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Até que eu não sou de reclamar, puxa! Taí, se há alguém que não
é de reclamar, sou eu. Pago sempre e não bufo. Claro que procuro me
defender da melhor maneira possível, isto é, chateando o patrão,
cobrando cada vez mais, buscando o impossível - como diz Tia
Zulmira -, ou seja, equilíbrio orçamentário. Se o Banco do Brasil não
tem equilíbrio orçamentário, eu é que vou ter, é ou não é?
Mas a gente luta. Eu ganho cada vez mais e nem por isso deixo de
terminar sempre o mês que nem time de Zezé Moreira: 0 x 0.
Segundo cálculos da tia acima citada, que é bárbara para assuntos
econômicos, eu sou um dos homens mais ricos do Brasil, pois
consigo chegar ao fim do mês sem dever. Esta afirmativa não me
agrada nada, mas dá uma pequena amostra de como vai mal a
organização administrativa do nosso querido Brasil.
Aliás, minto...o cronista pede desculpas, mas estava mentindo. Eu
vou no empate até dezembro, porque, quando chega o Natal, é fogo.
Aí embaralha tudo. Não há tatu que resista aos compromissos
natalinos. São as Festas - dizem.
O presente das crianças, a ganância do comerciante, as gentilezas
obrigatórias, os orçamentos inglórios, a luta do consumidor, a
malandragem do fornecedor e olhe nós todos envolvidos nesse
bumba-meu-boi dos presentinhos.
E que fossem só os presentinhos. A gente selecionava, largava
uma lembrancinha nas mãos dos amigos com o clássico letreiro:
"Você não repare, que é presente de pobre" e ia maneirando. Mas
tem as listas, tem os cartõezinhos.
O que me chateia são as listas e os cartõezinhos. A gente passa o
mês todo comprando coisas pros outros sem a menor esperança de
que os outros estejam comprando coisas pra gente. De repente,
quando o retrato do falecido Almirante Pedro Álvares Cabral, que, no
Í
caminho para as Índias, ao evitar as calmarias, etc., etc. já é um raro
no bolso dos coitados do que deputado em Brasília, vem um de lista.
O de lista é sempre meio encabulado. Empurra a lista assim na
nossa frente e diz: - O pessoal todo assinou. Fica chato se você não
assinar. Então a gente dá uma olhada. A lista abre com uma quantia
polpuda - quase sempre fictícia - que é pra animar o sangrado. E tem
a lista dos contínuos, tem a lista dos porteiros, tem a lista dos
faxineiros, tem a lista das telefonistas, tem a lista do raio que te
parta.
A gente assina a lista meio humilhado, porque, no máximo, pode
contribuir com duzentas pratas, onde está estampada a figura de
Pedro I, que às margens do Ipiranga, desembainhando a espada, etc.,
etc. e pensa que está livre, embora outras listas estejam de tocaia,
esperando a gente.
Então tá. Há um momento em que os presentinhos já estão todos
comprados, as listas já estão todas assinadas e você já está com mais
ponto perdido na tabela do que o time do Taubaté. Deve pra
cachorro, mas vai dever mais.
Vai dever mais porque faltam os cartõezinhos de apelação. A
campainha toca, você abre para saber quem está batendo e é o
lixeiro. Ele não diz nada. Entrega um envelopezinho, a gente abre e lá
está o versinho: "Mil votos de Boas Festas/ Seja feliz o ano inteiro/ É
o que ora lhe deseja/ O vosso humilde lixeiro."
E o vosso humilde lixeiro espalma sorridente a estira que a gente
larga na mão dele. Meia hora depois a campainha toca. Desta vez -
quem sabe? - é uma cesta de Natal que um bacano teve a boa ideia de
enviar. Mas qual. É o carteiro, fardado e meio sem jeito, que passa
outro cartãozinho de apelação. A gente abre o envelope e lá está:
"Trazendo a correspondência/ Faça frio ou calor/ Vosso carteiro
modesto/ Prossegue no seu labor/ Mas a cartinha que trás/ Nesta
oportunidade/ É para desejar Boas Festas/ E muita felicidade."
Mas este ano eu aprendi, irmãos! Em 1963 vou comprar diversas
folhas de papel (tamanho ofício) e organizar várias listas para as
criancinhas pobres aqui da casa. Quando o cara vier com a dele, eu
neutralizo a jogada com a minha. O máximo que pode acontecer é ele
assinar 500 na minha e eu assinar 500 na dele... ficando a terceira da
melhor de três para disputar mais tarde.
Também vou mandar prensar uns cartõezinhos. Quando o vosso
humilde lixeiro ou o vosso carteiro modesto entregar o envelopinho,
eu entrego outro a ele, para que leia: "No Inferno das notícias/ Mas
com expressão seráfica/ Eu batuco o ano inteiro/ A máquina
datilográfica/ Pro ano que vai entrar/ Não me sinto otimista/ Mesmo
assim, felicidades/ Lhe deseja este cronista."
Conforme diz Tia Zulmira: "- Malandro prevenido dorme de
botina."
ENTÃO, não sei se você se lembra, nos veio aquela vontade súbita
de comer siris. Havia anos que nós não comíamos siris e a vontade
surgiu de uma conversa sobre os almoços de antigamente. Lembro-
me bem - e não sei se você se lembra - que o primeiro a ter vontade
de comer siris fui eu, mas que você aderiu logo a ela, com aquele
entusiasmo que lhe é peculiar, sempre que se trata de comida ou de
mulher.
Então, não sei se você se lembra, começamos a rememorar os
lugares onde se poderia encontrar uma boa batelada de siris, para se
comprar, cozinhar num panelão e ficar comendo de mãos meladas,
chão cheio de cascas do delicioso crustáceo e mais uma para rebater
de vez em quando. E só de pensar nisso a gente deixou pra lá a
vontade pura e simples e passou a ter necessidade premente de
comer siris.
Então, não sei se você se lembra, telefonamos para o Raimundo,
que era o campeão brasileiro de siris e, noutros tempos, dava
famosos festivais do apetitoso bicho em sua casa. Ele disse que, aos
domingos, perto do Maracanã, havia um botequim que servia siris
maravilhosos, ao cair da tarde. Não sei se você se lembra que ele
frisou serem aqueles os melhores siris do Rio, como também os
únicos em disponibilidade, numa época em que o siri anda vasqueiro
e só é vendido naquelas insípidas casquinhas.
Ah... foi uma alegria saber que era domingo e havia siris comíveis
e, então, nos dois - não sei se você se lembra - apesar da fome que o
uisquinho estava nos dando - resolvemos não almoçar para ficar com
mais vontade ainda de comer siris. Passamos incólumes pela
refeição, enquanto o resto do pessoal entrava firme num feijão que
cheirava a coisa divina do céu dos glutões. O pessoal - aliás - achava
que era um exagero nosso, guardar boca para um siri que só
comeríamos à tarde, porque podíamos perfeitamente ter preparo
estomacal para eles, após o almoço.
Mas - não sei se você se lembra - fomos de uma fidelidade
espartana aos siris. Saímos para o futebol com uma fome
impressionante e passamos o jogo todo a pensar nos siris que
comeríamos ao sair do Maracanã.
Então - não sei se você se lembra - saímos dali como dois monges
tibetanos a caminho da redenção e chegamos no tal botequim. Então
- não sei se você se lembra - que a gente chegou e o homem do
botequim disse que o siri já tinha acabado.
***
Sérgio Porto
(Stanislaw Ponte Preta)
***
Homenageamos o autor que hoje, 11/01/2003, estaria
completando 80 anos de idade.
FIM