Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Resumo: Este artigo apresenta uma comparação da retórica do pensamento grego clássico
confrontado com as conceituações atuais de direitos humanos, de suas características
constitutivas, principalmente ao tempo em que se elaborou o texto da Constituição brasileira.
Estuda inicialmente características do pensamento dos gregos, dos sofistas e de Aristóteles
como retórico e os atuais conteúdos dos direitos humanos, confrontando-os, na tentativa de
estabelecer uma relação histórica. Para isso, delimita o binário universalidade/relativismo
como forma de questionar a justificativa do direito natural para os direitos humanos ante uma
observação aristotélica a partir da obra A Política. Reconhece, por fim, que tal base histórica
influenciou os conteúdos liberais dos direitos humanos individuais, hoje internalizados nos
vários ordenamentos jurídicos dos países signatários da Declaração Universal dos Direitos
Humanos.
1
José Lourenço Torres Neto é Advogado, Bacharel em Direito pela Faculdade Maurício de Nassau campus
Recife/PE e membro pesquisador do grupo de pesquisa do PPGD da UFPE sobre Retórica das Idéias Jurídicas do
Brasil sob orientação do Prof. Dr. João Maurício Adeodato.
2
Como referenciais teóricos foram utilizados os autores Fábio Comparato, John Locke,
Werner Jaeger e W. K. C. Guthrie, estes últimos famosos historiadores dos sofistas e dos
gregos, que comparados com o texto aristotélico demonstram a tese de que o desenvolvimento
do conceito normativo dos conteúdos dos direitos humanos teve alguma base no pensamento
grego.
Para que se entenda a relação entre os direitos humanos e a retórica é importante desde
logo quebrar o preconceito que a tem vitimado por eras. Não poucas vezes a retórica tem sido
relacionada ao engano, à erística. Esta é apenas uma das muitas faces desta arte. De forma
positiva, retórica também inclui ornamento e persuasão, mas não só isso. Uma definição
comum descreve a retórica como a arte de falar bem e de forma convincente. Aurélio
Buarque de Holanda Ferreira, além de defini-la como “eloquência”, também a designa como
“o estudo do uso persuasivo da linguagem, em especial para o treinamento de oradores”
(FERREIRA, 2004, p. 1751). A retórica, para os gregos, consistia em uma techné (τέχνη)
para se falar bem, para se encantar e seduzir um auditório. Porém, a retórica não deve ser
confundida apenas com uma boa oratória; a oratória é sem dúvida retórica, mas a retórica é
muito mais que oratória.
Aristóteles, em seu livro Retórica ou Arte Retórica, (em grego Τέχνη Рητορική, em
latim Ars Rhetorica) analisa e fundamenta vários aspectos da retórica, inicialmente a partir de
três gêneros de discursos: o deliberativo, o judiciário e o demonstrativo ou epidítico
(ARISTÓTELES, 2005, p. 39).
Como as garantias dos direitos humanos não podem ser destacadas dos discursos que
as construíram e constroem, a retórica não pode deixar de ser um elemento constitutivo
chamado também para observar seu conteúdo e análise. Ballweg (1991, p. 175) afirmou que
“da retórica nenhum Direito escapa” e isso certamente inclui os direitos humanos.
como, pelo menos, no ideal do pensamento de alguns autores e filósofos retóricos gregos
como Aristóteles, os conteúdos de liberdade, igualdade e propriedade já figuravam.
Por fim, o terceiro e decisivo capítulo, apresentará aqueles conteúdos e seus conceitos
práticos analisados por Aristóteles em seu livro A Política, como exemplo de direitos acima
da vontade do poder positivo, observação também percebida concomitantemente por
Adeodato (2009, p. 125). É um capítulo remissivo e não poderia deixar de ser já que A
Política é constituída por oito volumes e muitos dos conceitos estão diluídos em suas
observações, ora pessoais ora de outros seus contemporâneos, além de analises de várias
constituições de outras cidades gregas com suas próprias idéias e conclusões sugestivas ao
longo da obra.
Como se observa, o recorte deste estudo se limita à comparação com parte da retórica
clássica, no denominado período axial (COMPARATO, 2001, p. 8) e seus principais autores,
especificamente Aristóteles, seu compilador mais conhecido dentre os gregos. Certamente,
numa sociedade cuja cultura herdada procede também dos ideais do pensamento grego, o
estudo e o retorno a suas raízes helênicas, mais do que um procedimento de importância, é
um tributo às origens, principalmente numa matéria de excepcional relevância como são os
denominados direitos humanos.
suas ligações ideológicas e políticas. Ainda, é um conceito amplo porque está intimamente
ligado à evolução do pensamento filosófico, jurídico, político e sociológico sobre bens
inerentes à humanidade e ao convívio social do ser humano. Incluem, entre outros,
entendimentos sobre liberdade, justiça, igualdade e democracia. Além disso, como dito, existe
toda uma inter-relação com um ordenamento jurídico nacional e internacional historicamente
vigente e dominante.
Embora esse objetivo possa pressupor uma aparente garantia para a ordem jurídica e
social, é de se questionar se essa mesma segurança normativa não veio se tornar um fator
limitador, às vezes paralisante, vez que tentativas classificatórias são argumentos retóricos e
como tal, dinâmicos. Daí porque praticamente se impossibilita conferir uma conclusão
conceitual a esses paradigmas. Além do mais, diante da semelhança com os ideais liberais
de liberdade, igualdade e fraternidade amplamente divulgados no momento histórico que mais
se preocupou em constitucionalizá-los positivamente, os conteúdos dos direitos humanos
terminaram sendo classificados genericamente em gerações, que não passam de argumentos
categorizados historicamente. É possível que o objetivo desse dispositivo classificatório seja
dissipar diferenças, conferindo um status de importância linear e interdependente entre os
direitos aceitos socialmente e suas garantias. Pode ser também um mero artifício justificador
para atingir o objetivo do convencimento, já que negar esses princípios seria o mesmo que
negar os ideais consagrados.
classificar os direitos humanos, fato que atinge todos os grupos do poder constituído. O
Judiciário também incorreu nessa unanimidade ao tentar pacificar os entendimentos dos seus
agentes de atuação. Em vão, ao que parece. O ministro do Supremo Tribunal Federal do
Brasil, Celso de Mello transcreveu definição lacônica ao afirmar num de seus julgados que os
direitos constitucionais civis e políticos são de primeira geração e os direitos econômicos,
sociais e culturais são de segunda geração (STF, 1995, p. 39.206). Apropriação de uma idéia
que, antes de esclarecer, impõe mais imprecisão por sua incompletude. Observe-se que tal
declaração se dá sete anos após a promulgação do texto constitucional vigente, tempo
suficiente para se buscar dirimir qualquer superficialidade do legislador constituinte, caso
existisse. Lembre-se que em décadas anteriores ao referido julgado, pensadores e filósofos do
direito, como Norberto Bobbio, já tinham avançado nessa análise e conceituação (2004, p. 4-
5, 15-24).
agressão a outra vida humana. Sob uma perspectiva humanista, já que a vida é
individualizada, esta não deve ser submetida à descriminação e à servidão. Fato que
desencadeou direitos aos diferentes em suas condições e limitações. A liberdade corresponde
ao comportamento racional independente de restrições e sem coação pelo poder e pela
violência, no qual também é recíproco o limite da liberdade do outro. Embora o texto do art.
3º da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 não tenha incluído a igualdade e a
propriedade, estes direitos podem ser vistos nos artigos 1º e 17 da citada declaração,
respectivamente. Indicação de que os principais valores humanos podem ainda estar em
descobrimento à medida que se cresce em consciência individual e social.
Indo às origens do pensamento do estado liberal, John Locke (2004, p. 91) afirmava
que estes primeiros direitos, entre outros, faziam parte de um estado de natureza ou “lei da
natureza” que ensinava, a todos os homens a partir de sua razão. Contudo, explica, a fim de
que cada um não assuma a responsabilidade de punir os que desrespeitam esse “estado
natural”, o grupo social abre mão de sua liberdade ilimitada e delega parte de seu poder a uma
autoridade pública denominada de o Estado que assume a tarefa de condenar e punir a
infração aos direitos comuns dessa sociedade. O indivíduo, então, se submete ao controle
público para sua própria garantia. Daí procede a institucionalização das garantias e dos
direitos do ser humano que se vê, por exemplo, na Constituição brasileira, tipicamente liberal.
Essa submissão da vontade social ao poder estatal com o fim de obter garantias
institucionalizadas constitui um silogismo de proporções universais. Um conjunto de idéias
8
reiteradamente discutido e superado em seu conteúdo circunstancial nada absoluto, vez que
novas gerações incorporaram outros princípios e possibilidades ideológicas.
É o simples racionalismo, até certo ponto cético, que avalia a devida intervenção do
Estado em relação aos direitos originais que lhe fundamentaram sua existência. Quando o
Estado viola os direitos individuais não está indo contra sua própria criação e se condenando à
autodestruição? Não é sua função respeitar tais direitos para sua própria garantia e punir
apenas aqueles que ameaçam e infringem os direitos comuns que o criaram?
Morais (2005, p. 220) destaca que é a percepção, face uma nova realidade, para o que
ele chama de “universalidade comunitária”, onde o objeto das pretensões dos direitos
humanos atinge a comunidade humana como um todo que perpassa a relação verticalizada do
Estado com o indivíduo e representa uma evolução de direitos que primeiramente pertenciam
a certas parcelas da humanidade e do seu patrimônio singular para algo mais abrangente e
supra-estatal.
9
Esse dual traz como marco a característica de que a universalidade aplica normas
gerais destinadas a todas as pessoas como seres humanos em cada Estado, sejam nacionais ou
estrangeiras. É a aplicação de princípios ou normas de forma indistinta às pessoas,
genericamente. Contudo, isso parece não significar que se tenha a pretensão de aniquilar as
diferenças culturais de forma mundializada.
Ainda não se pode esquecer a lição de Alexandre de Moraes (2006, p. 27) que afirma
que os direitos e garantias fundamentais não podem ser utilizados como verdadeiro “escudo
protetivo da prática de atividades ilícitas, tampouco como argumento para afastamento da
responsabilidade civil ou penal por atos criminosos” de quem quer que seja. Uma clara
declaração de que tais direitos e garantias não possuem um caráter absoluto e ilimitado, já que
estes, na verdade, também nascem para reduzir a ação do Estado contemporâneo. São limites
tanto para o Estado como para o indivíduo numa subordinação recíproca aos limites impostos
pelo direito. Portanto, o que não deve ser absoluto tem que ser relativo.
11
São estas poucas características aqui delineadas, uma vez aplicadas à discussão
proposta, que permitem inter-relacionar o novo com o antigo à vista das diferenças e de forma
melhor, das possíveis aproximações, uma vez que se conclui que as classificações não
estabelecem limites neste estudo, mas apenas lançam fundamentos de análise para a
compreensão dos referidos direitos.
do pesquisador a percepção de que os códigos citados, de fato foram fontes normativas com
alguma eficácia prática e que os escritos platônicos e aristotélicos tiveram um caráter mais
ideológico. Porém, que mentes estavam por traz dos antigos códigos orientais é um enigma.
A vasta influência dos gregos pode ter sido mais marcante. Possivelmente até sobre aqueles
monarcas muitas vezes por eles preceptados. Repita-se, uma mera possibilidade.
Édipo foi um típico herói trágico. Sendo ingênuo acerca de sua realidade e indefeso
diante de seu destino, sobre ele pairou o justificável e legítimo argumento de ignorar a
verdade sobre suas origens e nada poder fazer para fugir de seu inescapável destino, premissa
cultural da obra, que foi profetizado pelo oráculo de Apolo em Delfos, qual seja, o de matar
13
seu pai e desposar sua mãe, incorrendo numa irreversível transgressão à ordem natural e
trazendo sobre si um pecado familiar e sua conseqüente maldição.
Percebe-se, portanto, que, naquela visão grega o que inclui Tebas, tais transgressões
infringiam leis naturalmente impostas pela divindade no coração humano. Daí, tais ações
foram consideradas verdadeiras aberrações já que, uma vez desposando a própria mãe, tornar-
se-ia irmão e pai de seus filhos, como veio a acontecer, fusão de posições inconcebíveis para a
natureza. O desfecho de tal tragédia foi que Édipo não suportou a revelação de tamanha
desgraça e diante da imensidão de seu infortúnio, estando Jocasta também morta, furou os
próprios olhos e retirou-se da cidade (SOFOCLES, 2008, p. 70). Contudo, daquela união
resultaram os irmãos Etéocles, Polínice e Antígona.
Uma vez vazio o trono e sem os sucessores naturais para pleiteá-lo, Creonte se impôs
como déspota de Tebas, e personificando a tirania, se apropriou, em benefício próprio, da
Diké, as leis escritas, para se manter no poder. Por elas, prestou honras fúnebres a Etéocles,
seu aliado, mas proibiu, sob pena de morte, que o corpo de Polínice fosse sepultado,
obrigando os restos daquele que selou aliança com os argivos para conquistar o poder em sua
terra a ficarem expostos às aves carniceiras, justificando e legitimando seus atos, repita-se,
pelo apego férreo à "manipulável" lei dos homens (SÓFOCLES, 2008, p. 89).
Antígona, com seu comovente amor fraternal, considerou injusta tal proibição e
decidiu prestar a seu irmão o piedoso serviço de enterrá-lo. Esse foi o heroísmo funesto de
Antígona, pois, uma vez tendo sido descoberta sua desobediência, o rei Creonte a condenou a
ser emparedada viva em uma caverna. (SÓFOCLES, 2008, p. 120).
Certamente foi uma posição particular e com fundamento num argumento restringido
pela maioria das leis dos Estados modernos, a auto-tutela. Sobre as conseqüências dessa
postura é que, houve e sempre haverá questionamentos. Aqui, o dilema estava dissociado
entre duas personagens, mas nos indivíduos, e em determinados sistemas legais, eles se
14
embatem numa mesma entidade. Portanto, questões sobre os limites da autoridade do Estado,
do direito positivo, sobre as leis do direito natural, as leis não escritas, “superiores”, não são
um mero posicionamento sobre o que é certo ou errado, justo ou injusto. Na verdade, aí surgiu
claramente a idéia generalizada de direitos subjetivos independentes e acima do direito
positivo que perdurou por eras. Idéia generalizada porque desde o período arcaico não se
aplicava um conceito de direito subjetivo, por exemplo, à liberdade, como se verá melhor
adiante. Aceitando-se esse julgamento, de fato, qualquer lado que se escolhesse geraria a
exclusão do outro. Daí a importância histórica da superação do binômio universalidade-
relatividade tão crucial para entender que, neste dilema, poderia haver alternativas não
excludentes, não desenvolvidas aqui.
Porém, Antígona não tinha dúvidas sobre qual lei seguir. Como qualquer herói do
teatro grego, ela dominou o phobos, o medo. Destemida, ousada e indomável, atreveu-se a
desafiar a tirania de seu tio Creonte e, mesmo ciente da pena de morte que seu ato implicaria,
se recusou a obedecer as leis civis, por achá-las inferiores aos desígnios divinos. Note-se que
ela descreveu as primeiras obras de Creonte do início do drama como advindas de Thémis,
embora, parciais: “[Creonte] sepultou a Etéocles, com todos os ritos que a justiça [Thémis]
recomenda, garantindo-lhe assim um lugar condigno no Hades”, ação, que ela considerou,
sagrada, contudo, as leis posteriores já não tinham a mesma força, pois “nenhum dos dois
[Creonte e seu decreto] é mais forte do que o respeito a um costume sagrado” (SÓFOCLES,
2008, p. 84-85). Isso lhe deu mais força. Os interesses pessoais e sentimentos egoístas de
Creonte que pensaram limitar o que era superior e mais amplo, não a afetaram. Pelo contrário,
a trama demonstraria quão acertada foi a convicção que tomou. O convencimento de Creonte
foi temporário, pois, embora inicialmente nem mesmo as palavras de seu filho, Hêmon, com
insistentes tentativas, o tivessem dissuadido, ao final, ele mudou:
alto preço pago, despertou em todas as platéias, pelo menos, a ponderação sobre a
legitimidade das leis dos homens.
Assim, foi nos gregos que se encontrou o progresso basilar para a cultura e tudo o que
se refere à vida do homem em comunidade. Apesar de todas as realizações artísticas,
religiosas e políticas dos povos anteriores, “a história daquilo a que podemos com plena
consciência chamar cultura só começa com os Gregos” (JAEGER, 2001, p. 5). Jaeger
também afirma que
A importância universal dos gregos [...] deriva da sua nova concepção do lugar do
indivíduo na sociedade. [...] se contemplarmos o povo grego sobre o fundo histórico do
antigo Oriente, a diferença é tão profunda que os gregos parecem fundir-se numa unidade
com o mundo europeu dos tempos modernos (JAEGER, 2001, p. 9).
E continua dizendo que “Demóstenes também diz que escravos em Atenas têm
maiores direitos de discurso livre do que os cidadãos de outros estados” (GUTHRIE, 1995, p.
146). Se não é muito fantasioso, seu entendimento é pelo menos admirável sobre a colocação
aristotélica que demonstra o inconformismo e a crítica àquele momento social grego. No
capítulo sexto do seu livro Os Sofistas, este autor traz colocações, confirmadas por sofistas,
sobre igualdade política, de riquezas, social e racial. Análise que pode ser retomada em
momento diverso para evitar ser prolixo.
analítica às teorias de Platão. Descreve e avalia também constituições de outras cidades, num
verdadeiro exercício de direito comparativo, descrevendo-lhes os regimes políticos e as
formas de governo. Ele também apresenta suas idéias sobre o modo de vida mais desejável
para as cidades e os indivíduos, o que Platão também fez, mas dedica a esses tópicos bem
menos tempo e espaço que seu mestre. Finaliza essa obra com os objetivos da educação e a
importância das matérias a serem ensinadas.
Vemos que toda cidade é uma espécie de comunidade, e toda comunidade se forma com
vistas a algum bem, pois todas as ações de todos os homens são praticadas com vistas ao
que lhes parece um bem; se todas as comunidades visam a algum bem, é evidente que a
mais importante de todas elas e que inclui todas as outras tem mais que todas, este objetivo
e visa ao mais importante de todos os bens; ela se chama cidade e é a comunidade política.
(ARISTÓTELES, 1985, p. 13, 1252a).
O fim da sociedade civil é, portanto, viver bem; todas as suas instituições não são senão
meios para isso, e a própria cidade é apenas uma grande comunidade de famílias e de
aldeias em que a vida encontra todos esses meios de perfeição e suficiência. É isso o que
chamamos uma vida feliz e honesta. A sociedade civil é, pois, menos uma sociedade de
vida comum do que uma sociedade de honra e virtude (ARISTÓTELES, 2006, p. 56,
1281a).
“condições para assegurar a vida de seus membros, ela passa também para lhes proporcionar
uma vida melhor” (ARISTÓTELES, 1985, p. 15, 1253a). Referência clara ao direito à vida
naquelas comunidades, mais que vida biológica, vida como qualidade sem prescindir daquela.
Paralelo que se firma com a Constituição brasileira em seu art. 5º, que ratifica a Declaração
Universal dos Direitos do Homem de 1948, garantindo, antes de qualquer coisa, a
inviolabilidade do direito à vida. Isso porque nada é mais fundamental entre todos os direitos
do que o direito à vida, uma vez que este é pressuposto à existência e ao exercício de todos os
demais direitos.
Como dito, nas comunidades gregas já se percebia certa garantia com respeito à vida
biológica, porém sua análise perpassa a mera existência e busca argumentos para convencer
governos e constituições com respeito a uma qualidade de vida melhor e mais digna. O que
vem a ser uma “vida melhor”, além de ser objeto de exaustivas especulações filosóficas,
encontra em Aristóteles, algumas disposições, no mínimo, interessantes.
Anteriormente, ele já havia dito que há “algo de bom no simples fato de estar vivo” e
isso independentemente da forma como se viva, já que “os homens em sua imensa maioria se
apegam à vida ainda que tenham de enfrentar muitos infortúnios, como se ela contivesse em si
mesma certo encanto e doçura” conquanto essa mesma vida não devesse estar “sobrecarregada
de males penosos demais para ser suportados” (ARISTÓTELES, 1985, p. 89, 1278b). Esse é
um argumento que acompanha toda a obra e para o qual ela está determinada a comprovar.
A vida feliz, quer os homens a façam depender do prazer ou das qualidades morais, ou de
ambos, é encontrada mais frequentemente entre aqueles que cultivam até o excesso as boas
qualidades e a inteligência, mas são moderados quanto à aquisição de bens exteriores, do
que entre os possuidores de bens exteriores em excesso à sua capacidade de usufruí-los, ao
passo que são deficientes quanto às qualidades e a inteligência; não somente desta
maneira, mas também recorrendo à razão se pode chegar a esta conclusão.
(ARISTÓTELES, 1985, p. 220, 1323b).
19
Não obstante, o homem, como cidadão, deve ser livre. Sucintamente, deve-se entender
a liberdade grega não como viver na natureza com a ausência de leis, isso os gregos aplicavam
principalmente aos bárbaros. Desde os gregos arcaicos o homem livre era aquele que pertencia
a uma pólis e estava submetido às suas leis.
“Só nesse espaço público e entre seus iguais o grego é livre, vale dizer, sua cidadania e
sua liberdade não são qualidades atribuídas ao homem enquanto ser humano, como quer o
sentido moderno da palavra, pleno de filosofia cristã e do jusnaturalismo dos séculos XVII
e XVIII; é antes, o pré-requisito essencial para a ação política ou participação no espaço
público” (ADEODATO, 1989, p. 30-31).
Logo, arrematando a idéia, o uso do termo liberdade (eulethería) entre os gregos tinha
uma forte conotação política e jurídica, porque estes viviam numa pólis entre os iguais, sob o
princípio da isonomia, não se deve entender a liberdade entre eles como sendo uma qualidade
da vontade, logo, ligada à subjetividade (ASSIS, 2010, p. 60). Essa transposição do plano
externo para o interno é uma criação filosófica tardia.
Segundo Hannah Arendt (1973, p. 191), em toda a filosofia da Antiguidade não havia
preocupação com a liberdade enquanto fenômeno da vontade. Liberdade, enquanto atributo
da vontade e do pensamento, liberdade como livre-arbítrio, só veio aparecer na tradição
filosófica com o apóstolo Paulo e depois com Santo Agostinho, motivados pela experiência
religiosa e para uma inovadora abordagem argumentativa. Também, a liberdade para os
gregos, segundo Jaeger (2001, p. 228), consistia em se sentirem subordinados, como
membros, à totalidade da pólis e de suas leis. É uma liberdade política que em nada se
assemelha com a liberdade do individualismo moderno. Portanto, entre os gregos, as relações
entre direito e liberdade são relações externas, dependentes de uma organização (a pólis),
“motivo pelo qual não faz sentido, na análise do direito grego, falar de um direito subjetivo no
20
Entre semelhantes, a honestidade e a justiça consistem em que cada um tenha a sua vez.
Apenas isto conserva a igualdade. A desigualdade entre iguais e as distinções entre
semelhantes são contra a natureza e, por conseguinte, contra a honestidade
(ARISTÓTELES, 2006, p.63, 1325b).
criaturas livres, embora não com a mesma forma de comando, mas o da mulher de maneira
democrática e o dos filhos monarquicamente” (ARISTÓTELES, 1985, p. 31, 1259b).
Embora, existissem distinções, preconceitos e discriminações, era certo grau de igualdade que
fazia dos membros da família seres livres. Se livres, então iguais. E nessa igualdade de
condições ele chega a sugerir que fosse um ponto a se considerar, que o Estado cuidasse de
parte de si mesmo ao educar os filhos e as mulheres, sendo necessário “que a educação das
crianças e das mulheres seja conduzida com vistas à forma de constituição adotada, se faz
alguma diferença para a qualidade da cidade que as crianças tenham qualidades e que as
mulheres tenham qualidades” (ARISTÓTELES, 1985, p. 33, 1260b). O que leva à
surpreendente conclusão: “E faz necessariamente diferença [referindo-se à educação
proporcionada pelo Estado], pois as mulheres constituem metade da população livre, e as
crianças crescem para participar do governo da cidade” (ARISTÓTELES, 1985, p. 34, 1260b).
Mais uma inovação relativista ao sugerir transferir ao Estado a educação que era parte
integrante do poder familiar. Prática adotada por algumas comunidades gregas, onde as
mulheres tinham voz em seus lares ou, por raras exceções, em poucos espaços públicos sob a
supervisão e responsabilidade dos pais.
Sem equívoco, mulheres gregas receberem o cuidado de serem educadas pelo Estado
helênico foi um inestimável progresso e o retrocesso que as vitimou em séculos posteriores no
ocidente, foi imperdoável. Como à época das revoluções liberais o mais do que conhecido
fato de relatos acerca de pensadores que, mesmo compartilhando intrinsecamente de ideais
preconizados pela Revolução Francesa, “cujo lema era a liberdade, a igualdade e a
fraternidade, não reconheceram a igualdade entre homens e mulheres” (BARROS, 2009, p.
1139). Esta autora relata sucintamente a trajetória de Olympe de Gouge que depois de,
juntamente com outras mulheres, haver lutado contra a tirania em favor da liberdade, foi
guilhotinada por defender a igualdade entre homens e mulheres (BARROS, 2009, p. 1140).
da relatividade. Que avanço, mesmo em face de uma sociedade oriental como a judaica, que
tolerava a escravidão de conterrâneos por seus iguais e até a auto-escravidão.
comércio era artificial, já que a propriedade devia assegurar uma vida feliz e não se destinava
à troca ilimitada:
Tampouco foi a natureza que produziu o comércio que consiste em comprar para revender
mais caro. A troca era um expediente necessário para proporcionar a cada um a satisfação
de suas necessidades. Ela não era necessária na sociedade primitiva das famílias, onde
tudo era comum. Tornou-se necessária apenas nas grandes sociedades e após a separação
das propriedades (ARISTÓTELES, 2006, p. 23, 1257a).
Assim, das duas maneiras de adquirir e de se enriquecer, uma pela economia e pelos
trabalhos rústicos, outra pelo comércio, a primeira é indispensável e merece elogios; a
segunda, em contrapartida, merece algumas censuras: nada recebe da natureza, mas tudo
da convenção (ARISTÓTELES, 2006, p. 28, 1258b).
Aristóteles apontou ainda outra razão de peso para explicar sua preferência pela
propriedade privada dos bens e pelo seu uso comum: o imenso prazer gerado pela
24
propriedade. Outro derivado é o prazer que os amigos tiram da ajuda prestada aos amigos.
Aristóteles considerou a virtude da amizade como pressuposto para a vida feliz (eudaimonia).
Sem propriedade privada, os amigos ver-se-iam incapazes de acudir às necessidades dos
amigos e de colocar ao serviço deles alguns dos seus bens. Sem propriedades privadas, os
cidadãos ficariam impedidos de exercer duas virtudes essenciais à vida feliz: a amizade e a
liberalidade.
O encanto da propriedade é inexprimível [...]. Mas é uma grande satisfação poder servir a
um vizinho, a um estrangeiro, como é possível quando se é proprietário, fonte
desconhecida de prazer no sistema que, para melhor unir os cidadãos, dá tudo à sociedade
política [...]. Pois como ser liberal se não se tem nada à disposição? (ARISTÓTELES,
2006, p. 263, 1263b).
Por fim, Aristóteles definiu o âmbito subjetivo da propriedade, ou seja, quem devia ser
proprietário. Para Aristóteles, a cidadania devia ser restrita, no contexto da melhor cidade,
àqueles que têm a capacidade natural, a virtude e a disponibilidade de desempenhar as funções
militares e jurídico-deliberativas. Segundo Aristóteles, era conveniente que as propriedades
estivessem nas mãos dessas pessoas, pois era necessário que os cidadãos tivessem uma
abundância de recursos e estas pessoas (os militares e os que deliberavam) eram os cidadãos.
As classes vulgares, dos trabalhadores manuais, não participavam da cidadania. Por outro
lado, a felicidade da cidade, necessariamente acompanhada da virtude, devia ser extensível a
todos os cidadãos e não apenas a alguns. Assim, na cidade ideal, todos os cidadãos deviam ser
proprietários e todos os proprietários cidadãos.
maioria. Democracia era o governo dos homens livres, não de uns poucos livres e ricos, mas
dos homens livres que detêm o poder soberano com o objetivo de promover satisfação,
felicidade e o bem-estar da maioria. Logo, sob tal perspectiva e finalidade, suas considerações
sobre o direito à vida, à liberdade, à igualdade e à propriedade são mais do que pertinentes,
são e foram ao longo de séculos, persuasivas em sua retórica positiva.
Da mesma forma, sob uma influência posterior, as constituições modernas dos Estados
contemporâneos, em busca de um discurso retórico atualizado, acolheram os ideais
protecionistas de igualdade e liberdade, também defendidos pelos liberais, e foram buscar em
ideais socialistas, as antigas proposições gregas da função social, ou como diria Aristóteles,
“de uso comum para uma vida feliz”, no que diz respeito à questão da propriedade, deixando
esta de ter um sentido pleno, para se sujeitar à proposta grega, implementada pelos limites do
uso comum, resgatando em suas raízes históricas a totalidade do pensamento clássico, como
forma de se ajustar às propostas retóricas atuais para a defesa dos direitos humanos, mesmo
que de forma inconsciente.
REFERÊNCIAS
________. A retórica constitucional (sobre tolerância, direitos humanos e outros fundamentos éticos
do direito positivo). São Paulo: Saraiva, 2009.
________. A Política. Tradução Roberto Leal Ferreira. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
________. Retórica. Tradução Antonio Pinto de Carvalho.17. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.
27
ASSIS, Olney Queiroz. História da Cultura Jurídica: o direito na Grécia. São Paulo: Método, 2010.
BALLWEG, Ottmar. Retórica Analítica e Direito. Tradução João Maurício Adeodato. Revista
Brasileira de Filosofia, v. XXXIX, fasc. 163, julho-agosto-setembro. São Paulo, 1991. p. 175-184.
BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho. 5. ed. rev. e ampl. São Paulo: LTr, 2009.
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Nova Ed. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2004. 8ª reimpressão.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Vade Mecum. 8. ed. atual. e amp. São
Paulo: Saraiva, 2009.
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 2. ed. rev. e ampl. São
Paulo: Saraiva, 2001.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 3. ed.
Curitiba: 2004.
JAEGER, Werner Wilhelm. Paidéia. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
KURY, Mário da Gama. Apresentação. In: ARISTÓTELES. A Política. Tradução Mário da Gama
Cury. Brasília: UnB, 1985.
LAÊRTIOS, Diógenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Tradução do grego, introdução e
notas Mário da Gama. 2. ed. Reimpressão. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008.
LOCKE, John. Two treatsises of civil government. Tradução de Cid Knipell Moreira. In: WEFFORT,
Francisco C. (org.) Os Clássicos da política. 13. ed. São Paulo: Ática, 2004.
MORAIS, José Luiz Bolzan de. Globalização, Direitos Humanos e Constituição. Revista da
Faculdade de Direito Maurício de Nassau. Ano 1. n. 1, (2006). Recife: Faculdade Maurício de
Nassau, 2005.
JEBBS, Sir Richard. Perfil Biográfico, Comentários e Apêndice. In: SÓFOCLES, Édipo
Rei/Antígona. Coleção obra prima de cada autor. Tradução de Jean Melville. v. 99. Martin Claret: São
Paulo, 2008.
SÓFOCLES, Édipo Rei/Antígona. Coleção obra prima de cada autor. Tradução de Jean Melville. v.
99. Martin Claret: São Paulo, 2008.
STF - Supremo Tribunal Federal do Brasil – Pleno – MS nº 22.164/SP – Rel. Min. Celso de Mello,
Diário de Justiça, Seção I, pub. 17 nov 1995. p. 39.206.