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RETÓRICA CLÁSSICA E DIREITOS HUMANOS:

Raízes Históricas de um Estado Contemporâneo.

José Lourenço Torres Neto1

Sumário: Introdução – A busca de raízes históricas na retórica clássica para os direitos


humanos. 1. Mais que classificação, fundamentos retóricos na compreensão dos direitos
humanos. 2. O contexto grego como palco para um possível nascedouro da idéia de direitos
Humanos. 3. A análise de Aristóteles em sua Política e sua provável influência no
desenvolvimento de conceitos práticos como conteúdos de direitos humanos. Conclusão: Uma
ideologia civilizatória dos estados contemporâneos com raízes
na Política de Aristóteles. Referências.

Resumo: Este artigo apresenta uma comparação da retórica do pensamento grego clássico
confrontado com as conceituações atuais de direitos humanos, de suas características
constitutivas, principalmente ao tempo em que se elaborou o texto da Constituição brasileira.
Estuda inicialmente características do pensamento dos gregos, dos sofistas e de Aristóteles
como retórico e os atuais conteúdos dos direitos humanos, confrontando-os, na tentativa de
estabelecer uma relação histórica. Para isso, delimita o binário universalidade/relativismo
como forma de questionar a justificativa do direito natural para os direitos humanos ante uma
observação aristotélica a partir da obra A Política. Reconhece, por fim, que tal base histórica
influenciou os conteúdos liberais dos direitos humanos individuais, hoje internalizados nos
vários ordenamentos jurídicos dos países signatários da Declaração Universal dos Direitos
Humanos.

Palavras-Chave: História do Direito. Direitos Humanos. Retórica Clássica.

INTRODUÇÃO – A BUSCA DE RAÍZES HISTÓRICAS NA RETÓRICA CLÁSSICA


PARA OS DIREITOS HUMANOS.

Ao investigar as origens dos direitos humanos, surpreendentemente o pesquisador se


depara com relatos esparsos a fontes gregas antigas sobre os mesmos. Se a Grécia foi o berço
do pensamento ocidental e inclusive da retórica e da democracia, e se a democracia com as
idéias de liberdade e igualdade inspira os direitos humanos, por que se citam resumidamente
fontes daquela nação? Ainda, teve a retórica clássica um papel histórico no nascedouro dos
direitos humanos positivados? Entre outras, estas poucas indagações são perquiridas ao
longo deste artigo.

Além disso, é também objetivo aqui pesquisar a influência dos sofistas e de


Aristóteles, já que é incontestável sua contribuição retórica, para estabelecer uma possível
aposição ao argumento burguês liberal do direito natural prevalecentemente positivado na

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José Lourenço Torres Neto é Advogado, Bacharel em Direito pela Faculdade Maurício de Nassau campus
Recife/PE e membro pesquisador do grupo de pesquisa do PPGD da UFPE sobre Retórica das Idéias Jurídicas do
Brasil sob orientação do Prof. Dr. João Maurício Adeodato.
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evolução do conteúdo dos direitos humanos no ocidente, especialmente nos direitos


fundamentais individuais. Para isso, o instrumento metodológico utilizado foi uma revisão
bibliográfica comparativa. Tal conteúdo bibliográfico inclui o texto de Aristóteles – A Política
– e alguns outros comentários doutrinários sobre a Declaração Universal dos Direitos
Humanos. Em adição, tomou-se também como paradigma a Constituição Federal brasileira de
1988, com seus explícitos avanços conceituais sobre a matéria dos direitos humanos. Contudo,
abstrai-se aqui, estrategicamente, qualquer avaliação acerca das influências ideológico-
partidárias que provavelmente tenham influenciado sua formação.

Como referenciais teóricos foram utilizados os autores Fábio Comparato, John Locke,
Werner Jaeger e W. K. C. Guthrie, estes últimos famosos historiadores dos sofistas e dos
gregos, que comparados com o texto aristotélico demonstram a tese de que o desenvolvimento
do conceito normativo dos conteúdos dos direitos humanos teve alguma base no pensamento
grego.

Para que se entenda a relação entre os direitos humanos e a retórica é importante desde
logo quebrar o preconceito que a tem vitimado por eras. Não poucas vezes a retórica tem sido
relacionada ao engano, à erística. Esta é apenas uma das muitas faces desta arte. De forma
positiva, retórica também inclui ornamento e persuasão, mas não só isso. Uma definição
comum descreve a retórica como a arte de falar bem e de forma convincente. Aurélio
Buarque de Holanda Ferreira, além de defini-la como “eloquência”, também a designa como
“o estudo do uso persuasivo da linguagem, em especial para o treinamento de oradores”
(FERREIRA, 2004, p. 1751). A retórica, para os gregos, consistia em uma techné (τέχνη)
para se falar bem, para se encantar e seduzir um auditório. Porém, a retórica não deve ser
confundida apenas com uma boa oratória; a oratória é sem dúvida retórica, mas a retórica é
muito mais que oratória.

Aristóteles, em seu livro Retórica ou Arte Retórica, (em grego Τέχνη Рητορική, em
latim Ars Rhetorica) analisa e fundamenta vários aspectos da retórica, inicialmente a partir de
três gêneros de discursos: o deliberativo, o judiciário e o demonstrativo ou epidítico
(ARISTÓTELES, 2005, p. 39).

No discurso deliberativo, também chamado de político, usa-se ou não o conselho seja


em prol de algo particular ou de interesses públicos, isto é, ora se procura persuadir, ora
dissuadir apresentando o que é útil ou prejudicial para que, se acolhido, pareça vantajoso e
caso seja rechaçado pareça funesto. Em um discurso judiciário se acusa ou se defende com
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base principalmente no que é justo ou injusto, na opinião do orador. O gênero demonstrativo


(epidítico) comporta o elogio e a censura. Estas observações demonstram um aprofundamento
na análise retórica do mestre grego que vão além do ornamento. É a partir dos discursos
político e judiciário que se encontrarão as raízes dos conteúdos dos direitos humanos atuais,
posto que a necessidade protetiva resultou da prática postulatória e política, segundo a
acepção clássica.

Relevante é também destacar que conjuntamente com os meios técnicos retóricos


ethos, pathos, logos e as dimensões material, estratégica e analítica, a perspectiva retórica
assenta-se ainda em três bases filosóficas que parecem comuns aos direitos em tela: o
ceticismo, o humanismo e o historicismo (ADEODATO, 2009, p. 15-45). Bases estas que são
também características marcantes no desenvolvimento dos conceitos dos direitos humanos. O
ceticismo, pelo inconformismo ao estado vigente de certos momentos sociais que restringiram
questões fundamentais ao homem como seu direito à liberdade, e refutaram, por exemplo, a
escravidão. Outro questionamento foi com relação à igualdade universal. Humanismo, ao
trazer uma visão antrópica no domínio lógico e ético típicas da filosofia e da “ciência” em
adição à justificativa bastante discutível da visão teológica (COMPARATO, 2001, p. 2-4). E
historicismo, redundante ao tema perquirido, uma vez que o desenvolvimento do conteúdo dos
direitos humanos ainda se desenrola a partir de relatos exemplares de condutas eticamente
positivas ou negativas na sociedade.

Como as garantias dos direitos humanos não podem ser destacadas dos discursos que
as construíram e constroem, a retórica não pode deixar de ser um elemento constitutivo
chamado também para observar seu conteúdo e análise. Ballweg (1991, p. 175) afirmou que
“da retórica nenhum Direito escapa” e isso certamente inclui os direitos humanos.

Assim, este estudo ficou resumidamente disposto da seguinte forma. O primeiro


capítulo abordará fundamentos para a compreensão dos direitos humanos, apresentando os
direitos e garantias fundamentais individuais como normatização dos seus conteúdos; seu
alegado desenvolvimento a partir da ótica do direito natural e algumas características que
indicam uma plausível conexão dos direitos humanos com o pensamento grego sofístico.

Um segundo capítulo, apresentará o contexto grego como um possível palco para o


nascedouro dos direitos humanos, onde se buscará estabelecer com mais profundidade uma
paridade entre as características sofísticas e as características dos direitos humanos atuais, e
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como, pelo menos, no ideal do pensamento de alguns autores e filósofos retóricos gregos
como Aristóteles, os conteúdos de liberdade, igualdade e propriedade já figuravam.

Por fim, o terceiro e decisivo capítulo, apresentará aqueles conteúdos e seus conceitos
práticos analisados por Aristóteles em seu livro A Política, como exemplo de direitos acima
da vontade do poder positivo, observação também percebida concomitantemente por
Adeodato (2009, p. 125). É um capítulo remissivo e não poderia deixar de ser já que A
Política é constituída por oito volumes e muitos dos conceitos estão diluídos em suas
observações, ora pessoais ora de outros seus contemporâneos, além de analises de várias
constituições de outras cidades gregas com suas próprias idéias e conclusões sugestivas ao
longo da obra.

Como se observa, o recorte deste estudo se limita à comparação com parte da retórica
clássica, no denominado período axial (COMPARATO, 2001, p. 8) e seus principais autores,
especificamente Aristóteles, seu compilador mais conhecido dentre os gregos. Certamente,
numa sociedade cuja cultura herdada procede também dos ideais do pensamento grego, o
estudo e o retorno a suas raízes helênicas, mais do que um procedimento de importância, é
um tributo às origens, principalmente numa matéria de excepcional relevância como são os
denominados direitos humanos.

1 MAIS QUE CLASSIFICAÇÃO, FUNDAMENTOS RETÓRICOS NA


COMPREENSÃO DOS DIREITOS HUMANOS.

1.1 A simplicidade discursiva na classificação dos direitos humanos em “gerações”.

Como na introdução já ficou justificada a relevância da retórica no estudo de temas


jurídicos, faz-se necessário entender como certos valores elementares dos seres humanos
foram estabelecidos como direitos. Para tal compreensão, muitas vezes, se recorre a processos
racionais lógicos, como os sistemas classificatórios e a enumeração de características, usados
por teóricos. Hodiernamente, as classificações específicas aos direitos humanos são
igualmente chamadas de gerações, nome que tenta agrupar características comuns dentro de
um determinado período histórico.

Contudo, a definição de direitos humanos é bastante ampla e segundo as percepções e


perspectivas retóricas, é algo que certamente depende de acordos ideológicos e interesses
sociais, assim como de uma construção cultural. Embora genericamente hoje esse
entendimento esteja mais divulgado e, portanto, mais facilmente assimilado, mesmo entre as
culturas e as sociedades ocidentais, está longe de ser pacífica, principalmente por causa de
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suas ligações ideológicas e políticas. Ainda, é um conceito amplo porque está intimamente
ligado à evolução do pensamento filosófico, jurídico, político e sociológico sobre bens
inerentes à humanidade e ao convívio social do ser humano. Incluem, entre outros,
entendimentos sobre liberdade, justiça, igualdade e democracia. Além disso, como dito, existe
toda uma inter-relação com um ordenamento jurídico nacional e internacional historicamente
vigente e dominante.

Genericamente falando, a expressão ‘direitos e garantias fundamentais para os direitos


humanos’ comporta, pelo menos, dois grupos de idéias. Um primeiro aspecto dessas idéias
analisa os fundamentos primeiros dos direitos e de sua relevância interdisciplinar, portanto,
mais abrangentes, enquanto que o segundo aspecto analisa as relações dos mecanismos
jurídicos garantidores de tais direitos, dentro da prática dos Estados modernos: constituições,
tratados e convenções. Assim, isso implica em um conceito fluido e em constante construção.
Contudo, importando primordialmente uma das acepções, a humanista e antrópica, se pode
resumir esse fluxo de idéias na afirmação de que são direitos fundamentais que o homem
possui pelo fato de ser humano, por sua própria natureza e pela própria dignidade que a ela (a
humanidade) é inerente (COMPARATO, 2001, p. 12). Para a efetividade jurídica, se destacam
os aspectos de que esses direitos são reivindicações que, uma vez escritas ou normativadas,
podem gerar obrigações particulares e públicas.

Embora esse objetivo possa pressupor uma aparente garantia para a ordem jurídica e
social, é de se questionar se essa mesma segurança normativa não veio se tornar um fator
limitador, às vezes paralisante, vez que tentativas classificatórias são argumentos retóricos e
como tal, dinâmicos. Daí porque praticamente se impossibilita conferir uma conclusão
conceitual a esses paradigmas. Além do mais, diante da semelhança com os ideais liberais
de liberdade, igualdade e fraternidade amplamente divulgados no momento histórico que mais
se preocupou em constitucionalizá-los positivamente, os conteúdos dos direitos humanos
terminaram sendo classificados genericamente em gerações, que não passam de argumentos
categorizados historicamente. É possível que o objetivo desse dispositivo classificatório seja
dissipar diferenças, conferindo um status de importância linear e interdependente entre os
direitos aceitos socialmente e suas garantias. Pode ser também um mero artifício justificador
para atingir o objetivo do convencimento, já que negar esses princípios seria o mesmo que
negar os ideais consagrados.

Um exemplo dessa tentativa de uniformizar os conceitos, refletindo esse fenômeno de


se achar que são julgamentos aceitos incondicionalmente, está na persistência doutrinária de
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classificar os direitos humanos, fato que atinge todos os grupos do poder constituído. O
Judiciário também incorreu nessa unanimidade ao tentar pacificar os entendimentos dos seus
agentes de atuação. Em vão, ao que parece. O ministro do Supremo Tribunal Federal do
Brasil, Celso de Mello transcreveu definição lacônica ao afirmar num de seus julgados que os
direitos constitucionais civis e políticos são de primeira geração e os direitos econômicos,
sociais e culturais são de segunda geração (STF, 1995, p. 39.206). Apropriação de uma idéia
que, antes de esclarecer, impõe mais imprecisão por sua incompletude. Observe-se que tal
declaração se dá sete anos após a promulgação do texto constitucional vigente, tempo
suficiente para se buscar dirimir qualquer superficialidade do legislador constituinte, caso
existisse. Lembre-se que em décadas anteriores ao referido julgado, pensadores e filósofos do
direito, como Norberto Bobbio, já tinham avançado nessa análise e conceituação (2004, p. 4-
5, 15-24).

O legislativo, à sua vez, por meio da Constituição Federal brasileira já tentara


simplificar a questão ao definir o conteúdo dos direitos individuais, na parte final do caput de
seu art. 5º, como “o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”
(BRASIL, 2009, p. 7). Em adição, o dispositivo constitucional também definiu o conteúdo
dos direitos sociais ao afirmar no art. 6º: “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho,
a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a
assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” (BRASIL, 2009, p. 7). Como se
apreende do mesmo texto, esses direitos individuais e sociais, entre outros, são denominados
simplesmente de direitos humanos (art. 4º, II, CF). Portanto, as classificações que tentam
simplificar, para fins didáticos e deliberativos, muitas vezes complicam, embora os direitos
humanos sejam mesmo difíceis de definir, pois são variáveis ou dinâmicos e dentro de uma
mesma classe, não poucas vezes, são heterogêneos (BOBBIO, 2004. p. 19).

1.2 Vida, liberdade, igualdade e propriedade – dentre os primeiros direitos individuais


reconhecidos.

Como exemplos dessa dinâmica adotem-se a vida, a liberdade, a igualdade e a


propriedade. Como o art. 5º da Constituição brasileira destaca a segurança, diante o
paralelismo com o paradigma grego, ou na falta dele, entenda-se este compreendido no direito
à vida em vista da necessidade inerente da sua preservação. Assim, deve-se observar o
primeiro e provavelmente o mais importante pensamento sobre o que venha a ser um direito
do ser humano, a vida e a sua proteção. A vida pressupõe a auto-existência de forma
igualitária e independentemente individualizada, o que engloba a autodefesa e a proibição de
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agressão a outra vida humana. Sob uma perspectiva humanista, já que a vida é
individualizada, esta não deve ser submetida à descriminação e à servidão. Fato que
desencadeou direitos aos diferentes em suas condições e limitações. A liberdade corresponde
ao comportamento racional independente de restrições e sem coação pelo poder e pela
violência, no qual também é recíproco o limite da liberdade do outro. Embora o texto do art.
3º da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 não tenha incluído a igualdade e a
propriedade, estes direitos podem ser vistos nos artigos 1º e 17 da citada declaração,
respectivamente. Indicação de que os principais valores humanos podem ainda estar em
descobrimento à medida que se cresce em consciência individual e social.

Uma maneira de se observar o percurso histórico culturalmente construído é presumir


que esse contexto determinou uma transposição de interesses dos direitos de primeira geração
(também descritos como os direitos da liberdade) para os de segunda geração (os direitos
sociais, culturais e econômicos preocupados com a questão da igualdade). Sucessivamente,
para aqueles que ao se afastarem consideravelmente dos anteriores incorporam um conteúdo
de universalidade vinculada com os direitos de solidariedade, é possível observar um
compromisso com o desenvolvimento, a paz internacional, o meio-ambiente saudável e a
comunicação, entre outros (MORAIS, 2005, p. 219). Uma terceira geração. Uma alusão
bastante vinculativa ao lema da revolução liberal francesa. Contudo, esta construção
classificatória como argumento lingüístico não conseguiu se perpetuar devido a suas
limitações, existindo hoje autores que falem até de direitos fundamentais de quinta geração ou
categoria, no caso, de direitos políticos (ADEODATO, 2009, p. 132).

Indo às origens do pensamento do estado liberal, John Locke (2004, p. 91) afirmava
que estes primeiros direitos, entre outros, faziam parte de um estado de natureza ou “lei da
natureza” que ensinava, a todos os homens a partir de sua razão. Contudo, explica, a fim de
que cada um não assuma a responsabilidade de punir os que desrespeitam esse “estado
natural”, o grupo social abre mão de sua liberdade ilimitada e delega parte de seu poder a uma
autoridade pública denominada de o Estado que assume a tarefa de condenar e punir a
infração aos direitos comuns dessa sociedade. O indivíduo, então, se submete ao controle
público para sua própria garantia. Daí procede a institucionalização das garantias e dos
direitos do ser humano que se vê, por exemplo, na Constituição brasileira, tipicamente liberal.
Essa submissão da vontade social ao poder estatal com o fim de obter garantias
institucionalizadas constitui um silogismo de proporções universais. Um conjunto de idéias
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reiteradamente discutido e superado em seu conteúdo circunstancial nada absoluto, vez que
novas gerações incorporaram outros princípios e possibilidades ideológicas.

Tome-se o exemplo do princípio da propriedade que a partir das revoluções liberais


chegou ao Império brasileiro de forma plena, fato corroborado pelo Código de Beviláqua de
1916. Porém, desde a introdução do princípio da “função social” com a emenda nº 10 à
Constituição de 1946, essa plenitude foi relativizada, sendo finalmente revogada tanto pela
Constituição de 1988 como pelo novo Código Civil de 2002. A propriedade foi condicionada
por realidades sociais como a função social, por atos administrativos como a desapropriação e
por atos particulares como o regime de servidão. Além disso, as limitações adjetivas
encontradas no texto constitucional, que relativizam a propriedade, tais como propriedade
urbana, propriedade rural, propriedade pública, propriedade privada etc., demonstram que
novos fatos podem incorporar novos ideais legais. “Ou seja, como outros textos normativos, o
direito de propriedade é restringido por “contratextos” que fornecem o âmbito semântico
dessa limitação” (ADEODATO, 2009, p. 130).

Até onde o indivíduo se sujeita a esse idealismo, quando o reconhecimento de que o


respeito ao ser humano enseja a demanda pela satisfação de condições mínimas para sua
existência digna numa conjugação equanimemente do binômio sugerido universalidade-
relativismo sem, contudo, render-se a interesses sombrios. Tal dignidade está condiciona a
uma busca por valores compartilhados que possam ser descritos como direitos universais,
igualitários. Assim, tal sujeição dependerá de sua percepção de que o, agora, poder público
não se exima de sua função original.

É o simples racionalismo, até certo ponto cético, que avalia a devida intervenção do
Estado em relação aos direitos originais que lhe fundamentaram sua existência. Quando o
Estado viola os direitos individuais não está indo contra sua própria criação e se condenando à
autodestruição? Não é sua função respeitar tais direitos para sua própria garantia e punir
apenas aqueles que ameaçam e infringem os direitos comuns que o criaram?

Morais (2005, p. 220) destaca que é a percepção, face uma nova realidade, para o que
ele chama de “universalidade comunitária”, onde o objeto das pretensões dos direitos
humanos atinge a comunidade humana como um todo que perpassa a relação verticalizada do
Estado com o indivíduo e representa uma evolução de direitos que primeiramente pertenciam
a certas parcelas da humanidade e do seu patrimônio singular para algo mais abrangente e
supra-estatal.
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São estes direitos ditos fundamentais, primeiros ou últimos a depender do momento


histórico, que também estabelecem uma verdadeira e progressiva limitação à autoridade cada
vez mais irrestrita e incontrolável do Estado. Assim é contraditório, embora possível
praticamente, que um Estado contemporâneo isoladamente respeite os direitos humanos e
restrinja indiscriminadamente a vida ou a liberdade ou a propriedade individual e ainda se
mantenha autêntico e legítimo. Daí, retomando a via dos fundamentos, importa compreender
melhor algumas características inerentes a esses direitos.

1.3 Características doutrinárias complementares para a compreensão dos direitos


humanos.

Não é difícil encontrar na doutrina sobre os direitos humanos um intercâmbio entre os


termos “direitos humanos”, “direitos fundamentais” e “garantias fundamentais”. Essa
substituição, de forma alguma traz uma igualdade de significados para o pesquisador atento.
Até porque, cada palavra carrega seu simbolismo e seu correspondente significado como
convém à boa semântica. Além de que, tais expressões são associadas também a outras
palavras e significados de relevância jurídica; “direitos individuais” são apenas mais um
exemplo disso.

Contudo, sem almejar estabelecer ditas diferenciações, é importante que se perceba,


pelo menos, que direitos fundamentais “são os direitos humanos reconhecidos como tal pelas
autoridades, às quais se atribui o poder político de editar normas” ou como ainda se afirma
“são os direitos humanos positivados nas Constituições, nas leis, nos tratados internacionais”
que outra terminologia os distingue em “direitos fundamentais típicos a atípicos”
(COMPARATO, 2001, p. 56).

Simplificando, direitos fundamentais são direitos humanos reconhecidos e garantias


fundamentais é a positivação desse reconhecimento. Alexandre de Moraes (2006, p. 29)
complementa ensinando que “os direitos representam por si só certos bens, as garantias
destinam-se a assegurar a fruição desses bens; os direitos são principais, as garantias
acessórias”. E conclui com a titulação de que os direitos são fundamentais e as garantias são
institucionais.

Entre as várias características atribuídas pelos doutrinadores pátrios aos direitos


humanos na forma de direitos e garantias estão a universalidade, a igualdade, a legalidade e a
reserva legal, a inaliabilidade, a imprescindibilidade, a historicidade e a relatividade
(MORAES, 2006, p. 31 e ss.) e como aqui se enfatiza aquelas que são mais relevantes ao
resgate histórico clássico, destaquem-se a universalidade e a relatividade.
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Esse dual traz como marco a característica de que a universalidade aplica normas
gerais destinadas a todas as pessoas como seres humanos em cada Estado, sejam nacionais ou
estrangeiras. É a aplicação de princípios ou normas de forma indistinta às pessoas,
genericamente. Contudo, isso parece não significar que se tenha a pretensão de aniquilar as
diferenças culturais de forma mundializada.

Além da universalidade pretendida, por exemplo, pela Declaração Universal dos


Direitos Humanos das Nações Unidas, de 1948, partindo dos vários pressupostos elencados
nela, precipuamente os de respeito e compreensão, entende-se também que essa
universalidade respeite a isonomia normativa e soberana de cada povo, uma ampliação
semântica do direito à igualdade. Isonomia que, juridicamente, deve incluir o tratamento igual
perante a lei para os iguais, na medida de sua igualdade, e o tratamento desigual para os
desiguais, na medida de suas desigualdades, conteúdo que tem perpassado todos os outros
ramos do direito positivo (ADEODATO, 2009, p. 129).

A outra característica que se atribui aos direitos e garantias fundamentais, extensiva


aos direitos humanos, é a sua relatividade, também chamada de “convivência das liberdades”
por Alexandre de Moraes (2003, p. 242). Relatividade, porque como princípios que são, estes
não se aplicam de forma absoluta, de outra forma, se violariam uns aos outros e como são
interdependentes, causariam sua própria destruição ou inconsistência. Assim, dependendo do
caso, se pode privilegiar um princípio sem que outro seja violado ou depreciado. Porém, essa
relatividade não é justificativa para a intolerância cultural de alguns sistemas normativos.
Mesmo que não exista um valor único que possa ser aplicado indistintamente a todos os seres
humanos, ainda é possível a construção de um fundamento que gravite em torno da
manutenção da dignidade da pessoa humana, o cerne dos direitos humanos.

Ainda não se pode esquecer a lição de Alexandre de Moraes (2006, p. 27) que afirma
que os direitos e garantias fundamentais não podem ser utilizados como verdadeiro “escudo
protetivo da prática de atividades ilícitas, tampouco como argumento para afastamento da
responsabilidade civil ou penal por atos criminosos” de quem quer que seja. Uma clara
declaração de que tais direitos e garantias não possuem um caráter absoluto e ilimitado, já que
estes, na verdade, também nascem para reduzir a ação do Estado contemporâneo. São limites
tanto para o Estado como para o indivíduo numa subordinação recíproca aos limites impostos
pelo direito. Portanto, o que não deve ser absoluto tem que ser relativo.
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No plano prático da teoria dogmática observa-se, além do exemplo acerca da


propriedade descrito anteriormente, que agora o direito de reunião, como parte da liberdade, é
também relativo tanto aos indivíduos como à coletividade, fato importante retoricamente.
Assim, “o argumento de que o direito de reunião só pode ser exercido coletivamente deve ser
relativizado, pois qualquer direito de liberdade pressupõe a presença de outrem”
(ADEODATO, 2009, p. 129). Aplicação que também se faz à propriedade, já que ninguém
delimita algo para si estando sozinho.

São estas poucas características aqui delineadas, uma vez aplicadas à discussão
proposta, que permitem inter-relacionar o novo com o antigo à vista das diferenças e de forma
melhor, das possíveis aproximações, uma vez que se conclui que as classificações não
estabelecem limites neste estudo, mas apenas lançam fundamentos de análise para a
compreensão dos referidos direitos.

2 O CONTEXTO GREGO COMO PALCO PARA UM POSSÍVEL NASCEDOURO


DA IDÉIA DE DIREITOS HUMANOS.

2.1 O surgimento da idéia de direitos subjetivos independentes e acima do direito


positivo entre os gregos.

Genericamente, as semelhanças das características básicas do conteúdo dos direitos


humanos com o movimento filosófico clássico dos sofistas gregos são gritantes e, em
particular, o binômio delimitado. Aquela sociedade (a grega) era discriminadora e
escravagista, mas dentre os inovadores sofistas já se ouviam questionamentos a esses
preconceitos que os costumes consideravam normais. Expressões culturais e diálogos
filosóficos questionavam possibilidades de mudança. Contudo, é de chamar a atenção que,
numa cultura periférica, a brasileira, predominantemente influenciada pela Europa e, por
conseqüência, também marcada pelo pensamento grego, ao se pesquisar sobre origens dos
direitos e garantias fundamentais individuais e sociais, se encontrem mais citações às origens
orientais dos direitos humanos do que suas raízes helênicas, estas, sucintas e genéricas. É
possível encontrar referências em enciclopédias ao cilindro de Ciro da Pérsia (539 a.C.), atual
Irã, como o primeiro registro histórico escrito (gravado) de direitos humanos que, posterior
aos episódios miraculosos com o profeta Daniel, segundo o relato bíblico, decretou a liberdade
de religião e a abolição da escravidão em seu governo, ou mesmo ao Código de Hamurabi da
Babilônia (1.700 a.C.), do que as esperadas citações de gregos clássicos em profundidade.

Provavelmente a influência judaico-cristã de origem oriental, tão arraigada e


determinada a não perder suas amarras com o mítico, pareça ser mais convincente. Não foge
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do pesquisador a percepção de que os códigos citados, de fato foram fontes normativas com
alguma eficácia prática e que os escritos platônicos e aristotélicos tiveram um caráter mais
ideológico. Porém, que mentes estavam por traz dos antigos códigos orientais é um enigma.
A vasta influência dos gregos pode ter sido mais marcante. Possivelmente até sobre aqueles
monarcas muitas vezes por eles preceptados. Repita-se, uma mera possibilidade.

Entretanto, é digno de destaque, por exemplo, a influência desse pensamento helênico


no teatro grego como meio educador e propagador de idéias de direito, meio contemporâneo à,
então, nova educação dos sofistas. Ainda no período clássico, as tragédias descreviam Thémis
e Diké como concepções distintas de justiça, tal qual na tragédia grega de Sófocles (496–406
a.C.), a Antígona. Esta obra-prima é o marco do surgimento da idéia generalizada de direitos
subjetivos independentes e acima do direito positivo, que por um longo período foi difundida
e posteriormente internalizada nas constituições liberais. Marco e termo, porque antecipou a
passagem lingüística do direito externo do período arcaico, coletivo, para uma nova
concepção de direito, subjetivo, que só algum tempo depois de consolidou.

De logo entenda-se Thémis, a partir do condensado dessa trágica história e de alguns


precedentes culturais, como um conjunto de leis divinas, entendidas também como “naturais”,
e Diké como um conjunto de leis humanas, e ainda, segundo aquele imaginário grego, que a
opção por uma poderia constituir a exclusão da outra. Atualmente, contudo, ainda que por um
longo período o jusnaturalismo tenha seguido distante do legalismo, a evolução do direito
proporcionou um encontro menos subvertido para ambos por meio de ponderação e tolerância,
efetivando complementarmente, a dignidade humana.

Embora a essência legal observada se concentre, em sua plenitude, nas linhas da


Antígona, o relato histórico, se é que se pode chamar de história a descrição de “fatos” dentro
de uma obra literária escrita para o teatro grego, se inicia na narrativa de outra obra, Édipo
Rei. Este drama será vivido por Antígona, filha de Jocasta com Édipo, seu pai e irmão, sendo
neta do amaldiçoado transgressor Laio, filho de Lábdaco. Vale lembrar, como curiosidade,
que a Antígona foi escrita em 444 a.C., logo, antes de Édipo Rei, que foi escrito em 430 a.C.
(JEBBS, 2008, p. 17).

Édipo foi um típico herói trágico. Sendo ingênuo acerca de sua realidade e indefeso
diante de seu destino, sobre ele pairou o justificável e legítimo argumento de ignorar a
verdade sobre suas origens e nada poder fazer para fugir de seu inescapável destino, premissa
cultural da obra, que foi profetizado pelo oráculo de Apolo em Delfos, qual seja, o de matar
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seu pai e desposar sua mãe, incorrendo numa irreversível transgressão à ordem natural e
trazendo sobre si um pecado familiar e sua conseqüente maldição.

Percebe-se, portanto, que, naquela visão grega o que inclui Tebas, tais transgressões
infringiam leis naturalmente impostas pela divindade no coração humano. Daí, tais ações
foram consideradas verdadeiras aberrações já que, uma vez desposando a própria mãe, tornar-
se-ia irmão e pai de seus filhos, como veio a acontecer, fusão de posições inconcebíveis para a
natureza. O desfecho de tal tragédia foi que Édipo não suportou a revelação de tamanha
desgraça e diante da imensidão de seu infortúnio, estando Jocasta também morta, furou os
próprios olhos e retirou-se da cidade (SOFOCLES, 2008, p. 70). Contudo, daquela união
resultaram os irmãos Etéocles, Polínice e Antígona.

Uma vez vazio o trono e sem os sucessores naturais para pleiteá-lo, Creonte se impôs
como déspota de Tebas, e personificando a tirania, se apropriou, em benefício próprio, da
Diké, as leis escritas, para se manter no poder. Por elas, prestou honras fúnebres a Etéocles,
seu aliado, mas proibiu, sob pena de morte, que o corpo de Polínice fosse sepultado,
obrigando os restos daquele que selou aliança com os argivos para conquistar o poder em sua
terra a ficarem expostos às aves carniceiras, justificando e legitimando seus atos, repita-se,
pelo apego férreo à "manipulável" lei dos homens (SÓFOCLES, 2008, p. 89).

Antígona, com seu comovente amor fraternal, considerou injusta tal proibição e
decidiu prestar a seu irmão o piedoso serviço de enterrá-lo. Esse foi o heroísmo funesto de
Antígona, pois, uma vez tendo sido descoberta sua desobediência, o rei Creonte a condenou a
ser emparedada viva em uma caverna. (SÓFOCLES, 2008, p. 120).

Antígona, passional e abstraída do torporoso poder, refutou, em vão, a acusação de


desobediência, selando seu destino:

CREONTE – [...] tiveste a ousadia de desobedecer a essa determinação?


ANTÍGONA – Sim, pois não foi decisão de Zeus; e a Justiça [Diké], a deusa que habita
com as divindades subterrâneas, jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos; tampouco
acredito que tua proclamação tenha legitimidade para conferir a um mortal o poder de
infringir as leis divinas [Thémis], nunca escritas, porém irrevogáveis; não existem a partir
de ontem, ou de hoje; são eternas, sim! E ninguém pode dizer desde quando vigoram!
Decretos como os que proclamaste, eu, que não temo o poder de homem algum, posso
violar sem merecer a punição dos deuses! (SÓFOCLES, 2008, p. 96).

Certamente foi uma posição particular e com fundamento num argumento restringido
pela maioria das leis dos Estados modernos, a auto-tutela. Sobre as conseqüências dessa
postura é que, houve e sempre haverá questionamentos. Aqui, o dilema estava dissociado
entre duas personagens, mas nos indivíduos, e em determinados sistemas legais, eles se
14

embatem numa mesma entidade. Portanto, questões sobre os limites da autoridade do Estado,
do direito positivo, sobre as leis do direito natural, as leis não escritas, “superiores”, não são
um mero posicionamento sobre o que é certo ou errado, justo ou injusto. Na verdade, aí surgiu
claramente a idéia generalizada de direitos subjetivos independentes e acima do direito
positivo que perdurou por eras. Idéia generalizada porque desde o período arcaico não se
aplicava um conceito de direito subjetivo, por exemplo, à liberdade, como se verá melhor
adiante. Aceitando-se esse julgamento, de fato, qualquer lado que se escolhesse geraria a
exclusão do outro. Daí a importância histórica da superação do binômio universalidade-
relatividade tão crucial para entender que, neste dilema, poderia haver alternativas não
excludentes, não desenvolvidas aqui.

Porém, Antígona não tinha dúvidas sobre qual lei seguir. Como qualquer herói do
teatro grego, ela dominou o phobos, o medo. Destemida, ousada e indomável, atreveu-se a
desafiar a tirania de seu tio Creonte e, mesmo ciente da pena de morte que seu ato implicaria,
se recusou a obedecer as leis civis, por achá-las inferiores aos desígnios divinos. Note-se que
ela descreveu as primeiras obras de Creonte do início do drama como advindas de Thémis,
embora, parciais: “[Creonte] sepultou a Etéocles, com todos os ritos que a justiça [Thémis]
recomenda, garantindo-lhe assim um lugar condigno no Hades”, ação, que ela considerou,
sagrada, contudo, as leis posteriores já não tinham a mesma força, pois “nenhum dos dois
[Creonte e seu decreto] é mais forte do que o respeito a um costume sagrado” (SÓFOCLES,
2008, p. 84-85). Isso lhe deu mais força. Os interesses pessoais e sentimentos egoístas de
Creonte que pensaram limitar o que era superior e mais amplo, não a afetaram. Pelo contrário,
a trama demonstraria quão acertada foi a convicção que tomou. O convencimento de Creonte
foi temporário, pois, embora inicialmente nem mesmo as palavras de seu filho, Hêmon, com
insistentes tentativas, o tivessem dissuadido, ao final, ele mudou:

CREONTE – Miserável! O que te leva a divergir tanto do teu pai?


HÊMON – É que te vejo violar os ditames da Justiça!
CREONTE – E o que há de injusto em sustentar minha autoridade?
HÊMON – Não é vilipendiando os preceitos divinos que se sustenta a autoridade!
(SÓFOCLES, 2008, p. 106).

Os interesses de Creonte mudaram e o custo de sua decisão e decreto agora o atingiram


pessoal e subjetivamente. O destino foi implacável e como característica de uma tragédia de
cujo desfecho nenhum bem se pode esperar, pois nela não existem escritas certas por linhas
tortas, “um erro traz sempre um erro. Desafiado o destino, tudo será destino.” (SÓFOCLES,
2008, p. 121). Porém Antígona, que se posicionou sobre o que considerou superior, apesar do
15

alto preço pago, despertou em todas as platéias, pelo menos, a ponderação sobre a
legitimidade das leis dos homens.

A partir de Sófocles, o mito de Antígona ganhou em várias expressões culturais, o


simbolismo de uma heroína, uma mulher capaz de assumir os valores éticos mais elevados,
mesmo com o risco de sua própria vida. É admirável que já na época de Sófocles, o mesmo
utilizasse a retórica teatral, de comunicação, para difundir e popularizar um argumento
jurídico-político. Posteriormente, também, a narrativa tornou-se um símbolo de resistência às
tiranias por representar a contradição que condenava a sociedade grega à morte mediante a
tensão entre os valores morais da cidade-estado e os valores morais “naturais”. Contudo, foi
no século XIX que ela ganhou uma interpretação abertamente política, no conflito entre leis
escritas e não escritas, ou entre o indivíduo e o poder absoluto (JEBBS, 2008, p. 127). Tal
idéia, com seu discurso e argumentação próprios, nascidos em época tão remota, mostra que a
razão humana sempre se ocupou em questionar sistemas normativos desconfortáveis à
dignidade humana. Um toque do ceticismo questionador que sempre abriu as portas da
mudança, neste caso, beneficiando direitos fundamentais para a humanidade.

2.2 O progresso fundamental no surgimento dos direitos humanos.

Assim, foi nos gregos que se encontrou o progresso basilar para a cultura e tudo o que
se refere à vida do homem em comunidade. Apesar de todas as realizações artísticas,
religiosas e políticas dos povos anteriores, “a história daquilo a que podemos com plena
consciência chamar cultura só começa com os Gregos” (JAEGER, 2001, p. 5). Jaeger
também afirma que

A importância universal dos gregos [...] deriva da sua nova concepção do lugar do
indivíduo na sociedade. [...] se contemplarmos o povo grego sobre o fundo histórico do
antigo Oriente, a diferença é tão profunda que os gregos parecem fundir-se numa unidade
com o mundo europeu dos tempos modernos (JAEGER, 2001, p. 9).

Obviamente, a percepção de Jaeger é adstrita à educação grega. Mas não foi a


educação grega que disseminou por toda a terra conhecida, através de suas conquistas,
também o que hoje se conhece por cultura, o helenismo? Os gregos se dedicavam de forma
sólida à arte, à estética, à oratória, ao estilo e à retórica. Essa aptidão derivou simplesmente
“do sentido espontâneo e amadurecido das leis que governam o sentimento, o pensamento e a
linguagem, o qual conduz finalmente à criação abstrata e técnica da lógica, da gramática, da
retórica” (JAEGER, 2001, p. 11). Foram sua política e leis que mudaram o entendimento e a
percepção sobre o ser humano, e esses conceitos colocados à disposição da força normativa
revolucionou e amadureceu a própria existência humana.
16

Naquele tempo ainda existiam a tirania, a guerra, a escravidão e a pena de morte de


forma institucionalizada. Não que hoje estas não existam de forma “legal” em variadas
sociedades ao redor do globo. Percebe-se, discursivamente ou pelo menos conceitualmente,
que são práticas indesejadas e há uma esperança de que se extingam. Contudo, ali nasceu a
democracia ou algum tipo de democracia. Até mesmo o objetivo da guerra entre eles passou
de meramente expropriador para civilizatório. Guthrie (1995) afirma que

Aristóteles descreve alguns escravos falando livremente, e às vezes descaradamente a seus


senhores. Aos inteligentes se davam postos de responsabilidade como secretários e
gerentes de banco, e podiam finalmente ser libertados por seus próprios donos. [...] Uma
prática comum era para os donos de escravos industriais permitirem-lhes trabalhar
independentemente, pagando uma soma fixa de seus ganhos e ficando com o resto, e estes
podiam economizar bastante para comprar a própria liberdade (GUTHRIE, 1995, p. 146).

E continua dizendo que “Demóstenes também diz que escravos em Atenas têm
maiores direitos de discurso livre do que os cidadãos de outros estados” (GUTHRIE, 1995, p.
146). Se não é muito fantasioso, seu entendimento é pelo menos admirável sobre a colocação
aristotélica que demonstra o inconformismo e a crítica àquele momento social grego. No
capítulo sexto do seu livro Os Sofistas, este autor traz colocações, confirmadas por sofistas,
sobre igualdade política, de riquezas, social e racial. Análise que pode ser retomada em
momento diverso para evitar ser prolixo.

3 A ANALISE DE ARÍSTÓTELES EM SUA POLÍTICA E SUA PROVÁVEL


INFLUÊNCIA NO DESENVOLVIMENTO DE CONCEITOS PRÁTICOS COMO
CONTEÚDOS DE DIREITOS HUMANOS.

3.1. A Política e seu pressuposto sobre o bem estar do homem.

Ante a influência retoricamente persuasiva da cultura grega sobre fatores sociais e


políticos, seja por sua literatura, teatro ou filosofia, não será necessário um grande salto na
história a fim de que se chegue ao autor paradigma que convivia com as raízes das idéias que
posteriormente, é bem provável, vieram a ser conceitos de direitos humanos na atualidade:
Aristóteles.

Ao que se sabe, o conhecimento enciclopédico de Aristóteles produziu obras sobre


política, quais sejam A Política, A Constituição dos Atenienses e Os Econômicos. Também
são relatadas outras duas obras compostas quando era preceptor de Alexandre e dedicadas a
ele: A Favor das Colônias e Do Reinado (LAERTIOS, 2008, p. 134), cujo conteúdo
atualmente ainda está perdido (KURY, 1985, p.5).

Na Política (Поλιτικων), obra que se divide em oito livros, Aristóteles trata da


composição da cidade, da escravidão, da família, das riquezas, bem como faz uma crítica
17

analítica às teorias de Platão. Descreve e avalia também constituições de outras cidades, num
verdadeiro exercício de direito comparativo, descrevendo-lhes os regimes políticos e as
formas de governo. Ele também apresenta suas idéias sobre o modo de vida mais desejável
para as cidades e os indivíduos, o que Platão também fez, mas dedica a esses tópicos bem
menos tempo e espaço que seu mestre. Finaliza essa obra com os objetivos da educação e a
importância das matérias a serem ensinadas.

O sentido de política para Aristóteles parece estar vinculado a um único objeto, a


felicidade humana no convívio da polis, seja a do indivíduo como cidadão da polis, seja do
político que busca o bem coletivo, daí ser a política de então considerada uma ciência prática.
Tal idéia pode ser percebida no trecho inaugural do livro em epígrafe, transcrito a seguir:

Vemos que toda cidade é uma espécie de comunidade, e toda comunidade se forma com
vistas a algum bem, pois todas as ações de todos os homens são praticadas com vistas ao
que lhes parece um bem; se todas as comunidades visam a algum bem, é evidente que a
mais importante de todas elas e que inclui todas as outras tem mais que todas, este objetivo
e visa ao mais importante de todos os bens; ela se chama cidade e é a comunidade política.
(ARISTÓTELES, 1985, p. 13, 1252a).

De semelhante modo, a observação de Aristóteles para democracia não se dá de


maneira simplista. Para ele, democracia não significava meramente o governo do povo ou o
governo da maioria (ARISTÓTELES, 1985, p. 126, 1290b). Maioria era uma contingência
acidental. Democracia era o governo dos homens livres, mas também não de uns poucos
livres e ricos, pois isso seria, então, uma oligarquia, e, para ele, não “há uma democracia
quando os homens livres detêm o poder soberano” (ARISTÓTELES, 2006, p. 127, 1291a). O
objetivo, sim, visava à satisfação, a felicidade e o bem-estar da maioria.

O fim da sociedade civil é, portanto, viver bem; todas as suas instituições não são senão
meios para isso, e a própria cidade é apenas uma grande comunidade de famílias e de
aldeias em que a vida encontra todos esses meios de perfeição e suficiência. É isso o que
chamamos uma vida feliz e honesta. A sociedade civil é, pois, menos uma sociedade de
vida comum do que uma sociedade de honra e virtude (ARISTÓTELES, 2006, p. 56,
1281a).

3.2 O entendimento aristotélicos sobre o direito à vida, à liberdade, à igualdade e à


propriedade, relevantes para os atuais direitos humanos.

3.2.1 Sobre o direito à vida.

No capítulo I do livro VI da Política, Aristóteles, depois de uma breve análise das


idéias de seu mestre Platão e constituições de algumas cidades-Estado, e, antes de discorrer
sobre as formas de governo, traz seu entendimento sobre o ideal de uma cidade perfeita, e
como cidade entenda-se “a comunidade constituída a partir de vários povoados”. Em seu
entendimento, esta comunidade deve ter algo de auto-suficiência, ou seja, além de ter
18

“condições para assegurar a vida de seus membros, ela passa também para lhes proporcionar
uma vida melhor” (ARISTÓTELES, 1985, p. 15, 1253a). Referência clara ao direito à vida
naquelas comunidades, mais que vida biológica, vida como qualidade sem prescindir daquela.
Paralelo que se firma com a Constituição brasileira em seu art. 5º, que ratifica a Declaração
Universal dos Direitos do Homem de 1948, garantindo, antes de qualquer coisa, a
inviolabilidade do direito à vida. Isso porque nada é mais fundamental entre todos os direitos
do que o direito à vida, uma vez que este é pressuposto à existência e ao exercício de todos os
demais direitos.

Como dito, nas comunidades gregas já se percebia certa garantia com respeito à vida
biológica, porém sua análise perpassa a mera existência e busca argumentos para convencer
governos e constituições com respeito a uma qualidade de vida melhor e mais digna. O que
vem a ser uma “vida melhor”, além de ser objeto de exaustivas especulações filosóficas,
encontra em Aristóteles, algumas disposições, no mínimo, interessantes.

Anteriormente, ele já havia dito que há “algo de bom no simples fato de estar vivo” e
isso independentemente da forma como se viva, já que “os homens em sua imensa maioria se
apegam à vida ainda que tenham de enfrentar muitos infortúnios, como se ela contivesse em si
mesma certo encanto e doçura” conquanto essa mesma vida não devesse estar “sobrecarregada
de males penosos demais para ser suportados” (ARISTÓTELES, 1985, p. 89, 1278b). Esse é
um argumento que acompanha toda a obra e para o qual ela está determinada a comprovar.

Porém, como a expressão comporta aquela ambigüidade relativista diante da


experiência prática de um retórico, a “vida perfeita” embora “muitas vezes seja inatingível”
(1288b), é aquela em que “os homens não adquirem e preservam as qualidades morais graças
aos bens exteriores, mas adquirem e preservam bens exteriores graças às qualidades morais”
(1323b). Independentemente de qualquer análise de juízo de valores atribuíveis a este
conceito, mais pertinente à filosofia do que à retórica, Aristóteles apresenta uma escala
decrescente de qualidade de vida contraposta entre alguns valores e os bens, de forma que, já
naquela época, não seria qualquer sistema normativo aquele que, de acordo com sua sugestão,
tornaria os homens mais felizes e dignos.

A vida feliz, quer os homens a façam depender do prazer ou das qualidades morais, ou de
ambos, é encontrada mais frequentemente entre aqueles que cultivam até o excesso as boas
qualidades e a inteligência, mas são moderados quanto à aquisição de bens exteriores, do
que entre os possuidores de bens exteriores em excesso à sua capacidade de usufruí-los, ao
passo que são deficientes quanto às qualidades e a inteligência; não somente desta
maneira, mas também recorrendo à razão se pode chegar a esta conclusão.
(ARISTÓTELES, 1985, p. 220, 1323b).
19

E prossegue com a constatação de que, independentemente da forma de governo de


uma cidade, ou de um Estado, refletida em sua constituição, “a felicidade de uma cidade é a
mesma de cada homem [...] onde a melhor forma de governo é aquela em que qualquer
pessoa, seja ela quem for, pode agir melhor e viver feliz”. (ARISTÓTELES, 1985, p. 223,
1324a). Ainda no mesmo trecho ele estabelece uma relação entre qualidades e participação na
vida política. Tudo isto sugere, conforme um entendimento mais contemporâneo, o agregado
de conteúdos importantes para a humanidade: a vida, a dignidade humana, qualidade de vida e
liberdades políticas.

3.2.2 Sobre o direito à liberdade e à igualdade.

Não obstante, o homem, como cidadão, deve ser livre. Sucintamente, deve-se entender
a liberdade grega não como viver na natureza com a ausência de leis, isso os gregos aplicavam
principalmente aos bárbaros. Desde os gregos arcaicos o homem livre era aquele que pertencia
a uma pólis e estava submetido às suas leis.

“Só nesse espaço público e entre seus iguais o grego é livre, vale dizer, sua cidadania e
sua liberdade não são qualidades atribuídas ao homem enquanto ser humano, como quer o
sentido moderno da palavra, pleno de filosofia cristã e do jusnaturalismo dos séculos XVII
e XVIII; é antes, o pré-requisito essencial para a ação política ou participação no espaço
público” (ADEODATO, 1989, p. 30-31).

Logo, arrematando a idéia, o uso do termo liberdade (eulethería) entre os gregos tinha
uma forte conotação política e jurídica, porque estes viviam numa pólis entre os iguais, sob o
princípio da isonomia, não se deve entender a liberdade entre eles como sendo uma qualidade
da vontade, logo, ligada à subjetividade (ASSIS, 2010, p. 60). Essa transposição do plano
externo para o interno é uma criação filosófica tardia.

Segundo Hannah Arendt (1973, p. 191), em toda a filosofia da Antiguidade não havia
preocupação com a liberdade enquanto fenômeno da vontade. Liberdade, enquanto atributo
da vontade e do pensamento, liberdade como livre-arbítrio, só veio aparecer na tradição
filosófica com o apóstolo Paulo e depois com Santo Agostinho, motivados pela experiência
religiosa e para uma inovadora abordagem argumentativa. Também, a liberdade para os
gregos, segundo Jaeger (2001, p. 228), consistia em se sentirem subordinados, como
membros, à totalidade da pólis e de suas leis. É uma liberdade política que em nada se
assemelha com a liberdade do individualismo moderno. Portanto, entre os gregos, as relações
entre direito e liberdade são relações externas, dependentes de uma organização (a pólis),
“motivo pelo qual não faz sentido, na análise do direito grego, falar de um direito subjetivo no
20

tocante a um atributo conferido a um sujeito ou de um conceito de direito que tenha por


essência a liberdade subjetiva” (ASSIS, 2010, p. 61).

Na verdade, para os gregos liberdade é um status: é o status libertatis em oposição ao


status servitutis. A contrário sensu, ao tratar da escravidão no capítulo II do livro I, Aristóteles
expõe a tese de alguns (outros mestres, sofistas) de que, “contrária à natureza [...] a distinção
entre escravo e pessoa livre é feita somente pelas leis, e não pela natureza” e ainda, segundo
essa tese “por ser baseada na força tal distinção é injusta” (ARISTÓTELES, 1985, p. 17,
1253b). Isso parece demonstrar que, já naquele então havia um entendimento em alguns, de
que a escravidão, embora tolerável diante de circunstâncias econômicas e sociais da época,
poderia ser banida. Em meio a uma cultura que acreditava na escravidão natural, Aristóteles
usava do artifício de importar teses de outros para apresentar conceitos inovadores, no caso da
escravidão em virtude da lei ou pela violência dos homens, da possibilidade de que esta fosse
suprimida, se é que essa não era sua própria postura “inteligente”, como se percebe em seus
argumentos subsequentes.

Entre semelhantes, a honestidade e a justiça consistem em que cada um tenha a sua vez.
Apenas isto conserva a igualdade. A desigualdade entre iguais e as distinções entre
semelhantes são contra a natureza e, por conseguinte, contra a honestidade
(ARISTÓTELES, 2006, p.63, 1325b).

É um passo intermediário para o conceito subjetivo de liberdade amparado pela


igualdade. Embora, na verdade, ao menos teoricamente, a liberdade seria a legitimação da
autoridade. Assim, em seguida, ainda para sustentar a condição essencial da liberdade, ele
afirmou que a autoridade tem naturezas distintas, a doméstica e a política, princípio que rege,
ao menos, os aspectos aqui abordados de liberdade, igualdade e propriedade. O chefe de
família governa toda a sua família, incluindo os escravos. Já o magistrado governa sobre os
homens livres e iguais. Tal distinção indicaria que a autoridade do governo deveria se
restringir aos cidadãos iguais e livres. O que, por inferência, sugere que, se abolida a
escravidão, o governo não passaria por qualquer crise de autoridade, pois esta autoridade
estaria adstrita ao poder familiar. Além do mais, “em termos estritamente políticos”,
corroborando para isso todo o contexto cultural da Grécia antiga, “a pólis não conheceu a
distinção entre governantes e governados, uma vez que os não-cidadãos não eram, a rigor,
governados”, pois isso cabia especificamente às famílias, “e ser cidadão implicava participar
de modo a não ser governado” (ADEODATO, 1989, p. 31).

Pormenorizando, no capítulo V do mesmo livro II, ao tratar do poder doméstico, ele


esclarece que tal poder e como tal, hierarquizado, se aplica à mulher e aos filhos “como
21

criaturas livres, embora não com a mesma forma de comando, mas o da mulher de maneira
democrática e o dos filhos monarquicamente” (ARISTÓTELES, 1985, p. 31, 1259b).
Embora, existissem distinções, preconceitos e discriminações, era certo grau de igualdade que
fazia dos membros da família seres livres. Se livres, então iguais. E nessa igualdade de
condições ele chega a sugerir que fosse um ponto a se considerar, que o Estado cuidasse de
parte de si mesmo ao educar os filhos e as mulheres, sendo necessário “que a educação das
crianças e das mulheres seja conduzida com vistas à forma de constituição adotada, se faz
alguma diferença para a qualidade da cidade que as crianças tenham qualidades e que as
mulheres tenham qualidades” (ARISTÓTELES, 1985, p. 33, 1260b). O que leva à
surpreendente conclusão: “E faz necessariamente diferença [referindo-se à educação
proporcionada pelo Estado], pois as mulheres constituem metade da população livre, e as
crianças crescem para participar do governo da cidade” (ARISTÓTELES, 1985, p. 34, 1260b).
Mais uma inovação relativista ao sugerir transferir ao Estado a educação que era parte
integrante do poder familiar. Prática adotada por algumas comunidades gregas, onde as
mulheres tinham voz em seus lares ou, por raras exceções, em poucos espaços públicos sob a
supervisão e responsabilidade dos pais.

Sem equívoco, mulheres gregas receberem o cuidado de serem educadas pelo Estado
helênico foi um inestimável progresso e o retrocesso que as vitimou em séculos posteriores no
ocidente, foi imperdoável. Como à época das revoluções liberais o mais do que conhecido
fato de relatos acerca de pensadores que, mesmo compartilhando intrinsecamente de ideais
preconizados pela Revolução Francesa, “cujo lema era a liberdade, a igualdade e a
fraternidade, não reconheceram a igualdade entre homens e mulheres” (BARROS, 2009, p.
1139). Esta autora relata sucintamente a trajetória de Olympe de Gouge que depois de,
juntamente com outras mulheres, haver lutado contra a tirania em favor da liberdade, foi
guilhotinada por defender a igualdade entre homens e mulheres (BARROS, 2009, p. 1140).

Ao retomar a exposição aristotélica sobre a liberdade, o capítulo II do livro III da


Política, externa sua tese relacionada ao governo e os governantes, quando ele afirma que a
autoridade do governante, do político, é “uma forma de autoridade pela qual um homem
governa pessoas da mesma raça, e homens livres (assim definimos a autoridade política)”
(ARISTÓTELES, 1985, p. 85, 1277b). Tal conceito, comum entre os gregos, não cogitava a
possibilidade de que alguém sendo livre pudesse ser escravizado por algum dos seus, embora
isso “equivale a dizer que há duas espécies de nobreza e de liberdade, uma absoluta e outra
relativa” (ARISTÓTELES, 1985, p. 20, 1255b). Destacando ele mesmo o parâmetro sofista
22

da relatividade. Que avanço, mesmo em face de uma sociedade oriental como a judaica, que
tolerava a escravidão de conterrâneos por seus iguais e até a auto-escravidão.

3.2.3 Sobre o direito à propriedade.

Cidadania e propriedade estavam interligadas. Um cidadão necessariamente tinha


propriedade. Era praticamente impossível, senão de todo, um homem sem propriedade ser um
cidadão na antiga Grécia. Assim, para eles também ela era um direito natural do homem indo
além do poder de aquisição devendo ser garantida quando adequada à sua tese geral. Com
respeito ao direito de propriedade, Aristóteles previu três combinações entre a propriedade e o
seu uso: a) propriedade privada e uso comum; b) propriedade comum e uso privado e c)
propriedade e uso comuns (ARISTÓTELES, 2006, p. 19-31). Ele não cogitou da propriedade
privada e de uso privado, conceito este que partiu da propriedade plena e absoluta do
pensamento liberal do século XVIII influenciado que foi pelos absolutismos que o
precederam. Para Aristóteles, a justificação da propriedade dizia respeito à perspectiva da
política, ou seja, ela era um requisito para o bem-estar do cidadão. Aristóteles desenvolveu
três argumentos para justificar a propriedade. Na Política, I.4-10, a propriedade é justificada
sob a perspectiva da casa; na Política II.5, ele discute qual o sistema de propriedade que
melhor convém à cidade; por fim, na Política VII.9-10, ele faz uma conexão entre propriedade
e cidadania.

Sob a perspectiva da casa, Aristóteles apresentou uma justificação instrumental da


propriedade: quem governa uma casa necessita da propriedade para desempenhar a função de
prover o sustento desta. Como parte integrante de sua argumentação, dissecando cada ponto
principal para chegar aos detalhes, ele ressaltou três aspectos no tratamento da propriedade no
âmbito da casa: a propriedade era uma relação dominial, um dos poderes do senhor da casa
sobre escravos, mulher e filhos; o segundo aspecto é o de que a propriedade é uma atribuição
do senhor da casa, que realiza funções desta e não do indivíduo enquanto tal; o terceiro
aspecto é o de que a aquisição da propriedade é natural em contraposição às aquisições
artificiais, derivadas do comércio. Aristóteles contrastou a arte de aquisição que visava
satisfazer às necessidades da casa e o caráter ilimitado das formas de aquisição próprias do
comércio.

Aristóteles condenou a aquisição artificial (chamada de crematística) que ele


identificou com o comércio. Argumentando que as coisas possuíam dois usos, um próprio e
identificado com sua destinação e outro desviado para algum outro fim. Assim, para ele, o
23

comércio era artificial, já que a propriedade devia assegurar uma vida feliz e não se destinava
à troca ilimitada:

Tampouco foi a natureza que produziu o comércio que consiste em comprar para revender
mais caro. A troca era um expediente necessário para proporcionar a cada um a satisfação
de suas necessidades. Ela não era necessária na sociedade primitiva das famílias, onde
tudo era comum. Tornou-se necessária apenas nas grandes sociedades e após a separação
das propriedades (ARISTÓTELES, 2006, p. 23, 1257a).

Assim, das duas maneiras de adquirir e de se enriquecer, uma pela economia e pelos
trabalhos rústicos, outra pelo comércio, a primeira é indispensável e merece elogios; a
segunda, em contrapartida, merece algumas censuras: nada recebe da natureza, mas tudo
da convenção (ARISTÓTELES, 2006, p. 28, 1258b).

Na Política II.5, Aristóteles modificou seu argumento justificativo do contexto da casa


para o âmbito da cidade e pretendeu responder o seguinte questionamento - a propriedade
devia ser tida em comum pelos cidadãos ou em privado? Ele justificou a combinação da
propriedade privada e o uso comum com base nos seguintes argumentos: a) a propriedade
comum dava causa a discussões e reclamações sobre o modo de distribuir as coisas; b) a
propriedade comum favorecia a negligência de cada um no tratamento das coisas de todos e,
pelo contrário, a propriedade privada estimulava que cada um se dedicasse ao que lhe era
próprio; c) a propriedade privada estimulava os prazeres naturais, em particular o amor
próprio; d) a propriedade privada favorecia a amizade, pelo prazer que constituía ajudar e
obsequiar os amigos; e) a propriedade privada tornava possível o exercício de virtudes, como
a generosidade e a moderação. Assim, Aristóteles concluiu pelo entendimento de que a
propriedade devia ser, de modo geral, privada, mas comum quanto ao seu uso. O uso comum
não alterava a natureza essencialmente privada da propriedade, mas antes a pressupunha.

Portanto, Aristóteles não era um defensor do caráter sagrado da propriedade privada. A


propriedade privada devia estar limitada pelo uso comum. Inclusive os cidadãos mais ricos
deviam distribuir uma parte das suas receitas entre os cidadãos mais pobres, não como uma
exigência do Estado, mas como uma consequência dos bons costumes. Daí porque o Estado
ideal para Aristóteles assegurava, também, alguns serviços públicos a todos os cidadãos, ricos
ou pobres: educação, refeições, justiça e segurança. Reforçando seu argumento, Aristóteles
deu o modelo de Esparta, onde a propriedade era individual, mas se fazia o uso comum dela
quando necessário. Por exemplo, os escravos eram usados em comum e, quando necessário,
também os cavalos. Embora cada cidadão tivesse sua propriedade, uma parte dela era para uso
dos amigos, outra parte para uso de todos e, por fim, uma terceira parte só para uso pessoal.

Aristóteles apontou ainda outra razão de peso para explicar sua preferência pela
propriedade privada dos bens e pelo seu uso comum: o imenso prazer gerado pela
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propriedade. Outro derivado é o prazer que os amigos tiram da ajuda prestada aos amigos.
Aristóteles considerou a virtude da amizade como pressuposto para a vida feliz (eudaimonia).
Sem propriedade privada, os amigos ver-se-iam incapazes de acudir às necessidades dos
amigos e de colocar ao serviço deles alguns dos seus bens. Sem propriedades privadas, os
cidadãos ficariam impedidos de exercer duas virtudes essenciais à vida feliz: a amizade e a
liberalidade.

O encanto da propriedade é inexprimível [...]. Mas é uma grande satisfação poder servir a
um vizinho, a um estrangeiro, como é possível quando se é proprietário, fonte
desconhecida de prazer no sistema que, para melhor unir os cidadãos, dá tudo à sociedade
política [...]. Pois como ser liberal se não se tem nada à disposição? (ARISTÓTELES,
2006, p. 263, 1263b).

Por fim, Aristóteles definiu o âmbito subjetivo da propriedade, ou seja, quem devia ser
proprietário. Para Aristóteles, a cidadania devia ser restrita, no contexto da melhor cidade,
àqueles que têm a capacidade natural, a virtude e a disponibilidade de desempenhar as funções
militares e jurídico-deliberativas. Segundo Aristóteles, era conveniente que as propriedades
estivessem nas mãos dessas pessoas, pois era necessário que os cidadãos tivessem uma
abundância de recursos e estas pessoas (os militares e os que deliberavam) eram os cidadãos.
As classes vulgares, dos trabalhadores manuais, não participavam da cidadania. Por outro
lado, a felicidade da cidade, necessariamente acompanhada da virtude, devia ser extensível a
todos os cidadãos e não apenas a alguns. Assim, na cidade ideal, todos os cidadãos deviam ser
proprietários e todos os proprietários cidadãos.

CONCLUSÃO: UMA IDEOLOGIA CIVILIZATÓRIA DOS ESTADOS


CONTEMPORÂNEOS COM RAÍZES NA POLÍTICA DE ARISTÓTELES.

A primeira conclusão a que chega este estudo, portanto, é a tese de que o


desenvolvimento do conceito normativo dos conteúdos dos direitos humanos teve alguma base
no pensamento grego retórico. A relação entre os direitos humanos e a retórica quebra o
preconceito que a tem vitimado tal relação por eras. Assim, embora a retórica tenha sido
relacionada ao engano, à erística, ao longo deste estudo constatou-se que esta é apenas uma
das muitas faces desta arte. Além do ornamento e da persuasão a retórica também não deve ser
confundida apenas com uma boa oratória; a oratória é sem dúvida retórica, mas a retórica é
muito mais que oratória. Foi visto que a retórica aristotélica possui os chamados meios
técnicos retóricos ethos, pathos, logos e também foi visto que ela possui as dimensões
material, estratégica e analítica, mais suas três bases filosóficas comuns aos direitos humanos
em tela: o ceticismo, o humanismo e o historicismo.
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Dentre os fundamentos para a compreensão dos direitos humanos partiu-se da ótica do


direito natural e algumas características que indicavam uma plausível conexão dos direitos
humanos com o pensamento grego sofístico e constatou-se que o ideal civilizatório do
pensamento grego “não é só o espelho onde se reflete o mundo moderno na sua dimensão
cultural e histórica ou um símbolo de sua autoconsciência racional” (JAEGER, 2001, p. 9). É
dali que deriva a concepção do indivíduo na sociedade.

Mais que uma avaliação acerca das influências ideológico-partidárias que


provavelmente tenham influenciado a formação dos direitos humanos, o que não se desejou
neste estudo, para evitar assim, quaisquer desvios na finalidade, buscou-se observar as
estratégias bem sucedidas ou não na evolução dos conceitos que por fim se incorporaram,
principalmente na Constituição brasileira.

Além de constatar que há uma relação entre as características sofísticas da


universalidade humanística e de aplicabilidade relativa aos conceitos com as características
atuais dos direitos humanos, discussão retórica acerca do binômio universalidade/relativismo
que lançou bases para um progresso e uma mudança radical no pensamento ocidental sobre as
relações verticais do Estado/cidadãos e horizontais entre os variados povos e suas distintas
culturas, também se percebe que há indicações de que Aristóteles, mesmo influenciado pela
ontologia das idéias de seu mestre Platão, produziu uma nova ideologia civilizatória que foi
apreendida inicialmente pelo mundo ocidental muito tempo depois, longe de justificativas
meramente naturalistas e que foram incorporadas, internacionalizadas, “recentemente” aos
sistemas normativos de formas expressas e tácitas em seu direito corroborando com a tese de
que o desenvolvimento do conceito normativo dos conteúdos dos direitos humanos teve
alguma base no pensamento grego.

Outra constatação é que a nova ideologia civilizatória, a partir dos escritos


aristotélicos, produziu uma forte influência na ideologia liberal do século XVIII, que
absorveu os ideais de proteção à vida, importou os conceitos de liberdade e igualdade de
forma parcial, mas se afastou dos ideais propostos por Aristóteles na Política sobre a questão
da propriedade.

Observou-se que política para Aristóteles está vinculada a um único objeto, a


felicidade humana no convívio da polis, tanto do indivíduo como cidadão da polis como do
político que busca o bem coletivo, daí ser a política de então considerada uma ciência prática.
Para ele também, democracia não significava meramente o governo do povo ou o governo da
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maioria. Democracia era o governo dos homens livres, não de uns poucos livres e ricos, mas
dos homens livres que detêm o poder soberano com o objetivo de promover satisfação,
felicidade e o bem-estar da maioria. Logo, sob tal perspectiva e finalidade, suas considerações
sobre o direito à vida, à liberdade, à igualdade e à propriedade são mais do que pertinentes,
são e foram ao longo de séculos, persuasivas em sua retórica positiva.

Da mesma forma, sob uma influência posterior, as constituições modernas dos Estados
contemporâneos, em busca de um discurso retórico atualizado, acolheram os ideais
protecionistas de igualdade e liberdade, também defendidos pelos liberais, e foram buscar em
ideais socialistas, as antigas proposições gregas da função social, ou como diria Aristóteles,
“de uso comum para uma vida feliz”, no que diz respeito à questão da propriedade, deixando
esta de ter um sentido pleno, para se sujeitar à proposta grega, implementada pelos limites do
uso comum, resgatando em suas raízes históricas a totalidade do pensamento clássico, como
forma de se ajustar às propostas retóricas atuais para a defesa dos direitos humanos, mesmo
que de forma inconsciente.

Assim, sob o alcance da retórica clássica, capaz de integrar o binômio universalidade-


relativismo, produziu-se o híbrido integrador e harmônico entre duas ideologias cridas como
antagônicas, mas que não teriam mais influência dominante no contexto retórico atual, uma
vez que a maioria das diferenças entre ideologias radicais de direita ou de esquerda não são
mais acolhidas pelos grupos políticos e as constituições dos Estados contemporâneos têm
buscado adequar seu ordenamento jurídico a uma argumentação retórica mais condizente
com necessidades e anseios atuais não mais atrelados aos meros discursos classificatórios
com fins simplesmente doutrinários.

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