francófona subsaariana. Autoridades desse país me procuraram para pedir apoio na sua intenção de
acessar a FCL, queixando-se inclusive da passividade e inércia do diretor que os representava,
Laurean Rutayisire – realmente muito pouco eficaz e que só se destacava na Diretoria por
intervenções obscuras e prolixas. Mas a oposição da Administração e do staff era, aparentemente,
muito grande e, antes que eu pudesse tentar ajudar, o caso das Ilhas Maurício sumiria na voragem.
27 Group of 20, London Summit - Leaders’ Statement, 2 de abril de 2009, parágrafos 17 e 19. A
alocação de direitos especiais de saque chegaria a US$ 283 bilhões. Group of 20, Pittsburgh Summit -
Leaders’ Statement, 25 de setembro de 2009, parágrafo 19.
28 Eduardo Brau & Louellen Stedman. “IMF efforts to increase the support available to members”.
IEO Background Paper, Independent Evaluation Office, BP/14/10, 8 de outubro de 2014, p. 6-8.
29 A íntegra do acordo pode ser encontrada na página do FMI na internet. Note Purchase Agreement
between the Federative Republic of Brazil and the International Monetary Fund, data de publicação:
10 de janeiro de 2010. Disponível em <https://www.imf.org/external/np/pp/eng/2010/010810.pdf>
30 A autorização diz respeito apenas aos programas do General Resource Account do FMI,
excluindo, portanto, os programas subsidiados para países de baixa renda, que são financiados de
forma separada.
31 Os 85% passaram a valer também para a admissão de novos membros no NAB e aumentos das
participações individuais, entre outras decisões.
32 International Monetary Fund. Proposed Decision to Modify the New Arrangements to Borrow
(NAB). IMF Policy Paper, 25 de março de 2010, tabela 2, p. 5. Disponível em:
<https://www.imf.org>.
33 Ibid., p. 1.
34 A ponto do secretário do Tesouro dos Estados Unidos pedir, em duas ocasiões, para comparecer às
reuniões dos ministros de finanças dos BRICs. Ver neste livro p. 40.
35 Ver neste livro p. 40-1.
36 “We recognize that the IMF should remain a quota-based organization and that the distribution of
quotas should reflect the relative weights of its members in the world economy, which have changed
substantially in view of the strong growth in dynamic emerging market and developing countries. To
this end, we are committed to a shift in quota share to dynamic emerging market and developing
countries of at least five percent from over-represented to under-represented countries using the
current IMF quota formula as the basis to work from.” Group of 20, Pittsburgh Summit - Leaders’
Statement, 25 de setembro de 2009, parágrafo 21.
37 Os europeus interpretavam sobre e sub-representação com base na fórmula de quotas. Por essa
definição: um país estava sobrerrepresentado (sub-representado) se a sua quota fosse superior
(inferior) à quota calculada pela fórmula aprovada na reforma de 2008. A fórmula favorecia os
europeus principalmente por duas razões: a) atribuía um peso expressivo à abertura da economia
(30%), que era alta no caso de países relativamente pequenos e fortemente integrados entre si como
são os europeus; e b) atribuía peso preponderante no cálculo da variável PIB (60%) ao PIB a preços
de mercado, o que favorecia os países desenvolvidos. Nós entendíamos que se devia dar maior peso
ao PIB por paridade de poder de compra, critério de mensuração que reflete o peso econômico real
dos países e é menos afetado por flutuações cambiais.
38 O peso do Brasil na economia mundial estava entre 2,7% e 2,9%, dependendo do critério de
mensuração do PIB. Com a reforma de 2008, como vimos, a quota brasileira aumentara para 1,8% e
o poder de voto para 1,7% do total.
39 Com os PIBs comparados a taxas de câmbio de mercado, apenas três países permaneciam nessa
lista dos dez maiores por território, população e dimensão da economia: Estados Unidos, China e
Brasil.
40 “Europe must make way for a modern IMF”, Financial Times, 23 de setembro de 2010.
41 A quota relativa do Brasil ficaria em 2,32%; a do Canadá, em 2,31%.
42 O texto lido pelo ministro indiano dizia: “We are disappointed with the scenarios that have been
presented to us. The shift from advanced countries to EMDCs is very small and much less than what
we had called for. However, in a spirit of compromise and to move the process forward, we could go
along with [the proposed agreement] (…) provided that: 1) The New Arrangements to Borrow are
correspondingly rolled back, when the quota increases are effective, preserving the relative shares of
the members of NAB. 2) The present flawed quota formula which does not reflect the real economic
weights of different economies is comprehensively reviewed by January 2013, so that it better reflects
the relative economic weight of the IMF members. 3) The emerging market and developing countries,
including the poorest, still do not have adequate voice and representation in the IMF and hence the
next review of IMF quotas should be completed by January 2014.” Documento citado em Paulo
Nogueira Batista Jr., “Principles for IMF quota formula reform”, trabalho apresentado em seminário
realizado na Brookings Institution, Delivering on IMF Quota and Governance Reform, Washington,
D.C., 12 de janeiro de 2012. Disponível em: <inctpped.ie.ufrj/fordconference2011>. As três
condições apresentadas pelos BRICs seriam incorporadas praticamente ipsis litteris ao comunicado
da reunião ministerial de Gyeongju e depois à declaração dos líderes do G20 em Seul.
43 IMF Quota and Governance Reform - Elements of an Agreement, 31 de outubro de 2010.
Disponível em: <https://www.imf.org/en/Publications/Policy-Papers/Issues/2016/12/31/IMF-Quota-
and-Governance-Reform-Elements-of-an-Agreement-PP4501>.
44 Com a entrada posterior da África do Sul, o poder de voto agregado dos BRICS subiria para
14,8%.
45 “IMF Survey: G20 Ministers Agree ‘Historic’ Reforms in IMF Governance”, 23 de outubro de
2010. Disponível em: <https://www.imf.org/en/News/Articles/2015/09/28/04/53/sonew102310a>.
46 Ibid.
47 A participação da União Europeia no PIB mundial, calculado por paridade de poder de compra,
era da ordem de 22% em 2009, com tendência a diminuir.
48 G20 Communiqué, Meeting of Finance Ministers and Central Bank Governors, Gyeongju, 23 de
outubro de 2010, parágrafo 5.
49 Ibid.
50 Ibid.
O IMPÉRIO CONTRA-ATACA1

Os sucessivos embates relacionados ao NAB e, sobretudo, à reforma do


FMI provocaram desgaste crescente nas relações entre diretores executivos
do Fundo. A instituição se tornara, como vimos, muito mais importante
depois da eclosão da crise em 2008 e a disputa pelo poder dentro dela se
intensificara. Os diretores europeus – não todos, mas boa parte deles,
sobretudo os que representavam países maiores – mostravam impaciência e
até hostilidade cada vez maior em relação a mim. A minha presença se
tornara incômoda. Os europeus não estavam acostumados a que seus
privilégios fossem contestados e criticados de maneira tão aberta e
sistemática, às vezes agressiva, na Diretoria e no G20. Represálias viriam.
Este terceiro texto sobre a minha passagem pelo FMI relata os
repetidos esforços que fizeram alguns adversários para me desestabilizar,
os problemas com a Colômbia, a crise da Grécia e suas consequências
para o Fundo, as manobras dos europeus para bloquear e esvaziar as
reformas e a minha fase final em Washington, marcada por
desentendimentos com o ministro da Fazenda, Joaquim Levy.

1. Tentativas de me desestabilizar: a crise com a


Colômbia
O comitê de ética da Diretoria foi o instrumento utilizado para tentar me
desestabilizar. Naquele período, o comitê era presidido pelo diretor alemão,
Klaus Stein, sujeito cinzento e desagradável, sempre hostil a qualquer
pessoa ou proposta que pudesse ser vista como inovadora ou simplesmente
diferente do costumeiro. O italiano, Arrigo Sadun, era outro integrante do
comitê avesso a mudanças, ainda mais raivoso que o alemão, e que também
se destacaria nas tramoias contra mim. Tentaram, primeiro, alegar que em
artigos de jornal e entrevistas eu violava o código de ética dos diretores
executivos, que nos proibia de falar em nome do Fundo e divulgar
informações confidenciais. O comitê mandou traduzir várias dezenas de
artigos que haviam sido publicados por mim no Brasil para analisá-los em
busca de irregularidades. O desfecho dessa investigação foi cômico. O
comitê anunciou, triunfante, que eu havia violado o código em um ou dois
artigos por revelar os votos de algumas cadeiras na Diretoria, contrariando
norma de confidencialidade. Havia, entretanto, um pequeno equívoco da
parte deles. Nos artigos em questão, eu citava entrevistas dadas por DSK,
em que ele revelava as informações consideradas confidenciais. O comitê,
desapontado, teve que pedir reunião com o diretor-gerente para adverti-lo
(com todo cuidado e respeito, naturalmente) sobre a quebra de
confidencialidade.
Em outra ocasião, o comitê de ética me acusou de falar indevidamente
em nome do FMI em algumas palestras e entrevistas à imprensa. Não era
verdade. Eu fazia questão de sempre dizer que não falava em nome da
instituição. Expliquei ao comitê que, infelizmente, os jornalistas nem
sempre se preocupavam em publicar a ressalva. Prometi, em todo caso,
redobrar esforços para evitar esse tipo de mal-entendido. Passei a incluir no
rodapé dos artigos de jornal a advertência de que expressava meus pontos
de vista a título pessoal.
Apesar de seus esforços, o comitê de ética não conseguiu ir muito longe
na questão dos artigos e entrevistas. Incomodavam muito, me faziam perder
tempo, mas não acharam nada que pudessem utilizar. Uma oportunidade
muito melhor para eles se apresentaria, porém, quando eu tomei a decisão,
arriscada, de demitir a minha diretora alterna colombiana, María Inés
Agudelo, no início de 2010.
A destituição da alterna colombiana originou uma crise que se arrastaria
por mais de um ano. Ao tomar a decisão, eu sabia perfeitamente que estava
dando um passo perigoso, mas não podia imaginar o tamanho da
tempestade que enfrentaria. Não havia, provavelmente, precedente para
uma decisão como essa no FMI, como já mencionei. A decisão não foi
tomada impensadamente ou de impulso. A colombiana criava problemas
infindáveis dentro da cadeira, que eu vinha aturando há quase três anos. O
despreparo dela para a função era evidente. Ela não dominava os temas
econômico-financeiros e tinha dificuldade com a língua inglesa. Sequer
conseguia redigir documentos curtos sem estropiar a lógica, os fatos e o
idioma. A sua contribuição substantiva era próxima de zero. Negativa, na
verdade, pois ela dedicava grande parte do tempo a intrigas e fofocas. Tive
diversas conversas com ela, tentando persuadi-la a melhorar a dedicação e o
desempenho. Cheguei a colocar minhas preocupações por escrito, mais de
uma vez. Mas não adiantava. Uma alternativa que tentei foi deixá-la de
lado, evitando que ela cuidasse de assuntos delicados ou representasse a
cadeira em reuniões importantes, mas isso também não funcionou. Ela era,
formalmente, a minha substituta eventual e, embora não quisesse trabalhar e
se preparar, insistia em fazer figuração e ocupar a cadeira em reuniões da
Diretoria, comprometendo por diversas vezes o nosso trabalho. Vaidosa e
arrogante, ficava descontente com o papel que lhe era reservado e fazia
reclamações constantes a Bogotá, valendo-se do acesso que tinha às
autoridades. A relação com a Colômbia foi se deteriorando, embora o
governo não manifestasse discordâncias quanto à minha atuação nos temas
da agenda do FMI.
O ambiente só piorava com o passar do tempo. No fim de 2009, enviei,
em duas ocasiões, correspondência ao governo colombiano relatando os
problemas com a diretora alterna. Não recebi resposta. Resolvi então viajar
à Colômbia, aproveitando convite que recebera do embaixador brasileiro,
Valdemar Carneiro Leão, para proferir palestra em Bogotá. Pedi ao
embaixador que me ajudasse a marcar visitas ao ministro de Finanças,
Óscar Zuluaga, e ao presidente do Banco Central, José Darío Uribe. Para
surpresa do embaixador, o governo colombiano recusou a minha visita. O
ambiente, segundo Carneiro Leão, era de profunda contrariedade, para não
dizer hostilidade.
Foi a gota-d’água. Afastei a diretora alterna, ao mesmo tempo em que
enviei nova carta ao governo colombiano, explicando a decisão e
documentando a insuficiência do seu trabalho. Pedi a indicação de um
substituto, manifestando a minha certeza de que havia muitos quadros
qualificados na Colômbia, capazes de exercer o cargo de diretor alterno de
forma eficiente com proveito para os países da nossa constituency.
A minha intenção era fazer tudo de maneira discreta, sem qualquer
publicidade. Mas não foi possível. O governo colombiano reagiu mal. Entre
outras providências, mandou carta ao FMI, avisando que eu não mais falava
pela Colômbia na instituição. Agudelo fez verdadeiro escândalo,
percorrendo os gabinetes do FMI aos prantos, como me avisaram meus
aliados. O assunto chegou rapidamente à imprensa na Colômbia e no Brasil.
Os jornais colombianos me atacavam impiedosamente, ao passo que os do
Brasil – pelo menos alguns deles – mostravam comovente solidariedade
com a Colômbia. O espaço que se dedicava ao assunto nos jornais era
verdadeiramente absurdo. Como eu dizia a colegas no FMI, a minha
popularidade na mídia colombiana só era superada pela de Hugo Chávez e
das FARCs.
O assunto chegou aos mais altos níveis de governo. Pouco tempo depois
da demissão, DSK me telefona, preocupado: “Acabei de receber um
telefonema do Uribe.” Pensei que ele estivesse se referindo ao presidente do
Banco Central, José Uribe, que era o governador da Colômbia no FMI.
“Nada disso”, esclareceu DSK, “quem telefonou foi Álvaro Uribe, o
presidente da Colômbia, pedindo que eu reverta a demissão da sua ex-
alterna!”. O presidente Uribe, um político de direita, era conhecido por seu
temperamento difícil e atitudes extremadas. DSK explicou ao presidente
colombiano que o assunto era da alçada do diretor executivo e que ele nada
poderia fazer senão transmitir a mim o que ouvira. Soube depois que Uribe
também levara o assunto a Lula.
A desproporção entre o fato e as reações colombianas dava ao episódio
um aspecto ao mesmo tempo burlesco e misterioso. Era um assunto
administrativo, de importância muito relativa, tanto mais que a Colômbia
podia exercer a qualquer momento o direito de indicar um novo diretor
alterno, como previsto no nosso acordo de constituency. No meio da
confusão, fui informado por diferentes canais que a virulência das reações
se explicava não apenas por motivos políticos ou profissionais, mas também
por questões muito particulares, de ordem puramente pessoal, que não
caberia mencionar aqui. Seja como for, o tumulto continuou por meses a
fio.
O governo brasileiro ficou preocupado com a reação colombiana, mas
continuou me apoiando. Mantega, que inicialmente não havia dado
importância ao assunto, pediu depois que eu reconsiderasse a decisão, mas
não insistiu quando deixei claro que não poderia de forma alguma voltar
atrás. Celso Amorim também me telefonou para transmitir e endossar
proposta do ministro das Relações Exteriores da Colômbia, que pedia a
readmissão de Agudelo com a promessa de que o governo colombiano a
substituiria mais adiante. Expliquei a ele que a decisão estava tomada e era
irreversível. Não disse isso ao nosso chanceler, mas a promessa colombiana
não era nada confiável e, de todo modo, eu não teria como recontratar a
demitida sem perda de face e autoridade.
O presidente Lula, apesar das reclamações de Uribe, nunca interferiu.
Do Palácio do Planalto, só me telefonou Gilberto Carvalho, secretário-geral
da Presidência, contando que Uribe estava tentando falar com Lula sobre o
caso e me pedindo informações a respeito. Muito tempo depois, quando
visitei Lula em Brasília, ele interrompeu bruscamente um outro assunto de
que falávamos para reclamar, com bom humor, que eu havia criado um
problema para ele com a Colômbia. Eu aproveitei para explicar,
brevemente, o que havia acontecido, acrescentando que esse tipo de assunto
nem deveria chegar ao Presidente da República. “Mas chega, realmente
chega”, disse ele, sorrindo, mas com uma expressão que deixava claro que
tinha sido uma dor de cabeça.
Para mim, foi muito mais do que isso, evidentemente. A cada semana,
recebia notícias, boatos e pressões. Na nossa cadeira no Banco Mundial, a
diretora colombiana ameaçava demitir, em represália, o diretor alterno
brasileiro. O barulho na imprensa colombiana e brasileira continuava sem
parar. A Colômbia, comentava-se, queria a minha saída do FMI e buscava
tornar insustentável minha permanência no cargo. Autoridades colombianas
entraram em contato com outros países do nosso grupo para reclamar
veementemente da demissão da diretora alterna. Mas não conseguiriam
mobilizar apoio dos outros. A Colômbia era distante dos demais e não
exercia liderança. A movimentação colombiana chegou a meu
conhecimento e eu resolvi, então, informar cuidadosamente os outros sete
governos da nossa constituency sobre as razões que haviam me levado a
tomar a controvertida decisão. O Brasil, evidentemente, já estava a par de
todos os detalhes, e o ministro Mantega, embora contrariado pelo tamanho
da confusão, ficou do meu lado, rechaçando diplomaticamente as
reclamações que recebia do ministro Zuluaga.
A nossa constituency, assim como a maioria das demais, se reúne
regularmente a cada seis meses, à margem das reuniões de primavera e
outono do FMI e do Banco Mundial, sob a presidência do diretor executivo.
A nossa reunião de abril de 2010 foi, de longe, a mais difícil de todas que
presidi ao longo de oito anos. A Colômbia compareceu em peso,
representada não só pelo presidente do Banco Central e o ministro de
Finanças, que eram respectivamente o governador e o governador alterno
do país no FMI, mas também pelo ministro do Planejamento e até mesmo –
detalhe cômico – pelo vice-ministro da Defesa.
O leitor pode bem imaginar como ficou difícil a situação para mim. O
ambiente nas semanas anteriores à reunião estava tão tenso que cheguei a
ponto de deixar os seguranças do FMI de sobreaviso para o caso de
acontecer uma degringolada, com insultos e agressões físicas. Não chegaria
a tanto, mas foi uma reunião horrível. Os colombianos se sentaram em
frente a mim e lançaram suas queixas de forma agressiva, acusando-me de
romper as regras da constituency e até mesmo de ter maltratado e
humilhado a ex-alterna. Ao meu lado, o ministro Mantega pediu que eu
respondesse. Fui obrigado a recapitular todas as razões da demissão,
notadamente o desempenho sofrível de Agudelo. Frisei que todas as
providências haviam sido tomadas com cortesia e respeito. Lembrei que a
nomeação e demissão do diretor alterno é atribuição exclusiva do diretor
executivo, garantida pelos estatutos do FMI. Pelo nosso acordo de
constituency, a Colômbia tinha o direito, continuei, de indicar o diretor
alterno, mas não o de insistir que a posição fosse ocupada por determinada
pessoa. Fui mais longe: lembrei que estava aguardando desde o início do
ano que a Colômbia indicasse um substituto, mas que não podia esperar
para sempre. Disse aos colombianos que, pelas regras do Fundo, o diretor
executivo tinha não só o direito, mas a obrigação de nomear um diretor
alterno. Nenhum dos demais países ecoou as preocupações da Colômbia,
nem o Panamá de quem, ao que parece, os colombianos esperavam algum
apoio. A minha equipe e eu trabalhávamos muito em prol dos países da
constituency e isso sempre foi reconhecido nos momentos difíceis que
atravessei. A Colômbia ficou a ver navios.
Depois de algum tempo, o governo colombiano, mesmo insatisfeito,
resolveu indicar um substituto, aliás competente, que eu prontamente
nomeei.2 Em tese, a crise estava superada; a Colômbia votou em mim nas
eleições de fins de 2010 para a Diretoria, permanecendo assim na nossa
cadeira. Mas ficara um rescaldo de ressentimento e, apesar dos meus
esforços, a relação com a Colômbia nunca se normalizaria. O país acabaria
trocando de constituency nas eleições de fins de 2012, mesmo momento em
que Nicarágua, Cabo Verde e Timor-Leste entraram para a nossa cadeira.
Acusações de assédio moral
A crise decorrente da demissão da colombiana continuou, entretanto, pois
adquirira moto-próprio. No comitê de ética, os europeus não demoraram a
aproveitar para abrir nova ofensiva. Logo depois da sua demissão, Agudelo
foi instada a apresentar queixa de assédio moral contra mim, rapidamente
acolhida pelo comitê depois de uma suposta investigação preliminar.
Instaurou-se um procedimento administrativo com a contratação de uma
firma de advocacia para apurar os fatos. Estranhei a contratação, mas
estava, mesmo assim, inicialmente tranquilo, pois sabia que a acusação de
assédio não tinha base. Prestei depoimentos aos advogados e autorizei que a
minha correspondência de e-mail com a ex-alterna fosse investigada.
Permiti, também, sem hesitar, que outras pessoas da minha equipe fossem
entrevistadas. Foi uma imprudência. Logo ficou claro que a firma de
advocacia era de estilo agressivo e do tipo que se contrata com conclusões
encomendadas.
Não conseguiram, entretanto, encontrar evidências de assédio a
Agudelo. O comitê resolveu, então, ampliar o escopo da investigação.
Passei a ser investigado por assédio moral a outras pessoas do meu
escritório, notadamente as assistentes administrativas da cadeira. Não posso
me deter aqui para contar os detalhes, às vezes grotescos, dessa
investigação. A alegação geral era de que eu fazia pressão excessiva sobre
meus funcionários. Como já mencionei, fui acusado, entre outras coisas, de
ter provocado a doença incapacitante de Helio Mori que, ao saber disso,
ficou indignado e escreveu do Brasil uma carta ao comitê de ética,
desmentindo tudo e informando que sua doença era hereditária, tendo sido
inclusive a causa da morte do seu pai. Essa era uma calúnia grave, mas
havia também acusações menores, também falsas, como a de que eu
costumava pedir que as assistentes buscassem roupa na lavanderia e –
cúmulo do ridículo – exigir que elas pedissem licença para ir ao banheiro!
Essas acusações eram endossadas pelos investigadores e atribuídas a
testemunhas anônimas. Fico até constrangido, com sentimento de vergonha
alheia, ao me lembrar dessas mediocridades.
O pior é que os métodos usados nas entrevistas pela firma de advocacia
se revelaram abusivos. Uma das assistentes, pessoa frágil e insegura, foi tão
pressionada que sofreu crise nervosa e teve que ser hospitalizada. Acabei
contratando um advogado; gastaria cerca de US$ 30 mil para me defender
das acusações. Tudo isso se arrastou até maio de 2011, tomando tempo
enorme dos diretores que eram membros do comitê de ética e, mais tarde,
dos demais quando o assunto foi encaminhado à Diretoria. Eu era o
principal prejudicado, claro, e ficava indignado de ter que gastar tanto
tempo e dinheiro com uma investigação desonesta. Mas, enfim, era o preço
que se pagava por desafiar o status quo no FMI.
Havia alguma verdade nas acusações? Diria que sim, mas em sentido
muito limitado. Eu era, realmente, um chefe superexigente, perfeccionista,
que demandava empenho e competência. Fazia pressão sobre a equipe e era,
às vezes, impaciente e até ríspido com os menos dedicados e eficientes.
Mas não gritava com ninguém, não fazia exigências descabidas, nem
humilhava os funcionários. No meu entender, não havia nada que pudesse
ser considerado, legitimamente, como assédio moral. Os meus defeitos e
exageros como chefe, em nenhuma hipótese, justificariam uma investigação
detalhada e agressiva como aquela. Para preparar este texto, percorri os
meus arquivos da época e fiquei impressionado, leitor, com a profusão de
documentos de acusação e de defesa, com a quantidade de pessoas
envolvidas, com o número de reuniões, enfim, com o gasto realmente
absurdo de dinheiro e tempo no processo movido contra mim. Tudo isso
depunha contra a instituição e, sobretudo, contra sua Diretoria.
Juridicamente, porém, a posição do diretor executivo é forte. Não havia
como me demitir, se eu fosse julgado culpado. Pelo arcabouço legal do
FMI, desenhado para assegurar a autonomia dos diretores, o máximo que se
poderia fazer, ao final do processo, era transmitir os resultados da
investigação e de uma eventual condenação aos países que eu representava
na instituição. O que se pretendia, visivelmente, era minar a minha posição,
na esperança de que o Brasil e os outros países resolvessem me remover do
cargo, por ocasião da próxima eleição para a Diretoria, e de preferência
antes. Mais uma vez, repito, foi fundamental o apoio do ministro Mantega,
com quem eu conversava regularmente, e que nunca teve dúvida, acredito,
sobre o caráter farsesco do processo. Antevendo que havia determinação de
me condenar de qualquer maneira, também mantive os outros países da
constituency informados sobre o andamento do processo. Fora a Colômbia,
que naturalmente acompanhava com grande satisfação as minhas
atribulações, os demais países sinalizavam apoio.
Fiz o possível para mostrar ao comitê de ética que eram infundadas as
acusações, em diversos documentos escritos e depoimentos verbais. O tema
não era da alçada do diretor-gerente, mas busquei mesmo assim que DSK,
que tinha outra estatura e não apreciava as mesquinharias dos seus
conterrâneos europeus, convencesse os membros do comitê a não
prosseguir com o assunto. Ele tentou, pelo que me disse, mas sem efeito
prático. Não me pareceu que ele tivesse se empenhado muito e estivesse
disposto a gastar munição com o assunto. O fato é que não consegui que o
assunto fosse arquivado ou resolvido de alguma forma pelo comitê, que em
condições normais poderia ter seguido, por exemplo, o caminho de uma
advertência ou recomendação. Mas as condições não eram nada normais.
Os europeus dentro e fora do comitê pressionavam para que a Diretoria
como um todo tivesse a oportunidade de apreciar as acusações. Não
aceitavam que se tentasse encerrar o caso com uma simples advertência.
Queriam porque queriam me condenar ou punir. Decididamente, eu não era
nada apreciado em certos meios.

Condenado, mas salvo pelo gongo


O leitor precisa ter em mente que essa guerra, ou guerrilha, contra mim
dentro do FMI corria, ao longo de 2010, em paralelo às difíceis negociações
da reforma do FMI, relatadas nas seções anteriores. Para mim era o pior
momento possível para enfrentar problemas na retaguarda. Mas, justamente
por isso, os europeus queriam bombardear ao máximo o diretor brasileiro,
que se tornara um dos pontas de lança do esforço de reequilibrar a
instituição e diminuir a super-representação da Europa. Pesavam, também,
ressentimentos pessoais, frutos dos repetidos embates na Diretoria em que
vários colegas europeus ficavam em posição constrangedora, com
dificuldade de defender os privilégios dos seus países contra a bateria de
argumentos lançados por mim e outros diretores de países emergentes.
Quando o comitê de ética resolveu, depois de demoradas deliberações,
remeter o assunto à Diretoria, a minha condenação era favas contadas. Os
meus adversários tinham ampla maioria de votos ponderados, reflexo do
próprio desequilíbrio de poder decisório que lutávamos para corrigir, ou
pelo menos mitigar, na reforma então em curso. Mas havia alguns
agravantes, que faziam a balança pender ainda mais contra mim. Do meu
lado, estavam apenas quatro diretores: o russo, Aleksei Mozhin, o indiano,
Arvind Virmani, o iraniano, Jafar Mojarrad, e Moeketsi Majoro, de Lesoto,
que estava no comando da cadeira africana anglófona que incluía a África
do Sul.3 O leitor deve notar que havia algumas ausências significativas
nessa lista de apoiadores, a começar pelos outros diretores latino-
americanos. Na época, as duas outras cadeiras da nossa região na Diretoria
eram lideradas pelo México e pela Argentina. O diretor mexicano, Carlos
Pérez-Verdia, era basicamente um yes man, que seguia quase sempre os
diretores dos países desenvolvidos, especialmente dos Estados Unidos, e as
propostas da Administração. Dos mexicanos, aliás, raramente se podia
esperar algum lampejo. O diretor argentino, Alfredo Mac Laughlin, embora
indicado por Néstor Kirchner, com quem constava que tinha alguma
proximidade, vinha da área bancária privada e não mostrava simpatia por
mim. Era outro yes man, que cultivava o estranho hábito de fazer críticas a
seu país até mesmo em reuniões formais da Diretoria, tentando se cacifar
pessoalmente à custa do governo que deveria representar.
A falta de apoio da parte do mexicano e do argentino não me
surpreendia. Inesperado, entretanto, foi o comportamento do diretor chinês,
Jianxiong He, o mesmo que, nessa época, vacilava em apoiar o Brasil na
reforma por não querer ofender o Canadá, como relatei. He era competente
e atuava com certa desenvoltura na Diretoria; participava também
ativamente da coordenação entre os diretores dos BRICS e, com o tempo,
surgira até uma amizade entre ele e eu. He era membro do comitê de ética e
eu contava, tranquilamente, com seu apoio. Infelizmente, ele não demorou
muito a mostrar grande dificuldade de acolher meus argumentos e
reconhecer o que era óbvio para os outros diretores dos BRICS – a
motivação eminentemente política do processo em curso. Recebi, inclusive,
a informação, aparentemente fidedigna, de que o diretor chinês havia
consultado Beijing sobre o assunto e fora instruído a não se opor à maioria,
o que, no caso, significava ficar contra mim. A informação parecia
plausível, pois os diretores chineses eram mantidos sob rédea curta pela
capital, que tinham o hábito de consultar com frequência. Como o processo
havia se tornado causa célebre no FMI, não me espantava que He tivesse
resolvido pedir instruções ao governo. Se ele pudesse agir por conta
própria, talvez tivesse ficado do meu lado. Seja como for, o posicionamento
da China em casos concretos mostrava, uma vez mais, os limites da
coordenação entre os BRICS. Obviamente, os europeus vibravam de
satisfação: haviam conseguido colocar em campos opostos, em uma questão
candente, o diretor da China e os outros diretores dos BRICS.
A Diretoria se reuniria várias vezes para discutir o caso. Eu me
preparava bem para essas reuniões, com ajuda da advogada que contratara,
e lançava mão de toda minha verve, para desmoralizar a investigação e a
firma de advocacia que a conduzira, denunciar erros e irregularidades de
procedimento, e mostrar aos colegas a injustiça que estava sendo feita, além
da ridícula perda de tempo e dinheiro. Os meus adversários atacavam de
forma vigorosa também, manifestando às vezes indignação com a dureza
das minhas respostas às acusações. Em retrospecto, ocorre-me dizer que a
minha veemência talvez tenha sido um pouco contraproducente, pois podia
até ser vista como confirmação das acusações de temperamento agressivo.
Mas, enfim, era a indignação de quem se considerava injustiçado.
Nesse ambiente conflagrado, os europeus tentaram mais uma manobra:
procuraram meus aliados para propor solução de compromisso,
supostamente intermediária. O regimento interno previa outra opção, para
casos considerados menos graves, que era tratar a condenação de um diretor
como assunto puramente interno, sem chegar a ponto de enviá-la
formalmente ao país ou países por ele representados. O diretor da França,
Ambroise Fayolle, procurou o diretor da Rússia, Aleksei Mozhin, para
transmitir e explicar a proposta. A ideia deles era limitar a condenação à
esfera interna, mas com uma condição: que a minoria que me apoiava
votasse favoravelmente à decisão. Quando Mozhin me consultou, rejeitei a
proposta de pronto. Não queria, de forma alguma, ser condenado por
unanimidade. Contei ao russo que os meus países já estavam amplamente
informados do que estava acontecendo em Washington e que, excetuada a
Colômbia, claro, eu não acreditava que iriam se impressionar com a
condenação. Não podia ter certeza, mas a minha impressão (talvez
esperança) é que os outros países da cadeira ficariam essencialmente do
meu lado. O governo brasileiro provavelmente não se impressionaria, mas
mesmo sobre isso não podia ter certeza, apesar do apoio do ministro
Mantega. A minha suspeita, disse ao russo, é que os europeus estavam
planejando vazar a condenação para a mídia, e assim meus países saberiam
de qualquer maneira. Evidentemente, o impacto de um vazamento seria
maior se a condenação fosse por unanimidade dos outros 23 diretores.
Pouco antes da reunião final, que seria presidida por DSK, fui até o
gabinete dele para manifestar preocupação com a possiblidade de
vazamento. Disse a ele que não tomaria a iniciativa de trazer o assunto a
público, pois isso quebraria regras de confidencialidade da instituição. Mas
avisei que, se ocorresse vazamento, não hesitaria em relatar à imprensa tudo
que se passara, as injustiças que sofrera e todos os absurdos e lances
ridículos do deplorável processo contra um diretor cujo principal defeito era
contestar o status quo no FMI. Disse a ele, sorrindo, que eu seria Dreyfus e
Zola ao mesmo tempo – lembrança escolhida a dedo de um episódio
escandaloso da história do seu país.4 DSK sabia que eu tinha acesso à
imprensa internacional que cobria o Fundo e poderia, sim, fazer algum
estrago. Convém lembrar que, àquela altura – estávamos em maio de 2011
–, DSK preparava o terreno para se lançar candidato, com grandes chances
de vitória, aliás, à Presidência da França, nas eleições que se realizariam em
abril de 2012. A última coisa que ele queria naquele momento era barulho
na mídia sobre a instituição presidida por ele – tanto mais que a
investigação contra mim poderia reavivar lembranças inconvenientes. Um
detalhe interessante é que a investigação fora conduzida pela mesma firma e
pelos mesmos advogados que haviam sido contratados, três anos antes, para
investigar uma denúncia contra DSK. Ele fora acusado, em 2008, de abusar
do seu poder como diretor-gerente para induzir ou pressionar uma
economista do staff do FMI a manter um affair com ele. A diferença,
registro en passant, é que no caso de DSK a firma havia sido contratada,
visivelmente, com a tarefa de inocentar o acusado.5
A reunião final da Diretoria seria mais uma longa e desagradável troca
de críticas, farpas e reclamações entre meus acusadores e eu. O que eu
buscava, nessa reta final, era aumentar o número de votos a meu favor.
Porém, uma regra de procedimento da Diretoria, conhecida como regra de
silêncio, complicava ainda mais a minha vida. O silêncio de um diretor era
computado automaticamente como concordância com a proposta de decisão
que estivesse sobre a mesa, apresentada pela Administração ou, nesse caso,
pelo comitê de ética da Diretoria. Assim, para concordar com a minha
condenação, bastava ficar em silêncio; para ficar do meu lado, entretanto, o
diretor precisava obrigatoriamente pedir a palavra e manifestar expressa
discordância com a proposta do comitê. Alguns dos diretores de países
emergentes ou em desenvolvimento, mesmo concordando com meus
argumentos e simpatizando comigo, tinham grande dificuldade de dar um
passo desses e se opor abertamente à corrente dominante. No final, apesar
dos meus esforços de argumentação, não conseguiria senão os quatro votos
já referidos, os dos diretores dos BRICS, exceto China, e o do Irã.
Durante a reunião ficou patente que as fragilidades da acusação
geravam certo constrangimento. Sensibilizados por meus argumentos e um
pouco envergonhados com as mesquinharias e a falta de base das acusações,
alguns poucos diretores do campo adversário, entre eles o já mencionado
diretor mexicano, Pérez-Verdia, e o australiano, Christopher Legg, ainda
tentaram convencer os outros a optar pela condenação mais branda, sem
comunicação a meus países. Mas a maioria não concordava, de jeito
nenhum, em diminuir a penalidade sem que os meus apoiadores
concordassem, por sua vez, em aderir à condenação – hipótese que, como
vimos, havia sido excluída, a meu pedido, nas tratativas pré-reunião.
A minha sorte estava selada. Seria condenado por criar “ambiente hostil
de trabalho”, especialmente para as assistentes administrativas. Em um
intervalo da reunião final, DSK veio até mim e recomendou que eu fizesse
uma intervenção final conciliatória, sem reconhecer culpa, mas indicando
de alguma forma que acatava a decisão da maioria. Era importante, disse
ele, que eu tivesse ambiente para continuar trabalhando na Diretoria de
forma eficaz. Aceitei a ponderação e pedi a palavra, no finalzinho da
reunião, para dizer que, embora considerasse a decisão injusta, respeitava e
levaria em conta a opinião da maioria dos meus colegas.
Mas a novela não terminaria aí. Os fatos que se seguiram foram
simplesmente inacreditáveis, lembrando muito mais as reviravoltas de uma
ficção fantasiosa e rocambolesca do que as rotinas de sisudos organismos
internacionais. Se estivesse escrevendo um romance, seria talvez criticado
por faltar com a verossimilhança.
O embate seguinte girou em torno da forma como seria encaminhada a
decisão da Diretoria aos nove países da minha cadeira. Eu estava inseguro,
como mencionei, quanto à maneira como a notícia seria recebida nos países,
e não queria que a carta fosse assinada por DSK, que conquistara grande
prestígio como diretor-gerente do FMI e era visto urbi et orbi como o
provável futuro presidente da França. Argumentei com ele que a decisão era
da Diretoria, não do diretor-gerente. Se ele assinasse a carta, daria a
impressão de que participara da decisão e endossava a condenação. DSK
prometeu consultar o departamento jurídico, mas voltou com a resposta de
que, por ter presidido a reunião final, ele ficava na obrigação de assinar.
Nesse meio tempo, com a ajuda de assessores, eu levantara alguns
exemplos de decisões tomadas em reuniões presididas pelo diretor-gerente
que haviam sido encaminhadas, entretanto, com a assinatura do secretário
da Diretoria. Insisti que, contrariamente ao que dissera o departamento
jurídico, não havia necessidade de que ele assinasse, bastaria a assinatura do
secretário ou do decano da Diretoria. DSK acabou se impacientando
comigo e se recusou terminantemente a reconsiderar. Fiquei contrariado,
mas tive que me conformar.
Aí entra em ação o Sobrenatural de Almeida, aquele personagem que
Nelson Rodrigues invocava para explicar o imponderável. A reunião final
da Diretoria tinha sido numa quinta-feira. Com o pequeno atraso provocado
por meus questionamentos sobre quem deveria assinar, as cartas seguiram
na sexta-feira. Preocupado com o risco de vazamento, DSK determinara
que a correspondência para os meus nove países fosse enviada por correio
especial, com destinação expressa e exclusiva aos governadores, e não por
e-mail ou fax. Pois bem, no sábado, durante o jantar, recebo telefonema de
uma jornalista da Bloomberg, me informando, espantada, que DSK havia
sido preso em Nova York! Sob acusação de ter tentado violentar uma
camareira de hotel, ele havia sido retirado de dentro de um avião pela
polícia e conduzido à cadeia. Fiquei estarrecido e preocupado com ele, que
era um excelente diretor-gerente, a quem aprendera a respeitar e até
admirar. A minha frustração com o que me parecera o pouco empenho dele
no caso do processo contra mim não me fazia perder de vista suas
qualidades. Praticamente falando, porém, a prisão de DSK era para mim a
salvação da lavoura. O FMI sofreu um abalo monumental, com repercussão
no mundo inteiro. Fui completamente esquecido pelos meus adversários
europeus, alarmados com a crise desencadeada pela prisão do diretor-
gerente. E, ironicamente, as cartas com a notícia da minha condenação
chegaram a seu destino alguns dias depois da notícia da prisão do
signatário. Alguns governadores me telefonaram para saber o que estava
acontecendo, estranhando a carta de DSK. Mantega, sempre inclinado a
tiradas, me disse ao telefone: “Que valor tem isso? Uma carta assinada por
um presidiário!”
Estranho epílogo de uma novela que fora deplorável do começo ao fim.
2. A crise da Grécia abala o FMI – e quase me
derruba
Desde 2010, o FMI se viu às voltas com os desdobramentos da crise do
euro, especialmente na Grécia. Superadas as hesitações iniciais e o
sentimento de que levar um país da área do euro ao Fundo seria uma
humilhação insuportável, as autoridades europeias foram para o extremo
oposto e resolveram obrigar os mais vulneráveis a submeter-se à instituição.
Como vimos, quatro países da área recorreriam ao FMI – Grécia, Portugal,
Irlanda e Chipre. A Grécia seria de longe o cliente mais problemático.
O epicentro da crise internacional se deslocara para a Europa a partir de
2010. A área do euro apresentava problemas estruturais que haviam ficado
em segundo plano nos tempos de bonança. Certas vulnerabilidades
fundamentais do euro derivavam da própria construção original,
influenciada pela preferência da Alemanha e outras nações por versões
rígidas dos dogmas econômicos liberais: regras fiscais simplistas, um banco
central europeu independente e dedicado primordialmente ao controle da
inflação, livre movimentação de capitais e insuficiente regulação dos
sistemas financeiros. Ademais, a unificação monetária fora levada adiante
de forma prematura, sem unificação fiscal e política. Com a crise iniciada
no sistema financeiro dos Estados Unidos, todas essas fragilidades vieram à
tona com força brutal.
As políticas macroeconômicas europeias também deixavam a desejar. O
conservadorismo fiscal e monetário da Alemanha prevalecia quase sempre
na área do euro e levava a que os remédios anticíclicos fossem aplicados
com menos vigor e convicção do que nos Estados Unidos, retardando a
recuperação da atividade econômica.
A Grécia era um caso extremo, uma vez que adotara, na fase anterior à
crise, políticas econômicas muito arriscadas, permitidas por algum tempo
pelos excessos especulativos de mercados financeiros desregulamentados.
A dinâmica que leva a situações como a que o país enfrentava é conhecida.
Durante certo período, as instituições financeiras dão corda para os
deficitários e até para os perdulários, desde que aparentem alguma
respeitabilidade. Os déficits e dívidas vão se acumulando, financiados e
refinanciados com facilidade enquanto dura a onda de otimismo. Aos
poucos, porém, surgem dúvidas e inquietações, inicialmente tímidas, depois
cada vez mais loquazes, quanto à sustentabilidade das posições fiscais ou
externas dos países devedores. De repente, um choque qualquer – um
evento econômico exógeno, novas informações negativas ou algum
acontecimento político – leva a uma reavaliação da situação e o
financiamento sofre uma parada abrupta.
No caso da Grécia, o choque foi a revelação, no fim de 2009, de que o
governo vinha praticando gigantesca manipulação das estatísticas fiscais. O
leitor se lembra, certamente, das manobras contábeis praticadas no Brasil
nos tempos do ministro Delfim Netto, célebre por sua propensão a dobrar os
fatos às suas conveniências. Pois bem, perto do que acontecera na Grécia o
ex-ministro brasileiro ganhava ares de coroinha!
A condição de integrante da prestigiada zona do euro havia
proporcionado à Grécia uma enganosa aura de confiabilidade. A revelação
de que existiam imensos déficits fiscais, ocultados em grande parte por
artifícios contábeis, caiu como uma bomba. O prestigiado banco de
investimentos Goldman Sachs – aquele mesmo que, segundo seu
presidente, fazia “o trabalho de Deus”6 – participou ativamente da farsa
grega, organizando operações financeiras “inovadoras” que disfarçavam a
dimensão dos desequilíbrios. Nem as autoridades europeias, nem o FMI
perceberam o que estava acontecendo.
A súbita interrupção do financiamento privado à Grécia criou uma
situação emergencial. Para evitar uma moratória, que teria provavelmente
efeitos desestabilizadores sobre o resto da área monetária, os europeus
resolveram mobilizar grande volume de recursos oficiais, fornecido pelos
governos e o Banco Central Europeu. Ao mesmo tempo, o FMI concedeu à
Grécia o maior empréstimo da história da instituição. A injeção de doses
maciças de financiamento de fontes públicas, apresentada como socorro à
Grécia, representava na realidade socorro aos credores privados do país,
que eram principalmente instituições financeiras europeias. O dinheiro
europeu e do FMI permitiria que esses credores se livrassem, sem perdas,
de grande parte dos seus títulos gregos depreciados. Mais uma vez, o que se
via era uma gigantesca socialização de prejuízos.
Para a Grécia, o “socorro” se traduzia na imposição de um programa
draconiano de ajustamento fiscal e reformas, monitorado em conjunto pelo
FMI e pelas autoridades europeias. A cadeira brasileira foi, desde o início,
fortemente crítica dos sacrifícios impostos ao país, o que se adicionaria às
desavenças resultantes de reforma do FMI para criar mais uma fonte de
atrito com os europeus. Em tese, o programa era para o bem da Grécia, que
realmente tinha abusado do direito de gastar e se endividar nos anos
anteriores. Na verdade, era um abraço de tamanduá. A combinação de
cortes drásticos de gastos e aumento da carga tributária, em uma economia
já combalida pela crise financeira, levaria a um colapso da atividade
econômica e dos níveis de emprego. O ajustamento tornou-se rapidamente
autofágico. A austeridade imposta pelos europeus e o FMI derrubou a
economia, deprimindo a arrecadação fiscal. Isso minou a desejada
diminuição do déficit fiscal e da razão dívida pública/PIB. A economia foi
jogada em uma depressão que duraria muitos anos, resultando em aumento
alarmante do desemprego.
Ao mesmo tempo, os credores oficiais exigiram da Grécia uma vasta e
detalhada lista de “reformas estruturais” em áreas como política tributária,
administração pública, execução orçamentária, licitações, saúde,
previdência social, sistema financeiro, mercado de trabalho, ambiente de
negócios, inovação e desenvolvimento, política de energia, comunicações
eletrônicas, transporte e logística, comércio varejista, profissões reguladas,
estatísticas, entre outras. Era difícil encontrar uma área da administração
pública e da economia grega que não tenha ficado sujeita a recomendações
e monitoramento externos.
Para todos os efeitos, a Grécia foi colocada em regime de protetorado
econômico. O que se tentava, em suma, era gerir o país de fora para dentro
– algo que muito raramente funciona na prática. Os gregos precisavam, sem
dúvida, melhorar suas instituições e administração pública. Mas como
cumprir uma lista tão extensa de reformas, impostas por estrangeiros que
nem sempre conhecem as circunstâncias e especificidades do país? E como
fazê-lo, ademais, em meio a uma depressão econômica e taxas elevadas de
desemprego?
Pertencer à área do euro, algo que parecia tão vantajoso em períodos de
fartura, cobrava agora seu preço. Na ausência de uma moeda nacional,
inexistia a possibilidade de compensar os efeitos recessivos do ajuste fiscal
com flexibilização monetária e desvalorização cambial. Sobrava,
teoricamente, o caminho da “desvalorização interna”, isto é, uma deflação
de preços e salários que pudesse levar a Grécia a ganhar competitividade.
Só que para recuperar competitividade por esse caminho o país teria que
suportar uma depressão econômica ainda maior do que aquela que já
experimentava. Inconcebível dos pontos de vista social e político, o
aprofundamento da depressão inviabilizaria por completo, de quebra,
qualquer esperança de equacionar as contas públicas.
Diante do massacre a que estavam sendo submetidos, os gregos
flertavam com a ideia de sair da área do euro e restabelecer uma moeda
nacional. Essa talvez tivesse sido a melhor solução de longo prazo para a
Grécia, mas era um caminho inegavelmente arriscado e doloroso. Teria
exigido uma ampla renegociação e conversão de contratos na economia,
operação complexa e potencialmente desestabilizadora. A desvalorização
externa da nova moeda nacional ajudaria a recuperar a competitividade e a
atividade econômica, mas causaria turbulências no curto prazo. O resto da
área do euro não escaparia ileso – até porque um dos resultados seria a
insolvência do país, que ficaria incapacitado de cumprir as volumosas
dívidas em euros contraídas com os parceiros europeus.
Seja como for, a Grécia nunca se aventuraria por esse caminho.
Considerados de sangue quente e turbulentos, os gregos até que foram
muito pacientes. Só nas eleições de janeiro de 2015, depois de longos anos
de sofrimento, é que resolveriam tirar do poder os partidos tradicionais,
aqueles que levaram o país à crise e a administraram precariamente sob a
tutela das autoridades europeias e do FMI. A vitória da SYRIZA, coligação
de esquerda liderada por Aléxis Tsípras, criou inicialmente expectativas de
que pudesse haver uma reviravolta, algum tipo de ruptura que levasse até
mesmo à saída da área do euro. Mas não aconteceria.
Poucos meses depois da eleição grega, em junho de 2015, por
circunstâncias inteiramente fortuitas, encontrei-me com o primeiro-ministro
Tsípras, na Rússia, à margem do Fórum Econômico de São Petersburgo. Ao
tomar conhecimento de que o futuro comando do Novo Banco de
Desenvolvimento dos BRICS, que começaria a operar em Xangai no mês
seguinte, também estava em São Petersburgo, o primeiro-ministro pediu
uma reunião conosco para manifestar o seu interesse em associar-se ao
novo banco. Disse-nos que estivera com a presidente Dilma e, depois, com
o presidente Putin e que ambos concordavam com a aspiração da Grécia.
No meio da reunião, Tsípras se deu conta de que eu era o diretor executivo
brasileiro que se destacava na defesa da Grécia na Diretoria do FMI. Abriu
largo sorriso e disse: “Acabo de ler o seu último statement sobre os
problemas do programa da Grécia. Estamos em acordo total.” Perguntou-
me se eu estaria disponível para uma conversa com ele; marcamos então
reunião para o dia seguinte.
Tsípras me recebeu a sós numa sala de reunião do hotel em que ele
estava hospedado e conversamos por 30 ou 40 minutos. Naquela altura, o
governo grego recém-eleito buscava obter pela via da negociação uma
mudança substantiva do programa de ajustamento, que permitisse aliviar o
ônus para a Grécia e iniciar uma recuperação da economia. Defrontava-se,
porém, com a inflexibilidade dos europeus, liderados pela Alemanha. O
FMI até que tentava, às vezes, desempenhar papel moderador. O staff, pelo
menos, percebia que o programa precisava ser reequilibrado e insinuava que
a Grécia não sairia da crise sem substancial alívio da dívida oficial com os
europeus. Era o que a cadeira brasileira dizia abertamente. O que Tsípras
queria saber era se a Grécia poderia contar com apoio dentro do FMI no
embate que travava com os outros membros da área do euro. Disse ao
primeiro-ministro que, no meu entender, o quadro geral não era favorável a
eles na instituição. Eu era voz solitária na Diretoria. E a diretora-gerente
Christine Lagarde estava, como de costume, alinhada com o ponto de vista
dominante na Europa.
O que os alemães e outros europeus queriam, no frigir dos ovos, era
enquadrar o novo governo grego. Se a Grécia desejava continuar no euro,
diziam, precisaria obedecer às regras do jogo e continuar o programa de
ajustamento em curso, aquele mesmo que tinha sido rejeitado nas urnas pela
população grega. Transmiti ao primeiro-ministro a minha percepção de que
ele não deveria contar muito com o Fundo para abrir caminho para um novo
padrão de negociação. Sem fazer perguntas indiscretas ou levantar temas
delicados, disse a ele também que era importante ter um plano de
contingência para o caso de não se chegar a uma revisão satisfatória do
programa. Era uma alusão à alternativa de restabelecer uma moeda nacional
grega. Saí da conversa com a sensação de que esse plano de contingência
não existia e que Tsípras hesitava em considerar seriamente a hipótese de
abandonar a área do euro. Na ausência dessa disposição, entretanto, o mais
provável é que a Grécia continuasse submetida a um ajustamento pesado,
sem horizonte real de recuperação.
Para o FMI como instituição, o programa da Grécia vinha representando
ao longo dos anos um fardo muito maior do que inicialmente se imaginara.
Nunca teria sido levado adiante daquela maneira, por tanto tempo, não fosse
a super-representação da Europa na instituição. Em muitas ocasiões, o
Fundo foi simplesmente atropelado pelas autoridades europeias, que
encontravam na diretora-gerente uma aliada que podiam manejar sem
grande dificuldade. Enfrentando emergência atrás de emergência, os
europeus chegavam muito perto de simplesmente dar instruções ao FMI,
tratando-o como mero instrumento da política definida em Bruxelas. Não
hesitavam em colocar em risco a integridade financeira e a reputação da
instituição, que acabariam saindo machucadas desse processo. Os diretores
executivos europeus, com poucas exceções, faziam papel lastimável,
comportando-se como representantes de interesses nacionais ou regionais.
Na prática, ficaram reduzidos à condição de meros transmissores de recados
das capitais europeias. Era como se não tivessem qualquer responsabilidade
fiduciária com a instituição.
Como justificar tal comportamento da parte da diretora-gerente e da
maioria dos diretores executivos europeus se o programa com a Grécia era
o maior da história do FMI, em termos de valor e relativamente à quota do
país na instituição? Como continuar apoiando um programa econômico
impraticável, que exigia demais do país e muito pouco – inicialmente nada
– dos seus credores externos?
A cadeira brasileira não se omitiu em nenhum momento. Já na reunião
da Diretoria do FMI que aprovou o primeiro programa grego, em maio de
2010, apresentamos documento escrito em que dizíamos: “O programa
proposto pode ser visto não como uma operação de salvamento da Grécia,
que terá de passar por ajustamento doloroso, mas como um socorro aos
detentores privados de títulos da Grécia, principalmente instituições
financeiras europeias.” Foi o que aconteceu: a dívida do país com credores
privados foi transformada, na sua maior parte, em dívida com credores
oficiais, isto é, governos europeus, Banco Central Europeu e FMI. A
incapacidade de pagar o setor privado converteu-se em incapacidade de
pagar o setor público.
Colocamos em dúvida, também, as premissas e projeções do staff do
FMI, que consideramos “panglossianas”. O próprio staff tinha, na verdade,
sérias dúvidas sobre a “sustentabilidade” da dívida grega e não se animava
a afirmar que a Grécia seria capaz de pagá-la com alta probabilidade. Ora,
esse era um dos requisitos estabelecidos pelo FMI para proporcionar
“acesso excepcional” a um país-membro. O problema era sério: o staff não
conseguia assegurar esse requisito no caso de um país que estava
solicitando um montante equivalente a mais de 32 vezes a sua quota!
Solução encontrada: a política para acesso excepcional foi modificada de
forma nada transparente, quase clandestina, pela inclusão de um parágrafo,
no meio do relatório sobre a Grécia. Permitiu-se, desse modo, que houvesse
acesso excepcional, mesmo com dúvidas sobre a capacidade de pagamento,
desde que o país pudesse ser apresentado como um risco sistêmico, isto é,
se as suas dificuldades representassem ameaça à saúde da economia global.
Era um casuísmo escandaloso, combinado com o princípio da “plataforma
cedeu”, a que já me referi. Essas manobras se tornariam públicas depois,
causando danos à credibilidade da instituição.7 A subordinação do FMI às
prioridades europeias, em particular a maneira como foi aprovado o
programa grego, cobraria o seu preço: seria lembrada no Congresso
americano para argumentar contra a ratificação da reforma de quotas e
governança, como veremos.
Ao longo da execução do programa, eu me absteria em duas ocasiões
em votações relativas à Grécia na Diretoria – sem ser acompanhado por
nenhum dos meus colegas. Isso pode parecer pouco, mas num ambiente em
que é relativamente rara, a abstenção de um diretor ganha sabor de oposição
– especialmente em questão crucial como a do programa da Grécia. Em
outra ocasião, cheguei a deixar a cadeira vazia para sinalizar o meu
desconforto com a forma como estava sendo conduzida uma das revisões do
programa grego.8 Nos meus mais de oito anos de FMI, nunca vi outro
diretor deixar a cadeira vazia. Foi um gesto considerado pouco construtivo
e pouco civilizado dentro de uma instituição acostumada a operar com base
em supostos consensos.
A minha preocupação não era apenas com a violência e excessiva
ambição do ajuste imposto à Grécia, mas também com os riscos de crédito e
reputação em que estava incorrendo o Fundo ao emprestar somas
volumosas a um país com duvidosa capacidade de pagamento. Os diretores
do Fundo não podiam perder de vista sua responsabilidade pela integridade
da instituição, como faziam com certo descaro a maioria dos europeus.
Dentro do FMI, meus argumentos, que sempre procurava apresentar de
forma detalhada e incisiva, ficavam basicamente sem resposta. Provocavam
ressentimento e por uma razão simples: quando uma maioria deseja
proceder de forma indefensável, ela quer que todos, sem exceção, se
associem ao erro. Críticas, alertas e objeções apresentadas no momento da
decisão, mesmo que por uma voz isolada, lançam uma luz desagradável
sobre aqueles que se dobram às circunstâncias.
Os problemas foram se tornando tão graves que, depois de algum
tempo, resolvi trazê-los a conhecimento público – sem violar, diga-se,
qualquer regra da instituição. Passei a divulgar para a mídia internacional as
minhas inquietações e reservas, tomando sempre o cuidado de não revelar
informações confidenciais. Todas as minhas declarações eram, devo frisar,
sempre on the record, nunca me furtava a assumir a responsabilidade pelas
opiniões que divulgava.
Havia algum risco, de certo, em proceder dessa maneira. Nenhum outro
diretor o fazia. Mas, normalmente, não surgiam problemas. Os jornalistas
que cobriam o FMI eram experientes e sempre reproduziam corretamente
minhas declarações. Houve, porém, uma ocasião em que deu tudo errado, e
eu quase fui derrubado do cargo.

Por um triz
Em julho de 2013, tivemos nova reunião da Diretoria sobre a Grécia, umas
das vezes em que resolvi me abster na decisão de liberar uma parcela do
empréstimo do FMI ao país. Ocorre que, naquele momento, a agência
Reuters estava representada em Washington por uma jornalista novata que
se atrapalhou toda ao resumir as minhas declarações. A agência colocou no
ar reportagem dela noticiando que a América Latina, representada por mim,
havia declarado oposição ao programa da Grécia. Quando consegui a
retificação, a notícia já repercutia amplamente. Por uma infelicidade,
estávamos num momento de grande falta de assunto no mundo inteiro.
Resultado: a notícia ganhou destaque imprevisto, exacerbado
evidentemente pelos erros de reportagem. A minha modesta abstenção
chegou rapidamente à primeira página de jornais como o Financial Times.
A mídia brasileira, impressionada com a repercussão, também passou a
noticiar, com destaque, a suposta oposição que o diretor brasileiro fazia à
Grécia no FMI. Ironicamente, o maior defensor da Grécia na instituição era
apresentado como contrário a que o país continuasse recebendo apoio
externo.
Ao chegar à imprensa brasileira, essas distorções entraram no radar da
presidente Dilma. Sem se inteirar do assunto, ela reagiu de forma abrupta e
precipitada. Cobrou do ministro Mantega, em termos enfáticos, que a minha
decisão fosse imediatamente retificada. “O Brasil apoia a Grécia!”,
exclamava. “Afinal, você manda ou não nesse diretor?” Foi um deus nos
acuda. Mantega passou a me procurar insistentemente para transmitir a
indignação da presidente. Ocorre que eu estava ocupado durante toda uma
manhã em uma reunião da Diretoria sobre a economia da Alemanha.
Celular no silencioso, não notava a enorme quantidade de mensagens do
gabinete do Ministro. Aflito com a veemência da presidente da República,
Mantega acabou se precipitando, por sua vez, e telefonou para Lagarde, que
não participava da reunião da Diretoria, para informar que discordava da
minha abstenção! A diretora-gerente, que me detestava cordialmente, deve
ter recebido a ligação com um sorriso de orelha a orelha. Pior: Mantega
soltou nota à imprensa para desautorizar o diretor brasileiro no FMI. Tudo
isso sem falar comigo. Um desastre completo.
A minha primeira providência foi entrar em contato com a secretaria da
Diretoria e o departamento jurídico do staff para dizer que, apesar do
telefonema do ministro brasileiro à diretora-gerente, eu confirmava a
abstenção. O staff esclareceu que a confirmação não era necessária, pois
pelas normas do FMI, encerrada uma reunião, os votos dos diretores
estavam fixados e não podiam ser revistos.
O mais importante, claro, era resolver de alguma forma a crise com o
governo brasileiro. Não era possível fingir que nada havia acontecido e
deixar por isso mesmo. Na semana seguinte, viajei a Brasília para uma
reunião com o ministro da Fazenda. Já tinha comigo, praticamente pronta,
uma carta de demissão a que daria forma final depois do encontro com
Mantega. Comecei dizendo a ele: “Sem querer, você inviabilizou a minha
permanência em Washington.” Não era o que Mantega queria. Como já tive
ocasião de dizer, estávamos, ele e eu, essencialmente de acordo em todos os
temas relevantes da agenda do FMI. O problema tinha sido a reação
tempestuosa da presidente Dilma. “Você não imagina como é difícil
trabalhar com ela”, frisou Mantega. Ele ouviu as minhas explicações sobre
a abstenção e disse, em resposta, que não discordava do voto em si, mas da
minha decisão de divulgá-lo. O importante para ele era desfazer a
impressão de que o Brasil não apoiava a Grécia. Resolvemos, então, que
seria divulgada nova nota oficial para esclarecer em definitivo a questão,
dirimir dúvidas sobre a posição do governo brasileiro e reiterar o apoio do
ministro da Fazenda ao diretor brasileiro no FMI.
A nota era um remendo, mas atendia a esses objetivos. Nela, o ministro
da Fazenda deixou claro que eu atuava em sintonia com o governo
brasileiro e contava com seu respaldo político para exercer e continuar
exercendo o cargo. O incidente foi apresentado como um problema de
comunicação. Não era mesmo muito mais do que isso. Os diretores
executivos do FMI têm de tomar diversas decisões por semana e nem
sempre é possível a consulta aos governos, reconhecia a nota. Registrou-se,
também, que o ministro da Fazenda e o diretor brasileiro no FMI avaliavam
que os programas de resgate à Grécia e outros países da periferia da área do
euro precisavam ser revistos e aperfeiçoados de modo a dar melhores
condições de recuperação a esses países.9 Foi preparada versão em inglês
que circulei amplamente dentro do FMI e para a imprensa internacional.
O incidente, embora desgastante, foi superado a partir daí sem maiores
dificuldades. Ainda não fora dessa vez que os meus adversários na
instituição conseguiriam me ver pelas costas. A cadeira brasileira
continuaria se destacando na discussão do programa da Grécia e
argumentando em favor da sua revisão.
O tempo daria razão aos críticos do programa. Mesmo dentro do FMI,
ganhou terreno aos poucos o reconhecimento de que o tratamento dado à
Grécia não era defensável. A realidade acaba se impondo. Depois de alguns
anos, já ninguém podia ignorar que o programa grego havia sido, na
verdade, uma das páginas mais infelizes da história da instituição. Em 2016,
o Escritório de Avaliação Independente publicou um relatório sobre a
atuação do FMI nas crises da Grécia, da Irlanda e de Portugal.10 No que diz
respeito à Grécia, o relatório tirou as seguintes conclusões, entre outras: a) a
decisão de não incluir uma reestruturação da dívida logo no início do
programa levou a um ajuste fiscal excessivo e a uma grande recessão; b)
essa decisão sacrificou a Grécia, mas beneficiou os credores externos
privados, que puderam cortar a sua exposure ao país graças à provisão de
recursos oficiais; c) em aspectos cruciais, o FMI aceitou se subordinar às
prioridades e decisões dos governos da área do euro; d) ao conceder
empréstimos de grande magnitude à Grécia, o FMI atuou de forma pouco
transparente e não seguiu seus próprios procedimentos; e) a Diretoria
Executiva do FMI foi mantida à margem de muitas discussões e nem
sempre foi consultada ou sequer informada de maneira apropriada.
Todas essas conclusões, sem exceção, foram tiradas pela cadeira
brasileira no calor da hora. E foram expressas por nós de forma enfática,
repetidas vezes, verbalmente e por escrito. Veja bem, leitor: no calor da
hora – e não com a confortável sabedoria ex post de quem escreve cinco ou
seis anos depois. Por assim proceder, tivemos que enfrentar hostilidade ou
represálias de outras cadeiras da Diretoria, da Administração e do staff.
Apesar dos pesares e incompreensões, inevitáveis nas circunstâncias, nossa
atuação na crise da Grécia não merece reparos.

3. A arte da traição
A despeito das suas limitações, as negociações de 2010 foram o ponto alto
dos esforços de reforma do FMI. De 2011 em diante, os ventos começaram
a soprar contra nós, dentro e fora da instituição. A chegada de Christine
Lagarde, em julho de 2011, trouxe retrocessos em vários temas, como já
mencionei, mas em especial para as reformas de governança da instituição.
Ela se mostrou, desde o início, pouco inclinada a continuá-las e mesmo a
cumprir os acordos feitos no período DSK, no âmbito do FMI e do G20.
Dava a impressão de que havia sido indicada para o posto com a missão de
dar uma freada nas reformas que erodiam ou ameaçavam erodir o peso da
Europa na instituição. Ainda que não tivesse grande liderança, a nova
diretora-gerente dispunha de experiência e audácia suficientes para
organizar manobras de contenção das reformas. Mostrou-se, em vários
momentos, pouco confiável e até desleal com os emergentes. Não podíamos
contar com ela para quase nada.
Mais importante do que esses fatores pessoais foi o que aconteceu no
plano político nos Estados Unidos. O governo Obama, como vimos,
mostrava disposição de enfrentar a resistência europeia à reforma do FMI.
Nas negociações de 2010, em Washington e na Coreia do Sul, essa
disposição atingiu seu auge. Enquanto isso, entretanto, o clima político
mudava drasticamente nos Estados Unidos, com a ascensão do Partido
Republicano e, dentro dele, das alas de extrema direita, o chamado Tea
Party, um movimento populista e retrógrado, que prefigurava o que se veria
depois com a ascensão de Donald Trump. A mudança no clima político
culminaria na fragorosa derrota dos democratas nas eleições congressuais
de novembro de 2010, resultando para o governo em perda da maioria na
Câmara dos Representantes. O presidente Obama demoraria a se recuperar
desse revés, que teria como consequência, entre muitas outras, a perda de
ímpeto reformista dos Estados Unidos no FMI.
A derrota eleitoral dos democratas levou a que o governo enfrentasse
enorme dificuldade de convencer a Câmara, controlada agora por
republicanos hostis, a ratificar a reforma de 2010. Ora, em razão da
supermaioria de 85% requerida, a reforma não poderia entrar em vigor sem
a ratificação pelo Congresso dos Estados Unidos. Estabeleceu-se, assim, um
impasse de longa duração. As novas quotas só viriam a vigorar em janeiro
de 2016, com atraso de mais de três anos em relação ao cronograma
estabelecido pelo G20 nas negociações da Coreia do Sul.
A demora do Congresso americano foi uma dádiva para os europeus,
que se aproveitariam disso deslavadamente ao longo dos anos. Pressionada
pela crise do euro, a Europa queria mais do que nunca preservar sua super-
representação no FMI, ainda que isso significasse descumprir
compromissos assumidos no G20 por seus presidentes ou primeiros-
ministros. O comportamento podia parecer vexaminoso, mas os europeus
não mostravam grande constrangimento. Confirmava-se, uma vez mais, a
advertência de Nelson Rodrigues de que a falta de escrúpulos é um traço
constitutivo dos grandes povos. Com certo cinismo, os europeus mandaram
para o espaço o acordo político expresso nos comunicados do G20. Pouco
adiantava lembrá-los, como eu fazia repetidamente, que esse acordo havia
sido chancelado por seus líderes políticos. Ou recordar à diretora-gerente
que ela havia participado, direta e pessoalmente, da negociação no G20, na
condição de ministra de Finanças da França. Lagarde e os diretores
europeus davam uma de joão sem braço, fingiam que não era com eles e
continuavam a obstruir e adiar as providências prometidas.
Os alvos da procrastinação eram os elementos prospectivos (forward-
looking elements) introduzidos pelos BRICs no acordo de 2010. O atraso do
primeiro passo – a ratificação e a entrada em vigor das novas quotas – era
usado como argumento para empurrar a um futuro indefinido os passos
seguintes: a revisão da fórmula de quotas, com conclusão programada para
até janeiro de 2013, e a nova rodada de realinhamento de quotas e poder de
voto, cuja negociação deveria ser finalizada até janeiro de 2014. Dos três
elementos prospectivos anteriormente referidos, só um seria implementado:
a transformação de grande parte do NAB em quotas, com preservação das
participações relativas no estoque remanescente.
Não havia, a rigor, justificativa para adiar nada. Mas os europeus
insistiam que, sem a implementação das quotas de 2010, não havia
condições para rever a fórmula e negociar nova reforma de quotas. Sem ter
feito o dever de casa, os americanos ficavam sem poder atuar. Os
emergentes haviam perdido essa alavanca. Em vez de contar com apoio dos
Estados Unidos, ficávamos tentando, sem muito sucesso, pressioná-los a
buscar a ratificação no Congresso. Em resposta, os americanos nos diziam
que estavam fazendo o possível, mas que a maioria republicana se negava a
colaborar. Não se podia duvidar disso: era público e notório que a oposição
se recusava a cooperar com o governo Obama. Buscava, ao contrário,
solapá-lo em todas as ocasiões possíveis. A reforma do FMI era uma entre
muitas questões pendentes de aprovação congressual. Ironicamente, um dos
argumentos levantados pelos republicanos e por economistas ligados a eles,
como John Taylor,11 era a pouca confiabilidade do FMI, demonstrada pela
forma como se deixara manipular pelos europeus na crise da Grécia…
No G20, os representantes brasileiros subiram o tom, denunciando a
quebra de confiança decorrente da interrupção da reforma do FMI. Mas o
próprio grupo perdia expressão à medida que amainava a crise econômica
dos avançados. Estados Unidos e Europa já não precisavam tanto do G20 e
suas reuniões foram ficando menos importantes. Para nós, representantes
dos BRICS, essas reuniões transformaram-se cada vez mais em ocasiões
para que nos encontrássemos à parte e cuidássemos de aprofundar nossa
coordenação. Como as equipes que nos representavam no G20 eram
basicamente as mesmas que atuavam nos BRICS, era muito conveniente
marcar nossas reuniões à margem dos encontros ministeriais ou de cúpula
do G20. No período 2012-2014, essas reuniões paralelas acabaram se
tornando mais importantes para os BRICS do que as próprias reuniões de
um G20 já meio enfraquecido e esvaziado.
Na Diretoria do FMI, os BRICS também subiram o tom. Atuando em
conjunto com alguns outros emergentes, notadamente o Irã e a Argentina,
abrimos fogo sobre a relutância dos europeus em honrar seus
compromissos. As cadeiras da Rússia, da Índia e do Brasil se destacavam
nessas discussões. Lançávamos uma bateria de argumentos em prol da
reforma, apontando para as debilidades e inconsistências da fórmula de
quotas e, também, para a dissonância entre as tendências da economia
mundial e a distribuição do poder de voto no FMI – dissonância que não
seria resolvida, lembrávamos, com a entrada em vigor das quotas acordadas
em 2010.
Com o passar do tempo e a demora no Congresso dos Estados Unidos,
aumentamos também a pressão sobre os americanos. Os diretores dos
BRICS e seus aliados chegaram a formular em detalhe uma proposta para
permitir a entrada em vigor das novas quotas mesmo sem a ratificação dos
Estados Unidos. A nossa ideia era desvincular a entrada em vigor das
quotas acordadas em 2010 dos elementos da reforma que exigiam
aprovação do Congresso americano. O problema é que isso levaria o poder
de voto deles a ficar temporariamente abaixo do limite de 15% que lhes
garantia o direito de veto em decisões cruciais. As quotas de outros países
subiriam, conforme acordado, mas o aumento dos Estados Unidos ficaria na
dependência do Congresso. A versão mais completa dessa proposta,
elaborada em 2015 pela cadeira brasileira, incluía o compromisso formal do
Conselho de Governadores e da Diretoria Executiva de não votar qualquer
decisão que exigisse supermaioria de 85% até que os Estados Unidos
pudessem ratificar a reforma e efetuar o aumento da sua quota.12
A proposta de desvinculação foi bem construída, mas sua aprovação
dependia do apoio dos Estados Unidos, que não se dispunha a seguir em
frente na base proposta por nós. Havia um aspecto significativo que
poderia, em tese, facilitar sua aceitação: a aprovação da desvinculação
dependia juridicamente apenas do Executivo americano, não do Congresso.
Como o Executivo dizia, reiteradamente, que o Congresso era a única
barreira, por que não aceitar a desvinculação? A resposta dos representantes
dos Estados Unidos era um silêncio mais ou menos constrangido. A nossa
proposta não seria aceita afinal, mas ela era sólida do ponto de vista legal e
colocava os americanos na berlinda, contribuindo em alguma medida,
acreditávamos, para induzir o Executivo a redobrar seus esforços no
Congresso.
Estávamos exercendo o “jus esperniandi” e nossa inventividade, mas
poderíamos ir até mais longe. Tínhamos, na verdade, nossa própria “bomba
atômica”: o poder de vetar a ativação do NAB – conquistado pelos BRICs,
como vimos, nas negociações de 2009 e 2010. Recorde-se que, a cada seis
meses, o FMI precisava buscar junto aos integrantes do NAB autorização
para acessar seus recursos. Como a reforma de 2010 ainda não estava em
vigor, o acesso contínuo ao NAB revestia-se de grande importância. Para
obter a ativação semestral, o Fundo precisava da concordância dos BRICS,
pois os cinco em conjunto somavam mais do que os 15% necessários para
negar o pedido. Se fincássemos o pé, o FMI ficaria sem munição, pois as
quotas eram insuficientes àquela altura.
No entanto, como toda “bomba atômica”, o poder de veto no NAB era
mais um instrumento de dissuasão do que de destruição. Bloquear o NAB e
deixar o FMI à míngua afetaria países que dependiam de empréstimos da
instituição e teria impacto desestabilizador sobre a economia mundial, que
ainda se recuperava da crise de 2008. Não éramos incendiários, e não
pretendíamos ir tão longe. Mas, a cada seis meses, fazíamos Lagarde
rebolar um pouco, com perdão da expressão.
O Brasil e os outros BRICS eram representados nas reuniões semestrais
do NAB por seus diretores executivos. Atuávamos em coordenação, mas
sob liderança, nesse tema, do Brasil, um pouco mais inclinado do que os
outros a ameaçar com o direito de veto. Apresentei várias possiblidades aos
outros diretores dos BRICS, entre elas a de indicar que só concordaríamos
com uma ativação parcial do NAB que, bem calibrada, poderia deixar o
FMI suficientemente abastecido, ao mesmo tempo em que nos permitiria
enviar um sinal amarelo aos acionistas majoritários e à Administração. O
elo fraco, entretanto, era a China, que se mostrava relutante em escalar. Em
mais de uma ocasião, Lagarde viajaria até Beijing para assegurar apoio
chinês à reativação do NAB. Depois de algumas idas e vindas, os chineses
acabavam roendo a corda. De qualquer maneira, os ruídos que emitíamos a
cada rodada de reativação do NAB lembravam a todos que os BRICS
continuavam insatisfeitos e não desistiriam facilmente da implementação da
reforma de 2010.
O nosso comportamento cauteloso fazia parte de um padrão. Os BRICS
seguiam uma linha consistentemente reformista, mas sem alarde e
radicalismo. Em outras questões que apareceram na mesma época, como a
já referida segunda rodada de empréstimos bilaterais ao FMI, também nos
mostramos moderados e cooperativos, talvez até demais. Digo demais
porque, enquanto corria a negociação da segunda rodada, foi se tornando
cada vez mais evidente que os europeus não pretendiam permitir que
levássemos adiante os elementos prospectivos do acordo de 2010.
Tínhamos, portanto, todos os motivos para não participar. Como relatei
anteriormente, a presidente Dilma abrigava sérias e fundadas dúvidas
quanto à conveniência de oferecer novos recursos ao Fundo. Mas os outros
BRICS estavam propensos a voltar a emprestar – mesmo com o atraso na
reforma. Com exceção do Brasil, os demais acabariam entrando com novos
recursos na segunda rodada em 2012 – apesar dos meus esforços em
persuadi-los de que não era apropriado continuar emprestando, em face da
demora do Congresso americano e das manobras protelatórias da diretora-
gerente do FMI e dos demais europeus. O Brasil só viria a participar da
segunda rodada muito depois, em 2016, já no governo Temer, quando o
Banco Central abriu nova linha de US$ 10 bilhões para o FMI.
A estagnação da reforma teria outra consequência, potencialmente mais
importante e duradoura: a decisão estratégica dos BRICS de trilhar um
caminho próprio no campo das organizações multilaterais. De 2012 em
diante, começamos a trabalhar seriamente na criação de instituições
independentes, que serão objeto do próximo capítulo deste livro. Entre 2012
e 2014, os BRICS negociaram com cuidado os convênios constitutivos de
um fundo monetário e de um banco de desenvolvimento, que seriam
assinados na cúpula de Fortaleza, em julho de 2014. Simultaneamente, a
China liderou a criação de um banco asiático de investimento em
infraestrutura, também visto como desafio ao Banco Asiático de
Desenvolvimento e ao Banco Mundial. Novamente, entretanto, os BRICS
resistiram à tentação de iniciar uma batalha retórica com o Ocidente e as
instituições de Bretton Woods. Desde o início, as novas entidades foram
apresentadas como complementares e não concorrentes do FMI e do Banco
Mundial. Repetíamos sempre que pretendíamos aprender e cooperar com as
entidades estabelecidas. A ninguém escapava, porém, que os BRICS nunca
teriam se dado ao trabalho e ao dispêndio de criar instituições multilaterais
se estivessem satisfeitos com as existentes. Não precisávamos dizer nada;
ficava tudo implícito. A resistência à mudança em Washington estava
levando aos poucos à fragmentação do sistema multilateral de
financiamento.
4. Sai Mantega, entra Levy: minha fase final no FMI
Enquanto avançavam essas negociações entre os BRICS, ocorria uma
reviravolta política da maior importância no Brasil, justamente o país que,
durante a maior parte do tempo, funcionara como motor do grupo. Essa
reviravolta teria impacto sobre os BRICS e afetaria, também, a minha
posição em Washington.
O primeiro sintoma dessa reviravolta se deu, paradoxalmente, logo após
a reeleição da presidente Dilma, em outubro de 2014. Em decisão que
surpreenderia a todos, a presidente reeleita resolveu substituir Guido
Mantega por Joaquim Levy no Ministério da Fazenda. A saída de Mantega
era até natural, pois ele já ocupava o cargo há mais de oito anos e dizia,
inclusive em conversas comigo, que pretendia voltar a São Paulo. O
surpreendente e inusitado foi a escolha de Levy, economista muito
conservador, formado na Universidade de Chicago, que nada tinha a ver
com as inclinações da presidente Dilma e as propostas econômicas da sua
campanha. Ela fora eleita com discurso e promessas de esquerda, mas
começava o segundo mandato governando pela direita em matéria
econômica.
Levy logo daria sinais de que não nutria grande simpatia pelo diretor do
FMI. Pouco depois de assumir o cargo, sem que houvesse surgido qualquer
desavença entre nós, ele deu sua primeira estocada. Pediu a seu secretário
executivo, Tarcísio Godoy, para me telefonar comunicando que já não era
necessária minha participação como delegado brasileiro nas reuniões do
G20 e dos BRICS. As reuniões do G20 já não pesavam muito, como relatei,
mas as dos BRICS tinham importância, pois versavam naquele período pós-
Fortaleza sobre as medidas de preparação para a entrada em funcionamento
do novo banco de desenvolvimento e do fundo monetário dos BRICS,
temas aos quais me havia dedicado sistematicamente desde 2012.
Fiquei descontente e, sempre persistente, tentei reverter a decisão do
ministro da Fazenda. Viajei a Brasília e levei o assunto a Aloizio
Mercadante, ministro da Casa Civil, de grande influência no governo.
Mercadante, que acompanhava os temas estratégicos na área internacional e
sabia o que estava em jogo nos BRICS, ouviu o meu relato e, de pronto,
empunhou o telefone e ligou para o ministro da Fazenda. Sem rodeios e
sem medir muito as palavras, disse a Levy que “o Paulo era indispensável
nos BRICS” e determinou que ele voltasse atrás. Saí da reunião satisfeito e
inquieto ao mesmo tempo. Mercadante teria mesmo condições de corrigir
Levy dessa forma, sem preparar o terreno? Logo ficaria claro que não. Levy
foi se queixar à presidente, que lhe daria apoio nesse ponto. Mercadante me
explicaria no dia seguinte que, como G20 e BRICS estavam na competência
da Fazenda, era melhor deixar que Levy decidisse quem integraria as
delegações brasileiras a partir daí. Fiquei frustrado, mas nada podia fazer. A
exclusão do delegado brasileiro com mais cancha em termos de BRICS e
G20 era um pequeno sinal de algo maior, de um processo de
enfraquecimento do governo e da progressiva erosão do poder da presidente
da República que culminaria no seu impeachment pouco mais de um ano
depois.
O encontro com Mercadante trouxe outra novidade. Ao desligar o
telefone, satisfeito em ter enquadrado Levy, Mercadante volta-se para mim
e dispara: “A presidente quer saber se você não gostaria de assumir o cargo
de vice-presidente do Banco dos BRICS em Xangai.” Foi um convite
realmente inesperado; nada fizera para pleitear o cargo e não passava pela
minha cabeça, depois de quase oito anos em Washington, me mudar para o
outro lado do mundo. Àquela altura, inclusive por motivos familiares,
queria voltar para o Brasil. Quase recusei de pronto. Felizmente, tive a
calma de agradecer o convite e pedir tempo para avaliar.
Em retrospecto, percebo que essa era uma solução inteligente nas
circunstâncias. A minha transferência para Xangai resolvia um conflito com
o ministro da Fazenda, que tinha grande apreço pelo FMI e não queria ver
um economista como eu à frente da nossa cadeira, ao mesmo tempo em que
colocava em posição estratégica no processo BRICS alguém que se
dedicara à coordenação entre os cinco países desde 2008. Porém, naquele
momento, não foi tão fácil para mim perceber que o convite era
provavelmente a melhor solução do ponto de vista político e do interesse
estratégico do Brasil.
Demoraria alguns meses a aceitar o convite. Continuei entretendo a
hipótese de ficar em Washington, mesmo em conflito com o ministro da
Fazenda, completando mandato que tinha até novembro de 2016, pois
acabara de me reeleger por mais dois anos. Teria sido um caminho difícil,
por certo, mas possível nas circunstâncias. Eu não era demissível ad nutum
pelo ministro Levy e este, embora poderoso naquele início de gestão, não
contava com a confiança total da presidente da República e teria certamente
alguma dificuldade de forçar a minha saída.

Aparece uma segunda Grécia: Levy alinhado aos


Estados Unidos
Estabeleceu-se então um cabo de guerra. Eu não estava disposto a
contemporizar e muito menos a tentar me aproximar do ministro da
Fazenda – até porque, ao me excluir logo de saída das reuniões do G20 e
dos BRICS, ele já indicara que não estava nada bem-disposto a meu
respeito. Depois do incidente com Mercadante, só podia supor que o seu
ânimo tivesse piorado ainda mais.
Desde 2014, estava em curso outra questão candente no FMI que daria
lugar a mais um embate com Levy: a crise da Ucrânia e o papel reservado
ao Fundo no apoio ao governo do país. A Ucrânia se constituíra, há muitos
anos, em campo de disputa entre a Rússia e o Ocidente. O problema se
tornara agudo, recorde-se, quando chegou ao poder em Kiev, no início de
2014, um governo alinhado aos Estados Unidos e à Europa que se
distanciou imediatamente da Rússia. Sentindo-se ameaçado e temendo que
a Ucrânia pudesse chegar a ponto de ingressar na União Europeia e até
mesmo na Otan, Putin surpreendeu seus adversários com a decisão de
anexar a estratégica península da Crimeia. Aproveitou-se da fragilidade
militar da Ucrânia e apostou, corretamente, que teria o apoio da população
majoritariamente russa da Crimeia. Calculou, também corretamente, que o
Ocidente não teria condições ou vontade de intervir militarmente. A
Ucrânia, diga-se de passagem, era beneficiária de tratados com os Estados
Unidos e o Reino Unido, que asseguravam sua integridade territorial. Na
hora crucial, porém, esses tratados viraram letra morta – mais uma
demonstração prática de como é temerário delegar a segurança nacional a
terceiros.13
Os americanos e europeus ficaram em pé de guerra, é verdade, mas só
em sentido metafórico. Embora dura, a resposta deles à ação de Putin
restringiu-se ao campo econômico-financeiro. Mais de 40 países, incluindo
todo os desenvolvidos, aplicaram sanções de diferentes tipos à Rússia. O
país se viu submetido a um verdadeiro cerco financeiro externo, com
suspensão de todos os projetos de financiamento em organismos
controlados pelos Estados Unidos e a Europa, inclusive o Banco Mundial e
o Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento.
Ao mesmo tempo, esses bancos multilaterais de desenvolvimento, assim
como fontes oficiais bilaterais, foram mobilizados para proporcionar apoio
financeiro à Ucrânia, cuja economia enfrentava séria crise, agravada pela
instabilidade política e o enfrentamento com a Rússia. Nesse pacote de
apoio à Ucrânia, como seria de esperar, entrava também o FMI, sempre
convocado a apoiar as agendas nacionais dos seus principais acionistas,
especialmente em emergências como essa.
O papel do Fundo na Ucrânia seria crucial. Repetia-se, em linhas gerais,
o que acontecera no caso da Grécia: o FMI era chamado a fornecer
rapidamente grandes empréstimos a um país com economia e contas
desorganizadas e – mais grave – sem perspectiva real de que viesse a
organizá-las. A desordem na Ucrânia era impressionante, mas prioridades
eram prioridades. Americanos e europeus não queriam nem saber de
hesitações no FMI: a Administração, o staff e a Diretoria deveriam
simplesmente fall into line, alinhar-se sem demora à necessidade de aprovar
vultosas somas para a Ucrânia, fazendo vista grossa às deficiências e à falta
de perspectivas do país no campo econômico-financeiro.
Era mais um episódio que arranharia a credibilidade e a integridade
financeira do FMI. Repetiu-se o que acontecia em emergências anteriores
do mesmo tipo: o staff montava a toque de caixa um programa econômico,
com as habituais cartas de intenção, condicionalidades e metas trimestrais, e
as autoridades do país em crise assinavam embaixo, mesmo sem acreditar
muito que poderiam cumprir o estabelecido. Tal como no caso da Grécia,
era notável a dissonância entre os relatórios do staff, que apontavam
claramente os problemas econômicos do país e os riscos do programa, e a
recomendação à Diretoria de que aprovasse, ainda assim, volumosos
empréstimos com desembolsos relativamente rápidos. O staff se protegia de
críticas posteriores, mostrando que percebia os problemas e riscos do
esquema montado às pressas, mas jogava a batata quente no colo da
Diretoria, instada a chancelar um programa visivelmente inviável.
Nas várias discussões na Diretoria sobre a Ucrânia, ao longo de 2014,
ainda no período em que Mantega era ministro, a cadeira brasileira se
destacou novamente nas críticas às fragilidades e inconsistências do
programa. Reconhecíamos, claro, que a Ucrânia tinha o direito de pleitear
empréstimos e precisava, com urgência, de apoio financeiro externo. Mas
observávamos, sem meias palavras, que a análise e os dados apresentados
pelo staff não davam a mínima segurança de que o programa pudesse ser
bem-sucedido. Assim como no caso da Grécia, embora em menor medida,
havia também dívidas externas insustentáveis com credores e investidores
privados, neste caso principalmente dos Estados Unidos. Um dos desafios
para o programa era, outra vez, garantir que os credores privados
participassem com algum sacrifício da solução da crise financeira do país.
A habitual resistência do setor privado abria o risco de que houvesse nova
socialização de prejuízos. Como a Ucrânia não integrava a União Europeia
e, muito menos, a área do euro, os mecanismos europeus de financiamento
emergencial não podiam ser acessados. Portanto, a transformação da dívida
privada impagável em dívida pública impagável significaria, na prática,
ônus para o FMI e, em menor medida, para outras instituições financeiras
multilaterais chamadas a colocar dinheiro em país de alto risco.
A cadeira brasileira levantou todas essas questões repetidas vezes em
intervenções orais e nos documentos escritos que apresentamos para as
reuniões sobre Ucrânia ao longo de 2014. Os relatórios do staff eram a
nossa principal base de dados e informações, complementados por
informações fidedignas que levantávamos em outras fontes. Éramos, outra
vez, voz quase isolada. Fora a cadeira da Rússia, que atuava nesse caso,
claro, com motivação eminentemente política, todos as outras se omitiam
ou silenciavam.
Como se podia prever, foi impossível cumprir o estabelecido e o
programa teve que ser totalmente reformulado. No início de 2015, a
Ucrânia voltou para a consideração da Diretoria. Mesmo reformulado em
vários aspectos, o programa ainda mostrava fragilidades, omissões e
inconsistências. A persistência do conflito com a Rússia continuava
contribuindo para impedir a estabilização da situação econômico-financeira.
De novo, o staff não se furtava a apontar os problemas, ansioso para se
eximir de responsabilidade. O quadro era, na essência, muito semelhante ao
do ano anterior. No entanto, o contexto em que operava o diretor brasileiro
havia mudado completamente. Sabia, perfeitamente, que o meu ponto de
vista já não encontraria eco no Ministério da Fazenda. Por outro lado, não
podia mudar subitamente de posição sem perder face e credibilidade, não só
dentro como também fora do FMI. É que, a exemplo do que vinha fazendo
na questão da Grécia, eu decidira divulgar, desde 2014, as minhas objeções
ao programa da Ucrânia e ao que me parecia o mau uso do FMI para levar
adiante objetivos políticos dos principais acionistas.
O que fazer? Mais do que nunca, valia nessa situação a máxima de
Malan. Não passava pela minha cabeça pedir instruções. Resolvi trilhar o
seguinte caminho: enquanto continuávamos questionando, sem trégua, a
Administração e o staff nas reuniões preparatórias sobre Ucrânia, elaborei
com ajuda da minha equipe um relatório reservado, de caráter informativo,
sobre a situação do país e as inúmeras deficiências do programa que estava
sendo proposto à Diretoria em substituição ao fracassado programa de
2014. Determinei à equipe que o relatório fosse deliberadamente longo e
técnico. Enviei então esse relatório ao ministro Levy e aos outros dez
governadores da nossa cadeira. E esperei.
Não houve resposta de Brasília, como eu previa. Sequer acusaram
recebimento. O texto era denso demais para ser processado com facilidade.
As semanas foram passando e a cadeira, sem ser incomodada, continuava o
trabalho de levantar, com embasamento técnico, dúvidas sobre o que o staff
apresentava a cada reunião. Foi se aproximando a data da reunião decisiva
da Diretoria e a questão que se colocava para mim era como votar. Se
mantivesse o padrão habitual, coerente com meu posicionamento ao longo
das discussões sobre Ucrânia desde 2014, o mínimo que deveria fazer era
me abster. Mas isso chegaria, fatalmente, a Brasília, ainda que dessa vez eu
não divulgasse meu voto. Algum “amigo” ou “admirador” no FMI faria,
certamente, o trabalho de vazar a informação.
Aconselhado por um dos meus alternos, Hector Torres, resolvi tentar
caminho um pouco diferente. Iríamos para a última reunião da Diretoria, em
março de 2015, com voto em aberto. Apresentaríamos por escrito uma
consolidação das nossas dúvidas e objeções, ressalvando, porém, que
estávamos, mesmo assim, dispostos a acompanhar a maioria – desde que
fosse modificado um aspecto central do que estava sendo proposto: o
tratamento excessivamente condescendente dos credores privados externos
da Ucrânia – basicamente investidores americanos que arriscaram dinheiro
no país, confiando que seriam, em última análise, bailed out, socorridos
com recursos públicos se tudo desse errado. A mudança proposta pela
cadeira brasileira poderia beneficiar a Ucrânia, aumentando um pouco as
chances de sucesso do programa.
Na véspera da reunião, ocorreu um incidente lamentável, revelador do
rumo que as coisas estavam tomando em Brasília. À noite, começa a tocar o
celular; era do gabinete do ministro da Fazenda. Coisa boa não seria. Não
atendi e deixei para devolver a ligação só no dia seguinte.
Como supunha, o ministro me procurava por causa da Ucrânia. Para a
minha surpresa, entretanto, ele veio com a seguinte conversa: “O que está
acontecendo com a Ucrânia no FMI?” “Recebi ontem reclamações a seu
respeito do secretário do Tesouro dos Estados Unidos.” Levy queria saber
por que não havia sido consultado sobre o assunto. A minha resposta, leitor,
já estava engatilhada: “Mas como assim, ministro? Mandei há algumas
semanas extenso relatório sobre o programa da Ucrânia, explicando, em
pormenores, suas diversas dificuldades. São essas as preocupações que
tenho manifestado em reuniões da Diretoria. Nada mais, nada menos.” Levy
disse que não havia visto o documento e ficou de procurá-lo. Enquanto o
ministro procurava nosso relatório, começou naquela manhã mesmo a
reunião decisiva da Diretoria. Consegui entrar na reunião de mãos livres,
por assim dizer, embora pressionado, claro, pelo diálogo um tanto
surpreendente com o ministro da Fazenda.
Veja, leitor, o que esse diálogo sinalizava. Levy era tão alinhado a
Washington que o secretário do Tesouro se sentia à vontade para reclamar
do diretor brasileiro e pedir a intervenção do ministro. Curioso foi que Levy
não se envergonhava de me revelar que estava passando recado da sua
contraparte americana. Talvez até se envaidecesse de dizer que recebera um
telefonema de tão importante personagem…
O estranho diálogo com Levy não modificou meus planos. Entrei na
reunião da Diretoria determinado a tentar uma mudança no programa que
contemplasse um pouco mais de equilíbrio entre a Ucrânia e seus credores
privados. A reunião estava sendo presidida pelo número 2 da
Administração, o americano David Lipton. Expus o meu ponto de vista
sobre o programa, fiz as ressalvas que precisava fazer, mas indiquei, como
planejara, que estava pronto a me somar aos que apoiavam o programa se a
Administração e a maioria dos diretores se dispusessem a modificar em
alguma medida os termos da participação dos credores. A minha proposta
caiu no vazio. Logo ficou claro que não havia disposição de alterar esse
aspecto do acordo. Os Estados Unidos queriam, certamente, ajudar a
Ucrânia, mas pretendiam, ao mesmo tempo, preservar ao máximo os
interesses de Wall Street, protegendo fundos de investimento detentores de
títulos ucranianos de perdas superiores às que já houvessem sido
descontadas no mercado. Esse era, com certeza, o pano de fundo da
inflexibilidade com que me deparei.
Resultado: acabei me abstendo. A única outra abstenção veio do diretor
russo, Aleksei Mozhin. Resolvi ser discreto, não dei declarações à imprensa
e não divulguei meu voto dessa vez. Como eu previa, entretanto, a minha
abstenção vazou imediatamente.
Levy não se manifestou, mas deve ter ficado contrariado. Como
explicar ao secretário do Tesouro a sua incapacidade de controlar o diretor
brasileiro no FMI? O incidente deve ter feito o ministro da Fazenda
redobrar esforços para me remover do cargo.
Ao longo dos meses seguintes, continuei em dúvida se deveria aceitar
ou não a mudança para Xangai. Depois do episódio da Ucrânia, Brasília
entrara em silêncio de rádio, mas não me iludia: com Levy fungando no
meu cangote, já não eram as mesmas as condições de trabalho em
Washington. Independente disso, havia da minha parte, depois de oito anos,
cansaço com a dificuldade de avançar no FMI. O imobilismo da instituição
provocava certo tédio. Uma mudança de rumos seria provavelmente
oportuna.
Quanto ao banco dos BRICS, havia inevitavelmente algumas dúvidas.
Os BRICS teriam condições de criar uma instituição sólida, competitiva e
realmente inovadora? Uma mudança para o outro lado do planeta, àquela
altura da minha vida, não seria exigência excessiva, que sacrificaria demais
a vida pessoal e familiar?
Mas os fatores de atração acabaram sendo maiores. Como indiquei, os
antecedentes me qualificavam quase que naturalmente para o cargo. Eu era,
naquela altura, o único brasileiro, ainda em posição oficial, que participara
do processo BRICS ab initio, em 2008. Outro fator de atração eram as
condições financeiras oferecidas aos integrantes da Administração do novo
banco, alinhadas à remuneração dos cargos correspondentes em organismos
internacionais e superiores à dos diretores executivos. Consegui, até
mesmo, incluir no meu contrato alguma proteção contra demissão arbitrária,
especificando que uma destituição só seria possível em caso de quebra de
contrato da minha parte. Ainda que bem pensada, essa cláusula não me
protegeria quando integrantes do governo Temer resolveram, a qualquer
custo, me tirar do cargo em 2017, como relato no capítulo seguinte deste
livro.
***

Mais de oito anos haviam passado desde a minha chegada a


Washington. No início, eu recorria demais a citações literárias ou
filosóficas, que destoavam do ambiente. Ainda estava me situando e fui
compreendendo aos poucos que era meio inútil, até um pouco ridículo,
apelar para sentimentos elevados e objetivos grandiosos em ambientes
como o do FMI ou do G20, dominados em grande parte por tendências
burocráticas e rotineiras. Era mais eficaz lançar mão do humor, da ironia e
até do sarcasmo, sem exagerar, obviamente. Com o passar do tempo, fui
pendendo mais para esse lado. E dava vazão à minha impaciência com a
demora em alcançar mudanças, repetindo uma frase niilista de Trotsky, que
ouvira do diretor alterno russo, Andrei Lushin: “O processo é tudo;
resultados, nada.”
Seja como for, não abandonei inteiramente o recurso a citações, mesmo
grandiloquentes, e nunca me entreguei de corpo e alma ao ceticismo niilista.
Gostava muito de citar uma passagem do célebre discurso de Robert
Kennedy, conhecido como o discurso da “tiny ripple of hope”, que eu sabia
praticamente de cor e usava para chamar meus colegas aos brios.
Em 1966, na África do Sul, poucos anos antes de ser assassinado, Bob
Kennedy dissera as seguintes palavras memoráveis sobre o papel que cabe a
cada um de nós no campo da ação política e social. Ele reconheceu que,
sim, a desesperança nos domina com frequência e pensamos, então, que
está fora do nosso alcance fazer uma diferença e mudar as coisas. E, no
entanto, disse ele:

Each time a man stands up for an ideal, or acts to improve the lot of others, or strikes
out against injustice, he sends forth a tiny ripple of hope and crossing each other from a
million different centers of energy and daring, those ripples build a current which can
sweep down the mightiest walls of oppression and resistance.14

Numa das vezes em que citei essa passagem, a reunião da Diretoria


estava sendo presidida por DSK, que disse quando concluí minha
intervenção: “Obrigado, sr. Kennedy”, arrancando gargalhadas gerais. Aí
passou a palavra ao próximo inscrito que, ironicamente, era o diretor da
Alemanha, Klaus Stein, aquele que tanto me importunara como presidente
do comitê de ética. Ignorando minha peroração grandiloquente, o alemão
lançou-se prontamente em mais uma de suas intervenções cinzentas, pró-
status quo. Sentado a meu lado, o diretor holandês, Age Bakker, sussurrou:
“There goes your tiny ripple of hope…”15

1 Texto concluído em junho de 2019. Agradeço os comentários e sugestões de Felipe Santarosa sem
responsabilizá-lo pelas opiniões expressas ou pelos erros e omissões remanescentes.
2 Infelizmente, esse substituto, Juan Carlos Jaramillo, que tinha sido integrante do staff do FMI e
conhecia bem a instituição, ficaria poucos meses no cargo. Houve uma reviravolta em Bogotá e o
governo resolveu enviar nova alterna, María Angélica Arbeláez, menos preparada e que pouco
contribuiria para o trabalho da cadeira no período em que a Colômbia ainda permaneceu conosco.
3 A África do Sul foi convidada para entrar nos BRICS em dezembro de 2010, o que resultou na
substituição do acrônimo BRICs por BRICS, incluindo-se a letra S de South Africa. Moeketsi, como
diretor pela África do Sul, passou a participar regularmente das nossas reuniões de coordenação no
FMI desde o início de 2011. Ao longo deste livro, como já indiquei, uso a sigla BRICs para o período
2008-2010 e a sigla BRICS a partir de 2011, refletindo a entrada da África do Sul.
4 Um oficial de origem judaica, Alfred Dreyfus, foi condenado por espionagem de forma
escandalosamente injusta, levando o escritor Émile Zola a se insurgir em sua defesa com o famoso
panfleto “J’accuse!”, publicado em 1898 sob a forma de carta aberta ao presidente da República. O
caso Dreyfus produziu uma crise política que se estenderia por vários anos.
5 Isso tinha ficado claro para mim pela forma como a firma de advocacia apresentara a questão aos
diretores na época. DSK acabaria inocentado pela Diretoria da acusação principal de abuso de poder
– acusação que me parecia realmente descabida –, o que permitiu a sua continuação no cargo. Mas o
prejuízo foi enorme, pois o caso chegou rapidamente à imprensa, com grande repercussão na época.
6 Ver neste livro p. 425-6.
7 Para um relato minucioso do papel do FMI no caso da Grécia, que cobre inclusive a atuação da
cadeira brasileira, ver Paul Blustein. Laid low: Inside the Crisis that Overwhelmed Europe and the
IMF. Waterloo, Canada: Center for International Governance Innovation, 2016. Ver, também, do
mesmo autor, Laid low: The IMF, the Euro Zone and the First Rescue of Greece, Center for
International Governance Innovation, CIGI Papers, n. 61, abril de 2015.
8 Estava nessa ocasião fora de Washington, em viagem de trabalho, e o que resolvi fazer foi um walk
out, algo um pouco mais forte do que deixar a cadeira vazia. Preparei um texto de crítica à condução
do programa grego, apontando inclusive irregularidades nos procedimentos adotados pela
Administração. Esse texto foi lido por um dos meus assessores diplomáticos, Felipe Santarosa, no
início da reunião da Diretoria, que era presidida naquele dia pela diretora-gerente Christine Lagarde.
Em seguida à leitura, seguindo instruções minhas, Santarosa e dois outros assessores da cadeira
brasileira retiraram-se da sala, ficando a nossa cadeira vazia.
9 “Mantega apoia Nogueira Batista após episódio da Grécia: Ministério da Fazenda divulga uma nota
dando apoio ao diretor brasileiro no FMI”, Exame, 7 de agosto de 2013.
10 Independent Evaluation Office (IEO), The IMF and the Crises in Greece, Ireland, and Portugal,
Evaluation Report, julho de 2016.
11 John B. Taylor. “Obama and the IMF are unhappy with Congress? Good. The IMF needs to get its
house in order before Washington green-lights more money”. Wall Street Journal, 13 de fevereiro de
2014.
12 Paulo Nogueira Batista Jr. & Hector R. Torres. “How to reform the IMF now”. Project Syndicate,
15 de abril de 2015.
13 Ver neste livro p. 318-20.
14 “Cada vez que um homem se levanta por um ideal, ou age para melhorar a sorte de outros, ou se
insurge contra uma injustiça, ele provoca uma pequena onda de esperança e essas ondas, cruzando-se
umas às outras de um milhão de diferentes centros de energia e audácia, formam uma corrente capaz
de derrubar as mais poderosas muralhas de opressão e resistência.”
15 “Lá se vai a sua pequena onda de esperança…”
SOBREVIVI1

Q uando o governo brasileiro, em nota oficial, divulgou minha


designação para vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento,
estabelecido pelos BRICS, a informação já havia vazado para tudo quanto é
lado. A repercussão da nota foi bem modesta.
É sempre assim, leitor. O jornalista sempre quer publicar, de
preferência, o que o governo não quer divulgar. O que é off the record
ganha manchetes. O que é oficialmente divulgado permanece rigorosamente
inédito.
Mas, enfim, estou de mudança para Xangai no início de julho, em
menos de um mês, portanto. Nelson Rodrigues dizia que brasileiro não pode
viajar. O brasileiro, a caminho do Galeão, já na avenida Brasil, adquire
automaticamente um descarado sotaque espiritual. Se o grande cronista
tinha razão, a minha nacionalidade deveria estar em avançado estado de
decomposição.
Em março de 2007, quando estava preparando as malas para
Washington, publiquei um artigo em que antecipava as dificuldades que
teria no FMI e discorria sobre o adestramento das elites dos países em
desenvolvimento na capital do Império – esta cidade de onde ora vos
escrevo outra vez, mais de oito anos depois.
Sobrevivi. Não diria intacto, claro. Tive que enfrentar umas barras e
tenho as minhas cicatrizes. Mas lutei. Lutei para que o Brasil, aquele Brasil
idealizado, que só existe no coração de alguns brasileiros, pudesse se
orgulhar um pouco de mim.
Exagero? Só quem passou alguns anos em Washington ou qualquer
outra cidade importante no mundo desenvolvido pode ter noção completa
das dificuldades com que se defronta um subdesenvolvido quando
transplantado para o centro do sistema internacional de poder. A verdade,
leitor, é a seguinte: americanos e europeus ainda estão acostumados a
mandar, acreditam que têm o direito de mandar, que não há outra solução. E
ponto final.
O subdesenvolvido quando chega por aqui se defronta, portanto, com a
seguinte disjuntiva: ou adere, sem qualquer restrição e objeção,
acompanhando mansamente as diretrizes do Ocidente, ou será considerado
um elemento hostil, um estranho no ninho. E acaba, se bobear, internado no
hospício mais próximo.
Alguém perguntará: Mas não há meio-termo? Não, infelizmente não.
Conformismo total é o que se espera de um periférico que aporta por aqui.
E subdesenvolvido que não conhece o seu lugar é caçado a pauladas, feito
ratazana prenhe, diria Nelson Rodrigues (outra vez esse homem fatal!).
Ah, mas o subdesenvolvido que se acomoda, este pode ter uma boa vida
por aqui. Depois de um período de experiência, é acolhido como membro
leal de um clube confortável, com saunas, piscinas e toalhas felpudas –
membro de segunda classe, é verdade, sem direito a decidir, mas membro
mesmo assim.
Quero acrescentar um elemento importante a essa pequena fábula. O
brasileiro não é dos piores. A subserviência internacional encontra muitos
representantes mais entusiasmados e mais convictos. O brasileiro tem seus
escrúpulos, seus arroubos, seus surtos de independência. O Brasil, afinal, é
um grande país – ainda que nós, brasileiros, não estejamos sempre à sua
altura.

1 Publicado originalmente em O Globo, em 12 de junho de 2015.


CAPÍTULO 2

BRICS e banco dos BRICS


BRICS NO FMI E NO G201

H á controvérsias sobre o real significado e a importância prática dos


BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Os críticos e
céticos sustentam que o agrupamento é artificial, mais emblema ou marca
do que realidade política. Apontam para as enormes diferenças – históricas,
culturais, políticas e econômicas – entre os integrantes. Duvidam de que os
cinco países possam, de fato, atuar de forma coordenada.
É inegável que as dificuldades de coordenação dos BRICS são
consideráveis. Mas também é inegável que os BRICS vêm marcando
presença no campo internacional.
Vivenciei esse processo de coordenação com seus avanços e suas
dificuldades, desde 2008, no âmbito da diretoria do FMI e das reuniões do
G20 e dos BRICS. Quando cheguei a Washington em 2007 para assumir o
cargo de diretor executivo no FMI, os BRICS não existiam como aliança e
realidade política. Na época, tratava-se realmente de uma mera sigla –
inventada, como se sabe, por um economista do banco de investimentos
Goldman Sachs, Jim O’Neill.
Na Diretoria do FMI e no G20, a atuação conjunta dos quatro países (a
África do Sul só se juntou ao grupo em 2011) começou em 2008, por
iniciativa da Rússia. A primeira cúpula dos líderes do grupo realizou-se em
Ecaterimburgo, na Rússia, em 2009.
Os BRICS têm altos e baixos, momentos de maior proximidade e de
maior distância, mas uma coisa é certa: essa foi para o Brasil a principal
aliança desde 2008, pelo menos no que se refere a G20 e FMI. Ressalto: os
BRICS muito mais do que outros países latino-americanos, mesmo os de
maior porte. Por motivos que variam de país para país, os latino-americanos
não têm tido papel tão relevante como aliados do Brasil no terreno
financeiro internacional.
A articulação entre os BRICS
O diretor executivo da Rússia no FMI, Aleksei Mozhin, que está na
instituição desde o início da década de 1990, disse em seminário na
Brookings Institution, em Washington, que o surgimento dos BRICS foi a
maior mudança na governança do Fundo desde sua chegada à Diretoria.
Posso confirmar que, de 2008 em diante, nossa atuação conjunta tem sido
uma alavanca importante em vários temas estratégicos. A afinidade de
pontos de vista é particularmente nítida entre as cadeiras brasileira, russa e
indiana.
Os cinco diretores executivos dos BRICS no FMI passaram a se reunir
com muita frequência para coordenar posições sobre temas na pauta da
Diretoria ou iniciativas nossas. Cada passo do grupo demanda muita
preparação e articulação. No caso de alguns países, notadamente a China, o
processo de tomada de decisão é lento e complexo e inclui consultas a
várias instâncias em Beijing. O esforço de articulação é trabalhoso, às vezes
penoso, mas produz frutos. No que diz respeito a reformas de quotas e da
governança do FMI, por exemplo, os BRICS atuam frequentemente de
forma coordenada, inclusive preparando documentos conjuntos para
reuniões da Diretoria.
A principal dificuldade interna de coordenação dos BRICS é o peso
desproporcional da China quando comparado ao dos demais países. Os
chineses têm porte e recursos para, em alguns casos, enxergarem vantagens
em negociar separadamente com os americanos e os europeus.
Entendimentos entre Brasil, Rússia e Índia funcionam às vezes como
contrapeso à inclinação da China de atuar em faixa própria.
As dificuldades de coordenação entre os BRICS são naturais e
inevitáveis. Refletem as diferenças de interesses, de dimensão econômica e
de caráter político ou cultural. Apesar dessa diversidade, permanece o fato
de que os cinco países têm demonstrado disposição consistente de atuar de
maneira coordenada em muitos temas da agenda internacional.
Não se deve tampouco exagerar o significado das dificuldades de
coordenação. Afinal, mesmo agrupamentos mais homogêneos e mais
antigos, como o bloco europeu, se debatem com agudas divergências.
No FMI, a aliança entre os BRICS logo foi reconhecida como parte da
paisagem. Como mecanismo de articulação, os BRICS se tornaram muito
mais relevantes do que o G11, o tradicional agrupamento das 11 cadeiras da
Diretoria Executiva comandadas por países em desenvolvimento.2 Apenas
as cadeiras europeias têm coordenação mais estreita. A Administração do
FMI e os diretores executivos dos países avançados fazem o que podem
para detectar e explorar diferenças de posições entre os BRICS.
A coordenação entre as capitais é dificultada pela distância geográfica.
Mesmo assim, os ministros de Finanças e presidentes de Banco Central dos
BRICS passaram a se reunir com frequência – duas ou três vezes por ano,
em média.
Os chefes de Estado e governo se encontram nas cúpulas anuais dos
BRICS. Também se reúnem à margem das cúpulas do G20, prática que
começou, na cúpula do G20, em Cannes, em novembro de 2011, por
iniciativa do Brasil. Desde então, os líderes dos cinco países passaram a se
encontrar regularmente duas vezes por ano.

Traços comuns
O que os BRICS têm em comum? Para além de todas as diferenças,
fundamentalmente o seguinte: são países de grande dimensão econômica,
geográfica e populacional. Brasil, Rússia, Índia e China fazem parte dos dez
maiores países do mundo em termos de PIB, área e população. Por isso
mesmo, todos eles têm capacidade de atuar com autonomia em relação às
potências ocidentais – os Estados Unidos e a Europa. Isso vale, sobretudo,
para os quatro integrantes originais do grupo, mas, creio, que
crescentemente também para a África do Sul.
Este é o aspecto crucial: a capacidade de decidir de forma independente.
A grande maioria dos demais países emergentes e em desenvolvimento –
mesmo os que têm certo porte – não possui essa capacidade, pelo menos
não na mesma medida. Em muitos casos, o que ainda se vê é uma relação
de estreita dependência e alinhamento mais ou menos automático aos
Estados Unidos ou aos principais países da Europa.
Essa atuação independente também reflete, evidentemente, a posição
econômico-financeira dos BRICS. Nenhum deles depende de capitais
externos europeus ou americanos ou da assistência financeira do FMI e de
outros organismos ainda controlados pelas potências tradicionais. Isso
reflete inter alia a sua solidez de balanço de pagamentos e de reservas
internacionais. Nos anos recentes, os BRICS tornaram-se inclusive credores
do FMI, participando com grandes somas dos empréstimos levantados pela
instituição para fazer face à crise iniciada nos países avançados em 2008.

Reforma do FMI e Fundo de Reservas dos BRICS


Um dos acontecimentos mais significativos da cúpula do G20 em Los
Cabos, no México, em junho de 2012, foi a reunião prévia dos líderes dos
BRICS. Antecedida de muita discussão entre os cinco países, a reunião
tratou principalmente de dois temas – um deles totalmente novo.
O primeiro tema foi a decisão de confirmar o anúncio de novas
contribuições ao financiamento do FMI. A China anunciou US$ 43 bilhões
adicionais; o Brasil, a Rússia e a Índia, US$ 10 bilhões cada; África do Sul,
US$ 2 bilhões. Na rodada anterior de levantamento de empréstimos para o
FMI em 2009, os BRICs entraram com o equivalente a US$ 92 bilhões – a
China, com US$ 50 bilhões; Brasil, Rússia e Índia, com US$ 14 bilhões
cada.
O total de US$ 75 bilhões anunciado em Los Cabos ficou condicionado
ao entendimento de que o FMI só lançará mão desses novos recursos depois
que os fundos existentes na instituição tenham sido substancialmente
utilizados. Esse ponto é importante para promover uma adequada
distribuição do ônus entre os diferentes credores do FMI, como mencionou
o comunicado emitido pelos BRICS após a reunião.
O comunicado registrava, também, que as contribuições foram
anunciadas com base no entendimento de que as reformas do FMI serão
plenamente implementadas, conforme acordo a que se chegou no G20, em
2010. Isso inclui, como se sabe, uma revisão abrangente do poder de voto e
das quotas.
Essa observação reflete a insatisfação dos BRICS com o ritmo de
implementação das reformas do FMI, que expressaram em mais de uma
ocasião. Há muita inércia institucional e apego ao status quo no Fundo. Em
razão disso, aumentou a disposição dos BRICS de considerar iniciativas na
área monetária internacional fora do âmbito do FMI.
A novidade em Los Cabos foi exatamente o lançamento de um fundo ou
pool de reservas dos BRICS. A iniciativa foi pacientemente costurada em
entendimentos prévios entre os países. Na reunião dos líderes dos BRICS
tomou-se a decisão de iniciar a discussão de um fundo de reservas comum.
Os líderes pediram a seus ministros de Finanças e presidentes de banco
central que trabalhassem conjuntamente nesse tema e trouxessem os
resultados para a próxima Cúpula dos Líderes dos BRICS, na África do Sul,
em março de 2013. Posteriormente, foi criado um grupo de trabalho com
representantes dos cinco países, sob coordenação brasileira. Essa decisão
deu sequência a uma iniciativa que havia sido aprovada pelos líderes dos
BRICS em sua cúpula anual, em Nova Délhi em março de 2012, quando
pediram a seus ministros de Finanças que examinassem a viabilidade de
criar um banco multilateral de desenvolvimento.
Um fundo de reservas dos BRICS tem natureza preventiva e representa
a criação de um mecanismo de solidariedade financeira entre os cinco
países, a ser acionado em momentos de dificuldade. As reservas somadas
dos cinco países alcançam mais de US$ 4 trilhões – base mais do que
suficiente para respaldar a iniciativa.
Um fundo comum de reservas pode ser acionado por qualquer país-
membro que eventualmente precise de apoio, de acordo com as regras e os
procedimentos estabelecidos. Desde o início, se imaginou que o fundo
poderia ser “virtual”, isto é, as reservas continuariam nos bancos centrais de
cada um dos BRICS, sendo desembolsadas apenas se algum dos cinco
países necessitasse de acesso aos recursos.
Ainda que não venha a ser utilizado com frequência, dado que a posição
dos países dos BRICS é sólida, a existência do fundo proporciona reforço
adicional de confiança. A disposição de criar um fundo de reservas comum
revelou o estreitamento dos laços entre os BRICS e sua disposição de
enfrentar em conjunto os desafios do quadro internacional.
***

O ministro Antonio Patriota3 acertou, no meu entender, quando


comparou a coordenação entre os BRICS à nossa aproximação com os EUA
no início do século XX, época do Barão de Rio Branco.4 Um grande legado
do Barão, disse Patriota, é a capacidade de apreensão das mudanças. Na
época em que o dinamismo econômico e o eixo de poder mudavam da
Europa para os Estados Unidos, ele teve a capacidade de estabelecer uma
boa relação com os EUA. Transferindo para hoje, o movimento equivalente
é a coordenação com os BRICS.

1 Versão ampliada e revista de texto que serviu de base a apresentação em mesa-redonda organizada
pela Fundação Alexandre Gusmão e pelo Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, em 31 de
julho de 2012. Publicado originalmente em José Vicente de Sá Pimentel (org.). O Brasil, os BRICS e
a agenda internacional. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2013.
2 O G11 inclui as cadeiras comandadas por China, Índia, Arábia Saudita, Egito, Irã, Brasil, as duas
outras cadeiras latino-americanas, as duas da África Subsaariana e a do Sudeste Asiático.
3 Diplomata brasileiro que foi ministro das Relações Exteriores entre 2011 e 2013.
4 Em entrevista à Folha de S.Paulo, publicada em 10 de fevereiro de 2012.
NOVO BANCO
E NOVO FUNDO MONETÁRIO1

A escassez de recursos para financiar o desenvolvimento e os surtos


recorrentes de instabilidade nos mercados internacionais, com efeitos
mais intensos nas economias emergentes, conferem importância crucial à
criação de mecanismos de autodefesa e financiamento. As instituições
multilaterais sediadas em Washington – o FMI e o Banco Mundial –
mostram grande dificuldade de evoluir e se adaptar à nova realidade
internacional, marcada pelo peso crescente das economias emergentes. O
G20 está semiparalisado desde 2011. Diante disso, os emergentes vêm
tomando, há algum tempo, suas próprias providências em âmbito nacional e
reforçando alianças entre si.
Os BRICS – Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul – têm se
destacado nesse campo. Desde 2012, esses países vêm negociando
cuidadosamente, passo a passo, o estabelecimento de mecanismos
independentes de estabilização e financiamento de longo prazo. Refiro-me
ao Arranjo Contingente de Reservas (ACR) e ao Novo Banco de
Desenvolvimento (NBD). O primeiro será um fundo de estabilização entre
os cinco países; o segundo, um banco para financiamento de projetos de
investimento nos BRICS e outros países em desenvolvimento.
O Brasil atribuiu, desde o governo Lula, grande importância à atuação
no âmbito dos BRICS. No governo Dilma, a atuação conjunta com os
demais BRICS tornou-se uma das principais vertentes da política externa
brasileira. Isso culminou na cúpula dos BRICS em Fortaleza, em julho de
2014, quando foram assinados os acordos que estabeleceram o ACR e o
NBD. Esses dois mecanismos são complementares às instituições
multilaterais de Washington e podem inclusive cooperar com elas. Mas
foram concebidos para serem autoadministrados e atuar de forma
independente.
Enquanto diretor executivo do Brasil no FMI, participei dessas
negociações desde o início, em 2012. Este texto é um breve depoimento
sobre o que foi alcançado e alguns dos desafios a serem enfrentados na
implementação do fundo e do banco dos BRICS.

Alternativa potencial às instituições de Bretton


Woods
As instituições de Bretton Woods, o FMI e o Banco Mundial existem há 70
anos. Em todo esse período, nada surgiu no campo multilateral ou
plurilateral que possa ser caracterizado como alternativa a essas
instituições, dominadas pelas potências tradicionais – os EUA e a União
Europeia.
O ACR e o NBD, ainda embrionários, constituem a primeira alternativa
potencial. A Iniciativa de Chiang Mai – na qual o ACR se inspira, em parte
– não desempenha esse papel, uma vez que a presença do Japão e da Coreia
do Sul – aliados próximos dos EUA – funciona na prática como uma trava
para seu desenvolvimento independente. O Mecanismo de Estabilidade
Europeu (European Stability Mechanism – ESM) tampouco representa uma
alternativa ao FMI, uma vez que coopera estreitamente com o Fundo e
chega a dominá-lo, no âmbito da chamada Troika,2 na formulação,
financiamento e acompanhamento dos programas de ajuste e reforma para
países da área do euro. A super-representação da Europa no FMI facilita a
adaptação da instituição à estratégia traçada em Berlim, Bruxelas e
Frankfurt.

Arranjo Contingente de Reservas


O valor inicial do ACR é US$ 100 bilhões. A China entra com US$ 41
bilhões; Brasil, Rússia e Índia, com US$ 18 bilhões cada; e a África do Sul,
com US$ 5 bilhões. Trata-se de um pool virtual de reservas, em que os
cinco participantes se comprometem a proporcionar apoio mútuo em caso
de pressões de balanço de pagamentos. O termo “contingente” reflete o fato
de que, no modelo adotado, os recursos comprometidos pelos cinco países
continuarão nas suas reservas internacionais, só sendo acionados se algum
deles precisar de apoio de balanço de pagamentos.
Os limites de acesso de cada país aos recursos do ACR são
determinados por suas contribuições individuais vezes um multiplicador. A
China tem um multiplicador de 0,5; o Brasil, a Índia e a Rússia, de 1; e a
África do Sul, de 2. O apoio aos países pode ser concedido por meio de um
instrumento de liquidez imediata ou de um instrumento precaucionário, este
último para o caso de pressões potenciais de balanço de pagamentos.
O ACR tem um sistema de governança em dois níveis. As decisões mais
importantes serão tomadas pelo Conselho de Governadores (Governing
Council), com os assuntos de nível executivo e operacional ficando a cargo
de um Comitê Permanente (Standing Committee). O consenso é a regra para
quase todas as decisões. Somente as decisões do Comitê Permanente
relacionadas a pedidos de apoio e de renovação de apoio serão tomadas por
maioria simples de votos ponderados pelo tamanho relativo das
contribuições individuais.
Cada país pode obter a qualquer tempo até 30% do seu limite de acesso,
desde que observe os procedimentos e salvaguardas do Tratado. Um acesso
acima desse percentual está condicionado à existência de um acordo com o
FMI.
As condições para aprovação de um pedido de apoio incluem: a) não ter
dívidas em atraso com os outros BRICS ou suas instituições financeiras
públicas nem com as instituições financeiras multilaterais; b) cumprir as
obrigações com o FMI referentes ao Artigo IV (supervisão) e ao Artigo
VIII (provisão de informações) do Convênio Constitutivo do Fundo; e c)
assegurar que as obrigações assumidas pelo país que requisita apoio sejam
não subordinadas, sendo classificadas, quanto ao direito de pagamento, ao
menos pari passu com todas as outras obrigações externas.

Novo Banco de Desenvolvimento


O NBD tem como mandato financiar projetos de infraestrutura e
desenvolvimento sustentável não só nos BRICS como também em outros
países em desenvolvimento. Há uma grande carência de recursos para
financiar o desenvolvimento da infraestrutura no mundo. O Banco Mundial
e os bancos regionais de desenvolvimento não têm capital suficiente e
continuam dominados pelas potências tradicionais. Os EUA e outros países
desenvolvidos relutam em aumentar o capital e a capacidade de emprestar
do Banco Mundial, tendo como prioridade preservar o controle da
instituição.
É para ajudar a cobrir essa lacuna que os BRICS resolveram criar o seu
próprio banco de desenvolvimento. O banco tem capital integralizado de
US$ 10 bilhões, subscrito de US$ 50 bilhões e autorizado de US$ 100
bilhões. O capital é distribuído em parcelas iguais entre os cinco membros
fundadores, que têm assim o mesmo poder de voto. O acordo assinado em
Fortaleza estabeleceu Xangai como sede do banco. Estabeleceu também
Johanesburgo como sede do primeiro escritório regional. O segundo
escritório regional será no Brasil.3
O banco está aberto à participação de outros países-membros da ONU.
Os países desenvolvidos podem ser sócios, porém não tomadores de
empréstimos (non borrowing members). Já os países em desenvolvimento
podem ser sócios tomadores (borrowing members). Os BRICS preservarão
sempre pelo menos 55% do poder de voto total. Os países desenvolvidos
terão no máximo 20% do poder de voto. Fora os BRICS, nenhum país
deterá mais do que 7% dos votos.
Mesmo que não se tornem sócios do banco, países em desenvolvimento
poderão excepcionalmente tomar empréstimos ou realizar outras operações
em condições que serão especificadas pelo Conselho de Governadores.

Percalços do processo de negociação em 2012-2014


O processo de negociação do ACR e do NBD entre 2012 e 2014 enfrentou
alguns percalços do lado brasileiro. Vale a pena recapitulá-los brevemente,
uma vez que podem reaparecer na fase de implementação das duas
iniciativas.
No caso da negociação do ACR, cuja coordenação esteve desde o início
sob responsabilidade brasileira, o principal problema foi a relutância do
Banco Central do Brasil, que temia comprometer reservas brasileiras em
operações potencialmente arriscadas e atuou para retardar e esvaziar a
iniciativa. Contudo, a relutância refluiu um pouco ao longo do tempo, em
face da determinação da presidente Dilma Rousseff de levá-la adiante e
também da consolidação do ACR como arranjo acompanhado de uma série
de salvaguardas, inclusive vinculação com o FMI, como mencionado
anteriormente.
Apesar dos percalços, o tratado que constituiu o ACR é abrangente e
detalhado, incluindo detalhes de natureza operacional. A Diretoria
Executiva do Brasil no FMI, com apoio do Ministério da Fazenda, assumiu
a tarefa de preparar as diferentes minutas do tratado, ajudar na defesa das
posições brasileiras, orientar e secretariar a negociação e fazer as
simulações para definir os parâmetros do arranjo. Para esse trabalho, nos
valemos da nossa experiência no próprio FMI, dos acordos bilaterais de
swap existentes e da experiência da Iniciativa de Chiang Mai.
No caso do NBD, o problema foi de outra natureza: a insuficiência da
equipe negociadora brasileira que se resumiu essencialmente a alguns
poucos integrantes da assessoria internacional da Fazenda, com pouca
experiência na área. O Brasil acabou não sendo adequadamente
contemplado em definições básicas e na distribuição de cargos-chave do
NBD. A China ficou com a sede; a Índia, com a primeira presidência do
banco; a Rússia, com a primeira presidência do Conselho de Governadores
e o Brasil, com a primeira presidência da Diretoria ou Conselho de
Administração. Corre-se o risco de que o NBD venha a ser um banco
essencialmente asiático, dominado pela China e pela Índia, com os demais
BRICS desempenhando papel caudatário.
O Brasil não chegou sequer a pleitear a sede do NBD, ficando sem
fichas na negociação de alguns temas básicos. A Índia insistiu até o fim em
sediar o banco e acabou levando a primeira presidência.
Não devemos cometer o mesmo erro na definição da sede do ACR.
Cabe entrar na disputa com cidade competitiva e atraente – quem sabe o
Rio de Janeiro? – e travar essa disputa desde o início da discussão. A China
deseja sediar o ACR também em Xangai. Se prevalecer essa proposta,
Xangai se transformaria na nova Washington – sede do banco e do fundo
monetário dos BRICS. O Brasil e os outros BRICS apareceriam como mera
linha auxiliar em duas iniciativas comandadas pela China.4

Significado dessas iniciativas


A assinatura em Fortaleza dos acordos que criaram um banco e um fundo
monetário dos BRICS alçou a cooperação entre os cinco países a um novo
patamar. O grande desafio agora é a implementação das duas instituições.
Essa fase de implementação vai definir o sucesso ou insucesso do ACR e do
NBD, sua maior ou menor importância prática e, em última análise, o êxito
do próprio processo BRICS. Há que cuidar para que as duas instituições se
estabeleçam de maneira sólida e não venham a ser deformadas ou
enfraquecidas ao longo do processo de sua concretização.
Qual o significado dessas iniciativas? Se tivesse que resumir em uma
frase, diria que demos passo significativo na direção de um mundo mais
multipolar. Há traços comuns entre os cinco BRICS, para além de todas as
diferenças econômicas, políticas e históricas: são países de economia
emergente, de grande porte econômico, territorial e populacional, que têm
condições de atuar com autonomia. Esse não é caso da grande maioria dos
demais países de economia emergente ou em desenvolvimento.
Os BRICS não estão conformados com a atual governança
internacional, que tem origem na estrutura de poder que emergiu depois da
Segunda Guerra Mundial e consagra representação e papel exagerados para
as potências tradicionais. O mundo está mudando rapidamente. É crescente
o peso dos países de economia emergente e em desenvolvimento. Mas as
organizações internacionais continuam a refletir uma realidade política e
econômica do século XX.
Cabe aos BRICS, entretanto, na prática do dia a dia do seu trabalho no
FMI, no Banco Mundial, no G20 e nas novas instituições que criaram,
mostrar aos demais países, particularmente aos outros países em
desenvolvimento, por que e para que querem mais influência e poder
decisório. Que diferença faz para os países menores, mais frágeis ou de
menor renda, que o poder decisório seja transferido das potências
tradicionais para os BRICS? Se a diferença não ficar clara, nossa atuação
conjunta será vista pelos demais como mera disputa de poder.

1 Publicado originalmente em Pedro de Souza (org.). Brasil, sociedade em movimento. São


Paulo/Rio de Janeiro: Paz & Terra/Centro Internacional Celso Furtado, 2015.
2 A Troika inclui o ESM, o FMI e o Banco Central Europeu.
3 Ficou definido que esse segundo escritório regional terá sede em São Paulo. No momento da
finalização deste livro, a sua criação estava prevista para o fim de 2019.
4 Acatando sugestão minha, o Brasil apresentou posteriormente a candidatura do Rio de Janeiro. No
momento da publicação deste livro, a questão continuava em aberto.
COMEÇO AUSPICIOSO DO NOVO BANCO1

A criação de um banco de desenvolvimento pelos BRICS despertou


grande interesse no Brasil, inclusive nos meios acadêmicos. Foi vista, com
razão, como passo inédito na atuação do país no campo das organizações
financeiras multilaterais. Até então apenas caudatário das iniciativas de
outros países, o Brasil se associava a outros quatro grandes países
emergentes para conceber, de forma independente, um banco de
desenvolvimento com a pretensão de ter alcance global e lançar práticas
inovadoras no campo do financiamento do desenvolvimento. O banco
ficaria conhecido como “Banco dos BRICS”, mas o nome oficial – Novo
Banco de Desenvolvimento – já refletia o objetivo de criar um banco
inovador, planejado para ir além dos BRICS. Foi deliberada a não inclusão
da sigla BRICS no nome do banco, assim como a designação “novo”.
O Convênio Constitutivo estabeleceu que cada um dos cinco países
fundadores indicaria um vice-presidente, exceto aquele representado pelo
presidente. Por acordo alcançado durante a cúpula dos BRICS, em
Fortaleza, em julho de 2014, ficou decidido que a Índia indicaria o
primeiro presidente do NBD. No início de 2015, fui convidado pela
presidente Dilma Rousseff para ser o primeiro vice-presidente brasileiro do
NBD. O banco começou a operar em julho de 2015, quando o presidente e
os vice-presidentes da instituição se mudaram para Xangai.
Um ano depois, a revista Estudos Avançados do Instituto de Estudos
Avançados da USP entrou em contato comigo pedindo que respondesse, por
escrito, algumas perguntas sobre o novo banco. As perguntas foram
formuladas pelo professor Rubens Rogério Sawaya, da PUC-SP, e
respondidas em agosto de 2016.

Estudos Avançados – Como surgiu a ideia da constituição do Novo Banco


de Desenvolvimento (NBD) e qual foi o país que comandou o processo de
criação?
A ideia partiu da Índia. Foi lançada na cúpula dos BRICS no início de
2012, em Nova Délhi. Naquela ocasião, os líderes dos cinco países pediram
a seus ministros de Finanças que examinassem a viabilidade de criar um
banco de desenvolvimento para financiar infraestrutura e desenvolvimento
sustentável. As negociações transcorreram por pouco mais de dois anos até
a assinatura do Convênio Constitutivo na cúpula dos BRICS em Fortaleza,
em julho de 2014. Não se pode dizer que um país tenha comandado o
processo de negociação. Os cinco participaram com igual presença e
dedicação. Até o início de 2013, a Rússia ainda era mais relutante do que os
outros, mas depois se engajou plenamente.

Estudos Avançados – Qual é o papel geopolítico do NBD ao ser constituído


apenas por países emergentes? É um banco político? Como se insere na
lógica geopolítica e de relação hegemônica global atual?
É a primeira vez que um banco de desenvolvimento que pretende ter
alcance global é estabelecido apenas por países de economia emergente,
sem a participação de países desenvolvidos na fase inicial. Trata-se,
portanto, de um grande desafio para nós. A iniciativa de criar o NBD tem
um aspecto geopolítico, sem dúvida. Reflete a insatisfação dos BRICS com
as instituições multilaterais existentes, que demoram a se adaptar ao século
XXI e a dar suficiente poder decisório aos países em desenvolvimento. Mas
o NBD não é um banco político. O banco se pautará por critérios técnicos
para aprovar projetos. O nosso Convênio Constitutivo deixa esse ponto
claro. Queremos evitar a excessiva politização das decisões que se observa
nas instituições multilaterais existentes.

Estudos Avançados – O NBD pretende se tornar um banco global?


Sim, o NBD está aberto a todos os países-membros da ONU.
Começamos a fazer contatos com outros países. A ideia é ter membros de
todas as regiões do mundo – África, América Latina e Caribe, Ásia, Europa
etc. Buscaremos trazer países desenvolvidos, de renda média e de menor
nível de desenvolvimento. Mas só os países emergentes e em
desenvolvimento poderão ser membros tomadores de empréstimos. Não
faremos empréstimos a países desenvolvidos.
Estudos Avançados – Em que medida o NBD substitui ou complementa o
Banco Mundial e outras instituições multilaterais da mesma espécie?
O NBD não substitui o Banco Mundial e outras instituições já
estabelecidas. O nosso banco está apenas começando e só no médio e no
longo prazos alcançará um volume expressivo de operações. O papel do
NBD é complementar os esforços das instituições existentes no
financiamento de projetos de infraestrutura e desenvolvimento sustentável.
Estamos, inclusive, concluindo acordos de cooperação com outros bancos
de desenvolvimento; alguns acordos já foram assinados. Mas, como diz o
nome do nosso banco, a ideia é estabelecer uma entidade nova, levando em
conta os erros e acertos das instituições existentes. É fundamental para nós
aprender com a experiência dos bancos mais antigos.
Sempre enfatizamos esse aspecto da cooperação/colaboração com as
entidades mais antigas, um objetivo que estamos de fato começando a
colocar em prática. Mas também é verdade que se as instituições
multilaterais existentes, notadamente as sediadas em Washington,
estivessem funcionando a contento, os BRICS jamais teriam se dado ao
trabalho de estabelecer o NBD, assim como um fundo monetário próprio,
batizado de Arranjo Contingente de Reservas (ACR). O tratado que criou o
ACR também foi assinado na cúpula de Fortaleza.
Essas iniciativas dos BRICS podem ser descritas como um “projeto
anti-hegemônico”, como observou Luiz Gonzaga Belluzzo. Elas fazem
parte de um processo mais amplo: a “multipolarização” da arquitetura
econômica e financeira mundial – uma diversificação do quadro
institucional e das iniciativas, com perda de peso relativo dos centros
tradicionais de poder (FMI, Banco Mundial, OMC etc.). É um processo
incipiente, mas já está em curso. Reflete em parte, como mencionei, a
frustração dos países emergentes com a incapacidade do FMI e do Banco
Mundial de se reformar em ritmo condizente com as transformações da
economia mundial. Fui diretor executivo do FMI pelo Brasil e outros países
por oito anos em Washington e conheço bem a resistência à mudança, a
inércia institucional que caracteriza a governança das entidades de Bretton
Woods. Houve algum progresso desde 2008, mas é ainda muito
insuficiente.
Estudos Avançados – Quais as diferenças do NBD em relação aos bancos
multilaterais existentes?
Vou comparar o NBD com o outro banco multilateral de
desenvolvimento que tem escopo global, o maior e mais importante deles –
o Banco Mundial. Por exemplo, o Banco Mundial tem uma gama muito
ampla e diversificada de atividades – é um banco de tipo universal. Faz de
tudo: financia, presta assistência técnica, estabelece condicionalidades,
procura orientar as estratégias e políticas econômicas e setoriais dos países,
estuda a economia mundial e as economias nacionais, dá consultoria,
pretende ser uma fonte de conhecimento (um knowledge bank), organiza
eventos, publica estudos e documentos, e assim por diante. O NBD
pretende atuar de forma focada, não só nos anos iniciais, mas se depender
de mim também depois, quando formos maiores. Seremos um banco de
projetos na área de infraestrutura e desenvolvimento sustentável. E
pretendemos concentrar esforços na área de infraestrutura sustentável, em
setores como energia renovável (solar e eólica, por exemplo), eficiência
energética, tratamento de esgotos, gestão sustentável de água, entre outros.
Outra diferença: o Banco Mundial tem uma estrutura pesada,
procedimentos burocratizados e acaba demorando a aprovar projetos. O
NBD pretende atuar com rapidez, sem sacrificar qualidade. O nosso
objetivo é levar, em média, menos de seis meses entre a identificação dos
projetos e a aprovação na Diretoria. Já conseguimos isso na maioria dos
projetos iniciais. No seu primeiro ano, o banco aprovou projetos e emitiu
seu primeiro bônus no mercado.

Estudos Avançados – Qual a visão de desenvolvimento do NBD e como


essa visão se materializa em suas operações?
Seria pretensioso dizer que temos uma visão de desenvolvimento já
elaborada. Creio que iremos desenvolver essa visão à medida que
construirmos o banco, com base na experiência prática. Temos alguns
pilares para nossa atuação, estabelecidos no próprio Convênio Constitutivo
do NBD. Por exemplo, o NBD é um dos poucos, talvez o único banco
multilateral de desenvolvimento que tem a questão ambiental inscrita com
destaque no próprio acordo ou Convênio Constitutivo. É um banco verde,
desde sua concepção. Para nós, a questão ambiental não é apenas uma
restrição ou condicionante a ser observada no planejamento e execução de
projetos, mas uma oportunidade e um foco central da instituição.
Outro aspecto importante: o NBD é um banco de países em
desenvolvimento para países em desenvolvimento. Isso certamente
condicionará a nossa visão. Pelo Convênio Constitutivo, a participação dos
países de economia emergente e em desenvolvimento será sempre de pelo
menos 80% do capital e do poder de voto. Os países avançados ou
desenvolvidos poderão ingressar no banco, mas terão sua participação
limitada a 20%.

Estudos Avançados – Há algum papel especial da China ou preponderante


nessa visão de desenvolvimento?
Não. A sede do banco é na China, que tem a maior economia do grupo.
A China – tanto o governo central quanto o governo de Xangai – vem
dando grande apoio ao NBD. Mas os cinco países fundadores têm o mesmo
peso no capital e nas decisões. Cada um dos cinco tem 20% do capital e do
poder de voto. Ninguém tem poder de veto sobre decisão alguma.
Todas as decisões no NBD são tomadas por maioria simples ou maioria
qualificada – não se requer unanimidade para nenhuma decisão, pois isso
equivaleria a dar poder de veto a cada um dos membros. A experiência da
União Europeia, diga-se de passagem, mostra de forma clara o efeito
paralisante da exigência de unanimidade para a tomada de decisões. No
FMI e no Banco Mundial, os europeus (atuando em bloco) e os Estados
Unidos têm poder de veto sobre decisões cruciais.

Estudos Avançados – Em que medida as políticas ou geopolíticas do banco


influenciarão as políticas e estratégias nacionais de cada país tomador?
Não é esse o propósito. Primeiro, o NBD não tem “geopolíticas”,
apenas políticas operacionais e de outros tipos, como qualquer banco de
desenvolvimento. É um banco que se limitará a financiar projetos e
mobilizar recursos para as áreas de infraestrutura e desenvolvimento
sustentável. Não temos a pretensão de influir sobre as políticas e estratégias
nacionais dos países tomadores. Respeitaremos a soberania dos países e
analisaremos os projetos dentro do marco das políticas e legislações
nacionais. O banco não vai estabelecer condicionalidades nem vincular a
aprovação de projetos e desembolsos a mudanças nas políticas e estratégias
dos países.

Estudos Avançados – Como está estruturada a governança do novo banco e


como esse formato impacta ou implica relações de poder e controle sobre
sua estratégia entre os cinco membros fundadores?
Os países se fazem representar no Conselho de Governadores e na
Diretoria. A autoridade política máxima é o Conselho de Governadores,
integrado pelos ministros de Finanças dos cinco países. A Diretoria do
Banco, que é não residente, é integrada, em geral, por secretários de
assuntos internacionais dos ministérios de Finanças ou funcionários de nível
equivalente. A Diretoria aprova todas as políticas e os projetos do NBD.
A Administração do Banco, residente em Xangai, é composta pelo
presidente e por quatro vice-presidentes. Os integrantes da Administração
devem lealdade exclusiva ao banco e não representam países. O presidente
tem mandato de cinco anos; os vices, mandatos de seis anos. Em Fortaleza,
estabeleceu-se uma rotação, com a Índia designando o primeiro presidente.
O Brasil indicará o segundo.

Estudos Avançados – Qual a diferença entre o NBD e o banco de fomento


asiático sob o comando da China, o Banco Asiático de Investimento em
Infraestrutura (Asian Infrastructure Investment Bank – AIIB)?
A primeira diferença é justamente esta: o AIIB é controlado pela China,
que tem a maior participação no capital e poder de veto sobre decisões
importantes. No NBD, há equilíbrio entre os cinco sócios fundadores. Outra
diferença é que o AIIB tem foco na Ásia, embora possa atuar também em
outras regiões. O NBD foi desenhado para ter escopo global.
Além disso, o AIIB escolheu atrair um grande número de membros,
inclusive importantes países desenvolvidos como a Alemanha, a França e o
Reino Unido, mesmo antes de concluir a negociação do seu Convênio
Constitutivo. O NBD decidiu começar só com os cinco sócios fundadores e
deixar a ampliação do número de membros para depois que estivessem
consolidados o arcabouço de políticas e a estratégia do banco. Só
recentemente, um ano depois do início do NBD, é que começamos a
contatar potenciais novos membros. Isso nos deu mais liberdade para inovar
na definição das políticas e da estratégia geral.
A presença de países desenvolvidos na fase inicial é uma faca de dois
gumes. Ajuda, por um lado, a dar prestígio à instituição. Por outro, tende a
dificultar a definição de políticas e orientações diferentes daquelas seguidas
pelos principais bancos multilaterais já existentes, como o Banco Mundial e
outros, que são controlados pelos países desenvolvidos.

Estudos Avançados – Qual será a moeda central utilizada? Qual será o


peso da moeda chinesa na estrutura dos empréstimos e funding do banco?
Há uma estratégia de minimizar o papel do dólar como moeda central?
A unidade de conta é o dólar dos Estados Unidos. O Convênio
Constitutivo define o capital autorizado (US$ 100 bilhões), o capital
subscrito (US$ 50 bilhões) e o capital integralizado ou pago (US$ 10
bilhões) em dólares. Não há uma estratégia deliberada de minimizar o dólar,
mas o NBD pretende captar e emprestar não só em dólar, mas também nas
moedas dos países-membros. Por exemplo, o nosso primeiro bônus foi
emitido em yuan, na China. Trata-se, aliás, de um bônus verde que será
destinado exclusivamente a energia renovável e outros projetos de cunho
ambiental.

Estudos Avançados – Como o NBD pretende trabalhar com os bancos de


desenvolvimento locais, como o BNDES?
Os bancos nacionais de desenvolvimento dos BRICS são parceiros
importantes. O nosso primeiro acordo de cooperação foi assinado com o
BNDES, em 2015. A primeira operação do NBD com o Brasil é com o
BNDES, uma linha de crédito de US$ 300 milhões vinculada a projetos na
área de energia renovável, eólica e solar, notadamente. O NBD pretende
aprender com a experiência dos bancos nacionais de desenvolvimento e
valer-se do seu conhecimento dos mercados nacionais. Estamos recebendo
também funcionários do BNDES e de outros bancos nacionais de
desenvolvimento.

Estudos Avançados – Quais os tipos de projetos em que o NBD pretende


atuar no curto prazo? E no longo prazo, que espaço em termos de projetos
pretende ocupar?
Os cinco primeiros projetos aprovados, um em cada país-membro,
foram todos na área de energia renovável. Eles aumentarão a capacidade de
geração de energia renovável em cada um dos países, contribuindo para a
redução na emissão de gases de efeito estufa. O total aprovado foi de US$
911 milhões; a maior operação foi o mencionado empréstimo ao BNDES.
Na China, por exemplo, foi aprovado um empréstimo equivalente a US$ 81
milhões, denominado em yuan, que financiará a geração de 100 MW de
energia solar, com a implantação de painéis no topo de galpões e edifícios
em uma das zonas industriais de Xangai.
Embora neste momento as operações tenham se concentrado em
empréstimos com garantia soberana ou por meio de bancos nacionais de
desenvolvimento e outros intermediários financeiros, à medida que
desenvolvermos nossa capacidade institucional e técnica, o NBD deve
explorar diversas modalidades de operação. O Convênio Constitutivo do
banco prevê a possibilidade de empréstimos para o setor privado, bem
como o uso de garantias e o investimento por meio de participação direta. O
NBD deverá também conceder financiamento a Estados e municípios que
apresentem projetos na área de infraestrutura sustentável.

1 Entrevista publicada originalmente na revista Estudos Avançados, Instituto de Estudos Avançados,


Universidade de São Paulo, v.30, n. 88, setembro/dezembro 2016.
PRIMEIRO TRIÊNIO DO NOVO BANCO DE
DESENVOLVIMENTO – PROMESSAS,
RESULTADOS, DECEPÇÕES1

O Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) é, sem dúvida, a principal


realização do processo BRICS. Poucos acreditavam que a cooperação entre
os cinco países chegaria a resultar na criação de novos mecanismos de
financiamento, como o NBD e o fundo monetário dos BRICS, denominado
Arranjo Contingente de Reservas (ACR). A criação pelos BRICS de um
novo banco multilateral de desenvolvimento, com planos de se tornar uma
instituição de alcance global, teve inicialmente certo impacto internacional
e foi recebida com preocupação em Washington. Temia-se que o NBD
pudesse, no longo prazo, rivalizar com o Banco Mundial – até então o
único banco multilateral de desenvolvimento com mandato para operar em
escala mundial.
A experiência mostraria que a ameaça é menor do que parecia. Apesar
de alguns bons resultados iniciais, o NBD logo passou a enfrentar
contratempos, resultantes em parte do quadro político e das relações
internacionais dos países fundadores, mas principalmente de deficiências
internas do banco. A percepção de que o novo banco estava com
desempenho aquém do esperado foi se disseminando aos poucos. E não foi
sem razão que, em novembro de 2018, Jim O´Neill, criador do acrônimo
BRICs, observou “que o banco dos BRICS tem sido bastante decepcionante
até agora – quase anônimo”.2

1. Governança e primeiros passos


No início, tudo parecia correr bem e mais rapidamente do que se poderia
prever. Em apenas um ano, completou-se a ratificação pelos cinco países
dos acordos para estabelecimento do NBD e do ACR, assinados em
Fortaleza, em 15 de julho de 2014.3 No Brasil, a ratificação na Câmara e no
Senado teve apoio tanto da base do governo como da oposição. Em 3 de
julho de 2015, o Convênio Constitutivo do NBD entrou em vigor. A reunião
inaugural do Conselho de Governadores do banco realizou-se em Moscou,
no dia 7 de julho.4
A governança do NBD, tal como definida no Convênio Constitutivo, é
de modo geral bastante tradicional, comparável à de outros organismos
financeiros multilaterais. O Conselho de Governadores é a autoridade
máxima do banco, integrado por um governador e um governador alterno
designados por cada país-membro; o governador deve ter obrigatoriamente
nível ministerial.5 Os cinco fundadores escolheram se fazer representar no
Conselho por seus ministros de Finanças. A Diretoria é responsável pela
condução das operações gerais do banco e exerce todos os poderes a ela
delegados pelo Conselho de Governadores.6 Os seus integrantes, com
algumas exceções, são funcionários de escalão médio dos ministérios de
Finanças. A Administração do NBD, composta de um presidente e quatro
vice-presidentes, residentes na cidade-sede do banco, Xangai, é quem de
fato conduz as atividades do banco em todos os aspectos, seguindo um
organograma e uma divisão de responsabilidades aprovados pela Diretoria.7
Por exemplo, o vice-presidente brasileiro, cargo que ocupei até outubro de
2017, é responsável pelas áreas de risco, pesquisa, estratégia, parcerias e
novos membros.
Uma singularidade da governança do NBD é o fato de a Diretoria ser
não residente e trabalhar em tempo parcial a partir das capitais dos países-
membros. Esse arranjo não é muito frequente em organismos financeiros
internacionais. A Diretoria do Banco Mundial e a do FMI, da qual fiz parte,
residem em Washington desde a criação dessas instituições. A maioria dos
bancos multilaterais criados posteriormente – o Banco Interamericano de
Desenvolvimento, o Banco Asiático de Desenvolvimento, o Banco Europeu
de Reconstrução e Desenvolvimento, o Banco Africano de
Desenvolvimento, entre outros – seguiram esse mesmo modelo. O NBD e o
Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura – Asian Infrastructure
Investment Bank – AIIB, estabelecido pouco depois sob comando da China,
optaram por Diretorias não residentes.8
Essa questão, diga-se de passagem, foi objeto de controvérsia entre John
Maynard Keynes e Harry Dexter White na época da constituição do FMI e
do Banco Mundial. Keynes opunha-se a Diretorias residentes, aduzindo
entre outros os argumentos de que representariam gastos desnecessários e
tenderiam a ficar isolados dos centros de decisão nos seus países.9 Mas,
nesse ponto, como na grande maioria dos outros, prevaleceu a opinião de
White, favorável a Diretorias residentes como contraponto político à
Administração.10 White não tinha necessariamente os melhores argumentos,
mas representava o poder incontrastável dos Estados Unidos e levou quase
sempre a melhor nos inúmeros embates com Keynes.
Nos diversos contatos que mantive com presidentes e vice-presidentes
de bancos multilaterais de desenvolvimento após a minha mudança para
Xangai, observei que era unânime a preferência por Diretorias não
residentes. As referências aos diretores residentes eram sempre pouco
lisonjeiras. Representavam, segundo meus interlocutores, um custo para a
instituição e atrapalhavam o trabalho da Administração. Eu, que passara
mais de oito anos como membro de uma Diretoria residente em
Washington, não fazia a menor ideia de que éramos tão pouco apreciados
entre as Administrações de tantas instituições. Devo dizer que essa
unanimidade me pareceu suspeita; algo de positivo os diretores residentes
estavam, de certo, fazendo. A verdade é que as Diretorias residentes
funcionam, de maneira geral, melhor do que as não residentes como
contrapeso e instância de controle das Administrações. Tendo estado dos
dois lados desse balcão, dou mais razão a White do que a Keynes nesse
ponto.
Outra singularidade da governança do NBD é a distribuição equitativa
do capital e do poder de voto, com cada um dos sócios fundadores detendo
20% do total. Nenhuma das principais instituições financeiras multilaterais
apresenta essa característica. No NBD, nenhum país desempenha o papel
dominante que os Estados Unidos têm no FMI e no Banco Mundial ou a
China, no AIIB. Nessas organizações, Estados Unidos e China têm poder de
veto sobre diversas decisões cruciais. Durante a negociação do Convênio
Constitutivo do banco, houve a preocupação de evitar a exigência de
consenso ou unanimidade para qualquer decisão, pois isso implicaria
conferir poder de veto a cada um dos cinco membros. A intenção era boa.
Porém, como explico mais adiante, permitiu-se na prática que vigorasse a
exigência de consenso para todas ou quase todas as decisões. Assim, o
NBD passou a ter, na prática, cinco “Estados Unidos”, com implicações de
que tratarei na sequência.
Quando cheguei a Xangai, em julho de 2015, estávamos começando
praticamente do zero. Tínhamos o Convênio Constitutivo e um andar
praticamente vazio de um prédio no distrito financeiro de Pudong. Os
primeiros passos foram dados com dificuldade, mas os resultados iniciais
pareceram promissores. Ao longo do primeiro ano de operações,
conseguimos aprovar na Diretoria as principais políticas do banco – as
políticas de empréstimo, as de tesouraria e administração de riscos, as
salvaguardas ambientais e sociais, as políticas de recursos humanos e
recrutamento, entre outras. As primeiras parcelas do capital do NBD foram
pagas pelos países fundadores. Rússia e China resolveram, inclusive,
antecipar o pagamento da segunda parcela do capital, uma demonstração
adicional de apoio ao banco.
Outro sucesso no primeiro ano foi a preparação e negociação, seguida
de aprovação pela Diretoria, da primeira leva de projetos. Foram aprovados
cinco projetos, um para cada um dos países fundadores, todos eles no
campo da energia renovável, seguindo orientação recebida dos líderes dos
BRICS por ocasião da cúpula de Ufa, na Rússia, em julho de 2015.
Cumpriu-se para a maioria desses projetos a meta, fixada pelo presidente do
NBD, de realizar em menos de seis meses a avaliação, negociação e
aprovação dos empréstimos. Isso foi possível, claro, porque os sócios
fundadores nos ajudaram, apresentando na maioria dos casos projetos
sólidos, em estágio avançado de preparação. Cumpriu-se, também, o
objetivo de começar a caracterizar o NBD como um “banco verde”, voltado
para o apoio de projetos sintonizados com sustentabilidade ambiental.
A mesma preocupação se refletia na intenção de explorar ativamente o
mercado de bônus verdes, isto é, títulos destinados exclusivamente a gerar
recursos para projetos que preservam ou recuperam o meio ambiente. Em
linha com esse objetivo – e também com o objetivo de operar, em parte,
com as moedas nacionais dos países-membros –, a primeira emissão, em
julho de 2016, foi um bônus verde de cinco anos, denominado em yuan, no
valor de 3 bilhões (equivalente na época a cerca de US$ 450 milhões).11 A
operação foi muito bem-sucedida: o bônus foi oversubscribed (subscrito em
excesso) mais de três vezes, e o cupom ficou em 3,07%, apenas
ligeiramente maior do que a taxa de juro paga pelo Banco de
Desenvolvimento da China. Esse sucesso refletiu o otimismo inicial com o
NBD e, sobretudo, o apoio consistente do governo e dos bancos chineses à
emissão.
Em suma, atuando de forma consistente com seu mandato, o NBD
começou a se configurar como um banco verde, do lado do ativo e do
passivo. No início, o banco chegou a ser 100% verde em termos de projetos
aprovados e de funding no mercado.12

2. Estratégia geral
Em paralelo a essas atividades operacionais, foi preparada a estratégia geral
do NBD para o período 2017-2021, além dos planos e procedimentos para a
entrada de novos países-membros. Após diversas discussões minuciosas
com o Conselho de Governadores e sobretudo com a Diretoria, a estratégia
geral foi aprovada, em princípio, em abril de 2017.13 Os planos para a
expansão do número de membros também foram discutidos em detalhe com
o Conselho de Governadores e, em especial, a Diretoria. A Administração
do NBD fez, em 2016 e 2017, contatos preliminares com cerca de setenta
países de todas as regiões do mundo para sondar o possível interesse em
entrar para o banco. A receptividade foi boa, mas o processo avançaria
pouco, em razão da resistência cerrada da Rússia, ponto ao qual voltarei na
sequência. Apesar dessa resistência, o Conselho de Governadores aprovou,
também em abril de 2017, um documento que estabeleceu os termos,
condições e procedimentos para a admissão de novos países-membros.14
A ideia força que perpassava toda a estratégia do banco era a de que se
estava criando uma instituição multilateral “nova”, capaz de honrar o
próprio nome. O ponto de partida era o modelo inaugurado com o Banco
Mundial em que governos nacionais se cotizam para criar instituições
financeiras capazes de alavancar capital e apoiar o desenvolvimento
econômico e social. Reconhecia-se que tínhamos muito que aprender com
os bancos multilaterais de desenvolvimento mais antigos, não só com o
Banco Mundial, como também com os diversos bancos regionais existentes.
O NBD assinou inclusive diversos acordos de cooperação e parceria com
esses bancos. Porém, não se perdia de vista que era preciso buscar uma
nova filosofia e novas práticas. Afinal, por que os BRICS teriam se dado ao
trabalho e à despesa de criar um banco de desenvolvimento se estivessem
satisfeitos com os existentes?
A estratégia adotava, implicitamente, um princípio taoista: “Conceitos
só existem como contrastes.” Os planos da nova instituição eram
apresentados, em geral, em contraste explícito com a atuação dos bancos
mais antigos. Embora a linguagem fosse diplomática, havia a preocupação
clara em indicar que o NBD evitaria práticas tradicionais que pareciam
superadas ou problemáticas para os países em desenvolvimento. Vale a pena
resumir as principais inovações pretendidas, ainda que a grande maioria
delas não tenha ainda se concretizado, como veremos mais à frente.
O que haveria então de novo no Novo Banco de Desenvolvimento? O
Convênio Constitutivo estabelecera como mandato do banco mobilizar
recursos para projetos de infraestrutura e de desenvolvimento sustentável
nos BRICS e em outros países emergentes e em desenvolvimento.15 A
estratégia geral especificou a infraestrutura sustentável como foco do
banco, estabelecendo que cerca de 2/3 dos projetos aprovados no período
2017-2021 seriam nessa área. Infraestrutura sustentável foi definida, de
forma ampla, como aquela que incorpora critérios de sustentabilidade em
todas as fases, desde a concepção até a operação – critérios não só
econômico-financeiros, mas também sociais e ambientais. No terço
remanescente, estaria incluída a infraestrutura tradicional, além de projetos
de desenvolvimento sustentável voltados, por exemplo, para controle da
poluição, conservação da biodiversidade e adaptação à mudança climática.
O conceito de infraestrutura sustentável permitia combinar as duas
dimensões do mandato do NBD: infraestrutura e desenvolvimento
sustentável.16
Mesmo nos projetos de infraestrutura tradicional, o NBD aplicaria,
como fazem ou deveriam fazer todos os bancos multilaterais, requerimentos
sociais e ambientais para controlar efeitos negativos sobre grupos sociais ou
o meio ambiente. A diferença é que os projetos de infraestrutura sustentável
iriam além da mera mitigação de efeitos colaterais. O seu objetivo central
seria produzir impactos positivos em termos sociais e ambientais. Para tal,
decidiu-se que o banco centraria esforços em setores como energia
renovável – solar, eólica, pequenas hidroelétricas – eficiência energética,
transporte limpo, mobilidade urbana, saneamento e gestão de recursos
hídricos e de rejeitos sólidos.
Os bancos multilaterais existentes já estavam operando na área de
infraestrutura sustentável, mas a falta de foco da maioria deles, isto é, a
tendência a operar em um grande número de áreas, tornava sua atuação
menos eficaz. O Banco Mundial, notadamente, buscava cobrir todas as
posições, desde portos, estradas, aeroportos até a salvação do tigre
siberiano. A estratégia do NBD explicitava a intenção de evitar o “estilo
universal” dos bancos multilaterais tradicionais que buscam cobrir uma
enorme variedade de atividades e setores, em favor da concentração de
energias e recursos no apoio a um grupo de setores mais limitado em
escopo, mas amplo o suficiente para permitir que o banco encontrasse
projetos viáveis e desse contribuição relevante ao desenvolvimento
econômico e social.17
O NBD pretendia também incorporar a velocidade em todas as
atividades. A intenção declarada na estratégia era combinar a rapidez e
eficiência do setor privado com o rigor técnico, a elevada qualidade e o
compromisso com o bem público que caracterizam os bancos multilaterais.
Para tal, o banco se comprometia, por exemplo, a evitar “burocracia
desnecessária” na aprovação e implementação de projetos. Isso permitiria
concretizar a já mencionada meta de levar menos de seis meses, em média,
entre a identificação de projetos e sua aprovação na Diretoria.18 Esse prazo
é consideravelmente inferior ao que se observa em bancos multilaterais
mais antigos, como o Banco Mundial e o BID.19
Outro objetivo importante era emprestar, na medida do possível, nas
moedas nacionais dos países-membros, evitando risco cambial para os
tomadores e contribuindo para o desenvolvimento dos mercados de capitais
domésticos. A experiência mostrava que a prática mais comum dos bancos
multilaterais tradicionais de emprestar em dólares causava dificuldades
recorrentes na implementação dos projetos. Projetos de infraestrutura e
desenvolvimento sustentável são tipicamente de longo prazo e é, em geral,
difícil para os tomadores contratar hedge cambial para a duração dos
contratos. Além disso, a maioria desses projetos são no setor non-tradeable
da economia e não proporcionam o “hedge natural” decorrente da geração
de receitas em moeda estrangeira. Para viabilizar empréstimos em moedas
nacionais sem assumir riscos cambiais excessivos, o NBD planejava
desdolarizar em parte sua captação no mercado e explorar possiblidades de
emitir títulos nas moedas nacionais dos países-membros. Esse processo já
havia começado com a bem-sucedida emissão de um bônus em moeda
chinesa.
A estratégia frisava, além disso, que o NBD se diferenciaria do modelo
intervencionista e “salvacionista” de alguns dos bancos tradicionais,
notadamente o Banco Mundial. De novo, a linguagem adotada era
diplomática, mas ficava claro que não se pretendia ensinar e muito menos
tutelar os países tomadores, e sim respeitar suas prioridades e estratégias de
desenvolvimento. A intenção era que uma relação de igualdade, respeito
mútuo e confiança com os países-membros permeasse todos os aspectos das
políticas e operações do NBD. O respeito à soberania nacional seria de
importância central.20 O NBD não imporia condicionalidades e nem
pretendia prescrever políticas ou reformas regulatórias e institucionais aos
países tomadores. Ao contrário, tomaria como ponto de partida, sempre que
possível, as leis e os procedimentos nacionais na implementação dos seus
projetos.21
No que diz respeito a novos países-membros, os planos eram
gradualistas, mas ambiciosos. Os primeiros dois anos do banco haviam sido
dedicados à montagem da instituição, incluindo a elaboração e aprovação
das políticas operacionais básicas, a contratação de funcionários, a entrada
das primeiras parcelas de capital e a emissão do primeiro bônus. Essa
decisão fora tomada, explicava a estratégia, porque isso facilitaria a
elaboração de políticas que se diferenciariam de modo fundamental das
políticas dos bancos multilaterais existentes. Estabelecida a estrutura inicial,
seria dada a largada para a expansão do número de países-membros a partir
de meados de 2017. A ideia era incorporar aos poucos países de diferentes
tamanhos, níveis de desenvolvimento e regiões do mundo. Gradualmente,
entrariam no NBD países das Américas, da África, do Oriente Médio, da
Europa e da Ásia. Ao final do período de cinco anos coberto pela estratégia,
o NBD seria um banco global presente em todos os cantos do planeta.22
O papel aceita tudo, diria um cínico. E, de fato, há uma grande distância
entre definir e negociar todos esses objetivos meritórios e executá-los na
prática. Porém, o fato de a estratégia ter sido discutida passo a passo com o
Conselho de Governadores e praticamente parágrafo a parágrafo com a
Diretoria alimentava a percepção de que existia um compromisso real com
esses objetivos. Ademais, ela havia sido elaborada com a participação de
todos os integrantes da Administração e refletia o que o banco estava
procurando fazer, na prática, desde julho de 2015.
A percepção, contudo, se revelaria em grande medida infundada. Os
objetivos traçados na estratégia não eram irrealistas, nem excessivamente
ambiciosos, mas a capacidade de execução do banco ficaria muito aquém
do necessário para alcançá-los ou mesmo começar a alcançá-los.

3. Problemas internos
Como o passar do tempo foi ficando cada vez mais claro para mim que a
Administração do banco não estava à altura do desafio com que se
defrontava. Não havia, primeiramente, real aderência com o projeto que o
banco deveria encarnar. Eu era o único dos seus cinco integrantes que
participara do processo BRICS e que tinha, assim, uma noção precisa do
que se buscava alcançar com a criação de um novo banco multilateral de
desenvolvimento. O vice-presidente chinês, Xian Zhu, vinha de uma longa
carreira no Banco Asiático de Desenvolvimento e no Banco Mundial;
conhecia bem as qualidades e limitações desses e de outros bancos
multilaterais. Era inteligente e percebia os problemas incipientes do NBD;
ficara encarregado da área crucial de projetos e da supervisão dos
escritórios regionais que o banco viesse a criar.23 No entanto, apesar de
chinês, não era especialmente trabalhador – reflexo talvez de longa
permanência na burocracia do Banco Mundial. Já para os demais
integrantes da Administração, o NBD era simplesmente mais um emprego.
A falta de sentido de missão não era o único problema. O pior é que
dois vice-presidentes simplesmente não estavam qualificados para o cargo.
O sul-africano, Leslie Maasdorp, responsável por finanças e orçamento, não
tinha suficiente preparo técnico, nem capacidade administrativa e não se
dedicava às suas responsabilidades. Passava grande parte do tempo em
viagens e eventos, abandonando suas atribuições. O seu despreparo para o
cargo tornou-se rapidamente evidente. O caso do vice-presidente russo,
Vladimir Kazbekov, era ainda mais grave. Antes de vir para Xangai, ele
tinha sido um funcionário de nível intermediário do banco de
desenvolvimento da Rússia, encarregado de relações internacionais e
organização de eventos. No NBD, ficaram sob sua responsabilidade as áreas
de recursos humanos, comunicação, informática e administração. Todas
essas áreas sofreram com a sua falta de competência profissional. Por
exemplo, a maioria dos setores do banco ficaram estrangulados pela falta de
recursos humanos – inclusive a própria área de recursos humanos. O
processo de recrutamento foi lento, ineficiente e pouco transparente, e os
funcionários selecionados de qualidade muito desigual.
A comunicação do NBD também foi, desde o início, outro grave
problema. O NBD tem pouca presença pública e é praticamente
desconhecido, “anônimo”, como notou Jim O’Neill. Ao vice-presidente
russo falta não apenas competência profissional, mas também integridade
pessoal. No período de mais de dois anos em que estive no banco,
Kazbekov violou o Convênio Constitutivo, o código de conduta e seu
próprio contrato várias vezes. Ao comportar-se repetidamente de maneira
irresponsável, ele produzia grande estrago dentro da instituição.
O principal problema, entretanto, é o presidente do banco, o indiano
K.V. Kamath. Trata-se de um profissional experiente e inteligente, já de
certa idade, que vem de uma carreira ilustre na área bancária comercial da
Índia. Porém, chegou ao NBD em regime de pré-aposentadoria e sua
dedicação ao banco é limitada. Chega às 9h e sai às 17h, religiosamente.
Quase não sai do banco e reluta em viajar. Tem a agenda leve, com poucos
visitantes. Pouco faz para projetar a instituição e realizar contatos externos.
A sua capacidade de comunicação é pobre e a sua visível indiferença
dificulta a mobilização e motivação dos funcionários do banco. Falta-lhe
curiosidade intelectual e ele mostra pouco ou nenhum entusiasmo com o
NBD como projeto. Transmite com frequência a impressão de que está
contando os dias para o fim do seu mandato. Além disso, é pessoa tímida e
de pouca coragem. Assusta-se com facilidade e nunca entra em bola
dividida. Com esse perfil, não consegue exercer autoridade e liderança. Só
por isso, claro, os vice-presidentes russo e sul-africano podiam atuar da
maneira referida.
Os funcionários de terceiro e quarto escalão dos ministérios dos países-
membros não demoraram muito a perceber a fraqueza do presidente do
NBD, e vários deles passaram a pressioná-lo sem dó nem piedade. Para
aprovar políticas e decisões propostas pela Administração, faziam
exigências minuciosas, nem sempre relevantes ou bem pensadas. Não
ficava claro se esses funcionários tinham a cobertura de autoridades mais
altas para proceder como procediam, mas o presidente não pagava para ver.
Acovardado, empenhava-se para acomodar, de alguma forma, a grande
maioria das exigências que chegavam das capitais, mesmo as mais
estapafúrdias.
Quando da negociação do Convênio Constitutivo, recorde-se, houve a
preocupação de evitar que as decisões do NBD viessem a depender de
unanimidade ou consenso.24 Ficou estabelecido que a grande maioria das
decisões seria tomada por maioria simples; em alguns casos, previu-se o
requisito de supermaioria qualificada (de 2/3 do poder de voto total) ou
especial (quatro dos membros fundadores e 2/3 do poder de voto total).25
Como cada um dos países fundadores possui 20% do poder de voto,
nenhum deles tem poder de veto sobre decisão alguma. Evidentemente, a
exigência de unanimidade ou consenso equivaleria a conferir poder de veto
a cada um dos cinco sócios.
Ocorre que, na prática, a fraqueza do presidente do NBD permitiu que
se fosse criando uma tradição de só resolver quando houvesse unanimidade.
Muito raramente decisões eram tomadas com a discordância de algum dos
cinco. Em consequência, os assuntos trazidos à Diretoria e ao Conselho de
Governadores, mesmo os de menor importância, se arrastavam de maneira
inacreditável. A velocidade proclamada na estratégia geral do NBD, assim
como em diversos pronunciamentos do próprio presidente do banco, virou
letra morta.
A raiz dessas dificuldades estava na falta de experiência política do
presidente Kamath. Logo ficou evidente que ele não sabia lidar com os
países-membros. No período em que estive no NBD, ele não estabeleceu
contato regular com os ministros de Finanças dos países – com a exceção
do ministro do seu país natal, a Índia. As suas interações com os países
ficavam então limitadas, em geral, a funcionários de escalão médio dos
governos. Acabou aprisionado pelas burocracias dos cinco países.
O contraste com Jin Liqun, o chinês que preside o AIIB, é
constrangedor para o NBD. O AIIB, criado um pouco depois que o NBD,
tem um presidente dinâmico e criativo, que rapidamente conduziu a
instituição a uma posição de proeminência, lançando uma sombra profunda
sobre o banco estabelecido pelos BRICS. Apesar do seu foco regional – um
banco asiático que compete em princípio com o Banco Asiático de
Desenvolvimento, no qual o Japão e os Estados Unidos têm posição
proeminente – o AIIB passou a desempenhar o papel global que o NBD
estava desenhado para exercer. Enquanto isso, sob a liderança (ou falta de
liderança) do presidente Kamath, o NBD foi se cristalizando em posição
secundária. O relativo insucesso do NBD não pode, na minha avaliação, ser
atribuído a um maior apoio da China ao AIIB. Não faltou ao nosso banco
apoio do governo central de Beijing ou do governo municipal de Xangai.
Ao contrário, muito do que se conseguiu nos anos iniciais se deveu à ajuda
sistemática e profissionalmente sólida das autoridades chinesas.
A minha posição individual, registre-se também, não era das mais
confortáveis. Eu não reunia, a bem da verdade, todas as qualidades
requeridas para a função, em especial para a área de risco. Tinha muita
experiência e conhecimento de negociações multilaterais e da natureza do
trabalho em organismo internacional, depois de oito anos no FMI, no G20 e
no processo BRICS, mas não tinha conhecimento prático de bancos de
desenvolvimento. Procurava compensar essas limitações esforçando-me
para estudar e me colocar a par dos temas sob minha responsabilidade, mas
o processo era demorado e árduo. O meu temperamento, reconheço,
também não ajudava. Depois de algum tempo e repetidas frustrações, reagia
com impaciência e certa aspereza à falta de dedicação e responsabilidade
dos meus colegas russo e sul-africano. Com o russo, em particular, que era
não só incompetente como agressivo, as desavenças se multiplicaram, em
especial quando ele começou a se valer das suas atribuições nas áreas de
recursos humanos e comunicação para, por incrível que pareça, retaliar
contra seus colegas, obstruindo em especial a atuação da vice-presidência
brasileira no desempenho de suas atribuições. O vice-presidente chinês, que
tinha competência e experiência pertinente, também perdia frequentemente
a paciência com o russo e o sul-africano, cujo despreparo e incompetência
também afetavam diretamente o trabalho da área de projetos.26 O ambiente
nas reuniões internas da Administração não era dos mais construtivos, para
dizer o mínimo. O presidente Kamath assistia basicamente inerte a todos
esses conflitos, furtando-se a exercer a liderança que lhe cabia.
As limitações do comando do NBD contribuíram para contratações
infelizes para o corpo técnico do banco. É o que costuma ocorrer. Como se
diz em inglês, the rot begins at the top (o apodrecimento começa no topo).
Os cargos de diretor-geral e chefe de divisão, os mais altos do staff, foram
ocupados, com algumas exceções, por pessoas de qualificação e
competência claramente insuficientes. O funcionamento do banco sofria
com isso em praticamente todos os setores. Eu mesmo contribuí, devo
confessar, para contratações equivocadas, ao insistir na escolha de um
diretor-geral de estratégia, o brasileiro Sergio Suchodolski, que se revelaria
despreparado e inoperante. Como atenuantes para o meu erro, menciono
apenas que tive sobre ele referência muito positiva de Luciano Coutinho,
ex-presidente do BNDES, de quem o candidato à posição havia sido chefe
de gabinete. Houve também alguma pressa na escolha, pois me preocupava,
depois do impeachment da presidente Dilma, a possibilidade de que o
governo brasileiro resolvesse patrocinar a contratação para essa posição de
alguém capaz de criar problemas dentro do banco. A baixa qualidade dos
funcionários do governo Temer com quem passei a interagir só fizera
aumentar essa preocupação
Volto às consequências do impeachment na sequência. Por ora, quero
deixar registrada a minha surpresa e decepção diante da inépcia ou
despreparo de grande parte dos funcionários russos e indianos que
ingressaram no NBD, começando, obviamente, pelo presidente indiano e o
vice-presidente russo. É que nos meus mais de oito anos no FMI, aprendera
a admirar a qualidade dos diretores e assessores da Rússia e da Índia. As
cadeiras russa e indiana na Diretoria Executiva do FMI estavam entre as
melhores, mais atuantes e mais preparadas. Não esperava que seria tão
diferente em Xangai. O que salvava um pouco a situação era o desempenho
algo melhor do vice-presidente chinês e de alguns funcionários chineses,
inclusive na minha vice-presidência, que se destacavam pelo afinco e pela
seriedade. Além disso, os brasileiros, embora poucos e relativamente
jovens, trabalhavam bem e com grande dedicação, excetuado o já referido
diretor-geral de estratégia. Para esses funcionários chineses e brasileiros,
pelo menos aqueles lotados na vice-presidência brasileira, hora extra não
remunerada e trabalho em feriado ou fim de semana eram parte da rotina e
ninguém estranhava.
As críticas e os comentários anteriores, em especial os que fiz sobre
meus colegas de Administração, talvez pareçam excessivamente ad
hominem. Não se deve perder de vista, entretanto, que as qualidades
pessoais da Administração são cruciais para uma instituição como o NBD,
que começava do zero. Uma instituição já estabelecida e consolidada pode
suportar por algum tempo um comando medíocre ou inoperante. No caso do
nosso banco, onde tudo estava por se fazer, era preciso que a Administração
e a equipe técnica fossem não só competentes, mas dedicadas, dispostas
inclusive a sacrifícios pessoais. Não era o que se via na maioria dos casos,
infelizmente, em especial nos escalões mais altos do banco.

4. Contratempos políticos
As dificuldades do NBD não eram apenas internas ao banco.
Enfrentávamos, além disso, acontecimentos que afetaram as relações
internacionais e o quadro político dos países integrantes dos BRICS e que
repercutiam de alguma maneira sobre o banco.
Um deles foi a deterioração das relações entre a China e a Índia. A
China lançara em 2013 a iniciativa Um Cinturão, Uma Rota (One Belt, One
Road Initiative – OBOR) envolvendo expressivos investimentos em
infraestrutura na Ásia, África, Europa e outras regiões. A escala e ambição
dessa iniciativa preocuparam a Índia, especialmente um projeto de corredor
econômico China-Paquistão, que atravessava território contestado com a
Índia. Em 2017, chegou a haver escaramuças na fronteira entre a Índia e a
China. Os Estados Unidos – sempre interessados em atrair a Índia para uma
aliança quadripartite com Japão e Austrália, objetivando a “contenção” da
China – buscavam naturalmente tirar partido dessas discordâncias e
incidentes. As relações entre China e Índia melhorariam posteriormente,
mas o conflito entre os dois países afetou o processo BRICS em 2017,
dificultando o planejamento da cúpula daquele ano, que se realizou na
China, em setembro, na cidade de Xiamen. Também não podia deixar de ter
algum efeito sobre o banco. Por exemplo, quando o governo chinês
procurou o NBD para que assinássemos um memorando de entendimento,
com outros bancos multilaterais, indicando a intenção de apoiar e participar
da OBOR, a Índia se opôs tenazmente, embora o memorando não fosse
legalmente vinculante e tivesse caráter meramente declaratório. Depois de
muitas idas e vindas, e suando frio, o presidente Kamath colocou a questão
em votação e só a Índia se opôs. Foi a única vez, nos mais de dois anos em
que estive no banco, em que alguma decisão foi tomada sem consenso.
Mais graves para o NBD foram as consequências do conflito entre
Rússia e Ocidente desde a crise na Ucrânia e a anexação da Crimeia em
2014. Sob liderança dos Estados Unidos, mais de 40 países, incluindo todos
os desenvolvidos, passaram a aplicar sanções contra a Rússia. O país perdeu
acesso a diversas fontes de financiamento internacional. Ficou
impossibilitado, por exemplo, de tomar empréstimos no Banco Mundial e
no Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento (BERD). Até então,
a Rússia recorria a financiamentos do Banco Mundial e era o principal
cliente do BERD. Como os países desenvolvidos mantêm ampla maioria
nesses bancos multilaterais, não foi difícil para eles vetar empréstimos à
Rússia.
Inesperado, entretanto, foi o que ocorreu, pelo menos em certo período,
no AIIB, que é comandado pela China, como mencionei. Todos os
principais países europeus haviam ingressado no AIIB, a despeito, diga-se
de passagem, das objeções dos Estados Unidos. A exemplo do que ocorre
em instituições multilaterais mais antigas, os europeus passaram a atuar em
bloco no AIIB e, em certo momento, objetaram a que o banco realizasse
operações com a Rússia. O presidente Jin Liqun – assim me informaram os
representantes russos no NBD – estava de alguma maneira aceitando esse
veto, embora os europeus não tivessem votos suficientes no AIIB para
bloquear operações. A indignação dos russos com a situação era tal que
ocorreu um episódio inusitado. Em reunião ministerial dos BRICS, em
Xangai, em junho de 2017, com algo como 30 pessoas na sala, o ministro
de Finanças da Rússia, Anton Siluanov, dirigindo-se ao ministro chinês,
reclamou enfaticamente do que estava ocorrendo no AIIB, acrescentando
que essa situação só fazia aumentar a relutância da Rússia em aceitar que
começasse a entrada de novos países-membros no NBD.
Na verdade, o problema era anterior. Desde o início das operações do
banco, a Rússia tentava obstruir os planos de ampliação do número de
membros. Os demais sócios fundadores eram favoráveis à ampliação,
particularmente o Brasil e a China. A Índia, inicialmente favorável, passou
a temer que a China patrocinasse a entrada do Paquistão e perdeu
entusiasmo pela ideia, mas não chegava a obstruir e, às vezes, até ajudava.
A África do Sul não parecia seguir uma linha consistente e tendia à
neutralidade.
Dentro do banco, a força propulsora era a vice-presidência brasileira. O
assunto estava na minha órbita e dedicamos muito tempo à preparação das
condições e critérios para a entrada de novos membros, assim como ao
trabalhoso planejamento e realização dos contatos iniciais com as
autoridades de um grande número de países em 2016 e 2017. Mas cada
passo era um parto. Os representantes russos inventavam a cada momento
objeções e manobras burocráticas. Sentindo a tibieza do presidente do
banco, os russos foram endurecendo aos poucos as objeções.
Transparência, como se sabe, nunca foi o ponto forte dos russos. Na
época da negociação, nunca ficara totalmente claro porque tanto resistiam à
ideia de criar o banco, assim como o fundo monetário dos BRICS. Até a
cúpula dos BRICS em Durban, no início de 2013, os russos pareciam opor-
se a essas iniciativas. Só após Durban, a Rússia se engajou plenamente no
processo. Depois da criação do NBD, logo sentimos a relutância russa à
entrada de novos membros. Mais uma vez, não havia diálogo franco sobre
as razões dessa relutância. Com o tempo, foi possível perceber, entretanto,
que havia dois motivos para a resistência deles à ampliação do NBD.
Primeiro, a Rússia temia a entrada de seus inimigos no banco. Objetava-se,
sobretudo, no início mais discretamente, depois com mais clareza, à
participação de países desenvolvidos, particularmente daqueles que se
destacavam na aplicação de sanções contra a Rússia. Mas as objeções se
estendiam, também, ainda que de maneira menos enfática, a países em
desenvolvimento. Os russos passavam a impressão de não querer no banco
países que pudessem concorrer com eles no acesso a empréstimos do NBD.
Ironicamente, o país que até início de 2013 se mostrava o mais relutante em
concordar com a criação de um novo banco pelos BRICS, convertera-se no
mais ansioso em utilizá-lo para seus próprios fins.
Parte do problema estava, aparentemente, na natureza do processo
decisório na Rússia. Os representantes do país na Diretoria do NBD, assim
como o vice-presidente russo, viviam no temor de desagradar ao Kremlin.
Não tinham acesso aos altos escalões do governo, nem noção precisa de
como pensava o presidente Putin. Por via das dúvidas, faziam tudo para
bloquear. Em reunião formal da Diretoria, pressionado por argumentos
meus e de seus colegas de Diretoria, o diretor russo, Sergei Storchak,
deixou escapar que não podia concordar com a discussão de listas de
possíveis países-membros, pois “o meu líder [Putin] é imprevisível”. A
China, por sua vez, acabava acomodando em alguma medida as objeções da
Rússia, em parte, suponho, para compensar o que estava ocorrendo no
AIIB, em parte porque no plano estratégico-diplomático os dois países
haviam se aproximado muito, como decorrência dos choques com os
Estados Unidos, mesmo antes da eleição de Donald Trump.
Enquanto estive no banco, conseguimos alguns avanços em matéria de
novos membros, apesar dos obstáculos criados incansavelmente pelos
russos. Conseguimos, a muito custo, autorização do Conselho de
Governadores para iniciar contatos informais com potenciais interessados.
Fizemos ao longo de 2016 e 2017 sucessivas rodadas de reuniões com
autoridades de países da América Latina, do Caribe, da África, do Oriente
Médio, da Europa e da Ásia. Eu me valia, nesse processo, da experiência de
mais de oito anos na Diretoria do FMI e dos contatos que fizera nesse
período com ministros de Finanças e outros funcionários da área econômica
de muitos países. A receptividade ao NBD era variável, mas em meados de
2017 mais de 40 países haviam indicado interesse em prosseguir as
discussões, com muitos deles mostrando interesse em começar negociações
formais. Conseguimos também – de novo, a muito custo – aprovar no
Conselho de Governadores o já referido documento que estabelecia os
termos, condições e procedimentos para a entrada de novos membros.
Infelizmente, os russos logo inventaram que era preciso aprovar outro
documento, que estabeleceria os critérios para a seleção de países-membros
– mais um pretexto para prolongadas discussões na Diretoria. A verdade é
que a vice-presidência brasileira trabalhava intensamente para alcançar
resultados, afinal, relativamente modestos. Depois que fui afastado, em
outubro de 2017, o processo de ampliação do banco parece ter parado
completamente. O NBD permanece um clube de apenas cinco membros.
Enquanto isso, o AIIB, criado pouco tempo depois, conta com mais de 90
países-membros de todas as regiões do planeta, muitos dos quais países
desenvolvidos.
As crises econômicas e políticas na África do Sul e no Brasil também
contribuíram para enfraquecer o NBD. Na África do Sul, depois de
prolongada instabilidade política, denúncias de corrupção acabariam
levando à renúncia do presidente Zuma, que tivera papel importante no
processo BRICS, inclusive no lançamento das negociações formais para a
criação do NBD e do ACR na cúpula de Durban. Eu estava presente e posso
testemunhar de que sem o empenho dos sul-africanos, em especial do
presidente Zuma, teria sido difícil chegar à decisão de criar os dois
mecanismos e começar as negociações.
Mais importante, contudo, foi a crise brasileira e o impeachment da
presidente Dilma. Não quero passar a impressão, leitor, de que estou
“puxando a sardinha” para o lado brasileiro, mas gostaria de atestar, como
participante do processo desde o início em 2008, que o Brasil era o motor
dos BRICS. Embora a iniciativa original tenha sido da Rússia,27 o Brasil,
bem mais do que os outros quatro, se sobressaía pela capacidade de
formular, organizar e impulsionar o processo. Porém, com a crise que se
abateu sobre o governo Dilma a partir de 2015, a atuação do país sofreu
clara erosão. No governo Temer, o quadro piorou. Nunca se confirmaram os
rumores de que Temer se afastaria ou até abandonaria os BRICS e o banco
por eles criado, mas a participação brasileira se tornou bem menos
importante.
Dada a minha identificação com os governos Lula e Dilma, fiquei em
posição mais precária depois do impeachment. Já não tinha o mesmo acesso
e a mesma facilidade de diálogo com Brasília e podia temer que viesse de lá
alguma tentativa de me desestabilizar, ainda que eu tivesse mandato e
contrato até 2021 e não fosse demissível ad nutum. Isso acabaria
acontecendo, como relatarei28, mas ainda foi possível trabalhar
relativamente bem com Brasília, mesmo no governo Temer, enquanto o
Brasil se fazia representar na Diretoria do NBD por diplomatas de carreira.
Os embaixadores Luís Balduino e Carlos Cozendey continuaram
inicialmente nas posições de diretor e diretor alterno, respectivamente, para
as quais haviam sido nomeados no governo Dilma. Esses embaixadores
faziam parte do pequeno grupo de diplomatas que se destacaram no
processo BRICS e tinham, portanto, pleno conhecimento do que se
pretendia alcançar com a criação do banco.29 Infelizmente, acabaram
substituídos por economistas com pouca experiência e conhecimento
pertinentes e – o que é pior – cheios de noções preconcebidas e com pouca
disposição de aprender. A posição de diretor brasileiro passou a ser exercida
por Marcello Estevão, ex-funcionário do FMI, que em pouco tempo
revelaria inaptidão para o cargo. A sua atuação se caracterizava por
amadorismo e improvisação. Não foi só a representação brasileira que
perdeu qualidade. O Brasil, por acordo a que se chegou em Fortaleza,
exercia a primeira presidência da Diretoria30 e o Convênio Constitutivo
estabelecera que esse mandato seria de quatro anos.31 Com o diretor
brasileiro atuando de maneira atabalhoada, sofria não só o Brasil, mas a
Diretoria com um todo.32

5. O NBD acumula insucessos


Todos esses contratempos com as capitais eram inegavelmente difíceis de
enfrentar – mas não intransponíveis e nem inusitados. Afinal, todas as
instituições multilaterais sofrem volta e meia com os problemas políticos e
econômicos dos seus países-membros. Para enfrentá-los faltava, entretanto,
um ingrediente indispensável: uma Administração – e em especial um
presidente – dedicada, batalhadora e disposta a correr certos riscos. Não era
o que tínhamos, como vimos. Em consequência, o NBD foi acumulando
insucesso atrás de insucesso.
A finalidade precípua do banco, recorde-se, é apoiar projetos nas áreas
de infraestrutura e desenvolvimento sustentável. Também aqui os resultados
deixaram a desejar. Até certo ponto, é possível disfarçar os insucessos nessa
área. Em suas comunicações públicas, o NBD costuma destacar a
aprovação de projetos pela Diretoria. Informou-se que, nos primeiros três
anos, até junho de 2018, foram aprovados 21 projetos, em um valor total de
US$ 5,1 bilhões.33 Com nove projetos adicionais aprovados no segundo
semestre de 2018, o valor total chegou a cerca de US$ 8 bilhões.34 Apenas
quatro projetos foram aprovados no Brasil até fins de 2018, no montante de
US$ 621 milhões, ou 8% do total, o que reflete não só a crise econômica e
política no país, mas também a queda na qualidade da representação
brasileira na Diretoria do banco após a substituição dos diplomatas por
economistas amadores.35
Para um banco que está em fase inicial, o número e valor total dos
projetos aprovados pode parecer significativo à primeira vista. Mas as
aparências enganam. Mesmo nos países com mais projetos aprovados, a
presença do banco é mínima. A questão é que a aprovação de um projeto
pela Diretoria é apenas um passo, e não necessariamente o mais difícil, no
processo de sua concretização. Depois, é preciso negociar e assinar o
contrato e, em seguida, efetuar os desembolsos. Ora, os documentos
aprovados pela Diretoria do NBD são, geralmente, de caráter genérico e
deixam questões espinhosas para solução posterior. Por isso, a negociação e
assinatura dos contratos pode demorar muito, o que de fato aconteceu com
boa parte dos projetos. Em alguns casos, a assinatura do contrato nunca
chegou a ocorrer, e projetos aprovados na Diretoria transformaram-se em
“esqueletos” – sem ser, entretanto, retirados da lista de divulgação. E, mais
importante, mesmo quando os contratos são assinados, o que se verifica é
uma grande demora em desembolsar. Assim, é ilusória a velocidade do
NBD em aprovar projetos na Diretoria, alardeada na estratégia do banco e
em pronunciamentos do seu presidente.
O dado constrangedor é que, depois de três anos, o desembolso total
alcançava o valor ínfimo de US$ 226 milhões.36 Um plano caro e
ambicioso de criar um banco de alcance global cristalizou-se até agora em
um clube de cinco sócios, que basicamente recebe capital dos membros,
paga funcionários e despesas operacionais e estaciona os recursos
excedentes em depósitos em bancos de primeira linha ou outros
investimentos seguros e pouco rentáveis. Nada a ver, claro, com o que se
pretendia ao criar o NBD. O quadro pode se modificar no futuro – e espero
que se modifique – mas, infelizmente, essa foi a realidade do banco nos
seus primeiros anos de existência.
Registre-se, ainda, a pouca transparência do NBD, que fornece
informações muito limitadas sobre os projetos que aprova. Não é possível
verificar em que medida o banco está respeitando, na prática, os princípios
estabelecidos no Convênio Constitutivo, na estratégia geral e nos
pronunciamentos da Administração. Até onde sei, não foi definido como
operacionalizar e acompanhar a execução da estratégia e o foco em
infraestrutura sustentável. Nem se sabe, concretamente, como o NBD atua
em cada projeto para garantir o respeito à sustentabilidade ambiental e
social. Há pouca informação sobre os projetos na página do NBD na
internet e nos documentos oficiais do banco.37
Outro objetivo não realizado, ou realizado apenas de modo parcial, foi o
de operar com as moedas dos países-membros. Apenas três projetos dos
aprovados até junho de 2018, no valor equivalente a US$ 680 milhões,
estão denominados em yuan.38 Nada foi feito nas moedas dos demais
países, a despeito dos planos anunciados.39
Também ficou paralisada, desde 2016, a emissão de bônus no mercado.
Depois da emissão bem-sucedida, mas pequena, ocorrida em julho de 2016,
nada mais aconteceu. Et pour cause: não havia necessidade. Os países
fundadores continuavam aportando o capital integralizado conforme
previsto no Convênio Constitutivo, com alguns chegando mesmo a
antecipar o pagamento de algumas parcelas. Como os desembolsos foram
muito modestos, para que voltar ao mercado de capitais? Evidentemente, a
paralisia tinha o seu preço: o banco não criou um nome no mercado e suas
equipes não ganharam experiência prática na emissão de títulos. Em parte
pela mesma razão, o NBD demorou três anos para obter um rating de
crédito para o mercado internacional. O resultado não foi desfavorável
(AA+), mas ficou abaixo do triplo A obtido por todos os principais bancos
multilaterais de desenvolvimento, inclusive o AIIB.40
***

Os primeiros anos do NBD foram, em resumo, uma decepção. Uma


instituição que despertara tanta curiosidade e interesse quando criada e que
chegou a apresentar inicialmente alguns resultados promissores enfrentou
embaraços de toda ordem e foi pouco a pouco ficando em segundo plano.
Sob a atual Administração, o NBD teve – e terá – grande dificuldade de
decolar. Deve continuar travado, evoluindo devagar, com um corpo técnico
de qualidade desigual. Continuará certamente aquém do ambicioso desenho
original, que previa o estabelecimento de um banco global, moderno,
inovador, tecnicamente sólido e profissional.
Uma reviravolta é perfeitamente possível; afinal, o banco está apenas
começando e tem grande potencial. Tudo depende da nova Administração
que será inaugurada com a substituição do atual presidente K.V. Kamath,
em julho de 2020, e com a substituição dos atuais vice-presidentes, um ano
depois. Só isso oferece a perspectiva de relançar e dinamizar a instituição.
Para tal, será também necessário substituir boa parte dos diretores-gerais e
chefes de divisão do NBD.
A sorte do banco está, em grande medida, em mãos brasileiras.
Primeiro, porque o governo brasileiro exerce a presidência de turno do
processo BRICS no ano de 2019. Segundo, porque o país tem o direito de
sediar o segundo escritório regional do NBD, denominado Americas
Regional Office, que deve ser inaugurado em 2019 e poderá atuar não só no
Brasil, como também em outros países das Américas, caso seja possível em
algum momento destravar a ampliação do NBD para novos membros.
Terceiro – e mais importante –, cabe ao Brasil, também por acordo a que se
chegou em Fortaleza,41 indicar o segundo presidente do banco, com
mandato de cinco anos a partir de julho de 2020.
Pode-se duvidar, claro, se haverá no Brasil vontade e condições
políticas de aproveitar a oportunidade de relançar o NBD. Mas ela existe, e
há muitos profissionais no nosso país com experiência e capacidade para
enfrentar o desafio. Não vamos abandonar a esperança de que existirá no
governo e na sociedade brasileira a compreensão de que essa oportunidade
não deve ser desperdiçada.

1 Texto concluído em janeiro de 2019. Agradeço os comentários e sugestões de Jonnas Vasconcelos


sem responsabilizá-lo pelas opiniões expressas ou pelos erros e omissões remanescentes.
2 “BRICS bank has been quite disappointing”. City Press, 2 de novembro de 2018. Disponível em:
<https://city-press.news24.com>.
3 O Convênio Constitutivo pode ser encontrado na página do NBD na internet. Agreement on the
New Development Bank. Disponível em: <https://www.ndb.int/wp-
content/themes/ndb/pdf/Agreement-on-the-New-Development-Bank.pdf>.
4 New Development Bank. NDB’s General Strategy: 2017-2021, p. 9. Disponível em:
<https://www.ndb.int/wp-content/uploads/2017/07/NDB-Strategy-Final.pdf>.
5 Convênio Constitutivo, artigo 11. Agreement on the New Development Bank. Disponível em:
<https://www.ndb.int/wp-content/themes/ndb/pdf/Agreement-on-the-New-Development-Bank.pdf>.
6 Ibid., artigo 12.
7 New Development Bank. Organization Structure. Disponível em: <https://www.ndb.int/about-
us/organisation/organisation-structure/>. O presidente e os vice-presidentes têm mandatos não
renováveis de cinco anos, exceto os primeiros vice-presidentes, cujos mandatos são de seis anos. Ver
em Convênio Constitutivo, artigo 13, Agreement on the New Development Bank. Disponível em:
<https://www.ndb.int/wp-content/themes/ndb/pdf/Agreement-on-the-New-Development-Bank.pdf>.
8 O Convênio Constitutivo do NBD, no seu artigo 12, prevê a possibilidade de transformar a
Diretoria em residente, desde que o Conselho de Governadores assim decida por maioria qualificada
(2/3 do poder de voto total dos membros).
9 Roy Harrod, The Life of John Maynard Keynes. Nova York/Londres: W.W.Norton & Company,
1982 (1ª edição: 1951), p. 632-5.
10 Leonardo Martinez-Diaz. “Executive Boards in international organizations: lessons for
strengthening IMF governance”. Independent Evaluation Office of the IMF, IEO Background Paper,
BP/08/08. Revisto em maio de 2008, p. 16.
11 New Development Bank. Investor Relations – Borrowings. Disponível em:
<https://www.ndb.int/investor-relations/borrowings/>.
12 Quando mencionei esse aspecto da nossa atuação inicial, numa reunião no Banco Mundial, em
Washington, com representantes de todos os principais bancos multilaterais de desenvolvimento, a
plateia irrompeu em palmas, algo pouco usual em reuniões desse tipo. Virei para um dos assessores
que me acompanhavam e comentei: o que será que estamos fazendo de errado?
13 A aprovação definitiva pelo Conselho de Governadores ocorreu em junho de 2017, depois de
alguns ajustes adicionais no texto. O documento pode ser encontrado na página do banco. New
Development Bank. NDB’s General Strategy: 2017-2021. Disponível em: <https://www.ndb.int/wp-
content/uploads/2017/07/NDB-Strategy-Final.pdf>.
14 New Development Bank. Terms, Conditions and Procedures for the Admission of New Members.
Disponível em: <https://www.ndb.int/wp-content/uploads/2017/06/Terms-Conditions-and-
Procedures1.pdf>. As discussões da estratégia e dos planos para a entrada de novos deram-se a partir
de minutas e revisões preparadas pela vice-presidência brasileira. As várias rodadas de contatos com
potenciais novos membros também foram organizadas por nós. Contei para isso com o apoio de uma
pequena equipe em que se destacaram os economistas Zhan Shu e Fábio Najjarian Batista,
especialmente este último. Muito importante para a elaboração do documento de estratégia foi a
contribuição de um consultor externo: Christopher Humphrey, um dos principais estudiosos dos
bancos multilaterais de desenvolvimento.
15 Convênio Constitutivo, artigo 2. Agreement on the New Development Bank. Disponível em:
<https://www.ndb.int/wp-content/themes/ndb/pdf/Agreement-on-the-New-Development-Bank.pdf>.
16 New Development Bank. NDB’s General Strategy: 2017-2021, p. 11-13. Disponível em:
<https://www.ndb.int/wp-content/uploads/2017/07/NDB-Strategy-Final.pdf>.
17 Ibid., p. 12.
18 Ibid., p. 3, 10 e 15.
19 Ver, por exemplo, Christopher Humphrey. Infrastructure finance in the developing world:
challenges and opportunities for multilateral development banks in 21st century infrastructure
finance. Intergovernamental Group of Twenty Four & Global Green Growth Institute, Working Paper
Series, junho de 2015, seção 4.1.
20 New Development Bank. NDB’s General Strategy: 2017-2021, p. 3, 11, 15 e 16. Disponível em:
<https://www.ndb.int/wp-content/uploads/2017/07/NDB-Strategy-Final.pdf>.
21 Em cada projeto, o NBD verificaria ex ante a qualidade dos sistemas nacionais do país tomador
nas áreas ambiental, social, fiduciária e de licitação. Se os sistemas do país fossem considerados
insuficientes, o NBD estabeleceria requisitos adicionais, adaptados às necessidades específicas de
cada projeto. Ibid., p. 15-6.
22 Ibid., p. 4, 26 e 34.
23 O primeiro escritório regional foi estabelecido, como previsto no Convênio Constitutivo (artigo
4), na África do Sul, em Johanesburgo.
24 Ver neste livro p. 259-60.
25 Convênio Constitutivo, artigo 6. Agreement on the New Development Bank. Disponível em:
<https://www.ndb.int/wp-content/themes/ndb/pdf/Agreement-on-the-New-Development-Bank.pdf>.
26 Na verdade, o vice-presidente russo se comportava, sem muito disfarce e de forma bem tosca,
como se fosse um diretor residente da Rússia, e não um integrante da Administração. Num momento
de exasperação, o vice-presidente chinês chegou a dizer, em reunião da Administração, que ele estava
se comportando como “agente russo” dentro do banco. Esse comportamento representava aberta
violação do Convênio Constitutivo e dos contratos assinados por nós ao ingressar no NBD. O
Convênio Constitutivo estabelece que o presidente, os vice-presidentes e o staff do banco, na
execução de suas responsabilidades, devem lealdade inteiramente ao banco e a nenhuma outra
autoridade (artigo 13). Os contratos dos presidentes e vice-presidentes continham disposição
equivalente, não diferindo nesse particular do modelo usual dos organismos multilaterais. Eu redigira
as primeiras minutas dos contratos do presidente e dos vice-presidente e seguira, em larga medida, o
formato adotado no FMI e no Banco Mundial.
27 Ver neste livro p. 235-7.
28 Ver neste livro p. 284-7. Ver, também, a nota que redigi à época da minha saída do banco: “Note
on the situation of the New Development Bank, established by the BRICS, and the treatment given to
the Brazilian vice-president”, 15 de outubro de 2017, p. 4-5. Disponível em:
<http://sites.usp.br/gebrics/>. A análise mais detalhada do processo interno que levou à minha
demissão está em um dos capítulos de uma tese de doutorado da USP, que inclusive traz em anexo
vários documentos internos pertinentes. Ver Jonnas Vasconcelos. BRICS: agenda regulatória. 2018.
Tese (Doutorado) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018, p.183-194
e anexos B, C, D, E, F. Disponível em: <https://bdpi.usp.br/item/002910177>.
29 Outros diplomatas que tiveram participação importante no processo BRICS, em diferentes
períodos desde 2008, foram Marcos Galvão, Fernando Pimentel, José Gilberto Scandiucci, José
Alfredo Graça Lima e Flávio Damico.
30 Ver comunicado dos líderes dos BRICS. Sixth BRICS Summit – Fortaleza Declaration, 15 de
julho de 2014, p. 12. Disponível em: <https://www.mea.gov.in/bilateral-documents.htm?
dtl/23635/Sixth+BRICS+Summit++Fortaleza+Declaration>.
31 Convênio Constitutivo, artigo 12. Agreement on the New Development Bank. Disponível em:
<https://www.ndb.int/wp-content/themes/ndb/pdf/Agreement-on-the-New-Development-Bank.pdf>.
32 Para alguns detalhes sobre o background e a atuação desse funcionário, especialmente suas
ligações com os Estados Unidos, ver Paulo Nogueira Batista Jr., “Note on the situation of the New
Development Bank”. op. cit., p. 2-4.
33 New Development Bank. Investor Presentation, outubro de 2018, p. 25-27. Disponível em:
<http://www.ndb.int>. Uma descrição sumária de cada um dos projetos pode ser encontrada em Id.,
List of All Projects.
34 Id., “NDB’s lending commitment in 2018 increased by 167%, bringing aggregate approved
volume to USD 8 billion”, nota à imprensa, 29 de dezembro de 2018.
35 A baixa qualidade da representação do Brasil na Diretoria se refletiu também na pequena presença
de brasileiros no NBD, especialmente nos escalões mais altos do staff. Cabe notar, contudo, que há
outras razões para o pequeno número de brasileiros no banco, notadamente os altos salários pagos no
sistema financeiro nacional e a distância de Xangai em relação ao Brasil, o país-membro fisicamente
mais distante da sede.
36 New Development Bank, Investor Presentation, outubro de 2018, p. 23. Disponível em:
<http://www.ndb.int>. O valor mencionado no texto é o estoque de empréstimos e adiantamentos
(loans and advances) em 30 junho de 2018. É uma boa aproximação do fluxo de desembolsos
acumulados nos primeiros três anos, uma vez que quase todos os empréstimos estão denominados em
dólares e que não houve pagamento de principal no período (em razão do período de carência
previsto nos contratos de empréstimo). A estratégia geral do banco, no cenário mais conservador,
previa desembolsos acumulados de US$ 2,1 bilhões até 2018. Id., NDB’s General Strategy: 2017-
2021, tabela 3, p. 19. Disponível em: <https://www.ndb.int/wp-content/uploads/2017/07/NDB-
Strategy-Final.pdf>.
37 A informação disponível, não mais do que alguns parágrafos por projeto, pode ser encontrada na
já referida lista de projetos na página do NBD.
38 Id., Investor Presentation, op. cit., p. 25-6. No segundo semestre, foram aprovados mais dois
projetos denominados em yuan. Id., “NDB’s lending commitment in 2018 increased by 167%,
bringing aggregate approved volume to USD 8 billion”, op. cit.
39 O banco tampouco avançou muito em operações com o setor privado ou sem garantia soberana.
Nos primeiros três anos, apenas dois projetos foram operações não soberanas, representando 8% do
valor dos projetos aprovados; um deles foi um empréstimo à Petrobras. Outros 8% foram linhas de
crédito aprovadas para instituições financeiras nacionais (BNDES) ou bancos multilaterais
controlados pela Rússia. Operações soberanas ou com garantia soberana representaram 84% do valor
total. Id., Investor Presentation, op. cit., p. 16 e 25-8.
40 New Development Bank, Investor Presentation, p. 10. Teria sido difícil igualar o resultado do
AIIB que tinha um grande número e variedade de membros, incluindo todos os principais países
desenvolvidos, com exceção do Japão e os Estados Unidos. Já o NBD tem apenas cinco membros, o
que implica concentração de portfólio e de riscos; a ausência de países desenvolvidos também
dificultou a obtenção de um triplo A.
41 Agreed minutes of the BRICS Ministerial meeting, Fortaleza, 15 de julho de 2014. Disponível em:
<brics.itamaraty.gov.br>. Nessa reunião, estabeleceu-se que a ordem de rotação dos presidentes do
NBD seria Índia/Brasil/Rússia/África do Sul/China.
O BANCO DOS BRICS
E A MINHA DEMISSÃO1

O Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), estabelecido pelos BRICS,


é um projeto ambicioso. Pela primeira vez desde Bretton Woods,
quando foram criados o Banco Mundial e o FMI, estabeleceu-se uma
instituição financeira multilateral que pretende ter alcance global. Todas as
instituições multilaterais criadas desde então têm alcance regional ou sub-
regional (por exemplo, o Banco Interamericano de Desenvolvimento, o
Banco Asiático de Desenvolvimento, o Banco Africano de
Desenvolvimento, o Banco Europeu de Investimentos e a Corporação
Andina de Fomento).
O NBD foi planejado para ser um dos maiores bancos multilaterais do
mundo. Em 2022, seu capital integralizado (paid-in capital) deverá chegar a
US$ 10 bilhões – se os sócios fundadores cumprirem o que está
programado no Convênio Constitutivo. Com a entrada de novos países-
membros, o capital integralizado do NBD poderia facilmente alcançar pelo
menos US$ 13 bilhões – se forem superadas as objeções da Rússia, que
resiste à entrada de novos membros. A Rússia teme a entrada de inimigos
no banco e, submetida como está a um cerco financeiro externo, pretende
valer-se do NBD como fonte de financiamento e não quer a concorrência de
outros países tomadores de empréstimo.
Para se ter uma ideia do que significa um capital integralizado de US$
10 a 13 bilhões, basta lembrar que o Banco Asiático de Desenvolvimento
conta com um capital integralizado de US$ 7 bilhões, o BID com US$ 6
bilhões, o Banco Africano de Desenvolvimento com US$ 5 bilhões. O
Banco Mundial dispõe de US$ 16 bilhões e terá dificuldade em ampliar seu
capital integralizado, em razão da resistência dos sócios majoritários, os
americanos e europeus.
A grande âncora do NBD é a China. O governo central em Beijing e o
governo municipal de Xangai dão apoio sistemático e consistente ao banco.
A China tem a visão estratégica de que é importante fazer todo o possível
para que o NBD e o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura
(Asian Infrastructure Investment Bank – AIIB) – os primeiros dois bancos
multilaterais estabelecidos em solo chinês – sejam um sucesso. Ao mesmo
tempo, a China respeita cuidadosamente a governança do NBD, em que os
cinco países fundadores têm cada um 20% do capital e do poder de voto. Se
o NBD não for bem-sucedido, não terá sido por falta de apoio do país-sede.
O Brasil, desde o governo Dilma, ficou distante do NBD. O banco
começou a operar em 2015 quando a crise no país absorvia a atenção do
ministro da Fazenda, governador do Brasil no banco. Nem Joaquim Levy,
nem Nelson Barbosa, nem Henrique Meirelles compareceram às reuniões
do Conselho de Governadores. O Brasil é o único dos cinco membros que
jamais se fez representar pelo governador em reuniões do NBD.
Esse problema não era tão grave enquanto contávamos com
profissionais na Diretoria, embaixadores que representavam o país com
competência e conhecimento. Desde fins de 2016, entretanto, esses
embaixadores foram substituídos por economistas com pouca experiência
relevante. O diretor do Brasil passou a ser um economista oriundo do FMI,
Marcello Estevão, que não tem experiência de governo nem de negociações
multilaterais. A qualidade da representação do Brasil diminuiu. Como o
Brasil detém, por acordo, a presidência da Diretoria por quatro anos, o
despreparo do diretor brasileiro teve consequências negativas para o banco.
A Diretoria, antes presidida por diplomata experiente, o embaixador Luís
Balduino, passou a ser presidida por um amador.
Em agosto de 2017, por motivos que não ficaram inteiramente claros, o
presidente do Banco Central, Ilan Goldfajn e o já mencionado diretor do
Brasil resolveram desencadear a minha desestabilização. Eu tinha mandato
até junho de 2021. Para me afastar, era necessário comprovar que eu
infringira meu contrato e o código de conduta. Tratou-se então de buscar
formas de me acusar. O presidente do NBD, o indiano K.V. Kamath, que
não se destaca pela firmeza ou coragem, foi pressionado por esses
funcionários brasileiros a acolher investigações contra mim.
Montou-se então um circo. Duas investigações foram abertas: a) uma
acusação de assédio moral contra um funcionário brasileiro, Sergio
Suchodolski, cuja demissão eu havia recomendado em razão de seu fraco
desempenho; e b) uma acusação de quebrar o código de conduta ao publicar
alguns artigos no Brasil.
O banco deu um mergulho na arbitrariedade. As investigações foram
conduzidas de forma leviana e atabalhoada, atropelando procedimentos
internos e desrespeitando repetidamente o vice-presidente brasileiro. As
acusações eram frágeis, para dizer o mínimo, e eu as desmontei, uma a uma,
por escrito.
Para culminar, o presidente do NBD convocou, pelas minhas costas,
quando eu estava em viagem de trabalho, uma reunião da Diretoria que
tomou decisões graves a meu respeito – sem que me fosse dada a
oportunidade de defesa.
Fui condenado por quebrar o código de conduta em alguns artigos de
jornal, e a Diretoria aprovou uma recomendação de demissão ao Conselho
de Governadores. Fui também suspenso – sem que me fossem explicadas as
razões. Submeteram-me a uma série de humilhações. Todos os meus voos e
reservas de hotel foram cancelados para a viagem em curso. Meus
funcionários foram instruídos a não fazer contato comigo. Fui proibido de
contatá-los. Fui proibido de entrar no banco e minha sala foi lacrada. Tudo
isso sem nenhuma explicação. Em outubro, o Conselho de Governadores
aprovou a minha demissão.
Fiquei contente de voltar ao Brasil, depois de mais de dez anos no
exterior, mas triste, claro, com a maneira como fui tratado. Preocupam-me,
mais do que o que ocorreu comigo, os sinais de que um banco que foi
criado para inovar e estabelecer padrões diferentes, inclusive éticos, tenha
afundado em comportamentos viciados e descido a níveis tão baixos no
tratamento dispensado a um vice-presidente. Sinal, talvez, de que o NBD
não será bem-sucedido.
Espero que não. Dediquei muitos anos da minha vida ao processo
BRICS, desde muito antes da minha ida para Xangai, e ainda desejo que a
principal realização dos BRICS – a criação de um novo banco de
desenvolvimento – tenha todo o sucesso com que sonhamos.

1 Publicado originalmente no Valor Econômico, em 19 de outubro de 2017.


CAPÍTULO 3

Nação, nacionalismo, caráter nacional


NACIONALISMO E DESENVOLVIMENTO1

“A independência é para os povos o que a liberdade é para os indivíduos.”


Charles de Gaulle2

O nacionalismo é um tema de grande complexidade, repleto de


armadilhas, emoções, sutilezas e ambiguidades. Como imaginar tratá-
lo de forma serena e equilibrada, no plano exclusivamente racional ou
científico? Elementos de outras ordens estão sempre presentes: sentimentos,
afetos, impulsos e, com eles, uma dose inevitável de arbitrariedade.
Começo com uma observação aparentemente extravagante: “A
‘humanidade’ não avança, ela nem sequer existe.” A observação é de
Nietzsche e aparece em fragmento publicado postumamente, como parte de
uma breve polêmica contra o iluminismo oitocentista e seus sucessores.3 O
aperfeiçoamento da humanidade, pelas luzes, pela razão, pela superação das
superstições medievais era uma ideia força do iluminismo, particularmente
da sua versão mais prática, política, que predominou na França do século
XVIII. Mas, como falar em progresso da humanidade, se ela sequer existe?
Nietzsche lançou esse aforismo desacompanhado de maiores explicações. É
normal – profetas não argumentam. A sua observação pode dar margem a
diversas interpretações e aplicações. Gostaria de propor uma, socorrendo-
me em parte de um dos mais importantes intérpretes atuais de Nietzsche,
Wolfgang Müller-Lauter.4 A bem da verdade, devo dizer que, para meus
propósitos estreitamente nacionalistas e brasileiros, vou me valer de um
filósofo declaradamente antinacionalista e que tinha, em especial,
verdadeiro horror do nacionalismo alemão da sua época, o nacionalismo
bismarckiano-wagneriano das décadas finais do século XIX.
“Humanidade” é uma daquelas abstrações inócuas, um conceito
universal vazio, “a última fumaça da realidade evaporada”, para lançar mão
de outra expressão de Nietzsche, utilizada por ele em obra publicada ainda
em vida.5 Não se pode dizer o mesmo do conceito de nação. Eis aí um
conceito, que mobiliza, emociona, encanta e fascina. É mais bandeira,
estandarte, que apenas conceito. E, no entanto, não deixa de ser também um
conceito abstrato, uma “ideia”. A nação pode ser entendida como um
subconjunto da humanidade; pode-se dizer, por exemplo, “a humanidade
está dividida em nações”, proposição que não leva muito longe. Onde reside
a diferença? Por que o conceito de nação é polêmico, mobilizador, vivo, ao
passo que o de humanidade parece estéril, vazio e tende a provocar certo
tédio? Parece evidente que a diferença não reside simplesmente no grau de
abstração ou de abrangência.
A humanidade não existe porque nada se contrapõe a ela. Já as nações
são entidades que interagem em situações de conflito ou cooperação.
“Vontades de poder”, para usar a linguagem de Nietzsche, que alternam
relações de confronto e aliança. A relação subordinada é a de
identidade/aliança/cooperação; a relação dominante é a de
contradição/conflito/competição. As nações se contrapõem, se enfrentam
não só em tempos de guerra como em tempos de paz. A cooperação surge
em função da disputa. “A solidariedade se faz na luta”, dizia Unamuno,6
esse cristão agônico – e nietzschiano malgré lui même.

Nacionalismo, liberalismo e socialismo


O nacionalismo não é um humanismo. Levado a ferro e fogo, ele é
intrinsecamente antagônico às duas outras grandes ideologias políticas e
econômicas dos séculos XIX e XX: o liberalismo e o socialismo. Esses dois
grandes adversários históricos, cada um à sua maneira herdeiros da tradição
humanista e iluminista, têm pelo menos um traço comum: o
internacionalismo e, mais do que isso, o antinacionalismo. O nacionalismo
moderno tem raízes na reação romântica ao iluminismo, mais
especificamente na revolta do romantismo alemão contra as pretensões
universalizantes do iluminismo francês.7 Na origem tanto do liberalismo
como do socialismo, nota-se no mínimo indiferença – quando não
hostilidade explícita – ao nacionalismo, considerado pelos fundadores de
ambas as correntes como um anacronismo. Smith polemizava contra o
nacionalismo econômico dos mercantilistas; Marx atacava List.8
O parágrafo anterior pode causar certa surpresa. No século XX, não
foram raros os episódios de aliança ou sincretismo entre nacionalismo e
socialismo ou entre nacionalismo e liberalismo. Por exemplo, no nazismo
alemão, a começar pelo nome completo do partido: National Sozialistische
Deutsche Arbeiter Partei (Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores
Alemães). É claro que a tônica do nazismo era o nacionalismo, na sua
vertente mais agressiva, mas havia também importantes elementos
trabalhistas e coletivistas. Outro exemplo: na União Soviética, onde Marx
reinava como grande referência intelectual, econômica e política, o
nacionalismo teve papel crucial. Stalin tornou-se com o tempo um grande
nacionalista russo, especialmente durante a Segunda Guerra Mundial.9
Logo ele, diga-se de passagem, que nem russo era. Sem a mobilização do
sentimento nacional, a sua vitória contra Hitler não teria sido possível.
Depois da Segunda Guerra, o que se viu nos movimentos de oposição
aos governos de alguns satélites soviéticos na Europa Oriental foi uma
aliança entre liberalismo e nacionalismo. Era a aliança natural em nações
que, depois de terem sido ocupadas militarmente pela União Soviética na
fase final da guerra, foram forçadas a adotar o modelo econômico socialista,
de economia centralmente planificada. Já na América Latina, o mais
comum foi a aliança entre nacionalistas e socialistas. Dada a influência
incontrastável dos EUA na nossa região, principalmente depois de 1945, os
marxistas e comunistas latino-americanos estavam mais do que
predispostos a juntar-se a forças nacionalistas e a adotar a retórica
antiamericana. Portanto, nos tempos da Guerra Fria, o nacionalismo era de
esquerda no Brasil; de direita, na Polônia. O fator explicativo é a natureza
do sistema econômico da potência dominante na região: EUA no primeiro
caso; Rússia/União Soviética no segundo. A coloração direita/esquerda é
acidental, não essencial ao nacionalismo.
Fica evidente, portanto, que o nacionalismo é um fenômeno histórico e
não um valor universal e atemporal. Não faz sentido inventar uma axiologia
em que a Nação, com “n” maiúsculo, seja considerada o valor supremo.
Exageros desse tipo podem ser o primeiro passo para a perversão do
nacionalismo e sua transformação em xenofobia e motivo para agressões e
guerras externas.
O nacionalismo também é um fenômeno espacialmente condicionado. A
sua natureza varia não só ao longo do tempo, mas de país para país e de
região para região do mundo. O nacionalismo das grandes potências, por
exemplo, resvala facilmente para o imperialismo. O mesmo pode acontecer
nas relações econômicas e políticas entre países em desenvolvimento e seus
vizinhos menores e mais vulneráveis. Ao longo da história, o próprio Brasil
já foi acusado de nação “subimperialista” por alguns países sul-americanos.
Mas, nos países em desenvolvimento, o nacionalismo adquire geralmente
um caráter defensivo, de preservação da autonomia econômica, política e
cultural em face das investidas de nações mais adiantadas e poderosas.

Alternativas ao nacionalismo?
No período posterior à Segunda Guerra, o nacionalismo ficou estreitamente
ligado à aspiração do desenvolvimento econômico. Países como o Brasil
tentavam, à sua maneira, refazer a trajetória de outros late comers, em
outros períodos históricos – a Alemanha, os EUA, a Rússia e o Japão no
século XIX, por exemplo.10 Historicamente, o desenvolvimento esteve
sempre associado a um processo de catching up,11 de equiparação ao nível
de desenvolvimento de nações mais avançadas econômica, tecnológica e
militarmente. É no espaço nacional que se articula o esforço de recuperação
desse atraso relativo.12 Nesse sentido, a expressão “desenvolvimento
nacional” é quase uma redundância. Quase porque em determinadas
circunstâncias, relativamente raras, o desenvolvimento pode resultar de uma
ação regional em que nações geográfica e culturalmente próximas se aliam
para buscá-lo em um processo de integração profunda de suas economias e
instituições. O desenvolvimento das economias periféricas da União
Europeia é o caso mais conhecido, talvez único.
Existem alternativas ao nacionalismo? Outros caminhos para o
desenvolvimento econômico e a melhora das condições de vida na periferia
da economia internacional? Em certos meios de esquerda, deposita-se
alguma esperança na ação transnacional dos trabalhadores e dos
movimentos sociais. Seria a “globalização do trabalho”, contraposta à
“globalização do capital”. A viabilidade dessa alternativa é muito limitada,
uma vez que existem divergências fundamentais de interesse entre os
trabalhadores do centro e da periferia. Os primeiros se opõem à livre
circulação internacional do trabalho; constituem parte importante das forças
políticas que sustentam as restrições à imigração na União Europeia, nos
EUA e em outras nações desenvolvidas. Não querem imigrantes oriundos
da América Latina, da Ásia ou da África concorrendo com eles nos seus
mercados nacionais de trabalho.
Os trabalhadores dos países desenvolvidos inclinam-se também ao
protecionismo e apoiam, em geral, restrições à importação de produtos
fabricados nas economias em desenvolvimento. É o protecionismo
“politicamente correto”, que justifica os limites à importação com alegações
de que as empresas exportadoras desses países danificam o meio ambiente
ou não respeitam os direitos dos trabalhadores.
Já os trabalhadores da periferia gostariam de ter o direito de migrar para
países desenvolvidos e buscar melhores condições de remuneração e
trabalho nas nações mais avançadas. Se pudessem opinar, defenderiam a
liberalização dos mercados de trabalho. Além disso, eles são diretamente
prejudicados, em termos de oportunidades de emprego e de nível salarial
nos seus países de origem, pelas medidas que restringem o acesso das
exportações da periferia aos mercados do centro.
Em suma, a palavra de ordem de Marx e Engels – “Trabalhadores do
mundo inteiro, uni-vos!” – continua não ressoando. A defesa dos interesses
dos trabalhadores ainda depende, fundamentalmente, do que pode ser
realizado no âmbito nacional ou, no máximo, regional – quando existir um
projeto sólido de integração entre nações geográfica e politicamente
próximas.
O desenvolvimento também não pode ficar na dependência da
cooperação entre nações, da boa vontade dos países mais adiantados e da
iniciativa dos Estados no plano internacional. O comportamento dos mais
adiantados, que poderiam em tese liderar uma ação conjunta em prol do
desenvolvimento, raramente confirma essas esperanças de solidariedade. Os
Estados nacionais dos países desenvolvidos seguem as forças locais e seus
interesses. Respondem primordialmente a seus eleitorados e a pressões
domésticas. A cooperação internacional está mais presente na retórica do
que na prática dos Estados.
Um aspecto nem sempre lembrado é a relação entre nação e
democracia. Com todas as suas imperfeições e limitações, que são muitas, a
democracia só existe no plano nacional ou infranacional. Não existe
democracia no plano internacional. Os organismos multilaterais são todos
não democráticos, em maior ou menor medida. Fundo Monetário
Internacional, Banco Mundial e mesmo as Nações Unidas são estruturas
oligárquicas, controladas por um número pequeno de países desenvolvidos.
No plano internacional, estamos na fase do voto censitário. O poder de voto
e de decisão nas organizações multilaterais está estreitamente vinculado ao
poder econômico. É válido, evidentemente, continuar o esforço para
aumentar a representatividade dessas entidades e a influência dos países em
desenvolvimento sobre suas agendas e iniciativas. Mas sem ilusões. Não
estão ao nosso alcance mudanças profundas, que permitam transferir para a
órbita internacional as decisões cruciais para o processo de
desenvolvimento.

Sotaque espiritual
O nacionalismo é, na prática, a única alternativa. Nos países menos
desenvolvidos, o projeto nacional está sujeito, entretanto, a contestações
permanentes. Não raro, a contestação doméstica é mais agressiva e perigosa
do que a estrangeira. O nacionalismo sofre então uma espécie de erosão
interna. Grande parte das elites nacionais mostra-se inclinada a formas
subordinadas de inserção internacional, atuando, de modo consistente, para
bloquear a formulação e implementação de um projeto autônomo de
desenvolvimento.
Essa atuação de parte das elites locais obedece, obviamente, a
motivações econômicas concretas. As nações hegemônicas operam de
forma a beneficiar aqueles que se dispõem a cooperar com os seus projetos
de poder. Mas não se deve subestimar o papel de influências ideológicas e
fatores de ordem subjetiva. O poder se exerce não apenas nos planos
econômico, político e militar, mas também – e de forma crucial – no terreno
das ideias, das ideologias, das imagens, da cultura. Não há hegemonia que
possa prescindir do chamado soft power.
Um elemento central dessa estrutura de poder é o treinamento –
adestramento talvez seja a palavra mais adequada – das elites da periferia
nas universidades dos países centrais, nas suas instituições financeiras e em
organizações internacionais como o FMI e o Banco Mundial. É uma antiga
tradição imperial. Os romanos transplantavam os filhos dos líderes das
tribos germânicas para Roma, onde eram devidamente aculturados.
Retornavam à sua terra natal na condição de integrantes leais e assimilados
do Império Romano.13
O treinamento ou adestramento das elites periféricas tem uma dupla
dimensão. Envolve não só a transmissão de conhecimentos, técnicas e
experiência internacional, como também de valores e padrões de
comportamento. Forma-se assim uma “tecnocracia apátrida”, na expressão
de Charles de Gaulle,14 mais identificada psicológica e emocionalmente
com as nações adiantadas do que com seus próprios países de origem. A
preservação do atraso e da dependência passa a ser articulada por dentro,
sem sotaque físico, porém com um tremendo sotaque espiritual, diria
Nelson Rodrigues. Essa dominação indireta, que se faz por meio de
prepostos locais, é menos transparente e, assim, mais eficiente do que os
métodos coloniais tradicionais.
Os economistas têm dado uma contribuição especialmente nociva. Em
muitos países periféricos, os cargos mais importantes e as alavancas
decisórias nos ministérios de Finanças, do Planejamento e nos bancos
centrais acabam nas mãos de uma rede de economistas e outros
profissionais que têm “trânsito em Washington”, mas pouca identificação
real com as nações que supostamente governam e representam.
É o caminho para perpetuar a dependência e o subdesenvolvimento.

1 Versão revista e condensada de texto publicado na revista Novos Estudos CEBRAP, n. 77, março
2007.
2 Alain Peyrefitte. C’était de Gaulle. Paris: Éditions de Fallois & Fayard, 1994, p. 286.
3 Friedrich Nietzsche. Nachgelassene Fragmente, 1887-1889. In: Kritische Studienausgabe, vol. 13,
editado por Giorgio Colli & Mazzino Montinari. München: DTV/de Gruyter, 1988, p. 408.
4 Wolfgang Müller-Lauter. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. São Paulo: Annablume,
1997. Ver também Scarlett Marton. Extravagâncias: ensaios sobre a filosofia de Nietzsche. São
Paulo: Discurso Editorial & Editora Unijuí, 2000, p. 171-201.
5 Friedrich Nietzsche. Götzen-Dämmerung, 1ª edição: 1889, republicado em Friedrich Nietzsche –
Werke III, editado por Karl Schlechta. Frankfurt am Main: Ullstein, 1972, p. 404.
6 Miguel de Unamuno. A agonia do Cristianismo. 1ª edição: 1930, São Paulo: Edições Cultura,
1941, p. 43.
7 Johann Gottfried Herder. Another Philosophy of History and Selected Political Writings, 1ª edição:
1774, Indianapolis: Hackett Publishing Company, 2004; e Isaiah Berlin. The Crooked Timber of
Humanity. Princeton: Princeton University Press, 1990, p. 218-37, 243-54.
8 Em texto pouco conhecido, Marx fez um ataque veemente e violento à principal obra de List: Karl
Marx. Draft of an Article on Friedrich List’s Book: Das Nationale System der Politischen
Oekonomie, 1845. Disponível em: <https://www.marxists.org/archive/marx/works>.
9 Ver, por exemplo, Isaac Deutscher. Stalin. Bungay: Pelican Books, 1966; e John Lukacs. June
1941: Hitler and Stalin. New Haven: Yale University Press, 2006.
10 Ver Thomas C. Smith. Political Change and Industrial Development in Japan: Government
Enterprise, 1868-1880. Stanford: Stanford University Press, 1955; Alexander Gershenkron.
Economic Backwardness in Historical Perspective. Boston: Harvard University Press, 1962; e Id.,
Europe in the Russian Mirror: Four Lectures in Economic History. Cambridge: Cambridge
University Press, 1970.
11 Ver Georg Friedrich List. Sistema nacional de economia política, 1ª edição: 1841, São Paulo:
Nova Cultural, 1986; e Ha-Joon Chang. Kicking Away the Ladder: Development Strategy in
Historical Perspective. Londres: Anthem Press, 2002.
12 Luiz Carlos Bresser-Pereira. “Estratégia nacional de desenvolvimento”. Revista de Economia
Política, vol. 26, n. 2 (102), abril/junho 2006, p. 221-23.
13 Steven Ozment. A Mighty Fortress: a New History of the German People. Londres: Granta Books,
2006, p. 20.
14 Alain Peyrefitte. C’était de Gaulle. Paris: Éditions de Fallois & Fayard, 1994, p. 69.
NAÇÃO VERSUS GLOBALIZAÇÃO1

Quando fui pesquisador visitante no Instituto de Estudos Avançados da


Universidade de São Paulo (IEA/USP), em 1996-1998 e novamente em
2002-2004, escrevi sobre diversos temas relacionados à economia
brasileira e sua inserção internacional, entre eles a “globalização” e suas
implicações para os Estados nacionais. Para abordar temas como esse,
convém não perder de vista a advertência de Nietzsche de que “existem
mais ídolos do que realidades no mundo”. Nos trabalhos que realizei no
IEA/USP, procurei ressaltar que há muito exagero quanto ao alcance,
novidade e suposta irreversibilidade da chamada globalização desde as
décadas finais do século XX. Propagaram-se ficções e mitos sobre a
economia internacional, cuja função prática tem sido a de facilitar o
avanço dos interesses dos países mais desenvolvidos e suas grandes
empresas, enfraquecendo as resistências nacionais e locais sob o
argumento de que qualquer oposição à “globalização”, onda inexorável do
futuro, é quixotesca e está fadada ao insucesso.
No início do século XXI, com o ressurgimento do nacionalismo em
muitos países, inclusive vários dos mais avançados, a questão da
“globalização” passou a ser vista com outros olhos. Neste novo contexto, o
professor Alfredo Bosi, editor da revista Estudos Avançados do IEA/USP,
me pediu que voltasse a tratar do tema, respondendo por escrito a uma
série de perguntas que a revista me enviou.

Estudos Avançados – Qual o papel que o nacionalismo pode exercer nos


dias de hoje?
O nacionalismo é uma força histórica muito poderosa, que está longe de
esgotada. Para os países da periferia do mundo, o nacionalismo é um
instrumento de mobilização provavelmente imprescindível para a superação
do atraso e do subdesenvolvimento, como parece indicar a experiência
histórica, recente e remota. Digo “parece”, porque as chamadas lições da
história nunca são muito claras e estão sempre abertas a interpretações
divergentes. “Não há fatos, só interpretações”, dizia Nietzsche. Feita essa
ressalva, na América Latina há casos de países que abraçaram com fervor as
doutrinas “globalitárias” e não foram nada bem-sucedidos. A Argentina dos
anos 1990 é o exemplo mais dramático e mais conhecido. Os países menos
desenvolvidos precisam, no meu entender, tomar distância de ideologias
antinacionais, cosmopolitas ou “globalizantes” – e vários já começaram a
fazê-lo. Como escreveu Euclides da Cunha no final do século XIX, “o
cosmopolitismo é o regime colonial do espírito”. Esse regime colonial custa
a morrer, mas não vai durar para sempre.

Estudos Avançados – Em face da globalização, é possível dizer que o


nacionalismo não faz mais sentido, ou pode-se ainda constatar, por trás das
multinacionais, a força de nações economicamente privilegiadas?
Continuo com a opinião de que há muito exagero nessas discussões
sobre a chamada globalização. A internacionalização das economias não é,
em geral, tão abrangente, inédita e irreversível quanto sugerem as
interpretações mais divulgadas. O próprio termo “globalização” parece um
tanto forçado, como procurei mostrar em trabalho publicado nesta revista2 e
em alguns capítulos dos meus dois últimos livros.3 Talvez só na área
financeira o termo “globalização” possa se aplicar com propriedade, sem
induzir a erros e ilusões. O ceticismo quanto ao alcance da
internacionalização tem sido expresso por diversos autores.4
Em todo o caso, aceite-se ou não o termo “globalização” como
descrição adequada do quadro internacional, o papel do Estado nacional
continua crucial, nos países desenvolvidos e nos países em
desenvolvimento. Ninguém pode abrir mão do Estado nacional. Não
existem instâncias supranacionais capazes de substituí-lo. E os mercados
não funcionam sem Estado.
Nota-se certa duplicidade dos países desenvolvidos. Eles são, como se
sabe, a fonte e a origem das teorias econômicas liberais. É o que se ensina
nas suas universidades, é o que se propaga mundo afora por meio das
entidades multilaterais controladas por esses países, notadamente o Fundo
Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. E, no entanto, a prática
desses países diverge marcadamente da teoria liberal. Em todos os países
avançados, o Estado atua de forma importante nas áreas econômica e social,
complementando e corrigindo os mercados. A reação liberal, capitaneada
por Ronald Reagan nos Estados Unidos e Margareth Thatcher no Reino
Unido, não conseguiu reverter inteiramente a tendência de aumento do
papel do Estado, que remonta ao início do século XX e se intensificou
depois da Grande Depressão da década de 1930. Como costumava dizer
James Tobin, quem venceu a Guerra Fria não foram economias puras de
mercado, mas economias mistas, com forte participação do Estado.5
A presença do Estado nacional se nota, por exemplo, na atuação das
empresas “multinacionais” ou “transnacionais”, outro termo enganoso, no
meu entender. A maior parte das empresas que atuam internacionalmente
possui uma base nacional, um centro de gravidade nacional claramente
identificável. São geralmente empresas nacionais, que têm forte presença no
exterior ou atuam em escala mundial. As exceções são as grandes
corporações de pequenos países desenvolvidos, como a Suíça, a Suécia ou a
Finlândia. Os Estados nacionais dos países desenvolvidos não se enganam
quanto a isso e atuam frequentemente em defesa das suas multinacionais.
Essas empresas também têm uma dupla face: por um lado, querem ser
vistas como “globais” para não suscitar reações nacionalistas nos países
onde investem; por outro, não têm constrangimento algum em recorrer ao
apoio do seu Estado nacional quando se trata de disputar concorrências e
contratos no exterior, abrir mercados e derrubar barreiras à sua atividade. A
atuação dos governos dos Estados Unidos e demais países desenvolvidos na
Organização Mundial do Comércio (OMC) e em negociações comerciais
bilaterais ou plurilaterais está em larga medida pautada pela defesa dos
interesses das suas corporações “multinacionais”,6 como ressaltou, por
exemplo, Joseph Stiglitz.

Estudos Avançados – Existe alguma relação positiva ou negativa entre


políticas nacionalistas e democracia?
Nacionalismo e democracia nem sempre andam juntos, como se sabe,
mas são perfeitamente compatíveis. Diria que são complementares. Um
projeto nacional sem base democrática não é sustentável no longo prazo.
Nação sem povo é um conceito vazio. O povo precisa se identificar com a
nação, sentir-se representado e considerado nas ações do Estado nacional. E
essa identificação pressupõe democracia. A existência de um regime
democrático aumenta as chances de que as políticas do Estado nacional
levem em conta os interesses da maioria. O voto é um contrapeso, ainda que
precário, ao poder do dinheiro. Além disso, não se deve perder de vista que
a democracia, com todos os seus defeitos e limitações, só é possível no
âmbito nacional. Não há democracia no plano internacional. As
organizações multilaterais são entidades oligárquicas, em maior ou menor
grau, dominadas por um grupo pequeno de países desenvolvidos. Estamos
lutando para aumentar a influência de países em desenvolvimento nos
organismos internacionais, mas é um processo difícil e lento. Foi o que
voltei a constatar, por experiência direta, quando passei a integrar a
Diretoria Executiva do Fundo Monetário Internacional, representando o
Brasil e outros países. É tremenda a força da inércia em instituições como o
FMI.

Estudos Avançados – A integração dos mercados sul-americanos é uma


forma superior de nacionalismo entre as nações em desenvolvimento?
Essa talvez seja uma das principais diferenças entre o nacionalismo
atual e o de décadas anteriores na nossa região. Há uma ênfase maior na
integração sul-americana, uma compreensão de que a atuação conjunta dos
países é uma alavanca importante nas atuais condições internacionais. O
Brasil até poderia desenvolver seu projeto nacional individualmente, pois
tem tamanho para isso. Mas em conjunto com os vizinhos, ou com boa
parte deles, o nosso poder de fogo é maior. Note-se que estamos falando de
América do Sul e não mais de América Latina, como nos tempos de Raúl
Prebisch, de Celso Furtado e da Cepal. O processo de incorporação do
México e da América Central ao espaço econômico dos Estados Unidos
avançou muito – América Latina deixou de ser um conceito politicamente
operativo, no meu entender.

1 Versão condensada de entrevista publicada na revista Estudos Avançados, Instituto de Estudos


Avançados, Universidade de São Paulo, v. 22, n. 62, janeiro/abril 2008.
2 Paulo Nogueira Batista Jr. “Mitos da globalização”. Estudos Avançados. Instituto de Estudos
Avançados, Universidade de São Paulo, v. 12, n. 32, janeiro/abril 1998.
3 Id., A economia como ela é…, 3. ed. São Paulo: Boitempo, 2002, p. 37-71; e O Brasil e a economia
internacional: recuperação e defesa da autonomia nacional. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, p. 3-31.
4 Ver, por exemplo, Dani Rodrik. One Economics, Many Recipes: Globalization, Institutions, and
Economic Growth. Princeton: Princeton University Press, 2007, p. 196-8.
5 James Tobin. Full Employment and Growth: Further Keynesian Essays on Policy. Cheltenham:
Edward Elgar, 1996, p. 181.
6 Ver, por exemplo, Joseph E. Stiglitz & Andrew Charlton. Fair Trade for All: How Trade Can
Promote Development. Nova York: Oxford University Press, 2005; e Joseph E. Stiglitz. Making
Globalization Work. Nova York: W.W. Norton, 2006.
A MARSELHESA BRASILEIRA1

O Brasil tem outro hino nacional, leitor, extraoficial, subterrâneo, mas


que bem poderia ser oficializado – e aí vai uma sugestão – como hino
da democracia brasileira.
Refiro-me à canção de Geraldo Vandré – Pra não dizer que não falei
das flores. Foi o canto de guerra dos que se insurgiram contra o regime
militar em 1968 e nos anos seguintes. Era a trilha sonora da luta contra a
ditadura, a nossa Marselhesa, como bem disse Nelson Rodrigues. Sua
execução foi proibida durante anos. Mas, agora, passado tanto tempo,
arrisco dizer que nem os militares, ou nem todos eles, não a maioria, se
ofenderiam com a minha sugestão.
Fui reler a letra. Ela é de uma delicadeza tipicamente brasileira. A
delicadeza começa no título, na referência irônica às flores, que reaparecem
na letra algumas vezes como contraponto suave ao refrão: “Vem, vamos
embora, que esperar não é saber / Quem sabe faz a hora, não espera
acontecer”. As flores entram como uma espécie de segundo refrão,
contraposto ao primeiro e, também, às armas: “Pelos campos há fome em
grandes plantações / Pelas ruas marchando indecisos cordões / Ainda fazem
da flor seu mais forte refrão / E acreditam nas flores vencendo o canhão”.
As flores simbolizam uma hesitação, uma crença provavelmente ilusória
nas soluções pacíficas. Mas fica tudo um pouco no ar. As flores não são
frontalmente rejeitadas, ainda que, no verso final, terminem “no chão”,
superadas por uma “nova lição”. E elas dão o título à canção, embora com a
ambivalência de uma dupla negativa.
O verso considerado mais ofensivo às forças armadas era o seguinte:
“Há soldados armados, amados ou não / Quase todos perdidos, de armas na
mão / Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição / De morrer pela pátria e
viver sem razão”. Hoje, isso parece tão puro, tão inofensivo. Tanto mais
que, na sequência, os adversários do regime também são chamados de
“soldados”: “Nas escolas, nas ruas, campos, construções / Somos todos
soldados, armados ou não / Caminhando e cantando e seguindo a canção /
Somos todos iguais braços dados ou não”.
Enfim, uma bela canção. Como escreveu Nelson Rodrigues, enquanto
outros imitavam os estudantes franceses, Vandré era de “uma fascinante
originalidade. […] Não há um verso que não seja dele mesmo e arrancado
de suas entranhas vivas”.
Mas Nelson queixava-se, sem nenhuma razão, que nem o Brasil, nem o
brasileiro entravam na canção de Vandré. Ora, o Brasil e o brasileiro estão
inteirinhos ali. Primeiro na música que, segundo o próprio Nelson, “era
embaladora, suavíssima, quase uma berceuse. Nunca se viu uma
“Marselhesa” tão pouco “Marselhesa”, tão anti-“Marselhesa”, dizia ele.
Nelson quis ver uma incompatibilidade total entre letra e música. Mas a
letra, repito, é de uma suave ambiguidade. Há flores de ponta a ponta, ainda
que cobertas de ceticismo. E não corre sangue, nem há chamamento às
armas.
Basta compará-la à Marseillaise, o hino da França, que no seu refrão
chama os cidadãos às armas, a “formar batalhões” e a marchar, marchar,
fazendo “o sangue impuro” dos inimigos encharcar os campos da pátria.
Pra não dizer que não falei das flores é Brasil do começo ao fim. Por
isso, ela bem que poderia ser declarada o “Hino da Democracia Brasileira”.

1 Publicado originalmente em O Globo, em 8 de setembro de 2007.


AMAZÔNIA – DE QUEM É?1

H á alguns anos, quando eu era pesquisador visitante no Instituto de


Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP), um general
do exército foi convidado para proferir palestra sobre a Amazônia. Já não
me recordo, infelizmente, do nome do conferencista e nem tenho certeza se
ele era mesmo um general ou oficial de outra patente. Mas não importa. O
que ficou na minha lembrança foram suas palavras iniciais.
Assim começou o palestrante: “A Amazônia não é do Brasil.” Pausa
para efeito dramático. E continuou: “A Amazônia é Brasil.” Depois de um
começo desses, um conferencista não precisa, a rigor, dizer mais nada. Pode
se sentar e aceitar os aplausos merecidos da plateia.
A sequência ironicamente sugerida ou insinuada pela afirmação inicial
do general é aquela frase repetida por muitos otários, inclusive brasileiros,
falsos brasileiros: “A Amazônia é da humanidade.” Ora, como dizia
Nietzsche, “a humanidade não existe”. A “humanidade” é frequentemente
uma cortina de fumaça para os interesses e as prioridades dos países
desenvolvidos, especialmente as velhas potências – os Estados Unidos e as
nações da Europa Ocidental. Esses países vêm destruindo o meio ambiente
há mais de século. Agora, se puderem, transformarão a Amazônia em
“patrimônio da humanidade”, a ser preservada para benefício geral.
O Brasil e os outros países da Bacia Amazônica têm que abrir os olhos,
portanto. É preciso reconhecer o seguinte – brasileiro não entende nada de
Amazônia. Não percebe que “a Amazônia é Brasil” – e não uma colônia ou
uma vasta propriedade do país. Um dos aspectos menos conhecidos do
nosso complexo de vira-lata é uma certa relutância em relação à selva
amazônica, suposta lembrança da nossa condição “semisselvagem,
incivilizada”.
No exterior, ao contrário, a floresta tropical é muito valorizada e sempre
ocupou grande parte do imaginário sobre o nosso país. Os crescentes
problemas ambientais só fizeram intensificar essa velha percepção.
No início dos anos 1970, eu era aluno de um colégio em Genebra, na
Suíça. A nossa professora de literatura, uma senhora francesa, muito culta,
nos fez ler um conto de Albert Camus que se passava na Amazônia
brasileira. Durante a discussão do texto, ela virou para mim, o único
brasileiro na classe, e perguntou: “Você achou adequada a descrição que
Camus fez da floresta amazônica?” A pergunta me irritou um pouco – era o
complexo de vira-lata que aflorava. Respondi: “Não sei, nunca estive lá.” A
professora não se deu por satisfeita: “Mas, como assim: de que cidade do
Brasil você é?” O complexo de vira-lata deu arrancos violentos de víbora de
túmulo de faraó. Respondi, ainda mais irritado: “Rio de Janeiro.” E ela:
“Pois, então!”
Veja, leitor, a que situação um brasileiro pode se ver submetido no
exterior. Nem lembro mais se a minha humilhação permitiu que eu
explicasse à professora e ao resto da classe que o Rio fica a mais de dois
mil quilômetros dos limites da selva amazônica. Acredito que esse tipo de
desinformação persiste até hoje.
Mas ainda não disse o que queria realmente dizer. É o seguinte: o Brasil
precisa, mais do que nunca, defender a Amazônia com unhas e dentes. E
tratá-la com carinho e cuidado – como Brasil, como parte fundamental do
território nacional a ser desenvolvida de forma sustentável, povoada por
brasileiros e cada vez mais integrada ao resto do país.

1 Publicado originalmente em O Globo, em 31 de maio de 2008.


NACIONALISMO EM FERNANDO PESSOA1

F ernando Pessoa era um nacionalista. Sua principal obra publicada em


vida, Mensagem, é ardorosamente patriótica. Certa vez, ele escreveu:
“A existência da humanidade, se por ela se entende qualquer coisa mais do
que a simples espécie animal chamada homem, é tão hipotética e
racionalmente indemonstrável como a existência de Deus.” E em outra
ocasião afirmou: “Só existem nações; não existe humanidade.”
Nada mais verdadeiro. “Humanidade” é um conceito vazio. Já a nação é
algo vivo, que pode emocionar e mobilizar, encantar, fascinar.
No Brasil, os adversários do nacionalismo – notadamente os integrantes
da poderosa quinta-coluna – tentam sempre caricaturá-lo. No debate
econômico, essa caricatura apoia-se frequentemente na dicotomia simplista:
economia aberta versus economia fechada. Apresentam o nacionalismo
como um movimento econômico, político e cultural que tende ao
isolamento, à autarquia e à rejeição pura e simples de tudo o que vem de
fora.
Não é necessariamente assim. A forma superior do nacionalismo é
aquela que se mostra aberta a elementos estrangeiros e consegue absorvê-
los e incorporá-los de forma criativa e inovadora. É o que Fernando Pessoa
chamava de “nacionalismo cosmopolita”. “O que é preciso ter”, dizia ele,
“é uma noção do meio internacional, e não ter a alma (ainda que
obscuramente) limitada pela nacionalidade. Cultura não basta. É preciso ter
a alma na Europa.”
O nacionalismo, explicava Pessoa, é um “patriotismo ativo”, que
pretende defender a pátria de influências que possam danificar e perverter a
sua “índole própria”. Mas as influências estrangeiras úteis e aproveitáveis
devem ser “assimiladas, isto é, convertidas na substância da índole
nacional”.
Nacionalismo não implica agarrar-se cegamente a tradições nacionais e
excluir valores e ensinamentos externos. O importante, lembrava Pessoa, é
“nacionalizar todos os fenômenos importados”. Para Pessoa, “a vitalidade
de uma nação – a verdadeira e real vitalidade – mede-se pela facilidade,
prontidão e eficácia com que se nacionaliza o importado”.
Nacionalizar o importado. A formulação de Pessoa lembra a do
movimento antropofágico brasileiro, iniciado na década de 1920 por
Oswald de Andrade. Esse movimento lançava mão de uma metáfora
marcante, a da antropofagia, para indicar que o “colonizador” (isto é, a
influência americana e europeia) deveria ser devorado, e sua substância,
incorporada à cultura nacional. O Brasil não deveria nem rejeitar a
influência estrangeira nem simplesmente imitá-la de maneira servil.
O Brasil sempre oscilou entre dois polos: a absorção criativa e a
mimese. Tivemos os modernistas, Villa-Lobos, Oscar Niemeyer, Celso
Furtado, a Bossa Nova. Mas toda uma parte da elite brasileira (não preciso
mencionar nomes) viveu e ainda vive da simples reprodução das últimas
modas e tendências internacionais.
Os nossos economistas, por exemplo, integram em sua maioria esse
segundo grupo. Há uma reação contra isso, mas o ensino e a prática da
economia no Brasil ainda são dominados pela aceitação acrítica, passiva de
modelos importados, sobretudo dos Estados Unidos. Os economistas
converteram-se, assim, em um obstáculo não desprezível à consolidação de
um projeto nacional.

1 Publicado originalmente na Folha de S.Paulo, em 14 de agosto de 2008.


UMA VISITA AOS ESTADOS UNIDOS1

P or incrível que pareça, só depois de três anos de residência em


Washington tive a oportunidade de fazer uma visita aos Estados
Unidos. A verdade, leitor, é que esse grande país não é o que se vê nos
mapas.
Os Estados Unidos começam, grosso modo, nos subúrbios e arredores
de Nova York, Washington ou Miami e se estendem por todo um vasto
território até os arredores de São Francisco. Entre esses extremos nas costas
Leste e Oeste é que residem propriamente os Estados Unidos, com suas
grandezas e misérias.
A minha viagem aos Estados Unidos se deu por ocasião da formatura de
um sobrinho, pela Universidade de Notre Dame, em South Bend, Indiana.
Foi uma experiência considerável. O que se nota, primeiro, é o grande
predomínio de brancos – vi poucos negros, latinos ou asiáticos. Segunda
coisa notável: a intensidade do nacionalismo mais tradicional. O americano
está entre os povos mais nacionalistas do mundo (sem isso, diga-se de
passagem, nunca teriam chegado onde chegaram). Discursos patrióticos,
hinos cantados em coro pela plateia, a bandeira do país em toda parte – tudo
isso compunha um quadro de respeito quase religioso pelos símbolos da
nação.
A formatura se deu ao longo de dois dias de cerimônias e celebrações.
No final, eu já sabia “America, the Beautiful” quase de cor. Um dos
oradores fez, de passagem, uma referência a Ronald Reagan – foi recebido
com uma ovação pelo imenso auditório. Em outro momento, alguém
mencionou “os nossos rapazes no Iraque e no Afeganistão” – mais uma
ovação. Outro orador teve a ideia de pedir que os veteranos de guerra se
levantassem. Várias gerações de ex-combatentes – centenas de jovens,
homens de meia-idade e idosos – ficaram de pé e receberam outra ovação
demorada e calorosa.
Longe de mim, que sou um nacionalista nato e hereditário, desmerecer o
nacionalismo dos outros. O que quero dizer apenas é que nós, brasileiros,
que geralmente conhecemos no máximo Nova York ou Miami, não fazemos
uma ideia minimamente razoável do que sejam os Estados Unidos.
Só depois de ir até um lugar como South Bend, Indiana, é possível
entender como os americanos foram capazes de eleger George W. Bush –
não uma, mas duas vezes. Em conversas com pais de formandos
americanos, era possível escutar coisas do seguinte tipo: “Obama é
socialista demais”…
A eleição de Obama foi um acidente. Dificilmente teria ocorrido em
condições normais. Não fosse a profunda crise provocada pelo estouro da
bolha financeira, intensificada com o colapso do Lehman Brothers que
ocorreu pouco antes da votação, dificilmente um afro-americano teria
chegado à Presidência.
Em outras palavras, os Estados Unidos mudaram bem menos do que
sugeria a vitória de Obama em 2008. Por isso mesmo, era tão difícil que o
governo Obama viesse a atender às expectativas que inicialmente suscitou
em certos setores da sociedade americana e no resto do mundo.
O presidente Obama se moveu sempre com grande cautela, procurando
não se distanciar do centro de gravidade da política americana. Tentava,
sempre que possível, ser bipartidário e aparecer como defensor de valores
tradicionais, amplamente aceitos. Com todo respeito, quase diria que era um
negro de alma branca, formado em Columbia e Harvard, bem falante,
convencional, que procurava se ajustar às tendências fundamentais da
sociedade de seu país.
Já no seu discurso inaugural, Obama dava sinais de conformismo. Por
exemplo: mencionou os Founding Fathers (Washington, Jefferson e outros
líderes da independência), a maioria dos quais proprietários de escravos,
mas não fez uma referência sequer a Lincoln – o presidente que aboliu a
escravidão.
Apesar de todos os seus esforços, os Estados Unidos continuaram
desconfiados.

1 Publicado originalmente em O Globo, em 12 de junho de 2010.


SÍNDROME DE DEGREDADO1

N ão sei se o brasileiro se dá conta de que uma das características mais


salientes do nosso “psicossocial” é o medo – quase diria, pânico – do
isolamento.
O brasileiro é um ser maravilhosamente gregário. Só se sente
confortável na companhia, de preferência numerosa, de aliados, amigos e
cupinchas. E nenhum dramaturgo nacional diria, como Ibsen, “sem a
solidão, o homem apodrece”.
Isso afeta, naturalmente, a nossa política externa. Nossos negociadores
internacionais tremem diante do risco de isolamento. Sei que fizemos algum
progresso nos últimos anos. O Brasil está mais confiante, mais assertivo.
Mas, convenhamos, não se muda em pouco tempo todo um trabalho de
séculos.
Esse nosso medo pode ser um atavismo. Remonta – quem sabe? – ao
tempo em que alguns dos nossos antepassados eram abandonados no litoral
esparsamente povoado do futuro Brasil. E lá permaneciam, cercados de
tribos indígenas hostis, não raro antropófagas, curtindo saudades de
Portugal. Síndrome de degredado, em suma.
Seja como for, trata-se de um monstruoso equívoco. Não podemos
esquecer nunca que o Brasil sozinho, e por si mesmo, já é uma multidão.
Certa vez, numa das discussões preparatórias das Reuniões de
Primavera do FMI, o Brasil estava sendo atropelado por outros países em
desenvolvimento que queriam nos forçar a endossar determinada tese. Não
preciso explicar o assunto em si. O interessante foi o comportamento de
alguns integrantes da delegação brasileira. Vieram me dizer, ligeiramente
agitados: “Não temos apoio, estamos totalmente isolados.”
Era a síndrome de degredado, outra vez. Ora, o Brasil, por definição,
nunca fica isolado. Tive que invocar Nelson Rodrigues: “Se o Brasil não
existisse, Madureira seria uma importante nação sul-americana. Bonsucesso
seria outro grande do continente.” Improvisamos, então, uma coligação com
alguns países e conseguimos solução aceitável. Em último caso, entretanto,
teríamos que ter a disposição de ficar isolados, não aderindo a nenhum falso
consenso.
Isso foi nas discussões entre países em desenvolvimento. Na reunião
final, com todos os membros, desenvolvidos e emergentes, o Brasil estava
praticamente isolado em determinado ponto da declaração ministerial.
Fiquei espiando para ver se a síndrome reapareceria. Insistimos, porém.
Chegou um momento em que o Brasil, sozinho, declarou que se dissociaria
formalmente desse ponto da declaração. Acabaram encontrando uma
formulação que nos contemplava.
Estamos melhorando um pouco.

1 Publicado originalmente em O Globo, em 27 de abril de 2013.


CARÁTER NACIONAL – FRANCESES E
BRASILEIROS1

O caráter nacional, como tudo mais, sofre o efeito corrosivo do tempo. O


caso da França é exemplar. Recentemente, Paris foi palco de episódio
emblemático. Logo após os ataques terroristas de novembro de 2015, os
parisienses resolveram dar uma demonstração de inconformismo e
destemor. Saíram às ruas aos milhares exibindo cartazes enfáticos: “Não ao
terrorismo!”, “Paris vive!”, “Não nos deixaremos intimidar!” etc.
De repente, estourou o escapamento de um carro. Foi um pandemônio.
A multidão em pânico se dispersou com rapidez estarrecedora. Jovens na
flor da idade se precipitaram, atropelando velhos e crianças. Os cartazes
heroicos ficaram jogados no meio da rua, pisoteados pelos manifestantes
em fuga.
Eis a verdade constrangedora: a França, tal como a imaginávamos e
reverenciávamos, não existe mais. A França romântica, revolucionária, que
abalou o mundo em 1789 e várias vezes ao longo do século XIX
desapareceu até o último vestígio. Já há muito tempo, na verdade. O élan do
país se quebrou, talvez para sempre, com a vitória de Pirro que foi a
Primeira Guerra Mundial. Na Segunda Guerra, a França se notabilizou pela
ausência. Convenhamos: em 1940, a invasão do país pela Alemanha foi um
passeio vergonhoso. Aí apareceu De Gaulle, aquela figura eminentemente
anacrônica, que se inventou como líder, e preservou a França, a sua
imagem, o seu prestígio.
Mas os tempos heroicos já tinham ficado para trás. Ainda houve, em
1968, a revolução dos estudantes – na verdade, mais uma sucessão de poses
e slogans criativos do que uma ameaça real ao poder constituído. Mas nem
vale a pena tratar disso agora – foi o último estertor do espírito
revolucionário francês.
Dei toda essa volta para falar um pouco do Brasil. Também no nosso
país o caráter nacional passa por transformação constrangedora e sofre o
desgaste inapelável do tempo.
Eis o que queria dizer: um dos traços do caráter nacional brasileiro é (ou
era) a cordialidade – e não há quem me convença do contrário. Bem sei que
a cordialidade encobria muita barbaridade e amaciava conflitos não
resolvidos. Mas a cordialidade do brasileiro saltava aos olhos – não do
próprio brasileiro, imerso no ambiente nacional, mas aos olhos de
estrangeiros que passavam pelo país ou de um brasileiro como eu, que
viveu grande parte da vida no exterior.
Bem, agora estou de novo há quase nove anos no exterior. E cada vez
que volto ao país encontro um Brasil cada vez menos Brasil. A cordialidade
foi para o espaço. No seu lugar, a grosseria, a troca de ofensas, a falta de
medida nas palavras e nos atos. Famílias se dividem, amizades antigas vão
para o saco, a mídia destila suspeita e ódio.
Os ânimos sempre se acirram em época de crise econômica, é natural.
Mas o fator fundamental da mudança parece ser a polarização política (que
aliás muito contribuiu e contribui para a própria crise econômica). Há muito
que não se via tanto extremismo e tanta radicalização. Estamos nos
equiparando, nesse particular, ao que há de pior na experiência da
Argentina.
E aonde é que os argentinos chegaram com isso?

1 Publicado originalmente em O Globo, em 4 de março de 2016.


BRASIL, UM PAÍS DESARMADO1

P osso confessar, leitor, que tenho tido enorme dificuldade de escrever?


Não quero parecer cabotino, mas a razão principal é a situação do
Brasil. Apesar de ter vivido grande parte da minha vida no exterior, tenho
uma ligação com o país que é, acredito, mais forte do que a da maioria dos
brasileiros. Escrevi “apesar” e já fico um pouco em dúvida. Todo “apesar”
esconde um “porquê”, dizia Fernando Pessoa. Seja como for, o fato é que
viver em outros países nunca me afastou do nosso.
De todos os povos que conheci mais de perto, o brasileiro é o menos
patriótico, o menos nacionalista – e essa falta de apego ao país nos tem
atrapalhado muito. Desde que me entendo por gente, isso sempre foi assim.
O brasileiro só se lembrava de ser brasileiro durante a Copa do Mundo
(agora talvez nem isso…). A esse dado psicológico estrutural,
acrescentaram-se nos anos recentes muitos fenômenos que configuram
verdadeiro adoecimento e desagregação da sociedade brasileira e de suas
instituições. Nunca o Brasil me causou tanta preocupação – angústia seria
palavra melhor. Nunca vi nosso país tão dividido, fragilizado e vulnerável à
ação de interesses estrangeiros.
Bem sei que esse adoecimento transcende as fronteiras nacionais. Basta
ver o que acontece nos Estados Unidos, na Europa, no Oriente Médio e em
outras regiões. Mas isso não serve de consolo. Ao contrário, o brasileiro
precisa se dar conta de que a situação internacional é perigosa, talvez como
nunca, e que isso pode nos afetar de várias maneiras e colocar em risco a
própria segurança nacional.
Não vamos nos enganar. O Brasil é um país desarmado. E um país
indefeso se expõe a riscos graves, especialmente se tem vasto território e
imensas riquezas e recursos naturais. Ninguém vai nos defender. As mais
solenes garantias internacionais não são confiáveis, muitas delas não valem
o papel em que foram escritas.
O caso da Ucrânia merece ser lembrado. Em 1991, quando a Ucrânia se
tornou independente na esteira da desintegração da União Soviética, existia
um pequeno problema: no território ucraniano se localizava grande parte do
arsenal nuclear soviético. As lideranças do novo país foram levadas a abrir
mão desse arsenal em troca de um tratado com os EUA, o Reino Unido e a
Rússia que garantia a integridade territorial da Ucrânia. Quando a Rússia
tomou a Crimeia em 2014, de que valeu esse tratado?
Nada disso é novidade. Rui Barbosa já alertava que uma nação que
confia em seus direitos em vez de confiar em seus soldados, prepara a
própria derrocada. Mas os nossos soldados o que fazem? Em vez de estarem
sendo preparados permanentemente para a missão sagrada de garantir a
segurança nacional, estão revistando mochilas de crianças nas favelas do
Rio de Janeiro.
Merecem registro também palavras recentes do general Sérgio
Etchegoyen, ministro da Segurança Institucional, por ocasião dos 20 anos
da adesão do Brasil ao Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares
(TNP). A adesão ocorreu em 1998 sob o governo Fernando Henrique
Cardoso. Etchegoyen foi convidado a participar de uma mesa de debates na
Fundação FHC. Na presença do ex-presidente, o general foi claro e
incisivo. Disse verdades que nós, brasileiros, teimamos em ignorar.
Da perspectiva militar, lembrou o general, o armamento nuclear pode
representar a única possibilidade que resta a um país ameaçado por invasão
do seu território. Mencionou as guerras do Iraque de 1991 e 2003: “O
esforço de concentração do aparato militar da aliança que invadiu o Iraque
jamais teria sido possível se aquele país dispusesse de armas nucleares de
pequena capacidade.”2 Lição, diga-se de passagem, que não escapou a
vários países.
Na avaliação de Etchegoyen, a adesão do Brasil ao TNP em 1998
coincidiu com um período de grande desinvestimento do país na área
nuclear. O tratado faz referência ao “direito inalienável” dos países de
desenvolver a energia nuclear para fins pacíficos. Esse direito ficou na
teoria, porém, pois vem sendo “negado, restringido, bloqueado por diversas
ações diretas e indiretas e pressões internacionais”, observou.
O quadro é realmente lamentável. O que ganhamos com a adesão ao
TNP, perguntou o general, além de fotografia na galeria dos bem-
comportados? A imprensa não registrou resposta por parte de Fernando
Henrique Cardoso.

1 Publicado originalmente na Carta Capital, em 4 de abril de 2018.


2 Valor Econômico, 7 de março de 2018, p. A6.
DOIS PARTIDOS1

O grande jornalista Barbosa Lima Sobrinho disse, certa vez, que o Brasil
sempre teve só dois partidos: o de Tiradentes, o partido da autonomia
e da independência; e o de Silvério dos Reis, o partido da subordinação e da
entrega. O segundo partido remonta a Calabar, passa por Joaquim Silvério
dos Reis – delator da Inconfidência Mineira – e continua até hoje
solidamente instalado no governo, no Congresso, no Poder Judiciário e na
mídia.
Apesar de tudo, o prestígio de Tiradentes é imenso. Por ocasião do dia
21 de abril, o presidente Michel Temer, destacado integrante do partido de
Silvério dos Reis, teve o desplante de invocar Tiradentes, comparando-se de
certa maneira a ele…
Não vale a pena subir pelas paredes, leitor. A hipocrisia tem seus
méritos. Como dizia La Rochefoucauld, ela é a homenagem do vício à
virtude. No dia em que o vício parar de homenagear a virtude estaremos
perdidos para sempre.
Mas não quero discorrer sobre o partido de Silvério dos Reis e os seus
numerosos integrantes. Seria deprimente, para mim e para o leitor. Vamos
pensar um pouco nas nossas raízes e nos nossos mortos? É deles que podem
vir o ânimo, o élan e a energia para continuar a luta por um país criativo e
independente.
Não podemos esquecer que o Brasil produziu uma série de figuras
extraordinárias. Lembro, por exemplo, Euclides da Cunha, Mário de
Andrade, Oswald de Andrade, Heitor Villa-Lobos, Roberto Simonsen,
Gilberto Freyre, Getúlio Vargas, Juscelino Kubistchek, Lúcio Costa, Oscar
Niemeyer, Nelson Rodrigues, Ariano Suassuna e Celso Furtado. É um
grupo heterogêneo, eu sei, que inclui desde um comunista como Niemeyer
até um industrial como Simonsen, passando por um keynesiano como
Furtado, além de artistas, políticos e sociólogos. O que esses brasileiros têm
em comum? O traço que os une, a meu ver, é a convicção compartilhada
por todos eles de que o Brasil é um país especial, capaz de desempenhar um
papel importante no mundo. Em uma palavra: autoconfiança.
Nas suas Memórias de Guerra, de Gaulle escreveu que durante toda sua
vida ele sempre fizera “uma certa ideia da França” como nação
predestinada a um papel destacado e excepcional. Se acontecia, ao
contrário, da sua trajetória ser marcada pela mediocridade, pela
mesquinharia, pelo fracasso, isso parecia a seus olhos, automaticamente,
uma anomalia absurda, imputável não à França, mas aos franceses.
Todos os brasileiros que mencionei, com variações e peculiaridades,
claro, sempre fizeram “uma certa ideia do Brasil”: a de que o nosso país
pelas suas dimensões, suas qualidades, suas singularidades, está destinado a
ocupar um lugar de destaque no planeta. Megalomania? Os partidários de
Silvério dos Reis se opõem ferozmente à ideia de um Brasil grande. São os
“realistas”, os defensores dos “limites do possível”, das “utopias viáveis”.
Sofrem de nanomania, como observou o ex-chanceler Celso Amorim. A
verdade é que os brasileiros nem sempre estão à altura do Brasil.
A nanomania alimenta-se da falta de imaginação. Os partidários de
Silvério dos Reis, mesmo os mais inteligentes, se notabilizam por um
padrão de comportamento imitativo, mimético, pela aceitação acrítica dos
valores, das tendências e dos modismos que vêm dos Estados Unidos e da
Europa. O oposto disso não é o fechamento e a xenofobia, leitor, mas sim a
absorção criativa das influências externas – outro traço comum aos
brasileiros que mencionei. Essa absorção criativa foi caracterizada pelos
modernistas, por Oswald de Andrade em especial, como a antropofagia
brasileira, a capacidade de digerir e recriar as qualidades e os valores do
estrangeiro. Metáfora poderosa, que sintetiza bem o espírito de toda uma
geração de brasileiros notáveis.
Esse espírito não se perdeu. Corre no nosso sangue e nos nossos sonhos.

1 Publicado originalmente na Carta Capital, em 27 de abril de 2018.


BRASIL, ESTADOS UNIDOS, CHINA1

A paisagem mundial é marcada, neste início de século, pelo conflito


cada vez mais intenso entre os Estados Unidos e a China. Esse conflito
vai perdurar pelas próximas décadas. A China, que já tem a maior economia
do planeta (em paridade de poder de compra), deve continuar crescendo e
ganhando peso relativo vis-à-vis dos EUA e da economia mundial como um
todo. Os americanos vêm lidando mal com essa ascensão.
Trump não criou o conflito, que remonta ao período Obama, pelo
menos. O cenário de uma ascensão tranquila da China parece cada vez
menos provável, mesmo depois de Trump – em parte por causas das reações
nacionalistas dos EUA, em parte porque o sucesso dificilmente deixa de
subir à cabeça, e os chineses não estão imunes a essa regra geral. Desde o
início do governo Xi Jinping, nota-se, eu não diria arrogância, mas uma
crescente altivez dos chineses, o que acentua a reação americana.
Como deveria se posicionar o Brasil? Primeiro, o óbvio: o Brasil não
deve se alinhar a nenhum dos dois. País que se preza não se alinha
automaticamente a ninguém. As nações, como dizia o general De Gaulle,
não têm amigos, mas interesses. Para o Brasil, as relações com os EUA e a
China são de grande importância econômica e política. Não temos a mais
remota razão para tomar partido ou imiscuir-se nas desavenças entre os
dois.
Espero não estar exagerando na homenagem ao Conselheiro Acácio.
Mas é que alguns dos integrantes do governo Bolsonaro (inclusive,
infelizmente, o próprio presidente), flertam com a ideia de alinhamento aos
EUA. Flertar é understament, claro. Faz parte disso a oferta gratuita e
absurda, em seguida abandonada, de sediar uma base americana em solo
nacional. Faz parte disso, também, certa hostilidade à China – é verdade
que mais antes do que depois da eleição. Escapa à minha compreensão o
que exatamente Bolsonaro, então deputado e pré-candidato à Presidência da
República, pretendia com a visita que fez a Taiwan, em março de 2018.
O exemplo de Getúlio Vargas talvez seja relevante. Na segunda metade
das décadas de 1930 e no início dos anos 1940, quando os EUA se
defrontavam com a ameaça de uma Alemanha em ascensão, Vargas não se
comprometeu com nenhum dos dois. Acabou entrando do lado americano
na Segunda Guerra, mas obteve importantes vantagens em troca, inclusive o
apoio dos EUA à implantação de Volta Redonda.
Não deveria a postura brasileira ser semelhante agora? Ou seja: não
caberia evitar precipitações e verificar, caso a caso, quem oferece melhores
condições em termos de parcerias econômicas e políticas? Isso inclui, por
exemplo, não assumir compromissos com a OCDE, fugindo da linha
iniciada pelo governo Temer. A OCDE, recorde-se, é uma organização
controlada pelos EUA e outros países desenvolvidos. Estabelece exigências
abrangentes, que limitam severamente as políticas de desenvolvimento e
defesa da economia nacional. Em Davos, Bolsonaro afirmou que buscará
incorporar “as melhores práticas internacionais, como aquelas que são
adotadas e promovidas pela OCDE”. O medíocre presidente do Banco
Central do governo Temer, Ilan Goldfajn, que permanece temporariamente
no cargo, foi mais longe e especificou que o Brasil está comprometido em
aderir ao acordo de liberalização dos fluxos de capital da OCDE. Isso retira
das mãos do governo instrumentos potencialmente importantes de defesa da
economia nacional contra choques financeiros externos.
Tive longa convivência com americanos e chineses no FMI, no G20 e
nos BRICS. Os chineses têm qualidades, mas sua agenda é estreita. Eles são
de um pragmatismo ligeiramente selvagem, não hesitando em sacrificar os
outros BRICS quando isso lhes convém.
Mas os americanos mostram-se sempre complicados. Comportam-se,
em geral, de maneira prepotente; consideram-se líderes natos e hereditários.
Não sabem trabalhar em aliança. Coisa curiosa: com os americanos é difícil
cooperar mesmo quando há concordância de posições. Passei por isso mais
de uma vez nos oito anos em que tive contato regular com as delegações
dos EUA no G20 e a diretoria desse país no FMI.
E um aviso aos navegantes: os americanos desprezam visceralmente
comportamentos subservientes. Quantas vezes testemunhei a indiferença e,
não raro, os maus-tratos dispensados por americanos a seus satélites,
especialmente latino-americanos!
Não se alinhar a nenhum dos dois não significa necessariamente manter
equidistância. Se tivermos que pender para um dos lados, é provavelmente
preferível pender um pouco para o da China com quem o Brasil tem uma
cooperação de caráter estratégico e relativamente equilibrada no âmbito dos
BRICS. Os Estados Unidos ainda são a principal potência – e continuarão
sendo por tempo considerável. No horizonte visível, não há chance real de
trazê-los para um diálogo menos marcado por suas tradicionais
prepotências. Já a China, apesar das suas dimensões econômicas e
demográficas, continua sendo um país em desenvolvimento e, por isso
mesmo, compartilha com o Brasil diversas características e interesses
essenciais.

1 Publicado originalmente na Carta Capital, em 25 de janeiro de 2019.


CAPÍTULO 4

Economia política brasileira


MACROECONOMIA DO
DESENVOLVIMENTO NACIONAL1

O capítulo de que faz parte este texto revisita alguns aspectos polêmicos
da economia política e da política econômica brasileiras. É o mais
incompleto do livro e provavelmente o mais decepcionante, considerando a
formação do autor. Ele tem, ainda assim, seu fio condutor, mesmo que
apareça pouco. Esse fio condutor é a ênfase no aspecto nacional das
questões econômicas. O propósito do presente texto é oferecer uma visão de
conjunto dos requisitos de uma política econômica nacionalista, revisitando
alguns temas clássicos da macroeconomia contemporânea à luz do interesse
nacional. A discussão tem como foco o Brasil e outros países emergentes,
mas se aplica, acredito, pelo menos em parte, até mesmo a países avançados
que, em contradição ao que normalmente pregam, praticam políticas
econômicas de corte nacionalista.
Continuo do ponto de vista, que sempre adotei, de que o nacionalismo
precisa ser, invariavelmente, ainda que sem dogmatismos e inflexibilidades,
o princípio organizador e propulsor das políticas macroeconômicas. Isso
deveria ser, mas não é, uma homenagem ao Conselheiro Acácio. É que a
macroeconomia tal como ensinada e aplicada em países como o Brasil
sofre, por um lado, do célebre complexo de vira-lata das nossas elites, que
leva muitos, talvez a maioria dos economistas a estigmatizar o nacionalismo
como uma variante do “populismo” ou como ideologia retrógrada
incompatível com a moderna “globalização”. Por outro lado, tributários que
somos das teorias gestadas nos países desenvolvidos, com hegemonia
inconteste dos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Mundial, acabamos
importando as tendências presentes nessas teorias de subestimar o peso das
especificidades nacionais e também, paradoxalmente, a dimensão
internacional da macroeconomia. Esta última é curiosa, quando se leva em
conta a importância supostamente conferida à “globalização”. Até as
décadas finais do século passado, talvez justamente por causa da hegemonia
dos Estados Unidos – superpotência e economia continental para a qual
pesam menos os fatores externos – as teorias macroeconômicas deixavam
frequentemente em segundo plano as relações da economia com o resto do
mundo. Só no período recente, ganhou mais destaque a “macroeconomia
aberta”.
Parece evidente, entretanto, que a macroeconomia deve ser
necessariamente sempre “aberta”, ou seja, não deve e, a rigor, nem pode ser
analisada com base na premissa simplificadora da “economia fechada”.
Insisto: em nenhum caso – nem nas economias continentais, nem no caso
extremo dos Estados Unidos. E não apenas no quadro contemporâneo de
alto grau de internacionalização das atividades econômicas, especialmente
financeiras, mas mesmo em períodos anteriores da história econômica. Em
outras palavras, não existem, do ponto de vista econômico, nem ilhas nem
continentes. Todos os aspectos da política macroeconômica nacional
precisam ser examinados e definidos à luz das relações com o resto do
mundo.
O que temos aqui é um paradoxo semântico. Quando se diz que todas as
dimensões da economia devem ser vistas sob o prisma da questão nacional,
afirma-se, ao mesmo tempo, que elas devem ser vistas sob o prisma das
relações internacionais. A dualidade nacional/internacional é a dualidade
fundamental e recorrente.
Logicamente, é sempre possível postular que inexiste o resto do mundo
ou que a economia sob análise não se relaciona com ele – premissa de livro-
texto antiquado, porém, que falseia a discussão desde o início. Situa-se, por
assim dizer, no campo das abstrações destrutivas do conhecimento. A
“economia fechada” é, na melhor das hipóteses, um recurso expositivo ou
didático, que terá relevância prática se, e somente se, existir algum dia um
Estado universal. Abstrações podem ser úteis, são até indispensáveis, mas
não devem, por suposto, retirar de cena aspectos essenciais dos problemas
que se pretende analisar. Como se vê, repito, nem sempre é possível evitar
homenagens ao Conselheiro, por mais que se queira. É trivial, sem dúvida,
alertar contra o risco de eliminar por hipótese aspectos centrais da realidade
– centrais no sentido de que, se excluídos, tornam a análise enganosa ou
estéril. E, no entanto, é o que volta e meia acontece no campo acadêmico –
ainda que disfarçado por linguajar obscuro ou matematizações
impenetráveis –, assim como no campo da política econômica – ainda que
dissimulado pela retórica habilidosa dos governantes ou pela propaganda
ruidosa dos grupos de poder. Estou caricaturando um pouco, é verdade, mas
a caricatura não está tão longe do que costuma ocorrer, num campo e
noutro.

1. Moeda nacional – atributo essencial da soberania


Tomemos, primeiro, a questão da moeda. Um objetivo central do Banco
Central é a estabilidade monetária – não absoluta, por certo, mas relativa
(inflação baixa). Porém, como ignorar que estamos falando quase sempre
da estabilidade de uma moeda nacional? Os projetos de “esperanto
monetário”, assim como os de esperanto propriamente dito, nunca saíram
muito do papel. O único que avançou um pouco, o direito especial de saque
do FMI, brevemente discutido no capítulo 1, não constitui uma moeda no
sentido pleno do termo. Por sua vez, a unificação monetária entre dois ou
mais países significa, quase sempre, dolarização ou euroização, isto é,
adoção unilateral por um país vulnerável ou dependente, de uma moeda
forte, geralmente o dólar dos Estados Unidos. Em geral, unificação
significa, portanto, desnacionalização ou subordinação monetária.
Há poucas exceções a essa regra. Temos casos de países que se
associam, de forma mais ou menos simétrica ou igualitária, para criar uma
moeda comum. Estabelece-se, assim, uma soberania monetária
compartilhada. Todas as moedas transnacionais desse tipo existem em nível
regional ou sub-regional, envolvendo países geograficamente próximos e
razoavelmente integrados do ponto de vista econômico.
Como se sabe, a mais importante das moedas transnacionais existentes é
o euro.2 Resultado e símbolo poderoso do projeto maior de unificação do
continente europeu, o euro está eivado de problemas, porém, alguns dos
quais foram abordados no capítulo 1 deste livro. O euro é um projeto
desequilibrado em muitos sentidos, inclusive neste: consagra a hegemonia
monetária de uma nação sobre as outras da área. Quase se poderia dizer que
o euro é uma “deutschmarkização” da maior parte da Europa. Ironicamente,
os alemães encontraram a única forma de, ao mesmo tempo, abandonar a
moeda nacional e preservar a soberania monetária, que é conquistar a
hegemonia monetária em uma área monetária transnacional.
Mas deixo essas exceções de lado. Moeda significa, regra geral, moeda
nacional, no sentido simples e direto de que ela é criada por determinado
Estado nacional. Mas há também um outro sentido, menos evidente, para
tratar essa questão primordialmente do ângulo nacional. É que a
estabilidade monetária também é um conceito de base interna. Quando se
busca estabilidade é necessário, por definição, ter um parâmetro, uma
referência, uma forma de mensurar o valor do que se deseja estabilizar. Em
outras palavras: estabilidade em termos de quê? No que tange à moeda, isso
significa estabilidade em termos de poder de compra dentro do país, não em
termos de outra moeda ou de uma cesta de outras moedas. O que importa é
sobretudo o valor interno, mais do que o valor externo da moeda nacional –
taxas de inflação baixas e não câmbio estável. Ou seja, o que a maioria dos
bancos centrais procura – e isso vale para todos os grandes – é a
estabilização de um índice geral de preços – e não a estabilidade da taxa
cambial. O valor externo, ao contrário, deve ser flexível, instável – para
preservar a autonomia da política monetária nacional quando, como
costuma acontecer, a conta de capitais é aberta ou relativamente aberta.
Fogem a essa regra apenas as pequenas economias abertas nas quais pode
fazer sentido tomar o valor externo da moeda como alvo da política
monetária. Nessas economias, a participação de tradeables no conjunto dos
bens e serviços tende a ser alta, e a taxa de câmbio pode funcionar como
proxy do nível geral de preços.3
A célebre tríade de Mundell e Fleming, também conhecida como
trindade impossível, tem sua utilidade nessa discussão. Esses autores
argumentaram que, entre três objetivos, autonomia monetária nacional,
estabilidade cambial e liberalização da conta de capitais, é sempre
inescapável escolher dois, sacrificando o terceiro. Assim: a) é possível ter
independência da política monetária e estabilidade da taxa de câmbio, desde
que se feche a conta de capitais; b) é possível abrir a conta de capitais e
preservar a independência monetária, desde que se deixe o câmbio flutuar; e
c) é possível fixar o câmbio e manter a livre movimentação de capitais, mas
só renunciando à autonomia na condução da política monetária. O modelo é
conhecido e não precisa ser explicado aqui.4
Evidente que, no mundo real, sempre há gradações na consecução
desses objetivos, graus variáveis de autonomia monetária e de abertura da
conta de capital, assim como diferentes formas de flutuação cambial. E,
claro, outros fatores intervêm para suavizar ou acentuar os tradeoffs. Por
exemplo, países emissores de moeda internacional de reserva não estão
submetidos, da mesma maneira, à impossibilidade postulada na tríade.
Esses países podem, dentro de certos limites, financiar déficits de balanço
de pagamentos com emissão primária de moeda, o que suspende a
efetividade da restrição externa.
Os Estados Unidos, emissor hegemônico de moeda reserva, nunca
abdicaram e nem abdicarão da autonomia monetária. Tampouco terão, em
condições normais, interesse em introduzir amplas restrições à
movimentação de capitais, dado o peso dos seus conglomerados financeiros
e não financeiros na economia mundial. Mas mantiveram estabilidade
cambial prolongada em períodos anteriores – por exemplo, durante a
vigência do regime de câmbio fixo estabelecido em Bretton Woods. Nas
décadas de 1950 e 1960, os Estados Unidos conseguiram, em certa medida,
conciliar os três objetivos. Na fase inicial do regime de Bretton Woods, a
política monetária da Reserva Federal era restritiva e sugava capitais do
resto do mundo, criando escassez de dólares. Na década de 1960, ao
contrário, a política monetária americana foi excessivamente expansionista
do ponto de vista externo, levando a superabundância de dólares. As
autoridades europeias queriam que os americanos adotassem política
monetária menos expansionista, mais condizente com seus interesses. Os
americanos deram de ombros. Marcou época a tirada prepotente do
secretário do Tesouro dos Estados Unidos, John Connally, em 1971,
dirigindo-se a suas contrapartes europeias: “The dollar is our currency but
your problem.” Não havia para os Estados Unidos efetiva restrição de
balanço de pagamentos; os desequilíbrios externos eram financiados com
emissão da moeda nacional e tinham como contrapartida a acumulação de
ativos contra os Estados Unidos pelos países superavitários. Porém, a
tentativa de conciliar os três objetivos não foi perfeita e acabou abandonada
com a desvalorização do dólar em 1971 e a posterior flutuação das
principais moedas. Certa conciliação dos objetivos foi possível nas décadas
de 1950 e 1960 porque era menor a mobilidade internacional de capitais.
Quando o mercado de eurodólares começou a crescer nos anos 1960,
alimentado pela superabundância de dólares, os Estados Unidos
responderam com restrições pontuais à saída de capitais.
Dois pontos emergem dessa experiência. Primeiro, a trindade
impossível não se aplica da mesma forma e com a mesma intensidade ao
emissor hegemônico de moeda reserva. E, segundo, prevalece a
preocupação da autoridade monetária hegemônica com a preservação da sua
autonomia, sacrificando quando necessário interesses externos e a
estabilidade cambial.
Convém ter em conta, também, as assimetrias entre tipos de
“impossibilidade”. Uma coisa, por exemplo, é tentar manter juros internos
abaixo do “equilíbrio externo” e defender um câmbio estável contra
pressões baixistas provocadas por déficits na conta de capitais: quando a
perda de reservas ultrapassa certo patamar, há corrida contra a moeda
nacional e a posição se torna insustentável. Porém, os países e seus bancos
centrais têm mais poder de fogo para resistir a pressões altistas sobre o
câmbio quando a taxa de juro interna está acima do equilíbrio externo e
superávits persistentes na conta de capitais geram acréscimo de reservas e
expansão potencial da base monetária. Nessas circunstâncias, é possível,
durante um tempo que pode ser longo, manter intacta a política monetária e
inalterada a taxa interna de juro, esterilizando com operações de mercado
aberto o efeito monetário expansivo derivado da entrada de capitais. Os
limites para essa resposta variam de país para país e dependem da
capacidade do mercado de absorver dívida pública, cujo crescimento é
alimentado pelas operações de esterilização e realimentado pelo custo de
carregamento de reservas adicionais em moeda estrangeira.5
Mesmo com essas ressalvas, a simplificação proposta por Mundell e
Fleming lança luz sobre traços essenciais dos dilemas das economias
abertas, principalmente das que não são emissoras de moeda reserva. Até o
colapso do sistema de Bretton Woods, os países desenvolvidos ficavam na
opção a. Desde a década de 1970, começando pelos mais avançados, os
países têm migrado cada vez mais para a opção b. Na prática, isso significa
abdicar de regimes de câmbio fixo ou de bandas cambiais, em favor de uma
flutuação administrada ou controlada do valor externo da moeda nacional.
Nas economias de maior porte, inclusive emergentes, não há dominância
cambial sobre a formação do nível geral de preços, o que acabou levando ao
gradual desaparecimento do famoso “medo de flutuar” (fear of floating). O
sucesso no combate à inflação também favoreceu a transição para a
flutuação. Além disso, os sistemas financeiros nacionais e as empresas
domésticas aprenderam a conviver com a instabilidade do câmbio, criando
mecanismos variados de hedge, ao passo que os bancos centrais passaram a
intervir para conter surtos de volatilidade, além de aventurar-se volta e meia
a atuar contra desalinhamentos persistentes do câmbio, o chamado leaning
against the wind.
A Europa, de novo, é um caso especial. A maioria dos europeus,
aqueles que entraram para a área do euro, fizeram duplo movimento:
transitaram para a opção c no que diz respeito às relações intraeuro
(suprimindo as moedas nacionais, o que equivale à fixação perene das taxas
de câmbio), mas mantiveram o euro na opção b em relação ao resto do
mundo.6
O pano de fundo dessa mudança de preferências no campo cambial é,
como indica o quadro de análise de Mundell e Fleming, o firme propósito
de preservar a autonomia da política monetária nacional (ou regional, no
caso do euro) em face da crescente integração dos mercados financeiros e
de capitais.

2. Valor externo da moeda, regimes cambiais,


autodefesa
Como se depreende da seção anterior, é do mesmo ângulo – do ângulo da
nação – que se deve considerar, também, a definição do regime cambial e
da política cambial. A dimensão nacional/internacional aparece nesse caso
de forma imediata e inequívoca, eis que estamos tratando da relação entre
sistema monetário nacional e sistemas monetários estrangeiros.
A menos que seja possível fechar em grande parte a conta de capitais do
balanço de pagamentos, em particular no que se refere ao segmento de curto
prazo (empréstimos de curta duração, equity etc.), o regime cambial deve
ser flexível, pois esta é a condição para manter autonomia da política
monetária. Essa autonomia, recorde-se, é indispensável por uma razão
prática e concreta: como as condições macroeconômicas dos países
divergem com frequência, seja porque não há sincronia entre os ciclos
econômicos, seja porque os países estão sujeitos a choques assimétricos, é
preciso adotar políticas monetárias próprias, condizentes com as condições
nacionais – aceitar o contrário pode forçar a adoção de políticas pró-cíclicas
e levar até ao desastre, como aconteceu com o Japão na segunda metade da
década de 1980. Pressionado pelos Estados Unidos, o Japão concordou em
coordenar sua política monetária e de câmbio com a da Reserva Federal e as
dos principais bancos centrais europeus, aceitando, na prática, subordiná-la
a considerações extranacionais. O Banco do Japão foi instado a seguir
políticas monetárias que eram excessivamente expansivas do ângulo
doméstico, o que alimentou grande inflação de ativos, criando bolhas
perigosas em vários mercados. As consequências seriam nefastas para o
Japão; o estouro das bolhas no mercado de ativos, no início dos anos 1990,
inaugurou prolongado período de estagnação, que o país teve grande
dificuldade de superar.
A experiência nacional e internacional das últimas décadas confirmou,
como notei, que a flutuação é o regime cambial consistente com autonomia
na gestão da moeda em países que aceitaram forte integração com o resto
do mundo na conta de capitais, como haviam antecipado Fleming e
Mundell no começo da década de 1960. É interessante ressaltar que a China
trilhou caminho diferente: manteve a conta de capitais razoavelmente
fechada, aplicando uma bateria de controles e restrições de diferentes tipos,
e pôde, assim, continuar com um regime de câmbio fortemente
administrado, controlando a taxa de câmbio, sem abrir mão de
independência monetária.
O caso do Brasil, desde a década de 1990, foi em certo sentido oposto
ao da China e, como sabemos, muito menos bem-sucedido. Aceitou-se
liberalização prematura e quase completa da conta de capitais, o que nos
forçou, depois de algumas vacilações e crises cambiais, notadamente a de
1998, a migrar para a flutuação do real. Outro problema a destacar é que
nossa flutuação foi, regra geral, “limpa” demais, isto é, excessivamente
livre. Não se levou na devida conta que a flutuação, particularmente em
economias menos desenvolvidas, precisa ser “suja” ou administrada – não
só para evitar volatilidade excessiva, mas também, e mais importante, para
impedir desalinhamentos persistentes da taxa cambial, isto é, períodos
prolongados de subvalorização da taxa cambial (com implicações
inflacionárias) e de sobrevalorização (com implicações estagnacionistas). A
economia brasileira tem sido presa fácil para o segundo tipo de
desalinhamento nas últimas quatro décadas – isso favoreceu a superação da
inflação crônica, mas manteve a economia em ponto morto e produziu
desindustrialização prematura.
A sobrevalorização cambial tem ocorrido, no caso brasileiro das
décadas recentes, em razão de fatores comerciais (descoberta de recursos
naturais, aumento das exportações de produtos primários ou alta dos termos
de intercâmbio) ou de fatores financeiros (superoferta de liquidez nos
mercados externos de capital). O primeiro aspecto, a “doença holandesa” ou
a “maldição dos recursos naturais”, sempre lembrado, e com razão, por
Bresser-Pereira,7 não é necessariamente o dominante. Em vários momentos,
a pressão altista sobre o real decorreu, primordialmente, da
superabundância de capitais do exterior. A resposta do Brasil, em especial
no período Lula, foi intervir comprando reservas internacionais, o que
ajudou a moderar a pressão altista sobre a moeda nacional e, ao mesmo
tempo, fortaleceu a segurança externa. No governo Dilma, recorreu-se
também a controles seletivos na entrada de capitais, com aplicação do IOF
não só no mercado à vista de câmbio, mas também sobre derivativos.
Outra possibilidade, que tem sido muito menos usada do que no
passado, é lançar mão de instrumentos extracambiais, isto é, tarifas de
importação e barreiras não tarifárias, incentivos de vários tipos à exportação
(fiscais, creditícios etc.) ou, dependendo da situação, até mesmo impostos
sobre exportações ou outros controles de exportação, como lembrado
também por Bresser-Pereira.8 Como se sabe, a principal razão da menor
utilização desses instrumentos extracambiais é o aumento das restrições
derivadas dos acordos no âmbito da Organização Mundial de Comércio.
Mesmo assim, cabe explorar, sempre que necessário, o espaço existente
para acionar esses instrumentos, admitindo-se que exista capacidade
administrativa em nível nacional e disposição de enfrentar possíveis
objeções em nível multilateral.
A esse respeito, convém fazer uma observação, que se tornou
particularmente relevante em 2019, em razão das negociações entre os
governos Trump e Bolsonaro. Não interessa ao Brasil abrir mão do
tratamento especial e diferenciado de que usufruem os países que se
autodeclaram “em desenvolvimento” na OMC. Não é por acaso que os
emergentes, entre eles China e Índia, resistem à proposta dos Estados
Unidos de que esse tratamento se aplique apenas a países menos
desenvolvidos, com exclusão dos emergentes. Abdicar desse regime
especial resultaria em restringir ainda mais o grau de liberdade para aplicar
instrumentos extracambiais, além de retirar do nosso alcance algumas
outras prerrogativas jurídicas ou negociais na OMC.
Pior ainda é fazer o que foi esboçado pelo governo Bolsonaro em
resposta a pressões dos Estados Unidos – abandonar o tratamento especial e
diferenciado em troca do presente de grego da entrada do país na OCDE,
entidade dominada pelos principais países desenvolvidos. São muito
abrangentes e numerosas as obrigações e normas, elaboradas pelos Estados
Unidos e outros países avançados, e impostas aos países-membros da
OCDE. Essas obrigações são compatíveis com o nível de desenvolvimento
e os interesses estratégicos desses países mais avançados, no seu atual nível
de desenvolvimento, mas conflitam com prioridades e necessidades de
países em estágio diferente de desenvolvimento econômico e social. A sua
adoção pelo Brasil acabaria de eliminar grande parte da autonomia de que
ainda dispomos para conduzir políticas públicas em diferentes áreas.
Não é por acaso que nenhum outro país dos BRICS está pleiteando
ingresso nessa organização. Admitindo-se, para efeito de raciocínio, que
nos interessasse aderir à OCDE por outras razões, reais ou imaginadas,
permanece o fato de que a abdicação do tratamento especial e diferenciado
na OMC não foi exigida de nenhum dos outros países em desenvolvimento
que já são membros da OCDE ou que estão na fila de entrada.
A entrada na OCDE bloquearia, ou muito dificultaria, a adoção de
medidas para administrar a conta de capitais do balanço de pagamentos.
Nada de comparável existe no arcabouço jurídico do FMI, como expliquei
no capítulo 1 deste livro. Só isso já é razão para não buscar o ingresso na
OCDE. A administração da conta de capitais é indispensável, tanto no que
se refere a certos tipos de entradas como a certos tipos de saídas de capital.
Por exemplo, convém, em determinadas circunstâncias, introduzir restrições
bem pensadas aos influxos de capitais voláteis ou de curto prazo, como foi
feito no governo Dilma. Também é conveniente, para dar outro exemplo,
manter restrições a saídas de capital de pessoas físicas residentes ou, ainda,
estabelecer que fundos de pensão baseados no território nacional fiquem
limitados a um determinado teto em termos de investimentos no exterior.
Finalmente, uma lição que ficou das últimas décadas de instabilidade e
turbulência financeira internacional, tirada por boa parte dos principais
países emergentes, é a necessidade de manter um nível permanentemente
elevado de reservas internacionais. Esse é um trunfo indispensável para
garantir a segurança externa da economia e, vou mais longe, a própria
segurança nacional. São as reservas elevadas que dispensam o apoio
financeiro externo em tempos adversos. O apoio de outros países, do FMI e
das organizações internacionais, como se sabe, nunca vem de graça e nunca
sem strings attached. Dependendo das circunstâncias, esse apoio pode sair
muito caro em termos dos interesses nacionais permanentes. Afinal, são
muitos os casos de países que, sem reservas próprias em tempos de crise
cambial, foram obrigados a fazer concessões de caráter estratégico. O
próprio Brasil, por exemplo nos tempos de Fernando Henrique Cardoso e
em épocas anteriores, tem histórias a contar a esse respeito.
Em uma frase, a combinação recomendável para países como o Brasil,
inclui flutuação administrada, leaning against the wind para evitar
desalinhamentos cambiais, uso criterioso de diferentes tipos de
instrumentos extracambiais para regular os fluxos comerciais,
administração da conta de capitais do balanço de pagamentos e reservas
internacionais elevadas. Todos esses instrumentos e políticas aplicados de
maneira consistente e simultânea formam um regime de autodefesa capaz
de favorecer o crescimento da economia, protegê-la contra choques
externos de diferentes tipos e preservar a autonomia nacional.

3. Políticas e regimes fiscais para o desenvolvimento


O mesmo fio condutor e um arcabouço analítico análogo se aplicam às
políticas e aos regimes fiscais. Há vários motivos para preservar certo
equilíbrio das contas públicas ou manter o déficit sob controle – um deles, e
não o menor, é a necessidade de proteger a independência da política
econômica nacional da instabilidade dos mercados financeiros internos e,
sobretudo, externos. Esse aspecto merece mais destaque do que geralmente
recebe. Mangabeira Unger, que nem é economista, tem sido um dos poucos
a ressaltá-lo no debate brasileiro.
A questão pode ser explicada em poucas palavras. Como existem
limites ao que se pode obter via financiamento monetário, quanto maior o
déficit público, maior também a dependência de financiamento novo e,
portanto, maior a vulnerabilidade em relação aos humores flutuantes dos
financiadores nacionais e estrangeiros. O déficit não coberto por emissão de
base monetária gera ampliação da dívida e encargos adicionais de juros,
realimentando o déficit e crescimento da dívida. O déficit ideal, por
suposto, não é o déficit zero – não há regra simples em política fiscal ou, for
that matter, para a política econômica em geral. O déficit permitido ou
sustentável é aquele que, considerados outros objetivos da política fiscal e o
perfil temporal da dívida, não coloca o setor público à mercê dos ditames
do mercado, especialmente dos investidores externos e do endividamento
em moeda estrangeira. O ajuste fiscal, antes de servir para gerar a
“confiança do mercado”, serve para tornar o país e o setor público
independentes dessa variável imprevisível e pouco confiável. Déficits
moderados, combinados com prazo médio elevado das obrigações e
reduzidas participações de investidores e moedas estrangeiras na dívida
pública, proporcionam ao Estado nacional independência em relação às
flutuações e instabilidades do mercado.
A ninguém ocorre ignorar a relevância da disciplina fiscal, frise-se. Ela
pode ser indispensável para apoiar a política monetária quando a economia
está excessivamente aquecida e provoca inflação e/ou desequilíbrios nas
contas externas correntes. E, como indicado, a parte do déficit não
financiada com expansão primária da moeda tem como contrapartida, por
definição, um aumento pro tanto no estoque da dívida pública.9
Mas é essencial adotar objetivos fiscais condizentes com o
desenvolvimento, que podem ser consagrados em regras explícitas, até com
amparo legal. O governo sempre usa (ou, pelo menos, deveria usar) uma
multiplicidade de indicadores para acompanhar a evolução da política fiscal
e das contas públicas. Mas o alvo da política fiscal não deve ser o resultado
nominal (que é particularmente difícil de controlar e muito sensível a outras
políticas que não a fiscal) e nem o resultado primário (que funciona como
foco da política fiscal no Brasil e muitos outros países) – ainda que esses
conceitos não sejam irrelevantes e precisem ser acompanhados
regularmente.
Preferível seria pautar a política fiscal por outro indicador, que levasse
em conta a distinção clássica – e fundamental – entre gastos correntes e
gastos de investimento – incluindo nestes últimos, porém, não só os
tradicionais investimentos físicos, mas também os investimentos em capital
humano.10 Tal como habitualmente definido, o resultado primário
corresponde à diferença entre a soma de todas as receitas não financeiras e a
soma de todos os gastos correntes não financeiros do setor público,
inclusive aqueles que, como os investimentos de infraestrutura e as
despesas de educação, têm efeito decisivo sobre a oferta agregada e o
desenvolvimento nacional no longo prazo. Pode-se arguir, até mesmo, que
por assegurar, em última análise, a própria sobrevivência da nação, os
gastos militares em seu conjunto devem ser tratados como investimentos e
excluídos da apuração do resultado relevante para a execução da política
fiscal.11

4. Disciplina macroeconômica e desenvolvimento


nacional
Os regimes fiscal e monetário devem ser configurados de forma a favorecer
a consecução simultânea de dois grandes objetivos nacionais que podem
parecer contraditórios, mas não são – a disciplina e o desenvolvimento de
longo prazo. Não pretendo tratar, neste texto, das políticas de curto prazo e
seus dilemas. Registro apenas que tanto a política fiscal como a monetária
devem ser conduzidas em coordenação e sintonizar-se com a situação
cíclica da economia. Como se sabe, uma economia superaquecida pede
políticas fiscais e/ou monetárias restritivas; uma economia em retração
requer alguma expansão fiscal e/ou monetária. A combinação de
restrição/expansão fiscal e monetária, a ênfase relativa que se deve dar a um
instrumento ou outro, só pode ser determinada à luz do quadro
macroeconômico. É justamente isso que recomenda a coordenação entre as
autoridades fiscais e monetárias, e não a “independência” das segundas em
relação às primeiras.12
A coordenação fiscal e monetária não é bem vista pelas teorias
dominantes, mas o papel anticíclico das políticas macroeconômica é aceito
pelos economistas, ainda que em graus variáveis. Talvez menos conhecido,
menciono de passagem, é o fato de que políticas de austeridade fiscal
podem ter impacto mais pronunciadamente recessivo em economias já
estagnadas ou em retração, como ficou claro na crise dos países
desenvolvidos, em particular na área do euro, nos anos posteriores a 2008.
O FMI, por exemplo, foi obrigado a rever para cima as suas estimativas dos
multiplicadores fiscais para as economias avançadas, especialmente aquelas
que foram submetidas a recessões profundas, como a da Grécia e outras da
periferia europeia.13
Registre-se, também en passant, que a observação direta, sem
ajustamentos, dos resultados do setor público pode induzir a políticas fiscais
pró-cíclicas. Analogamente, a observação exclusiva de índices de preços
“cheios”, isto é, sem ajustes para excluir choques inflacionários de caráter
temporário, pode desencaminhar a política monetária. Para reduzir esses
riscos, é sempre possível orientar as políticas fiscal e monetária por
indicadores ajustados – estimando, por exemplo, resultados fiscais
“estruturais” e núcleos inflacionários, respectivamente.14 Porém, não há
como estimar, de forma inequívoca, resultados estruturais e a tendência da
inflação, o que dificulta a adoção de variáveis ajustadas como alvos da
política fiscal e da política monetária. Mesmo assim, é indispensável que as
autoridades fiscais e monetárias calculem e divulguem regularmente esses
indicadores estruturais ou de tendência,15 utilizando-os para informar as
suas políticas macroeconômicas.
Mas deixo de lado questões cíclicas para focar na dimensão de longo
prazo das políticas macroeconômicas, em especial na necessidade de
conciliar disciplina com crescimento de longo prazo. O ponto não é novo.
Por um lado, de pouco vale, à moda de Salazar, assegurar a disciplina, mas
asfixiar o desenvolvimento. Por outro, acelerar o desenvolvimento sem
considerar as restrições macroeconômicas termina invariavelmente em
crises inflacionárias e/ou de balanço de pagamentos, como aconteceu tantas
vezes no Brasil e em outros países da América Latina. Em nenhum desses
cenários extremos, o país garante a consecução dos objetivos nacionais.
Contrariamente ao que às vezes se prega no campo liberal, colocar a
casa fiscal e monetária “em ordem” não garante, repito, o desenvolvimento
econômico. Pode, ao contrário, solapá-lo, como mostra o exemplo de
Portugal no período Salazar. Tudo depende da forma como se estabelecem
as políticas fiscais e monetárias ao longo do tempo. A disciplina fiscal pode
ser mais ou menos amigável ao crescimento econômico. Excesso de
contenção fiscal, especialmente quando centrada no investimento público,
derruba o nível de atividade e reduz o potencial de desenvolvimento no
longo prazo. Uma overdose de restrição monetária pode afetar
negativamente a taxa de crescimento, inclusive no longo prazo, ponto nem
sempre reconhecido. Uma razão, não necessariamente a única e nem
mesmo a principal, é que uma orientação excessivamente restritiva da
política monetária pode resultar em sobrevalorização persistente do câmbio,
o que solapa a competitividade internacional e as contas externas correntes
e deprime o crescimento da economia nacional.

5. Mandato eclético para o Banco Central


Daí que é útil conferir um mandato eclético ou dual ao Banco Central,
semelhante ao que tem a Reserva Federal nos Estados Unidos. Isso significa
inscrever não só a estabilização monetária, mas o crescimento econômico
como obrigações no estatuto da autoridade monetária. O regime de metas
para a inflação, a rigor, não permite essa duplicidade de objetivos. É
verdade que o formato adotado no Brasil, com intervalos amplos em torno
do cerne da meta central, confere flexibilidade à política monetária,
permitindo inclusive buscar algum crescimento como meta implícita. No
entanto, mesmo nessa variante flexível, o regime de metas para a inflação,
como já indica seu nome, coloca peso excessivo em um aspecto da atuação
do Banco Central, deixando na sombra a questão do crescimento.
Os economistas acostumaram-se nas décadas recentes a proclamar a
adesão ao ponto de vista friedmaniano de que a moeda não tem efeitos de
longo prazo sobre o crescimento. A proposição pode ser atraente – e é
válida sob determinadas hipóteses. Como base nela, diversos países se
animaram, em décadas recentes, a fixar a estabilidade monetária como
objetivo exclusivo, ou primordial, dos bancos centrais. Foi o que aconteceu,
por exemplo, no caso do Banco Central Europeu, criado numa época em
que essas teorias comandavam aceitação generalizada.16 Eventuais
sacrifícios em termos de produção e empregos seriam, supunha-se,
meramente temporários.
Porém, como indicado, a proposição só se sustenta com suposições bem
determinadas. Exclui-se, por exemplo, o óbvio – o longo prazo é uma
sucessão de curtos prazos. (Infelizmente, leitor, o Conselheiro volta a
marcar presença.) Essa obviedade pode ser desdobrada em observações um
pouco menos triviais. A taxa de crescimento potencial é influenciada
decisivamente pelas taxas de crescimento vivenciadas ano a ano – isto por
várias razões, hoje amplamente reconhecidas. Entre elas, pode-se
mencionar, por exemplo, que os desempregados de longo prazo perdem
capacidade produtiva e vão se tornando “inempregáveis”. Ou que a
capacidade produtiva física instalada e não utilizada também não é, a rigor,
fixa: a falta de uso leva à sua progressiva destruição e obsolescência. Ou
que o progresso técnico requer, no mais das vezes, investimentos novos e
que, assim, períodos prolongados de baixa utilização da capacidade e
reduzidas taxas de investimento agregado costumam estar associados a
lento progresso técnico com efeitos negativos sobre o produto potencial.
Ou, ainda, que o crescimento lento ou a estagnação prolongada vão
inviabilizando empresas que se tornam irrecuperáveis, perdendo-se
capacidade empresarial no processo.
Histerese, em suma. Em uma frase: a repetição de taxas decepcionantes
de crescimento rebaixa inevitavelmente o potencial de crescimento no
longo prazo. Inversamente, por razões simetricamente análogas, uma
economia relativamente aquecida termina por gerar dinamismo de longo
prazo – desde que, repita-se, o aquecimento não se torne excessivo a ponto
de gerar inflação alta e/ou desequilíbrios externos não financiáveis em
bases voluntárias.
Em parte por essas razões, a maioria dos bancos centrais, na prática, já
segue o modelo eclético da Reserva Federal, ainda que prefiram disfarçá-lo
com alegações, sempre ligeiramente suspeitas, de que a taxa de crescimento
do produto ou a taxa cambial só são consideradas na medida em que
influem sobre a taxa de inflação – esta, sim, a preocupação primordial ou
única da autoridade monetária.
Raciocínio semelhante vale para a inflação alta. Também aqui não há
neutralidade da política monetária. Se ela gera inflação persistente, acima
de determinados níveis, dois dígitos anuais ou mais, o resultado provável é
a diminuição do crescimento potencial. A forma de evitar ou postergar esse
efeito adverso, muito presente na história monetária brasileira, é generalizar
a correção monetária, começando pela correção da taxa cambial, dos
impostos e dos títulos públicos de prazo mais longo. A longa experiência
brasileira com a indexação generalizada a índices de preços domésticos
mostra duas coisas, pelo menos. Primeiro: se houver aplicação consistente
da correção monetária e razoável confiança nos índices de preços e nos
contratos indexados, a indexação permite longo convívio com inflação alta
sem impedir taxas elevadas de crescimento econômico. Segundo: o sistema
indexado convive mal, entretanto, com choques de preços relativos que
podem, no limite, conduzir a uma aceleração destrutiva da inflação, como
se viu nas décadas de 1970 e 1980.
6. Nacionalismo, distribuição de renda e democracia
Um mandato eclético para a autoridade monetária e um regime fiscal que
concilia disciplina e promoção do crescimento são partes de um programa
mais abrangente em que as políticas macroeconômicas no seu conjunto
ficam subordinadas ao desenvolvimento nacional como objetivo central
permanente. Essa exigência vale para todas as nações que se prezem, mas
especialmente para países como o Brasil que precisam escapar da armadilha
da estagnação ou do crescimento lento. A economia do país experimenta há
quatro décadas uma semiestagnação, isto é, taxas de crescimento per capita
muito reduzidas, mostrando-se incapaz de gerar os empregos na quantidade
e qualidade necessárias. Desde a década de 1980, temos conseguido apenas
surtos de crescimento que duram no máximo alguns anos para desembocar,
em seguida, no estancamento da atividade econômica. O Brasil não só não
vem conseguindo convergir para o nível de desenvolvimento dos avançados
como vem perdendo peso relativo na economia mundial.
O crescimento sustentado ao longo do tempo é vital. Mas
desenvolvimento nacional, para merecer esse nome precisa, sempre, ser
inclusivo, isto é, envolver progresso social e uma distribuição
razoavelmente equitativa dos frutos do crescimento econômico. As políticas
públicas em diferentes áreas, do lado do gasto, da tributação e do crédito,
em todos os setores de atuação da máquina governamental, devem buscar
sistematicamente eliminar a fome e a pobreza, generalizar o acesso à
educação e saúde, melhorar a distribuição da renda e da riqueza. O
mercado, por si só, gera dinamismo econômico, ou pode gerá-lo em
condições propícias, mas não assegura uma distribuição aceitável dos
resultados do processo econômico. E o assim chamado terceiro setor pode
complementar de forma limitada, mas nunca substituir a atuação
distributiva do Estado nacional e dos entes subnacionais.
Há quem deposite mais esperanças no terceiro setor, na solidariedade
espontânea, nas entidades filantrópicas, e até no papel das forças
espontâneas de mercado. Não faltam os que apontam, nem sempre sem
razão, a intervenção estatal como geradora de privilégios e concentração de
renda. Não tenho como entrar nessa discussão agora. Uma coisa, porém,
parece difícil de recusar: com a crônica concentração de renda e riqueza que
se observa no Brasil, não há como sustentar um projeto nacional autêntico,
enraizado. Como assegurar solidariedade real e duradoura do povo com a
nação? E a nação sem povo, o que é? Uma abstração para consumo de
intelectuais? Uma simbologia vazia? Algo mais do que isso? O povo
brasileiro, com a paciência que o caracteriza, mantém os vínculos com a
pátria e gostaria de se sentir parte da nação. Mas se o quadro de pobreza e
desigualdade não muda, a paciência do brasileiro comum vai se esgarçando,
possivelmente de forma irreversível.
Assim, políticas distributivas bem pensadas e executadas de forma
enérgica e persistente constituem ingrediente indispensável de uma política
econômica e social nacionalista. Ao dizê-lo entramos ipso facto no terreno
da política e dos sistemas políticos. A orientação social das políticas
públicas e a distribuição de renda como metas centrais dificilmente se
sustentam por outorga, concedidas de cima para baixo. Podem até começar
dessa forma, mas não sobrevivem assim. O Estado de bem-estar social
remonta, curiosamente, a Bismarck, governante conservador que implantou
pioneiramente, no final do século XIX, políticas de proteção social – entre
as quais, seguro-saúde, aposentadoria, seguro para acidentes de trabalho e
invalidez – como meio de assegurar base social para o Estado em uma
Alemanha recém-unificada, ainda em fase de consolidação. Mas Bismarck
não teria interesse ou condições de seguir esse caminho se não estivesse
pressionado pela social-democracia alemã, partido operário mais importante
da Europa na época. E como imaginar que as políticas de proteção
pudessem ser mantidas e desenvolvidas, como políticas permanentes, na
Alemanha como em outros países avançados, sem as lutas e a ação política
dos trabalhadores e outros segmentos da sociedade? A história do século
XX é testemunha disso.
O regime político compatível com o Estado de bem-estar social é a
democracia moderna, representativa. Sem eleições livres e gerais, e todos os
atributos que caracterizam o Estado de direito moderno, a voz das maiorias
não se faz sentir na definição da política econômica e social. Por isso, ser
nacionalista é ser democrata. E, mais do que isso, lutar pelo
aperfeiçoamento da democracia em todos os seus aspectos para que não
aconteça o que se vê até em países com tradições democráticas mais
arraigadas: a sua degeneração em plutocracia.
Lamento, leitor, se estou enveredando um pouco para uma simples e
possivelmente enfadonha declaração de princípios e boas intenções. Só
tenho uma desculpa, espero que aceitável: o nacionalismo está sempre
sujeito à tentação autoritária. E quando sucumbe a ela, tem vida curta ou
vira mero instrumento de propósitos escusos.

7. O nacionalismo em face das questões ambientais e


da órbita multilateral
Antes de concluir, preciso introduzir brevemente outra dimensão do
problema, em larga medida ausente do nacional-desenvolvimentismo
clássico – a questão ambiental. Até as décadas finais do século passado, a
questão ainda podia ser ignorada ou deixada em segundo plano. Não era
central nas obras iniciais de Prebisch, Furtado e outros economistas da
primeira geração do nacional-desenvolvimentismo latino-americano.17 A
minha geração de economistas não a encontrou nos currículos
universitários. No século XXI, contudo, constitui questão macro
inescapável, preocupação prioritária ou condicionante inevitável dos planos
de todos os governos.
A questão ecológica ou ambiental transcende, a um só tempo, duas
realidades: o mercado e a nação. Ela envolve, por um lado, externalidades
impossíveis de enfrentar sem a intervenção do Estado, direta, tributária ou
regulatória; o capital privado deixado à sua própria dinâmica produz
destruição ambiental e consome sem repor recursos não renováveis. Por
outro lado, a solução não pode ser alcançada exclusivamente no âmbito do
Estado nacional, sem cooperação internacional. Isso é aceito de forma
bastante geral, nos países desenvolvidos e nos países em desenvolvimento –
tanto que acordos internacionais e intergovernamentais constituem peça-
chave das ações em defesa do planeta.
Para os propósitos da discussão que ora vou concluindo, o ponto
essencial é que para essas questões o nacionalismo do século XXI é
necessariamente internacionalista. Não pode, portanto, ser hostil ao
multilateralismo – como é o nacionalismo atrasado, regressivo de Donald
Trump e de alguns de seus seguidores ou imitadores, inclusive aqui no
Brasil. Como abrir mão da cooperação internacional que se realiza, em
geral, por meio de organizações multilaterais, tratados internacionais e
iniciativas de cooperação global ou regional? Isso está inscrito, insisto, na
própria natureza dos problemas ambientais, que incluem spillovers de uma
nação para outra e envolvem fenômenos, como o aquecimento da Terra, que
só podem ser enfrentados por ampla coligação de forças nacionais.
Isso dito, os textos deste livro que tratam de ações e entidades
multilaterais ou plurilaterais, como G20, FMI e BRICS, mostram as
armadilhas e as deficiências do que temos no campo internacional. A ação
nacional na esfera internacional precisa, então, pautar-se pela compreensão
de que o espírito de cooperação e entendimento deve ser presidido pela
defesa dos interesses do país em todas suas dimensões. O nacionalismo de
que precisamos é um nacionalismo ao mesmo tempo aberto e defensivo,
cooperativo e cauteloso – uma mistura singular de esperança e ceticismo.
INDEPENDÊNCIA
PARA O BANCO CENTRAL?

O texto a seguir é a transcrição de uma exposição na Comissão de


Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio da Câmara dos
Deputados. O governo do presidente Lula, por intermédio do então ministro
da Fazenda, Antonio Palocci, havia anunciado a intenção de encaminhar
ao Congresso projeto de lei de responsabilidade monetária que
redesenharia as funções e atribuições do Banco Central, assegurando-lhe
independência ou autonomia. Para debater o tema, a Comissão de
Desenvolvimento Econômico da Câmara resolveu então realizar o
seminário “Banco Central – Autonomia versus Independência”, em 10 de
junho de 2003. A minha exposição, transcrita a seguir, foi parte do
primeiro painel, presidido pelo deputado Delfim Netto, que teve a
participação do ex-ministro Luiz Carlos Mendonça de Barros. Transcrevo
também parte do debate com parlamentares e outros integrantes da plateia.
As críticas que apresentei à proposta de independência para o Banco
Central causaram algum desconforto, levando o deputado Delfim Netto a
referir-se a meus argumentos como “terroristas demais” e o ex-ministro
Mendonça de Barros a tachar-me de “muito amargo”. O deputado Enéas –
que se notabilizara como candidato à Presidência da República com o
bordão “Meu nome é Enéas!” – resolveu me defender, e disse, arrancando
gargalhadas da plateia, que eu não era amargo, mas, ao contrário, doce, e
que amargo era ele, como se veria na sua intervenção.
O governo Lula acabaria abandonando a ideia de patrocinar a
independência ou autonomia formal do Banco Central.
Apresentador (Deputado Delfim Netto) – Meu caro Presidente,
deputado Léo Alcântara, senhores membros da mesa, minhas senhoras,
meus senhores, é para mim motivo de grande alegria e orgulho participar
deste seminário com tão ilustres debatedores.
Há hoje nesta Comissão dois profissionais de altíssima qualidade que
têm dado contribuição importante à análise da economia brasileira.
Concedo a palavra ao Sr. Paulo Nogueira Batista.

Paulo Nogueira Batista Júnior – Agradeço ao deputado Delfim Netto, à


Comissão de Desenvolvimento Econômico, em especial ao seu Presidente,
deputado Léo Alcântara, pelo convite para participar deste seminário.
No meu modo de ver, a questão da independência ou autonomia do
Banco Central deve ser tratada à luz de certas tendências econômicas e
políticas no mundo e no Brasil, em particular.
Na evolução da economia mundial desde a década de 1970, cabe levar
em conta um fato importante para o debate a respeito do Banco Central do
Brasil: trata-se da hipertrofia da dimensão financeira do processo
econômico. O crescimento dos fluxos e dos mercados financeiros foi
realmente espantoso, especialmente dos capitais voláteis e de curto prazo.
A isso corresponde, no plano político, o crescimento do poder do capital
financeiro. É claro que o poder do capital financeiro sempre foi substancial.
Mas nos últimos 30, 40 anos, esse poder se agigantou, no mundo inteiro.
Nos vários países, formaram-se ou consolidaram-se lobbies poderosíssimos.
Poder-se-ia dizer que hoje, como nunca, o capital financeiro é a fração
hegemônica do capital. O fenômeno ocorre em escala mundial. O centro
desse poder pode ser chamado de eixo Wall Street-Washington ou, para usar
as palavras do economista liberal indiano radicado nos Estados Unidos,
Jagdish Bhagwati, de Wall Street-Treasury complex.
A influência e o alcance desse eixo de poder político variam muito de
país para país. Nos países em desenvolvimento a realidade é uma; nos
países desenvolvidos, outra. Nos países centrais, nos principais países, há o
contraponto de instituições públicas mais sólidas, os Estados estão mais
estruturados e as tradições democráticas, mais arraigadas. Mesmo nos
países em desenvolvimento, a experiência dos vários Estados nacionais na
sua relação com o eixo Wall Street-Washington é muito variável. Temos
perto de nós um caso extremo de dependência financeira, que gerou custo
extremamente alto, a Argentina. Ela se entregou de corpo e alma a esse eixo
de poder ao longo da década de 1990. Mas temos também casos de países
em desenvolvimento ou de economia emergente que, nesse mesmo
ambiente internacional, souberam manter relação mais prudente com os
mercados financeiros internacionais e apresentaram desempenho
macroeconômico muito melhor em termos de crescimento e de estabilidade,
como a China, a Índia e a Rússia pós-Iéltsin.
Entre os países que acabei de mencionar há diferenças, mas também
traços comuns. China e Índia, por exemplo, mantiveram moedas
inconversíveis, controles de capital, equilíbrio ou pequenos déficits na conta
corrente do balanço de pagamentos, em alguns períodos até superávits em
conta corrente, e reservas internacionais altas. A influência, nesses países,
dos consensos econômico-financeiros que percorrem o mundo em busca de
consumidores incautos foi muito menor. O desempenho deles, não por
acaso, muito melhor.
O Brasil está localizado entre esses dois extremos. Infelizmente,
estamos mais próximos do extremo argentino do que da experiência dos
países bem-sucedidos. Em países como a Argentina e, em menor medida, o
Brasil, a política econômica foi aprisionada por esse eixo externo de poder
político-financeiro e suas ramificações domésticas. As dificuldades do
governo Lula em reorientar a política econômica e honrar seus
compromissos eleitorais talvez sejam indícios da dimensão do problema
que se criou nas últimas décadas. A discussão sobre a independência do
Banco Central não pode estar dissociada desse problema mais amplo.
Esclareço, porém, desde logo, que ao falar em aprisionamento, não quero
passar a impressão de que estamos vivendo situação irreversível e de que
estaríamos condenados a uma espécie de prisão perpétua. Mesmo a
Argentina está, a duríssimas penas, escapando desse esquema.
Como esse eixo de poder político-financeiro internacional domina e se
perpetua? A resposta é conhecida em vários aspectos. É claro que o
dinheiro é sempre um argumento muito importante. Proporciona, por
exemplo, influência e controle sobre os meios de comunicação de massa.
Mas há um outro aspecto que gostaria de mencionar: o controle sobre as
ideias econômicas, sobre o ensino de economia.
O padrão predominante é o das principais universidades americanas,
que vem sendo exportado para o resto do mundo. Boa parte dos
departamentos de economia das universidades brasileiras transformou-se
em consumidor passivo desse padrão de ensino e de pesquisa. De modo
geral, há uma tendência à padronização do discurso econômico. Não em
todo o mundo, não de forma indiferenciada, mas a tendência existe. O
resultado é um estilo de ensino e pesquisa muito abstrato, matematizado,
com pouco conteúdo histórico, traços de intolerância e dogmatismo, carga
ideológica muito pesada e um viés contra o Estado e a dimensão nacional
dos problemas. Por incrível que pareça, na área de economia, ao contrário
do que acontece em muitas outras áreas de trabalho, criatividade virou um
vício, um problema, tal a padronização que se impõe ao pensamento. O
sujeito, antes de ser criativo, tem que pensar com muito cuidado, porque
pode sofrer consequências graves. [Risos]
Os sistemas universitários americano e europeu cumprem há muito
tempo uma função bem determinada. Já que os países da periferia não
podem ser governados diretamente por estrangeiros, porque seria muito
acintoso, convém treinar as elites periféricas. Vou usar uma palavra até mais
forte: trata-se de adestrar as elites da periferia, de condicioná-las a pensar e
agir de determinadas maneiras. Cria-se, assim – vou tomar emprestada uma
expressão de Charles de Gaulle, porque é sempre bom poder recorrer a uma
autoridade inconteste, quando se vai dizer algo forte –, cria-se uma
tecnocracia financeira apátrida, que ocupa boa parte dos postos de comando
nos ministérios de Finanças e nos bancos centrais dos países em
desenvolvimento. Muitas vezes a passagem pelo ministério ou pelo banco
central é apenas um degrau, um passo para postos importantes no sistema
financeiro local e internacional. Evidentemente, desde que o funcionário
siga certos padrões e dance conforme a música. Nesse caso, ele pode ter um
futuro brilhante no eixo Wall Street-Washington e suas ramificações
domésticas.
Pois bem, Sr. Presidente, nesse ambiente, se tenho razão em descrevê-lo
assim, se não estou exagerando, e creio que não estou, a autonomia ou a
independência do Banco Central é um perigo para o Brasil. Isso iria
consolidar e aprofundar a perda de controle sobre a definição dos rumos da
política econômica nacional.
Não estamos aqui lidando com um problema recente; o problema é
antigo. Gosto de citar o senador Severo Gomes, um grande frasista, que, na
década de 1980, quando a esquerda do PMDB queria propor a estatização
do sistema financeiro, disse que já se daria por satisfeito se conseguíssemos
estatizar o Banco Central. [Risos]
A questão é a seguinte: independência em relação a quem? Em relação
ao poder político, eleito democraticamente, ou em relação às forças
financeiras, que têm uma relação simbiótica com os bancos centrais, como
no caso do Brasil?
Na minha opinião, ao longo dos anos, ocorreu um fenômeno que é
relativamente conhecido: a captura do regulador pelo regulado; do Banco
Central pelo sistema financeiro, que ele deveria regular. Isso acontece em
vários países, mais frequentemente em países que têm uma estrutura
precária, onde o Estado é frágil. Aí os interesses privados conseguem fatiar,
feudalizar o aparato estatal e exercer sobre ele um controle bastante
prejudicial do ponto de vista do interesse público mais amplo.
Creio que dar mandatos fixos e longos à Diretoria do Banco Central
agravaria esses problemas. Estaríamos, caso os srs. deputados e senadores
concordem com essa proposta, removendo o contrapeso algo frágil que
existe hoje: a possibilidade que tem o Poder Executivo eleito de demitir e
substituir o comando da instituição. Não podemos esquecer que o Brasil é
um país em desenvolvimento, com uma institucionalidade débil, uma
tradição democrática em construção. O risco de errar na escolha de um
presidente, de um diretor do Banco Central é muito grande.
Recentemente, almocei em São Paulo com um grande banqueiro
brasileiro, que me disse ter sérias dúvidas sobre a autonomia do Banco
Central, sobre a conveniência de dar mandatos fixos à sua Diretoria.
Quando lhe falei que essa sua opinião me surpreendia, ele respondeu que
não era tão ortodoxo quanto eu pensava e que, ao lembrar quem já tinha
sido presidente e diretor do Banco Central do Brasil, ele ficava com medo.
[Risos] São palavras de um grande banqueiro; não sou eu quem está
dizendo isso.
Falta transparência na atuação do Banco Central. Os mecanismos de
prestação de contas são muito frágeis, e não apenas por culpa do Banco
Central, mas também do Congresso, no meu entender. O Poder Legislativo
exerce, sim, a função de fiscalizar, mas nem sempre de forma satisfatória.
As sabatinas do Senado Federal para aprovar os nomes designados para a
Diretoria do Banco Central costumam ser rotineiras, de caráter
homologatório.
Parece-me fundamental deixar bem claro que, quando chega aqui
alguém e diz que esse órgão será autônomo, mas não independente, porque
vai receber as metas do poder político eleito e terá autonomia apenas para,
no espaço do mundo da técnica, controlar a inflação e cumprir as metas
fixadas, está-se criando um certo ilusionismo. A função de perseguir
determinadas metas de inflação, é fundamental, importantíssima, mas não é
a única.
Os bancos centrais têm outras funções, e o Banco Central do Brasil, em
especial, reúne grande número de responsabilidades. Não é apenas um
órgão que executa metas de inflação determinadas pelo Conselho Monetário
Nacional. Ele é o órgão que regula, supervisiona as instituições financeiras.
Funciona, em última instância, como emprestador para o sistema financeiro.
É o órgão que administra a política cambial, regula o mercado cambial e
define o grau de conversibilidade da moeda nacional; é o depositário das
reservas internacionais do país; é uma das principais fontes de informações
estatísticas, econômicas e financeiras – e informação é poder. Enfim, é um
verdadeiro transatlântico; tem enorme importância. É impossível uma
política econômica ser conduzida de forma correta sem estar sintonizada
com a atuação do Banco Central. Mais importante do que a autonomia é a
coordenação entre o Banco Central e a política de Governo exercida pelos
ministérios, que é a posição tradicionalmente defendida pelos economistas
keynesianos.
A afirmação de que existe um consenso no mundo sobre independência
do Banco Central é falsa. Há controvérsias importantes, no plano teórico e
no plano empírico. De qualquer maneira, já sabemos que consensos entre
economistas são muito problemáticos, quando não destrutivos. Então, toda
vez que ouço dizer que há um consenso entre os economistas, tremo da
cabeça aos sapatos, mesmo sendo economista. Os senhores são políticos, e
devem se acautelar toda vez que ouvem uma autoridade, um banqueiro
central ou um economista dizer que, nesse ou naquele ponto, há consenso.
Geralmente, não há. Não há consenso, volto a dizer, sobre a conveniência
de se dar autonomia, independência aos bancos centrais, sobretudo em
países em desenvolvimento.
É uma ideia falsa a de que o Banco Central é um órgão puramente
técnico. Essa questão veio à tona recentemente por obra de declarações do
vice-presidente da República, José Alencar. Ele disse que as decisões no
Banco Central têm que ser políticas, e choveram comentários de
economistas dizendo que o vice-presidente estava errado, que as decisões
tinham que ser técnicas, que se trata de um órgão técnico. O Banco Central
é, ao mesmo tempo, um órgão técnico e um órgão político. Todos os bancos
centrais do mundo, ainda que não queiram reconhecê-lo expressamente, ao
tomar decisões, levam em consideração não apenas informações técnicas,
análises econômico-financeiras, mas também o ambiente político e social.
A repercussão das decisões de um banco central em qualquer economia é de
tal ordem, especialmente em casos como o brasileiro, onde seu peso é muito
grande, que isso se torna uma imposição da realidade.
Portanto, temos que pensar o Banco Central como uma instituição que
opera com critérios técnicos, com equipes técnicas, com análises
econômicas, mas em determinado ambiente político ao qual ele tem que
estar subordinado, atuando em coordenação com o poder político eleito. É
duvidoso, inclusive do ponto de vista da democracia, que um órgão dessa
importância deva ter autonomia e mandatos fixos para sua direção.
Dependendo das escolhas que se faça, isso pode gerar problemas de grandes
dimensões para o país.
A minha conclusão, basicamente, é a seguinte: temos que fazer um
esforço cada vez maior para aperfeiçoar nossas instituições democráticas e
evitar a apropriação privada do aparato público, um problema antigo no
Brasil. Creio que, nesse ambiente em que vivemos, internacional e nacional,
com as dificuldades que temos, a autonomia ou independência do Banco
Central dificultaria ainda mais essa tarefa, que ainda temos pela frente, de
estatizar o Banco Central do Brasil.
Obrigado.

Apresentador (Deputado Delfim Netto) – Agora vamos passar a palavra


para quem desejar arguir os expositores. Vamos alternar. Eu pedirei que um
deputado faça sua arguição e, depois, permitirei que a próxima arguição seja
feita pelo público.
Concedo a palavra inicialmente ao ilustre deputado Jamil Murad.

Deputado Jamil Murad – Armínio Fraga, ex-presidente do Banco


Central, que teve um poder imenso e, em nome do controle da inflação,
impôs a quebradeira às empresas, destruiu a economia, criou desemprego e
sofrimento no governo de Fernando Henrique Cardoso, de repente, volta
para os braços de George Soros. Quer dizer, ele tinha saído mesmo ou era
um olho de George Soros, um executor da política de George Soros? O
capital financeiro teve lucros imensos. Então, parece que ele veio para cá,
fez a política de Soros durante o governo Fernando Henrique Cardoso, e
volta para os braços do seu patrão, o que me parece não deixou de ser
durante o período em que ocupava a Presidência do Banco Central. Eu
gostaria de saber, já que falo com renomados economistas, qual é sua
opinião. Que sensação, como colega de profissão de Armínio Fraga, um
economista tem ao ver que ele ludibriou a nação, trabalhando para o
megaespeculador, ajudando a desgraçar o país? […]

Paulo Nogueira Batista Júnior – Não vou fazer referência a ninguém


em particular; o fato citado é recorrente. Trata-se de padrão que se criou no
Brasil há muito tempo. Não sou contra, absolutamente, que pessoas com
experiência de mercado financeiro desempenhem função pública, inclusive
no Banco Central. Seria um despropósito. Apenas considero que o peso que
isso adquiriu no caso brasileiro acabou conduzindo a uma relação
problemática entre o Banco Central e o sistema financeiro.
Quando falei nisso, não estava insinuando de forma alguma que havia
corrupção. Trata-se de algo um pouco mais sutil, e mais perigoso talvez, do
que a corrupção pura e simples. São laços que se criam ao longo de
carreiras, redes de influência que se estabelecem, de alcance até
internacional, que vão controlando, nos vários países, as alavancas do poder
e os principais instrumentos da política econômica. Influências que não são
democráticas, evidentemente, e que escapam, inclusive, ao âmbito nacional.
É possível enxugar o Banco Central, para tornar a eventual autonomia
mais palatável? É possível. Mas será que é factível em prazo curto? Todas
essas funções que o Banco Central desempenha há décadas são complexas.
Transferi-las para outros órgãos públicos pode não ser conveniente,
eficiente, sobretudo num prazo curto.
Temos que pensar não duas vezes, mas dez e até 20 vezes, antes de dar
autonomia ao Banco Central com esse conjunto de funções ou de poderes
que ele tem hoje no Brasil. Noto que o órgão nunca foi formalmente
independente ou autônomo, a não ser nos seus anos iniciais. Ele foi criado
no governo Castello Branco. Quando chegou o governo Costa e Silva,
nosso deputado Delfim Netto assumiu a condição de ministro da Fazenda, e
rapidamente verificou que herdava um presidente do Banco Central que não
estava em sintonia com a política que queria fazer. Estamos aqui sob a
presidência do ministro que desfez a autonomia do Banco Central. Desde
então, não temos tido mais autonomia naquela instituição.

Apresentador (Deputado Delfim Netto) – […] O Paulo me provocou, e


sou obrigado a responder. Aquela estrutura construída pelo Roberto
Campos, como tudo o que ele construiu, tinha um pouco de poesia e um
pouco de realidade. No caso do Banco Central, era muito mais poesia do
que realidade. Então, ele me mandou um presidente do Banco Central. Vi
que a economia estava afundada. Tínhamos vivido uma recessão do arco da
velha e feito um corte de oferta monetária de 30% para reduzir a
expectativa inflacionária. Aí, o jovem, recém-chegado de São Paulo, disse:
“Isso aqui não funciona.” E realmente mudei aquilo. A política estava
visivelmente errada. Não me arrependo, em nada, por ter feito aquilo. Cada
ministro da Fazenda só vai se arrepender de não fazer isso depois que sair.
O que aconteceu foi o seguinte: a política estava tão errada que a mudamos.
O país cresceu e a inflação caiu. Essa é que é a verdade.
Esse problema da independência, de um ridículo mortal, essa autonomia
tem que ser restrita mesmo a um pequeno pedaço operacional da instituição,
mesmo porque, primeiramente, em todos os lugares onde se instituiu esse
sistema não se deixou o Banco Central com a tarefa de fiscalizar e muito
menos de definir a política cambial. Isso é uma coisa absolutamente
espantosa, mas não quero me meter nisso agora.

Deputado Ronaldo Dimas – Parece que o doutor Paulo não acredita


naquela aura de patriotismo de pessoas que, ao ocupar a presidência do
Banco Central, deixam funções milionárias, bilionárias às vezes, para
ganhar seus 10 ou 20 mil reais mensais à frente do Banco Central e servir à
pátria. Isso é um pouco longe daquilo que o cidadão comum pensa a
respeito de uma pessoa que está à frente de um organismo, de órgão tão
importante. […] O senhor acha que, realmente, não existe essa aura ou não
existe o civismo necessário nas pessoas que estiveram ocupando, e possam
vir a ocupar, esses cargos para defender o interesse maior do país? […]
Uma última pergunta. […] Acho que precisamos, na verdade, de
instrumento regulador não dentro do país ou da Europa, mas nos moldes da
Organização Mundial do Comércio. O fluxo de capitais, hoje, é muito
intenso e não há um instrumento mundial que tenha algum tipo de
influência sobre eles. Então, é muito fantasioso isso ou é possível no futuro,
até em médio e longo prazos, que venha a ser criado um instrumento que
regule esses capitais e apliquem até mesmo multas? Mandou para lá, deixou
lá, foi só um capital especulativo, roubou dinheiro do país e voltou para a
origem. […] Essa é uma situação possível de ser controlada em âmbito
mundial?

Paulo Nogueira Batista Júnior – Não se deve depender do frágil


patriotismo das pessoas para que os órgãos públicos funcionem de acordo
com o interesse nacional. Deve haver uma estrutura mais adequada.
Veja, por exemplo, como se montam as diretorias do Banco Central no
Brasil. Isso, evidentemente, não é feito em praça pública, nem pode ser, mas
as escolhas que os governos fazem estão sujeitas a vetos do poder
financeiro. Em consequência, o comando de uma instituição tão importante
fica excessivamente sintonizada com interesses privados financeiros. Essa é
a minha preocupação, e não questionar o patriotismo, as boas intenções ou a
ética pessoal de “a”, “b” ou “c”. Trata-se de um problema que assumiu um
caráter duradouro no Brasil e precisa ser resolvido.
Gostaria que houvesse em um futuro distante, talvez não na minha vida,
um Banco Central do Brasil mais sintonizado com o país e com um
comando mais eclético, formado não apenas por pessoas advindas do
mercado financeiro e destinadas a esse mercado ou por funcionários de
carreira do Banco Central.
Considero da maior relevância o tema da regulação do movimento de
capitais que V.Exa. acaba de levantar. Tenho batido nessa tecla há anos. Não
acredito que controles de capital possam ser implementados em escala
global, que haja alguma viabilidade de se convencer os países
desenvolvidos a atuarem nesse sentido, até porque eles tiram mais
benefícios do que prejuízos da livre movimentação internacional do capital.
Mas podemos, sim, aplicá-los em âmbito nacional, cuidadosamente, com o
devido planejamento, passo a passo, estabelecendo critérios, regras para
regular a entrada e saída de capitais. Aí, volto à autonomia do Banco
Central.
O Banco Central tem um papel fundamental nessa questão porque ele é
responsável pelas regras do mercado cambial, pela regulação do movimento
de entrada e saída de capitais. Um órgão autônomo, com mandatos fixos
para sua direção, comandado por pessoas da confiança do mercado
financeiro fará isso de forma adequada? Sabemos que o mercado financeiro,
as instituições financeiras querem o máximo de liberdade para entrar e sair
com seus recursos.
Em debate no Conselho de Economia da Fiesp, do qual faço parte – isso
já faz algum tempo –, mencionei a importância desse tema que V.Exa.
levantou e a necessidade de se estabelecer, por exemplo, prazos mínimos de
captação de empréstimos externos, quando as circunstâncias permitirem.
Um economista brasileiro de banco estrangeiro – uma das piores pragas,
diga-se de passagem, são os economistas brasileiros que trabalham em
bancos estrangeiros – perguntou: “E onde fica a liberdade do empresário?”
Respondi: “Desde quando a liberdade da instituição financeira, do
empresário, se sobrepõe à segurança do país?” A segurança do país precisa
ser protegida por um banco central que seja autônomo em relação aos
interesses das instituições financeiras.
[…]

Deputado Paulo Afonso – Tenho lido muito a respeito desse tema.


Coletei artigos, opiniões das mais diversas origens, para aprofundar o
conhecimento sobre esse assunto que muito me interessa. Mas causa-me
muita apreensão, senhor presidente, ilustres palestrantes, que todos os
artigos e opiniões que vi a respeito da autonomia e mesmo da
independência apontem, alguns mais discretamente, com mais pudor, outros
nem tanto, para a necessidade – e isso é que me deixa bastante preocupado
e arrepiado – de afastar a influência política da questão Banco Central.
Precisamos, segundo essas pessoas, proteger o Banco Central dos
políticos ou, o que é mais grave, dos eleitos, porque essas pessoas em quem
o povo vota, que o povo escolhe, seja o presidente da República, sejam os
deputados, sejam os senadores, seriam perigosamente inadequadas para
gerir, no sentido macro, o Banco Central. Não encontrei nenhuma
argumentação que necessariamente não mencionasse essa circunstância.
Portanto, neste momento, externo minha preocupação quanto a isso.
Nós que estamos consolidando a democracia temos nos eleitos, nas suas
propostas e ideias a legitimidade do exercício de suas funções. […]
Paulo Nogueira Batista Júnior – Deputado Paulo Afonso, esse traço do
debate que V.Exa. menciona, de desconfiança em relação aos políticos e de
preocupação em manter o Banco Central isolado da influência perniciosa
dos políticos, mesmo quando eleitos, tem tradição secular no pensamento
econômico ortodoxo. Segundo esse ponto de vista, o sistema político é
imediatista, tem propensão a gastos excessivos e à geração de inflação.
Assim, na organização institucional da economia, seria preciso
encontrar uma forma de preservar a gestão monetária dessa influência
supostamente nefasta. Isso foi tentado de várias maneiras ao longo dos
séculos, durante certo período por meio das regras rígidas do padrão ouro.
Com o desenvolvimento e a sofisticação da economia, ficou impossível
sustentar essas regras, sobretudo depois da Grande Depressão dos anos
1930. Depois do colapso do padrão ouro, os economistas ficaram à cata de
outras formas de isolar o Banco Central da influência política.
Os monetaristas, durante muito tempo, defenderam uma regra de
expansão monetária predeterminada, a que o Banco Central apenas
obedeceria, de forma mecânica. Essa abordagem não funcionou. Fracassou
nos anos 1970 e início dos 1980. Depois tentou-se, para as economias
periféricas ou de menor porte, a regra do câmbio mais ou menos rígido,
chegando, no limite, ao currency board (conselho da moeda), como no caso
argentino. Isso também não tem funcionado a contento, especialmente em
economias maiores, mais sofisticadas. Com o insucesso da abordagem
monetarista e da ancoragem cambial, a ênfase se deslocou para a defesa da
autonomia ou independência do Banco Central.
Já se percebe que não é possível fixar regras simples e rígidas para a
atuação dos bancos centrais e que eles devem ter certa discricionariedade.
Mas o que se pretende é criar – na expressão utilizada pelo presidente
Henrique Meirelles, na abertura deste seminário – um espaço técnico
asséptico, onde os economistas, à luz de teorias supostamente confiáveis,
decidiriam isolados dos políticos. Creio ser isso uma grande ilusão. As
teorias econômicas não têm essa confiabilidade. O grau de incerteza
associado à teoria e à sua aplicação é enorme, como se pode perceber pela
própria incapacidade que têm os economistas de antecipar o futuro. Nós
somos excelentes profetas, mas do passado, só do passado.
Então, temos que encarar essa questão politicamente. O que está em
curso, na realidade, é a tentativa de fazer uma espécie de blindagem de
órgãos vitais do Estado, para isolá-los da influência do eleitor, que pode não
ser muito construtiva. O eleitor pode estar descontente, querendo mudar
alguma coisa, votando contra – ignorância, provavelmente, do eleitor, que
quer mudar e não percebe a sabedoria de certas políticas, de certas práticas.
É contra isso que se quer fazer a blindagem de instituições como as
agências reguladoras e o Banco Central. É como criar um sistema no qual o
eleitor vota, mas não decide.
Deputado, repare o seguinte: quando surgiu o tema da independência ou
da autonomia formal do Banco Central no Brasil? Depois que o então
ministro Delfim Netto destruiu a independência do Banco Central, no fim
dos anos 1960, o assunto praticamente desapareceu no país. Ressurgiu, se
não me falha a memória, sintomaticamente, apenas duas vezes: em 1994,
porque à época um certo metalúrgico, liderava as pesquisas de intenção de
voto para presidente; e, em 2002, quando esse mesmo metalúrgico ganhou
as eleições. Durante os oito anos do governo Fernando Henrique Cardoso,
nada se fez para dar autonomia formal ao Banco Central. E agora estamos
aí, com o metalúrgico instalado na Presidência da República e sendo
pressionado por forças externas e internas a dar essa autonomia, o que, no
fundo, significa abrir mão de poder. Essa é a questão que está sendo
discutida neste momento.

Luiz Carlos Mendonça de Barros – Tenho uma visão completamente


oposta à do Paulo. Ele hoje está se revelando uma pessoa muito amarga.
Sendo esse um problema dele, não podemos deixar que isso traspasse a
instituição pública. No dia em que eu começar a reclamar de algumas
amarguras que tive no passado, não me chamem, porque vou atrapalhar
mais do que ajudar.
Deputado, vejo de outra forma. Vamos pegar como exemplo a Lei de
Responsabilidade Fiscal. O que ela tem de mais importante? Ela isola os
períodos dos mandatos dos eleitos. Isto é, um governador ou presidente da
República eleito tem liberdade para operar na economia, na parte fiscal, nos
seus quatro anos de mandato, mas não pode sacar sobre o futuro de outro
possível eleito.
A questão é complexa, mas acho que nós, no Brasil, evoluímos de
maneira muito adequada nesse sentido. Os governadores, normalmente, no
último ano, fazem alguns saques, e os eleitos que os substituem são
obrigados a passar dois anos pagando as contas relativas ao ano anterior
àquele em que assumiram. Nos quatro anos de mandato, normalmente
governam por dois anos e sacam nos dois anos seguintes. Não há ganhador
nesse processo. Temos exemplos suficientes disso na nossa história.
Em que o Parlamento evoluiu? Ao fixar limites para esses saques em
relação ao futuro. Hoje, temos limites muito claros. É evidente que uma
geração de governadores perdeu com isso, mas hoje restabelecemos na
plenitude os quatro anos de mandato.
Quanto à inflação, temos o mesmo processo. A inflação é uma forma
fiscal de arrancar recursos da sociedade, e uma forma cuja defasagem é até
maior que a do orçamento fiscal de um Estado ou país.
A independência do Banco Central, na minha modesta opinião, não tem
esse caráter de grande trama de interesses financeiros, nacionais ou
estrangeiros, das pessoas que são contra a democracia. O presidente do
Banco Central, Henrique Meirelles, é um democrata. Duvido que alguém
possa dizer que ele conspira tirar do povo o direito de governar. Não
acredito nisso. Não tenho indícios disso.
Se, por um lado, é necessário restringir a ação de um governo no tempo
futuro, por outro, há que se estabelecer limites para essa restrição. Essa é a
ideia que preside o grupo de que participo, que tem clara visão das
vantagens da autonomia do Banco Central. Além do que, disse e repito, a
autonomia, na forma como pretendemos, vai aumentar a transparência da
ação da instituição, contrariamente ao que o Paulo pensa. Essa é a avaliação
histórica de quem vive mais intensamente esse processo.
A caixa-preta, da qual tantas vezes se reclama, existe. Está operando
inclusive no governo do presidente Lula. Tanto é verdade que alguns
iluminados estão discutindo a meta de inflação, e a sociedade se encontra
absolutamente marginalizada de uma decisão que vai comprometer seu
futuro.
Na minha visão, não existe esse problema de eliminar ou reduzir a
presença dos eleitos na discussão da política monetária. Simplesmente
estamos partilhando essa influência entre o Executivo e o Congresso e,
além disso, tornando muito mais transparente a ação da autoridade
monetária.
Em relação ao outro ponto que o Paulo mencionou, sobre como se faz
essa redução de poder do Banco Central, respondo: isso já aconteceu. Fui
diretor de mercado de capitais no Banco Central, órgão que tinha a função
da CVM hoje. Naquela época, a emissão de dívida pública estava no Banco
Central. Não existia Secretaria do Tesouro Nacional. Ela foi criada e
retirada. Não é difícil, basta simplesmente pegar as pessoas que estão
exercendo certas atividades no Banco Central e colocá-las no Ministério da
Fazenda.
Sinceramente, não vejo nenhuma grande armação de interesses
internacionais. Não percebo, na motivação do projeto do Banco Central
autônomo, nenhum tipo de restrição à atuação do político ou a intenção de
diminuir sua influência. Pelo contrário, essa proposta aumenta, por meio do
Legislativo, essa influência. Além disso, na minha opinião, dá à área
monetária uma transparência infinitamente maior do que a atual, em termos
de decisão.

Apresentador (Deputado Delfim Netto) – Antes de prosseguir, digo ao


Paulo, cuja posição foi extrema, que é muito pouco provável que os
europeus tenham constituído a Comunidade Econômica Europeia primeiro
fazendo o Tratado de Maastricht, que é na verdade a nossa Lei de
Responsabilidade Fiscal, depois instituindo o Banco Central, como o caso
em que estamos vivendo. De forma que não há nenhuma restrição ao
processo democrático nessas instituições.
Digo ainda que há equívoco em dizer que se tira do político o poder.
Quem fixa as metas é o Congresso. Quem fixa os objetivos é a LDO,
portanto, o Congresso. De forma que isso tudo, no fim, fica na mão do
Congresso. Ele, ao cabo, vai ter uma responsabilidade maior, porque dirá se
quer uma inflação de 12% ou de 7%. E não creio que nenhum sujeito que
venha a ser eleito vá dizer que deseja inflação de 50%.
Então, o argumento do Paulo, apesar de muito bem elaborado, é
terrorista demais. [Risos]
Concedo a palavra ao senhor Alberto Alves Rodrigues.

Alberto Alves Rodrigues – Quais seriam as influências da adoção da


proposta de autonomia ou independência do Banco Central sobre as
políticas sociais ou sobre o mercado de trabalho, já que a política
monetária, basicamente a taxa de juros, é mais instantânea que a política
fiscal, dado o processo de discussão da LDO?

Paulo Nogueira Batista Júnior – A influência sobre o mercado de


trabalho dependeria muito da execução da política monetária nesse novo
Banco Central. O meu receio é que um Banco Central mais protegido, com
mandatos fixos, com estabilidade no emprego para sua direção, possa ser
rígido demais e acabar desempregando boa parte dos outros brasileiros.
Estabilidade no emprego e direito a demitir os outros. Já temos uma
instituição que resiste, de maneira exagerada, a meu ver, às evidências de
que precisamos de uma gradual redução da taxa de juros, levando em conta
o estado real da economia – não quero ser enfático demais para não ser
chamado de extremista e terrorista.
Quero ainda dizer que não usei a palavra conspiração, e não foi por
acaso. Não é uma conspiração, pois está acontecendo à vista de todos! É um
processo de dominação política e controle, por certos lobbies, das alavancas
da política econômica em muitos países em desenvolvimento. Então, não é
o caso de falar em conspiração.
Se a preocupação é com a falta de transparência do Banco Central, não
vejo por que vinculá-la à concessão de mandatos fixos à sua Diretoria. Nada
impede que os parlamentares estabeleçam regras e leis que aumentem a
obrigação do banco de prestar contas à sociedade e ao Congresso. Não é
preciso mandatos fixos para que isso ocorra.
Falou-se aqui que, com o Banco Central autônomo, quem fixaria as
metas seria o Congresso. Isso não sabemos ainda, não está definido.

Apresentador (Deputado Delfim Netto) – É uma possibilidade.

Paulo Nogueira Batista Júnior – É uma possibilidade, mas o que se


comenta mais frequentemente é que a meta seria fixada pelo Executivo.
Determinar que ela seja fixada pelo Congresso talvez seja uma alteração
interessante. Nessa hipótese, mais uma vez, não seria preciso dar mandatos
fixos à Diretoria do Banco Central. Uma coisa não depende da outra.
Assim, fico um pouco preocupado ao ver que corremos o risco de
agravar alguns problemas que já vivemos ao ter no comando do Banco
Central um conjunto de pessoas que passariam a estar protegidas por
estabilidade no emprego, e que não levam suficientemente em conta o lado
real da economia, em especial o mercado de trabalho.
A última ata do Copom (Comitê de Política Monetária do Banco
Central), aquela que explicou a manutenção da taxa de juros em 26,5%, tem
cinquenta e tantos parágrafos. Apenas dois tratam do mercado de trabalho,
como observou o senador Eduardo Suplicy. É um sintoma da hierarquia de
prioridades dessa tecnocracia financeira que dirige os bancos centrais em
países como o Brasil.

Deputado Enéas – Senhores conferencistas e ilustre plateia, primeiro,


apesar de não me terem outorgado o direito de defender o professor Paulo
Nogueira, que estou conhecendo hoje, ouvi menção específica a seu caráter
amargo – meu colega, deputado Delfim Netto, disse que S. Sa. estava
falando em catástrofe – e quero dizer a todos que ele não é amargo. Ao
contrário, chega a ser doce. Amargo sou eu, e vamos ver por quê. [Risos]
[…] O problema é este modelo perverso, cruel, concentrador de renda,
que faz do Brasil uma colônia cujo papel precípuo é mandar recursos para a
metrópole. A metrópole não são os Estados Unidos, mas as potências
hegemônicas.
[…] Se atentarmos para o fato de que nossas riquezas são mandadas
para o exterior a preço de banana; se lembrarmos que somos o maior
produtor mundial de nióbio – com 98% da produção –, sem o qual não se
constroem aviões supersônicos, e que ele vai embora; se pensarmos que a
tonelada do ferro ou do alumínio lá fora vale menos do que uma noite num
hotel cinco estrelas em Nova York; se imaginarmos que o quartzo é vendido
in natura a menos de meio dólar o quilograma e que voltam os chips a US$
3.000 o quilograma, pelos céus! O que falta para reconhecermos que somos
colônia? O que se quer é agigantar o fosso, isso, sim. É fazer que o mínimo
poder que ainda tem S.Exa. o presidente seja dele retirado.
[…] Não sou doce, sou amargo. Vejo uma realidade dura, terrível da
nação. Há 14 anos digo as mesmas coisas. Não há solução à vista, não
tenham a ilusão.
[…] Doutor Paulo, a pergunta é simples, específica ao senhor – tenho a
minha resposta e quero ouvir a sua. O senhor acredita, com sinceridade, na
possibilidade de, em algum tempo no futuro próximo, o sistema financeiro
internacional romper-se como uma grande bolha especulativa que sangra os
recursos das potências que pretendem estar em ascensão? O senhor acredita
que, de uma forma ou de outra, teremos novo acordo de Bretton Woods,
rompido em 1971 pelo presidente Richard Nixon? O senhor acredita que
haverá condição – eu quero a sua opinião – para que países como o nosso, a
Argentina, todos os irmãos da América Latina e da África, possam levantar-
se e ter um lugar ao sol, ou, na sua opinião, a caminhada para o abismo é
definitiva?

Paulo Nogueira Batista Júnior – Deputado, eu não acredito que vá


haver um novo acordo de Bretton Woods ou uma reforma abrangente da
arquitetura financeira internacional, a menos que ocorra uma implosão de
tal ordem na economia e nas finanças internacionais que viesse a prejudicar
os interesses dos países desenvolvidos. Enquanto isso não ocorrer, as crises
que às vezes sacodem violentamente as nações da periferia – nós passamos
por isso, como vários outros países – não serão suficientes para mobilizar os
principais países para essa reforma.
Essa discussão, na verdade, não saiu da retórica. Nada de muito
importante foi feito. Mas convém ao Brasil construir alianças pontuais –
não digo uma aliança global dos países em desenvolvimento, porque seria
pedir demais – mas alianças como as que estão sendo esboçadas pelo
governo Lula com outros países da América do Sul, como a Argentina,
agora sob outro governo, com a China, a Índia, a Rússia, a África do Sul.
Sem romper relações com os países desenvolvidos, porque isso seria
absurdo, o Brasil pode muito bem trilhar um caminho diferente, de maior
autonomia. Não para o Banco Central, mas para o país.
Esta é a autonomia que devemos buscar, uma autonomia perfeitamente
factível do ponto de vista econômico-financeiro. Trata-se, por exemplo, de
preservar com cuidado os ganhos espetaculares, que obtivemos em termos
de ajustamento externo nos últimos 12 meses. Reduziu-se dramaticamente a
nossa dependência em relação a capitais externos em função da queda do
déficit em conta corrente. Não vamos permitir que isso seja desfeito por
uma revalorização exagerada do real. É perfeitamente possível conceber um
sistema de controles seletivos, cuidadosos, da entrada e da saída de capitais
na economia brasileira. O Brasil pode aumentar suas reservas
internacionais. Elas são baixas demais. Não sei por que não se aproveitou
essa conjuntura um pouco mais favorável dos últimos meses para começar a
aumentar essas reservas. Enfim, o Brasil pode fazer muito para sair do
atoleiro em que se encontra.
Eu não adotei um tom amargo, mas até teria motivos para adotar,
porque o Brasil está há mais de vinte anos sem crescer de forma sustentada.
Esse caminho da integração dependente em relação aos mercados
financeiros internacionais não trouxe resultados para o país. Ao contrário,
trouxe prejuízos.
Quanto ao Banco Central, eu queria dizer o seguinte: a instituição
precisa honrar o seu nome: Banco Central do Brasil.

1 Texto concluído em junho de 2019. Agradeço os comentários e sugestões de Luiz Gonzaga


Belluzzo; as conclusões, erros e omissões são de minha responsabilidade.
2 Existem, também, moedas transnacionais relevantes na África ocidental (o franco CFA) e no Caribe
(o dólar da União Monetária do Caribe Oriental).
3 Nas economias relativamente pequenas com alto coeficiente de abertura (medido pela relação entre
os fluxos de comércio internacional e o PIB), a taxa de câmbio exerce grande influência na
determinação do nível geral de preços. Sendo elevado o coeficiente de repasse de câmbio para
preços, estabilizar a taxa de câmbio pode ser uma forma eficiente de estabilizar o nível geral de
preços da economia.
4 A “trindade impossível” remonta a trabalhos independentes de Mundell e Fleming, publicados mais
ou menos ao mesmo tempo no início da década de 1960. Para uma discussão histórica da origem do
modelo e as referências às obras originais dos dois autores, ver James Boughton. “On the origins of
the Fleming-Mundell model”. IMF Staff Papers, v. 50, n. 1, 2003.
5 Esse custo está na razão direta do diferencial entre as taxas de juro internas e externas. Se o
diferencial é elevado, o custo de carregamento das reservas adicionais pode representar carga
significativa para as finanças do setor público consolidado.
6 Excetuados, evidentemente, os poucos casos de países que não fazem parte da União Europeia, mas
adotaram o euro unilateralmente (o que ocorreu em quatro microestados europeus – Andorra,
Mônaco, San Marino e Vaticano), e os países africanos cujas moedas, antes ancoradas no franco
francês, passaram a se ancorar no euro.
7 Ver, por exemplo, Luiz Carlos Bresser-Pereira, José Luis Oureiro & Nelson Marconi.
Macroeconomia desenvolvimentista: teoria e política econômica do novo desenvolvimentismo. Rio
de Janeiro: Elsevier, 2016, p. 67-90.
8 Ibid, p. 183-201.
9 A rigor, deve-se considerar a dívida líquida do setor público, aquela que excede o estoque de ativos
públicos. Se o déficit é coberto com venda de ativos, o estoque da dívida líquida aumenta na
proporção da diminuição dos ativos do setor público, ao passo que a dívida bruta permanece
inalterada.
10 Na contabilidade fiscal tradicional, são geralmente considerados gastos de capital apenas os que
dizem respeito a ativos físicos de duração superior a um ano. Ver, por exemplo, Davina F. Jacobs.
Capital Expenditure and the Budget. International Monetary Fund, Fiscal Affairs Department, Public
Financial Management Technical Guidance Note. n. 8, abril de 2009.
11 Todos os gastos excluídos do conceito utilizado como alvo da política fiscal continuam, claro, a
afetar os resultados nominais e primários. Mas a sua exclusão do cálculo da variável-alvo no
acompanhamento da política fiscal lhes confere implicitamente prioridade automática, protegendo-os
inclusive de cortes orçamentários e contingenciamentos na execução fiscal. É o que ocorre,
analogamente, quando o foco da política fiscal é a meta de superávit primário, como ocorre no Brasil
e em diversos outros países, o que equivale a conferir implicitamente prioridade automática às
despesas de juros da dívida pública.
12 A questão da independência ou autonomia do Banco Central é o tema do texto seguinte deste
capítulo.
13 Ver, por exemplo, Olivier Blanchard & Daniel Leigh. Growth Forecast Errors and Fiscal
Multipliers. International Monetary Fund, Working Paper, WP/13/1, janeiro de 2013.
14 Para as contas públicas, pode-se estimar resultados ajustados para excluir efeitos cíclicos sobre
gastos e receitas públicas ou, ainda, resultados “estruturais” que excluem também receitas e gastos
não recorrentes. As medidas de núcleo inflacionário podem ser calculadas por diferentes critérios,
mas buscam sempre captar a tendência da inflação, excluindo do índice de preços as variações
consideradas episódicas e temporárias.
15 No caso do Brasil, o Banco Central, mas não o Tesouro, já segue essa orientação. O regime de
metas para a inflação é baseado no IPCA cheio, mas diferentes estimativas dos núcleos inflacionários
são elaboradas e divulgadas pelo Banco Central e são consideradas na condução da política
monetária. O Tesouro não divulga estimativas dos resultados fiscais ciclicamente ajustados. Séries
desse tipo para o setor público brasileiro – apresentadas, porém, sem detalhamento – podem ser
encontradas em publicações do FMI, especialmente nos relatórios das consultas anuais do Artigo IV
e no Fiscal Monitor, publicado semestralmente.
16 A relativa rigidez do mandato do Banco Central Europeu teve consequências práticas por ocasião
da crise recessiva iniciada em 2008. Dos principais bancos centrais, o europeu foi o que mais
demorou a reagir e o que menos fez para contra-arrestar a tendência recessiva. Em contraste, os
Bancos Centrais do Japão, da Inglaterra e, sobretudo, a Reserva Federal, reagiram com mais
prontidão e vigor.
17 Um trabalho pioneiro sobre o tema, escrito da ótica nacionalista, foi publicado por meu pai no
início da década de 1990 e republicado em livro editado pela Fundação Alexandre Gusmão do
Itamaraty: Paulo Nogueira Batista. “O desafio brasileiro: a retomada do desenvolvimento em bases
ecologicamente sustentáveis”. In: Paulo Nogueira Batista Jr. (org.). Paulo Nogueira Batista:
pensando o Brasil – ensaios e palestras. Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 2009, p. 163-76.
A BUSCA DA “AGENDA PERDIDA”1

P aga um preço o cronista que aborda os assuntos de maneira serena e


equilibrada. O leitor gosta de sangue e violência. Eis aí um problema
sério. A minha predisposição de atender e alimentar esses instintos
homicidas tem me custado não poucos inimigos.
Paciência. Vamos lá outra vez. No meu entender, o baixo dinamismo da
economia brasileira reflete a hegemonia de uma orientação de política
econômica essencialmente hostil ao desenvolvimento do país. O governo
Lula nada fez até agora para alterar esse quadro. Pior: decidiu aprofundar,
em diversas áreas importantes, o compromisso com o modelo herdado do
seu antecessor.
A reforma da Previdência Pública, por exemplo, foi mais dura do que as
propostas encampadas pelo governo FHC. A Fazenda e o Banco Central
vêm sendo mais radicais em matéria fiscal e monetária do que a equipe de
Pedro Malan, o que contribuiu decisivamente para a contração da demanda
agregada de consumo e de investimento em 2003. O ex-ministro da
Fazenda e seus assessores devem estar incomodados com a concorrência
sôfrega e desleal dos cristãos novos do governo Lula.
Para muitos tucanos e assemelhados, a explicação da apostasia petista
deve ser buscada na “teoria da credibilidade” (versão de galinheiro,
evidentemente). Em poucas palavras, a “teoria” é a seguinte: como o PT e
os seus economistas passaram anos a fio dizendo e prometendo
barbaridades em matéria de economia (o que não deixa de ter uma dose de
verdade, diga-se de passagem), o governo Lula estaria agora obrigado a ser
mais realista do que o rei. Os excessos da Fazenda e do Banco Central em
2003 e 2004 seriam uma espécie de pedágio – caríssimo – que o atual
governo estaria pagando para construir uma “reputação de seriedade” e
“conquistar a confiança” dos mercados financeiros doméstico e
internacional.
Essa explicação, mesmo na versão de galinheiro, tem alguma validade.
Contudo, ela mascara mais do que revela. A busca incessante da confiança
dos mercados é, ela mesma, produto da vulnerabilidade financeira e da
dependência externa típicas do modelo econômico herdado do governo
FHC e aplicado com fervor renovado pelo governo Lula. Em outras
palavras, o modelo possui mecanismos de autopreservação, pois cria
dependências que tornam arriscados os “desvios de conduta” na área
econômico-financeira. Acontece que as políticas que os mercados
financeiros e seus porta-vozes econômicos estigmatizam como “desvios de
conduta” são justamente aquelas que poderiam conduzir a uma retomada do
desenvolvimento e à geração de empregos…
Mas a resistência à mudança econômica não é uma barreira
intransponível. O observador atento não deixará de perceber que há
exageros e simplificações em muitas das análises que atribuem grande peso
à busca da credibilidade e da confiança. Vou mais longe: credibilidade é
uma das palavras mais prostituídas do vocabulário econômico. O que o
mercado (leia-se o capital financeiro) considera “crível”, “fundamental”,
“tecnicamente sólido” é quase tão volátil como os próprios fluxos
financeiros. Prevalecem interesses, ondas, modismos, impressões, slogans.
A relação disso tudo com ciência, análise e objetividade é sempre
problemática, para dizer o mínimo.
Também existe muito exagero nas avaliações que atribuem um poder
avassalador e ares de fatalidade ao que acontece na área econômica. Nem
todos os países estão tão dominados pelos preconceitos dos mercados
financeiros e pela ortodoxia econômica de galinheiro quanto o Brasil. Basta
olhar um pouco à nossa volta.
Fatalidade é outra palavra muito prostituída. O aspecto mais espantoso
da política econômica do governo Lula está no seguinte fato, mais ou
menos acidental, e que poderia, portanto, ter sido evitado: o controle da
Fazenda e do Banco Central por um grupo razoavelmente homogêneo e
coeso de economistas e financistas, dispostos a ir além dos seus
antecessores em temas cruciais. Por motivos políticos, a sua visão não pode
ser inteiramente explicitada, mas passou a constituir, na prática, o credo
econômico do governo Lula. Quanto ao ministro Palocci, principal
representante do petismo na área econômica, só há duas hipóteses: ou ele
disfarça muito bem, ou a sua catequização já está bastante avançada.
Os economistas e financistas que se apossaram da Fazenda e do Banco
Central podem ter lá as suas diferenças táticas ou de ênfase, mas estão
unidos nas questões essenciais, em especial na convicção, que parece firme
e inabalável, quase religiosa, de que o modelo econômico lançado no
governo Collor e continuado no período FHC estava fundamentalmente
correto, ajustado à melhor doutrina econômica ensinada nas universidades
americanas, praticada pelo FMI e pelo Banco Mundial e aceita pelos
mercados financeiros. O problema, segundo essa visão, é que o modelo não
foi aplicado de maneira completa, com o rigor e a convicção necessários.
Trata-se, assim, de buscar a “agenda perdida”, segundo a ridícula expressão
de alguns membros desse grupo.
Por esses caminhos, e para espanto geral, o governo Lula foi levado a
dobrar a aposta! Ora, qualquer pessoa que pare um pouco para pensar
(mesmo um economista ortodoxo de galinheiro) logo se dará conta de que o
que temos aqui é uma combinação politicamente inviável, possivelmente
explosiva.
Não se deve esquecer que o atual governo foi eleito depois de uma
campanha marcada por promessas de mudança e vigorosas críticas à
política econômica “neoliberal” do período FHC. Tão clamoroso era o
fracasso dessa política econômica que nem mesmo o candidato oficial, José
Serra, se dispôs a defendê-la.
Pois bem, o governo Lula não se contentou em dar continuidade a esse
modelo longamente testado por governos anteriores e fragorosamente
rejeitado na campanha e nas urnas. Resolveu entregar o controle da política
econômica a uma turma que está determinada a seguir a cartilha com mais
determinação e mais intransigência.
Como dizia Tom Jobim, o Brasil não é para principiantes.

1 Publicado originalmente na Agência Carta Maior, em 9 de março de 2004.


CARGA NEGATIVA1

E stou horrorizado com o Brasil, leitor. Não me refiro propriamente à


situação política e econômica, que é sem dúvida muito difícil. O que
me estarrece é a imensa carga de negatividade que pesa sobre o país. Não
me recordo de ter vivenciado clima tão nocivo e uma energia tão destrutiva.
O país parece estar sofrendo um colapso emocional só comparável ao que
aconteceu com a seleção brasileira no jogo contra a Alemanha na Copa de
2014.
Talvez esteja exagerando. Mas vou dar um exemplo que pode parecer
pequeno, mas não é. Está em cartaz nos cinemas um grande filme
brasileiro: Que horas ela volta?, de Anna Muylaert. É um filme feito com
cuidado, delicadeza, sensibilidade. A construção de cada personagem foi
elaborada com maestria, de forma tocante, convincente. O filme emociona,
sem ser apelativo. Enfim, é uma obra de arte.
Pois bem, um grande jornal de São Paulo resolveu publicar uma página
inteira sobre Que horas ela volta?. Não quero ser agressivo com ninguém,
nem contribuir para o ambiente medonho que vivemos. Só direi o seguinte:
antigamente, os grandes jornais tinham críticos de cinema que sabiam do
que estavam falando, tinham conhecimento, sensibilidade. Hoje… Nem sei
o que dizer. Um dos articulistas do grande jornal de São Paulo entendeu o
filme como um panfleto da era Lula e escreveu que alguns dos personagens
principais “não passam de peças de propaganda governista”…
Espantoso. A violenta disputa política em curso no país está
contaminando tudo, absolutamente tudo. É o que acontece, de forma nítida,
com o noticiário econômico. Não há dúvida de que a situação é muito
precária e vai continuar precária por algum tempo. Mas há aspectos
positivos que recebem pouca ou nenhuma atenção.
Um exemplo: o forte ajustamento das contas externas em 2015. Durante
muitos anos, o Brasil acumulou grave problema de sobrevalorização da
moeda nacional. A moeda forte prejudicou muito a indústria do país e foi
gerando um desequilíbrio crescente e perigoso nas contas externas do país.
Agora, a depreciação do real, combinada com a retração da demanda
interna, está produzindo uma correção rápida do desequilíbrio externo,
diminuindo nossa vulnerabilidade. E a depreciação cambial vai ajudar a
tirar a economia da recessão, estimulando exportações e setores que
competem com importações.
É verdade que parte dessa melhora das contas se deve à recessão, sendo,
portanto, “cíclica” e não “estrutural”. É verdade, também, que a
depreciação foi muito intensa num período curto, gerando problemas para
os que têm dívidas em moeda estrangeira. Mas o Banco Central tem
reservas internacionais muito elevadas e outros instrumentos para deter com
sucesso movimentos exagerados – sobretudo se tiver a ajuda de uma
estabilização da situação política e de progressos em matéria de
ajustamento das contas públicas.
Sobre as contas públicas, aliás, o que se afirma e escreve envolve
frequentemente exageros monumentais. “Caos”, “descalabro”, “tragédia
fiscal” são algumas das expressões repetidas incessantemente em artigos,
reportagens e entrevistas. O Brasil tem, sim, um problema fiscal, agravado
pela crise política. Mas há quem compare o Brasil à Grécia! Quem o faz,
não tem a mais remota ideia do que foi a calamitosa irresponsabilidade dos
governos gregos no período que antecedeu a crise internacional de 2008.

1 Publicado originalmente em O Globo, em 2 de outubro de 2015.


O GRANDE DILEMA1

C om que problemas macroeconômicos se defronta o Brasil? Com dois,


fundamentalmente: o desemprego e as finanças públicas. Os dois
problemas são graves, mas o pior é que a solução do segundo agrava o
primeiro. O corte de gastos ou o aumento dos impostos deprime ainda mais
a atividade e o emprego. Este é o grande dilema.
O que fazer? Um bom começo é não se iludir. Há algum tempo, era
popular entre economistas ortodoxos a aposta no oximoro “contração fiscal
expansionista”. Um governo com força política, especialmente em início de
mandato, deveria tomar medidas drásticas de diminuição de despesas e
aumento de receitas. Esse choque fiscal restauraria a confiança, levando à
expansão compensatória do consumo e do investimento privados, que
neutralizaria o efeito contracionista do ajuste das contas. Se tudo corresse
bem, o choque fiscal terminaria sendo expansionista. Não existiria,
portanto, o referido “grande dilema”.
Foi o caminho que se tentou em 2015, depois da reeleição de Dilma
Rousseff. Não funcionou, como se sabe. E não só no Brasil. A experiência
internacional desacreditou a “contração expansionista”. O efeito confiança
existe, sim, e não deve ser desprezado. O problema é que ele é muito
incerto quanto à magnitude e pode demorar a se materializar. Já os efeitos
contracionistas do choque fiscal sobre a demanda se fazem sentir
imediatamente e com força. Estudos realizados nos anos recentes no FMI
mostraram, inclusive, que os multiplicadores associados à contração fiscal
costumam ser mais elevados em economias estagnadas ou em recessão.
Economistas heterodoxos também têm suas ilusões, entre elas a de que
o crescimento econômico resolve a questão fiscal. A recuperação da
economia exigiria, argumenta-se, estímulo fiscal (expansão do gasto ou
diminuição de tributos). Mas a expansão fiscal se autoviabilizaria por meio
de seus efeitos favoráveis sobre a atividade e o emprego e, indiretamente,
sobre as receitas e despesas públicas. Para esses economistas, também não
existiria o “grande dilema”.
O argumento é irrealista. Só se sustenta com suposições extravagantes
sobre o tamanho dos multiplicadores keynesianos e da elasticidade da
receita em relação ao produto. Não leva em conta, além disso, o impacto
adverso da expansão fiscal, em condições de fragilidade fiscal, sobre a
confiança e as taxas de juro de médio e longo prazos.
Há alguma verdade dos dois lados. Têm razão os heterodoxos quando
dizem que sem crescimento econômico é difícil, talvez impossível,
equacionar a questão fiscal. E têm razão os ortodoxos quando insistem que
é essencial preservar a confiança na política fiscal. Chegamos assim a um
preceito aristotélico que eu, quando mais jovem, considerava um tédio total:
“A virtude está no meio.”
O que tudo isso significa em termos práticos? Primeiro, a política fiscal
não deve ser hostil ao crescimento; deve ao contrário favorecê-lo na medida
do possível. Não cabe adotar, portanto, uma política fiscal contracionista.
Mas deve haver compromisso inequívoco com disciplina fiscal e
equilíbrio das contas no médio e longo prazos. Medidas para garantir esse
equilíbrio devem ser tomadas sem demora, inclusive na área previdenciária.
Para assegurar a credibilidade de uma política fiscal desse tipo a solução
clássica é introduzir regras fiscais críveis, que ancorem as expectativas em
relação aos resultados fiscais. As regras existentes (teto do gasto, regra de
ouro e meta para o resultado primário) não cumprem esse objetivo e
precisariam ser abandonadas ou reformuladas.
E como ficaria a questão do emprego? De onde viria o impulso para
reativar a produção? Em condições de fragilidade fiscal, o impulso teria que
vir de: a) uma mudança na composição da política fiscal; e b) dos
determinantes não fiscais do consumo e do investimento agregados e das
exportações líquidas.
Tornar a política fiscal mais amigável ao crescimento não é fácil na
prática, mas significa favorecer gastos com multiplicadores elevados sobre
atividade e emprego (infraestrutura, construção, transferências para setores
de baixa renda) e mudar a composição da tributação para aumentar a renda
disponível de setores de baixa renda (com maior propensão marginal a
consumir) e diminuir a renda disponível dos setores de renda mais alta.
Com a alavanca fiscal travada, seria preciso recorrer às políticas
monetária, cambial e de crédito. Dada a estrutura da dívida pública, a
combinação juros moderados/câmbio depreciado, além de ajudar a
retomada da economia, favorece o equilíbrio das contas públicas.
Releio o que escrevi. Bela estratégia. Lembrei, porém, do Garrincha:
“Já combinou com os russos?”

1 Publicado originalmente na Carta Capital, em 27 de junho de 2018.


CAPÍTULO 5

Perfis
BRIZOLA EM 19611

“Os verdadeiros indivíduos são raros nesses tempos de domesticação


universal.”
Maurice Barrès

A morte de Leonel Brizola é um marco. Afinal, não é toda hora que


temos um grande morto para enterrar e reverenciar.
Verdade seja dita: a política brasileira é um deserto só comparável ao do
Saara. Poucos se salvam. O que prevalece é o despreparo, o oportunismo, o
carreirismo. Ao longo da vida tenho conhecido políticos de diferentes
partidos e diferentes orientações. Salvo um ou outro caso, posso lhes dizer,
com toda a franqueza: falar em interesse nacional com essa gente é fazer
papel de Quixote.
Por isso mesmo, assisti com interesse arregalado a todas as reprises de
entrevistas e depoimentos de Brizola de que tenho notícia. Vale a pena. É
uma satisfação escutá-lo. Não é qualquer um que nos fala. O que salta aos
olhos, imediatamente, é a sua imensa e esmagadora superioridade em
relação aos políticos comuns.
É lamentável que Brizola tenha sido tão boicotado e tão vetado em vida,
que a sua voz não tenha tido o alcance merecido. Não foi por acaso,
evidentemente. Os motivos desse boicote são conhecidos. Brizola tinha
estilo e grandeza. Fazia um uso devastador da palavra. Sabia emocionar.
“Basta-me um microfone para derrotar os adversários”, dizia. Era uma
ameaça permanente à coligação de mediocridades que domina a política e a
economia neste país.
“Um romântico extraviado na política”, escreveu Carlos Heitor Cony.
Romantismo? Talvez. Mas a palavra que, a meu ver, sintetiza suas
qualidades é outra: fibra.
Fibra é o que Brizola demonstrou ter em diversas ocasiões. Em 1961,
por exemplo. Foi um grande momento da história brasileira. Com a
renúncia de Jânio Quadros, armou-se um golpe. A junta formada pelos
ministros militares, com apoio de forças civis, havia resolvido
simplesmente rasgar a Constituição do país e impedir a posse do vice-
presidente João Goulart. O golpe só não vingou por obra, coragem e
tenacidade de um brasileiro: o então governador do Rio Grande do Sul,
Leonel de Moura Brizola.
Brizola tomou conta da Rádio Guaíba, e pôs “a alma para fora”, como
lembrou em depoimento recente à TV Cultura. O seu pronunciamento,
transmitido da sede do governo, o Palácio Piratini, em 28 de agosto,
começou assim:

Peço a vossa atenção para as comunicações que vou fazer. Muita atenção. Atenção,
povo de Porto Alegre! Atenção, Rio Grande do Sul! Atenção, Brasil! Atenção, meus
patrícios, democratas e independentes, atenção para estas minhas palavras! […]
O Palácio Piratini, meus patrícios, está aqui transformado em uma cidadela, que há de
ser heroica, uma cidadela da liberdade, dos direitos humanos, uma cidadela da civilização,
da ordem jurídica, uma cidadela contra a violência, contra o absolutismo, contra os atos
dos senhores, dos prepotentes. […]
Nós não nos submeteremos a nenhum golpe, a nenhuma resolução arbitrária. Não
pretendemos nos submeter. Que nos esmaguem! Que nos destruam! Que nos chacinem,
neste Palácio! Chacinado estará o Brasil com a imposição de uma ditadura contra a
vontade de seu povo. Esta rádio será silenciada tanto aqui como nos transmissores. O
certo, porém, é que não será silenciada sem balas. […]

O que Brizola pretendia, de imediato, era conclamar os gaúchos a sair


às ruas para resistir ao golpe:

Não desejo sacrificar ninguém, mas venham para a frente deste Palácio, numa
demonstração de protesto contra essa loucura e esse desatino. Venham, e se eles quiserem
cometer essa chacina, retirem-se, mas eu não me retirarei e aqui ficarei até o fim. Poderei
ser esmagado. Poderei ser destruído. Poderei ser morto. Eu, a minha esposa e muitos
amigos civis e militares do Rio Grande do Sul. Não importa. Ficará o nosso protesto,
lavando a honra desta nação. Aqui resistiremos até o fim. A morte é melhor do que vida
sem honra, sem dignidade e sem glória.

O resultado foi fulminante. Dezenas de milhares de pessoas se


aglomeraram na praça em frente ao Palácio Piratini. Começara a resistência
que frustraria os planos golpistas. A solidariedade ao governador espalhou-
se pela cidade, pelo estado e depois pelo Brasil. Houve até o seguinte fato
inusitado: dirigentes do Grêmio e do Internacional assinaram um manifesto
conjunto de apoio a Brizola!
O Brasil tem sido governado, nas últimas décadas, por uma geração de
pigmeus, desfibrada e pobre de espírito. É sintomático, por exemplo, que
uma figura como Fernando Henrique Cardoso, um político tão pouco
identificado com o Brasil, que nutre um desprezo mal disfarçado pelo país,
tenha ocupado, por oito anos, a Presidência da República. Com que náusea
um grande político como Brizola deve ter testemunhado esse longo reinado
de mediocridade e entreguismo.
O nacionalista francês Maurice Barrès definia o nacionalismo como o
reconhecimento do peso do passado, das grandes vozes da terra e dos
mortos. A voz de Leonel Brizola é uma das que sempre merecerá o nosso
reconhecimento.

1 Publicado originalmente na Agência Carta Maior, em 29 de junho de 2004.


NENHUMA DERROTA É DEFINITIVA1

“O sertanejo é, antes de tudo, um forte”, escreveu Euclides da Cunha.


Nascido em Pombal, no sertão paraibano, Celso Furtado confirmou
esplendidamente a célebre frase de Euclides. Em texto de 1972, “Aventuras
de um economista brasileiro”, ele recorre à sua dura experiência de criança
e adolescente, no interior do Nordeste, para explicar a formação em seu
espírito de certos elementos invariantes, de algumas ideias força das quais
dificilmente poderia libertar-se sem correr o risco de desestruturar a sua
personalidade. “A primeira dessas ideias”, escreveu ele, “é a de que a
arbitrariedade e a violência tendem a dominar no mundo dos homens. A
segunda é a de que a luta contra esse estado de coisas exige algo mais do
que simples esquemas racionais. A terceira é a de que essa luta é como um
rio que passa: traz sempre águas novas, ninguém a ganha propriamente e
nenhuma derrota é definitiva.”
Nenhuma derrota é definitiva. Essa ideia força adquire um significado
especial na atual fase da vida brasileira. Celso Furtado tem recebido
homenagens enfáticas de todos os cantos. É aquela máxima machadiana:
“Está morto; podemos homenageá-lo à vontade.” Não são tantos os que
realmente se identificam com ele, a sua prática e o seu pensamento. Para
estes, os últimos tempos não têm sido fáceis, como não devem ter sido para
o próprio Furtado.
A sua última iniciativa política foi o envio de uma mensagem de
solidariedade a Carlos Lessa, que seria demitido da presidência do BNDES
logo depois. Belo presente de despedida do presidente Lula a Celso
Furtado. O presidente da República foi criticado por não ter comparecido a
seu enterro. A crítica é injusta. A ausência de Lula é perfeitamente coerente
com a linha que vem adotando na área econômico-financeira – uma linha
que é de deixar horrorizada qualquer pessoa que se identifique com Furtado
e sua visão do Brasil e do mundo. Furtado era discreto e não queria criar
dificuldades para o governo. Mas basta conhecê-lo um pouco para saber
que o grande economista deve ter morrido amargurado com a falta de
coragem, iniciativa e criatividade do governo Lula no campo econômico.
Como se sabe, Celso Furtado era um economista sui generis. Nada a ver
com as hostes apátridas e mentalmente colonizadas que dominam a nossa
profissão no Brasil. Por isso foi impróprio o destaque que deu a Folha de
S.Paulo na primeira página, no dia seguinte à sua morte, à afirmação de um
articulista de que Furtado havia sido o mais “globalizado” dos brasileiros. O
que o caracterizava era uma dedicação apaixonada aos problemas dos
países subdesenvolvidos, em especial do Brasil. “Um brasileiro com B
maiúsculo”, disse Carlos Lessa.
Hegel escreveu certa vez: “Nada de grande se faz neste mundo sem
paixão.” Pois Furtado era um apaixonado pelo Brasil. O que explica a
repercussão da sua obra no exterior é sua interpretação criativa e original da
trajetória histórica do nosso país e de outros países subdesenvolvidos. Um
contraste marcante com a produção intelectual da maioria dos economistas
brasileiros, mesmo de muitos dos mais destacados e celebrados, que se
notabilizam por reproduzir e divulgar teorias e recomendações econômicas
importadas. Por isso mesmo, não despertam curiosidade e interesse fora do
país.
Criatividade. Esse é um tema recorrente na obra de Furtado. Em
conferência pronunciada na USP em 2000, ele sintetizou bem a natureza
das nossas dificuldades nesse terreno: corremos o risco de acabarmos
“reduzidos ao papel de passivos consumidores de bens culturais concebidos
por outros povos”. A questão, para ele, era “preservar o gênio inventivo de
nossa cultura em face da necessidade de assimilar técnicas que, se
aumentam nossa capacidade operacional, são vetores de mensagens que
mutilam nossa identidade cultural”. Em outras palavras: “Como apropriar-
se do hardware da informática sem intoxicar-se de seu software, os sistemas
e símbolos que com frequência ressecam nossas raízes culturais?”
No cerne de suas preocupações estava a necessidade de “voltar à ideia
de projeto nacional, recuperando para o mercado interno o centro dinâmico
da economia”. O maior obstáculo a esse objetivo continua a ser a
concentração da renda nacional, que só será revertida “mediante uma
grande mobilização social”, afirmou.
Nos últimos anos de sua vida, Furtado se dirigia frequentemente aos
jovens brasileiros, alertando-os para os desafios que têm pela frente. A
conferência na USP terminou com o seguinte apelo, que cito a título de
conclusão:

Temos que preparar a nova geração para enfrentar grandes desafios, pois se trata de,
por um lado, preservar a herança histórica da unidade nacional, e, por outro, continuar a
construção de uma sociedade democrática aberta às relações externas. […] Numa palavra,
podemos afirmar que o Brasil só sobreviverá como nação se se transformar numa
sociedade mais justa e preservar a sua independência política. Assim, o sonho de construir
um país capaz de influir no destino da humanidade não se terá desvanecido.

1 Publicado originalmente na Folha de S.Paulo, em 25 de novembro de 2004.


CINCO ANOS EM CINQUENTA1

“Não se promove a grandeza de uma nação com escrúpulos cretinos.”


Nelson Rodrigues

O lema de Juscelino Kubitschek, que traduzia muito bem o espírito do


seu governo e, mais do que isso, o espírito do Brasil da época, ficou na
nossa história: 50 anos em 5!
Hoje, o Brasil é outro. Parece que envelheceu prematuramente. Exibe
todos os receios, as cautelas, os achaques, as queixas da idade avançada.
Multiplicam-se os sintomas de perda de vitalidade e de autoconfiança. Por
exemplo: quem dá as cartas no país, entra governo, sai governo, é a tribo
tenebrosa dos economistas, especialmente aqueles que conseguem alojar-se
no comando do Banco Central. Impera, consequentemente, o medo de
crescer. Toda vez que a economia ameaça levantar a cabeça, o Banco
Central se assusta e pisa forte no freio monetário.
No tempo de JK, os economistas não tinham o prestígio e o poder que
viriam a adquirir depois. O Brasil nem tinha Banco Central! JK escutava os
seus economistas, mas não se deixava dominar por preocupações senis com
equilíbrio e estabilidade. Ele tinha a noção intuitiva de que
desenvolvimento econômico não se faz sem desequilíbrios e instabilidade.
Em outras palavras, ele sabia que o lema positivista, inscrito pelos
republicanos na bandeira nacional, é intrinsecamente contraditório: não há
progresso sem desordem.
Juscelino deixou a Presidência da República em 1961. Desde então,
nunca mais conseguimos conciliar desenvolvimento com democracia. Foi
desgraça atrás de desgraça. Atravessamos uma grave crise política e
econômica nos anos 1960. Tivemos 20 anos de ditadura militar. No início
da década de 1980, a economia entrou em uma longa fase de
semiestagnação da qual ainda não conseguimos sair. A safra de presidentes
civis foi pobre.
Quase se poderia dizer: depois de JK, foram 5 anos em 50! A fama e a
lenda de Juscelino repousam, em parte, no contraste com o que veio depois
dele. Para a maioria dos brasileiros, seu governo é uma referência marcante.
Só um grupo minoritário, mas bastante influente, de economistas e
banqueiros ecoa as críticas que a oposição udenista e economistas liberais,
como Eugênio Gudin, faziam ao governo JK. Para esse grupo, que se
orientava por teorias econômicas importadas dos EUA e da Europa,
Juscelino era um irresponsável, um presidente sem compromisso com a
austeridade fiscal e o controle da inflação.
Nelson Rodrigues foi um dos que vocalizaram, já na época, a resposta a
esse tipo de crítica. “Lançam a inflação na cara de Juscelino”, escrevia ele
em 1961.

Mas o Brasil estava de tanga, estava de folha de parreira, ou pior: com um barbante
em cima do umbigo. Todo o Nordeste lambia rapadura. E vamos e venhamos: para um
povo que lambe rapadura, que sentido têm os artigos do professor Gudin? Sempre
existiram os Gudins e o povo sempre lambeu rapadura. Ao passo que o Brasil só conheceu
um Juscelino.

Nada mais verdadeiro, nada mais profético. Os Gudins continuam por


aí, aos montes, ensinando suas lições importadas de estabilidade e
responsabilidade.
E nunca mais apareceu um Juscelino.

1 Publicado originalmente na Folha de S.Paulo, em 2 de fevereiro de 2006.


UM ICONOCLASTA1

“Galbraith será lembrado e lido quando a maioria de nós, Prêmios Nobel,


estiver enterrada em notas de rodapé nas estantes empoeiradas das
bibliotecas.”
Paul Samuelson, em 1991

C om a morte de John Kenneth Galbraith, desapareceu um dos expoentes


de uma espécie em extinção: o economista independente, crítico e
irreverente. Galbraith possuía uma combinação extraordinária de
qualidades: capacidade analítica, visão abrangente, originalidade, estilo
primoroso e senso de humor.
Dotado de ampla cultura e conhecimento profundo de várias áreas da
economia, ele foi um dos mais importantes economistas keynesianos da
segunda metade do século XX. Poucos contribuíram tanto para
desmoralizar o que ele chamava de sabedoria convencional – a dos
economistas e a de outras tribos.
Em parte por isso, sua influência nunca foi grande nos meios
acadêmicos. Ele era visto por muitos como uma “personalidade da mídia”, e
não como “economista sério”.
Galbraith não tinha, claro, a pretensão de ser o que os economistas
normalmente entendem por “economista sério”. A ironia e o sarcasmo
estavam entre suas principais armas. Sem deixar de ser elegante, ele sabia
como ninguém desconcertar os adversários.
A função dos economistas não é entreter ou divertir, mas o humor
permite tomar certa distância dos temas abordados, sendo, portanto, de
“considerável utilidade científica”, dizia ele com uma ponta de ironia. “Ao
considerar o comportamento econômico”, acrescentou, “o humor é
especialmente importante, uma vez que, desnecessário dizê-lo, grande parte
desse comportamento é infinitamente ridículo”.
Um dos seus alvos prediletos: os ridículos do comportamento financeiro
e dos episódios especulativos. A seguinte passagem é bem característica do
seu estilo mordaz:

Pode-se admitir, para fins práticos, que a memória financeira dure no máximo uns 20
anos. Esse é normalmente o tempo que leva para apagar a recordação de um desastre e
para que alguma variante das demências anteriores se apresente e capture a mente
financeira. É também o tempo geralmente requerido para que uma nova geração entre em
cena, impressionada, como suas predecessoras, com o próprio gênio inovador.

Regra geral, observava Galbraith, as operações financeiras não se


prestam à inovação: “O mundo das finanças celebra a invenção da roda
reiterada e repetidamente, não raro numa versão ligeiramente mais
instável.”
A obra de Galbraith, que é vasta e variada, afasta-se totalmente do estilo
dominante nos estudos de economia, marcados por crescente
matematização. Ele era um institucionalista, que adotava a perspectiva
histórica e uma abordagem multidisciplinar. Para ele, a economia não
deveria ser discutida em abstrato, isolada das questões ideológicas, políticas
e sociais.
“Não pode haver dúvida”, escreveu Galbraith, “de que a dedicação
prolongada a exercícios matemáticos em economia pode ser danosa. Ela
leva à atrofia do julgamento e da intuição, que são indispensáveis para
soluções reais, e, às vezes, leva também ao hábito mental de simplesmente
desconsiderar os aspectos matematicamente inconvenientes”.
Muitos países foram vítimas de experiências desastrosas de política
econômica, conduzidas por economistas com esse tipo de treinamento ou
deformação. O Brasil não é exceção, longe disso. A atual política monetária
e cambial é um exemplo gritante.
O que salva esses economistas, como observou Galbraith, é que os
padrões pelos quais as autoridades governamentais são julgadas tornaram-
se muito complacentes. Depois de provocarem infortúnios graves,
economistas saem do governo com reputações reforçadas. E passam a
ocupar, no setor privado, cargos prestigiados e mais bem remunerados.

1 Publicado originalmente na Folha de S.Paulo, em 4 de maio de 2006.


O MAIOR BRASILEIRO
DE TODOS OS TEMPOS1

“Escolho este meio de estar sempre convosco.”


Getúlio Vargas, na carta-testamento

O jornal Folha de S.Paulo publicou os resultados de uma enquete com


200 pessoas de diferentes áreas (políticos, empresários, economistas,
religiosos, intelectuais, jornalistas, esportistas e militares). A pergunta era:
“Quem foi o brasileiro mais importante de todos os tempos?” Getúlio
Vargas e Juscelino Kubitschek encabeçaram a lista dos escolhidos, com 16 e
15 votos, respectivamente.
Talvez seja mais um sintoma da mudança de estado de espírito do
brasileiro, que, desencantado com a agenda liberal-internacionalista
implantada na década de 1990, agora olha com outros olhos o legado
nacional-desenvolvimentista. Há dez ou quinze anos, o ambiente era
totalmente diferente. No seu discurso de despedida do Senado, em
dezembro de 1994, o presidente eleito Fernando Henrique Cardoso teve a
imensa pretensão de anunciar o fim da Era Vargas. As suas palavras na
ocasião foram um aviso do que nos esperava nos oito anos seguintes: “O
caminho para o futuro desejado ainda passa, a meu ver, por um acerto de
contas com o passado. Eu acredito firmemente que o autoritarismo é uma
página virada na história do Brasil. Resta, contudo, um pedaço do nosso
passado político que ainda atravanca o presente e retarda o avanço da
sociedade. Refiro-me ao legado da Era Vargas.”
E, no entanto, Getúlio Vargas continua conosco, como ele previu na sua
carta-testamento, enquanto políticos como Fernando Henrique foram
relegados à proverbial lata de lixo da história (na referida enquete, diga-se
de passagem, FHC não recebeu um voto sequer).
Nos anos 1990, o PSDB foi o principal herdeiro da UDN (União
Democrática Nacional), isto é, da corrente liberal, conservadora e pró-
Estados Unidos que sempre se opôs (nem sempre democraticamente) a
Getúlio e Juscelino. Esse partido, que ostentava ironicamente o adjetivo
“democrático” no nome, oscilava entre o golpismo e a participação inepta
em eleições presidenciais. A UDN só venceu eleições para presidente da
República quando escolheu como candidato o demagogo tresloucado
chamado Jânio Quadros.
Eleito pelo voto direto em outubro de 1950, Getúlio teve como principal
adversário um candidato udenista, o brigadeiro Eduardo Gomes. Gomes já
havia sido derrotado pelo general Dutra nas eleições de 1945, ocasião em
que seu lema de campanha fora, inacreditavelmente: “Vote no brigadeiro,
ele é bonito e é solteiro.”
A minha família contava com partidários ferozes do brigadeiro. Houve
quem pressionasse os empregados domésticos a votar nele, e os empregados
prometiam seguir a orientação. Quando começaram a ser anunciados os
primeiros resultados da eleição, com Getúlio vencendo por larga margem,
alguém da família foi até a cozinha e percebeu que os empregados, reunidos
na área de serviço, acompanhavam tudo pelo rádio e celebravam, eufóricos.
Uma marcha de Carnaval daquele ano prenunciara a volta do político
gaúcho à Presidência da República: “Bota o retrato do velho outra vez, bota
no mesmo lugar, o sorriso do velhinho faz a gente trabalhar.”
Grande Getúlio! Na história política brasileira, marcada pelo
pragmatismo e pela tendência à conciliação, o seu suicídio em 1954 destoa
dramaticamente. Getúlio avisou que não se submeteria ao golpe de Estado
que estava sendo deflagrado por setores das Forças Armadas e da UDN.
Matou-se com um tiro no coração, em seu quarto, no Palácio do Catete.
Deixou-nos a carta-testamento, belo documento, do qual tirei a frase usada
como epígrafe.
A carta de Getúlio termina assim:
Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado.
Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a
luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no
pensamento a força para a reação. […] Lutei contra a espoliação do Brasil.
Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as
infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida.
Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o
primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na
História.

1 Publicado originalmente na Folha de S.Paulo, em 5 de abril de 2007.


UM BRASILEIRO1

E m dezembro de 2000, Gustavo Kuerten, o Guga, chegou à posição de


número 1 do ranking mundial de tênis depois de vitórias espetaculares
sobre Agassi e Sampras e da conquista da Masters Cup. O Brasil atravessa
grave crise de confiança, de autoconfiança e a descrença é generalizada, na
economia, na política e no próprio país. Precisamos, mais do que nunca,
lembrar dos grandes brasileiros. Dos nossos esportistas e artistas, por
exemplo.
Eu também poderia escrever sobre Marília Pera, que acabamos de
perder. Guardo uma lembrança viva da sua atuação em peças como Master
Class e Mademoiselle Chanel em que ela representou de maneira brilhante
outras duas grandes artistas: a grega Maria Callas e a francesa Coco Chanel.
Mas prefiro falar do Guga, que conheço pessoalmente.
É que ele é casado com a minha filha mais velha, Mariana. Na verdade,
Mariana é minha enteada. Mas a considero como filha. Dois dos meus netos
são filhos dela e do Guga.
Os familiares e amigos do Guga sabem que há uma correspondência
total entre o Guga, figura pública, e o Guga da vida diária. Todas as
qualidades que o público em geral reconhece nele – a delicadeza, a
generosidade, a integridade, o humor, a descontração, o respeito e o cuidado
com os outros, entre outras –, tudo isso está claramente presente no Guga
com quem passei a conviver nos anos recentes.
Não é de estranhar. Dizia Lincoln: “Pode-se enganar todos por algum
tempo, alguns o tempo todo, mas não se consegue enganar todos o tempo
todo.” É muito difícil, provavelmente impossível, projetar uma imagem
pública, e sustentá-la ao longo do tempo, sem que ela corresponda ao que a
pessoa realmente é.
Guga publicou recentemente um livro sobre sua trajetória, que inclui
capítulo fascinante sobre a conquista de 15 anos atrás e as partidas que o
levaram a isso. O livro se chama: Guga – um brasileiro. Repare, leitor, no
subtítulo. Poucos brasileiros são tão conhecidos no exterior. Ainda na
semana passada, participei de um painel em Tóquio. O moderador japonês
do debate, que conheço há muitos anos, resolveu me apresentar como
“sogro de Gustavo Kuerten, o Guga, três vezes vencedor de Roland
Garros”. Foi um sucesso.
Pois bem, essa celebridade internacional faz questão de se autodesignar
“um brasileiro”. Por muito menos, simplesmente por ter viajado ou vivido
algum tempo no exterior, muitos brasileiros preferem se declarar “cidadãos
do mundo” e renegar, ou deixar em segundo plano, sua nacionalidade…
Diversas partes do livro transcendem o tênis. Vale pensar, por exemplo,
no que ele diz sobre como lidar com derrotas:

Existe pouca coisa pior para um jogador do que duvidar de sua capacidade. Só os
obstinados são campeões. Derrotas podem ser compreensíveis, às vezes inevitáveis, mas
jamais aceitáveis. […] É bobagem essa história de que é na derrota que se aprende a
ganhar. Perder uma partida tem, sim, seus ensinamentos e lidar com a frustração é uma
lição necessária para todo tenista. Mas no dia em que um jogador se conforma com
resultados desfavoráveis, já era, pode pendurar as chuteiras.

O Brasil não pode pendurar as chuteiras.

1 Publicado originalmente em O Globo, em 11 de dezembro de 2015.


UM ARTISTA1

O correu-me escrever certa vez, ecoando Nietzsche: “Todo artista


verdadeiro está além do bem e do mal.” O que quis dizer é que um
artista não pode ser julgado, enquanto artista, por seu comportamento
pessoal ou suas posições políticas. Estava me referindo a Maurice Barrès,
sobre quem volto a escrever um pouco.
Barrès é praticamente desconhecido no Brasil, mas foi uma das grandes
figuras da literatura francesa nas décadas anteriores à Primeira Guerra
Mundial. Vale a pena conhecer sua obra. Além de romancista e ensaísta, foi
parlamentar, ativista político e um dos criadores do pensamento nacionalista
francês.
A noção de enraizamento desempenha papel crucial na sua versão do
nacionalismo. Para ele, cada um de nós é um prolongamento de nossos
antepassados, que vivem e falam por nosso intermédio. Em outras palavras,
somos o produto de uma coletividade que ressoa dentro de nós. A nossa
força reside, segundo Barrès, em nos submetermos sem hesitações “às
grandes vozes da terra e dos mortos”. Desconectados desse solo e desse
passado, ficamos sem base e sem referências. E perdemos a nossa fonte
primordial de energia vital.
Tudo isso faz muito sentido para mim. Eu, que por circunstâncias
familiares e depois profissionais vivi tanto tempo no exterior, só sobrevivi e
só não me desfigurei porque nunca me considerei “cidadão do mundo”
(tenho horror dessa expressão e nem sei o que pode realmente significar).
Por mais longe que esteja, estou sempre conectado de alguma forma ao
Brasil.
Volto a Barrès. Infelizmente, ele se colocou do lado errado em uma das
maiores injustiças da história francesa: a condenação do capitão Alfred
Dreyfus, de origem judaica, acusado de entregar segredos militares à
Alemanha. Barrès era um dos porta-vozes, não raro vociferante, dos
antidreyfusards e defensor intransigente do exército francês e, por extensão,
das barbaridades que fizeram contra um inocente. Chegou a escrever que a
raça de Dreyfus o predispunha à traição…
E, no entanto – e aí queria chegar –, foi um artista maravilhoso. As suas
palavras tinham toda uma música própria e as cadências barresianas ficaram
famosas.
Para dar uma ideia ao leitor ou leitora, traduzo sua descrição de um
passeio de gôndola em Veneza, conhecido como O incêndio de Veneza:

Veneza, rente ao mar, se estendia e fazia uma barra mais importante à medida que o
sol se extinguia. Colorações fantásticas se sucediam que teriam forçado a alma mais
indigente a se emocionar. Ora tons sombrios e esses verdes profundos próprios das ruelas
misteriosas de Veneza; ora esses amarelos, esses alaranjados, esses azuis com que jogam
os decoradores japoneses. Enquanto no Ocidente o céu se liquefazia num mar ardente,
sobre nossas cabeças nuvens inebriantes de magnificência renovavam perpetuamente suas
formas, e a luz do crepúsculo as penetrava, as saturava de seus incontáveis fogos. As suas
cores delicadas e dilaceradas de lirismo se refletiam na laguna, de sorte que nós
deslizávamos sobre os céus. Eles nos cobriam, eles nos carregavam, eles nos envolviam
de um esplendor total e, por assim dizer, palpável. Vencidos por essas grandes magias,
havíamos perdido toda noção de realidade quando manchas escuras apareceram,
cresceram sobre a água, depois nos tomaram na sua sombra. Eram os monumentos dos
doges.

A quem assim escreve tudo se pode perdoar.

1 Publicado originalmente em O Globo, em 16 de setembro de 2016.


A PLATAFORMA CEDEU1

E m certa época do ano é difícil dizer coisa com coisa. Os cérebros


entram em recessão sincronizada. O lugar-comum reina inconteste. As
piores trivialidades ganham ares de sabedoria. Proliferam as invocações
apócrifas de grandes nomes. Fernando Pessoa, por exemplo, sofre.
O momento atual é especialmente ingrato e até os expedientes mais
corriqueiros não ajudam nada. Recuso-me, por exemplo, a tentar uma
retrospectiva de 2016 – ano que, como disse alguém, nem deveria ter
começado. Perspectivas para 2017? Nem pensar.
Vejamos. Ocorre-me falar um pouco sobre Abraham Lincoln. Foi o
maior dos presidentes dos Estados Unidos. Era um estadista, sem dúvida.
Venceu uma das mais sangrentas guerras civis da história, mantendo a união
do seu país.
Lincoln tinha, além disso, o dom da palavra. Mais do que isso: foi um
grande escritor. Diferentemente dos políticos de hoje, escrevia de próprio
punho seus discursos e correspondência. E investia muito tempo e cuidado,
mesmo nos momentos difíceis, em prepará-los e revisá-los. Alguns dos seus
pronunciamentos entraram para a história. No Memorial de Lincoln, em
Washington, D.C., dois deles estão inscritos em pedra: o discurso de
Gettysburg e o segundo discurso de posse. Recomendo ao leitor que os leia
ou releia. São primorosos, do começo ao fim. E têm, ademais, a virtude da
brevidade.
Mas o meu favorito, menos conhecido, é o pequeno discurso de
despedida, em Springfield, Illinois, em 1861, quando Lincoln iniciava a
viagem para a posse em Washington – especialmente a passagem em que,
com sentido de predestinação, dizia: “Estou agora de partida, sem saber
quando, ou se jamais voltarei, e com uma tarefa diante de mim maior do
que aquela que pesava sobre Washington.”
Disse isso tranquilo, com naturalidade – e ninguém estranhou a
enormidade do que acabara de ser dito. O momento era grave, uma guerra
civil parecia prestes a estourar; só que Lincoln era um político provinciano,
e mesmo eleito presidente, ainda subestimado por muitos. A audácia de
dizer que a sua tarefa era maior do que a de George Washington, o grande
herói do país, o líder da Guerra de Independência! Mas por um instante,
imagino, foi como se todos os presentes se dessem conta de que aquela
partida era quase uma sagração, e aquelas palavras mais do que qualquer
coisa que Lincoln pudesse proclamar em sua posse formal.
Lincoln era também um homem simples e de grande senso de humor.
Célebre por suas histórias e anedotas, levava seus ministros à loucura,
quando, até em momentos de emergência, interrompia graves discussões
para relatar episódios e contar casos, às vezes apenas remotamente ligados
aos pontos em questão. O filme de Spielberg sobre Lincoln retratou bem
esse seu lado.
Uma das suas histórias é especialmente instrutiva. Um rapaz disputava
um emprego público e para tal precisava responder um questionário. Estava
indo muito bem até que esbarrou numa questão delicada: causa da morte do
pai? É que seu pai tinha sido enforcado como ladrão de cavalos.
O candidato pensou, pensou, até que veio a luz: “Meu pai participava de
uma cerimônia pública, quando a plataforma cedeu.”

1 Publicado originalmente em O Globo, em 6 de janeiro de 2017.


TEMPO CRUEL1

O tto Lara Resende, figura pública e escritor célebre em sua época, é


hoje quase ignorado. As novas gerações não têm a mais vaga ideia de
quem possa ter sido – um exemplo notável de como o tempo pode ser cruel
com celebridades de certo feitio. Curiosamente, Otto sobrevive não pelos
seus escritos, mas como personagem folclórico de um dos seus amigos:
Nelson Rodrigues – este, sim, até hoje lembrado, lido e citado.
Com 13, 14 anos, eu já gostava de ler jornal. Lia inclusive os artigos do
Nelson e do Otto em O Globo. Os do Otto não me tocavam. Faltavam-lhes
vivacidade e vibração. As crônicas do Nelson eram mais turbulentas e
interessantes. Ele desancava sem dó os ídolos da esquerda, entre eles
Godard, aquele cineasta francês. Eu nunca ia ao cinema e não tinha noção
da Nouvelle Vague, mas achava Godard o fim.
O Otto era casado com uma prima-irmã da minha mãe e, por isso,
cheguei a conhecê-lo pessoalmente. Devo dizer, leitor: ele era
impressionante. Foi o rei do bate-papo e um inigualável frasista e contador
de casos. As performances dele eram sensacionais e famosíssimas em toda
a cidade do Rio de Janeiro. Certa vez, conta o Nelson, o Otto compareceu a
um velório. Cumprimentou a viúva e os familiares do morto comme il faut,
mas, de repente, não se conteve e soltou uma piada. Até o defunto riu. O
Nelson costumava dizer que o Estado brasileiro deveria pagar um
taquígrafo para ir atrás do Otto, anotando o que ele dizia, as pérolas, as
críticas certeiras, as frases cintilantes, os paradoxos surpreendentes, tudo
que ele mesmo nunca chegava a botar no papel. Eu, ainda menino, também
notava, perplexo, o contraste entre o Otto verbal e sonoro, ao vivo e a cores,
e o Otto escrito e publicado, bolorento e insípido. Era como se ele, genial
frasista, insistisse em vestir casaca e envergar polainas antes de se sentar
para escrever.
Décadas depois, fui apresentado ao Armando Nogueira, que conheceu
bem tanto o Nelson como o Otto. Falamos sobretudo do Nelson, mas a certa
altura da conversa comentei a dissonância entre a pessoa física e a pessoa
literária do Otto. O Armando concordou e contou que o próprio Nelson
dizia que, para escrever bem, o Otto teria que, primeiro, ser “currado por
três crioulões no Aterro do Flamengo”.
O Otto era provavelmente um pouco almofadinha, levava uma vida
privilegiada, gostava de um conforto, de aninhar-se em empregos e posições
de destaque. Não podia arriscar, portanto. Tinha que contemporizar,
silenciar, fazer concessões. Já o Nelson não fugia de polêmicas. Ao
contrário, gostava de cultivá-las, não tinha medo de ser desagradável, de
fustigar as idiotices triunfantes.
Nietzsche dizia que o grande homem tem que ser contra o seu tempo.
Para alcançar a imortalidade, ele não pode ser um participante pacífico e
acomodado da sua época e dos preconceitos da sua época. E, realmente,
sem a coragem – que talvez seja a virtude primordial –, o brilho, a
criatividade, a inteligência caem no vazio, não têm sobrevida. Não por
acaso, foi Nelson e não Otto que ficou para sempre. Nelson, contestado e
até odiado em seu tempo, entrou para a História. Otto sobrevive, na melhor
das hipóteses, como personagem do amigo, na ilustre companhia do
Sobrenatural de Almeida, do Palhares (aquele que não respeitava nem as
cunhadas), da Cabra Vadia e da Grã-Fina das Narinas de Cadáver.
O Armando Nogueira me relatou, na mesma ocasião, um episódio
emblemático. Um dia, o Nelson e o Otto estavam caminhando pela Avenida
Atlântica. O Otto disse: “Nelson, você está atacando demais as esquerdas!”
(Na época, leitor, as esquerdas estavam na moda e intimidavam todo
mundo.) O Nelson ouviu a advertência do amigo e indagou: “Você acha
realmente que eu ataco demais as esquerdas?” O Otto resolveu ser mais
enfático: “Qualquer dia você leva um tiro!” O Nelson espantou-se: “Corro
mesmo o risco de levar tiro?” O amigo confirmou, sem pestanejar. O
Nelson ficou pensativo um instante e então perguntou: “Se eu morrer, você
escreve a meu respeito?” O Otto prometeu que sim, claro.
E o Nelson: “Mas exagera, viu, exagera!”

1 Publicado originalmente em Zero Hora, em 21 de janeiro de 2017.


LEMBRANÇAS DE UM OUTRO BRASIL1

Q uero fazer a minha pequena homenagem ao ex-presidente Lula.


Muitos se manifestaram sobre ele em textos e depoimentos
emocionados e emocionantes por ocasião da sua prisão. O que poderia eu
acrescentar a tudo que já foi dito? Talvez relatar brevemente episódios que
testemunhei e que revelam algumas das muitas qualidades de Lula.
Um desses episódios ocorreu em 2009, quando Lula resolveu emprestar
dinheiro ao FMI, algo sem precedentes para um país como o nosso. Na
época, eu era diretor executivo pelo Brasil e outros países no FMI. Desde
2006, o Brasil vinha acumulando reservas internacionais em ritmo
acelerado e estava em posição forte. Graças a isso, o país conseguiu
atravessar com relativa tranquilidade a aguda crise que irrompeu em 2008
nos sistemas financeiros dos EUA e da Europa. Os países desenvolvidos,
apavorados com a instabilidade financeira, queriam reforçar rapidamente o
poder de fogo do FMI, criando substanciais linhas de crédito para a
instituição. Pediram aos países emergentes mais fortes, inclusive o Brasil,
que ajudassem na mobilização de recursos.
O problema é que aportar recursos dessa forma não daria poder de voto
adicional ao Brasil no FMI. A reforma da instituição caminhava devagar.
Havia sido aprovada a reforma de quotas e governança de 2008, que
melhorara um pouco a posição relativa do Brasil e de outros países em
desenvolvimento em termos de poder de voto. Mas a segunda etapa da
reforma, que prometia avanços mais expressivos, estava ainda em
negociação.
Manifestei ao governo brasileiro a minha avaliação de que seria melhor
obter avanços em termos de reforma da governança do FMI antes de fazer
qualquer empréstimo. O presidente Lula não aceitou as minhas ponderações
e autorizou a abertura de uma linha de crédito de até US$ 10 bilhões ao
FMI.
Não demorou muito para que ficasse claro para mim que ele estava
certo e eu, errado. O tino político do presidente valeu mais do que os
cálculos do economista. O impacto da decisão foi enorme, tanto fora como
especialmente dentro do país. O Brasil, país devedor contumaz, e às vezes
relapso, estava agora na condição de credor da mais importante instituição
financeira multilateral. Foi um verdadeiro tiro de canhão no nosso
proverbial complexo de vira-lata.
Além disso, a operação se revestia de características especiais. O FMI é
um risco de crédito sólido, a remuneração não era muito inferior à
rentabilidade média das nossas reservas internacionais e qualquer
desembolso feito ao abrigo da linha de crédito tinha liquidez total
assegurada pelo FMI e poderia, portanto, continuar sendo contabilizado
como parte das reservas brasileiras. Mudava a composição, não o nível das
reservas.
Esse episódio com o FMI se insere em um movimento mais amplo de
fortalecimento da posição internacional do Brasil, iniciado por Lula já no
seu primeiro mandato. Desde o início, ele revelou um talento especial para
a articulação internacional. Em poucos anos, ele se tornou conhecido e
respeitado no mundo inteiro por governos das mais variadas tendências.
Para a surpresa geral, estabeleceu por exemplo uma relação cordial com
o presidente dos EUA, George W. Bush. Isso permitiu que Lula
desempenhasse um papel-chave na transformação do G20 – que inclui os
principais países emergentes – no principal foro para cooperação econômica
internacional em substituição ao G7, composto exclusivamente pelos
principais países desenvolvidos. Desde a primeira reunião de líderes do
G20, em Washington, no fim de 2008, Lula foi uma presença marcante,
verdadeiro orgulho para os brasileiros que, como eu, acompanhavam de
perto sua atuação.
Quando me lembro dessa época, leitor, fico com a sensação de estar
tratando de outro país, não deste em que hoje vivemos. Com Lula, o Brasil
andava sempre de cabeça erguida. Sem arrogância, sem bravatas, mas sem a
subserviência que caracteriza o comportamento de grande parte da elite
brasileira.
Outro traço notável de Lula: o poder nunca lhe subiu à cabeça e nunca o
afastou das suas raízes. Passei dez anos no exterior, primeiro em
Washington e depois em Xangai, mas sempre que vinha ao Brasil procurava
fazer uma visita a ele. Numa dessas visitas, aconteceu algo curioso.
Ao final do nosso encontro, ele me perguntou se eu não gostaria de
participar da próxima reunião na sua agenda que era com as lideranças de
catadores de lixo. Aceitei e acabei presenciando um diálogo muito
interessante. Vieram lideranças do Brasil inteiro, homens e mulheres,
pessoas articuladas e inteligentes, representantes de um movimento social
organizado. Lula conhecia todo mundo e mostrou impressionante domínio
dos detalhes do trabalho dos catadores, da história do movimento e das suas
reivindicações.
Mas o que mais me ficou na lembrança foi a natureza da relação entre
Lula e as lideranças de um movimento popular. A relação era de respeito,
mas não de veneração e muito menos adulação. As lideranças
questionavam, sem constrangimento, algumas das afirmações de Lula, que
aceitava as contestações com toda naturalidade. Era o diálogo franco e
substantivo de um líder político natural, autenticamente democrático, com
integrantes da sua base social.
Saí dali energizado, confiante de que o Brasil estava entrando em nova
etapa da sua história.

1 Publicado originalmente na revista Carta Capital, em 18 de abril de 2018.


CAPÍTULO 6

Humor econômico e outras crônicas


UM SOBRINHO
NO MERCADO FINANCEIRO1

E ra o que me faltava: um sobrinho no mercado financeiro! O rapaz é


inteligente e preparado: passou em primeiro lugar em concurso para
trainee de um banco de investimentos. Agora, não tenho tranquilidade de
espírito nem em reuniões de família.
No mercado financeiro, o processo de catequização pode ser rápido e
fulminante. Depois de pouco tempo, o sujeito começa a se dar conta, por
exemplo, da lógica irretocável da política monetária do Banco Central. Em
almoço familiar recente, o referido sobrinho disparou, irônico e bem-
humorado: “Tenho concordado com todos os seus artigos, menos com a
crítica à taxa de juro, que não está acima do equilíbrio.”
Deixei escapar um suspiro. Lembrei-me de que, logo no início do
governo Lula, em 2003, fiz uma visita ao ministro Antonio Palocci, que, a
certa altura da conversa, soltou o seguinte: “Não sei se você trabalha com o
conceito de taxa de juro equilíbrio, mas o Banco Central tem estudos que
mostram que, no nosso caso, o juro básico de equilíbrio é da ordem de 10%
em termos reais.” Ali, comecei a compreender que tudo estava perdido.
Devo dizer que, na minha ignorância, nunca encontrei teorias ou
pesquisas econômicas que pudessem justificar uma taxa básica de
“equilíbrio” de 10% em termos reais – muito menos juros básicos
superiores a 14%, como os atuais. Ninguém explica, convincentemente, por
que o Brasil é obrigado a praticar juros reais sete vezes maiores do que a
média observada nos principais mercados emergentes.
A réplica do sobrinho não foi muito diferente da que ouvi do ministro
da Fazenda – apenas mais violenta, considerando o parentesco. Um dos
grandes problemas, segundo eles, é que o Brasil recorreu a uma moratória
unilateral, em 1987, deixando um rastro de desconfiança que influi sobre os
prêmios de risco e os juros. Para recorrer à gíria futebolística, isso equivale
a “bater na medalhinha”. Não sei se o leitor por acaso sabe, mas eu fui um
dos responsáveis pela suspensão de pagamentos aos bancos estrangeiros
naquela ocasião.
Mesmo assim, procurei ser paciente, tanto com o ministro como com o
sobrinho. Lembrei que a Rússia decretou moratória unilateral, bem mais
recentemente, em 1998, com amplas repercussões internacionais – e em
seguida reestruturou a dívida em bases essencialmente unilaterais (passo
que o Brasil nunca chegou a dar). A Argentina fez o mesmo ainda mais
recentemente: suspendeu pagamentos em fins de 2001 e reestruturou a
maior parte da dívida afetada de forma basicamente unilateral em operação
concluída em 2005 (a outra parte da dívida continua em moratória). Ora,
tanto a Rússia como a Argentina praticam juros moderados, sempre muito
inferiores aos do Brasil. Nos meses recentes, esses dois países têm
registrado até mesmo taxas básicas de juro negativas em termos reais.
O ministro da Fazenda não insistiu, mas o sobrinho, com o ardor da
juventude, ainda sustentou que o problema não era só a moratória de 1987,
mas um conjunto de fatores adversos: inflação mais alta do que a média
internacional, déficits expressivos nas contas governamentais e uma dívida
pública perigosamente elevada – todos argumentos de ampla circulação no
mercado. Nesse ambiente, o Banco Central não teria alternativa senão
praticar juros mais altos do que os internacionais.
Nenhum desses argumentos convence. A inflação brasileira não é muito
mais alta do que a que se observa no resto do mundo. O déficit público,
apesar do Banco Central e das suas taxas de juro, também não é dos mais
elevados. Na verdade, o déficit fiscal no Brasil vem sendo inferior aos
déficits de todos ou quase todos os principais países desenvolvidos. A
dívida pública brasileira cresceu rapidamente no período FHC, mas não se
pode dizer que ela esteja muito acima dos níveis médios registrados nos
países desenvolvidos e nos demais emergentes.
Não quero sobrecarregar a paciência do leitor com estatísticas que
comprovariam as afirmações do parágrafo anterior. Gostaria apenas de dizer
o seguinte, para terminar: só há uma variável macroeconômica brasileira
que discrepa, há muito tempo e de maneira nítida e inequívoca, da
experiência internacional: a taxa de juro. A taxa de juro fixada pelo Banco
Central e, mais ainda, as taxas cobradas pelos bancos.
Deus nos proteja da lógica impecável do Banco Central e do sistema
financeiro! No almoço familiar referido, não terminei de forma tão
dramática. Virei para os demais sobrinhos, que acompanhavam a discussão
em silêncio, e disse: “Na geração de vocês, ele é quem vai pagar a conta do
restaurante. Vocês terão de escutar uns argumentos esquisitos sobre juros,
mas almoço grátis sempre vale a pena.”

1 Publicado originalmente na Folha de S.Paulo, em 8 de setembro de 2005.


BANHAS DOGMÁTICAS1

P osso tratar, leitor, de um tema de nível relativamente baixo? Queria


falar um pouco do segundo escalão da área econômica do governo
federal.
Vale a pena? Quem desconhece o funcionamento interno dos governos
tende a subestimar a importância dos integrantes do segundo ou terceiro
escalão. As agendas do presidente da República e de seus ministros estão
sempre muito sobrecarregadas por eventos variados, e não raro inúteis,
como cerimônias, inaugurações, discursos, solenidades e audiências.
Enquanto isso, em surdina, o segundo escalão toca o governo, pensa (às
vezes), examina os problemas e vai tomando decisões ou orientando as
decisões presidenciais e ministeriais.
Na área econômica do governo Lula, esse fenômeno é particularmente
saliente. É o que costuma ocorrer quando o ministro da Fazenda e o
presidente do Banco Central não são do ramo. O ministro Antonio Palocci é
um político, médico sanitarista por formação; Henrique Meirelles é um
executivo da área bancária, com escassa formação econômica. Resultado: o
segundo escalão dá as cartas, em grande medida. A dupla Palocci-Meirelles
aparece, dá entrevistas e explica políticas que eles nem sempre determinam
ou mesmo compreendem.
Um exemplo desse fenômeno é Afonso Bevilaqua, integrante da
diretoria do Banco Central. Como o grande público não conhece seus feitos,
suas realizações, suas ideias (não, “ideias” já é exagero), passo a apresentá-
lo rapidamente. Ocupa o cargo de diretor de política econômica do Banco
Central e é um dos membros do famigerado Copom (Comitê de Política
Monetária). Formado nos EUA, procura seguir fielmente os preceitos da
economia ortodoxa (ortodoxia de galinheiro, por suposto). É relativamente
jovem, com pouca experiência fora da área acadêmica.
Segundo se comenta e notícia há algum tempo, o referido diretor tem
grande peso nas reuniões do Copom, chegando a dominá-las inteiramente
em várias ocasiões. Ele é que estaria por trás da extraordinária rigidez da
política monetária. As taxas estratosféricas de juro e a enorme valorização
cambial vêm sendo debitadas, em grande medida, à sua obstinação.
Uma curiosidade: trata-se de um gordo. Dizia Nelson Rodrigues que as
banhas predispõem aos afetos, à conciliação, aos aconchegos. Nesse caso,
não. O gordo em questão se notabiliza, ao contrário, pela inflexibilidade e
pelo dogmatismo.
Ora, o Banco Central é provavelmente o último lugar em que se deve
colocar um dogmático. A autoridade monetária trabalha em um ambiente
marcado por incertezas e riscos. Não consegue interpretar e prever o
funcionamento da economia com precisão. Os efeitos das decisões de
política monetária, cambial e financeira são sempre difíceis de antecipar.
Nessas condições, caro leitor, fundamentalistas costumam produzir
desastres. De posse das alavancas decisórias na área monetária, um grupo
de tecnocratas, ou mesmo um economista individual, pode fazer um estrago
monumental. A combinação mais perigosa é essa mesma: inexperiência e
dogmatismo. Aliás, o segundo resulta, às vezes, da primeira.
Encontrei-me, nesta semana, com o célebre economista argentino
Roberto Frenkel. Ele conhece bem o Brasil, mas perguntou-me, espantado:
“Explica uma coisa: como é que o governo brasileiro conseguiu a proeza de
derrubar o PIB com a economia mundial em fase de forte expansão, com
todos os ventos internacionais a favor?”
A minha resposta não merece ser registrada, pois, como diria Oscar
Wilde, tomou a forma deprimente de informações úteis e precisas. Mas
acabei falando um pouco da contribuição individual de Bevilaqua.
Frenkel, que o conheceu como obscuro coadjuvante de alguns
professores da PUC-RJ, ficou simplesmente estarrecido. Nem queria
acreditar.

1 Publicado originalmente no Jornal do Brasil, em 9 de dezembro de 2005.


HUMOR ECONÔMICO1

M ark Twain dizia: reúna os fatos e, depois, os distorça à vontade.


Ótimo. Mas, leitor, convenhamos, ele era um ficcionista, e não um
simples economista. Como se sabe, imaginação nunca foi o nosso forte.
Portanto, nas minhas crônicas só entram fatos reais.
Parece difícil de acreditar? Talvez seja. O problema é que as pessoas
nem sempre estão atentas ao lado cômico ou dramático do cotidiano. Do
nosso cotidiano pessoal e do cotidiano econômico e político. Em outras
palavras: é perfeitamente possível tirar leite de pedra sem fantasiar os fatos.
Bem sei que, como lembrava Nietzsche, “não há fatos, só
interpretações”. Mas não vamos complicar o óbvio. Um exemplo: há
tempos, escrevi na Folha de S.Paulo sobre um sobrinho que ingressou
brilhantemente nas fileiras de um prestigiado banco de investimentos em
São Paulo.2 O rapaz se converteu com rapidez fulminante à sabedoria
econômica convencional. Foi medonho. Antes, o referido sobrinho era um
crítico exaltado e insistente (até enfadonho) das “elites oligárquicas”. Hoje,
defende vigorosamente a política de juros do Banco Central. Em resumo,
acabou o meu sossego. Agora, não tenho mais tranquilidade nem nos
almoços de família.
Uma amiga chegou a perguntar: “É ficção? Ou o tal sobrinho existe
mesmo?” Existe, realmente existe. Os leitores que me deram a satisfação de
comparecer ao lançamento do meu último livro, em São Paulo, puderam
apalpá-lo, farejá-lo e até pedir-lhe dinheiro emprestado.
Outro exemplo: escrevi no Jornal do Brasil sobre um aspecto
estritamente folclórico da política monetária.3 Vale uma breve reprise. A
política de juros do Banco Central tem sido dominada por um economista
doutrinário, que aplica a ferro e fogo o modelo de metas para a inflação. Por
obra sua, em grande medida, os juros nacionais não encontram paralelo no
mundo estatisticamente mapeado. Se os brasileiros não entendem essa
política, os estrangeiros menos ainda. Gabriel Palma, um economista da
Universidade de Cambridge, chegou a qualificar a política monetária
brasileira de “histérica” e “suicida”.
Os demais membros do famigerado Copom (Comitê de Política
Monetária do Banco Central) não conseguem resistir à ferocidade
dogmática desse economista. Agora, o aspecto folclórico: trata-se
paradoxalmente de um gordo, um gordo de notável circunferência. Ora,
como comentava Nelson Rodrigues, as banhas predispõem aos afetos, aos
aconchegos, às conciliações. Nesse caso, não. Ao contrário, o gordo em
questão é rigorosamente inflexível, sempre disposto a tudo sacrificar no
altar do combate à inflação.
Alguns leitores me escreveram indignados. Acusaram-me de estar
acertando contas pessoais. Nada disso. Nem conheço o tal economista. Em
verdade, vos digo: nunca o vi mais gordo.
O economista, principalmente o economista brasileiro, não pode abrir
mão do humor e até do deboche. Vociferar contra as irracionalidades do
poder econômico e político nunca será eficaz. E pode ser o caminho mais
rápido para o hospício.
Se quisermos conservar o que nos resta de sanidade mental, temos que
estar sempre alertas para o lado infinitamente ridículo do poder econômico
e do comportamento dos seus fiéis servidores.

1 Publicado originalmente no Jornal do Brasil, em 6 de janeiro de 2006.


2 Neste livro, p. 411-3.
3 Neste livro, p. 414-5.
EXÍLIO1

N o exterior, longe da pátria querida, todo brasileiro é um pobre e


desamparado ser. Depois de poucos dias, o sentimento é de exílio total
– ainda que o exílio seja confortável, ainda que o exílio seja dourado.
Evidentemente, há os brasileiros desnaturados, os falsos brasileiros, que se
deslumbram com qualquer viagem. Mas não é deles que estou falando, e
sim do brasileiro autêntico e puro. Do brasileiro subdesenvolvido até a
medula.
Sejamos francos: nenhum brasileiro é “cidadão do mundo” – embora
muitos queiram se fazer passar por tal. Nós somos, e sempre fomos,
suburbanos natos e hereditários. No brasileiro, a sofisticação é sempre um
artificialismo meio barato, meio importado. Brasileiro cosmopolita é uma
contradição em termos.
Quando me mudei para Washington para assumir o cargo de diretor
executivo no FMI pelo Brasil e outros países, logo me senti um exilado.
Cheguei na primavera, com sol, dia após dia. Ainda bem, pois, como dizia
Fernando Pessoa: “Deem-me o céu azul e o sol visível. Névoa, chuvas,
escuros – isso tenho eu em mim.” Entre parênteses: é tão bom poder
lembrar de Fernando Pessoa, ele que dizia também: “Minha pátria é a
língua portuguesa.”
Psicologicamente, o meu exílio está mais para cinzento do que dourado.
O tempo pesa, leitor. Dois dias duram dez.
Paciência. Escrever este texto é como voltar um pouco para casa. Digito
esta frase simples e – não sei bem por que – sou tomado de repente por uma
onda de emoção. Ridículo, não? Talvez sejam os velhos fantasmas da
infância. Meu pai era diplomata, e nós, crianças, éramos arrancados, a cada
dois anos, de um país para o outro, sem dó nem piedade.
Um dia nos chegava a notícia, de chofre: “Papai foi removido.” E
pronto: nosso pequeno mundo vinha abaixo. Sobrava apenas o núcleo
familiar, um ninho portátil de neuroses, como qualquer família.
Por incrível que pareça, até os 20 e poucos anos de idade, nunca havia
morado dois anos consecutivos em uma mesma cidade. Essa instabilidade
geográfica deixou suas marcas – cicatrizes talvez seja a palavra mais
adequada. Desenvolvi, aos poucos, um verdadeiro ressentimento contra
viagens e uma fobia de mudanças. Há poucos anos, em São Paulo, fui
obrigado a mudar de apartamento. Encontrei outro, exatamente no mesmo
quarteirão. Mesmo assim, foi um deus nos acuda!
Imagine, leitor, como me senti com a mudança de hemisfério, de país,
de língua, de trabalho – tudo ao mesmo tempo. Vi-me em plena Roma
moderna, trabalhando no FMI – of all places! Aliás, houve quem notasse
certa incongruência em me mandar para cá. Quando a notícia veio a
público, produziu-se uma pequena tempestade nos jornais brasileiros. “O
homem errado no lugar errado”, decretou, por exemplo, O Estado de São
Paulo em editorial, com chamada de primeira página e tudo.
Quando acompanhei o ministro Guido Mantega em visita ao diretor-
gerente do FMI, Rodrigo de Rato, Mantega, que é um gozador, disse a ele,
sorrindo: “O que estão dizendo na imprensa brasileira sobre o Paulo
Nogueira não é verdade. Ele é muito pior!” Rato riu amarelo e retrucou:
“Não se preocupe, vamos soterrá-lo com documentos.” Foi exatamente o
que aconteceu.
Fui escrevendo, escrevendo e, de repente, percebo que não era bem esse
o tema que pretendia abordar. Eu queria era falar um pouco sobre
nacionalismo. E, no entanto, pensando melhor, foi o que acabei fazendo.

1 Publicado originalmente na Folha de S.Paulo, em 10 de maio de 2007.


UM SONHO1

Q uero declarar de saída: não sou um sonhador. Nem metafórica, nem


literalmente. Sou cético por temperamento, e raramente me lembro de
sonhos. Mas fiquei impressionado com um sonho recente.
Antes de relatá-lo, peço ao leitor licença para algumas considerações.
Escrevi “leitor” por mera convenção. Quero me dirigir às mulheres, em
especial. Isso porque elas têm o espírito um pouco mais aberto para o lado,
digamos, obscuro, misterioso da vida e da morte.
Vivemos vidas essencialmente desencantadas. O mundo perdeu muito
da sua mágica e do seu mistério. Não há o que fazer, nem lamentar. É o lado
negativo do avanço da razão e da ciência, um processo milenar que, no
Ocidente, remonta à decadência da cultura trágica dos gregos e à ascensão
do espírito socrático.
“E pur si muove…”, poderíamos dizer, numa aplicação paradoxal da
frase legendária, mais sussurrada do que afirmada, de Galileu à Inquisição,
depois de ter sido forçado a renegar o heliocentrismo. Hoje, é contra os
herdeiros de Galileu, triunfantes, que o sussurro pode ser dirigido.
Tudo isso está ficando um pouco hermético, reconheço. Eis o que eu
queria perguntar: existe ou não vida após a morte? Os sonhos em que
mortos nos falam, às vezes de forma tão convincente, tocante e até
premonitória, seriam apenas expressão de desejos e saudades? Presságios
que se confirmam seriam meras coincidências?
Para os jovens, é fácil descartar essas perguntas. Para eles o que
interessa é que exista vida antes da morte. A sua morte individual está, em
princípio, muito distante, e as pessoas mais próximas estão normalmente
ainda vivas.
Com o passar do tempo, essas questões começam a pesar mais. Já
morreram muitos dos meus amigos, companheiros de trabalho, familiares.
Mas só um deles ainda parece se comunicar comigo volta e meia – meu pai.
Ele foi um dos maiores diplomatas brasileiros da sua geração, uma
figura lendária do Itamaraty, ainda hoje muito lembrada nos meios
diplomáticos e políticos, no Brasil e no exterior. Era antes de tudo um
nacionalista fervoroso, que lutava incansavelmente pelo Brasil.
Essa sua missão foi a minha herança. Procuro levá-la adiante, dentro das
minhas limitações. Nem sei se o meu temperamento se adapta tão bem a
ela. Mas é o que tenho feito desde o início da minha vida profissional, como
economista, pesquisador, professor universitário, nos dois anos em que
trabalhei no governo na década de 1980, e depois de novo como professor,
escritor, polemista.
Coerência não me falta. Não é um autoelogio, pois como dizia Oscar
Wilde, “coerência é a qualidade dos que não têm imaginação”.
Para quem não tem imaginação, o FMI talvez seja o lugar apropriado.
Aqui em Washington, continuo na mesma luta, só que agora muito mais
próximo do tipo de atuação que teve meu pai. A função aqui é, em grande
parte, diplomática.
Nas últimas semanas, passei por alguns momentos de grande tensão. No
meio dessa crise, fiz uma viagem relâmpago a Brasília para enfrentar
problemas na minha retaguarda e voltei imediatamente para controlar os
estragos aqui em Washington. Praticamente não dormi no voo noturno na
volta. Passei em casa e resolvi descansar por uma hora.
Adormeci e sonhei um sonho que me comoveu, fortaleceu e alimentou.
Estava numa casa desconhecida, quando meu pai passa por mim, devagar,
sem me olhar. Eu tinha consciência de que ele estava morto, mas pedi: “Pai,
fala comigo! Você tem algo para me dizer?” Ele virou e respondeu: “Eu não
falo mais.” E eu, comovido: “Que pena, você falava tão bem.” Ele deu um
sorriso irônico, bem típico dele, e completou: “Agora, eu só dou
consultoria.” Em seguida, desapareceu.
Essa “consultoria” tem me sustentado.

1 Publicado originalmente em O Globo, em 6 de outubro de 2007.


INDEPENDÊNCIA FINANCEIRA1

“H á poesia em tudo”, escreveu Fernando Pessoa. Até na turma da


bufunfa? Não. Na turma da bufunfa, não. Nada mais antipoético,
nada mais antiestético do que essa nociva confraria.
O leitor conhece a minha aversão aos bufunfeiros, especialmente à
fração hegemônica da turma – a bufunfa financeira. Motivos não me faltam.
A crise financeira nos Estados Unidos e na Europa em 2007-2008 é o
exemplo recente mais impressionante do estrago que a ganância e
especulação desenfreada podem fazer.
Um dos grandes problemas da economia contemporânea talvez seja o
crescimento desmesurado dos sistemas financeiros. A concentração de
poder e recursos nessa área produz imensas distorções e frequentemente
subordina os governos, os bancos centrais e as políticas públicas aos
interesses da finança internacional. Desde a década de 1980, em toda parte,
as palavras de ordem eram desregulamentação e liberalização. O resultado
foi uma crise financeira monumental nos Estados Unidos e em grande parte
da Europa.
O leitor conhece a turma da bufunfa pessoalmente? Se não conhece, não
perdeu nada. Arrisco dizer que nunca tanto poder e dinheiro esteve
concentrado nas mãos de gente tão idiota. Estou exagerando? Talvez. Não
quero ser agressivo demais. Mas não esqueça, leitor, que um certo tipo de
idiotice é perfeitamente compatível com a capacidade de acumular dinheiro.
Essa capacidade depende de outros atributos que não a inteligência –
esperteza, falta de escrúpulos, agilidade, hiperatividade etc.
Volto a Fernando Pessoa. O grande escritor português se considerava
um nacionalista. “Por isso”, observou, “me foram sempre origem de
repugnância e asco todas as formas de internacionalismo, que são três: a
Igreja de Roma, a finança internacional e o comunismo”.
Isso foi escrito em 1929. Desde então, duas das três formas de
internacionalismo por ele mencionadas – a Igreja Católica e o comunismo –
entraram em franca decadência. Em compensação, a finança internacional
tomou proporções gigantescas. Mostra-se capaz de desestabilizar
economias inteiras – até as de grande porte.
Pessoa teria certamente uma síncope se fosse obrigado a conviver com
os bufunfeiros de hoje, ele que escreveu em outra ocasião: “É realmente
duro ter de estar todos os dias at home para a Asneira e ter de a entreter com
chá de banalidade e bolos de transigência.”
Asneira, com a maiúsculo mesmo, é a palavra apropriada para
caracterizar muitas ideias que prevaleceram sem grande contestação no
mundo das finanças até a eclosão da crise internacional. Entre elas, a ideia
de que os mercados financeiros são eficientes. Ou a de que as autoridades
podem confiar, em grande medida, na capacidade de autorregulação das
instituições financeiras privadas.
Essas ilusões foram para o espaço. Hoje, já é basicamente aceita a
interpretação de que o modelo de regulação light adotado nos EUA e em
outros países desenvolvidos permitiu os excessos especulativos que levaram
à crise financeira.
Uma palavra final sobre o Brasil. Para quem ainda tinha dúvidas, as
turbulências externas devem servir como comprovação final de que não se
deve jamais deixar a sorte da economia nacional nas mãos da finança
internacional. Os países bem-sucedidos são os que regulam cuidadosamente
o sistema financeiro, mantêm ajustadas as contas externas e fiscais e
preservam a sua independência em relação a capitais estrangeiros.

1 Publicado originalmente na Folha de S.Paulo, em 24 de julho de 2008.


“TRABALHO DE DEUS”1

O presidente do Goldman Sachs, o sr. Lloyd Blankfein, concedeu


entrevista ao jornal The Sunday Times, que estampou no alto da
primeira página a seguinte declaração: “Os bancos fazem o trabalho de
Deus.”
Bem sei, leitor, que Deus escreve certo por linhas tortas, mas –
convenhamos – mesmo a nossa crença na Divina Providência têm seus
limites e suas hesitações. Segundo o sr. Blankfein, os bancos
“desempenham um papel social”, ajudando as empresas a crescer, investir e
gerar empregos. O correto seria dizer que os bancos deveriam desempenhar
esse papel. Se o fazem ou não, é uma questão altamente controvertida –
para dizer o mínimo.
Mais próximo da verdade esteve Lord Turner, presidente da Financial
Services Authority do Reino Unido, quando declarou que grande parte do
sistema bancário moderno é “socialmente inútil”. A julgar pelo estrago
provocado pela crise financeira de 2008-2009, Lord Turner poderia ter ido
mais longe: grande parte do sistema bancário moderno é socialmente
pernicioso.
Correndo o risco de homenagear o Conselheiro Acácio, faço a ressalva:
uma economia moderna precisa de um setor bancário sólido. O problema é
que nas últimas décadas ocorreu uma hipertrofia do sistema financeiro. O
setor cresceu extraordinariamente e se tornou mais complexo e opaco.
Acumularam-se riscos e vulnerabilidades muito graves. Os Estados e os
bancos centrais falharam de maneira dramática na supervisão e
regulamentação do sistema, principalmente nos EUA e na Europa. As
instituições privadas passaram a funcionar em larga medida à margem de
controles oficiais. Políticas monetárias expansivas nos EUA e em outros
países emissores de moedas de liquidez internacional alimentaram a
especulação financeira e levaram à formação de uma série de bolhas nos
mercados de ativos. A última delas estourou em 2007 e levou a economia
mundial à pior crise dos últimos 70 anos.
Para socorrer o sistema financeiro e evitar uma nova Grande Depressão,
os Estados dos países desenvolvidos gastaram verdadeiras fortunas. O que
vimos nos EUA e na Europa talvez tenha sido a maior socialização de
prejuízos da história econômica mundial. Apesar disso tudo, os governos e
Congressos desses países ainda não foram capazes de apresentar e
implementar planos suficientemente rigorosos para reformar e disciplinar o
sistema financeiro.
Nos EUA e também na Europa, a opinião pública está subindo pelas
paredes como lagartixa profissional. Se o sr. Blankfein, que teve a sua face
sorridente estampada na primeira página do jornal, resolver sair à rua, será
provavelmente caçado a pauladas feito ratazana prenhe, como diria Nelson
Rodrigues.
Trabalho de Deus! A declaração do presidente do Goldman Sachs é
sintomática. Os bancos que sobreviveram ao holocausto financeiro estão,
em alguns casos, muito mais fortes e passaram a exercer domínio ainda
maior sobre segmentos importantes do mercado. Formaram-se verdadeiros
mamutes financeiros que faturam alto nos momentos favoráveis,
embolsando lucros e distribuindo bônus nababescos aos seus executivos.
Grandes demais para quebrar, podem operar com a convicção de que serão
socorridos pelo Estado, isto é, pelos contribuintes, se suas especulações não
forem bem-sucedidas.

1 Publicado originalmente na Folha de S.Paulo, em 12 de novembro de 2009.


O COMPLEXO DE VIRA-LATA1

U m dos meus poucos méritos como cronista é o de ter desenterrado


metáforas e expressões que me parecem vitais. A minha fonte
preferida é Nelson Rodrigues, como o leitor talvez saiba. Posso dizer, sem
falsa modéstia: sou um dos principais, talvez o principal responsável pelo
ressurgimento de algumas das suas imagens mais arrasadoras.
Em certa época, a coisa foi longe demais. As pessoas só me liam na
esperança de topar com suas frases geniais. Os leitores chegavam a escrever
reclamando: faz muito tempo que você não fala do Nelson Rodrigues! O
autor tão citado obliterou completamente este modesto cronista.
Paciência. Ao longo dos anos, continuei repetindo obsessivamente as
suas tiradas certeiras sobre o Brasil e os brasileiros.
Nada disso era gratuito ou arbitrário. Há duas formas de citar: a sincera
e a insincera. A insincera é a que se faz por ostentação: recorre-se a um
grande nome para demonstrar cultura – não raro, a fonte oculta é algum
dicionário de citações. A citação sincera é aquela que decorre de uma
vibração interior, sentida quando do primeiro contato direto e autêntico com
uma metáfora ou expressão. A citação de memória é, a meu ver, a mais
autêntica de todas, pois ela reflete uma apropriação mais profunda – sob
efeito do tempo e de fatores subjetivos a imagem vai sendo modificada e
parcialmente recriada.
Cuidado, porém. Uma vez alguém me citou uma bela frase de uma
escritora gaúcha: “O tempo não cura nada, apenas tira o incurável do centro
das atenções.” Uma frase dessas vale vários volumes. Saí em busca dos
textos da autora.
Não entendi nada. Os seus artigos e livros pareciam de uma trivialidade
total. Nenhuma luz, nenhuma originalidade – era basicamente autoajuda
com retoques de cultura barata. Suspeitei plágio. Dei uma busca na internet
e depois de muito procurar – a frase sempre aparecia ligada à escritora
gaúcha – encontrei um site que identificava um filósofo chamado Ludwig
Marcuse como autor. Traduzi a frase para o alemão e verifiquei que, de fato,
ela provinha da sua obra.
Lamentável. Mas, enfim, estou divagando. Eis o que queria dizer: uma
das metáforas mais certeiras do Nelson Rodrigues é “o complexo de vira-
lata”, traço típico da psicologia do brasileiro. De tão citada, ela acabou
perdendo um pouco do seu viço original. Nem por isso perdeu a verdade
que tem (ou tinha).
Há poucas semanas, a mais importante revista alemã, Der Spiegel,
publicou reportagem de várias páginas a respeito do presidente brasileiro,
sob o título “Lula Superstar”. A certa altura, o repórter escreve: “Nos
bastidores, Lula superstar gosta de contar como ele levou os diplomatas
brasileiros a superar o ‘complexo de vira-lata’; assim ele se refere ao
complexo de inferioridade que muitos dos seus compatriotas sentiam até há
pouco em relação a americanos e europeus.”
Veja, leitor, que na Alemanha a imagem do Nelson Rodrigues já é
atribuída a Lula. Outro aspecto notável: segundo Der Spiegel, o referido
complexo foi superado, ainda que apenas recentemente.
Não iria tão longe. O complexo de vira-lata tem raízes históricas,
culturas, raciais muito mais fundas do que se pode imaginar. O presidente
mencionou os diplomatas. Não sei se o Itamaraty se destaca nesse
particular, mas realmente alguns dos nossos diplomatas ainda parecem
cultivar a perspectiva do vira-lata.
Recentemente, um deles, chanceler no governo FHC, sugeriu que o
Brasil abandone uma política externa supostamente antiamericana e se filie
sem hesitações ao “Ocidente dos valores e princípios”. Ora, o Brasil não faz
parte de Ocidente nenhum. É um país que mistura quase tudo. É Europa,
mas também é África, Ásia, Oriente Médio. Tudo isso mesclado. O
verdadeiro melting pot não são os EUA, mas o Brasil.
O ex-chanceler, que se não me engano reside no Rio de Janeiro, precisa
sair um pouco da Zona Sul e fazer uma visita urgente ao Brasil. Não precisa
nem sair do bairro – a Zona Sul não é e nunca foi parte do “Ocidente de
valores e princípios”.
E ainda bem.
1 Publicado originalmente em O Globo, em 10 de julho de 2010.
À SOMBRA DA BUFUNFA1

O utro dia, estava deitado no sofá da sala, tranquilo, lendo, enquanto a


minha mulher andava para lá e para cá, arrumando a casa e cuidando
dos netos, quando ela de repente exclamou: “Em outra encarnação, quero
ser homem – e economista.”
Não sei, leitor, porque temos reputação tão ruim. Há muito reflito sobre
essa questão sem encontrar resposta satisfatória. Insinuar que levamos vida
mansa é de uma injustiça flagrante, diria mesmo escandalosa. O economista
prima, em verdade, pelo ativismo e consegue vender as mais variadas ideias
e informações – inclusive as que não tem.
Projeções econômicas e financeiras, por exemplo. Dizem nossos
inúmeros e ferozes detratores que somos extraordinários profetas – mas do
passado, só do passado. E, no entanto, não há quem não nos consulte sobre
o futuro, especialmente nessa época do ano. Percorra o noticiário, leitor, e
verá que aparece sempre algum comentarista econômico pontificando sobre
o que esperar, ou não esperar, no ano que começa.
Outro sintoma da nossa importância é que poucas profissões são alvo de
tanta piada – talvez só “a mais antiga das profissões” nos supere nesse
quesito. Qual a melhor maneira de perder dinheiro? A mais rápida, com
jogo; a mais agradável, com mulheres; a mais infalível, com economistas. É
o que propagam. E, no entanto, não há empresa de gabarito que não tenha
sua bem fornida assessoria econômica. E o que seria dos governos sem suas
equipes econômicas? Como fariam para montar e justificar suas medidas,
iniciativas e providências?
Uma característica notável da nossa profissão é a capacidade de conferir
alguma verossimilhança às ideologias mais extravagantes e descabeladas –
sinal inequívoco de imaginação criativa. “A ideologia é uma plataforma
precária”, já dizia Maria da Conceição Tavares. Isso vale para as ideologias
de direita e de esquerda – as primeiras, claro, muito mais bem remuneradas.
E aí aparece novamente o economista com sua clarividência e sentido de
oportunidade.
A aliança com o dinheiro garante o futuro dos nossos profissionais.
Todas as intuições e palpites brilhantes da turma da bufunfa encontram no
economista a sua fundamentação mais elaborada e mais científica. O que na
boca de um bufunfeiro, mesmo dos mais graúdos, parece apenas uma
ideologia arbitrária, adquire na elaboração do economista ares e autoridade
de ciência.
Diante do alarido dos críticos, só nos resta repetir dom Quixote:
“Ladram, Sancho, sinal de que cavalgamos.”

1 Publicado originalmente em O Globo, em 4 de janeiro de 2014.


O ECONOMISTA BUFUNFEIRO1

V olto a tratar da turma da bufunfa. Trata-se da minha principal, talvez


única, contribuição à literatura econômica. Ainda não ganhou,
entretanto, reconhecimento universal. Ofereço uma definição sintética: a
turma da bufunfa é um agrupamento, razoavelmente estruturado, que se
dedica a fomentar, proteger e cultuar o vil metal. O seu núcleo duro é
composto de banqueiros, financistas e rentistas. Na periferia figuram
economistas, jornalistas e outros profissionais.
Os economistas são os sacerdotes do culto, encarregados de suprir a
fundamentação metafísica para as atividades da turma. O fenômeno é
antigo. John Kenneth Galbraith explicava que a teoria econômica moderna,
ensinada como ciência, tinha também o que ele chamou de “função
instrumental”, isto é, a de confirmar e reforçar os pressupostos dos círculos
dominantes da sociedade. Muito antes dele, os marxistas denunciavam o
caráter ideológico e “de classe” da economia política.
Nas décadas recentes, porém, o fenômeno adquiriu dimensão
estarrecedora. A turma da bufunfa inchou de maneira medonha. As
instituições financeiras tornaram-se o centro do poder e da apropriação de
riqueza. Em outras palavras, estabeleceu-se a hegemonia avassaladora do
capital financeiro, inclusive sobre o debate econômico.
Antes de prosseguir, faço uma pequena pausa. Gosto de descrever física
e espiritualmente os meus personagens. Os bufunfeiros, leitor, se parecem
muito uns com os outros. São, eu diria, intercambiáveis. Primeiro traço
geral: são gordos, no mínimo balofos, e não raro obesos. Mas são gordos de
um tipo muito singular. É que normalmente as banhas predispõem aos
aconchegos, ao carinho, à conciliação e ao bom humor. No caso em tela, as
banhas não têm esses efeitos salutares. Os bufunfeiros são quase sempre
sisudos, cinzentos, intolerantes. Não se lhes ouve uma piada ou mesmo um
simples gracejo.
O maior elogio que se pode fazer a um economista bufunfeiro é dizer
que ele é “sério” e “bem treinado”. Para merecer esses qualificativos o
economista se esmera em repetir fórmulas áridas e teses respeitáveis. Frases
prontas substituem a necessidade de pensar. O mesmo encadeamento de
palavras, sempre o mesmo, em tom sentencioso produz na opinião pública
um efeito quase hipnótico.
Paro e releio o que escrevi. Está ficando um pouco vago e abstrato.
Hesito. Devo dar nome aos bois? Ou deixá-los tranquilos no pasto? Na
última vez em que nomeei bois, a boiada estourou para cima de mim.
Cortaram a minha coluna no Globo. Na Carta Capital, sinto-me mais
protegido. E toda exposição teórica, convenhamos, precisa de
exemplificação.
Vejamos. Um bom exemplo seria o atual presidente do Banco Central,
Ilan Goldfajn. Para começar, o seu visual obedece ao figurino, e a boca
mole balbucia, monotonamente, os chavões que o mercado espera.
Recentemente, tive a curiosidade de tentar descobrir o que pensa o chefe do
nosso BC. Terá publicado algo de interessante? Nada encontrei de
substancial. O seu discurso e seus textos intercalam homenagens ao
Conselheiro Acácio com a repetição mecânica da vulgata ortodoxa.
Antigamente, leitor, valia a pena ler economistas conservadores, como
Eugênio Gudin, Otávio Gouveia de Bulhões, Mário Henrique Simonsen,
Roberto Campos. Sempre se aprendia algo. Havia capacidade analítica,
ironia, cultura, polêmica inteligente e, pasmem, até espírito público. Os
economistas bufunfeiros atuais não oferecem nada disso. Um deles, outro
dia, seguia distraído, quando de repente tropeçou numa ideia. Recompôs-se
rapidamente, olhou para o lado temendo testemunhas e retomou o seu
caminho, imperturbável.
Conto, para encerrar, um pequeno episódio. Há alguns anos, fui almoçar
no Itaú, a convite do então presidente do banco, Olavo Setúbal. Estava
presente um economista, chefe do departamento econômico. A certa altura,
baixou a falta de assunto. Perguntei então o que ele sabia de dois
economistas nomeados havia pouco para a diretoria do Banco Central. Ele
explicou, sem qualquer ironia, que um deles era economista sério, treinado
nos Estados Unidos, e que o outro também, só que tinha “umas ideias” de
vez em quando…
Para a turma da bufunfa, ideias são fonte de inquietação, sintomas de
rebeldia.

12 Publicado originalmente na Carta Capital, em 11 de janeiro de 2018.


ESTÁ EXTINTA A ESCRAVIDÃO?1

N a minha família, como em milhões de outras, os chats de WhatsApp


viraram palco de conflitos políticos acirrados. Estou em minoria, e as
minhas provocações são recebidas com profundo desprazer.
Outro dia, soube de um fato desabonador: criaram novo chat familiar do
qual fui sumariamente excluído! Explicaram-me que o chat é
principalmente para trocar fotos de “crianças lindas e amadas”…
Ora, na situação em que se encontra o Brasil, simplesmente trocar fotos
de “crianças lindas e amadas” é uma atividade comprometedora, quase
irresponsável. É preciso ter muita “saúde” para isolar-se da crise e viver,
tranquilo e impune, numa torrezinha de marfim qualquer.
Paro e releio o parágrafo que escrevi. Não quero, leitor, tentar escrever
uma página de Tchekhov em que a classe média brasileira – logo quem! –
seria instada a se comportar, de repente, como os personagens angustiados
das peças do grande artista russo. Crises existenciais e de consciência nunca
foram o nosso forte.
Prefiro outra faceta de Tchekhov: suas observações sobre a superação da
servidão na Rússia. Lembro-me, em especial, de uma carta que ele enviou a
outro escritor russo com a seguinte exortação:

Escreva um conto sobre um jovem, filho de servos, antigo vendedor de armazém,


corista de igreja, ginasiano e depois universitário, que foi educado para respeitar a
hierarquia e para acatar as ideias alheias, que agradecia por cada pedaço de pão, que foi
muitas vezes açoitado, […] que era hipócrita diante de Deus e dos homens, sem nenhuma
necessidade, simplesmente por ter consciência de sua própria insignificância; escreva
como esse jovem espreme, gota a gota, o escravo que tem dentro de si, e como ele, ao
acordar numa bela manhã, sente que em suas veias já não corre mais o sangue do escravo,
e sim o de um verdadeiro homem.

Superar a servidão ou a escravidão é processo longo, doloroso. A


escravidão no Brasil foi legalmente abolida em 1888, mas seus traços e
traumas perduram até hoje.
No Carnaval carioca deste ano, a Paraíso da Tuiuti apresentou lindo
samba-enredo, uma obra de arte, letra e música, com o seguinte título:
“Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão?” Ninguém estranhou o
ponto de interrogação – mesmo 130 anos depois da Lei Áurea…
Não deixe de escutar esse samba-enredo, leitor – é um exemplo
magnífico da criatividade do povo brasileiro. Tanto a música como a letra
jorram beleza. É um tipo de beleza que transcende o momento em que foi
criada. Mas o que a valoriza ainda mais é a sua conexão com o momento
dramático que vivem o Brasil e o povo brasileiro.
O refrão, cantado logo no início, dá um tom de liberdade orgulhosa:
“Não sou escravo de nenhum senhor/Meu Paraíso é o meu bastião/A Tuiuti
é o quilombo da favela/A sentinela da libertação”. No contexto do samba-
enredo, o refrão é um misto de realidade e aspiração – talvez com mais peso
da segunda do que da primeira. Segue-se então um belo panorama da
história da escravidão africana no Brasil: “Fui mandiga, cambinda,
haussá/Fui um Rei Egbá preso na corrente/ Sofri nos braços de um
capataz/Morri nos canaviais/Onde se plantava gente/Ê, Calunga, ê! Ê,
Calunga!/Preto velho me contou, preto velho me contou/Onde mora a
senhora liberdade/ Não tem ferro nem feitor”.
Quando chega o momento de relembrar a Lei Áurea, a música e o canto
ascendem de maneira emocionante: “E assim quando a lei foi assinada/Uma
lua atordoada/Assistiu fogos no céu/Áurea feito o ouro da bandeira/Fui
rezar na cachoeira/Contra a bondade cruel”.
No desfile na Sapucaí, o tripé que trazia a reprodução da Lei Áurea foi
seguido de várias alas representando a continuação da escravidão no Brasil
sob outras formas: o trabalho precário, a escravidão disfarçada no meio
rural, os vendedores ambulantes etc. Na versão que prefiro, o samba-enredo
começa devagar, a capela, como um lamento: “Meu Deus, meu Deus, se eu
chorar não leve a mal/Pela luz do candeeiro/Liberte o cativeiro social”. E
termina com o grito de guerra de um dos puxadores do samba, logo após o
fim do canto e da música: “A luta continua, meu povo!”

P.S.: A ala dos “manifestoches” retratou com pesado sarcasmo aqueles


que bateram panelas e foram às ruas em 2016 e agora enfiam a cabeça na
areia e trocam fotos de “crianças lindas e amadas”…
1 Publicado originalmente na Carta Capital, em 17 de fevereiro de 2018.
EXIT PAQUIDERME1

Q uero dar mais alguns tecos num dos meus alvos prediletos – o
rotineiro e paquidérmico presidente do Banco Central do governo
Temer, Ilan Goldfajn. Há um “gancho”, como dizem os jornalistas, talvez o
último: ele acaba de deixar o cargo. A sua gestão, que ora termina, vem
sendo celebrada em prosa e verso pelo mercado e pela mídia tradicional.
Como sempre, quem presta serviços à turma da bufunfa é tratado a pão de
ló. São os mitos que se cultivam e que ajudam a eternizar o
subdesenvolvimento.
Tenho, devo admitir, certa marcação com Goldfajn. Mas isso não me
impede de reconhecer suas qualidades. O problema, leitor, é que não as
encontro! Outro dia, por acaso, peguei pelo meio uma entrevista dele na
televisão. A entrevistadora fazia o possível para ajudá-lo. Quase
desempenhava o papel de entrevistadora e entrevistada ao mesmo tempo.
Não só fazia perguntas previsíveis, como insinuava as respostas, buscando
torná-las um pouco mais rápidas e menos monótonas. Lutava
persistentemente com a lerdeza do entrevistado, sem perturbá-lo, porém,
com perguntas inconvenientes. Não adiantou. Jogando em casa, com torcida
e juiz a favor, Goldfajn não saiu do zero a zero.
Muito pior, claro, foi a sua lerdeza na gestão da política monetária. Um
dos seus erros clamorosos foi a demora em diminuir a taxa básica de juros,
contribuindo para que a economia continuasse deprimida e com elevado
desemprego. A recuperação econômica em 2017 e 2018 acabou sendo pífia.
A inflação não alcançou o centro da meta e, em alguns períodos, nem o
limite inferior do intervalo estabelecido pelo Conselho Monetário.
A recuperação a passo de cágado, diga-se de passagem, acabou de
inviabilizar as candidaturas da direita tradicional nas eleições de 2018. Não
digo a do ex-ministro Meirelles, que era um defunto difícil de ressuscitar,
mas todas as outras – mesmo aquelas que podiam, com alguma
plausibilidade, se dissociar do governo Temer. O governo Bolsonaro
deveria, portanto, dar uma medalha a Goldfajn.
É mais fácil, reconheço, perceber o erro ex post. As decisões de política
monetária são sempre tomadas em ambiente de incerteza. Nesse caso,
porém, o quadro era bem claro ex ante. Multiplicavam-se, desde pelo
menos o início de 2018, indicações de tibieza da recuperação. As
expectativas de inflação estavam bem ancoradas e situavam-se, não raro,
abaixo da meta. A inflação corrente fechou um pouco aquém do piso da
meta em 2017 e, apesar de choques adversos (desvalorização do câmbio e
greve dos caminhoneiros), bem abaixo do centro da meta em 2018. Ao
longo de todo esse período, as medidas de núcleo da inflação, que excluem
itens de maior volatilidade e são indicadores de tendência, foram sempre
inferiores ao piso da meta. Havia, em suma, diversas evidências
contemporâneas de que a taxa básica de juro estava alta demais.
Outro fator que explica a pífia recuperação foi a lentidão da redução dos
spreads bancários (a diferença entre as taxas que os bancos cobram e as que
pagam a seus depositantes). No Brasil, esses spreads estão entre os mais
altos do mundo; são realmente pornográficos. O assunto é da alçada do
Banco Central. O que fez o nosso paquiderme para enfrentar a questão?
Com a contração nos anos recentes do crédito oferecido pelos bancos
públicos – Banco do Brasil, Caixa Econômica e BNDES –, uma forma de
dar algum alento à recuperação teria sido a expansão do crédito dos bancos
privados. Não aconteceu, pelo menos não de forma a ocupar o espaço
deixado pelas instituições públicas. A contenção destas últimas só veio
reforçar o poder do oligopólio formado pelos grandes bancos privados – o
Itaú (de onde vem e para onde possivelmente voltará Goldfajn), o Bradesco
e o Santander. O baixo grau de competição é, há tempos, uma das mazelas
de vários segmentos do sistema financeiro brasileiro. O que fez o nosso
paquiderme para enfrentar a questão?
Para coroar a gestão de Goldfajn, o Banco Central apresentou, em
janeiro, uma proposta curiosa para consulta pública. Sugeriu que parentes
de primeiro grau de autoridades e políticos sejam retirados da lista de
monitoramento obrigatório das instituições financeiras. Propôs também
remover a exigência de que as transações financeiras acima de R$ 10 mil
sejam notificadas ao Coaf (Conselho de Controle de Atividades
Financeiras), deixando aos bancos a identificação de casos suspeitos. Até
mesmo o ministro da Justiça, Sergio Moro, que não prima pela ética,
estranhou as sugestões e levantou publicamente dúvidas sobre sua
pertinência. Recorde-se que o Coaf foi o órgão que se tornou célebre por
sua atuação no caso Bolsonaro-Queiroz.
O paquiderme, afinal, merece ou não uma medalha?

1 Publicado originalmente na Carta Capital, em 8 de março de 2019.


AS MONTANHAS DO RIO1
Para Lia

Q uando um escritor, mesmo de modestos artigos quinzenais, se põe


diante de uma tela em branco para começar a digitar, deve ter em
mente que muitos leitores de jornal, revista ou celular procuram, por um
lado, informação, mas, por outro e sobretudo, a confirmação dos seus piores
preconceitos. O leitor quer, de preferência, munição – munição para abater
seus adversários políticos e intelectuais. Ninguém convence ninguém. E
contra argumentos não há fatos.
Existem ainda boas almas, de certo. Há ainda mentes abertas, sem
dúvida. Mas tanto estas quanto aquelas estão em minoria, constrangedora
minoria. Assim, um articulista progressista que começar um artigo dizendo,
digamos, “a reforma da Previdência é indispensável”, arrisca perder metade
dos leitores já no primeiro parágrafo. Ou um articulista tucano que subir ao
palco da opinião pública para confessar que “o ex-presidente Lula é um
prisioneiro político”, perderá grande parte dos seus seguidores na internet.
Paro, leitor, com ligeiro sentimento de perplexidade. Como continuar?
Vejamos. Não quero aqui fazer apologia da objetividade e da sinceridade,
nem pensar. Sempre fui da opinião de que a realidade não é mais do que
uma das nossas ficções – a mais enganosa e traiçoeira delas. A realidade
política brasileira, por exemplo, é indistinguível da ficção e, infelizmente,
da ficção mais precária e ordinária. O que é fake parece fato, mas o fato,
não raro, parece fake. O pior é que nem um, nem outro é realmente
interessante.
Permita-me, leitor, tentar sair um pouco desse rame-rame. Ocorre-me
falar um pouco da relação entre o real e o imaginário. O papel do
ficcionista, diferentemente do que se pensa, não é transcender a realidade
ou fugir dela. O segredo da ficção é ater-se à realidade. Não sabia, mas
parece que essa era também a opinião de Gabriel García Márquez. Estou,
portanto, em boa companhia.
É que a realidade tem uma estrutura oculta, inacessível à nossa
compreensão completa. Essa estrutura é de uma complexidade e riqueza
muito superiores a qualquer coisa ao alcance da simples imaginação. O
papel do artista é reproduzir a realidade, dramatizando-a talvez,
enriquecendo-a aqui e ali, mas sem falseá-la jamais. Por esse motivo, o
grande arquiteto catalão, Antoni Gaudí, dizia que “ser original é voltar às
origens”. E, não por acaso, um dos traços marcantes da sua arquitetura
genial, repleta de curvas, contorções, cores e movimento, é a fidelidade à
natureza. Não há linha reta na natureza, dizia ele também. Oscar Niemeyer
rezava por cartilha semelhante. E, por isso, coube a Le Corbusier exclamar:
“Oscar, você tem as montanhas do Rio dentro dos olhos!” Muitos afirmam
que a arquitetura de Niemeyer deriva de Le Corbusier; este, porém, viu de
onde vinha a originalidade do seu discípulo carioca.
Não é possível, a rigor, soltar a imaginação, desprendê-la de suas raízes
reais, não está a nosso alcance criar ab nihilo. Quando a imaginação se
desgarra, a sua falsidade salta aos olhos, sem demora.
Assim, por exemplo, e para ficar no dia a dia, se queremos contar uma
história, digamos um episódio de infância, é fundamental tentar lembrar dos
detalhes e não acrescentar nada. Onde entra a criatividade? Não na
invenção de falsos acontecimentos, de peripécias mais ou menos
implausíveis, mas no encadeamento do relato, na escolha criteriosa das
palavras, na maneira de formar as frases, sempre calculando os efeitos que
se deseja produzir. O que se busca, ao fim, é a espontaneidade. Mas,
paradoxalmente, o que funciona é a espontaneidade elaborada, artificial.
A melhor ficção, então, é aquela que começa e continua na memória,
que recupera e relata sem adocicar, sem fantasiar, sem introduzir lances
imaginários. E a obediência a essa regra de ouro é justamente o que mais
falta na subliteratura. O que mais aparece é o subliterato imaginativo,
inventivo e falsamente original. A imaginação desancorada, mesmo nas
suas variantes mais caprichadas, nunca vai muito longe.
É preciso ter as montanhas do Rio dentro dos olhos.
1 Publicado originalmente na Carta Capital, em 17 de maio de 2019.
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1ª edição Setembro de 2019


papel de miolo Pólen Soft 70g/m2
papel de capa Cartão Supremo 250g/m2
tipografia Minion Pro
gráfica Edigráfica
Viver sem crise
Curado, Olga
9788580447521
176 páginas

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Viver sem crise é um guia de viagem para uma jornada sem percalços. Para
realizar essa viagem, é importante saber que a estrada não é sempre plana, e
aceitar isso. É importante também ter os pés fixos no chão - como ensina as
artes marciais -, ter uma visão ampla e profunda dos fatos e buscar o
próprio eixo, para, então, sentirmo-nos mais seguros para caminhar, mesmo
quando o caminho é tortuoso. Olga Curado, com sua vasta experiência em
administração de crises, que vai desde a reconstrução de imagem de
grandes empresas ao auxílio em crises de figuras importantes da sociedade,
ensina dez passos para uma viagem mais tranquila: 1- Treinar para receber;
2- Treinar para cair; 3- Não há situação absoluta; 4- Não há situação
definitiva; 5- Para cada problema há quatro saídas; 6- Convide o outro a se
mover com você; 7- A circunstância define a técnica; 8- O movimento é
feito a partir de você; 9- O ponto de atrito é o menor ponto de contato; 10-
Não há vitória.

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60 anos a mil
Lobão
9788577347070
352 páginas

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Lobão escreve a segunda parte de sua autobiografia, narrando todos os


detalhes de seu intenso percurso na última década – período em que
produziu muito, renovou polêmicas, inspirou ações e provocou reações No
fim de 2010, o cantor, compositor e multi-instrumentista Lobão publicava
sua explosiva autobiografia, o best-seller 50 anos a mil. Agora, dez anos
depois, ele brinda os leitores com a segunda parte (e igualmente explosiva)
de sua história, incluindo as novas brigas em que se envolveu, suas criações
artísticas mais recentes e as turbulências pelas quais o Brasil passou na
última década. Com 60 anos a mil, Lobão se afirma como um "autor
rock'n'roll", nos entregando, nesta quinta obra, uma narrativa intensa e
corajosa. Muito pode ser dito sobre ele, mas ele jamais poderá ser acusado
de omissão: neste inédito, Lobão se dedica, inclusive, a dividir com o
público razões e decepções de suas escolhas, convicções e revisões.
Polêmicas e polêmicas, mas, como na capa, desde 50 anos a mil, Lobão
sempre se apresenta de frente – dando a cara a tapa.

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A lei da atração
Losier, Michael J.
9788544106365
146 páginas

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Best-seller em mais de 20 países, A Lei da Atração, que já vendeu milhões


exemplares no mundo todo, nos ensina como atrair mais daquilo que
desejamosEm alguns momentos, algo que desejamos muito parece
acontecer subitamente, como que por coincidência. Noutros momentos,
algo que tememos muito também parece se manifestar como que por
coincidência. Experiências como essas evidenciam a existência de uma
força muito poderosa chamada de "Lei da Atração", que é a capacidade que
temos de, com nossos pensamentos e emoções, criar a realidade em que
vivemos. A Lei da Atração: O segredo, de Rhonda Byrne, colocado em
prática explica como podemos utilizar essa "lei" sempre a nosso favor e traz
exercícios simples e dicas úteis que nos ajudam a integrar seus princípios à
nossa vida cotidiana para atrair mais do que queremos e afastar o que não
nos serve. A partir de três passos muito fáceis de seguir, este livro nos
ajudará a alcançar objetivos como: encontrar o parceiro ideal para
relacionamentos duradouros, aumentar o nosso ganho financeiro, crescer na
carreira profissional, empreender novos negócios e construir a vida com que
sempre sonhamos.

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50 anos a mil
Lobão
9788577347087
576 páginas

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A antológica primeira autobiografia de Lobão retorna às livrarias em edição


revista pelo autor A antológica autobiografia de Lobão, 50 anos a mil,
retorna pela LeYa Brasil numa nova edição. Lançado originalmente em
2010, o livro se tornou rapidamente um grande best-seller nacional. Nele, o
cantor mais polêmico do rock brasileiro conta detalhes de suas cinco
primeiras décadas com franqueza e bom humor. Todos dizem em algum
momento da vida: "Isso dá para escrever um livro". Lobão sempre soube
disso – e escreveu um grande livro. A obra retorna revisitada pelo autor,
mais enxuta, num texto em que só ele fala — nos (re)apresentando a
autobiografia de um escritor maduro, quatro livros e dez anos depois.

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Força de vontade não funciona
Hardy, Benjamin
9788544107553
256 páginas

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Em Força de vontade não funciona, Benjamin Hardy, psicólogo


organizacional e um dos articulistas mais lidos da plataforma Medium.com
na área de autodesenvolvimento e autoaprimoramento, explica como as
pessoas podem melhorar suas vidas, em todos os níveis, sem contar com a
força de vontade, fazendo mudanças pequenas, mas significativas, em seu
dia a dia. Ele ensina, acima de tudo, que precisamos investir em nós
mesmos e aprimorar nosso ambiente e mentalidade, deixando claro que
existem atitudes simples capazes de nos levar na direção da felicidade e do
sucesso. É por isso que não se trata de força de vontade: se trata, sim, de
entendermos que essa é uma ideia totalmente errada e que devemos mudar a
nós mesmos e o nosso entorno para, enfim, termos apoio para conquistar
nossos objetivos.Benjamin Hardy e sua mulher, Lauren, são pais – como
eles gostam de destacar – de três crianças adotadas, que vivem agora num
ambiente amoroso, acolhedor e propício ao seu desenvolvimento e
felicidade. Em 2016, ele foi o primeiro autor mais lido, em todas as
categorias, no Medium.com. Seus trabalhos já foram publicados na Forbes,
Psychology Today, Fortune e outras revistas especializadas.

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