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“Aos meus irmãos.

Pela leal irmandade.”


“É pelo que escrevo que meço a minha
insanidade.”
Hadil Almeida
Eu estava sentada perto da enorme janela
envidraçada da Cafeteria que eu geralmente frequentava
na Ilha de Luanda, mil metros após o Clube Naval, no
sentido para quem entra na Ilha. Eu conseguia ver o mar e
sentir os raios do sol aquecendo levemente a minha pele,
meu vestido escarlate, longo até os joelhos e sem alças
faziam-me sentir livre como o vento gaito de outono. Eu
aguardava serena pelo meu pedido. Conseguia perceber os
olhares de um homem sentado a duas mesas de mim. Mas
não fiz questão porque não era diferente do que os
homens faziam noutros dias. Porém, pude perceber que
ele não olhava para mim do mesmo jeito que os outros
homens. O seu olhar era profundo, misterioso e bem
atraente.
Ele levantou e caminhou em minha direção,
chegando perto disse:
— Eu não vou ocupar muito do seu tempo, só vim
me certificar de perto se o teu sorriso é tão lindo como a
distância.
Sorri espontaneamente.
— E é? — perguntei ainda sorrindo.
— Bem! Antes do veredito... — ele olhou para o
garçom e disse. — Por favor, traz café para mim e Gin Tonic
para a senhorita.
— Já fiz o meu pedido! E é mesmo necessário
pedires uma bebida para dares uma simples resposta?

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Ele retirou a gravata azul escura e colocou no bolso do
casaco respondendo:
— Não podes receber más notícias sóbria.
— Isso quer dizer que o meu sorriso é feio de perto?
— São suas palavras, não minhas. E eu não vou
negar! — retrucou ele sorrindo.
— Por que estás de terno num sábado de manhã?
— Explico no final da conversa, vai tentando
adivinhar até lá.
— Sério?
— Sim, sério.
— Parece que gostas de suspense! — repliquei.
— Eu sempre me senti atraído por mistérios,
suspenses e, coisas ou pessoas que me deixam curioso.
Portanto, eu gosto de proporcionar essa sensação para as
pessoas também.
— Interessante. — retruquei com um semblante
reflexivo. — E quanto ao meu sorriso de perto, é feio ou
bonito?
— Se eu responder agora você vai pedir para eu me
retirar porque foi o pretexto que usei para me aproximar.
— Na verdade, não vou pedir que te retires da
minha mesa. Ganhaste pontos com o teu humor.
— Uau! Encantado. — disse ele sorrindo. —
Quantos pontos exactamente?
— Seis pontos. Nada mal, foram dois triplos. —
repliquei.
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— Tens um sorriso que ainda não sei se é lindo de
perto e ainda entendes de basquetebol, o prazer é todo
meu! — ele respondeu sorrindo.
— Igualmente!
— Eu sou o...
— Calma aí! E quem perguntou o teu nome? —
retruquei interrompendo-o. — Eu disse que poderias
sentar e não que seremos amigos!
— Nós seremos amigos até ao final desse encontro.
— E quem disse que isso é um encontro? —
retruquei novamente e delicadamente.
— Está bem! — ele suspirou e replicou. — Até ao
final de seja lá o que isso for, verás que a empatia mútua
te levará a me chamares pelo meu nome.
— Veremos!
— E como te chamas?
— Adivinha.
— Ok. Faremos o seguinte, se eu adivinhar o teu
nome marcaremos um encontro formal...
— Mas se você errar cinco vezes, já era.
— Desafio aceite. — respondeu. Sorrimos.

A nossa conversa foi fluindo naturalmente sem


vermos o tempo passar enquanto comíamos também. Ele
contou uma história do bairro em que cresceu que
coincidentemente também era o bairro onde cresci. Eu
consegui lembrar onde era a casa dele pela explicação e
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ele a minha, mas nunca tínhamos nos visto por lá. E ele
lembrava dos rumores e os casos polêmicos do bairro,
então não era mentira que ele crescera lá. Conversávamos
sobre filmes, e, por acaso tínhamos assistido o mesmo
filme pela última vez. E com sorriso em nossos rostos
amaldiçoamos nossos ex-namorados pelos términos
bruscos. Foi o cúmulo descobrir que também
frequentamos a mesma universidade.
Era como se aquele homem desconhecido em
minha frente fosse predestinado a entrar em minha vida.
E tão logo nos primeiros instantes mexer comigo daquele
jeito. Nunca havíamos nos visto, mas tantas coisas nos
ligavam, o que era impressionante.
Em meio a conversa perguntei:
— Então queres dizer que és sempre um homem
forte?
— Sendo sincero, não. Mas nunca deixo a fraqueza
da situação tomar conta de mim.
— E como você faz isso?
— Bem, eu não tenho um padrão. Simplesmente
não gosto de me sentir fraco ou que os outros tenham
pena de mim, eu me recuso. Então sempre procuro uma
forma de me fortalecer.
— Alguma dessas formas tem a ver com o uso de
alguma substância?

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— Não! Porque eu não acredito que qualquer
substância que seja possa fortalecer um homem
emocionalmente.
— Mas há vários casos de homens ou mulheres que
se sentiram mais fortes, mais corajosos após o uso de
alguma substância, e é algo bastante recorrente quando
algumas pessoas pretendem fazer algo e querem ganhar
inspiração ou coragem.
— Não, não. Nesses casos, há um equívoco que se
tem disso, as substâncias usadas sejam elas drogas ou
álcool por excesso, não nos fortificam emocionalmente ou
nos inspiram como os usuários fazem parecer. A verdade é
que essas substâncias toxicodependentes inibem o
funcionamento eficaz de alguns campos neurológicos o
que faz com que o indivíduo não haja racionalmente nem
de alguma forma ligando os actos ao seu emocional,
apenas age desbloqueando o que reprime no inconsciente
ou os seus desejos momentâneos mais ávidos. Simples
assim.
— Creio ter percebido.
— É bem simples na verdade, drogas apenas têm
um efeito passageiro da sensação vã de uma versão
melhor de nós mesmos, o que faz com que o usuário volte
a consumir o mesmo para que continue se sentindo da
mesma forma. Mas no fundo caí no ciclo de dependência
tóxico que sabemos onde termina.
— Pareces ter muito domínio sobre o assunto.
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— É apenas CC e EP.
— O que é isso?
— Conhecimento de Causa e Experiência Própria.
Retruquei sorrindo sem dizer nada. Eu fiquei tão distraída
pensando, que ele deve ter notado meu silêncio, por isso
perguntou:
— O que foi?
— Nada.
— Como assim nada! Você está lacrimejando. E
com certeza não por perceberes que sou lindo!
Sorri de canto. Fiquei envergonhada ao perceber e limpei
as lágrimas. Comecei organizando minhas coisas.
— Calma! Vamos conversar, o que te magoa? Eu
posso ajudar.
— Não, não podes. Ninguém pode. Apesar de tudo
que conversamos há partes sombrias do meu passado que
me assolam. Você tem tudo para ser o cara certo, mas o
momento é errado.
— Está bem. Eu vou pagar pe...
— Você não pode pagar para eu esquecer qu...
— Calma, ficaste exaltada do nada. Eu só quis dizer
que vou pagar a conta.
— Lamento! Tenho de ir. — estávamos os dois em
pé com os pratos ainda quase cheios de comida.
— Calma! Por favor! — gritou.
Fui embora deixando ele aí boquiaberto. Atravessei
a estrada e pedi que o primeiro táxi que passou por mim
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parasse e entrei logo. Era um táxi pequeno e eu era a única
passageira. Falei para o motorista que me levasse à
Mutamba ou para mais longe daí que pudesse. O carro
acelerava cada vez mais e eu não conseguia parar de
chorar lembrando daquela sala escura naquele maldito
dia. Na minha mente, eu ainda ouvia minha voz gritando
como naquele dia. Fiquei arrepiada e trémula apenas
lembrando.
Ouvi um estrondo de um embate contra o táxi.
Reparei, era ele. O cara da cafetaria veio correndo me
seguir e se jogou contra o táxi. “Que cara mais maluco,
meu Deus. É um completo sem noção.”
— Por favor, saia do carro.
— Você deve ser um psicopata, eu não vou descer.
— Eu não sou um psicopata. Se eu fosse eu já...
— Oh! Ficaste sem palavras?
— Claro, porque eu não sei que exemplo dar
porque eu não sou psicopata.
Ele estava em frente ao carro queixando-se de
dores, pegando em algumas partes do seu corpo que
provavelmente doíam pelo embate. O motorista
ameaçava acelerar, mas nem com isso ele saía da frente do
carro.
— Moça! Eu posso lhe atropelar? — revirei os olhos
com a pergunta estúpida do motorista. — Então vais sair
do meu carro? — revirei novamente os olhos e fiz favas.

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Ele parou de perguntar por uns instantes, e, tornou a
perguntar. — Ele é seu ex-namorado paranóico?
— Eu não sou ex-namorado dela, nós acabamos de
nos conhecer. — ele ouviu a última pergunta e respondeu
estando perto da porta do motorista.
— O quê? Então claramente é um psicopata, é a
única explicação para essa atitude logo ao se conhecerem.
— Não sou psicopata, seu velhote! Talvez isso
seja... amor à primeira vista.
— Minha nossa! Além de psicopata é sensível e
infantil. — replicou o motorista.

Eu saí do carro quase que de fininho. Fui andando


pelo calçadão enquanto ele discutia com o motorista, mas
ele logo percebeu e veio correndo até mim. Pegou minhas
mãos e suspirando disse:
— Eu não sei porquê saíste da cafetaria desse jeito.
Se foi algo que fiz, perdoe-me. Apenas, vamos parar e
conversar.
Puxei as minhas mãos bruscamente e me afastei.
— Neusa, por favor. Vamos conversar. — ele logo
percebeu em meu semblante que não era o meu nome. —
Tudo bem, ainda faltam quatro tentativas, então vamos
sentar logo ali. — Apontou a um banco no passeio
segurando minha mão novamente, eu soltei-o
rapidamente. Um policial rapidamente apareceu
questionando se ele estava me importunando. Ele
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respondeu atacando o policial verbalmente dizendo que
não era do interesse dele. O policial tentou reagir, mas eu
impedi-o, tive que mentir que ele era meu noivo e eu
estava errada e ele apenas estava zangado. Após eu tentar
apaziguar os ânimos deles, consegui. E puxei-o pela mão
nos dirigindo ao banco que ele indicou.
— Que policial babaca!
— Que temperamental você é.
— Foi o policial que agiu como se eu tivesse te
espancando ou estava te estuprando.
Soltei as mãos dele bruscamente, novamente. Que
percebendo perguntou.
— O que foi?
— Foi esse maldito exemplo que você deu sobre
estupro.
— O que isso tem?
— Achas uma piada que alguém seja estuprado?
— Não, só comentei a reação do policial.
— Pois é. Tolos só comentam sem noção nenhuma!
— eu estava em pé falando com ele e lacrimejando de
novo. — Mas eu falo por CC e EP. Porque eu senti na pele
o que é um estupro, ficar amarrada, trancafiada num lugar
imundo por dois dias. Dois malditos dias, sendo estuprada
sempre que ele quisesse e sem proteção. Ainda achas
sensato fazeres piadas com isso? — senti um arrepio
lembrando naquilo e uma sensação estranha em mim,
senti náuseas e sentei perto dele.
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— Eu... eu, honestamente peço perdão.
— Para de pedir desculpas. — retruquei quase que
gritando. — A culpa também é minha por tentar me deixar
ser paquerada sem estar ainda preparada
emocionalmente. Dei-te um vislumbre de esperança.
— Não, não. Não é culpa tua, eu sei que era difícil
me resistir. — sorri de canto com o que ele disse. — É isso
aí, quero ver teu sorriso lindo.
— Então este é o veredito?
— Sim, é o veredicto Valentina Distinto, teu sorriso
é lindo. — Eu meneei negativamente pelo nome belo, mas
errado na sua tentativa em acertar. — Ok. Vou continuar
tentando. — correspondi meneando a cabeça. — Sobre o
que aconteceu contigo, eu lamento. Na verdade, não sei o
que dizer para te fazer sentir melhor, apenas quero dizer
algo que te deixe confortável.
— Pode perguntar sobre o ocorrido. Eu por vezes
me permito falar sobre isso, é como se fosse uma terapia
para confortar o Transtorno de estresse pós-traumático,
resulta quando eu falo lembrando e confrontando as
memórias e as cicatrizes emocionais, e, elas vão deixando
de ter aquele efeito perturbador.
— Compreendo. Entendi porquê saíste daquele
jeito, talvez mesmo não seja a melhor hora. Ou talvez uma
boa conversa ajude no processo, Isso... é devastador e
repulsivo. Merda! Durante dois dias sendo... que tipo de
homem faz isso? Eu estou arrepiado só de pensar. — ele
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tirou o casaco e arregaçou as mangas da camisa mostrando
sua pele arrepiada quase como com escamas tivesse. — É
muita coisa para absolver.
— Eu ainda nem contei tudo. — repliquei. Ele
suspirou transparecendo a preocupação e reclinou ao
apoio do banco. Ele transpirava um pouquinho.
— Essa conversa deixou o clima pesado. — ele
suspirou falando. — Vem comigo!
— Para onde? — perguntei vendo-o caminhando.
Tirei o seu casaco do terno no banco forrei-me bem com o
casaco dele por causa da brisa fria e embora relutante,
segui-o.
— E eu posso morrer de frio né!? Teu nome é Mya
Amy! — retrucou sorrindo de canto achando ter acertado
meu nome.
— Gostaria de ter um nome tão belo quanto esse
aí. Porém, eu mesma posso te matar com as minhas
próprias mãos se você me chamar por este nome
novamente. Terceira tentativa errada.

Ele caminhava em passos largos. Seu porte físico


não tão magro nem tão gordo era ideal para mim. Eu
reparava ele por trás enquanto caminhávamos. Eu não
entendia o porquê simplesmente me permitia viver aquele
momento ao sabor do vento mesmo com a onda de
problemas que tornavam meu oceano de vida nada
pacífico.
Coletânea Frases & Poemas xi
Entramos em um oceanário. E como quem já
conhecia o caminho ele guiou-me diretamente para uma
ala e apontando para o vidro, que estava cheio de água no
outro lado, ele disse:

— Endorfina! Teu corpo precisa de muita endorfina


para não cair na ansiedade e mau humor. E relembrar bons
momentos vão te fazer liberar endorfina. — falou
apontando para o cavalo marinho do outro lado do vidro.

Fiquei assustada tanto quanto surpresa sobre como


ele soube e acertadamente que entre todas as coisas, seria
um cavalo marinho que me faria relembrar bons
momentos.

Lembro que foi numa noite em que a lua cheia


iluminava com tanta intensidade que faria o sol sentir
inveja. Lá estava eu e duas amigas no terraço do prédio
abandonado. Ouvindo música alta pelas pequenas colunas
de som. Entre os meus lábios, eu prendia um produto
enrolado, comprido e aceso, minhas amigas odiavam o
cheiro no ar. Mas elas bebiam licor, já havia garrafas vazias
no chão. Dançávamos descoordenadamente sem
acompanhar o ritmo da música. Meu cabelo se
desprendeu e borrei minha blusa com batom. Sorriamos
umas para as outras. Sorriamos umas das outras. E
tatuamos um cavalo marinho no pé naquela noite, porque
nos considerávamos uma espécie rara de mulheres em

Coletânea Frases & Poemas xii


extinção tal como os cavalos marinhos. Tropecei ao
dançar, eu caí sob o telescópio que roubamos do
laboratório da Universidade. Uma das minhas amigas se
chateou comigo por quase quebrar, mas nos entendemos
poucos minutos depois. Estávamos no terraço há mais de
uma hora. Ouvimos gritos algures no bairro, percebemos
que o momento havia chegado. Nos concentramos e
olhamos para o alto. E pela primeira vez vi uma estrela
cadente riscando o céu pela última vez.

“Mas como ele saberia que cavalo marinho seria


especial?” Pensei.

— E como adivinhaste que cavalos marinhos me


ajudariam a lembrar bons momentos?

— Vi sua tatuagem.

Olhei para o meu pé esquerdo e reparei que não


era visível a tatuagem. Ainda mais com o tipo de calçado
que eu usava. Mas ele havia dito que viu em algum
momento, e estava certo. Então não tinha como eu
duvidar. Contei-lhe do dia em que tatuei. E perguntei num
tom de curiosidade.

— E o que eu liberta endorfina no teu corpo?

— Praticar desporto.

— E qual é o teu desporto favorito?

Coletânea Frases & Poemas xiii


— Sexo!

— Como assim sexo? — repliquei em gargalhadas.

— Sexo em qualquer campo.

— Que coisa mais sem noção! Ok, entendi. —


sorrindo, não deixei-o continuar para não ceder a
tendência sexual do rumo da conversa.

Saímos caminhando. Ele parou na porta do


oceanário e interrogou-me.
— Quando disseste que não é tudo, o que mais há?
Na mais profunda melancolia respondi.
— Eu estou grávida! — dentre todos meus
familiares a quem contei, inclusive os supostos mais
achegados, repito, todos meus familiares, nenhum deles
teve uma reação de maior espanto que ele. Ficou perplexo
olhando para mim, que até fiquei envergonhada. Ele
afagou-me as mãos, deu-me um abraço demorado e com
profunda compaixão.
— Por vezes, apenas no final de uma jornada
conseguimos distinguir se é uma benção ou maldição. —
retrucou em meio ao abraço. Corei com suas palavras. Ele
enxugou minhas lágrimas com o seu lenço de bolso.
— Então provavelmente ainda não estou no final
dessa jornada, não sei se é uma benção ou maldição, estou
grávida de três meses, sempre quis ter uma filha só não
esperava que fosse desse jeito vil.

Coletânea Frases & Poemas xiv


— Posso te recomendar uma amiga psicóloga! O
apoio de qualquer profissional é tão importante como o da
sua família.
— Que família? Aqueles desgraçados têm piorado
as coisas. Uns decidiram me rejeitar até que eu faça um
aborto, como se fosse eles que passarão pelo risco de
morte. Outros mal olham em meus olhos, e a minoria que
consegue, olha com pena de mim. — levantei falando. —
Eu tive que sair da casa dos meus pais e me mudar para
outra zona bem longe. Assim, posso tentar respirar,
colocar os pés no chão e bater as asas novamente. —
lacrimejando, comentei baixinho. — E em meio ao silêncio
da madrugada, percebi, que a única coisa que precisas
cobrar é o dinheiro que te devem. Porque amor, lealdade,
carinho, respeito, atenção e paz, não se cobra. Ou você
tem por seres valorizado, ou você próprio se valoriza e se
ofereça tudo isso. Não espere nada de ninguém nem
espere a música acabar para se retirares do palco da vida
deles.

Ele pareceu ter sentido fortemente minhas palavras. Eu


finalizei comentando.

— Hoje, quando te conheci, pela primeira vez eu


tentei viver livre dessas amarras, mas cá estou, desabando
como o partido único.

Coletânea Frases & Poemas xv


— A beleza da primavera só acontece pela ruína do
Outono. E tu, só podes renascer se viveres e morreres
primeiro, do mesmo jeito, só tem cicatrizes de guerra
quem foi ousado em lutar. E essa é a fase da tua vida que
estás a viver, uma transição complexa das razões da tua
existência, os porquês e a aceitação duma nova jornada.

O silêncio após o seu comentário ecoou pelo


recôndito da minha alma. Senti uma brisa forte, que levou
as flores e folhas das árvores para uma só direção. E de
certa forma levou uma negatividade em mim também. Ele
comentou:
— Sabe! Devias procurar novos ares, buscar outros
sentimentos, outros...
— Não! Simplesmente parei. Parei de odiar, amar;
me esforçar; de tentar ser feliz; de fazer feliz; de rir; de
chorar; parei de fazer amor, parei com tudo. As únicas
coisas que me restam são os tremores das minhas mãos e
a ansiedade me possuindo a cada dia. Ansiedade em
querer sentir tudo novamente, porém, o medo, de que
sentir tudo isso de volta, me leve à loucura.

Ele olhou para mim em silêncio. Não deu para


discernir o que ele pensava, notei que ele reparou nos
tremores das minhas mãos. Cruzei os braços para
dissimular.

Coletânea Frases & Poemas xvi


— Dizem que café ajuda a diminuir esses tremores
e a ansiedade.
— É exatamente o oposto.
— Não. Me refiro ao café descafeinado, é benéfico
e previne o desenvolvimento de doenças
neurodegenerativas.
— Sério?
— Sim, certeza absoluta.
— Vou confirmar só por precaução. Seria
negligente demais da minha parte morrer por causa da
recomendação médica dum homem que acabei de
conhecer.
Ele assentiu sorrindo.

Retirei da minha bolsa o meu telemóvel para ver as


horas e tornei a colocar na bolsa. De repente, um homem
sujo e mal vestido já estava perto de mim apontando uma
faca pedindo meus pertences.
— Calma, amigão. Nós daremos o que você quiser.
— Não falei contigo, camone! Fala só na tua dama
pra dar os mambos.
Apesar de não estar com medo, eu queria logo
entregar porque eu estava indefesa, mas ele impediu-me
de estender a mão e dar a bolsa, olhou para o fim da rua e
fazendo um sinal com as mãos gritou:
— Policia! Ele é ladrão.

Coletânea Frases & Poemas xvii


O homem moribundo assustou-se completamente
com os gritos dele e sem olhar para atrás saiu correndo.
Nem percebeu que não havia policial algum. O homem tolo
tentou atravessar a estrada sem sequer olhar para os lados
e num piscar de olhos foi atropelado.

Ele caiu imóvel. Sangrando de imediato, mas ainda


segurando sua faca. A mulher que o atropelou estava
perplexa dentro do carro. Enquanto nos aproximávamos
todos para poder socorrer ele levantou subitamente,
escorria sangue em sua cabeça. Mas a primeira
preocupação dele foi ameaçar com faca as pessoas que
estavam mais próximas a ele e tentaram lhe ajudar. Sorriu
estranhamente e saiu correndo pelo beco mais estreito
que encontrou.

Eu nem soube como reagir. Ele segurou minhas


mãos para perguntar se eu estava bem e tive um susto.
— Calma! Já passou. Está tudo bem. Vem, vamos
sentar, nos acalmarmos naquela Cafetaria. — retrucou
sorrindo e gentilmente me guiando até o outro lado da rua.
Entramos no estabelecimento e sentamos. Serviram-nos
com duas chávenas de café de graça, era uma cortesia da
casa atendendo a conta do pedido que fizemos. Ele pediu
que o meu café fosse descafeinado.

Coletânea Frases & Poemas xviii


— Parecias muito calma durante aquela tentativa
de assalto!
— Deve ser porque já fiz e vivi coisas piores.
— Imagino!
— Mas fiquei assustada com a forma que ele foi
atropelado.
— Foi súbito! Todos ficamos. Mudando de assunto,
vais pagar a conta!
— Bem descarado você. — repliquei.
— Não, não é isso. É que eu tive que deixar minha
carteira na outra Cafetaria como apólice que voltaria para
pagar aquela conta porque eu saí correndo atrás de ti que
não deu para pagar.
Sorrindo repliquei.
— Veremos o que decido até acabar de comer.
— Ou então você pode me acompanhar de volta
até lá e assim passamos mais tempo juntos.
— Que aproveitador! — sorri. — Aliás, fugindo do
assunto da minha vida soturna. Ainda não me disseste por
que estás vestido assim num sábado!
— Bem... — ele pousou a chávena de café. — ... Eu
venho do funeral... do meu irmão. — um sentimento
pesado transpareceu no ar.
— Meus pêsames. — repliquei abafando o clima
que se instalava. — Perdoa-me dizer isso, mas você
parece...
— ...Feliz demais para quem saiu dum funeral?
Coletânea Frases & Poemas xix
— Não. Não são exatamente as palavras que eu
usaria. Só não pareces teres vindo de um funeral.
— Talvez seja uma qualidade que temos em
comum, nenhum de nós carrega suas dores a vista dos
outros.
— Touché. Eras próximo do teu irmão?
— Não nos últimos dois anos, mas falávamos
quando podíamos. Mas era meu irmão na mesma, e, eu
amava-o e faria qualquer coisa por ele sem pensar duas
vezes.
— Estreitar os laços de irmandade para se
transformar em amizade é uma semente que todas
famílias deviam cultivar. Vi muitas famílias progredirem
rumo ao sucesso por causa do espírito de prosperidade e
ajuda entre irmãos. Isso sempre foi uma das coisas mais
invejáveis para mim. — comentei.
— Gostaria que assim tivesse sido para mim
também. Por isso sempre incentivo essa união aos que
ainda podem ter. Tu e os teus irmãos são muito amigos?
— Conosco, é cada um por si, Deus para todos e
diabo para cada um. — respondi.
— Pesado. Essa descrição espelhou tudo.
Sorri de infelicidade por ser verdade e lamentei contando
uma lembrança.
— Lembro de uma história que o meu pai contou-
nos na infância. Era sobre um rei, que queria escolher qual
dos seus trigêmeos seria o seu sucessor e os outros
Coletânea Frases & Poemas xx
ficariam sem nada. Então o rei mandou-os para uma
missão e quem trouxesse primeiro a pele de um lobo seria
coroado. Após alguns dias em missão, eles retornaram
juntos e cada um com a pele de um lobo. Então,
inconformado o rei mandou-os novamente desta vez
dizendo que quem trouxesse primeiro a pele de um leão
seria seu sucessor, novamente os três voltaram juntos,
cada um com a pele de um leão. Inconformado, pediu a
pele de um urso e os três trouxeram juntos e em risadas.
Desta feita, o rei perguntou-os porque eles faziam aquilo
propositadamente. Um deles respondeu: “Porque o pai
tem tentado qualificar o futuro rei pela força física e não
pela sabedoria. E tem tentado separá-lo de duas pessoas
que poderiam ser seus leias conselheiros.”
Ele sorriu assim que terminei de contar.
— Nessa história meu pai quis ensinar que as
vaidades da realeza, ganancia, ambição e poder nunca
estiveram acima do senso de comprometimento pela
irmandade dos trigêmeos. E que os príncipes sempre
souberam que juntos poderiam conquistar mais do que
separados. Seria assim, como todos príncipes e princesas
das famílias pobres deviam pensar.
Reflexivo e sorrindo, ele segurou minha mão. Senti
um arrepio e soltei logo.
— Sabe! No funeral eu perdoei um dos meus
irmãos que tinha me apunhalado pelas costas,
metaforicamente claro. Dei o outro lado da moeda.
Coletânea Frases & Poemas xxi
— Fico feliz por você. Mas comigo não é assim, eu
pago pela mesma moeda no bem ou no mal. Sim, talvez
vais me julgar ser uma pessoa vil, mas não poderia
continuar ingênua num mundo injusto como este.
— Não vou te julgar. Embora tenho que ressaltar
que pagar na mesma moeda dificilmente traz paz. Na
busca incessante por pagar na mesma moeda a pessoa vive
inquieta, cheia de pensamentos negativos enquanto que a
outra provavelmente já se esqueceu do mal que fez.
— Se esqueceu será lembrado quando a mesma
moeda cair em seus pés. O karma sempre cobra e eu
também.
— Falaste como uma verdadeira vilã.
— Ou como alguém que já teve muitas
experiências.
— Teu nome é Maria!
— Se foi um anjo que me estuprou e me engravidou
do Senhor Salvador, sim, então meu nome é Maria.
Ele caiu em gargalhadas.
— Teu nome é Hayden?
— Não, não é meu nome, embora eu seja bela
como uma flor. É uma pena, acabaste de perder o
encontro.
Ele dissimulou não ter ouvido e questionou.
— Só por curiosidade, o homem que te... não
consigo dizer, foi pego?

Coletânea Frases & Poemas xxii


— Ele teve o que merece, vamos mudar de assunto,
por favor?
— Ok. Bem, eu tenho que confessar que eu me
recuso que esse seja o nosso último encontro.
Sorrindo respondi.
— Mas você nem acertou o meu nome.
— Tanto faz, não pode ser o último encontro, sinta
essa química no ar, até cheira rosas aqui.
— Bem, para ser sincera, sim há uma boa vibe. E
confesso que na verdade já acertaste o meu nome.
— Sério? Qual? — exprimiu seu espanto.
— Não vou dizer qual, é um jogo que tens que
adivinhar. E um dos nomes que disseste é o meu terceiro
nome de registro.
— O jogo acabou de ficar interessante. — ele fez
uma pausa e suavemente confessou. — Eu gostei muito de
ti. Não do tipo amor à primeira vista como eu falei no
motorista, mas a verdade é que sim, sinto uma atracção.
Apenas sorri verdadeiramente demostrando que
eu também.
— Tem uma coisa me incomodando aqui no seu
casaco. — remexi os bolso internos do casaco do terno
dele que eu usava e quando tirei era a carteira dele. — Não
disseste que havias esquecido na outra Cafetaria?
— Você me pegou! — respondeu sorrindo. — Era
apenas um pretexto para ficar em sua companhia.

Coletânea Frases & Poemas xxiii


— Minha nossa! Parece que eu estou com rei dos
pretextos. Pretextos e mentiras, há uma linha invisível que
separa os dois. E vou retirar dinheiro da sua carteira para
pagar a conta aqui.
— Não, espera.
Abri a carteira dele para tirar o dinheiro e vi uma
foto de família, um senhor de meia idade e quatro jovens
adultos. Apontei para um deles e mostrei-lhe a foto.
— Quem é esse?
— É o meu irmão, que foi enterrado hoje.
Suspirei levemente, meu coração bateu na
velocidade da luz e lacrimejando falei.
— Foi ele.
— Ele o quê?
— Esse é o homem que me estuprou. Pensei que
ele tivesse sobrevivido.
Ele levantou da mesa supostamente surpreendido
ao ouvir. Reparei bem na parte de frente da sua cintura e
consegui perceber que ele carregava um revolver, uma
Glock 47. Sem transparecer o medo súbito que senti, dei
um gole na chávena de café descafeinado, exalei
devagarinho e falei:
— Eu não acredito em coincidências.
— Eu acredito no karma. — ele replicou com um
semblante que não consegui decifrar. — Talvez o karma
tenha pegado o meu irmão. Talvez tenha sido você. —
disse ele olhando fixamente em meus olhos, e, pelo
Coletânea Frases & Poemas xxiv
movimento da sua mão fiquei receosa que ele estivesse
pronto para tirar a arma.
— Se por acaso fui eu, vais defender seu irmão
estuprador? — ele não respondeu.
Eu, suspirando e tentando ficar calma, sem saber se
ele tinha realmente coragem de fazer alguma maldade e
incrédula com tamanha coincidência naquela manhã, que
eu logo fiquei com dúvida se era mesmo coincidência.
Peguei em minha barriga pensando na minha gravidez.
Repliquei:
— Si vis pacem, para bellum.
— Se quiseres paz, prepare-se para a guerra. Eu
conheço bem essa frase. — ele replicou com a mão já
segurando o revólver em sua cintura.

Coletânea Frases & Poemas xxv


Fim...

Coletânea Frases & Poemas xxvi


Frases & Poemas Editora
Conto: Guerra, Amor & Café
Conto extraído da colectânea da Editora. Todos direitos reservados à
Frases & Poemas.
Site: Www.frasesepoemas6.blogspot.com
Email: Phrasesandpoems@gmail.com
Capa: Arquitecto Mpanzo Kiazayilawoko
Copyright ©2021 por Frases & Poemas Editora
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Sobre o autor:
Hadil Almeida, é escritor e também faz Spoken Word. Tem uma
trilogia de romance intitulada “Uma boleia do destino” publicada
digitalmente pela Frases & Poemas Editora. É membro do Colectivo de
Arte Num Stragou Nada e co-fundador da plataforma Frases &
Poemas. Todos os seus textos e livros estão disponíveis no site da
editora e nas suas contas em redes sociais, todas registradas com o
mesmo pseudônimo.
Outros livros:

Uma boleia do destino – Hadil Almeida Eu conheço as estrelas


Vol. 1 & 2 Link: http://bit.do/l12vr06 Luis da Silva Ubuntu
Vol. 3 Link: http://bit.do/l1vr06 Link: https://bit.ly/2sATzvq

O homem desconhecido - Luis da Silva Ubuntu Coração Eu vi! Eu vi!


Link: https://bit.ly/2MuxdED Talóquio Conceição
Link: https://casadetextossb97.blogspot.com

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