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CRÔNICAS VARIADAS

Stanislaw Ponte Preta


Por Vários Motivos Principais

Stanislaw Ponte Preta


(Sérgio Porto)

Durante uma recepção elegante, a flor dos Ponte Pretas estava a


mastigar o excelente jantar, quando uma senhora que me fora
apresentada pouco antes disse que adorou meus livros e que está
ávida de ler o próximo.
- Como vai se chamar?
Fiquei meio chateado de revelar o nome do próximo livro. Ela
podia me interpretar mal. Como ela insistisse, porém, eu disse:
- "Vaca Porém Honesta." (*)
Madame deu um sorriso amarelo mas acabou concordando que o
nome era muito engraçado, muito original. Depois - confessando-se
sempre leitora implacável, dessas que sabem até de cor o que a gente
escreve -, madame pediu para que não deixássemos de incluir aquela
crônica do afogado.
- Qual? - perguntei.
- Aquela do camarada que ia se afogando, aí os carros foram
parando na praia de Botafogo para ver se salvavam o homem. Depois
um carro bateu no outro, houve confusão e até hoje ninguém sabe se
o afogado morreu ou salvou-se. Lembra-se? Aquela é uma de suas
melhores crônicas.
Foi então que eu contei pra ela o caso do colecionador de
partituras famosas, que um dia foi a um editor de música procurando
o original de certa sonata que fora composta por Haydn e Schumann
juntos. O editor ficou olhando para ele e o colecionador esclareceu: -
Sei que essa partitura é raríssima, mas eu pagaria qualquer preço por
ela.
- Vai ser um pouco difícil - disse o editor - conseguir uma
partitura composta por Haydn e Schumann juntos, por vários
motivos. Primeiro: quando Schumann nasceu, Haydn tinha morrido
no ano anterior.
A leitora que se lembra de tudo que eu escrevi estranhou e
perguntou:
- Por que me contou essa história?
- Porque lembra a história que estamos vivendo agora. A crônica
sobre o afogado que a senhora diz ser uma das minhas melhores
crônicas... quem escreveu foi Fernando Sabino.
Ela achou engraçadíssimo. Papai agrada em festa.
(*) O título, mais tarde, foi trocado, porque a vaca protestou.

Texto extraído do livro "O melhor da crônica brasileira", José


Olympio Editora - Rio de Janeiro, 1997, pág. 88.
Cartãozinho de Natal

Stanislaw Ponte Preta


(Sérgio Porto)

Até que eu não sou de reclamar, puxa! Taí, se há alguém que não
é de reclamar, sou eu. Pago sempre e não bufo. Claro que procuro me
defender da melhor maneira possível, isto é, chateando o patrão,
cobrando cada vez mais, buscando o impossível - como diz Tia
Zulmira -, ou seja, equilíbrio orçamentário. Se o Banco do Brasil não
tem equilíbrio orçamentário, eu é que vou ter, é ou não é?
Mas a gente luta. Eu ganho cada vez mais e nem por isso deixo de
terminar sempre o mês que nem time de Zezé Moreira: 0 x 0.
Segundo cálculos da tia acima citada, que é bárbara para assuntos
econômicos, eu sou um dos homens mais ricos do Brasil, pois
consigo chegar ao fim do mês sem dever. Esta afirmativa não me
agrada nada, mas dá uma pequena amostra de como vai mal a
organização administrativa do nosso querido Brasil.
Aliás, minto...o cronista pede desculpas, mas estava mentindo. Eu
vou no empate até dezembro, porque, quando chega o Natal, é fogo.
Aí embaralha tudo. Não há tatu que resista aos compromissos
natalinos. São as Festas - dizem.
O presente das crianças, a ganância do comerciante, as gentilezas
obrigatórias, os orçamentos inglórios, a luta do consumidor, a
malandragem do fornecedor e olhe nós todos envolvidos nesse
bumba-meu-boi dos presentinhos.
E que fossem só os presentinhos. A gente selecionava, largava
uma lembrancinha nas mãos dos amigos com o clássico letreiro:
"Você não repare, que é presente de pobre" e ia maneirando. Mas
tem as listas, tem os cartõezinhos.
O que me chateia são as listas e os cartõezinhos. A gente passa o
mês todo comprando coisas pros outros sem a menor esperança de
que os outros estejam comprando coisas pra gente. De repente,
quando o retrato do falecido Almirante Pedro Álvares Cabral, que, no
Í
caminho para as Índias, ao evitar as calmarias, etc., etc. já é um raro
no bolso dos coitados do que deputado em Brasília, vem um de lista.
O de lista é sempre meio encabulado. Empurra a lista assim na
nossa frente e diz: - O pessoal todo assinou. Fica chato se você não
assinar. Então a gente dá uma olhada. A lista abre com uma quantia
polpuda - quase sempre fictícia - que é pra animar o sangrado. E tem
a lista dos contínuos, tem a lista dos porteiros, tem a lista dos
faxineiros, tem a lista das telefonistas, tem a lista do raio que te
parta.
A gente assina a lista meio humilhado, porque, no máximo, pode
contribuir com duzentas pratas, onde está estampada a figura de
Pedro I, que às margens do Ipiranga, desembainhando a espada, etc.,
etc. e pensa que está livre, embora outras listas estejam de tocaia,
esperando a gente.
Então tá. Há um momento em que os presentinhos já estão todos
comprados, as listas já estão todas assinadas e você já está com mais
ponto perdido na tabela do que o time do Taubaté. Deve pra
cachorro, mas vai dever mais.
Vai dever mais porque faltam os cartõezinhos de apelação. A
campainha toca, você abre para saber quem está batendo e é o
lixeiro. Ele não diz nada. Entrega um envelopezinho, a gente abre e lá
está o versinho: "Mil votos de Boas Festas/ Seja feliz o ano inteiro/ É
o que ora lhe deseja/ O vosso humilde lixeiro."
E o vosso humilde lixeiro espalma sorridente a estira que a gente
larga na mão dele. Meia hora depois a campainha toca. Desta vez -
quem sabe? - é uma cesta de Natal que um bacano teve a boa ideia de
enviar. Mas qual. É o carteiro, fardado e meio sem jeito, que passa
outro cartãozinho de apelação. A gente abre o envelope e lá está:
"Trazendo a correspondência/ Faça frio ou calor/ Vosso carteiro
modesto/ Prossegue no seu labor/ Mas a cartinha que trás/ Nesta
oportunidade/ É para desejar Boas Festas/ E muita felicidade."
Mas este ano eu aprendi, irmãos! Em 1963 vou comprar diversas
folhas de papel (tamanho ofício) e organizar várias listas para as
criancinhas pobres aqui da casa. Quando o cara vier com a dele, eu
neutralizo a jogada com a minha. O máximo que pode acontecer é ele
assinar 500 na minha e eu assinar 500 na dele... ficando a terceira da
melhor de três para disputar mais tarde.
Também vou mandar prensar uns cartõezinhos. Quando o vosso
humilde lixeiro ou o vosso carteiro modesto entregar o envelopinho,
eu entrego outro a ele, para que leia: "No Inferno das notícias/ Mas
com expressão seráfica/ Eu batuco o ano inteiro/ A máquina
datilográfica/ Pro ano que vai entrar/ Não me sinto otimista/ Mesmo
assim, felicidades/ Lhe deseja este cronista."
Conforme diz Tia Zulmira: "- Malandro prevenido dorme de
botina."

O texto acima foi extraído do livro "Rosamundo e os Outros",


Editora Sabiá - Rio de Janeiro, 1963, pág. 174.

P.S. - Acabo de receber o jornal. Vejam os dizeres do cartãozinho


que veio junto: "Ao dobrar do sino, a mais bela história da
humanidade outra vez será contada. Nós que trabalhamos com
alegria, no sol, no frio e na chuva te saudamos, querido(a)
assinante".
Vou mandar um que acabo de fazer para ele e para quem mais
aparecer por aqui: "Martelando o teclado, procurando por textos:
loucura!, assim nasce semanalmente o Projeto Releituras. E o ano no
fim acaba, para alguns bem, pra outros mal, e a todos eu desejo Boas
Festas e Feliz Natal!".
Conto de Natal

Stanislaw Ponte Preta


(Sérgio Porto)

Era um Papai-Noel mais subdesenvolvido do que - digamos - o


Piauí. Uma barba mixuruquíssima, rala, encardida, que ele acabou
por puxar para debaixo do queixo, na esperança de diminuir o calor.
Sim, porque fazia calor.
A calçada refletia por debaixo das calças dos transeuntes o seu
bafo quente, o que ocorria também por debaixo das saias das
passantes, mas esta imagem é mais refrescante e talvez não dê ao
leitor a ideia do calor que fazia. A turba ignara ia e vinha, carregada
de embrulhos, vítima da desonestidade dos comerciantes, mas, ávida
de comprar presentinhos.
E o Papai Noel avacalhado ali na esquina, badalando. Era um
sininho de som fino, que ele badalava meio sem jeito, como se
estivesse disfarçando alguma coisa sem aquela dignidade de badalar
de sino dos verdadeiros Papais- Noeis.
Também a roupa era mixa! A blusa não tinha aquela vermelhidão
dos Papais-Noeis de capa de revistas. Nunquinha Madalena. Era cor-
de-rosa, daquele cor-de-rosa das camisas que usam componentes de
blocos de sujo, no Carnaval carioca. Isto, inclusive, talvez fosse
verdade: aquele Papai-Noel era tão vagabundo que era bem possível
que tivesse aproveitado o uniforme do Carnaval anterior, para o
Natal.
Tia Zulmira, protegida pela sombra de uma marquise, aguardava
condução e observava o Papai Noel. Observava, por exemplo, que o
Papai-Noel usava tênis (bossa nova natalina), observava que o Papai-
Noel não fazia anúncio de coisa nenhuma, ao contrário de seus
coleguinhas de outras esquinas, que traziam às costas grandes
cartazes coloridos com os nomes das lojas da cidade.
A velha, num lampejo, percebeu tudo. Viu logo que, naquele
Papai-Noel, tinha truque. E, apenas para confirmar a sua teoria,
abriu a bolsa, retirou um pedaço de papel e escreveu:
- 500 cruzeiros no grupo do gato - 1.675 pelos sete lados... NCr$
200,00 - centena 463 (invertido) . . . NCr$ 150,00.
Enrolou o papelzinho no dinheiro correspondente e, saindo de
debaixo da marquise, passou disfarçadamente pelo Papai-Noel e
espalmou na sua mão a fezinha. Papai Noe1 apanhou tudo e disse
baixinho:
- Obrigado, minha senhora. Um bom Natal para a senhora
também.

Texto extraído do livro "Dez em Humor", Editora Expressão e


Cultura - Rio de Janeiro, 1968, pág. 50.
Fábula dos Dois Leões

Stanislaw Ponte Preta


(Sérgio Porto)

Diz que eram dois leões que fugiram do Jardim Zoológico. Na


hora da fuga cada um tomou um rumo, para despistar os
perseguidores. Um dos leões foi para as matas da Tijuca e outro foi
para o centro da cidade. Procuraram os leões de todo jeito mas
ninguém encontrou. Tinham sumido, que nem o leite.
Vai daí, depois de uma semana, para surpresa geral, o leão que
voltou foi justamente o que fugira para as matas da Tijuca. Voltou
magro, faminto e alquebrado. Foi preciso pedir a um deputado do
PTB que arranjasse vaga para ele no Jardim Zoológico outra vez,
porque ninguém via vantagem em reintegrar um leão tão carcomido
assim. E, como deputado do PTB arranja sempre colocação para
quem não interessa colocar, o leão foi reconduzido à sua jaula.
Passaram-se oito meses e ninguém mais se lembrava do leão que
fugira para o centro da cidade quando, lá um dia, o bruto foi
recapturado. Voltou para o Jardim Zoológico gordo, sadio, vendendo
saúde. Apresentava aquele ar próspero do Augusto Frederico
Schmidt que, para certas coisas, também é leão.
Mal ficaram juntos de novo, o leão que fugira para as florestas da
Tijuca disse pro coleguinha: - Puxa, rapaz, como é que você
conseguiu ficar na cidade esse tempo todo e ainda voltar com essa
saúde? Eu, que fugi para as matas da Tijuca, tive que pedir arreglo,
porque quase não encontrava o que comer, como é então que você...
vá, diz como foi.
O outro leão então explicou: - Eu meti os peitos e fui me esconder
numa repartição pública. Cada dia eu comia um funcionário e
ninguém dava por falta dele.
- E por que voltou pra cá? Tinham acabado os funcionários?
- Nada disso. O que não acaba no Brasil é funcionário público. É
que eu cometi um erro gravíssimo. Comi o diretor, idem um chefe de
seção, funcionários diversos, ninguém dava por falta. No dia em que
eu comi o cara que servia o cafezinho... me apanharam.

Texto extraído do livro "Primo Altamirando e Elas", Editora do


Autor – Rio de Janeiro, 1961, pág. 153.
Não Sei se Você se Lembra

Stanislaw Ponte Preta


(Sérgio Porto)

ENTÃO, não sei se você se lembra, nos veio aquela vontade súbita
de comer siris. Havia anos que nós não comíamos siris e a vontade
surgiu de uma conversa sobre os almoços de antigamente. Lembro-
me bem - e não sei se você se lembra - que o primeiro a ter vontade
de comer siris fui eu, mas que você aderiu logo a ela, com aquele
entusiasmo que lhe é peculiar, sempre que se trata de comida ou de
mulher.
Então, não sei se você se lembra, começamos a rememorar os
lugares onde se poderia encontrar uma boa batelada de siris, para se
comprar, cozinhar num panelão e ficar comendo de mãos meladas,
chão cheio de cascas do delicioso crustáceo e mais uma para rebater
de vez em quando. E só de pensar nisso a gente deixou pra lá a
vontade pura e simples e passou a ter necessidade premente de
comer siris.
Então, não sei se você se lembra, telefonamos para o Raimundo,
que era o campeão brasileiro de siris e, noutros tempos, dava
famosos festivais do apetitoso bicho em sua casa. Ele disse que, aos
domingos, perto do Maracanã, havia um botequim que servia siris
maravilhosos, ao cair da tarde. Não sei se você se lembra que ele
frisou serem aqueles os melhores siris do Rio, como também os
únicos em disponibilidade, numa época em que o siri anda vasqueiro
e só é vendido naquelas insípidas casquinhas.
Ah... foi uma alegria saber que era domingo e havia siris comíveis
e, então, nos dois - não sei se você se lembra - apesar da fome que o
uisquinho estava nos dando - resolvemos não almoçar para ficar com
mais vontade ainda de comer siris. Passamos incólumes pela
refeição, enquanto o resto do pessoal entrava firme num feijão que
cheirava a coisa divina do céu dos glutões. O pessoal - aliás - achava
que era um exagero nosso, guardar boca para um siri que só
comeríamos à tarde, porque podíamos perfeitamente ter preparo
estomacal para eles, após o almoço.
Mas - não sei se você se lembra - fomos de uma fidelidade
espartana aos siris. Saímos para o futebol com uma fome
impressionante e passamos o jogo todo a pensar nos siris que
comeríamos ao sair do Maracanã.
Então - não sei se você se lembra - saímos dali como dois monges
tibetanos a caminho da redenção e chegamos no tal botequim. Então
- não sei se você se lembra - que a gente chegou e o homem do
botequim disse que o siri já tinha acabado.

A crônica acima consta do livro "Garoto Linha Dura",


lançamento da Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1964, pág. 163.
O Grande Mistério

Stanislaw Ponte Preta


(Sérgio Porto)

Há dias já que buscavam uma explicação para os odores


esquisitos que vinham da sala de visitas. Primeiro houve um erro de
interpretação: o quase imperceptível cheiro foi tomado como sendo
de camarão. No dia em que as pessoas da casa notaram que a sala
fedia, havia um soufflé de camarão para o jantar. Daí...
Mas comeu-se o camarão, que inclusive foi elogiado pelas visitas,
jogaram as sobras na lata do lixo e - coisa estranha - no dia seguinte
a sala cheirava pior.
Talvez alguém não gostasse de camarão e, por cerimônia, embora
isso não se use, jogasse a sua porção debaixo da mesa. Ventilada a
hipótese, os empregados espiaram e encontraram apenas um pedaço
de pão e uma boneca de perna quebrada, que Giselinha esquecera ali.
E como ambos os achados eram inodoros, o mistério persistiu.
Os patrões chamaram a arrumadeira às falas. Que era um
absurdo, que não podia continuar, que isso, que aquilo. Tachada de
desleixada, a arrumadeira caprichou na limpeza. Varreu tudo,
espanou, esfregou e... nada. Vinte e quatro horas depois, a coisa
continuava. Se modificação houvera, fora para um cheiro mais ativo.
À noite, quando o dono da casa chegou, passou uma espinafração
geral e, vitima da leitura dos jornais, que folheara no lotação, chegou
até a citar a Constituição na defesa de seus interesses.
- Se eu pago empregadas para lavar, passar, limpar, cozinhar,
arrumar e ama-secar, tenho o direito de exigir alguma coisa. Não
pretendo que a sala de visitas seja um jasmineiro, mas feder também
não. Ou sai o cheiro ou saem os empregados.
Reunida na cozinha, a criadagem confabulava. Os debates eram
apaixonados, mas num ponto todos concordavam: ninguém tinha
culpa. A sala estava um brinco; dava até gosto ver. Mas ver, somente,
porque o cheiro era de morte.
Então alguém propôs encerar. Quem sabe uma passada de cera
no assoalho não iria melhorar a situação?
-- Isso mesmo - aprovou a maioria, satisfeita por ter encontrado
uma fórmula capaz de combater o mal que ameaçava seu salário.
Pela manhã, ainda ninguém se levantara, e já a copeira e o chofer
enceravam sofregamente, a quatro mãos. Quando os patrões
desceram para o café, o assoalho brilhava. O cheiro da cera
predominava, mas o misterioso odor, que há dias intrigava a todos,
persistia, a uma respirada mais forte.
Apenas uma questão de tempo. Com o passar das horas, o cheiro
da cera - como era normal - diminuía, enquanto o outro, o misterioso
- estranhamente, aumentava. Pouco a pouco reinaria novamente,
para desespero geral de empregados e empregadores.
A patroa, enfim, contrariando os seus hábitos, tomou uma
atitude: desceu do alto do seu grã-finismo com as armas de que
dispunha, e com tal espírito de sacrifício que resolveu gastar os seus
perfumes. Quando ela anunciou que derramaria perfume francês no
tapete, a arrumadeira comentou com a copeira:
- Madame apelou para a ignorância.
E salpicada que foi, a sala recendeu. A sorte estava lançada.
Madame esbanjou suas essências com uma altivez digna de uma
rainha a caminho do cadafalso. Seria o prestigio e a experiência de
Carven, Patou, Fath, Schiaparelli, Balenciaga, Piguet e outros
menores, contra a ignóbil catinga.
Na hora do jantar a alegria era geral. Nas restavam dúvidas de
que o cheiro enjoativo daquele coquetel de perfumes era impróprio
para uma sala de visitas, mas ninguém poderia deixar de concordar
que aquele era preferível ao outro, finalmente vencido.
Mas eis que o patrão, a horas mortas, acordou com sede.
Levantou-se cauteloso, para não acordar ninguém, e desceu as
escadas, rumo à geladeira. Ia ainda a meio caminho quando sentiu
que o exército de perfumistas franceses fora derrotado. O barulho
que fez daria para acordar um quarteirão,quanto mais os da casa, os
pobres moradores daquela casa, despertados violentamente , e que
não precisavam perguntar nada para perceberem o que se passava.
Bastou respirar.
Hoje pela manhã, finalmente, após buscas desesperadas, uma das
empregadas localizou o cheiro. Estava dentro de uma jarra, uma bela
jarra, orgulho da família, pois tratava-se de peça raríssima, da
dinastia Ming.
Apertada pelo interrogatório paterno Giselinha confessou-se
culpada e, na inocência dos seus 3 anos, prometeu não fazer mais.
Não fazer mais na jarra, é lógico.

Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Marcos Rangel Porto –


1923/1968) nos brinda com mais uma de suas histórias cheias de
suspense e muito humor. Esta, retirada do livro "Rosamundo e os
outros", publicado em 1963 (1a. edição) pela Editora Sabiá Ltda., dá
uma excelente ideia do poder de criação do autor dos também
consagrados "Tia Zulmira e eu"," Primo Altamirando e elas",
"Garoto Linha Dura" e os diversos e impagáveis números do
"Festival de Besteira que Assola o País".
A Charneca

Stanislaw Ponte Preta


(Sérgio Porto)

Então, na esperança vã de me livrar do tormento de amar-te,


adormeci um pouco. E se digo vã, amor, é porque logo fiquei a
sonhar contigo, a te dizer quanto vai em mim de amor, doce, terno,
perdido amor às vezes; candente, nervoso, incontido amor, tantas
vezes.
Oh os sonhos de amor, querida! Nele eras tão outra, tão Julieta,
tão Isolda, tão Marília. E eu tão o Romeu do segundo ato, tão o
Tristão da primeira ária, tão o Dirceu de antes do desterro!
Vinhas lentamente para os meus braços ansiosos, terna e eterna,
simples e definitiva, como o barco que parte para o naufrágio. Tu,
mulher que já caminhavas para mim, antes mesmo do dia em que te
conheci. Para mim, que vivia na certeza de que de algum lugar virias,
imponderável, como soem ser os destinos do amor.
No sonho, sorríamos, no sonho éramos nós dois para sempre e
um dia. Tu, esquecida de tantas ingratidões, eras o mais puro dos
pecados. Eu, vivendo o momento em que o homem prova a si mesmo
ter um pouco de eternidade, olvidava antigos dissabores, as noites
sofridas, as lágrimas caídas, a dor.
E tão glorioso fiquei, que em mim couberam todas as glórias,
abateram-se sobre minha cabeça todos os hinos, e se Beethoven eu
fosse, passaria, num átimo, da "Patética" à "Heroica". Que incontida
alegria! Desprendi-me de ti e saí a correr pela charneca.
Na verdade eu nem sei o que é charneca, mas isto fica bacana pra
burro, em romance inglês.

Texto extraído do livro "Primo Altamirando e Elas", Editora do


Autor - Rio de Janeiro, 1962, pág. 200.
Éramos Mais Unidos aos Domingos

Stanislaw Ponte Preta


(Sérgio Porto)

As senhoras chegavam primeiro porque vinham diretas da missa


para o café da manhã. Assim era que, mal davam as 10, se tanto,
vinham chegando de conversa, abancando-se na grande mesa do
caramanchão. Naquele tempo pecava-se menos, mas nem por isso
elas se descuidavam. Iam em jejum para a missa, confessavam lá os
seus pequeninos pecados, comungavam e depois vinham para o café.
Daí chegarem mais cedo.
Os homens, sempre mais dispostos ao pecado, já não se cuidavam
tanto. Ou antes, cuidavam mais do corpo do que da alma. Iam para a
praia, para o banho de sol, os mergulhos, o jogo de bola. Só
chegavam mesmo - e invariavelmente atrasados na hora do almoço.
Vinham ainda úmidos do mar e passavam a correr pelo lado da casa,
rumo ao grande banheiro dos fundos, para lavar o sal, refrescarem-se
no chuveiro frio, excelente chuveiro, que só começou a negar água do
Prefeito Henrique Dodsworth pra cá.
O casarão, aí por volta das 2 horas, estava apinhado. Primos,
primas, tios, tias, tias-avós e netos, pais e filhos, todos na
expectativa, aguardando aquela que seria mais uma obra-mestra da
lustrosa negra Eulália. Os homens beliscavam pinga, as mulheres
falando, contando casos, sempre com muito assunto. Quem as
ouvisse não diria que estiveram juntas no domingo anterior, nem
imaginaria que estariam juntas no domingo seguinte. As moças,
geralmente, na varanda da frente, cochichando bobagens. Os rapazes
no jardim, se mostrando. E a meninada, mais afoita, rondando a
cozinha, a roubar pastéis, se fosse o caso de domingo de pastéis.
De repente aquilo que Vovô chamava de "ouviram do Ipiranga as
margens plácidas". Era o grito de Eulália, que passava da copa para o
caramanchão, sobraçando uma fumegante tigela, primeiro e único
aviso de que o almoço estava servido. E então todos se misturavam
para distribuição de lugares, ocasião em que pais repreendiam filhos,
primos obsequiavam primas e o barulho crescia com o arrastar de
cadeiras, só terminando com o início da farta distribuição de
calorias.
Impossível descrever os pratos nascidos da imaginação da gorda
e simpática negra Eulália. Hoje faltam-me palavras, mas naquele
tempo nunca me faltou apetite. Nem a mim nem a ninguém na mesa,
onde todos comiam a conversar em altas vozes, regando o repasto
com cerveja e guaraná, distribuídos por ordem de idade. Havia
sempre um adulto que preferia guaraná, havia sempre uma criança
teimando em tomar cerveja. Um olhar repreensivo do pai e aderia
logo ao refresco, esquecido da vontade. Mauricinho não conversava,
mas em compensação comia mais do que os outros.
Moças e rapazes muitas vezes dispensavam a sobremesa, na ânsia
de não chegarem atrasados na sessão dos cinemas, que eram dois e,
tal como no poema de Drummond, deixavam sempre dúvidas na
escolha.
A tarde descia mais calma sobre nossas cabeças, naqueles longos
domingos de Copacabana. O mormaço da varanda envolvia tudo,
entrava pela sala onde alguns ouviam o futebol pelo rádio, um
futebol mais disputado, porque amador, irradiado por locutores
menos frenéticos. Lá, nos fundos os bem-aventurados dormiam em
redes. Era grande a família e poucas as redes, daí o revezamento
tácito de todos os domingos, que ninguém ousava infringir.
E quando já era de noitinha, quando o último rapaz deixava sua
namorada no portão de casa e vinha chegando de volta, então
começavam as despedidas no jardim, com promessas de encontros
durante a semana, coisa que poucas vezes acontecia porque era nos
domingos que nos reuníamos.
Depois, quando éramos só nós - os de casa - a negra Eulália
entrava mais uma vez em cena, com bolinhos, leite, biscoitos e café.
Todos fazíamos aquele lanche, antes de ir dormir. Aliás, todos não.
Mauricinho sempre arranjava um jeito de jantar o que sobrara do
almoço.

***

Sérgio Porto, a outra face de Stanislaw Ponte Preta, estaria


completando 78 anos no último dia 11, caso não tivesse partido tão
cedo de nosso convívio. Com seu nome de batismo escreveu crônicas
maravilhosas, ora líricas, ora densamente dramáticas, retratando
o ambiente carioca, onde deixa transparecer sua fina sensibilidade
sem conseguir esconder a nota de um irresistível humor.

Texto extraído do livro "A Casa Demolida", Editora do Autor –


Rio de Janeiro, 1963, pág. 23.
História de um Nome

Stanislaw Ponte Preta


(Sérgio Porto)

No capítulo dos nomes difíceis têm acontecido coisas das mais


pitorescas. Ou é um camarada chamado Mimoso, que tem físico de
mastodonte, ou é um sujeito fraquinho e insignificante chamado
Hércules. Os nomes difíceis, principalmente os nomes tirados de
adjetivos condizentes com seus portadores, são raríssimos, e é por
isso que minha avó a paterna - dizia:
- Gente honesta, se for homem deve ser José, se for mulher, deve
ser Maria!
É verdade que Vovó não tinha nada contra os joões, paulos,
mários, odetes e - vá lá - fidélis. A sua implicância era, sobretudo,
com nomes inventados, comemorativos de um acontecimento
qualquer, como era o caso, muito citado por ela, de uma tal Dona
Holofotina, batizada no dia em que inauguraram a luz elétrica na rua
em que a família morava.
Acrescente-se também que Vovó não mantinha relações com
pessoas de nomes tirados metade da mãe e metade do pai. Jamais
perdoou a um velho amigo seu - o "Seu" Wagner - porque se casara
com uma senhora chamada Emília, muito respeitável, aliás, mas que
tivera o mau-gosto de convencer o marido de batizar o primeiro filho
com o nome leguminoso de Wagem - "wag" de Wagner e "em" de
Emília. É verdade que a vagem comum, crua ou ensopada, será
sempre com "v", enquanto o filho de "Seu" Wagner herdara o "w" do
pai. Mas isso não tinha nenhuma importância: a consoante não era
um detalhe bastante forte para impedir o risinho gozador de todos
aqueles que eram apresentados ao menino Wagem.
Mas deixemos de lado as birras de minha avó - velhinha que Deus
tenha, em Sua santa glória - e passemos ao estranho caso da família
Veiga, que morava pertinho de nossa casa, em tempos idos.
"Seu" Veiga, amante de boa leitura e cuja cachaça era colecionar
livros, embora colecionasse também filhos, talvez com a mesma
paixão, levou sua mania ao extremo de batizar os rebentos com
nomes que tivessem relação com livros. Assim, o mais velho chamou-
se Prefácio da Veiga; o segundo, Prólogo; o terceiro, Índice e,
sucessivamente, foram nascendo o Tomo, o Capítulo e, por fim,
Epílogo da Veiga, caçula do casal.
Lembro-me bem dos filhos de "Seu" Veiga, todos excelentes
rapazes, principalmente o Capítulo, sujeito prendado na confecção
de balões e papagaios. Até hoje (é verdade que não me tenho
dedicado muito na busca) não encontrei ninguém que fizesse um
papagaio tão bem quanto Capítulo. Nem balões. Tomo era um bom
extrema-direita e Prefácio pegou o vício do pai - vivia comprando
livros. Era, aliás, o filho querido de "Seu" Veiga, pai extremoso, que
não admitia piadas. Não tinha o menor senso de humor. Certa vez
ficou mesmo de relações estremecidas com meu pai, por causa de
uma brincadeira. "Seu" Veiga ia passando pela nossa porta, levando a
família para o banho de mar. Iam todos armados de barracas de
praia, toalhas etc. Papai estava na janela e, ao saudá-lo, fez a graça:
- Vai levar a biblioteca para o banho? "Seu" Veiga ficou queimado
durante muito tempo.
Dona Odete - por alcunha "A Estante" - mãe dos meninos, sofria
o desgosto de ter tantos filhos homens e não ter uma menina "para
me fazer companhia" - como costumava dizer. Acreditava, inclusive,
que aquilo era castigo de Deus, por causa da ideia do marido de botar
aqueles nomes nos garotos. Por isso, fez uma promessa: se ainda
tivesse uma menina, havia de chamá-la Maria.
As esperanças já estavam quase perdidas. Epílogozinho já tinha
oito anos, quando a vontade de Dona Odete tornou-se uma bela
realidade, pesando cinco quilos e mamando uma enormidade. Os
vizinhos comentaram que "Seu" Veiga não gostou, ainda que se
conformasse, com a vinda de mais um herdeiro, só porque já lhe
faltavam palavras relacionadas a livros para denominar a criança.
Só meses depois, na hora do batizado, o pai foi informado da
antiga promessa. Ficou furioso com a mulher, esbravejou, bufou,
mas - bom católico - acabou concordando em parte. E assim, em vez
de receber somente o nome suave de Maria, a garotinha foi
registrada, no livro da paróquia, após a cerimônia batismal, como
Errata Maria da Veiga.
Estava cumprida a promessa de Dona Odete, estava de pé a
mania de "Seu" Veiga.

Texto extraído do livro "A Casa Demolida", Editora do Autor -


Rio de Janeiro, 1963, pág. 175.
O Festival de Besteira Que Assola o País

Stanislaw Ponte Preta


(Sérgio Porto)

Disse Stanislaw no FEBEAPA 2:


"É difícil ao historiador precisar o dia em que o Festival de
Besteira começou a assolar o País. Pouco depois da "redentora",
cocorocas de diversas classes sociais e algumas autoridades que
geralmente se dizem "otoridades", sentindo a oportunidade de
aparecer, já que a "redentora", entre outras coisas, incentivou a
política do dedurismo (corruptela de dedo-durismo, isto é, a arte de
apontar com o dedo um colega, um vizinho, o próximo enfim, como
corrupto ou subversivo - alguns apontavam dois dedos duros, para
ambas as coisas), iniciaram essa feia prática, advindo daí cada
besteira que eu vou te contar".
Vamos a algumas amostras:
"O mal do Brasil é ter sido descoberto por estrangeiros"
(Deputado Índio do Brasil, Assembleia do Rio).
O cidadão Aírton Gomes de Araújo, natural de Brejo Santo, no
Ceará, era preso pelo 23.º Batalhão de Caçadores, acusado de ter
ofendido "um símbolo nacional", só porque disse que o pescoço do
Marechal Castelo Branco parecia pescoço de tartaruga e logo depois
desagravava o dito símbolo, quando declarava que não era o pescoço
de S. Exa. que parecia com o da tartaruga: o da tartaruga é que
parecia com o de S. Exa.
Cerca de 51 bandeiras dos países que mantêm relação com o
Brasil foram colocadas no Aeroporto de Congonhas. O Secretário de
Turismo de São Paulo - Deputado Orlando Zancaner - quando
inaugurou a ala das bandeiras, disse que "era para incrementar o
turismo externo".
Quando a Censura Federal proibiu em Brasília a encenação da
peça Um Bonde Chamado Desejo, a atriz Maria Fernanda foi
procurar o Deputado Ernani Sátiro para que o mesmo agisse em
defesa da classe teatral. Lá pelas tantas, a atriz deu um grito de "viva
a Democracia". O senhor Ernani Sátiro na mesma hora retrucou:
"Insulto eu não tolero".
O Diário Oficial publica "Disposições de Seguros Privados" e mete
lá: "O Superintendente de Seguros Privados, no uso de suas
atribuições, resolve (...), "Cláusula 2 - Outros riscos cobertos - O
suicídio e tentativa de suicídio - voluntário ou involuntário".
Em Niterói o professor Carlos Roberto Borba iniciou ação de
desquite contra a professora Eneida Borba, alegando que sua esposa
não lhe dá a menor atenção e recebe mal seus carinhos quando é
hora de programas de Roberto Carlos na televisão. A professora vai
aprender que mais vale um Carlos Roberto ao vivo que um Roberto
Carlos no vídeo.
Colhemos num coleguinha do Jornal do Brasil:
"O General José Horácio da Cunha Garcia fez uma firme apologia
da Revolução e manifestou-se contrariamente às teses de pacificação,
bem como condenou o abrandamento da ação revolucionária. O
conferencista foi aplaudido de pé". O distraído Rosamundo leu e, na
sua proverbial vaguidão, comentou: "Não seria mais distinto se
aplaudissem com as mãos?".
Enquanto o Marechal Presidente declarava que em hipótese
alguma permitiria fosse alterada a ordem democrática por
estudantes totalitários, insuflados por comunistas notórios, quem
passasse pela Cinelândia no dia 1.º de abril depararia com o prédio
da assembleia Legislativa totalmente cercado por tropas da Polícia
Militar. Na certa, a separação de poderes, prevista na Constituição,
passará a ser feita com cordão de isolamento e muita cacetada.
Notícia publicada pelo jornal O Povo, de Fortaleza (CE): "O Dr.
Josias Correia Barbosa, advogado e professor, esteve à beira de um
IPM (Inquérito Policial Militar) por haver passado um telegrama
para sua sobrinha Loberi, em Salvador, comunicando-lhe que a
bicicleta e as pitombas tinham seguido. Houve diligencias pelas
vizinhanças, parentes foram procurados e outras providências
tomadas. Passados dois dias, soube o Dr. Josias que o despacho
telegráfico não fora transmitido porque um James Bond do DCT
(Departamento de Correios e Telégrafos) estranhara os termos
"bicicleta", "pitombas" e "Loberi", que "deviam ser de um código
secreto".
"Os jornalistas deveriam apanhar da polícia não só durante a
passeata, mas antes também. Eles são incapazes de reconhecer o
valor da polícia. Os fotógrafos, por exemplo, nunca fotografam os
estudantes batendo no policial". Essa declaração foi feita pelo
Secretário de Segurança de Minas Gerais, coronel Joaquim
Gonçalves.
A peça "Liberdade, Liberdade" estreou em Belo Horizonte e a
Censura cortou apenas a palavra prostituta, substituindo-a pela
expressão: "Mulher de vida fácil", o que, na atual conjuntura, nos
parece um tanto difícil. Ninguém mais tá levando vida fácil.
Segundo Tia Zulmira "o policial é sempre suspeito" e - por isso
mesmo - a Polícia de Mato Grosso não é nem mais nem menos
brilhante do que as outras polícias. Tanto assim que um delegado de
lá, terminou seu relatório sobre um crime político, com estas
palavras: "A vítima foi encontrada às margens do riu sucuriu,
retalhada em 4 pedaços, com os membros separados do tronco,
dentro de um saco de aniagem, amarrado e atado a uma pesada
pedra. Ao que tudo indica, parece afastada a hipótese de suicídio".
Em Campos (RJ) ocorria um fato espantoso: a Associação
Comercial da cidade organizou um júri simbólico de Adolph Hitler,
sob o patrocínio do Diretório Acadêmico da Faculdade de Direito. Ao
final do julgamento Hitler foi absolvido.
A mini-saia era lançada no Rio e execrada em Belo Horizonte,
onde o Delegado de Costumes (inclusive costumes femininos),
declarava aos jornais que prenderia o costureiro francês Pierre
Cardin (bicharoca parisiense responsável pelo referido lançamento),
caso aparecesse na capital mineira "para dar espetáculos obscenos,
com seus vestidos decotados e saias curtas". E acrescentava furioso:
"A tradição de moral e pudor dos mineiros será preservada sempre".
Toda essa cocorocada iria influenciar um deputado estadual de lá -
Lourival Pereira da Silva - que fez um discurso na Câmara sobre o
tema "Ninguém levantará a saia da Mulher Mineira".
Em Brasília, depois de um dos maiores movimentos do Festival
de Besteira, que bagunçou a Universidade local, o Reitor Laerte
Ramos - figurinha que ama tanto uma marafa que cachaça no
Distrito Federal passou a se chamar "Reitor" - nomeava um professor
para a cadeira de Direito Penal. O ilustre lente nomeado começou
com estas palavras a sua primeira aula: "A ciência do Direito é aquela
que estuda o Direito".
A Igreja se pronunciou, através da Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil, sobre recentes publicações pretensamente
científicas, "que abordam problemas relacionados ao sexo com
evidente abuso". O documento não explicou se o abuso era do
problema ou se o abuso era do sexo. Em compensação, nessa mesma
conferência, Dom José Delgado, Arcebispo de Fortaleza, dava
entrevista à Agência Meridional sobre pílulas anticoncepcionais, uma
pílula formidável para fazer efeito no Festival de Besteira. Como se
disse bobagem sobre o uso ou não da pílula, meus Deus!!! Dom
Delgado, por exemplo, dizia: "A protelação do casamento é a única
conclusão a que chego, atualmente, para a planificação da família e o
controle da natalidade. E, depois disso, só existe um caminho seguro:
o da continência na vida conjugal". Como veem, o piedoso sacerdote
era um bocado radical e queria acabar com a alegria do pobre. Ainda
mais, falando em sexo e em continência na vida conjugal, deixou
muito cocoroca achando que, dali por diante, era preciso bater
continência para o sexo também.

Textos extraídos dos livros "O Festival de Besteira que Assola o


País", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1966, "2.º Festival de
Besteira que Assola o País", Editora Sabiá - Rio de Janeiro, 1967, e
"Na Terra do Crioulo (A máquina de fazer) Doido - FEBEAPA 3",
Editora Sabiá - Rio de Janeiro, 1968, págs. Diversas.
Pensamentos do Lalau

Stanislaw Ponte Preta


(Sérgio Porto)

- No Brasil as coisas acontecem, mas depois, com um simples


desmentido, deixaram de acontecer.
- Antes só do que muito acompanhado.
- Quando aquele cavalheiro nervoso entrou no hospital dizendo
"eu sou coronel, eu sou coronel", o médico tirou o estetoscópio do
ouvido e quis saber: "Fora esse, qual o outro mal do qual o senhor se
queixa?"
- Ser imbecil é mais fácil.
- Está dando mais do que cará no brejo.
- Nos trens suburbanos não livram a cara nem de padre, que dirá
mulher de minissaia.
- O mais perigoso é que já estão confundindo justa causa com
calça justa.
- O Reino Unido não é tão unido assim como eles dizem, não.
- Desligou o telefone com uma violência de PM em serviço.
- Mais monótono do que itinerário de elevador.
- Macrobiótica é um regime alimentar para quem tem 77 anos e
quer chegar aos 78.
- Consciência é como vesícula, a gente só se preocupa com ela
quando dói.
- Difícil dizer o que incomoda mais, se a inteligência ostensiva ou
a burrice extravasante.
- Sempre ouviu dizer que o homem totalmente realizado é aquele
que tem um filho, planta uma árvore e escreve um livro. Tinha um
filho, plantou uma árvore, o filho trepou na árvore, caiu e morreu. Só
lhe restou escrever um livro sobre isso.
- Quem não tem quiabo não oferece caruru.
- Mania de grandeza é a desses suplementos literários que têm
um aviso dizendo que é proibido vender separadamente.
- Pode-se dizer a maior besteira, mas se for dita em latim muitos
concordarão.
- Homem que desmunheca e mulher que pisa duro não enganam
nem no escuro.
- Todo homem previdente sorri sem falha no dente.
- Mulher expondo teoria sobre educação infantil é solteira na
certa.
- Menino mijado, bode embarcado e chefe de Estado, nunca fica
despreocupado.
- Ou restaure-se a moralidade ou locupletemo-nos todos!
- Esperanto é a língua universal que não se fala em lugar nenhum.
- Pra quem gosta de jiló, coruja é colibri.
- Era desses caras que cruzam cabra com periscópio pra ver se
conseguem um bode expiatório.
- O terceiro sexo já está quase em segundo.
- As coisas que mais contribuem para avacalhar a dignidade de
um homem são, pela ordem, bofetão de mulher e tombo de bunda no
chão.
- Caetano Veloso confunde velocidade com trepidação.
- Hoje em dia ninguém é bonzinho de graça.
- A polícia prendendo bicheiros? Assim não é possível.
Respeitemos ao menos as instituições!
- O primeiro nome de Freud era Segismundo. Aliás, não só seu
primeiro nome como também seu primeiro complexo.
- Às vezes é melhor deixar em fogo lento do que mexer na panela.
- Mais inútil do que um vice-presidente.
- Mais mole que bochecha de velha.
- A polícia anda dizendo que prende um bandido de meia em
meia hora, então a gente fica desconfiado que eles assaltam de 15 em
15 minutos.
- Ninguém se conforma de já ter sido.
- Quem desdenha quer comprar, quem disfarça está escondendo,
mas quem desdenha e disfarça, não sabe o que está querendo.
- Mulher enigmática, às vezes é pouca gramática.
- Quando um amigo morre, leva um pouco da gente.
- Nem todo rico tem carro, nem todo ronco é pigarro, nem toda
tosse é catarro, nem toda mulher eu agarro.
- Quem diz que futebol não tem lógica ou não entende de futebol
ou não sabe o que é lógica.
- A diferença entre o religioso e o carola é que o primeiro ama a
Deus, o segundo, teme.
- Pediatra sempre capricha na pronúncia quando anuncia sua
especialidade, pra evitar mal-entendidos.
- Nem todo gordo é bom, muitos se fingem de bonzinhos porque
sabem que correm menos.
- Tinha tal pavor de avião que se sentia mal só de ver uma
aeromoça.
- Mulher e livro, emprestou, volta estragado.
- O sol nasce para todos, a sombra pra quem é mais esperto.
E para terminar:
- Da minha janela vejo o pátio de um colégio e quando a
campainha toca para o intervalo das aulas eu paro de trabalhar e fico
olhando, como se estivesse no recreio também.
- O importante é não deixar nunca que o menino morra
completamente dentro da gente. Caso contrário, ficamos velhos mais
depressa. Dizem que é por isso que os chineses, de incontestável
sabedoria, conservam o hábito de soltar papagaio (ou pipa, se
preferirem) mesmo depois de adultos. Não sei se é verdade, nunca
fui chinês.

Stanislaw Ponte Preta, nosso querido Sérgio Porto (1923/1968),


teve sua vida esmiuçada por Renato Sérgio no livro Dupla
Exposição: Stanislaw Sérgio Ponte Porto Preta, editado pela Ediouro
Publicações S.A. - Rio de Janeiro, 1998. Dali extraímos os frases
acima (pág. 266 e seguintes), muitas das quais refletem o clima em
que vivia o autor face à "revolução redentora de 1964", como ele
costumava dizer.
Prova Falsa

Stanislaw Ponte Preta


(Sérgio Porto)

Quem teve a ideia foi o padrinho da caçula - ele me conta. Trouxe


o cachorro de presente e logo a família inteira se apaixonou pelo
bicho. Ele até que não é contra isso de se ter um animalzinho em
casa, desde que seja obediente e com um mínimo de educação.
- Mas o cachorro era um chato - desabafou.
Desses cachorrinhos de raça, cheio de nhém-nhém-nhém, que
comem comidinha especial, precisam de muitos cuidados, enfim, um
chato de galocha. E, como se isto não bastasse, implicava com o dono
da casa.
- Vivia de rabo abanando para todo mundo, mas, quando eu
entrava em casa, vinha logo com aquele latido fininho e antipático de
cachorro de francesa.
Ainda por cima era puxa-saco. Lembrava certos políticos da
oposição, que espinafram o ministro, mas quando estão com o
ministro ficam mais por baixo que tapete de porão. Quando
cruzavam num corredor ou qualquer outra dependência da casa, o
desgraçado rosnava ameaçador, mas quando a patroa estava perto
abanava o rabinho, fingindo-se seu amigo.
- Quando eu reclamava, dizendo que o cachorro era um cínico,
minha mulher brigava comigo, dizendo que nunca houve cachorro
fingido e eu é que implicava com o "pobrezinho".
Num rápido balanço poderia assinalar: o cachorro comeu oito
meias suas, roeu a manga de um paletó de casimira inglesa, rasgara
diversos livros, não podia ver um pé de sapato que arrastava para
locais incríveis. A vida lá em sua casa estava se tornando
insuportável. Estava vendo a hora em que se desquitava por causa
daquele bicho cretino. Tentou mandá-lo embora umas vinte vezes e
era uma choradeira das crianças e uma espinafração da mulher.
- Você é um desalmado - disse ela, uma vez.
Venceu a guerra fria com o cachorro graças à má educação do
adversário. O cãozinho começou a fazer pipi onde não devia. Várias
vezes exemplado, prosseguiu no feio vício. Fez diversas vezes no
tapete da sala. Fez duas na boneca da filha maior. Quatro ou cinco
vezes fez nos brinquedos da caçula. E tudo culminou com o pipi que
fez em cima do vestido novo de sua mulher.
- Aí mandaram o cachorro embora? - perguntei.
- Mandaram. Mas eu fiz questão de dá-lo de presente a um amigo
que adora cachorros. Ele está levando um vidão em sua nova
residência.
- Ué... mas você não o detestava? Como é que arranjou essa sopa
pra ele?
- Problema da consciência - explicou: - O pipi não era dele.
E suspirou cheio de remorso.

Texto extraído do livro "Garoto Linha Dura", Editora do Autor -


Rio de Janeiro, 1964, pág. 51.
Certas Esperanças

Stanislaw Ponte Preta


(Sérgio Porto)

É preciso - é mais do que preciso, é forçoso - dar boas festas,


trocar embrulhinhos, querer mais intensamente, oferecer com mais
prodigalidade, manter o sorriso e, acima de tudo, esquecer tristezas e
saudades.
Façamos um supremo esforço para lembrar e sermos lembrados,
porque assim manda a tradição e é difícil esquecer à tradição.
Enviemos cartões e telegramas de felicitações àqueles que amamos e
também àqueles que - sabemos perfeitamente - não gostam da gente.
O Correio, nesta época do ano, finge-se de eficiente e já lá tem
prontos impressos para que desejemos coisas boas aos outros,
nivelando a todos em nossos augúrios.
Depois de abraçar e ser abraçado, desejar sincera e
indiferentemente, embrulhar e desembrulhar presentes, cada um
poderá fazer votos a si mesmo, desejar para si o que bem entender.
Subindo na escala das idades, este sonhou todo o mês com um
trenzinho elétrico, aquele com uma bicicleta (com farol e tudo), o
outro certa moça, mais além um quarto sonhador esteve a remoer a
ideia de ser ministro e o rico... bem, o rico só pensa em ser mais rico.
O rico detesta amistosamente os ministros, já não tem olhos para a
graça da moça, pernas para pedalar uma bicicleta e, muito menos,
tempo para brincar com um trenzinho.
Dos planos de cada um, pouquíssimos serão transformados em
realidade. Alguns hão de abandoná-los por desleixo e a maioria, mal
o ano de 56 começar, não pensará mais nele, por pura desesperança.
O melhor, portanto, é não fazer planos. Desejar somente, posto que
isso sim, é humano e acalentador.
De minha parte estou disposto a esquecer todas as passadas
amarguras, tudo que o destino me arranjou de ruim neste ano que
finda. Ficarei somente com as lembranças do que me foi grato e me
foi bom.
No mais, desejarei ficar como estou porque, se não é o que há de
melhor, também não é tão ruim assim e, tudo somado, ficaram
gratas alegrias. Que Deus me proporcione as coisas que sempre me
foram gratas e que - Ele sabe - não chegam a fazer de mim um
ambicioso.
Que não me falte aquele almoço honesto dos sábados (único
almoço comível na semana), com aquele feijão que só a negra Almira
sabe fazer; que não me falte o arroz e a cerveja - é muito importante
a cerveja, meu Deus! -, como é importante manter em dia o ordenado
da Almira.
Se não me for dado comparecer às grandes noites de gala, que
fazer? Resta-me o melhor, afinal, que é esticar de vez em quando por
aí, transformando em festa uma noite que poderia ser de sono.
E para os pequenos gostos pessoais, que me reste sensibilidade
bastante para entretê-las. Ai de mim se começo a não achar mais
graça nos pequenos gostos pessoais. Que o perfume do sabonete, no
banho matinal, seja sempre violeta; que haja um cigarro forte para
depois do café; uma camisa limpa para vestir; um terno que pode
não ser novo, mas que também não esteja amarrotado. Uma vez ou
outra, acredito que não me fará mal um filme da Lollobrigida, nem
um uísque com gelo ou - digamos - uma valsa.
Nada de coisas impossíveis para que a vida possa ser mais bem
vivida. Apenas uma praia para janeiro, uma fantasia para fevereiro,
um conhaque para junho, um livro para agosto e as mesmas
vontades para dezembro.
No mais, continuarei a manter certas esperanças inconfessáveis
porém passíveis - e quanto - de acontecerem.

A crônica acima foi publicada na revista "Manchete" nº. 193, de


31/12/55.
Pescaria

Stanislaw Ponte Preta


(Sérgio Porto)

- Fomos uns cinco pescar - conta-nos o amigo que há muito não


encontrávamos. Tinha comprado um molinete e, segundo nos
confessou, desde menino sonhava em ter o seu próprio molinete. Por
isso aceitou o convite.
Quando o encontramos, às 11 horas da noite de sábado, estava
cansadíssimo e queria ir dormir. Mesmo assim contou como foi a
pescaria.
- Eles me convidaram dizendo que estava dando muito pampo na
Barra da Tijuca. Passaram lá em casa às 7, me pegaram e saímos para
comprar isca.
Ficaram comprando isca e lá pelas 9 horas entraram num bar
para tomar um negócio porque estava ameaçando chuva e era
preciso precaução. Às 11 horas, saíram do bar e tinha um camarada
na porta vendendo siris.
- Vivos? - perguntamos:
Nosso amigo diz que sim e que, por isso mesmo, era preciso
preparar. Ninguém levava comida para a pescaria e, portanto, até
que seria bom cozinharem uns siris para fazer o farnel.
Na casa de um dele, a cozinheira foi avisada de que chegariam
dentro em pouco com uma centena de siris para preparar. E de fato
chegaram, lá pelas duas da tarde.
Foi tudo muito rápido. Às 5 horas os siris estavam prontinhos e
todos sentados em volta da mesa, para experimentar. Trouxeram
umas cervejas e foram comendo, foram comendo, até que chegou
uma hora em que havia mais siris do que fome. Resolveram tomar
providências e telefonaram para uns amigos.
- Venham comer siris.
Os amigos chegaram com um violão e uma garrafa de uísque.
Uísque vai, uísque vem, deu fome outra vez. Eram oito horas quando
a cozinheira salvou a situação com uma panelada de carne-seca com
abóbora. Uns sirizinhos antes, como aperitivo, e todos caíram na
carne-seca.
Então deu vontade de cantar. Um lá pegou o violão, os outros
suas caixas de fósforo e começaram a lembrar sambas antigos.
E nosso amigo, ainda com o caniço e o molinete na mão,
confessa:
- Saí de lá agora.
- E a pescaria?
- Pescaria? Que pescaria?
Homenageamos o autor, que hoje, 11/01/2002, estaria
completando 79 anos de idade.

Texto extraído do livro "10 em Humor", Editora Expressão e


Cultura - Rio de Janeiro, 1968, pág. 54.
Divisão

Sérgio Porto
(Stanislaw Ponte Preta)

Você poderá ficar com a poltrona, se quiser. Mande forrar de


novo, ajeitar as molas. É claro que sentirei falta. Não dela, mas das
tardes em que aqui fiquei sentado, olhando as arvores. Estas sim, eu
levaria de bom grado : as árvores, a vista do morro, até a algazarra
das crianças lá embaixo, na praça. 0 resto dos moveis - são tão
poucos! - podemos dividir de acordo com nossas futuras
necessidades.
A vitrola esta, tão velha que o melhor é deixá-la ai mesmo,
entregue aos cuidados ou ao desespero do futuro inquilino. Tanto
você quanto eu haveremos de ter, mais cedo ou mais tarde, as nossas
respectivas vitrolas, mais modernas, dotadas de todos os requisitos
técnicos e mais aquilo que faltou ao nosso amor: alta-fidelidade.
Quanto aos discos, obedecerão às nossas preferências. Você fica
com as valsas, as canções francesas, um ou outro "chopinzinho", o
Mozart e Bing Crosby. Deixe para mim o canto pungente do negro
Armstrong, os sambas antigos e estes chorinhos. Aqueles que
compartilhavam do nosso gosto comum serão quebrados e jogados
no lixo. É justo e honesto.
Os livros são todos seus, salvo um ou outro com dedicatória. Não,
não estou querendo ser magnânimo. Pelo contrario: Ainda desta vez
penso em mim. Será um prazer voltar a juntá-los, um por um, em
tardes de folga, visitando livrarias. Aos poucos irei refazendo toda
esta biblioteca, então com um caráter mais pessoal. Fique com os
livros todos, portanto. E consequentemente com a estante também.
Os quadros também são seus, e mais esses vasinhos de plantas.
Levarei comigo o cinzeirinho verde. Ele já era meu muito antes de
nos conhecermos. Também os dois chinesinhos de marfim e esta
espátula. Veja só o que está escrito nela: 12-1-48. Fique com toda
essa quinquilharia acidentalmente juntada. Sempre detestei bibelôs
e, mais do que eles, a chamada arte popular, principalmente quando
ela se resume nesses bonequinhos de barro. Com exceção,o de pote
de melado e moringa de água, nada que foi feito com barro presta.
Nem o homem.
Rasgaremos todas as fotografias, todas as cartas, todas as
lembranças passíveis de serem destruídas. Programas de teatros,
álbuns de viagens, souvenirs. Que não reste nada daquilo que nos é
absolutamente pessoal e que não possa ser entre nos dividido.
Fique com a poltrona, seus discos, todos os livros, os quadros,
esta jarra. Eu ficarei com estes objetos, um ou outro móvel. Tudo
está razoavelmente dividido. Leve a sua tristeza, eu guardarei a
minha.

Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta) - A casa demolida -


Editora do Autor, Rio de Janeiro, 1968, pág. 201.
Vamos Acabar Com Esta Folga

Stanislaw Ponte Preta


(Sérgio Porto)

O negócio aconteceu num café. Tinha uma porção de sujeitos,


sentados nesse café, tomando umas e outras. Havia brasileiros,
portugueses, franceses, argelinos, alemães, o diabo.
De repente, um alemão forte pra cachorro levantou e gritou que
não via homem pra ele ali dentro. Houve a surpresa inicial, motivada
pela provocação e logo um turco, tão forte como o alemão, levantou-
se de lá e perguntou:
- Isso é comigo?
- Pode ser com você também - respondeu o alemão.
Aí então o turco avançou para o alemão e levou uma traulitada
tão segura que caiu no chão. Vai daí o alemão repetiu que não havia
homem ali dentro pra ele. Queimou-se então um português que era
maior ainda do que o turco. Queimou-se e não conversou. Partiu
para cima do alemão e não teve outra sorte. Levou um murro debaixo
dos queixos e caiu sem sentidos.
O alemão limpou as mãos, deu mais um gole no chope e fez ver
aos presentes que o que dizia era certo. Não havia homem para ele ali
naquele café. Levantou-se então um inglês troncudo pra cachorro e
também entrou bem. E depois do inglês foi a vez de um francês,
depois de um norueguês etc. etc. Até que, lá do canto do café
levantou-se um brasileiro magrinho, cheio de picardia para
perguntar, como os outros:
- Isso é comigo?
O alemão voltou a dizer que podia ser. Então o brasileiro deu um
sorriso cheio de bossa e veio vindo gingando assim pro lado do
alemão. Parou perto, balançou o corpo e... pimba! O alemão deu-lhe
uma porrada na cabeça com tanta força que quase desmonta o
brasileiro.
Como, minha senhora? Qual é o fim da história? Pois a história
termina aí, madame. Termina aí que é pros brasileiros perderem essa
mania de pisar macio e pensar que são mais malandros do que os
outros.

Um texto curto, extraído do livro "O Melhor da Crônica


Brasileira - 1", José Olympio Editora - Rio de Janeiro, 1997, pág. 71,
nos faz recordar o humor de Stanislaw (Sérgio Porto) e pensar na
falta que ele nos faz.
A mensagem

Stanislaw Ponte Preta


(Sérgio Porto)

Um amigo nosso, comandante da VASP, conta-me a estranha


mensagem recebida por um piloto americano durante uma
aterrissagem.
O avião da companhia norte-americana sobrevoava a Bahia, a
caminho do Rio, quando um defeito no motor obrigou o piloto a
providenciar uma aterrissagem no aeroporto mais próximo possível.
Na Bahia, justamente na pequena cidade de Barreiras, existe uma
pista de emergência (se é que se pode chamar aquilo de pista) para os
aviões das linhas internacionais. Raramente é usada, mas era a mais
próxima da rota do avião. Assim, o piloto não teve dúvidas. A
situação dele estava muito mais pra urubu do que pra colibri. 0
negócio era mesmo se mandar para Barreiras.
Pediu pouso durante certo tempo, dirigindo-se à Rádio local em
inglês. A resposta demorou um pouco, mas acabou vindo. Alguém,
com forte sotaque nordestino, falando um inglês arrevesado e
misturado com palavras em português, respondia que estava ouvindo
e aconselhava o comandante a procurar outro local para
aterrissagem.
Há dias estava chovendo em Barreiras e a pista se achava em
péssimo estado.
O piloto, sem outra alternativa, insistiu em pousar assim mesmo,
e tornou a pedir instruções, ouvindo-se lá a voz a dizer que estava
bem, mas que não se responsabilizava pelo que desse e viesse.
Acontece porém que isso foi dito com outras palavras, ainda num
misto de português e inglês. Assim:
- Ok. You land. But se der bode, I'il take my body out.

***
Homenageamos o autor que hoje, 11/01/2003, estaria
completando 80 anos de idade.

Texto extraído do livro "10 em Humor", Editora Expressão e


Cultura - Rio de Janeiro, 1968, pág. 42.

FIM

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