Revisão: Deborah A. Ratton Diagramação Digital: Deborah A. Ratton/Márcia Lima
Esta é uma obra de ficção. Seu intuito é entreter as pessoas. Nomes,
personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da imaginação da autora. Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é mera coincidência. Esta obra segue as regras da Nova Ortografia da Língua Portuguesa. Todos os direitos reservados. São proibidos o armazenamento e/ou a reprodução de qualquer parte desta obra, através de quaisquer meios — tangível ou intangível — sem o consentimento escrito da autora. Criado no Brasil. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei n. 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal. Capítulo 1 Capítulo 2 Capítulo 3 Capítulo 4 Capítulo 5 Capítulo 6 Capítulo 7 Capítulo 8 Capítulo 9 Capítulo 10 Capítulo 11 Capítulo 12 Capítulo 13 Capítulo 14 Capítulo 15 Capítulo 16 Capítulo 17 Capítulo 18 Capítulo 19 Capítulo 20 Capítulo 21 Capítulo 22 Capítulo 23 Capítulo 24 Capítulo 25 Capítulo 26 Alguns meses depois Eu nasci pobre... E foi no meio dessa pobreza que descobri meu verdadeiro dom. Não torça o nariz para a minha maneira de viver a vida; quando se nasce onde eu nasci, algumas oportunidades se tornam irresistíveis. O dinheiro seduz, o poder vicia e, acredite, ser rico é muito melhor do que ser pobre. Demagogia? Não cabe em minha cobertura com vista de cinco dígitos, nem em nenhuma parte da vida luxuosa que levo hoje. Sou bom com uma arma na mão, um exímio atirador, mas sou ainda melhor como voz de comando. Um estrategista por natureza, que aprendeu a tirar vantagem dos próprios pontos fracos. Foi assim que me tornei quem sou. Eles mataram tudo que eu amava, tiraram meu chão e o teto sobre minha cabeça, mas eu aprendi com os erros do meu pai e do meu avô. Peguei o garoto franzino e medroso e transformei no nome mais temido no Hemisfério Sul. Sozinho, controlo boa parte da distribuição de drogas, abaixo da linha do Equador. Sou eu quem abastece as festinhas dos filhos de políticos e atores famosos, e você provavelmente já cruzou com um dos meus e nem percebeu. Não somos os peixes pequenos, que andam pelas ruas de arma na cintura e com os narizes cheios de pó. Nesse tanque, companheiro, eu sou o tubarão. Defendo meu território como defendo minha vida e é aqui que tudo isso começa. Se mexe com um dos meus, você se coloca em minha mira e, como já expliquei, eu nunca erro um tiro. Meu nome é Nico Huamán e eu sou o rei do cartel. Verônica Respirei fundo, dando mais um chute no saco de areia, e depois outro, e outro, até que meu pé começou a arder. O suor escorria em meu rosto, grudando os fios soltos de cabelo em minhas têmporas. — O caso da brasileira, morta em um acidente na cidade de Aguas Calientes, foi encerrado hoje. O investigador responsável afirmou em coletiva de imprensa esta manhã que não foram encontrados indícios de crime, e o corpo já foi despachado para sua cidade natal, na grande São Paulo. Puxei o ar com força, desferindo socos e chutes, recomeçando a sequência. Odiava o quanto os jornais eram manipuláveis e sentia como se meu peito fosse explodir de raiva e ódio. Sentia-me impotente, mas precisava me acalmar. Ela merecia isso, minha tranquilidade e meu apoio, ainda que fosse a última coisa que eu pudesse fazer por ela. Tirei a roupa e entrei debaixo do feixe de água fria, sentindo os músculos quentes e doloridos começarem a se recuperar. Quando terminei, sequei-me e vesti uma calcinha e um sutiã. Calça jeans escura e uma camisa preta de botões de pérola da mesma cor. Penteei os cabelos claros em um rabo de cavalo baixo. Assim que tentei enfiar o sapato no pé, percebi o hematoma de esforço ali, manchando de vermelho minha pele e deixando clara minha raiva. Peguei a bolsa, enfiei o celular e a carteira dentro dela e coloquei os óculos escuros no rosto. Dirigi sem pensar muito no que fazia, só queria terminar as formalidades e estar livre para o próximo passo. — Você deveria ter me chamado, Verônica... — Meu amigo apertou o passo para me acompanhar. — Precisa parar de fingir que dá conta sozinha... O acidente... — Não foi acidente, Celso... — interrompi. — Karina podia ser jovem, mas tinha formação em escalada e conhecia a região muito bem... Ela não iria simplesmente escorregar de uma montanha... Falei sem encarar meu amigo, estava cansada de tentar convencer a todos que minha irmã não tinha se acidentado, ela tinha sido assassinada. — Cuidou das formalidades? — perguntou mudando de assunto. Aquiesci sem dizer nada. Era a segunda vez em minha vida que tinha que cuidar de um enterro. Quando nossos pais morreram, vítimas de um desgraçado riquinho e chapado, eu era jovem demais para ir atrás de justiça e acabei aceitando as migalhas que o advogado caro dele nos impôs, mas com Karina era diferente. Eu não era mais uma garota boba de dezesseis anos, tinha aprendido a me impor e não ia aceitar menos do que a verdade. Caminhei pela pista de pouso vazia. Os passageiros do voo de Cusco para São Paulo já haviam desembarcado. Um funcionário juntou-se a nós, guiando-nos até o local em que o caixão da minha irmã estava. Ao lado dela, dois agentes de segurança do aeroporto e meu chefe. — O carro funerário acabou de chegar... — Fábio avisou. — Estamos esperando apenas a sua liberação para que o corpo siga até o local do sepultamento. Aquiesci mais uma vez, aproximando-me da grande caixa frigorífica de metal. Uma comissária de bordo aproximou-se empurrando um carrinho com algumas caixas. Dentro delas estava tudo que havia pertencido a Karina. — Tem certeza de que não prefere pedir uma autópsia? — Fábio perguntou, enquanto eu assinava os papéis para o despacho da bagagem e do corpo. — Acha mesmo que o desgraçado ia deixar alguma pista nela? — devolvi. Fábio respirou fundo, soltando o ar devagar. Era um policial experiente. Tinha cuidado de mim e me ensinado tudo que eu sabia, desde que fui transferida para a divisão de homicídios. Podia pensar como eu, mas jamais iria admitir, ao menos não sem provas. — Verônica... Não cause problemas... — pediu. Encarei-o por alguns segundos, mas mantive a boca fechada. Eu não me importava nem um pouco de foder com a minha vida e a minha carreira, mas não ia deixar que isso respingasse nele. Um dos funcionários destravou a porta e um caixão preto e dourado foi retirado de dentro. Acompanhei com os olhos, enquanto minha irmãzinha caçula era empurrada para dentro do furgão preto, não queria machucá-la ainda mais. Conhecia bem a fama do desgraçado com quem ela havia se envolvido, não era à toa que ele era conhecido como El Condor... Na cultura Inca, o Condor era a divindade mais alta, o responsável por despachar as almas, e ele conhecia muito bem os meios para passar despercebido. A porta se fechou e eu cerrei as mãos em punho. Sentia os olhos queimarem, mas nem tinha certeza se conseguiria chorar. Eu queria vingança, crua e sem piedade. Sangue por sangue... Nada além do merecido. Destravei as portas do carro e acomodei as caixas em meu porta- malas. Celso entrou comigo, mesmo que eu não o tivesse convidado. Dirigi logo atrás do furgão da funerária, direto para o cemitério. — Tem certeza de que quer fazer isso assim tão rápido... Verônica... — Meu amigo respirou fundo. — Sei o quanto odeia enterros e toda essa coisa de velório e cemitério, mas... — Não há nada ali, Celso... Nada além de um corpo... Minha irmã já se foi faz tempo e, quanto antes a enterrar, mais rápido ela poderá descansar... Karina tinha sido encontrada boiando em um pequeno braço do Urubamba. Ficara desaparecida por mais de cinco dias, então não havia razão para estender o funeral além do necessário. Não tínhamos parentes próximos e os poucos amigos que ela havia deixado no Brasil, depois de três anos longe, não iriam despedir-se dela naquela circunstância. O policial aquiesceu. Conhecia-me bem, já que trabalhávamos juntos havia um bom tempo. Desci do carro e caminhei até a sala de cremação, com Celso ao meu lado. Sentei-me em um dos bancos e esperei, até que ela entrou empurrada por dois funcionários. — Quero vê-la... — pedi, aproximando-me do caixão. — Senhora... — O homem grisalho coçou a cabeça, não sabia bem como continuar. — Não me importo com o estado, acredite... Eu não vou me impressionar... — Tirei o crachá do bolso e mostrei a ele. O homem aquiesceu e depois abriu a tampa do caixão, deixando-a ao lado da coroa de flores que o departamento de homicídios havia mandado. Dei mais um passo e acariciei seus cabelos carinhosamente. A tatuagem de coração ainda estava lá, em seu pulso direito. Olhei a minha por instinto e acabei soltando uma lufada de ar. Vou fazê-lo pagar, Ka! Juro que vou... Nicolas Curvei meu corpo em direção ao sol poente, fazendo uma reverência. Tinha envergonhado minha linhagem e falhado com ela. O vento soprou suave, como se a garota dos cabelos cor de mel estivesse ali. Apertei os olhos cobrindo-os dos reflexos do guarda-corpo de vidro. Lá embaixo Cusco quase desaparecia, no meio da névoa de poeira laranja. — Parece que vai chover, senhor... — Nacho, meu homem de confiança, falou, mas eu não respondi. — Estranho... Bem no meio do verão... — comentou. Ignorei-o. Pensamento longe, traçando os próximos passos, até que o primeiro pingo caiu. — Parece que até os deuses estão chorando... — constatou. — Pobre garota... Levantei-me alisando os cabelos para trás. Sentindo a garoa fina na pele. O vento lá de cima balançava minha camisa e despenteava-me. — Os deuses choram sempre que um inocente morre, Nacho... Bati em suas costas e segui para dentro. Gostaria de estar presente em seu funeral, mas sabia que não era sensato. Karina Malta trabalhava para mim. Nossos verdadeiros negócios podiam não ser conhecidos, mas era impossível que meu nome não fosse ligado ao dela de alguma maneira. Livrei-me das roupas empoeiradas encarando minha figura no espelho de corpo inteiro. El Condor... O grande dono dos céus, elo entre o divino e o profano... Descendente do grande Inca... Corri os olhos pela tatuagem de pássaro que tomava meu peito e ombros. Não podia deixar que o assassinato da garota ficasse impune. Em meu território o único que tinha o direito de matar era eu. Entrei dentro da banheira. A água morna e a hidromassagem ligada relaxavam meu corpo, mas a cabeça continuava cheia de pensamentos. Tinha levado um golpe e precisava me recuperar, mas como? Sem levantar suspeitas no desgraçado do wakagashira. A porta se abriu devagar, passos suaves pelo piso claro até que a figura esguia parou ao lado da banheira. — Não estou de bom humor... — avisei. A morena de seios fartos desceu o zíper do vestido e deixou que a peça de roupa caísse no tapete. A calcinha preta transparente teve o mesmo destino. — Posso ajudá-lo a relaxar, senhor... Sabe que sou boa nisso... Peguei o maço de cigarros e acendi um, dando um trago longo e soltando a fumaça para cima. Não respondi, então ela continuou. Ajoelhada entre minhas pernas, acariciou meu pau, fechando os dedos ao redor dele. Começou o movimento de fricção até que fiquei completamente duro. Seu dedo polegar girando em círculos sobre a glande exposta, misturando minha lubrificação com água morna da banheira. Abaixou-se um pouco mais, segurando os seios, um em cada mão e os apertando contra minha ereção, em um delicioso vai e vem. Encarava-me com os olhos verdes cheios de desejo. Estava acostumada a me servir e não era obrigada a isso. Enfiei a mão em seus cabelos escuros, torcendo-os contra meu punho, guiando sua cabeça para baixo. Ela obedeceu, recebendo meu pau em sua boca, sugando e acariciando com a língua. Soltei-a para que voltasse à superfície quando o ar lhe faltasse, mas ela continuou. — Hum... — o gemido deixou minha boca sem que eu pudesse evitar. Fechei os olhos e, por um segundo, esqueci toda a merda em que estava metido, até que meu telefone vibrou na beirada da banheira. Estiquei a mão e reconheci o número internacional no mesmo instante. — Sinto muito, docinho... Nosso assunto terá que esperar... — avisei. A morena encarou-me desapontada. — Se quiser continuar, eu... Afastei com a palma e levantei-me, enrolando a toalha em minha cintura. — Assunto importante... Não quero distrações... — Dei um trago no cigarro e amarrei a toalha em torno da cintura. Encostado contra a bancada, dei mais um trago no cigarro, prendendo a fumaça enquanto atendia a ligação. — Recebi sua fotografia... — a voz com sotaque arrastado disse do outro lado da linha. — Se viu, sabe que não vou ficar em silêncio... — Não esperava que ficasse... — Fez silêncio e eu também. — Nossos homens, problema nosso... — Desde que ele não se meta em meu caminho... — avisei. — Não comece uma guerra, Huamán... Sabe bem o que houve na última... Eu sabia, ainda me lembrava do que senti quando o encontrei no beco. O rosto afundado em uma poça de sangue pegajoso e escuro, mãos amarradas para trás e pés decepados. Meu pai teve os olhos arrancados e o corpo mutilado enquanto ainda vivia. Fora vítima da Yakuza porque ousou se envolver com uma das escravas sexuais do filho do oyabun. Virei a cabeça para cima, encarando o teto de gesso do meu banheiro luxuoso. O pequeno cartel ao qual eu pertencia tinha entrado em guerra com a máfia japonesa quando meu pai fugiu do Japão com a garota e, mesmo que o preço dela tenha sido pago, o da traição foi cobrado com juros e todas as correções possíveis. Meu avô morreu assim, no meio de uma disputa que não pôde evitar, sem honra ou justiça, como um pobre diabo. Para ter o corpo dele de volta, oferecemos a trégua que, para nós, tinha gosto de derrota. Era a triste história da minha vida e também o que a ligava a Shin Nakai. Tínhamos um começo diferente e um final parecido, sede de poder e vingança. — Como ela está? — perguntei depois de um longo silêncio. — Bem... — Conseguiu impedir o disparate daquele filho da puta do seu pai? — xinguei em espanhol, tinha certeza de que o japonês compreendia, já que era a língua materna da sua mãe. — Farei no momento certo... — respondeu em seu inglês polido. — Estamos quase sem tempo, Nakai... Ou você resolve de uma vez ou... — Esse não é um problema seu, Huamán... Yuki é minha irmã... — interrompeu. — Não, meu caro... Ela é nossa irmã! Verônica O avião começou a se aproximar do chão e a cidade lá embaixo foi se mostrando devagar. Nuvens espessas e alaranjadas encobriam boa parte do céu, como uma densa camada de poeira. Afivelei o cinto e esperei até que o processo de aterrissagem fosse concluído. Ninguém sabia da minha ida ao Peru. Nem mesmo Celso ou Fábio, que eram os melhores amigos que eu tinha, se é que colegas de trabalho contavam como amigos. Eu sabia que, no momento em que um deles descobrisse minha tática de passar despercebida e tentar descobrir algo, falharia. Fábio havia me afastado do trabalho por quinze dias. Tempo que ele julgava necessário para que eu pudesse viver meu luto em paz, trancada no apartamento, chorando e cuidando das poucas coisas de Karina que ainda estavam em casa, mas, definitivamente, chorar e sofrer não estavam nos planos, o que eu queria era vingança. Peguei minha bagagem de mão e me posicionei no corredor, esperando pelo momento de descer, estava ansiosa para pisar naquele maldito pedaço de terra, acelerada, pensamentos a mil, mas, assim que desci os primeiros degraus do desembarque, senti o ar me faltar. Aquela leve tontura que faz você puxar fundo para respirar melhor. Segurei no corrimão, piscando algumas vezes. Eu sempre fui atlética, mesmo antes da polícia. Gostava de me exercitar e praticar esportes. Tinha um bom preparo físico e treinava para a corrida de fim de ano todos os dias pela manhã, nunca achei que pudesse ter algum problema para respirar no altiplano. — Tudo bem, senhorita? — Um homem de meia-idade com feições indígenas tocou minhas costas gentilmente. Aquiesci. — Respire devagar... — Sorriu. — Logo irá se acostumar com o nosso ar e poderá aproveitar as férias... Devolvi um meio sorriso, embora estivesse longe de estar em férias. Caminhei pelo diminuto aeroporto, a poeira laranja manchava o piso e as paredes que em algum momento deveriam ter sido brancas. Vendedores ambulantes, turistas e moradores caminhavam sem muita pressa. Uma senhora com o bebê amarrado nas costas passou por mim, cumprimentando com um aceno de cabeça. Lhamas, alpacas e tecidos coloridos em tons vivos estavam por toda parte. Peguei minha mala na esteira e segui até a saída. — Precisa de um táxi, moça? — Um senhor com jaqueta de tecido marrom acenou. — Preço bom... Concordei com a cabeça e ele acomodou minha mala no bagageiro de um Fiat Uno antigo. Abriu a porta e bateu no banco, levantando mais poeira laranja e quase me fazendo desistir da viagem. Enquanto seguíamos pelas ruas de Cusco, em direção ao local onde eu ficaria hospedada, um pouco da vida peruana ia se mostrando para mim. Era uma cidade cheia de desigualdades. Bairros de casebres de barro e algumas ruas depois, o luxo dos hotéis cinco estrelas. Nunca entendi o que havia levado minha irmã até aquele lugar. Karina era jovem, muito bonita e desenvolta. Estava cursando o primeiro ano de turismo e sonhava em conhecer o mundo. Suspirei sentindo a culpa me corroer. Por que você não veio atrás dela? Por que aceitou uma decisão tão estúpida? — Apertei os olhos segurando o que, talvez, se tornasse uma lágrima. “Você não manda na minha vida, Verônica! Eu tenho vinte e um anos, posso escolher meu destino!” Ela podia, tinha o direito legal e moral para isso, mas não tinha a experiência. Era imatura, deslumbrada, manipulável. Em minha defesa? O que esperar de uma garota que ficou órfã aos dezesseis anos, com uma irmã de treze para criar? Éramos duas crianças brincando de viver a liberdade que todos os adolescentes buscam. Nossos avós? Mal conseguiam cuidar de si mesmos, velhos e doentes, deixaram que a vida nos ensinasse. Eu cresci assim, sem direção, cansada de ter que bancar a mãe. Talvez por isso nunca tenha tido filhos, então, quando minha irmã resolveu sumir no mundo, eu só deixei. Preocupei-me, quis saber, investiguei, mas só deixei. Queria um pouco de paz também, cuidar apenas de mim, nunca imaginei que a receberia de volta dentro de um caixão. A gente precisa arcar com as consequências das escolhas, não é? Aquela seria uma culpa que nunca iria me deixar. Subimos uma rua íngreme com chão de pedras irregulares e o carro pulava tanto, que precisei segurar na alça do teto, sentia-me em cima de um daqueles touros mecânicos em que a gente brinca nas festas de peão. Quando paramos em frente ao prediozinho antigo, quase não acreditei. — É aqui, senhorita... — o motorista avisou, talvez percebendo minha incredulidade. — Já faz um tempo que eles estão em reforma, mas não se preocupe... É seguro em caso de terremoto. Ah, então pronto! Se é seguro para terremoto, ok! — debochei mentalmente, enquanto meus olhos vagavam pela grade verde descascada da entrada. Paguei a corrida, peguei minha mala, encaixei a bolsa de mão sobre ela e abri no anúncio do hotel, só para ter certeza de que estava mesmo no lugar reservado. Era lá, a Casa del Inca... Coitado do Inca, inclusive! Puxei minha mala até a entrada e um sininho, daqueles de vento, tocou quando abri a porta. — Seja bem-vinda, senhorita! — Uma mulher na casa dos cinquenta anos sorriu. Tinha grandes olhos castanhos, expressivos, e um sorriso amistoso, confortável, mesmo sem alguns dentes. — Como posso ajudá-la? — Eu tenho uma reserva... — expliquei. — Verônica Malta... Entreguei meu documento de identidade, não queria usar nada que me ligasse à polícia, de qualquer maneira. Tinha levado minha arma apenas por precaução, não pretendia usá-la fora de serviço. — Aqui está... — Entregou-me um cartão de acesso. — A suíte vinte e três é nosso melhor quarto! Vista para a cidade! Agradeci, pegando o cartão e seguindo até o que julguei ser o elevador, mas era apenas um armário de vassouras. Revirei os olhos e subi os quatro lances de escadas até o segundo andar e, quando o alcancei, parecia que tinha corrido uma maratona de cinco quilômetros. Passei o cartão e abri. O quarto era de tamanho razoável, chão de carpete verde-musgo e paredes revestidas por papel florido de gosto peculiar. Deixei minha mala sobre a cama e caminhei até as cortinas fechadas, abrindo-as. Eu não me importava de ficar em lugares simples, estava acostumada, já que a polícia não me pagava um salário tão incrível assim, e tinha que concordar com a senhora da recepção de que a vista era mesmo bonita. O sol começava a perder força, manchando o céu em vários tons de laranja, e as luzes do Centro lá embaixo deixavam tudo mais bucólico e cheio de sentimento. Estou aqui, Ka... Viu só? Você nunca me convidou para conhecer sua casa nova, mas eu acabei vindo mesmo assim... Até que não é tão ruim! — Sorri, mas era um sorriso triste e pesaroso. Separei uma roupa de dormir e meu nécessaire, depois fechei a mala. Tomei um banho demorado. Ia ficar em Cusco apenas uma noite, na manhã seguinte seguiria de trem para Aguas Calientes. Abri o frigobar e peguei uma garrafinha de água, despejando na boca de uma vez. Sentia como se a poeira do lugar estivesse em minha garganta, fechando tudo e me impedindo de respirar confortavelmente. Liguei meu notebook, de calcinha e camiseta, sentada sobre a colcha florida em tons de verde e bordô. Tinha separado alguns arquivos sobre tráfico humano na América do Sul. O Peru era uma importante rota de saída de meninas, para encher os bordéis no oriente. As mais jovens, e preferencialmente virgens, eram levadas para porões de hotéis de luxo, em Tóquio e Okinawa, depois de usadas à exaustão, entregues para quadrilhas menores em Kamagasaki, de onde raramente escapavam com vida. Não havia provas de que o cartel peruano tivesse envolvimento com a Yakuza, mas, a julgar pela quantidade de meninas retiradas do país por baixo dos panos, ao menos vista grossa eles faziam, e era aí que Karina entrava. Ela havia se envolvido com o desgraçado do cabeça desse cartel, O Condor. Minha irmã fazia bicos como guia de turismo de aventura para alguns dos hotéis de luxo na cidadela Inca e, provavelmente, foi assim que conheceu o bandido. Eu não tinha ideia de como iria encontrá-lo, já que seu rosto não era conhecido pela polícia. Não havia ficha, nem um nome real, apenas El Condor. Para a minha sorte, meu kit de boas-vindas do hotel incluía chá de coca, um sanduíche de queijo e presunto com maionese. Foi o que comi, lendo e estudando qual seria o próximo passo. Estava tão entretida no processo, que quando o telefone tocou levei um susto. — Adivinha onde estou... — Fábio perguntou. Respirei fundo, nem queria começar a conversa. — Comprei cerveja e uma pizza... Achei que minha melhor garota estaria precisando desabafar um pouco, mas, quando cheguei aqui, não a encontrei... Verônica, se me disser que está no Peru... — Estou na praia, Fábio... Não começa... Eu disse que não ia investigar, lembra? — menti. — Eu acreditaria, se não a conhecesse... — concluiu. — Verônica... Por favor... — Soltou o ar dos pulmões com força. — Imagino o quanto dói... De verdade..., mas se você fizer uma besteira vou acabar recebendo-a de volta, como Karina... Isso é assunto grande... Se você tiver mesmo razão, olha... — Prometo que estarei na delegacia em quinze dias, Fábio... — encurtei, não havia razão para insistirmos. — Agradeço a preocupação, mesmo, mas estou de férias, não há nada que você possa fazer... — Cuide-se! — pediu. — Eu vou! Desliguei o telefone e fechei o computador. Meu trem saía às seis da manhã e eu não queria me atrasar. Nicolas — Chefe... — a voz de Nacho quebrou o silêncio da sala. — Ela vai para Aguas Calientes ao amanhecer... Como o senhor imaginava... Dei mais um trago no cigarro, soltando a fumaça para cima. Nuvens espessas cobriam a cidade ainda escura pela madrugada. Virei-me de frente. — Mande preparar os voos — avisei. — Partimos em uma hora. Troquei a calça de elástico e a camiseta pelo terno escuro. Camisa branca de gola italiana, sem gravata. A corrente de ouro com o medalhão de La Santa Muerte brilhando de relance em meu pescoço. Separei o cachecol que tinha sido dado a mim por um grande amigo artesão. Em uma das pontas, meu sobrenome havia sido tecido junto com o padrão azul desbotado, em tons de cinza, Huamán, como meu hotel. Sempre fazia frio no altiplano, independente da época do ano, ao amanhecer e ao anoitecer. Um dia com quatro estações, diziam os folhetos de turismo. Peguei a semiautomática e acomodei na parte detrás da cintura. Guardei os óculos escuros no bolso interno do blazer e, quando voltei à sala, Nacho já esperava por mim com a mala. Voamos em um jato executivo fretado de Lima até Cusco e de lá, ainda no aeroporto, o helicóptero particular do meu hotel nos esperava, já pronto para o voo. Eu havia ganhado um bom pedaço de terra, no topo da velha montanha, quase ao lado da cidadela. Aceitei como pagamento pela dívida do filho do ex-presidente e como garantia de sua vida inútil. Anos depois, transformei o lugar em um belo resort de aventura, luxo exclusivo, reservado a uma pequena parcela da população que podia pagar. Usava minha rede de hotéis para lavar dinheiro e proteger minha imagem de jovem empresário de sucesso. Era como tinha feito para continuar vivo, já que minha cabeça estava a prêmio havia algum tempo. — Mande um carro com motorista para a estação de trem... — avisei à secretária do hotel, logo que o helicóptero levantou voo. — Achei que iríamos para o hotel, senhor... — Nacho comentou. — Os homens... — Quero vê-la com meus próprios olhos... Encarava a foto da garota em meu celular. Tinha lido sua ficha mais de uma vez. Vida nada divertida, sem namorado, poucos amigos, nenhum parente vivo. Frequentava uma academia de luta e pedia junk food praticamente todos os dias, mas o mais importante de tudo é que ela era uma policial, da divisão de homicídios. Eu a deixara sob minha mira porque sabia que Verônica não era esperta o suficiente para se manter longe de problemas e, se ela se metesse em confusão, atrapalharia meus planos de vingar a morte de Karina da maneira que eu pretendia. Verônica Malta... Cabelos loiros, lisos e longos. Pele clara e delicada, como a da irmã. Tinha um rosto de boneca e aquele ar de puta safada que deixa qualquer homem duro só de olhar. O corpo pequeno e esguio enganava qualquer um que a desafiasse. Eu havia recebido um vídeo curto de um de seus treinos e a garota era boa de briga. Minha curiosidade havia sido ainda mais aguçada desde o dia em que encontrei um álbum de fotos no quarto de Karina e, depois de conhecer um pouco mais sobre ela, eu só podia dizer que estava ansioso com o nosso encontro. Precisava fazê-la crer que eu não era culpado e que tinha tanto interesse pela justiça quanto ela, mas não podia revelar quem eu era. O Condor precisava continuar sem rosto, se eu quisesse manter o meu sem nenhum furo de bala. O piloto estacionou o helicóptero ao lado da estação e eu desci assim que a porta foi aberta. Tinha alguns minutos antes que o trem chegasse e precisava finalizar meu plano. Entrei na estação e logo fui cumprimentado. — Seja bem-vindo de volta, Sr. Huamán... — Uma das funcionárias sorriu. — Precisa de algo? — Estou esperando pelo meu motorista... Logo que ouvi o apito, esperei em um lugar estratégico até que ela desceu. Carregava uma mala de mão e um mapa, ar de perdida, tentando entender onde estava e para onde ia. Aguas Calientes era uma cidadezinha antiga e sem nenhuma infraestrutura, procurada apenas por causa de Machu Picchu, então não era de admirar que ela estivesse com dificuldades. — Vai falar com ela? — meu homem de confiança perguntou. — Quer que eu lhe ofereça carona? — Não! — avisei. — Espere por mim no carro, eu o encontro em breve. Tirei o cachecol do pescoço e o joguei sobre o antebraço, caminhando rápido em sua direção. Assim que passei por ela, esbarrei meu ombro com força, desequilibrando-a. A garota voltou o rosto para mim, irritada e pronta para xingar, mas, assim que eu a segurei, firme, ajudando-a a se manter em pé, ela parou. — Perdão... — pedi em um espanhol polido. Seus olhos se desviaram por um segundo, direto para minha mão grande em torno do seu braço, e então eu a soltei, deixando o cachecol cair propositalmente. Meneei a cabeça e virei as costas, seguindo meu caminho até sumir no meio da multidão. Pela janela, ainda encarei seu rosto confuso mais uma vez e vi quando se abaixou e pegou o cachecol no chão. Olhou para os lados procurando por mim, mas não encontrou. — Deixou seu cachecol cair, senhor... Sei o quanto gosta dele... — Nacho avisou. — Quer que eu o busque? — Não! O homem encarou-me sem entender. — Quero que ela o entregue para mim, quando decidir me procurar. Verônica O homem sumiu no meio da multidão e eu fiquei lá, com o cachecol dele nas mãos, sem ter como entregar. Procurei-o com os olhos por algum tempo, mas, logo que os passageiros do trem se dispersaram e eu fiquei praticamente sozinha na estação, desisti. Huamán... De onde eu me lembro desse nome? Uma rajada de vento frio bateu contra meu rosto, trazendo o perfume masculino e marcante até minhas narinas. Senti meu corpo todo se arrepiar. Droga de clima dos infernos! Ontem um calor de matar, hoje um frio de julho! Ajeitei a bolsa nos ombros e segui pela rua de pedras. Tinha deixado a mala maior na pousada em Cusco, sabia que não seria fácil carregar muita bagagem pelas ruelas estreitas de Aguas Calientes. Eu esperava que o lugar fosse precário e pobre, tinha ideia, pesquisado um pouco antes da viagem, mas acabei me surpreendendo ainda mais. Fora das ruas principais, feitas para turistas, a pobreza era explícita. Esgoto escorrendo pelo meio-fio de ruas malfeitas, casebres de madeira e alvenaria sem acabamento e crianças descalças, pedindo por “una plata”. A pousada que eu havia reservado ficava no alto do morro, então a subida não foi das mais agradáveis, principalmente depois que descobri minha sensibilidade à altitude. Tive que parar mais de uma vez para tomar fôlego. Fiz o check-in e entrei no pequeno quarto. Havia um beliche de madeira crua e uma mesa de cabeceira, além de um armário sem portas, para pendurar alguma roupa. O banheiro era igualmente pequeno, com louças marrons e revestimento florido em tons de amarelo. Lavei o rosto na pia, passando um pouco de água no pescoço. Tinha andado tanto que estava suando, mesmo que o clima lá fora ainda fosse frio. A mala estava sobre a cama, e ao lado dela, o cachecol azul. Huamán... Sentei-me na poltrona com o celular nas mãos, digitei a palavra no buscador e, instantaneamente, as fotos do luxuoso hotel encheram minha tela. “Solar Huamán... A atmosfera Inca ao alcance dos seus olhos” — dizia o slogan, no banner principal do site. No mesmo instante me lembrei. Karina havia falado daquele lugar comigo. Tinha até enviado um folder para mim por e-mail, queria que eu viesse conhecer onde estava trabalhando. Aquela fora uma de nossas últimas conversas. Respirei fundo. Talvez, se eu a tivesse escutado... Não tinha como, Verônica! Você não podia concordar com o as ideias dela! — Balançava a cabeça em negativa, tentando convencer a mim mesma. — Uma garota de vinte e poucos anos, largando tudo para viver de bicos? Não tinha como... Não... Você não podia... Você... — Soltei uma lufada de ar. — Você tinha que ter dado apoio, pelo menos... Deixou-a sozinha... Fui rolando a tela para cima e observando as fotos e comentários. “Hotel VIP”, dizia um deles. “O melhor em que já me hospedei. É como voltar no tempo e ser um convidado de honra do grande Inca...” Revirei os olhos. Um bando de riquinhos metidos, isso sim! O valor de uma diária era quase um terço do meu salário mensal e meu salário nem era tão ruim. Quando cheguei ao fim da página, parei. Havia uma foto do recebimento de um prêmio oferecido ao hotel por uma revista importante de turismo internacional, e lá estava ele, o homem do cachecol. Nicolas Huamán... Então era esse o nome dele... Nicolas... Encarei o rosto sisudo com um leve ar de sorriso. Tinha as sobrancelhas grossas, uma barba cheia bem aparada e olhava diretamente para a lente do fotógrafo. Engoli em seco a sensação estranha que aquele olhar me causava. Não sabia explicar, mas meu faro de policial dizia que havia mais em Nicolas Huamán do que ele deixava transparecer. Não vai ser fácil, Vê... Um homem como ele não costuma ser acessível, mas talvez esse cachecol... Meu estômago roncou e eu decidi conferir o relógio em meu pulso. Era quase meio-dia e tudo que eu havia comido, desde o dia anterior, era um sanduíche e uma garrafinha de refrigerante. Estava com fome, zonza e com uma enxaqueca infernal que eu não sabia se vinha do mal de altitude, da fome, do cansaço, das noites sem dormir ou da culpa que eu sentia por ter deixado minha irmã morrer. Karina podia ser uma garota boba e sem nenhuma responsabilidade, mas era minha obrigação protegê-la, eu tinha prometido isso a minha mãe enquanto via o caixão sumir descendo devagar para dentro da terra. Peguei a bolsa transversal pequena, que usava para guardar meus documentos e a arma. Decidi aproveitar a fome e fazer uma pequena volta de reconhecimento pelas redondezas. Precisava descobrir algo sobre o desgraçado do Condor. Talvez, se eu conseguisse ter minha vingança, aplacasse um pouco da culpa que sentia. Caminhei pelas ruas movimentadas do Centro, cheias de lojinhas de souvenirs e meninas vestidas a caráter, puxando filhotes de alpacas e vicunhas pelo cabresto. Uma garota morena, com ar de cansada, passou por mim e sorriu. Fiquei olhando, enquanto ela se sentava no degrau de uma lanchonete e tirava algumas moedas do bolso. Olhou, olhou e depois guardou tudo na bolsinha de lã novamente. — Quer um refrigerante? — perguntei. — Acho que você ainda não almoçou... Se quiser um lanche também... Ela pensou por um segundo, como se tentasse decidir se deveria aceitar ou não. — Eu ainda não almocei... Estou procurando um lugar que venda uma boa comida... Você pode ser minha guia, se quiser... E eu pago o seu almoço... — Sorri. — O que acha? Um segundo depois, o sorriso se alargou no rostinho dela. — Lá! — Apontou em frente, para um restaurante todo colorido e com mesas bem decoradas. — Os turistas dizem que a comida é muito boa! — afirmou. — Ah, mas eu prefiro comida local, sabe? Algo que você realmente ache gostoso... Eu não queria ficar onde os turistas ficavam, não era lá que encontraria as informações de que precisava. A menina pensou por um tempo. — O Chacón! — Sorriu mais largo. — Eles têm o melhor rocoto relleno do mundo! De repente, seu rosto mudou. — Mas não é lugar para a senhorita... É um lugar cheio de homens... E eles não vão me deixar entrar com o Pipo... — Acariciou a cabeça do animalzinho que carregava. — Ah, que pena! — Sorri, colocando a mão em seu ombro. — Mas se quiser me mostrar onde é, eu lhe dou dinheiro e você escolhe um lugar mais legal para comer... Eu adoro comida típica, sabe? Vou amar experimentar esse tal de rocoto! — Tem certeza? — insistiu. — Vou te contar um segredo... — Aproximei meu rosto do dela. — Sou uma garota bem brava... Não tenho medo de homens! — Pisquei e ela riu. — Venha... — Segurou minha mão, arrastando-me pelo meio das ruazinhas. Saímos do ponto mais movimentado, passando por dentro de um espaço para shows vazio, e saímos do outro lado, onde as ruas eram mais vazias. — Ali, naquela placa azul... — indicou o lugar. — Mas eu acho que você deveria pedir a comida e comer lá na praça... — Sorriu mais uma vez. — Ao meio-dia temos a troca da guarda, os turistas gostam muito! — Ótima dica! — Enfiei a mão na bolsinha e peguei uma nota de cinquenta soles. — Aqui... — ofereci a ela. — Você foi uma ótima guia... Coma algo bem gostoso e divida um pouco com o Pipo! — Pisquei e ela riu mais. Assim que a garota virou as costas, eu segui em direção ao boteco com a placa azul. Era um daqueles pulgueiros que eu conhecia como “pé de porco”, bem sujo e cheio de vagabundos que se acham machos, mas era exatamente o tipo de lugar em que eu poderia encontrar alguma informação sobre O Condor. Sentei-me em uma das banquetas altas, junto ao balcão. — Uma cerveja... — pedi. — E um daqueles bolinhos... — Apontei para o que me parecia um tomate, só que um pouco menor, recheado de algo que eu torcia para ser carne moída. O homem detrás do balcão mediu-me de cima a baixo e depois limpou o vão de dentes faltantes com a língua, fazendo aquele barulhinho nojento. Não perguntou nada, mas o jeito como parou os olhos em meu corpo deixava clara a maneira como ele costumava tratar mulheres. Eu tinha noção de que minha figura demonstrava mais fragilidade do que força e nunca tinha me importado com aquilo. Desde que entrara para a polícia, havia aprendido a usar minha aparência como trunfo, então joguei o cabelo de lado, deslizando a mão pela nuca e pescoço, fazendo charme sem parecer óbvia demais, usando minha melhor cara de turista deslumbrada. Um copo americano, daqueles em que a gente costuma tomar pingado na padaria, foi colocado em minha frente, bem ao lado de uma garrafa de cerveja. O bolinho de tomate chegou logo depois, com um garfo e uma faca, que eu evitei olhar duas vezes, para não desistir de comer. — Começou a esquentar, não é? — Sorri para o atendente. — Que bom! Assim consigo aproveitar melhor a viagem... O homem encarou-me por alguns segundos, mas logo desviou o olhar para alguém atrás de mim. — Se precisar de um guia... — Um homem baixo, de cabelos desfiados na altura do pescoço, sentou-se ao meu lado. Tinha traços orientais misturados a feições indígenas bem tradicionais do povo peruano e cheirava a suor, maconha e um daqueles perfumes baratos que lembram banheiro de rodoviária. Sorri para ele como se estivesse interessada e cortei um pedaço do bolinho. Quando enfiei na boca, percebi que era pimenta, e não tomate, e não pude impedir a lágrima solitária de rolar pelo meu rosto. O homem riu, enchendo meu copo com cerveja e oferecendo a mim. — Calma, querida... Isso é forte! — Alisou meu braço. — Vou te deixar o meu contato... — Tirou um cartão de dentro do bolso da camisa verde e colocou em minha mão. — Se quiser passear um pouco por aí, eu conheço os melhores lugares... Segurei a vontade de revirar os olhos, assim como segurei a maldita pimenta recheada em meu estômago. No fim das contas, tinha sido uma bela saída. Nicolas — Quando? — perguntei encarando a vista do meu escritório. — Há uns vinte minutos... — Guille, meu primo e homem de confiança, avisou. — Os homens viram o Chino com ela dentro do Chacón... Balancei a cabeça em negativa, soltando a fumaça do cigarro para cima. O que diabos aquela garota maluca tinha ido fazer no Chacón? Conseguir informações, obviamente... — Suspirei. — Então eu o mando ficar de olho na garota e descubro horas depois que ela está metida com os homens daquele desgraçado do Matsuya... — falei calmamente, encarando Nacho pelo canto dos olhos. — Na-não, senhor! Eu estava de olho nela o tempo todo, chefe! O cabrón nem tentou nada, apenas deixou o cartão com ela, ele só... — Não quero nenhum daqueles malditos cercando a brasileira... — interrompi. — Se ela continuar procurando, vai encontrar e, se encontrar, Nacho... Sabe bem o que vai acontecer com ela, não é? Aqueles demônios não brincam em serviço, ainda mais depois do que houve com a outra brasileira... Agora vá... Tome um trago e volte para a cidade... A noite vai cair em algumas horas e não quero aquela garota estúpida bisbilhotando pelos becos. O homem cumprimentou com um aceno de cabeça e saiu, deixando no escritório apenas Guille e a mim. Ele se levantou e abriu uma das garrafas de uísque na bandeja sobre o frigobar. Encheu dois copos e trouxe um até mim. — Lembra-se do que o vovô dizia? — Vovô está morto... Não foi um chefe tão bom assim, já que morreu tentando fazer um trabalho que ficou para que eu terminasse... — praguejei. — Você está perdendo a mão, primo... Levando para o lado pessoal... Sabe que esse é o começo do fim, não é? Virei o líquido cor de âmbar de uma vez, batendo o copo na mesa por mais. — Vou acabar com aquele japonês filho da puta, Guille, ou eu não me chamo Nico Huamán... — Vai é acabar com a cara enfiada em uma vala qualquer, isso sim... Virei-me de frente para ele e ergui uma sobrancelha inquisidora. — Sabe que comigo não funciona, não é? — debochou. — Eu te conheço desde que você corria das cabras do Epifânio... Sustentei meu semblante fechado, mas logo suavizei. Guillermo e eu tínhamos crescido juntos, correndo pela fazenda do meu avô, nos arredores de Cusco. Era quem me conhecia melhor no mundo e de quem eu não ousava guardar segredo algum. Guille, como o chamávamos desde pequeno, era alguns anos mais jovem que eu, filho da irmã caçula do meu pai. Ninguém sabia ao certo filho de quem ele era, porque Tia Lupe desafiara a todos para proteger o homem que, no fim das contas, nunca a amou o suficiente para peitar Dom Pepe Huamán, meu avô. Encarei o homem em minha frente por alguns segundos e então ele soltou o ar dos pulmões de uma vez. — Acha que não quero vingá-lo? Tio Vigo foi o único pai que conheci, Nico... Quem me ensinou a ser homem e a honrar a família acima de tudo... Continuei encarando-o. — Se acontecer... — Dei mais um trago no cigarro, batendo a ponta no cinzeiro de lápis-lazúli. — Você fica com tudo... Aquela velha ponte, lá na fazenda... Ainda escondo o dinheiro lá, como vovô ensinou... Você pega o que tiver e leva Tia Lupe para... — Ela me mata junto, primo! — interrompeu-me. — Se apareço em casa sem você... Ela mesma dá um jeito em mim, você a conhece... Acabei rindo e Guillermo fez o mesmo, suavizando o clima. — Só quero garantir que aquela garota enxerida não vai enfiar a mão no vespeiro... Eu mesmo vou cuidar de tudo e a despacho para o Brasil ainda esta semana. Quero cuidar do Matsuya com carinho... — Sorri de canto. — E deixar o recado dado para o merda do Nakai... — Se precisar de ajuda... — ofereceu. — Vou precisar que cuide da distribuição enquanto eu resolvo esse problema. Não quero que ninguém pense que o cartel está sem dono. Meu primo aquiesceu. — Parto para Lima ao entardecer... Não se preocupe, a mercadoria vai seguir destino. Depois que Guille me deixou, aproveitei para cuidar de alguns assuntos pendentes da rede de hotéis. Tinha que continuar fazendo o lícito funcionar, para não despertar interesse sobre o ilícito. Eram pouco mais de quatro da tarde, quando minha secretária interfonou. — Sr. Huamán... Thomas Knut chegou. Ele disse que prefere esperar pelo senhor no bar. — Ótimo! Desço em cinco minutos. Desliguei o computador e lavei o rosto e as mãos, ajeitando os cabelos com os dedos. Thomas era um blogueiro famoso. Uma celebridade no mundo do turismo de aventura e havia escolhido meu hotel para uma série de vídeos sobre o altiplano andino. Eu odiava bajular celebridades, mas não era idiota e sabia que meus negócios dependiam disso em alguns momentos, então tinha obrigação de tratá-lo bem. Ajeitei o terno e desci pelo elevador privativo, que ia da minha cobertura até o saguão principal. Assim que avistei o bar, eu o vi. Sentado de costas, admirando a parede de vidro, à beira do desfiladeiro. — É uma bela vista... — comentou assim que eu me aproximei. — Huayna Picchu... A montanha jovem... — expliquei. — É lá que fica o templo da Lua... — Foi de lá que a garota caiu? Cerrei as mãos em punho e engoli em seco. — A polícia acredita que sim, mas, como só encontraram o corpo dias depois, fica difícil precisar o local da queda... — Muita correnteza... — comentou, mas eu não respondi. — É um prazer finalmente conhecê-lo, Nico... — Estendeu a mão. Cumprimentei-o depois de alguns segundos. Queria deixar claro que não ia admitir bisbilhoteiros em minhas terras, já tinha problemas demais com a brasileira enxerida. — Importa-se de darmos uma volta por aí? Dizem que o pôr do sol em Machu Picchu é um dos mais bonitos do mundo... Assim você me mostra o hotel e podemos conversar um pouco. — Será um prazer... Esperei até que ele se levantasse e indiquei o caminho com a mão. O americano metido tinha razão, o pôr do sol em minha terra era um dos mais bonitos que vi, de todos os lugares que conheci na vida. Tinha uma magia no ar e uma imponência latente, deixada por meus ancestrais. Eu amava aquele pedaço de terra e odiava saber que alguém o havia maculado com o assassinato de um inocente. Estávamos no jardim suspenso, quando um dos funcionários veio até mim. — Sr. Huamán... Uma moça insiste em vê-lo... Ela está com seu cachecol e disse que é irmã da Karina... Virei o rosto o suficiente para vê-la e para que ela me visse. Sabia que Verônica viria até mim, mas ainda não era hora de nos encontrarmos. — Pegue o cachecol e diga que estou ocupado... Ela pode marcar um horário se quiser... Não hoje, provavelmente... Continuei conversando com Thomas e a observando pela visão periférica. Tinha que mostrar quem mandava e que ela não iria me intimidar. Sabia bem o que pretendia, não era primeira policial com quem eu tinha lidado. Verônica O filho da puta de uma figa tinha me ignorado. Deliberadamente e sem nenhum pesar. Cravei os olhos nele, estreitos e cheios de raiva contida. Ele continuou conversando com o homem que eu tinha certeza de que conhecia de algum lugar, mas não se desviou do meu olhar. Provocativo e arrogante, levou o polegar à boca, limpando o canto e fazendo um calor latente se espalhar por mim. Meneou a cabeça, um riso sarcástico brilhando nos lábios grossos e bem desenhados, depois virou as costas e seguiu pelo jardim, perdendo-se da minha vista. Eu não era uma garota fácil de impressionar. Podia contar nos dedos os homens por quem tive mais do que tesão, mas tinha que concordar que Nicolas Huamán era um homem atraente. Um filho da puta desgraçado e, no mínimo, relapso com os funcionários, mas era gostoso para caralho e despertava em mim uma vontade súbita de fazê-lo abaixar aquele nariz em pé que ele tinha. Se acha que vou desistir, bonitão de terno, está muito enganado! Conheço bem o seu tipo e sei como lidar com idiotas metidos como você! — Se quiser deixar o cachecol, senhorita... Eu mesma posso... Senhorita? — a moça chamou assim que notou onde minha atenção estava. — Não precisa... — Sorri tentando disfarçar meu deboche. — Prefiro entregar em mãos. A moça me olhou com aquela cara de “Uhum, sei bem o que você prefere entregar a ele”, mas eu nem me importei. Tinha deixado de ligar para opinião alheia muito tempo atrás, quando todos tentaram me convencer a não me tornar policial, já que era “delicadinha demais”. Aproveitei que o clima ainda estava agradável e decidi dar uma pequena caminhada pelo lugar. A polícia não tinha ideia exata de onde acontecera o acidente de Karina, mas, a julgar pelo estado do corpo, os arredores do hotel estavam no raio de probabilidade da perícia. Eu não confiava nem um pouco na polícia peruana. Era despreparada, sucateada, desinteressada e comprada. Se não era fácil ser honesta no Brasil, no Peru, bem no meio da rota de saída do tráfico sul- americano, era quase impossível. Tinham desistido de investigar o caso de Karina e me enfiado goela abaixo um acidente, que não consegui engolir. Talvez o Sr. Huamán esteja mesmo envolvido... Não seria a primeira vez que uma garota bonita morre misteriosamente em um hotel de luxo. Prostituição? Karina não era viciada, tinha fumado maconha uma ou duas vezes, mas eu também tinha e estava do outro lado dessa conta. Peguei uma trilha e comecei a caminhar. Pensamento longe. Gostava de pensar em movimento, sentia como se o sangue fluindo mais rápido em meu corpo clareasse as ideias. El Condor... Onde eu ia encontrar aquele filho da puta? E o mais importante, como Karina, uma garota jovem e com um emprego razoável, tinha acabado ao lado de um chefe de cartel? O cartão do homem no bar tinha um ideograma japonês no topo, preto e vermelho, não era um dos homens do Condor. Eu havia procurado por boa parte da tarde qualquer coisa que me desse um norte, mas sem sucesso algum. Era como se ninguém soubesse mais do que o nome do filho da puta, ou soubesse e tivesse medo de falar. Continuei seguindo pelo caminho, embora andasse cada vez mais devagar. A vegetação era baixa, mas a tarde caía quase sem vento. Parei em um ponto onde podia ver o rio lá embaixo, serpenteando entre as montanhas altas, como uma linha fina. As águas escuras movendo-se sem parar. Apoiei o corpo contra uma pedra grande, mas, no fim das contas, acabei me sentando. Sentia meu peito apertado, aquela sensação ruim de falta de ar, intensificada pela culpa e pela dor de estar tão perto de onde tudo aconteceu. Engoli em seco, pensando nos últimos momentos de Karina. Eu conhecia um pouco do que o tráfico faz. Tinha encontrado alguns corpos, poucos suspeitos e muita crueldade pelo meu caminho na delegacia. Nunca entendi por que Karina acabou no meio de tudo isso. A gente nunca entende... Ou finge não entender, porque assim dói menos. Filha de policial, irmã de policial, e acaba envolvida com um chefe de cartel. Escorreguei o pé procurando uma posição mais cômoda e acabei empurrando algumas pedras montanha abaixo. Eu as vi rolar, batendo aqui e ali, até se perderem no precipício. Respirei fundo, não queria chorar. Podia contar nos dedos as poucas lágrimas que derrubara na vida. Odiava fraquejar, admitir a derrota, o fracasso, então ergui o olhar, mirando o sol poente. O laranja tingindo o céu incrivelmente azul. Nunca pensei que o pôr do sol naquele lugar pudesse ser tão impressionantemente bonito. Quando comecei a sentir que respirava melhor, eu me levantei. Tinha que descer até o hotel, para poder pedir um táxi, já que começava a escurecer rápido. Dei alguns passos e a noite caiu quase que completamente. Olhei o relógio descrente, não eram nem seis e meia da tarde e parecia dez da noite. Liguei a lanterna do celular e continuei o caminho, mas no escuro, e com pressa, era bem mais difícil achar. Comecei a sentir a cabeça zonza e o ar parecia não chegar aos meus pulmões novamente. Garganta seca e olhos ardendo. Nunca fui do tipo florzinha, que não sabe andar pelo mato, mas a sensação de passos perto de mim era incômoda. Podia ser só medo do desconhecido e um pouco de ansiedade por tudo que vinha vivendo, mas mesmo assim parei, subitamente, e o som de passos continuou, até parar também. Virei o celular de frente para mim, podia ligar para o hotel e avisar que tinha me perdido, eles eram o mais próximo de civilização que eu tinha, mas quando verifiquei estava sem área. Foco, Verônica... Foco... Você tem uma arma na bolsa e sabe bem como usar... Dei mais alguns passos calculados, buscando pelo caminho que havia feito. Não estava tão longe, mas quando clareei pequenos olhos brilhantes perto do chão, levei um susto tão grande que dei alguns passos atrás e perdi o contato com o chão. Rolei montanha abaixo, sem conseguir parar, sentindo os arranhões dos galhos secos. Fechei os olhos e protegi o rosto, até que bati forte contra uma estrutura de madeira. — Ai! — gritei involuntariamente, então gemi de dor. Forcei a vista para enxergar onde estava e se deveria tentar me mover ou se era melhor esperar. Tinha perdido meu celular na queda e a lua encoberta não ajudava muito. Tateei a arma dentro da bolsa, ao menos segura eu iria ficar. O chão parecia plano, na parte do lugar onde eu havia caído, então tentei me sentar em uma posição melhor. Tinha machucado o tornozelo, mas conseguia andar, então apoiei a mão em uma coluna de madeira, e tentei içar meu corpo, mas a tontura me fez desistir. Meus braços sangravam, o queixo doía e minhas mãos também. Respire devagar, Verônica... Ou vai acabar desmaiando... Você precisa conseguir, garota... Precisa... Nicolas — Você e o Chema procuram daqui para a esquerda e eu e o Nacho vamos pela direita! — avisei meus homens. Não queria contar que Verônica havia desaparecido ou acabaria levantando suspeitas dos homens do Matsuya. Se eles descobrissem que ela era irmã da Karina, então, talvez nem eu fosse capaz de protegê-la. — Quando a encontrarem, levem-na até minha cobertura... Não quero ninguém além de nós quatro sabendo disso — avisei. Eu confiava em meus homens, mas no meu mundo a gente aprendia a confiar com um olho aberto. Havia sempre um imbecil metido a esperto, esperando pela oportunidade perfeita para te matar e tomar o poder. Liguei a lanterna mais por comodidade do que por necessidade, conhecia minha montanha muito bem. Tínhamos percorrido uns bons metros, quando pisei em algo que fez um estalo diferente. Abaixei-me para pegar um celular. Assoviei chamando Nacho, que estava próximo. — Ela deve ter escorregado aqui, veja... — Apontei para o chão remexido em um ponto, perto da queda. O homem aquiesceu e começou a descer, apoiando-se nos degraus do terreno. — A garota tem sorte, chefe... Se tivesse caído do outro lado, estaria fazendo companhia para irmã a uma hora dessas... — o capanga brincou, mas eu não sorri. Por alguma razão que eu não entendia, não gostava que brincassem com o nome dela. Desci pela encosta da falésia usando os degraus esculpidos pelo vento como apoio. Tinha trocado o terno por jeans e jaqueta de couro e os sapatos por botas de escalada. Justamente por conhecer a região, não a subestimava. Depois de uns bons metros montanha abaixo, encontramos uma cabana de apoio para escaladores e então algo se moveu. — É ela, chefe... A brasileira — Nacho avisou, já que estava um pouco à frente. Apressei o passo e pulei o último degrau. — Quer que chame os homens? Podemos levá-la à enfermaria... — falava comigo já abaixado, encarando a garota desmaiada. — Parece que ela se machucou bastante... — constatou. Fiz sinal para que ele saísse e clareei a garota com a lanterna. — Hum... — ela gemeu, mas ainda não tinha acordado. A camiseta branca estava toda suja de terra, folhas e sangue. Braços e mãos arranhados e cortados, e no rosto havia um ponto ensanguentado, no queixo, que não me deixava ver a extensão do ferimento. As pernas haviam sido protegidas pelo jeans, mas um dos tênis tinha se perdido na queda, deixando à mostra o tornozelo inchado. Levei o braço por baixo dos seus, levantando-a pelas axilas. — Se quiser voltar para o hotel, chefe... O senhor não precisa... — Eu cuido dela... — avisei sem encará-lo, meus olhos perdidos na garota. Peguei-a nos braços, encaixando-a em meu corpo para subir. E caminhei pelo degrau natural, até a escadaria de pedras antigas. Não consegui subir com ela pelo mesmo caminho que tinha descido. Nacho subiu logo atrás de mim. — Ainda acho que o senhor deveria só avisar à polícia e largar a garota aí, chefe... Ainda mais uma policial... Ignorei. Não tinha que me explicar. Demorei quase uma hora para chegar com ela de volta ao topo da montanha, onde o hotel ficava. Havia uma entrada particular, reservada para mim, longe da vista dos turistas. Entrei por ela e caminhei pelo gramado escuro. Antes de atingir a entrada, a garota se mexeu em meus braços. Piscou algumas vezes, como se buscasse foco, até que encarou meu rosto, mas não parecia me ver. Os olhos giraram nas órbitas, pairando entre a consciência e a inconsciência. — Quem é você? — soltou de repente. Baixei o rosto, para que ela pudesse me ver. — Por hoje? Seu salvador... — Sorri de canto. — Mas você não vai se lembrar disso, corazón! Liberei uma das mãos e forcei a palma na cartilagem do seu nariz, empurrando para trás e para cima, fazendo-a perder a consciência novamente. — Quer que chame a enfermeira, chefe? — Nacho perguntou quase entrando no elevador, mas eu o bloqueei. — Eu assumo daqui... Mantenha os homens em ronda, alguém pode tê-la seguido e não quero que saibam que estou com ela. Encarou-me por um segundo, como se tentasse entender o que eu pretendia, mas desistiu de discordar e assentiu. Apertei o botão e esperei que chegássemos à cobertura. Livrei-me das botas e carreguei-a até o banheiro, acomodando-a na banheira. Tirei os tênis e as meias sujas, depois soltei o botão da calça e a tirei pelas pernas, deixando-a de calcinha. Livrei-me da camiseta também e molhei a toalha de rosto na pia, para limpar os braços e as mãos. Não podia colocá-la na cama como estava e precisava ver se havia algum machucado mais sério, que necessitasse de ajuda médica. Limpei o rosto suavemente, até o arranhão profundo no queixo, e meus olhos se detiveram em sua boca, pequena e delicada. Respirava tranquila, o nariz levemente inchado pelo golpe que eu lhe dera. Verônica Malta... O que diabos quer aqui? Deslizei o polegar em seus lábios, sentindo a respiração quente contra meus dedos, o peito subindo e descendo sem parar. Deixe-me dizer uma coisa, Verônica... A vingança é uma merda... Acredite, eu sei bem... Quando terminei de limpá-la, eu a vesti com uma camiseta limpa e levei até a cama. O tornozelo estava inchado e levemente arroxeado, então peguei uma bolsa de gelo e apoiei debaixo dele, para conter o inchaço e a inflamação. Apertei o botão do controle, baixando um pouco as cortinas finas, e acendi a lareira a gás. Quando voltei os olhos para minha cama, não resisti, aproximando-me um pouco mais. Quando foi que uma garota dormiu em sua cama, Nico? Suspirei. Acho que nunca. Cresci tendo a mulher que quisesse aos meus pés. Tinha dinheiro, má fama, uma arma na cintura e, acredite, as mulheres se excitam com o perigo, mas nenhuma delas tinha atravessado a barreira que eu mesmo havia imposto, desde a morte do meu pai. Quando o vi naquela merda de sarjeta, ensanguentado e acabado por causa de uma boceta, jurei que nunca faria o mesmo. Caminhei pelo espaço, até onde havia deixado a bolsa de couro que ela carregava. Lá dentro havia uma carteira com documentos pessoais, cartões e um pouco de dinheiro, brasileiro e peruano. Meu cachecol e uma semiautomática com a numeração intacta e carregada. Provavelmente, era a arma de serviço dela. Guardei o cachecol no armário, junto com os outros. A carteira enfiei no bolso e tirei a munição da pistola, antes de guardá-la no cofre. Não ia correr o risco de ter uma garota armada em meu quarto. Virei as costas, observando-a mais um pouco. Corpo esguio, pernas e braços magros mas musculosos. Tinha pés delicados e uma pequena tatuagem de flor, que subia em direção ao tornozelo. Se eu não soubesse quem era, diria que parecia uma boneca. Rosto jovem, aparentando menos idade do que tinha, corpo delicado, seios pequenos. Puxei o cobertor para cima, não queria que sentisse frio, mas no caminho resvalei os dedos em sua pele macia. Deveria ter parado, era o correto, mas não fiz. Tateando suas curvas com a ponta dos dedos, até que ela gemeu. De dor, certamente, mas meu pau não sabia disso e resolveu acordar. Respirei fundo, alisando os cabelos para trás. Nem é tão bonita assim, Nico! Você tem garotas melhores e menos problemáticas prontinhas para cair de boca no seu pau! Não seja idiota! Deixei-a no quarto e caminhei até a mesa do escritório. Acendi a luminária de mesa e coloquei o telefone quebrado sobre ela. Peguei meu próprio telefone e procurei pelo número de que precisava. A garota do outro lado da linha atendeu depois de dois toques. — Preciso que desbloqueie um telefone para mim. — Consegue plugá-lo na rede? — perguntou. — Sim. — Ótimo! Dê-me meia hora. Levantei-me, enchi um copo com bebida e parei em frente às grandes janelas de vidro, os olhos perdidos no cume da Montanha Jovem. A noite seria longa e eu não pretendia dormir até ter certeza de que Verônica Malta realmente não oferecia perigo para mim. Verônica Minha cabeça latejava e o corpo todo doía. Apertei os olhos e no mesmo instante senti o nariz inchado e dolorido, como se tivesse sofrido uma pancada. Abri os olhos assustada. Estava em uma cama, em um quarto elegante, bem decorado, que em nada lembrava a pousadinha do fim da rua. Minhas roupas haviam sido tiradas e trocadas por uma camiseta branca de tamanho bem maior que o meu. Tentei me levantar rápido, mas minhas costas reclamaram. Respirar começou a doer também, então apoiei as mãos no colchão, diminuindo o peso nas costas. Eu me lembrava de ter escorregado e caído, mas desse momento em diante tudo era um borrão. — Ai! — reclamei levando a mão ao queixo. Havia um machucado grande ali, sobre o osso da mandíbula, que, aliás, doía para inferno. Tateei as costas. Lembrava-me de ter batido contra algo duro. Minha arma! Onde está minha arma? Quem diabos me encontrou na montanha? Porque estava bem óbvio para mim que aquela não era uma cela de polícia nem o quarto de um hospital público. Um perfume masculino invadiu meus sentidos assim que me movi novamente. Virei o rosto e cheirei a camiseta. Por hoje, seu salvador... As palavras ecoavam dentro da minha cabeça. Voz grossa, peito quente, braços fortes. Seu salvador... Eu não fazia parte do time das mocinhas que esperam pelo príncipe na torre, então essa história de salvador não colava bem comigo. Minha arma! Onde está minha arma? Levantei-me com dificuldade, apoiando na mesa de cabeceira, já que meu tornozelo estava inchado e dolorido. Abri algumas gavetas e portas do armário, procurando pela bolsa. Queria minha pistola e meus documentos. Lembrava que estava com ela junto do corpo. Podia aceitar que tivesse perdido o telefone, mas não a bolsa. Encontrei roupas, relógios, itens pessoais, até que vi o cachecol azul, o que estava comigo antes de me acidentar. Huamán... Li na barra mais uma vez. Será que era ele? Na montanha, me vigiando? Meu salvador uma ova, seu desgraçado! Está mais para “meu sequestrador!” Olhei ao redor, estava sozinha em um grande quarto. A cortina à meia-altura mostrava uma varanda espaçosa e um amanhecer cinzento lá fora; devia ser cedo, bem cedo e eu estava no alto. Tão alto que não via mais do que nuvens. Pisquei algumas vezes, a cabeça latejando e os arranhões em meus braços ardendo. Os nós dos dedos estavam em carne viva e alguns hematomas manchavam minha pele de roxo- azulado. Fui me apoiando nos móveis até passar por uma cozinha pequena. Uma bancada reta de pedra cinza com tudo que era necessário e uma geladeira de inox. Havia uma mesa redonda com quatro cadeiras elegantes e uma fruteira sobre ela. A parede de vidro mostrava o cume de uma montanha. Aproximei- me e precisei apoiar a mão no vidro por causa da vertigem. Não tinha a menor possibilidade de fugir. Atravessei a cozinha e cheguei a um escritório. Era grande e bem decorado, com vários prêmios e matérias de revistas famosas emoldurando a única parede que não era feita de vidro. Passando pelo vão duplo sem portas, encontrei uma antessala com um sofá e um elevador, mas no painel havia um identificador de digital. Voltei para dentro do escritório. A grande mesa de concreto estava organizada e limpa, o computador ligado, mas, assim que movi o mouse, um pedido de senha apareceu na tela. É claro que ele não seria tão estúpido, Verônica. Abri a primeira gaveta. Estava cheia de material de escritório e uma coleção de canetas de grife. Na segunda, pastas de couro pretas com o emblema do hotel. Asunción, Cusco, Buenos Aires, Atacama, La Paz, Isla Marguerita... Etiquetas brancas, coladas nas pastas, mostravam o nome das cidades e, entre elas, havia uma sem inscrição. Abri por curiosidade e senti o sangue gelar. Eram recortes de jornal sobre o acidente de Karina, listas escritas à mão em uma língua que eu não conhecia, nomes, anotações, mapas. Um trabalho de investigação que me parecia bem melhor e mais completo do que o que eu havia recebido da polícia peruana. Folheei os recortes de jornal, todos locais. Brasileira morta em Aguas Calientes. Descuido apontado como causa da morte de guia. A polícia suspende as buscas no caso Karina Malta. Continuei espalhando os recortes sobre a mesa. No meio deles, um me chamou atenção. “Navio pesqueiro japonês, suspeito de servir como camuflagem para tráfico de mulheres, parte de Callao.” Polícia ignora os indícios. Presa com um clipe de papel, junto da notícia do navio, havia mais algumas, todas sobre uma grande corporação internacional chamada NK. Eu já tinha ouvido falar sobre os negócios escusos da NK Corp. Seu presidente, Kazuo Nakai era o conhecido e inatingível oyabun da Nakai Gumi, maior organização Yakuza em funcionamento no mundo, mas não entendia a conexão, já que a Nakai Gumi atuava apenas no mercado financeiro. O que diabos um dono de resort de luxo quer com a Yakuza? Eu até podia entender que ele tivesse interesse na investigação da morte de Karina, afinal de contas um acidente como o dela poderia impactar na credibilidade de segurança do hotel, mas a máfia japonesa? Não conseguia fazer a ligação em minha cabeça. Ouvi um som metálico e senti o sangue gelar nas veias. Era o elevador, o que significava que, fosse quem fosse meu sequestrador, eu o conheceria em breve. Comecei a juntar os papéis de volta na pasta o mais rápido que pude. Guardei e tentei correr até o quarto de volta. Queria me deitar e fingir que ainda dormia. Seria a melhor saída, mas não tive tempo. Então parei na cozinha, assim que as portas se abriram, e peguei uma das facas, no cepo da bancada, escondendo contra o braço o melhor que pude. Desarmada é que eu não vou ficar. O som das portas se abrindo fizeram meu coração disparar, até que a figura apareceu em meu campo de visão. Carregava uma bandeja de metal com um prato tampado sobre ela e um copo de suco. Era ele! Era mesmo ele. Nicolas Huamán. Parou junto à porta e encarou-me com seus olhos escuros por um segundo. Senti meu corpo todo estremecer, não conseguia afastar a sensação de perigo que ele despertava em mim. Sabe aquele sinal interno que a gente tem quando sabe que algo não é bem o que parece? Com Nicolas, ele parecia mais o apito de um transatlântico. Continuei encostada contra o balcão da cozinha, tentando não parecer óbvia demais, enquanto ele entrava e colocava a bandeja sobre a mesa. — Imagino que esteja melhor... Já até se levantou... — comentou. — Estava com sede... — menti. — Achei que talvez encontrasse um copo. Nicolas não disse nada. Passou por mim, em direção ao quarto, e voltou com um copo cheio de água. — Ao lado da cama... — Esboçou um sorriso sarcástico de canto, oferecendo-me o que eu dissera que queria. — Coma algo... Precisa estar com o estômago cheio para tomar os analgésicos... Destampou a bandeja mostrando pães, um pedaço de bolo, geleia, milho cozido e queijo. — Não fazia ideia do que você costuma comer, então peguei algumas coisas... Espero que goste. — Não estou com fome... — avisei. — Quero saber como cheguei até aqui e onde está minha bolsa... Nicolas alisou os cabelos com as mãos, cuidadosamente, como se fosse apenas uma pergunta trivial. — Eu sei de tudo que acontece em minha montanha, Srta. Malta... Ergui uma sobrancelha, mas não disse nada, esperei que ele continuasse. — Um dos funcionários a viu entrar na trilha... Imaginou que a senhorita não conhecia bem o local e poderia se colocar em perigo... Estava certo... Agora, sobre sua bolsa... Não faço ideia... Quando a encontraram, estava sem ela... Não era verdade e nós dois sabíamos, mas eu não ia contestá-lo até saber o que pretendia. Se tinha tido o trabalho de cuidar dos meus machucados e esconder minha arma, alguma coisa ele, definitivamente, pretendia. — Quero ir ao médico... Meu pé... — Parei a frase no meio, sem sair do lugar, enquanto o homem se aproximava. Senti o coração acelerar de um jeito tão forte que minha cabeça latejou ainda mais. Ele chegou tão perto que eu pude sentir o perfume novamente, o mesmo da camiseta e do cachecol, aquele maldito perfume que se impregnava em minhas narinas. Estava pronta para atacar, quando ele ligou a cafeteira, colocando uma xícara vazia embaixo. — Posso chamar um, se quiser..., mas acho que a enfermeira do nosso ambulatório é suficiente... — Prefiro voltar para a pousada... Agradeço o resgate, mas gosto de cuidar de mim mesma... — tentei não soar provocativa demais, mas queria deixar claro que não era uma discussão. O barulho do café expresso sendo preparado cortou o silêncio entre nós. Nicolas pegou a xícara e deu um gole, despreocupado e relaxado, como se fôssemos velhos amigos. Eu sentia meu braço arrepiado desconfortavelmente e não era de frio. — Acho que deveria descansar por hoje... Enquanto meus homens procuram pela sua bolsa... — Deu mais um gole no café. — Coma algo, descanse um pouco... — Um gole mais e cravou os olhos nos meus, intenso e profundo, fazendo-me engolir em seco. — Meu serviço de quarto é bem melhor que o da Pousada del Sol... Era um aviso silencioso. Uma nota, deixando claro que sair dali naquele momento não era exatamente uma escolha. Por um segundo, um pensamento passou por minha cabeça. Será que procurei tanto para acabar exatamente no lugar que queria? Deixei meus olhos vagarem pelo homem a minha frente. Alto, forte, ombros largos e musculoso do jeito certo. Cabelos bem cortados e penteados, barba aparada com cuidado, perfume caro, terno sob medida. Definitivamente, não era o retrato de um mafioso peruano. — Bem... — disse de repente, como se algum sinal o tivesse acordado. — Vou deixá-la à vontade para que se alimente... Se precisar de algo, use o interfone de qualquer um dos cômodos... O número 1 chama direto na recepção... Volto com a enfermeira, em breve. Você está começando a ver coisas, Verônica! Ou será que não? Nicolas Meu celular tocou no bolso interno do paletó e eu me apressei em me despedir. Não queria estender nosso assunto, já que seria uma discussão tola e inútil. — Encontramos o desgraçado, chefe — Nacho disse assim que atendi. — Leve-o ao porão... Quero ter uma conversa com ele. Desci as escadas externas de acesso e digitei a senha na fechadura da porta. A sala não tinha janelas, então o cheiro de mofo era constante. O rapaz com traços orientais estava lá, amarrado na cadeira de ferro. Olhos estreitos e desafiadores, como o demônio que era. Todos eles, sem exceção, tinham aquele ar vazio no olhar, uma falta de humanidade latente, sentiam-se superiores, deuses, não meros mortais. — O que queria com a garota? — meu homem de confiança continuou. — Tentar a sorte, companheiro, apenas isso... Uma mulher bonita, sozinha no meio do mato... Eu só pretendia oferecer ajuda... — debochou. Nacho fechou a mão e socou o rosto do garoto, bem no meio do nariz, fazendo-o piscar e cuspir o sangue que escorria para sua boca. — Por que o Matsuya te mandou aqui? — continuou interrogando. — Não sei do que está falando... Sou apenas um turista, companheiro... Não conheço nenhum Matsuya... — Cuspiu mais uma vez. — Acha que, só porque sou japonês, conheço todos eles? — Riu cheio de empáfia. Nacho cerrou as mãos em punho, pronto para desferir outro golpe, mas eu o impedi. Um toque em seu ombro, discreto. Peguei um punhal na mesa de ferro em que os instrumentos que às vezes éramos obrigados a usar como incentivo ficavam. Caminhei em volta do garoto, limpando a lâmina em minha mão. Parei bem atrás dele e passei o punhal, em um golpe rápido, cortando a camiseta de uma vez e expondo a carpa dragão nas costas dele. Eu conhecia muito bem aquele desenho, tinha visto mais de uma vez, e não era do Matsuya. Puxei-o para trás, pelo cabelo, a lâmina afiada colada à pele do seu pescoço. Tão perto que, quando ele engoliu em seco, uma linha fina vermelha se formou. — O que aquele desgraçado do seu dono quer com a garota? — perguntei, embora soubesse que não tiraria muito dele. — Ele não tem negócios por aqui... O jovem encarou-me com um sorriso provocativo. Sabia que nenhuma mentira me convenceria. — Você vai me matar de qualquer jeito, por que eu diria? — A questão é... Pode ser rápido... Ou pode demorar... A escolha é sua... Encarei-o de frente, afastando a arma e limpando o sangue nos dedos. Continuou em silêncio, desafiando-me com o olhar. Se quer mostrar que é duro, cabrón, espero que aguente... Sinalizei para Nacho, que se aproximou, parando ao meu lado. Entreguei-lhe o punhal. — Corte a tatuagem e despache em uma caixa bonita para a sede da NK... Depois leve o garoto até o cume, abra a barriga e o pendure lá, mas tenha a certeza de o deixar vivo... Faz tempo que não alimentamos os condores e eles preferem quando a comida se mexe... Virei as costas e segui em direção à porta. Estava quase saindo, quando o garoto gritou. — Espere! Virei devagar. — O chefe só queria o que tem direito... Você sabe, a brasileira deixou uma dívida enorme quando impediu o último carregamento... Dei alguns passos para dentro. — E o que seu chefe tinha a ver com o carregamento? Achei que aquele navio fosse do Matsuya... O garoto esboçou um sorriso de cabeça baixa. — Aí eu já não sei, senhor... Sou só o cão de guarda... Você vai ter que perguntar ao meu dono... — debochou. Peguei o punhal e passei em seu pescoço em um golpe certeiro. O garoto ainda me encarava, enquanto o sangue jorrava cobrindo o pescoço. Entreguei a arma a Nacho e limpei as mãos em uma toalha. — Ainda quero que remova a tatuagem... — avisei —, um trabalho limpo, como você já sabe... Mande para o Nakai. Saí de lá e segui pelo saguão. Então quer dizer que o Nakai está interessado na policial... O que aquele maldito japonês pretende? Vendê-la? Irritar a mim? Desgraçado! Não fosse pela Yuki, eu já teria acabado com ele... Bati à porta e entrei, confirmando que o ambulatório estava vazio. Tamara Ibañes trabalhava comigo havia uns bons anos. Era enfermeira, mas entendia de primeiros socorros melhor que muitos médicos que encontrei. Era ela quem resolvia boa parte dos problemas, quando alguém se feria e não podia procurar um hospital, mas eu não queria que ela encontrasse Verônica. Vinha desconfiando de que pudesse ter uma maçã podre em meu cesto e, até que tivesse certeza, a garota ficaria sob minha proteção. Eu tinha falhado com Karina, não ia cometer o mesmo erro. — Preciso de material para cuidar de um entorse de tornozelo e curativo... — avisei, assim que entrei no ambulatório. — Se quiser trazê-lo aqui, Sr. Huamán... — Eu mesmo resolvo... A garota não questionou, sabia bem como as coisas funcionavam. Juntou o que eu iria precisar em uma caixa e entregou em minhas mãos. — Aplique a bolsa de gelo e imobilize... É bom que não caminhe e mantenha o pé para cima. Há mais analgésicos também... Vi que o senhor levou alguns essa manhã. Concordei e saí levando a caixa comigo. Digitei a senha e esperei que o elevador começasse a subir. As portas se abriram, mas tudo estava em silêncio, então segui para dentro. Sabia que Verônica tinha vasculhado o máximo que podia da minha cobertura. Eu havia deixado algumas coisas lá de propósito, queria que ela fizesse a conexão. Seria bem mais fácil fazê-la entender que eu não era o vilão, já que ela andava investigando meus negócios em vez de a Yakuza. A bandeja de comida continuava intacta e os comprimidos também não tinham sido tomados. Segui pelo corredor até o quarto. A garota estava lá, deitada na cama com cara de dor. Braço por baixo do travesseiro, mirando o teto. — Estaria melhor se tivesse tomado o remédio... — Não tomo comprimidos cuja origem não conheço... — respondeu taxativa. — Aqui... — Entreguei a cartela cheia em suas mãos. — É só analgésico, mas, se quiser outra coisa, posso tentar conseguir... — provoquei. Tentei levar a mão até o tornozelo machucado, mas ela recuou. — Deixe-me ver... — pedi. — Achei que fosse empresário, Sr. Huamán... Não médico... Baixei a cabeça por um segundo, buscando controle, e então segurei firme em sua perna. Esticando-a sobre a minha. — Cárcere privado... Já ouviu falar? Não respondi, aplicando um pouco de pomada anti-inflamatória na lesão. Não queria discutir com ela, porque ia perder a linha bem rápido. Odiava ser desafiado e aquela maldita brasileira parecia saber muito bem como me tirar do sério. — Um a três anos em regime fechado... — continuou. — No Brasil, é claro... Aqui no Peru creio que as coisas sejam diferentes... — debochou. Levantei-me devagar, raiva borbulhando em meus olhos. — Vá embora quando quiser..., mas é bom que saiba voar... — Ri sarcástico. — Porque é uma bela queda daqui de cima... Antes que ela pudesse abrir a boca para retrucar, colei meu indicador em seus lábios, silenciando-a. — Agora, se quiser descer pelo meu elevador, terá que esperar até que eu permita. Dei as costas, mas mantive a atenção nela, então, quando veio para cima de mim, eu estava preparado. Agarrei seu braço e girei, tomando a faca e segurando contra sua garganta. A mão livre agarrando-a pela cintura. Encarei seu rosto pelo espelho. Estava enraivecida e assustada, o peito subindo e descendo rápido. Meu braço travando-a para que não se movesse. Havia uma linha vermelha em seu antebraço e sangue escorrendo do cabo da faca, o que significava que eu tinha me ferido também. — Shhhh... Ou vai se machucar mais... — adverti. A garota cravou os olhos nos meus. — Quem é você? Aproximei minha boca da sua orelha, o perfume delicado ainda estava ali, mesmo depois de tanto tempo. A pele se arrepiou com a minha respiração e eu não pude deixar de morder o lábio. Não era do tipo sádico, mas adorava uma boa briga e uma bela bunda se esfregando no meu pau. Ter os dois de uma vez só era viciante. — Sou quem você procura, corazón... E sou também sua única oportunidade de vingar a sua irmã. Verônica Senti meu corpo todo se arrepiar. O coração acelerado, boca seca, mal conseguia respirar e estava completamente imobilizada por ele. Nicolas Huamán tinha quase o dobro do meu corpo e força física suficiente para me derrubar com uma mão. Meu braço cortado ardia, mas o sangue que manchava meu pescoço deixava claro que ele tinha levado a pior Tentei me mexer, mas desisti. Não era tão estúpida assim, principalmente com uma lâmina afiada em meu pescoço. Levantei as palmas em sinal de rendição, os olhos focados nos dele. Era um daqueles momentos em que a gente precisa contar com a sorte, porque nem reforços eu podia pedir. Devagar, seu corpo foi se afastando, a faca ainda em minhas costas, nossos olhares mantidos um no outro através do espelho. Nicolas afastou-se mais alguns passos e então eu me virei de frente para ele. A faca foi deixada sobre a cômoda e, um a um, ele soltou os botões da camisa, que tinha se rasgado com o movimento brusco do braço. Assim que a tirou, eu vi a tatuagem, um condor em voo, pronto para o ataque. Asas abertas tomando boa parte do peito até perder-se no ombro. Conforme respirava, a ave parecia ganhar vida, como se morasse dentro dele. Era inquietante e terrivelmente sexy, daquele jeito perigoso que nos instiga a olhar um pouco mais. A corrente de ouro com o medalhão brilhava a cada passo que dava. Rasgou um pedaço do tecido branco, enrolou contra a palma machucada e em um instante o tecido foi tingido de vermelho. — Dessa vez, muñeca, vou deixar passar... Entendo que essa cabecinha loira aí não está funcionando como deveria, mas lembre que se tivermos uma próxima... Parou a frase no meio, mas seu olhar continuou, ameaçador como ele era, mesmo quando não tinha intenção. — El Condor... — deixei sair apenas porque estava em minha boca, não tinha mais dúvidas. — Nicolas... Ou Nico, se preferir... El Condor é um apelido de guerra e, no que diz respeito a mim, Verônica, esta é uma conversa de paz... — Paz? Achei que você fosse o senhor da morte... — provoquei. Não era nada esperto da minha parte, mas eu não podia evitar. Aquele homem despertava toda a minha raiva e outros sentimentos mais que eu nem sabia classificar. O homem riu sarcástico. — Sou inteligente o suficiente para escolher as lutas que valem a pena, corazón... Não tenho muito tempo livre para perder com briga de faca... Aliás... — Levantou a mão boa, fazendo um aceno no ar. — Achei que era menos estúpida... Policial treinada há algum tempo, deveria saber que não conseguiria imobilizar um homem como eu com uma faca de cozinha... O que pretendia? — inquiriu. — Me matar? Por que acha que eu matei Karina... Ia falando e caminhando pelo quarto, como um felino à espreita, encurralando-me devagar, envolvendo-me sem que eu pudesse correr. De repente, abriu a gaveta do criado e pegou um porta-retrato prateado. Jogou sobre a cama, perto de onde eu estava. Na fotografia, estavam ele e Karina, vestidos como se para uma festa ou algo assim. Ele de terno escuro e ela de vestido vermelho. Sorria tranquila, o rosto pendendo no peito dele. Senti um aperto tão grande que suspirei sem querer, encarando a fotografia por mais tempo do que deveria. — Eu jamais a machucaria... Não havia razão para isso, Karina era minha amiga. — Um homem como você não tem amigos, Nicolas... Comparsas, no máximo... — provoquei, fazendo-o rir novamente. — Pode não acreditar, Srta. Malta, mas homens como eu... — frisou. — Têm vida normal... Família, amigos, passeios de fim de semana, vão ao cinema, comem fora... — À custa de vidas inocentes... — Revirei os olhos. — Pelo menos gente como eu pode se gabar de não abandonar a família... Golpe duro, bem duro... O que era um bom indício de que ele realmente conhecia Karina, já que aquela era uma frase bem típica dela. — Cada um sabe a vida que leva, Srta. Malta... E a morte que o espera! — Beijou o medalhão que pendia da corrente em seu pescoço. — Eu não matei Karina, não sou seu inimigo... — E por que me deixou presa aqui e desarmada, então? — Porque não a conheço e não sou idiota... — Vestiu uma camiseta limpa. — Vamos fazer um pequeno trato... Eu vou descer e dar alguns pontos no corte... Quando voltar, se for uma boa menina... Eu conto a você quem matou sua irmã e o que pretendo fazer para vingá-la. Por enquanto... — Abriu uma das portas do armário e pegou uma caixa de madeira com flores pintadas sobre a tampa. — Pode dar uma olhada nas coisas que ela deixou aqui. Colocou a caixa sobre a cama. — Tem material de curativo aqui... — Indicou a caixa branca que havia trazido. — Seu corte é superficial, sei que consegue dar conta sozinha... Caminhou para fora do quarto, mas, quando chegou à porta, virou- se para mim novamente. — É uma oferta de paz, Verônica..., mas entenda que eu não tenho problema em brigar, se for realmente o que você quer... Só tenha em mente que lutar contra um aliado serve apenas para fortalecer o rival... Fiquei parada ali, imóvel, até que ouvi os passos se afastando e, logo depois, o som das portas do elevador. Não podia negar que Nicolas tinha razão nas palavras, mas eu ainda não sabia quem era meu inimigo e meu aliado, havia aprendido a duras penas a não confiar cegamente nas pessoas e era até considerada arredia por isso. Não era boa em fazer amizade e pior ainda em manter. Tinha perdido todo mundo que cheguei a amar um dia e, confesso, começava a cansar de tanta desconfiança. Abri a caixa e comecei a tirar os objetos de dentro dela. Um vidro de perfume, cartões postais, alguns ursinhos de pelúcia e souvenirs, além de um monte de fotos. Karina sorrindo, abraçada a pessoas que eu não conhecia, em especial uma moça. Aparentava alguns anos a menos, longos cabelos cacheados e pele morena-clara. Tinha belos olhos verdes e estava na maioria das fotos. Dei- me conta de que não sabia mais muito sobre minha irmã. Não conhecia os amigos, nem sabia do que gostava ou aonde ia para se divertir. A vida tinha nos separado, Karina e eu, sem que tivéssemos chance de nos reconciliarmos. Continuei passando as fotos, até que encontrei uma de nós duas, tinha sido tirada no verão, dois anos antes da mudança dela para o Peru. Estávamos em uma praia, no litoral de São Paulo. Eu deitada na pedra, tentando ler a apostila que precisava estudar para a prova da polícia, e ela fazendo o V de vitória com os dedos e mostrando a língua. Lembrava-me perfeitamente daquele dia e de como nos divertimos naquela viagem. Tínhamos saído de casa com cem reais e uma mochila, dispostas a aproveitar o último tempo de folga, já que, segundo ela, eu me tornaria chata e sem graça, assim que passasse no concurso. É, Ka, acho que você tinha razão... Peguei a lhama branca de pelúcia e corri os dedos no pelo macio. Usava um cachecol com tema andino e tinha uma plaquinha escrita à mão no pescoço. “Para que nunca mais se sinta sozinha e saiba que essa também é sua casa. Nico” — lia-se em espanhol. Senti a garganta se fechar, como se aquela sensação ruim de não poder respirar estivesse voltando. Outra foto dela com Nicolas, em um iate, sentados lado a lado, com uma bebida nas mãos. Ele usava bermuda e óculos escuros, sorria, muito diferente do que eu ouvia dizer sobre El Condor. — Tome um desses... Dei um pulo de susto, estava tão perdida em pensamentos que não havia percebido o retorno do meu anfitrião. Levei alguns segundos para voltar a mim, e ele ficou lá, mão estendida, com o comprimido na palma. — Soroche... — disse de repente. — Oi? — perguntei sem entender. — O que está sentindo... — Encheu o copo com água da moringa e ofereceu a mim. — Um pouco de culpa, mágoa, raiva e soroche... — Sorriu de canto, em uma tentativa de parecer menos sisudo. — Não estou censurando você, Verônica, acredite... Tenho minhas culpas também... Mágoa e raiva fazem parte do que sou, então aprendi a lidar... Coloquei o comprimido na língua sem deixar de encará-lo e sem engolir também. — Ainda acha que quero drogá-la, garota? Não seja boba, eu não desperdiço meu produto! — debochou. Peguei o copo e bebi, observando a mão enfaixada dele. Eu teria ficado muito, muito puta, com alguém que me esfaqueasse. Tinha que concordar que Nicolas Huamán era melhor do que eu em controlar a si mesmo. — Puerto Varas... — Bateu com o indicador sobre a fotografia do barco. — Ela queria conhecer os lagos... Falou tanto disso que decidi levá- la só para que ficasse calada! Ri sem conseguir evitar, mas o riso morreu logo. — Vou cuidar disso, não se preocupe... O desgraçado que fez isso com ela... — Voltou os olhos para os meus, frio e sereno. — Vai implorar para morrer também, Verônica... Eu juro! — Quem foi? — perguntei. — Estou investigando... Na mesma hora, lembrei-me do material recortado em sua gaveta. Sabia que não seria fácil arrancar respostas de um homem como ele, então usei o que tinha aprendido na polícia, sempre facilite a confissão. — O que Karina fez para que a Yakuza a matasse, Nicolas? Nicolas Pensei por um segundo, não sabia bem o que dizer, porque enganar Verônica não era como enganar as mulheres que me serviam. Verônica Malta era astuta e tinha treinamento profissional, sabia lidar com caras como eu. Peguei a foto de Helena no meio das outras e coloquei sobre a colcha branca, depois bati o indicador em seu rosto. — Helena Viana... — Quem é Helena Viana? — perguntou curiosa. — Uma garota por quem Karina se apaixonou... Eu não conhecia nada sobre Verônica, mas aquele não era o momento de mentiras. Karina podia não ter tido tempo de revelar à irmã suas verdades, mas eu não tinha razão para esconder. Esperei até que a garota absorvesse. Verônica continuou com o olhar baixo, mirando a fotografia, depois encarou-me novamente. — Onde ela está agora? — Não sei..., mas foi assim que Karina se envolveu com os Yakuzas... — O que houve com ela, Nicolas? Respirei fundo e puxei a poltrona, para me sentar de frente para ela. Era um assunto difícil, mas, já que eu tinha decidido começar, precisava ir até o fim. — Helena trabalhava em uma pequena companhia de dança latina. Estavam em turnê pela América do Sul e foi assim que ela e Karina se conheceram. Sua irmã não era muito aberta em relação aos casos amorosos que tinha, então eu só tomei conhecimento do caso quando Helena foi sequestrada... — Tráfico humano... — concluiu. — Provavelmente... Tudo que soubemos é que um homem de meia-idade e traços orientais foi a última pessoa a passar na pensão e sair com ela... A garota soltou uma lufada de ar, inconformada. — Estou longe de ser santo, Verônica, mas meus negócios não incluem vidas, o que eu vendo é meu, não coloco preço no que não me pertence... — É claro... — Revirou os olhos sarcástica. — Mas permite que façam, não é? Desde que não atrapalhem seus negócios... Respirei fundo. — Não tenho vocação para herói... — Joguei o corpo para trás, estralando as costas. — Mas protejo os que são meus e falhei com Karina... — Voltei o corpo de uma vez, encarando-a de perto. — E juro, por la Santa Muerte, que o desgraçado que a matou está com os dias contados... Verônica levantou-se e tentou andar pelo espaço, mas desistiu assim que o pé machucado reclamou. Cruzou os braços e escorou o corpo em minha cômoda, provocativa. — E espera que eu, sendo policial, vá concordar com sua vingança? — questionou. Levantei-me também, dando alguns passos em sua direção, gostava de jogar com ela. Acuá-la, para que ela revidasse. Enfiei a mão no bolso da calça, peguei o celular e ofereci a ela. — Se acha que consegue resolver do seu jeito, muñeca, é só chamá-los... Estreitou os olhos e me encarou. Eu podia ver o gosto amargo em seus olhos. — Seiji Matsuya... — continuei. — Ele é o japonês filho da puta que tem uma parte dos negócios por aqui. Nosso acordo não incluía essa sujeira toda que ele anda fazendo, mas não foi ele quem matou a sua irmã e é justamente isso que eu estou tentando entender... A garota tinha o olhar focado em algum ponto na imensidão do céu lá fora e eu quase podia ver as engrenagens em sua cabeça se movendo. Tentei o máximo que pude não dar informações de que ela não precisava. Queria que confiasse em mim, não que saísse do Peru com munição para acabar com meus negócios. — O Matsuya e o Nakai são inimigos, então, se tenho negócios com um, não devia ter que me preocupar com o outro... — Mas... — interrompeu-me. — Hoje cedo um dos meus homens capturou um garoto andando pela montanha... Imaginei que fosse um dos homens do Matsuya, mas, para minha surpresa, encontrei outro desenho em suas costas... Ele estava atrás de você, Verônica... Na trilha em que você caiu... Os olhos castanho-esverdeados faiscaram de surpresa. — Você o viu? — Achei que fosse coisa da minha cabeça, estava escuro, eu estava zonza por causa dessa maldita altitude e... — Sabia que seu celular estava grampeado? — continuei. Verônica alisou os cabelos para trás. — Como você sabe? — questionou. — Roubou meu celular também? — Não roubei nada seu, corazón, apenas decidi proteger-me! — Balancei a mão machucada no ar. — Terá tudo de volta amanhã, quando deixar Cusco em um voo direto para São Paulo... E se quer um conselho... Cuidado com quem chama de amigo... Karina mexeu com alguns peixes grandes quando entregou o dossiê para a Interpol. — São Paulo? Como assim, São Paulo? Ficou maluco? Acha que vou voltar para casa e esperar que você me dê um telefonema dizendo que resolveu tudo, depois de me contar que minha irmã estava metida com a Yakuza e a polícia internacional? — Riu sem humor. — Você deve estar de brincadeira! Tentou me empurrar com a mão e sair, mas eu a segurei pelo braço, trazendo para perto de mim novamente. — Não estou pedindo opinião, Verônica, estou avisando como será! Amanhã bem cedo Nacho vai levá-la ao aeroporto e é assim que nossa história termina, chica. Soltei-a de uma vez e virei as costas. Estava perdendo tempo demais com a brasileira, tinha que me concentrar no que era importante, mas, assim que dei alguns passos, senti a mão pequena em minhas costas, segurando-me pela camiseta. — Você não decide por mim, El Condor, não sou uma das suas putas! Agi por instinto, segurando-a pelos pulsos e prensando contra a lateral da geladeira, fazendo um barulho mais alto do que pretendia. Verônica tentou se soltar, então eu a travei com o corpo, meu joelho entre suas pernas, impedindo que conseguisse chutar. Não era sexual, mas de repente se tornou. O peito subindo e descendo, a calcinha de renda contra o tecido fino da minha calça, as coxas roçando contra as minhas. Meu pau ganhou vida no mesmo instante e eu não fiz questão alguma de esconder. Se ela queria brigar, ia ter que encarar o pacote completo. — Não vai me pedir para soltá-la? — provoquei, a boca a centímetros da sua orelha. — Vai soltar se eu pedir? — devolveu na mesma intensidade. Era um jogo perigoso e ninguém ali era inocente. Apertei-a um pouco mais, esfregando minha ereção em sua barriga. Queria que soubesse como eu me sentia, porque, sendo bem sincero, eu não queria soltá-la. Segundos depois, afastei-me e ela caiu de joelhos, soltando um gemido de dor. — Deveria ter mais cuidado com seu pé machucado, corazón... Deixei-a lá e saí. Verônica Fiquei caída no chão, vendo-o se afastar. Meu corpo inteiro tremia, o coração batendo tão forte que eu mal conseguia respirar. Sentia a cabeça zonza e a pele arrepiada. Merda de comprimido que não ajudou em nada! Depois de alguns segundos, apoiei a mão na parede de azulejos cinza e comecei a me levantar devagar. O pé doía como o inferno, mas a vergonha doía mais. Porra, Verônica, duas tentativas e nem uma porrada você acertou? Isso que é boa de briga! Se fosse ruim, já estaria debaixo da terra... Ou pior! Balancei a cabeça e soltei o ar dos pulmões de uma vez, tentando controlar a respiração novamente. Desgraçado! Me enquadrou e ainda teve a audácia de roçar a porra do pau duro em mim... Achou o quê? Que eu ia me impressionar? O arrepio tomou conta do meu corpo no mesmo instante em que me lembrei da sua proximidade. Nicolas Huamán... Eu tinha encontrado o maldito Condor e, no fim das contas, nem era ele o culpado. Ou era? Balancei a cabeça novamente, sentia como se tudo lá dentro tivesse dado um nó imenso e gigante. Sentei-me na cadeira, apoiando os cotovelos na mesa e encarando o cume da montanha. Estava no ninho do maldito Condor. Presa contra minha vontade e tudo que podia fazer era esperar. O perfume dele estava na cozinha toda, impregnado no ar, nos móveis, na roupa que eu usava, em mim; mas o pior de tudo é que eu não sentia asco ou nojo, sentia desejo. Aquela picadinha de curiosidade filha da puta que nos leva a cometer as maiores — e melhores — burradas da nossa vida. Esfreguei as mãos frias no rosto, forçando-me a voltar ao foco. Sempre suspeitei que Karina era homossexual. Quis deixar o caminho livre, para que ela me contasse quando se sentisse à vontade, mas o destino não deixou. Ao menos você amou alguém, Ka... Espero que tenha sido feliz... Senti a primeira lágrima descer e engoli em seco. Era a primeira que eu realmente deixava cair, sem segurar ou forçar a parar. A psicóloga da polícia já havia me dito que essa era a causa da maioria dos meus problemas, segurar, guardar, reprimir, esconder. Permita-se sentir, Verônica... — ela dizia. Talvez fosse o medo ou a revolta, mas naquele momento eu permiti. Enquanto encarava a montanha que a tinha levado, eu permiti. As lágrimas foram descendo, escorrendo pelo meu rosto e pingando na mesa e eu só deixei que caíssem. Não pensei em muita coisa, só deixei acontecer. Não sei quanto tempo passou, mas, quando a vontade de chorar diminuiu, eu sentia o rosto todo molhado. Os braços e a mesa estavam na mesma condição. Peguei o pano de copa e sequei a mesa. Depois me levantei e caminhei com dificuldade até o banheiro, lavando o rosto na pia. Estava com frio, então a água morna na torneira foi tão agradável que demorei mais do que deveria, lavando os antebraços e o pescoço. — Pode tomar banho se quiser... Levantei o rosto assustada, para encontrar Nicolas parado junto ao batente da porta. — Aquela toalha... — Sinalizou o armário. — Está limpa... — avisou. — Eu trouxe roupas e itens de higiene... — Deixou uma sacola sobre a bancada de mármore branco. — Use o que precisar; quando terminar, vamos conversar... Fechou a porta e eu virei a chave. Precisava mesmo de um banho. Os arranhões ainda sangravam um pouco e a malha fina da camiseta estava grudada em minhas costas. Tirei com cuidado e liguei a ducha, esperando até que esquentasse. Lavei os cabelos e deixei que a água morna acalmasse um pouco da minha tensão. Não estava sendo maltratada e tinha que admitir que ele havia salvado minha vida. Toda a história sobre Karina e a garota sequestrada, Yakuza, máfia, assassinato, girava em torno de mim, como peças de um quebra-cabeça que eu não conseguia montar. Meu telefone grampeado... Quem havia conseguido grampear meu telefone? Eu raramente me afastava dele, ninguém tinha acesso... Ninguém... Não, Vê, não começa com paranoia! Você sabe que esse é um caminho sem volta! Precisava mesmo conversar com Nicolas, sem a baboseira de tentar enfrentá-lo. Essa parte eu já tinha conferido e era mesmo burrice. O homem era experiente, controlado e estava no território dele, então eu tinha que jogar com a mente, usar a inteligência, ou não conseguiria sair daquela merda de cobertura. Sequei os cabelos com a toalha e penteei. Na sacola havia lingerie nova e um conjunto de calça e agasalho de moletom com o emblema do hotel. Vesti a roupa e calcei um chinelo de tira larga no peito do pé, enfiando até onde conseguia o que estava inchado e enfaixado. Quando saí, Nicolas estava debruçado no gradil de vidro da grande varanda. Cigarro aceso na mão, olhos perdidos na paisagem. Aproximei-me devagar e parei ao seu lado. Não sabia como começar, mas sabia exatamente o que precisava dizer. Fiquei em silêncio por alguns segundos e depois enchi os pulmões de ar, mas, antes que eu pudesse falar, ele começou. — Eu gostaria de me desculpar... Engoli minhas desculpas, sentindo o gosto amargo da arrogância que eu não queria ter. — Agi mal e fui bruto com você... Espero que entenda que... — Tudo bem, Nicolas... Estamos alterados e as coisas fogem do controle, eu... — Apertei os olhos, não queria chorar. — Essa história toda com Karina, eu... Ainda estava tentando organizar o que ia dizer, quando ele levou a mão até minha testa e correu o dedo ali, perto do meu cabelo. Meu coração deu um tranco no peito e eu esqueci tudo que ia dizer. — Creme... — Mostrou o indicador. — Desculpe se te assustei. Limpei a garganta para ganhar tempo, porque, de repente, todos os pensamentos haviam fugido de mim e só o que havia era ele, Nicolas, em minha frente. — Verônica... — soltou devagar, a voz grave e pesada. Sexy, terrivelmente sexy. — Eu não sou o monstro que procura... Posso não ser um modelo de conduta, mas Karina era muito importante para mim... — Respirou fundo, dando um trago no cigarro. — Deve imaginar que eu não tenho muitos amigos... — Esboçou um sorriso e me olhou de soslaio, mas logo o reprimiu. — Vou encontrar quem a matou e vou fazê-lo pagar... Você não precisa sujar suas mãos... Encarei-o por alguns segundos. Parecia tão despido e sincero que eu senti vontade de confiar, de ser sincera também. Sempre me disseram que o diabo era sedutor e eu tinha comprovado isso poucos minutos antes, mas naquele momento não era sedução, era conexão. Uma estranha, e totalmente despropositada, conexão. — Era minha irmãzinha... — confessei mais para mim do que para ele. — Não me importo de me sujar... A mão grande cobriu a minha e eu não senti vontade de recuar. Não exatamente um carinho, mas o calor que o toque dele produzia se espalhava por todo o meu corpo. Nicolas cravou os olhos castanhos nos meus. Havia tanta intensidade naquele olhar que eu me perdi. — Não quero que se coloque em risco... Falhei com Karina, Verônica... — Balançou a cabeça em negativa. — Não vou falhar com você também... É uma dívida de honra... Engoli em seco o bolo de sentimentos que se formaram em mim. Fazia tanto tempo que não tinha ninguém em minha defesa que o desejo de aceitar ajuda gritava. Eu queria abraçá-lo, por mais idiota que fosse, então recuei, tirando a mão debaixo da sua e ajeitando o cabelo. Dois passos atrás e o espaço entre nós era impessoal novamente. — Venha, vamos descer... — Estendeu a mão. — Nacho já pegou sua bagagem e encerrou sua conta na pousada em Cusco... Vai levá-la direto ao aeroporto, um voo com escala apenas para abastecer... Comprei duas poltronas, não permita que ninguém se sente ao seu lado. Aquiesci, enquanto caminhávamos até o elevador. Entramos os dois e ele acionou a descida. — Sua arma... — Entregou-me a pistola. — Fique dentro do meu carro até o último aviso de embarque... — Acha que estão atrás de mim? — perguntei, mas ele não respondeu. — Nicolas, se estão atrás de mim, prefiro ficar e enfrentá-los... Não sou iniciante, sei lidar com isso... Nicolas não respondeu, mas o que disse com o olhar fez um arrepio subir desde a base da minha coluna. As portas se abriram para um jardim reservado. Não havia ninguém, apenas um sedã preto, com os faróis acesos. Paramos um pouco antes e Nicolas enfiou a mão no bolso do terno, tirando um aparelho de telefone. — Aqui! — ofereceu-me. — Coloquei seu chip antigo e um localizador... Mantenha-o aí, até que esteja no Brasil... Assim que chegar lá, basta abrir e retirar... Salvei meu número pessoal... Ligue se tiver algum problema... Segurei o aparelho, mas ele não o soltou. Seus dedos resvalando nos meus e nosso olhar preso um no outro. Respirei fundo, tentando quebrar a conexão que havia entre nós, mas não consegui. Nicolas puxou-me pela mão, fazendo-me quase encostar em seu peito, sem desviar o olhar. Seu rosto aproximou-se do meu devagar, até que senti seu hálito quente contra minha boca e separei os lábios, por instinto. Seus lábios resvalaram nos meus, de lado, e eu pude sentir todo o meu baixo-ventre e estômago se aquecerem. Continuou deslizando a boca, suavemente, quase sem encostar, até perto da minha orelha e então umedeceu os lábios, a ponta da língua esbarrando em meu lóbulo e arrepiando todo o meu corpo. — Não confie em ninguém... Ouviu? Ninguém, Verônica, nem mesmo se eu disser para confiar... Não consegui responder, então ele retornou o caminho e quando chegou perto da minha boca eu não resisti, movendo meus lábios para tocá- lo, ao menos um pouquinho. — Entendeu? — perguntou tão colado aos meus lábios que mais parecia um beijo do que uma pergunta. O aroma de menta e nicotina, misturado ao seu perfume, inebriava-me e eu só conseguia aquiescer depois de alguns segundos. — Ótimo! Afastou-se tão rápido que eu pensei que fosse cair, e nem tinha onde me escorar. — Agora vá... Meu helicóptero espera na estação. Fiquei ali parada, vendo-o se afastar e um homem de terno escuro se aproximar. — Srta. Malta... Sou Nacho... Vou acompanhá-la. Nicolas Afastei-me dela o mais rápido que pude ou acabaria fazendo uma merda tão grande que nem eu mesmo saberia como sair. Que porra, Nico, beijar a garota? Minha cabeça girava e meu pau latejava dentro da calça. Eu precisava foder alguém, logo, ou acabaria fodendo a mim mesmo. Peguei o interfone. — Mande a Teresa subir... — avisei a secretária. Liberei o elevador e voltei para o escritório. Precisava de uma bebida, um cigarro e uma boceta, não necessariamente nessa ordem, já que algumas urgências eram maiores que as outras. Não demorou muito e a ruiva apareceu em meu campo de visão. Teresa trabalhava no SPA, era uma excelente massagista, mas era ainda melhor nos serviços particulares que prestava a mim e aos clientes VIPs que a procuravam. Sorriu discreta, com aquele brilho safado que tinha no olhar, e se aproximou um pouco mais. — Estou estressado e nervoso, preciso me acalmar... Ela encheu um dos copos com uma bela dose de uísque e entregou a mim. Assim que o peguei, ajoelhou-se entre minhas pernas, soltando o cinto e descendo o zíper. Dei um gole na bebida e acendi um cigarro. Fechei os olhos, sentindo seus dedos se apertarem em torno do meu pau, massageando cuidadosamente, espalhando uma gota de excitação por toda a glande, bem devagar. De repente, eu me vi em outro lugar e era outra mão em meu corpo. Verônica... A garota que eu salvei... Contraí o maxilar reprimindo o gemido, sentindo seus lábios engolirem cada centímetro de pau que eu tinha. Chupava com vontade, massageando minhas bolas e arrancando o pouco de juízo que me restava. Verônica... A louca que havia me enfrentado mais de uma vez. Não resisti e, segurando-a pelos cabelos, eu me levantei, debruçando-a sobre a mesa. Levantei a saia e puxei a calcinha para baixo, depois abri a gaveta e peguei um preservativo. Soquei fundo, sem dó. Ia tirar a maldita brasileira da minha cabeça na marra. A garota gemeu e eu segurei dos lados da sua bunda, metendo com força, saciando minha vontade de sexo, mas a cada estocada era outro rosto que eu via, com cabelos loiros desgrenhados e aquele maldito perfume de fêmea no cio que ela emanava para mim. — Desgraçada! — xinguei, agarrando o cabelo da ruiva e girando contra meu pulso, trazendo seu corpo para perto do meu. — Ah... — ela gemeu mais alto, quando eu passei o dedo em volta da carne esticada pelo meu pau, levando a umidade até o clitóris e massageando ali, movimentos certeiros, combinados ao balanço dos meus quadris. Gingava junto dela, mais fundo até que não resistiu, gozando forte e ordenhando meu pau, que não resistiu e gozou também. Assim que terminei, eu a soltei. Tivera uma bela gozada, com aquele sabor amargo no final, aquele, de quando a gente pega a boceta errada, só para fingir que está no controle. Merda! — praguejei mentalmente, pegando o que restava do meu cigarro no cinzeiro e dando um belo trago. Abri as portas duplas de vidro e caminhei pela varanda, até o gradil. Soltei a fumaça para cima. Era um começo de tarde frio, mas quase sem vento. — Sabe que não me importo que seja bruto, Nico..., mas se quer um conselho... — a voz da garota ia se aproximando, mas eu não me movi, até que senti sua mão em meu ombro. — Deveria relaxar um pouco... Uns dias no iate... Posso ir com você, se quiser... Virei-me devagar, encarando-a sem nenhuma expressão. — Se eu precisasse de conselho, Teresa..., tinha trazido o Guille, e não uma boceta... — Livrei-me do toque e caminhei de volta para dentro. — Desça... Tenho um compromisso e preciso de um banho. Estava livrando-me das roupas, quando ouvi o barulho da porta do elevador. A garota tinha que entender bem qual era o lugar dela. Entrei debaixo do chuveiro com a água ainda fria. Precisava me concentrar e voltar ao controle. Tinha resolvido tudo, e despachado Verônica de volta ao Brasil. Podia não ser o lugar mais seguro do mundo, mas ao menos ela estaria entre os dela e saberia como se proteger. Você não é um herói, Nicolas, não assuma esse papel fodido, não combina em nada com a sua vida! Saí do banheiro já de calça e camisa. Tinha assuntos a resolver em Cusco. O ministro da cultura tinha acabado de se hospedar em um dos hotéis da cidade, para a festa de inauguração do restaurante do filho, e eu queria aproveitar e marcar alguns pontos com o homem. Tinha que manter minha vida de empresário cumpridor de leis intacta e minha moral inabalada, se quisesse que meu cartel continuasse faturando com a alta roda da sociedade. Ninguém quer estar envolvido com a sujeira. A gente até gosta de rolar com os porcos em segredo, mas, quando se levanta, o terno de grife tem que estar limpo e imaculado. É assim que a vida funciona. Conferi o horário no relógio, a garota já tinha embarcado e Nacho, provavelmente, estava no caminho de volta. Peguei o telefone e liguei. — Espere-me na estação, vou a Cusco... — Quer que o busque, chefe? — o homem perguntou. — Não é necessário. Desliguei e terminei de me vestir, desci alguns minutos depois. A viagem de Aguas Calientes até Cusco, de helicóptero, durava pouco menos de uma hora e de lá peguei um transporte executivo, direto para o Centro. — Para onde, Sr. Huamán? — o homem perguntou assim que atingimos a Plaza de Armas. — No La Casona. Tinha acabado de descer do carro, quando a curiosidade falou mais alto e liguei o programa de GPS, para ver se Verônica já havia chegado a Lima. Esperei que o sinal do aparelho dela aparecesse em minha tela, mas nada aconteceu Calma, Nico... Voos atrasam e não faz nem duas horas que ela decolou... Engoli meu faro para merdas, respirei fundo, vestindo minha melhor máscara de homem de negócios e passei pelas portas duplas de madeira do hotel. — Sr. Huamán... É um prazer recebê-lo em nosso hotel! — uma das atendentes cumprimentou. — O ministro está a sua espera, no café... Meneei a cabeça em cumprimento e segui pelo caminho que já conhecia. Assim que passei pelo jardim interno, vi o ministro de costas, folheando um jornal. Caminhei até ele e parei em frente. — Boa Tarde, Sr. Vergara... — Estendi a mão. — Nico! Que prazer vê-lo de novo! — Sorriu, aceitando meu cumprimento e batendo em minhas costas. — Que bom que concordou em ajudar o Chema... Sabe que aquele garoto turrão odeia me ouvir! Sorri de canto. Conhecia bem o garoto. Era um bom cliente, pagador da melhor qualidade, mas péssimo em gerir negócios. O pai havia permitido que construísse o restaurante como última tentativa de fazê-lo se interessar por mais do que pó e putas, mas eu tinha minhas dúvidas. O velho Chema que eu conhecia não mudaria tão fácil. Despedi-me do ministro já com a noite alta e peguei outro carro, em direção à estação. A festa era uma boa oportunidade para vigiar os movimentos do Matsuya, já que atrairia muita gente de fora e disposta a gastar um bom dinheiro com diversão. Assim que o helicóptero encostou no chão, vi Nacho encostado no carro, fumando um cigarro. Desviou os olhos dos meus e eu tive certeza de que meu faro reprimido estava certo. — O que houve? — perguntei já temendo a resposta. — A brasileira, chefe... Ela desceu em Lima e desapareceu... Verônica Peguei minha bolsa de mão e empurrei para fora do aeroporto. Meu pé ainda doía, então andar rápido não era tarefa fácil. Tinha mentido para a comissária e dado a boa e velha carteirada, aquilo que a gente faz quando não tem mais saída e do que, maioria das vezes, se arrepende. Era um risco? Claro que era, mas o que eu podia fazer? Aceitar e simplesmente esperar que Nicolas Huamán, que agora eu sabia bem quem era, cuidasse de tudo, enquanto eu apenas assistia? Sinalizei para um táxi que passava e pedi que me deixasse perto do endereço do apartamento que eu tinha contratado pela internet, do chip novo, obviamente. Porque, se Nicolas tinha descoberto o grampo, podia descobrir muito mais. Entrei em uma lanchonete, pedi um sanduíche e uma garrafinha de cerveja. Estava sozinha, sem minha arma, já que ela estava a caminho do Brasil, em minha mala, e ainda tinha que dar um jeito de me esconder do maior bandido do continente. É, Verônica, você fez um belo trabalho... Peguei o celular e digitei “Nakai”. É claro que eu conhecia o sobrenome, a Nakai-Gumi era famosa em todo o mundo por controlar o mercado financeiro japonês e manter parcerias milionárias no resto do mundo. Como você acabou se envolvendo com eles, Ka? Por que não me pediu ajuda? E foi aí que a verdade doeu. Ela pediu, mais de uma vez, mas eu sempre achava que era bobagem. Não podia esperar que a garota me ligasse no meio da noite para dizer, do nada, que estava com problemas com a maldita Yakuza. Dei meia dúzia de mordidas no lanche e bebi minha cerveja, depois desci a pé até o sobrado verde. Apertei a campainha rezando para não ser uma daquelas furadas que a gente encontra dando sopa por aí, nos sistemas de hospedagem residencial. Para a minha sorte, uma mulher de meia-idade atendeu. — Oi, eu sou a Verônica... — Sorri. — Que reservou o quarto... Meu espanhol não era dos melhores, já que eu tinha aprendido a maior parte das palavras assistindo a Rebelde, mas tinha funcionado com Nicolas, ia ter que funcionar com ela também. A mulher correu os olhos pelos machucados em meu rosto, certamente pensando no que eu havia me metido para ter terminado naquele estado, mas no fim das contas sorriu. — Claro... Entre. Caminhei pela pequena sala, até um quartinho com cama de solteiro, uma arara de roupas vazia e uma mesa de cabeceira. — É aqui... Se quiser tomar banho, há toalha na gaveta de baixo do armário, e sopa no fogão caso esteja com fome. O pagamento é adiantado... — avisou cortês, mas enfática... — Oh, sim... — Tirei o dinheiro da carteira e entreguei a ela. — Eu já comi, obrigada, mas aceito o banho. Para minha sorte, tinha uma troca de roupa na bagagem de mão. Não podia andar por aí com o blusão do hotel dele e esperar que ninguém me notasse. Deitei-me na cama depois do banho, mas não consegui dormir. Estava ansiosa e nervosa, mas o pior de tudo era que não conseguia tirá-lo da cabeça de jeito nenhum. Nicolas Huamán... O pouco que provei tinha deixado todo o meu corpo acordado, como uma droga poderosa. Definitivamente, ele fazia jus à fama de rei do cartel. Balancei a cabeça em negativa e alisei os cabelos para trás. Foco, Verônica! Ele é um bandido... BAN-DI-DO! Do tipo que, no mínimo, não pestanejaria para te matar. Quando o dia amanheceu, juntei minhas coisas de volta na mala e saí o mais rápido que consegui. Não queria dar chance para conversa alguma com a dona da casa, nem queria que ela se lembrasse muito de mim. Se Nicolas decidisse me procurar, quanto menos ela soubesse, melhor. Peguei um táxi de volta para o aeroporto e, de lá, um voo para Arequipa. Tinha que sair do radar do Condor, mas de carro não conseguiria chegar a Cusco e investigar o que precisava antes de acabarem meus dias de licença, então precisei improvisar. De Arequipa a Cusco eram mais quinhentos quilômetros. Eu não podia comprar uma passagem direta, porque aí teria que mostrar meus documentos e me registrar como passageira, o que acabaria com a minha tática de passar despercebida, então fui pegando ônibus de linha, até estar perto o suficiente para chamar um táxi e não gastar toda a minha poupança. Eram quase oito da noite quando cheguei a Cusco. Cansada, suja e com o pé machucado ainda mais inchado do que quando saí da cidade. Parei em uma das lojinhas do Centro e comprei uma mochila pequena. Precisava me livrar da mala e carregar o que fosse essencial junto de mim, o tempo todo, não podia dar bobeira, tinha noção do quanto o que eu queria fazer era perigoso. Todo mundo tinha medo da Yakuza e a polícia não era diferente. Eu podia ser corajosa, mas não era estúpida nem queria acabar como minha irmã. Andei um pouco pelo Centro, aproveitando que estava frio para cobrir minha cabeça com o capuz do moletom. Tinha a sorte de ser magra e baixinha, então não era tão difícil assim me passar por adolescente de férias. Estava descendo uma das ruas próximas, quando vi um sedã executivo preto parar junto ao meio-fio, no que parecia ser a parte detrás de um restaurante em construção que eu tinha visto mais cedo. Gelei, engolindo em seco um pouco de medo e ansiedade que senti, mas, quando o passageiro desceu, não era o Condor. O homem, na faixa dos cinquenta, sessenta anos, tinha traços orientais e olhar frio e sisudo. Deu uma ordem ao garoto que o acompanhava e, logo depois de um telefonema, os dois entraram pelas portas de metal. Meu sexto sentido apitou. Não era incomum que orientais se fixassem no Peru, o país tinha um histórico de imigração com o Japão, mas aquele homem ali estava longe de ser um trabalhador comum. Dei a volta e passei em frente, depois me sentei em uma praça, de onde conseguia observar o lugar. A placa dizia La Morada, comida típica peruana e tinha o nome de um chefe famoso local. Digitei o nome em meu celular e o dono era José Maria Vergara, filho do ministro da cultura. Pesquisei pelo nome do homem e a maioria das notícias eram escândalos. Bebedeiras, jogos ilegais, sexo ilegal. Era uma longa e bonita ficha para o filho de um homem público. Então quer dizer que o riquinho de merda está com negócios extraoficiais... Só havia uma coisa na vida que eu odiava mais do que bandidos confessos... Políticos! Eles se fingiam de bons-moços, preocupados com a nação, e na verdade eram a pior parte da sociedade, ou pelo menos a maior parte deles era! Na internet, as notícias sobre o restaurante diziam que inauguraria no dia seguinte, em uma festa privada, para membros seletos da sociedade. Nem se atreva, Verônica! Nem pense, porque ele, obviamente, não iria ajudar você a entrar. Quando o cansaço bateu, encontrei um albergue de juventude, daqueles bem bosta, mas que deixam passar aquela velha história de “já trago meu documento” e tudo bem. Deitei-me na cama e tentei dormir, mas não consegui. Tinha que encontrar um jeito de entrar naquela maldita festa. Nicolas Eu não era idiota e sabia muito bem quais eram as verdadeiras intenções da garota. Só precisava de um pouco de sorte, e ela cairia em meu colo. Verônica havia se livrado do chip de celular, como eu imaginei que faria, mas ela não contava com o localizador que eu havia colocado dentro da mala de mão, de que ela só tinha se livrado depois de chegar a Cusco. — Quer que eu a encontre, chefe? Cusco é nosso território, trago a garota aqui em menos de duas horas... — Nacho propôs, enquanto eu vestia meu terno. — Não é necessário... Se eu bem a conheço, nos encontraremos em breve. Falei o mínimo possível, porque Guille tinha descoberto, por acaso, um dos homens do Matsuya dentro do voo de Lima para São Paulo. Eu ainda não sabia se fora coincidência, um golpe de sorte ou se estava mesmo sendo traído por um dos meus, já que pelo menos quatro homens de confiança sabiam do retorno de Verônica ao Brasil. Em meu ramo, a parte pior e mais difícil era sempre encontrar a maçã podre no cesto, porque, vamos combinar, não éramos homens cheios de virtudes. Terminei de me vestir e acomodei a semiautomática na parte detrás do cós da calça. Não era uma situação de risco iminente, e sim um encontro da sociedade, eu não precisava de mais do que minha arma pessoal. Entramos no carro, Nacho, eu e o motorista, direto até o centro de Cusco. Canhões de luzes iluminavam e sinalizavam a entrada, enquanto projetores desenhavam símbolos antigos nas paredes caiadas do antigo casarão. Tinha sido um trabalho primoroso de reforma, todo feito com o dinheiro do povo, obviamente, mas quem era eu para criticar? — Espere por mim do lado de fora e faça uma boa ronda. Se encontrar algo estranho, fale comigo antes de agir... — instruí. — Não quero problemas na festa do ministro. O homem aquiesceu e desceu, abrindo a porta para mim. Ajeitei o terno escuro e alisei os cabelos para trás, mostrando meu melhor sorriso. A entrada estava cheia de repórteres locais e da capital. Pessoas se aglomeravam para ter a chance de ver de perto alguns dos famosos que também haviam sido convidados. Enfiei a mão no bolso do blazer e retirei meu convite, enquanto corria os olhos, discretamente, pelos presentes. — Seja bem-vindo, Sr. Huamán... É um prazer tê-lo conosco esta noite... — A recepcionista sorriu. Meneei a cabeça em cumprimento e segui para dentro. Eu odiava aquele tipo de festa, mas tinha aprendido a tolerar pelo bem dos negócios. Era nisso que Guille e eu nos diferenciávamos. Ele era melhor lidando com cinquenta homens armados e um caminhão cheio de produto, eu me dava melhor no covil dos chacais, fingindo ser como eles. — Nico! — O filho do ministro abriu os braços assim que me viu. Chema me devia um bom dinheiro, então me tratava como seu melhor amigo, pensando que assim eu seria mais brando quando chegasse a hora de cobrá-lo. Bateu em minhas costas, em um cumprimento exagerado, que eu retribuí à minha maneira. — Venha, quero lhe apresentar algumas pessoas... Estávamos falando do seu hotel! Tenho ideias em mente para uma semana inca, veja, aquela é Eleonora Rualta, você precisa conhecê-la... Segui com ele pelo meio das pessoas, cumprimentando uns, ignorando outros, como sempre. Faz parte do negócio manter a pose de inatingível. Se você distribui sorrisos demais, acaba taxado de carne de vaca, e as pessoas brigam é pelos faisões. A tal Eleonora, secretária de cultura do governo e encarregada de melhorar o turismo na região, tinha até um plano, mas meu interesse não estava na semana inca, e sim na brasileira desmiolada e sem nenhum amor à vida que eu precisava encontrar. Ia aquiescendo e respondendo monossilabicamente, enquanto meus olhos astutos vagavam pelo salão. Meu apelido não tinha sido dado à toa. A brasileira era esperta. Depois de tudo que eu havia contado a ela sobre Karina e a Yakuza, não ia simplesmente deixar para lá e seguir com a vida. Já passava das dez da noite, quando o homem de costas chamou minha atenção. Estatura mediana, cabelos lisos e curtos e aquela postura de que o mundo devia se curvar a ele. Estreitei os olhos sem querer, cerrando os dentes e sentindo o maxilar doer. Eu sabia do envolvimento de Chema com o Yakuza. As festas milionárias do herdeiro eram sempre abastecidas com as garotas que a máfia japonesa enviava, como cortesia, pelos olhos fechados do ministro quanto ao tráfico de mulheres. Nunca fui do tipo que enfia mão em vespeiro que não me pertence, eu tinha meu telhado de vidro também, então me mantinha longe de problemas, mas, desde o sequestro de Helena e o assassinato de Karina, aquele vespeiro tinha se tornado meu também. Peguei uma taça de champanhe e dei a volta no salão, sem que o japonês pudesse me ver. Ele terminou a bebida e depois caminhou a passos largos até perto da entrada de serviço, onde um jovem oriental o esperava. Não pude ouvir o que falavam, mas, assim que o garoto estendeu a mão para alisar os cabelos para trás, eu vi o rabo da carpa em sua mão. Que diabos um homem do Nakai estaria fazendo com o Matsuya? — Precisa de algo? — Chema chegou sorrateiro, por trás, como se estivesse me vigiando. — Sim... Descobrir onde é o banheiro! Animar um pouco tudo isso, sabe como é... — Bati no bolso do terno e o garoto riu animado. — É claro! Venha, vamos até o meu escritório. Há um banheiro particular lá... Acompanhei-o pelo corredor da cozinha, até subir um lance de escadas e encontrar um escritório suntuoso e elegante. — Aqui, acredito que a mesa de madeira de lei que ganhei do Nevada seja melhor que a bancada do banheiro! — Riu. Passava a língua pela boca, fungando e chupando o ar, como os viciados fazem por antecipação ao que virá. Tirei o pino do bolso e abri, espalhando sobre a mesa e repartindo com um cartão do restaurante. Depois passei o cartão na língua, sentindo-a amortecer com a pureza da droga e aumentando a expectativa do garoto. Quando cheirou a primeira carreira, riu alto. — Oh... Essa é forte! — constatou. — Para os meus bons clientes, somente o melhor... — Sorri discreto, oferecendo mais uma carreira ao garoto. Eu precisava de informações, e ele, de um pouco de felicidade gratuita, então estávamos felizes os dois. Caminhei até o bar e enchi um copo com uísque, voltando para perto da mesa e dando alguns goles. — Tem certeza de que não quer? — perguntou, quando sobrou apenas uma carreira. — Prefiro um bom doze anos... — Bati com o indicador no copo e tirei o lenço do bolso do blazer, oferecendo a ele, para que limpasse o pó branco do nariz. Não tinha dado a ele o suficiente para que ficasse chapado, apenas um agrado, em troca da conversa sincera que eu queria ter. — E os negócios, como andam? — perguntei depois de mais alguns goles. — Os verdadeiros, porque esse aqui, companheiro... Sabemos que dá mais dor de cabeça que dinheiro... — brinquei e ele riu. — Meu pai não iria sossegar enquanto eu não fingisse que trabalho de verdade, você sabe, ele se preocupa demais... Aquiesci. — Se precisar de algo, sabe que pode falar direto comigo... Tem meu telefone pessoal... — lembrei-o. — A festa está muito bonita, você fez um ótimo trabalho... Até o Matsuya apareceu... — Ah, ele tem aparecido bastante por aqui... — Riu. — Os negócios estão deslanchando... Tem até gente de fora vindo... — Nakai? — perguntei despretensiosamente, já que pouca gente sabia do meu passado com Isao. — Achei que eles fossem inimigos... Chema riu, batendo em minhas costas. — Você sabe como é o mundo dos negócios... Às vezes a gente precisa baixar a guarda e aceitar as coisas como são... — Riu mais um pouco, esfregando o nariz para aproveitar o pouco de pó que poderia ter ficado parado na narina. — O Seiji quer ampliar os negócios... Diversificar os ramos... Concordei mais uma vez. — Drogas? — perguntei apenas por curiosidade. — Não, Nico! — Arregalou os olhos. — Eu e você, nós... O cartel... Bem, o negócio é seu, sempre será... Levei o copo à boca, disfarçando um sorriso sem vontade. Então os dois filhos da puta estão se unindo contra mim... E usando meus aliados... Descemos as escadas alguns minutos depois. A festa ainda estava cheia e animada, com todos ansiosos para a apresentação de dança típica que teríamos. Era minha deixa para sair de fininho e procurar por Verônica na cidade. Eu até tinha uma ideia de por onde começar. Passei pelo grande salão e estava quase descendo a escada quando vi, pelo reflexo do vidro, um vulto correndo, meio sem jeito, atravessando o jardim em direção à entrada dos fundos. Fiz o trajeto contrário, conhecia bem aquele casarão, mesmo depois da reforma, e contava com isso para surpreender quem quer que fosse o intruso. Caminhei devagar, beirando a parede, a mão na arma, olhos e ouvidos atentos. Vi primeiro o ombro de uma jaqueta preta e então levei a mão com força. Tinha só uma chance, não ia desperdiçar. Verônica Senti o puxão, mas não tive tempo de reagir. Fui empurrada contra a parede de tijolos, o cano frio da arma em minha têmpora, enquanto um antebraço forte mantinha meu pescoço preso. Levantei as mãos em sinal de rendição, não tinha nem como lutar. O coração acelerado e aquela sensação de adrenalina incontrolável em que a gente fica quando sabe que a vida está por um fio. E foi então que o aperto afrouxou e eu inspirei com força, sentindo aquele maldito perfume conhecido invadir meus sentidos. — Sabe o que eu deveria fazer? — Engatilhou a pistola, tão próximo do meu rosto que o barulho me fez tremer involuntariamente. — Estourar os miolos que você não tem, detetive... — Faça! — provoquei. Nicolas me virou de frente em um único movimento, batendo minhas costas contra a parede e fazendo-me reprimir um gemido de dor. O olhar que tinha beirava a animalidade. Maxilar contrito, o joelho entre minhas pernas, mantendo-as abertas e presas, impedindo-me de revidar. Desceu o cano da arma pela lateral do meu rosto, até meus lábios, tocando-os devagar. Respiração entrecortada, dele e minha, como se estivéssemos em sincronia. Eu sentia um misto de medo e excitação se espalhar pelas minhas veias, como um veneno poderoso e paralisante. Nicolas segurou-me pelo braço, forte, sem dizer uma palavra sequer. Arrastou-me por dentro do terreno, de volta ao portão de serviço, na rua adjacente e continuou, até que atingimos a esquina. A rua de pedras e o passo rápido dele me faziam tropeçar e eu o sentia me sustentar pelo braço, forte e dolorosamente. Empurrou-me para dentro de um portão de ferro e atravessamos um jardim escuro. Assim que passamos pela porta do que parecia ser uma casa antiga, ele me prensou contra a parede. — Hum... — gemi de dor, mas mantive os olhos focados nos dele. — Sabe o que eu acho, garota? — perguntou, mas não esperava uma resposta. — Você não tem ideia de com quem está brigando! Entrou nessa achando que ia ser como suas operaçõezinhas de fundo de quintal... — Forçou o joelho entre minhas pernas, roçando em mim de propósito. — Sabe o que acontece quando um pardal tenta voar com os condores? A arma passeava em meu rosto, descendo pelo pescoço e clavícula, brincando no decote da camisa de botões. Eu sentia meu corpo todo tremer e se aquecer, a excitação pulsava entre minhas pernas, bem no local em que seu joelho me tocava. — Se vai me matar, deveria fazer isso de uma vez... Não se deve apontar uma arma se não há intenção de atirar... O movimento foi tão rápido que, quando ouvi o tiro, tive certeza de que era em mim, mas o grito esganiçado do pássaro lá fora e o sorriso de Nicolas deixaram claro que não. — Tem razão, Verônica... Não se desperdiça um tiro engatilhado... — Umedeceu os lábios, aproximando-os dos meus. — Para sua sorte, ainda não era sua vez. Ele ficou parado ali, por alguns segundos, respirando junto a minha boca, como se travasse uma guerra mental contra o que queria e o que deveria fazer, exatamente como eu, e sem aviso algum sua língua invadiu a minha, ansiosa e ávida por espaço. — Hum... — gemi de novo, mas dessa vez não era de dor. Nicolas prensou o corpo contra o meu, apertando o pau duro contra meu estômago e fazendo-me arfar. A boca moía a minha com tanta velocidade e fome que era quase doloroso. Abriu o botão da minha calça e a puxou para baixo, com calcinha e tudo, até os tornozelos, sem nem pensar. Livrei minhas pernas das roupas, enquanto soltava o cinto e o botão, baixando o zíper. Senti suas mãos em minha bunda e enlacei as pernas em sua cintura, sem deixar de beijá-lo. Era uma urgência incontrolável por mais, tão intensa e forte que o roçar do elástico da cueca em meu clitóris quase me fez gozar, sem que eu nem fosse tocada de verdade por ele. — Ah... — gemi mais alto, quando ele mordeu meu pescoço, chupando com força. Nicolas me colocou sobre uma base de madeira e enfiou a mão entre nossos corpos, fazendo-me tremer em antecipação, tanto que quando me penetrou eu soltei mais um gemido alto e forte, impossível de controlar. Apertei as coxas contra sua cintura, sentindo-o ir mais fundo e mais fundo, causando um misto de prazer e ardência, deixando-me zonza. Sua mão espalmou-se contra meu peito, baixando-me, e então ele agarrou-me pelo quadril, chocando-o com força contra sua pelve uma e outra vez, até que eu senti o princípio de espasmo em meu canal. Arqueei o corpo esperando o gozo que viria, mas Nicolas puxou-me pelo cabelo, enlaçando em torno do pulso e levantando-me de volta. — Olhos abertos... — ordenou. — Quero vê-la gozar... Obedeci, mordendo o lábio para segurar o gemido. Estava tão molhada que o sentia escorregar para dentro e para fora arrepiando minha pele. Quando o orgasmo veio, perdi os sentidos por um segundo, testa apoiada na dele, as mãos deslizando em seu peito ainda coberto. Com a mesma força que me invadiu, Nicolas me deixou. Eu mal conseguia organizar os pensamentos, quanto mais descer da porra da mesa. Respirei fundo e tentei pensar no que faria a seguir. Nicolas deu dois passos em frente, apoiando as mãos na pia. Depois alisou os cabelos para trás. A arma ainda sobre a bancada, a luz da lua iluminando sua silhueta. Que porra, Verônica! Que porra você acabou de fazer? — Há um banheiro seguindo o corredor... — a voz grave e profunda dele estava carregada de um sentimento que eu não sabia como definir. Arrependimento? Era compreensível que fosse, eu me sentia do mesmo jeito, sem saber bem o que pensar. Peguei minhas roupas e segui até o final do corredor. Com as luzes apagadas, eu não sabia bem onde estava, mas, quando cheguei ao banheiro e apertei o interruptor, vi que era uma casa antiga, tradicional e muito bem- cuidada. O ladrilho do chão tinha um tom de terracota, clássico do estilo latino, com azulejos amarelos, ornamentados por flores azuis na faixa decorativa. Liguei o chuveiro e deixei que a água caísse sobre mim, mas o toque de Nicolas ainda estava ali, na pele sensível pelas carícias e dolorida pela intensidade do sexo. Passei sabonete nas mãos e comecei a lavar meu corpo, mas tudo que sentia ainda era as mãos dele, o toque, o beijo, o gosto, o cheiro de suor e perfume caro, os gemidos contidos, a barba cerrada arranhando meu pescoço. Talvez ainda fosse efeito do ato, mas a verdade é que meu tesão por ele tinha aumentado, e não diminuído. Alisei os cabelos para trás e soltei uma lufada de ar buscando um pouco de clareza, mas, assim que me virei de volta para a porta, Nicolas estava lá. Mãos cruzadas sobre o peito nu, a calça aberta, mostrando o caminho de pelos escuros que descia abaixo do umbigo, perdendo-se no elástico da cueca branca, onde o volume já estava formado. Soltei o ar dos pulmões sem querer, hipnotizada por seus olhos escuros. — Sabe de uma coisa? — perguntou, dando passos em direção ao boxe de vidro. — Ainda não estou satisfeito. Mordi o lábio reprimindo o sorriso safado que insistia em ganhar meus lábios. Nicolas Ela sorriu e eu perdi o pouco de sanidade que ainda tinha. Já estava no inferno mesmo, ia aproveitar o que podia do demônio loiro que a vida tinha colocado em minha frente. Entrei com ela no espaço apertado do boxe ainda de calça. Verônica demorou alguns segundos analisando o desenho em meu peito, traçando-o com a ponta dos dedos, descendo em direção a minha cintura. Baixou minha calça e eu a tirei. Acariciou o monte que meu pau duro formava na frente da cueca com a mão, enchendo-a com gosto, lábios semiabertos, como se estivesse me provando devagar. Senti-me pulsar contra seus dedos, latejando de desejo. — Gosta do que vê? — perguntei ensaiando um sorriso de canto que combinava com o dela. Tínhamos chegado àquele ponto em que a queda é inevitável, então estávamos aproveitando a descida. — Gosto mais do que sinto... — Apertou os dedos em torno do volume, fazendo-me gemer. Deixei que baixasse minha cueca e, quando o fez, encaixei o pau entre suas pernas, sem penetrá-la. Segurei em sua nuca, elevando a cabeça para que eu pudesse beijá-la, minha língua tateando a dela, mordiscando seus lábios e sugando-os. Com a outra mão, acariciei seus lábios íntimos separando-os para que, quando me movesse, pudesse friccionar meu pau contra seu clitóris. — Hum... Nicolas... — gemeu contra minha boca, quando comecei. — Ah... Brinquei com ela, controlando o que sentia pelos gemidos que soltava, até que ela mesma não aguentou, levando a mão até a boceta e guiando meu pau para dentro. Ergui sua perna, encaixando em minha cintura para melhorar a posição, e então comecei a fodê-la com a vontade filha da puta que ela me dava. Quanto mais eu investia, mais queria, rápido, forte, sentindo minhas bolas socarem contra sua carne macia. Era viciante, mais que qualquer heroína que eu pudesse produzir. — Porra, brasileira... Precisava ser gostosa assim? — brinquei e ela riu contra o meu pescoço, arrepiando minha pele. — Nico... — sussurrou, mas não foi capaz de continuar. Quando sua perna fraquejou, eu soube que era hora de ir fundo, buscando minha própria liberação. Gozei ouvindo-a gemer tão alto que podia apostar que metade de Cusco havia ouvido também. Quando recobrei o controle, estava apoiado contra a parede de azulejos amarelos, Verônica abraçada a mim. Os braços pequenos mal chegavam em minhas costas, o rosto enterrado em meu peito. Respiração entrecortada, quase imóvel, como se precisasse de um tempo para se recuperar. Segurei seu rosto entre minhas mãos e encarei seus olhos castanho- esverdeados. Por um segundo, não queria pensar no depois, nem em como seria quando ela ponderasse e fugisse mais uma vez. Eu só queria ser o Nico, não o Condor, nem o rei do cartel, só o homem. Ela encarou-me por um longo tempo, depois cruzou as mãos em minha nuca, o nariz contra meu pescoço, respirando ainda acelerado. — Vem... — Levei-a pela cintura, já que o inchaço no tornozelo ainda era evidente. — Está frio, você vai acabar doente. Verônica não ofereceu resistência, acompanhando-me para fora do boxe. Enrolei uma toalha em volta dela, outra em minha cintura, e comecei a secar seus cabelos. — Está com fome? — perguntei. — Eu posso... Ela negou com a cabeça, interrompendo-me. Os olhos se perdiam nos meus a cada vez que nossos olhares se cruzavam. Era como se ela não quisesse dizer, mas esperasse que eu entendesse mesmo assim. — Venha... — Estendi a mão e ela a cobriu com a sua. Levei-a até meu quarto e a coloquei sentada na cama, enquanto vestia uma calça de elástico. — Vou conseguir algo para você vestir... Deixei-a e atravessei o jardim interno, até o quarto de Maribel... Abri o armário em busca de algo que Verônica pudesse usar para dormir. Encontrei uma calça de moletom e uma camiseta, e levei até ela. — Aqui... — coloquei na cama ao seu lado. A garota ficou encarando a camiseta cor-de-rosa por alguns segundos e, mesmo que não precisasse, senti-me no dever de explicar. — Minha prima... — expliquei. — Esta casa em que estamos... pertence a minha família há muito tempo... Verônica continuou encarando a roupa e a mim, como se buscasse entender. — O quê? Achou que eu tinha nascido de uma chocadeira ou algo assim? — brinquei e ela esboçou um sorriso. — Eu sou só um homem, Verônica... Posso ter escolhido um caminho diferente do seu, mas sou humano, como você. — Vai mesmo preparar algo para eu comer? — Sorriu provocativa. — Posso tentar... Não faço ideia de como está a despensa... Não venho muito aqui... — confessei. Vestiu a calça e depois a camiseta, arrumando os cabelos com as mãos, depois respirou fundo. — Nicolas, eu... — Nico... — interrompi. — Pode me chamar de Nico, como fez agora há pouco... — Sorri de canto, vendo o rubor manchar sua pele clara. — Mas hoje não vamos conversar, corazón... Amanhã... Hoje não... — Aceito a comida, então... — Sorriu. — Não como desde o almoço. Desencostei-me da cômoda em que estava e segui pelo corredor, de volta até a cozinha, e acendi as luzes. A noite estava fria e Verônica esfregou os próprios braços, quando se sentou na grande mesa de madeira. — Você não sente frio, não? — Gosto do clima daqui... O frio me faz pensar melhor... — Sorri de canto, pegando uma frigideira e colocando no fogo. Quebrei três ovos e mexi. Coloquei um pouco de farinha de milho fina e sal. Fritei em porções, como panquecas, do jeito que Tia Lupe fazia quando éramos crianças. Quando terminei coloquei o prato na mesa e peguei uma das panquecas, dando uma mordida generosa. — Desculpe o cardápio enxuto, senhorita, mas é o que este chefe consegue preparar no meio da madrugada e com uma geladeira vazia. Verônica levou à boca e deu uma mordida; depois de mastigar sorriu. — Até que você é bom nisso! — brincou. Depois de comer, eu a levei até o quarto, não podia deixar que voltasse para o albergue, não sem proteção. Alguém provavelmente tinha nos visto sair juntos, isso se não a estivessem seguindo antes. Se a garota não ia mesmo embora, ao menos tinha que se manter longe de problemas. — Durma um pouco... Logo vai amanhecer e aí vamos conversar... — expliquei. — Você não vai dormir? — perguntou. — Depois... Vesti uma blusa e deixei-a na cama. Segui até o jardim, acendendo um cigarro e dando um trago longo. Havia algo naquela garota que despertava o melhor e o pior de mim. Se me desafiava, eu queria ir além, dominá-la, subjugá-la, mostrar quem mandava, mas, se baixava a guarda, levava a minha com ela e tudo que eu queria era protegê-la. Verônica Malta tinha um dom que ninguém mais tinha, ela conseguia trazer de volta à tona um Nico que havia sido soterrado pelo poder. Um que cheguei a pensar que não existia mais. Verônica Acordei com a claridade entrando pelas cortinas finas da janela. Nico dormia ao meu lado. Parecia tão relaxado e tranquilo que fiquei alguns segundos encarando o homem na cama. Era tão jovem para o peso que carregava. Não parecia ter muito mais que trinta anos. Rosto bonito, corpo perfeito, nem parecia o homem letal de quem eu ouvira falar. Havia uma cicatriz funda no pescoço, perto do osso da clavícula, provavelmente um tiro. Pela manga da camiseta branca, a cicatriz de um corte de faca marcava sua pele morena em um tom mais claro e levemente brilhante. Quanta coisa você já viu? Pelo que já passou? Eu queria enxergar nele o que via antes de o conhecer, mas, a cada minuto que passava com Nicolas Huamán, aquela imagem desaparecia um pouco mais. Levantei-me com o cuidado de não o acordar. Não sabia em que momento da noite ele havia deitado, talvez precisasse de um pouco mais de descanso, e assim eu poderia me preparar. Não podia fraquejar, não estava ali para encontrar um romance ou algo do tipo, Karina, Karina era o foco. Tateei pela cama, mas desisti quando Nicolas ressonou. Olhei nas duas mesas de cabeceira e sobre a cômoda, mas não encontrei. Caminhei até a cozinha rezando para ainda estarmos sozinhos e procurei pelo chão, mas também não encontrei. — Droga! — xinguei baixinho. — Estava procurando por isso? — a voz grave me fez pular de susto. Virei-me para encontrar Nicolas junto ao arco da entrada, a pistola pendurada no indicador. — Achou mesmo que eu a deixaria dando sopa por aí? — provocou. Soltei o ar dos pulmões de uma vez, mas, quando ia começar a explicar, vi o aparelho debaixo da minha camisa. — Não! — Ergui a sobrancelha. — Estava procurando por isto! — Balancei o celular, já em minha mão. — Gravei uma conversa que ouvi ontem, lá nos fundos do restaurante... Não conheço bem os nomes, mas você deve... — Parei a frase no ar e revirei os olhos. — Achou mesmo que eu ia tentar te matar? — perguntei surpresa. Nicolas deu alguns passos e puxou uma cadeira, espreguiçando-se. — Por que não? Você e eu não somos amigos... Não temos nenhum... — correu os olhos pelo meu corpo de um jeito íntimo — negócio... Engoli em seco as palavras, porque, ainda que fossem verdadeiras, não eram exatamente o que uma garota quer ouvir depois de transar com alguém. — Talvez no seu mundo... — ignorei o gosto amargo em minha boca, usando minha melhor cara de deboche — a traição seja normal e esperada, mas no meu... — Peguei uma maçã na cesta de frutas e dei uma mordida. — A gente não costuma apunhalar as pessoas pelas costas... De repente, ele se levantou, apoiando o corpo na mesa, de frente para mim. Poucos centímetros entre nós. — Um olho aberto, outro fechado... Sempre... Não importa quem seja... — falou encarando-me. Senti o coração pesar, não sabia o que dizer, porque, ainda que não fôssemos nada um para o outro e tudo não passasse de uma boa foda, naquele momento parecia íntimo e pessoal demais. — Nico, eu... — Engoli em seco, sem conseguir continuar. — Foi por minha causa, Verônica... Karina morreu por minha causa... Alisou os cabelos para trás, parecia mais pesaroso do que ameaçador e, para ser sincera, eu não queria censurá-lo nem o culpar, ao menos não naquele momento. — Isao Nakai e eu temos uma dívida... Um acerto de contas que só vai terminar quando um dos dois morrer... — confessou. Não parecia uma disputa por território ou qualquer coisa relacionada ao cartel, tinha cara de assunto pessoal, então não perguntei nada, apenas deixei que ele falasse. — Minha mãe morreu quando eu nasci... Um parto difícil, daqueles em que não se pode fazer muito a não ser rezar para que pelo menos um dos dois se salve... — Respirou fundo. — Eu me salvei, ela não... Baixei os olhos para os pés. Família era um assunto complicado para mim também. — Meu pai nunca quis outra mulher, passou uns bons anos sozinho, até que uma antiga vizinha da sua infância reapareceu... Ela se chamava Malena Santiago... — Respirou fundo. — Malena era como Karina... Levava luz por onde passava e tudo parecia melhor com ela por perto. Meu pai sempre a amou, mas não achava que tinha o direito de ficar com ela... Deu espaço demais, e o Nakai apareceu... Nicolas cerrou as mãos em punho, tão forte que veias subiram por seu antebraço, o peito indo e vindo, mostrando o ódio que sentia. — Meu pai acabou morto, a Malena também, e aqui estamos nós, Nakai e eu, disputando quem consegue ferir mais o outro. Respirei fundo, podia sentir um pouco da dor dele apenas por encará-lo. Nicolas não era tão bom em esconder sentimentos quanto eu pensava, ou havia desistido de fingir para mim. — Sinto muito... — soltei meio sem querer. — Por quê? Ele merecia! Era um traficante filho da puta, igualzinho a mim... — Deu de ombros, enquanto acendia um cigarro. — Daquele tipo que você deve adorar pegar em flagrante e encher de porrada! — Piscou, ainda com o cigarro entre os lábios. Eu sabia bem o que estava fazendo, usava aquela mesma tática quando queria fingir que não me importava com nada. Eles morreram... Morreu, a gente enterra! Era cruel. Eu era cruel e era desumana também. Para ser sincera, não era, mas eu fingia e, quando fingia, doía menos. Fui aprendendo a não me importar e a repetir isso como um mantra, até que se tornasse verdade. Era estranho olhar para Nicolas Huamán, porque eu sentia como se olhasse no espelho. Podíamos ter seguido caminhos diferentes, mas tínhamos muito mais coisas em comum do que gostaríamos. Nicolas virou as costas, encarando o jardim. — Nicolas... — chamei, mas ele não se virou. Respirei fundo um milhão de vezes, tomando coragem para dizer o que estava entalado em minha garganta. — Não é sua culpa... Devagar ele se virou para mim, encarando-me por mais alguns segundos. — Não é sua também... E olha para você... Está machucada, quase morreu e ainda assim... não desiste... Tentava parecer duro, inabalável como o homem que eu havia conhecido, mas eu o via um pouco melhor agora, como se o véu tivesse sido retirado. — Volta para casa, brasileira... Antes que se machuque de verdade... — Deu um trago no cigarro. — Estou cansado de recolher corpos ao meu redor... Jogou a ponta do cigarro no chão e pisou em cima, dando-me as costas novamente e seguindo pelo corredor. — Nico... — chamei. Ele não se virou, mas parou onde estava. — Deixe-me ajudar... — pedi. — Você quer a sua vingança, eu quero a minha... Nicolas As palavras bateram em mim como um tapa, forte, espalmado, no meio do rosto. Eu conhecia bem o tamanho do buraco que era a vingança e o quanto a gente se machucava na queda, mas não podia dizer a ela que não compensava. Porque, no fim das contas, quando a gente sabe que a justiça foi feita, vale sim. Soltei o ar dos pulmões de uma vez, alisando os cabelos para trás e coçando a barba. — Deixo você ficar e observar... Do meu jeito, detetive... Sem escapadas e sem surpresas... — Cruzei o espaço entre nós em alguns passos. — Eu dito as regras e você obedece... — Corri a mão pela lateral do seu rosto, levantando o queixo para que me encarasse de perto. — Bem quietinha e dócil, como um gatinho... Nada de garras para fora, sem questionar, sem pensar muito... Apenas obedecendo... Verônica entreabriu os lábios e eu senti meu pau latejar dentro da cueca. Tudo tinha sempre um viés sexual entre nós, a porra de um desejo que eu mal conseguia controlar. — Sim senhor... — provocou, mordendo de leve o lábio inferior, como se também não pudesse evitar. — Mas sabe que não sou detetive... Minha mão foi escorregando pelo pescoço e seios, sentindo o bico arrepiado e arrancando um arfar suave dela. Desci pela cintura, umbigo, até o cós da calça e afundei ali, acariciando o pequeno monte de pelos aparados que ela tinha, sem desviar os olhos dos seus. — Mais uma coisa... — falei, descendo um dedo até a entrada da sua boceta e fazendo-a fechar os olhos por um segundo. — Enquanto estivermos com isso... — Trouxe-a para perto, roçando os lábios em sua orelha. — Você fica na minha casa... Nada de hotel, senão não consigo te proteger e você vai ser uma pedra chata no meu sapato... — Sabe o que eu acho? — perguntou com um olhar sagaz, cheio de malícia. — Que você gostou tanto de foder ontem que está querendo uma desculpa para fazer de novo... Enfiou a mão por dentro da minha camiseta, arranhando meu peito com as unhas e arrepiando minha pele. Eu estava tão duro e pronto para foder aquela desgraçada gostosa de novo, que mal conseguia falar. — E se eu quiser... — Aprofundei mais o dedo, sentindo a umidade dela se espalhar, quente, pelas paredes do canal. — Acha que aguenta? — provoquei. — Acho que posso tentar... — Puxou-me pelo pescoço, levando até perto da sua altura, e sussurrou em meu ouvido. — Chefe... No minuto seguinte, ela estava sentada na mesa e meu pau castigando a boceta dela com gosto. — Ah... Nico... — sussurrou e agarrei seu quadril esfregando contra mim e sentindo seu canal se apertar. Podia ter parado, estava quase gozando, mas não conseguia. Eu queria mais e mais. Tinha lidado com as piores drogas a vida toda e acabei viciado na porra da brasileira em poucos dias. — Hum... — gemeu mais forte, cravando as unhas em minhas costas. Aquele ardor de arranhado estava por toda a minha pele, mas eu podia apostar que ela ia arder muito mais quando eu parasse. Puxei-a pela nuca, moendo minha boca contra a dela, minha língua fodendo sua boca, enquanto meu pau se deliciava mais um pouco, indo e vindo sem parar. Quando minhas pernas fraquejaram, eu me apoiei na mesa, aumentando o ritmo, até que o ar me faltou. Nunca na vida eu tinha gozado com tanta intensidade. Sentia a cabeça girar e aquele calafrio que a gente não consegue controlar, só sentir. Deixei a cabeça pesar contra seu ombro e ela me abraçou, as mãos acariciando minhas costas ardidas e suadas... — A gente precisa ir com calma... — Riu contra minha pele, fazendo-me arrepiar mais. — Sabia que isso mata, não é? — Dá uma boa lápide... — brinquei, guardando o pau dentro da cueca e encostando ao lado dela para acender um cigarro. — Nicolas Huamán... — Dei um trago. — Morreu feliz, fodendo como uma britadeira desgraçada! Verônica riu e pegou o cigarro da minha mão, levando à boca. — O que você conseguiu gravar... Deixe-me ver... Ela pegou o telefone e procurou pela gravação, depois aumentou o som. No vídeo, um homem que eu conhecia bem aparecia ao fundo, falando com alguém que eu não conseguia ver. “Eu já disse, estamos ficando sem tempo!” — gritou e depois estendeu a mão, como se pegasse alguém pelo colarinho. “Meus assuntos não interessam! Só o que precisa saber é que uma nova era está nascendo...” — Riu debochado, ajeitando o terno. “O velho está com o pé na cova e o filho é muito melhor de negócios... Isso! Tanto que até me deu a garota.” Senti meu sangue se aquecer nas veias e cerrei as mãos em punho, involuntariamente. Não queria acreditar, mas a verdade é que fazia todo sentido. O homem escondido atrás da pilastra falava tão baixo que não podíamos escutá-lo, tudo que conseguíamos ver dele eram as mãos gesticulando sem parar, mas estava tão longe, que era impossível reconhecer. “Duvido que o Condor se importe, mas se acha que sim... Podemos tentar...” — Riu novamente. “Nada como uma boceta nova para fazer um homem perder a linha!” — Soltou uma gargalhada. — Então? — Verônica perguntou. — Entendeu alguma coisa? — Mais do que gostaria... — Dei mais um trago, soltando a fumaça para cima. — Parece que os dois demônios japoneses estão de conluio... — Tem ideia de quem pode ser o homem escondido na pilastra? — continuou. Alisei os cabelos com a mão livre. — Um dos meus, provavelmente... — Um traidor... — Alguém querendo meu posto... É como as coisas são por aqui, corazón... Olho por olho, dente por dente... Desviei os olhos dos dela. Tinha deixado muita coisa de fora, sobre meu pai e Malena, não queria que ela soubesse de Yuki e de toda a merda que o Nakai, pelo visto, pretendia fazer. Isso eu resolveria com o Shin, quando chegasse a hora. Quanto menos Verônica soubesse, mais segura estaria. — Precisamos pegá-los... antes que se unam então... — interrompeu meus pensamentos. — Eu até que gostaria, mas não é fácil fazer o filho da puta do Nakai sair da toca, acredite... Eu já o cacei de todas as maneiras possíveis... Ele é liso, como as malditas carpas de que tanto gosta... — Uma isca... — Desceu, tomando cuidado de pisar com o pé bom. — Você disse que ele estava atrás de mim... Se achar que... — ia falando e o plano se formando. — Se achar que estamos juntos, então... — Não! — Tentei me afastar, mas ela me conteve. — Era de mim que ele falava, não era? A boceta nova... Ele acha que você... — Desviou o olhar. — Não vou fazer isso... — Empurrei-a e me afastei. — É só fingir, Nicolas... A gente finge que está junto por alguns dias... Olha, eu tenho mais dez dias de licença, posso adiar minha passagem e... — Respirou fundo. — Só fingir... para pegar o desgraçado... Você não precisa... Dei um passo, segurando seu rosto com uma das mãos. — Me importar? — questionei. — Acha que não me importo? Verônica ficou sem reação. Muda, os olhos perdidos nos meus. Por um segundo, mais sentimentos do que eu gostaria passaram por nós, uma conexão estranha, cheia de entendimento e similaridades. Soltei-a de uma vez, obrigando-a a se escorar na mesa para não cair. — Não vou usar você de isca, brasileira... Já disse que estou cansado de bancar o coveiro... — disse já lhe dando as costas. — E eu já lhe disse que não sou uma das suas garotas... Sei me cuidar, Nicolas... Tenho treinamento e experiência... Não será a primeira vez que me coloco de isca para um filho da puta qualquer... Eu consigo! Eu a tinha estudado cuidadosamente. Sabia dos feitos, das muitas prisões e das operações criminosas que tinha conseguido desmembrar. Sabia que ela era boa no que fazia e que tinha sangue-frio suficiente para o trabalho, mas eu não queria e nem entendia a razão. Tinha dado alguns passos, quando ela segurou meu braço. — Por favor, confie em mim... Eu consigo... Você só precisa fingir que... — Parou a frase, meus olhos acompanhando os dela, esperando pelo que viria. — Estou apaixonado? — adiantei-me provocando-a. — Difícil que alguém acredite! — Ri sem humor. — Você mesmo disse que não está conseguindo pegar o Nakai... Se ele achar que sou importante para você, vai vir atrás de mim com mais vontade... Não acha? — perguntou, mas eu não respondi, livrei-me dela e segui meu caminho. — E aí a gente só precisa pegá-lo, Nico! — falou mais alto. — Eu fiz esse tipo de coisa minha carreira toda, sei o que estou fazendo... Eu... A voz dela ia ficando mais alta, conforme eu me afastava, mas eu não parei. Não gostava do rumo daquela conversa e não queria continuar. — A gente tenta, ok? Só tenta... E, se não der, eu volto para o Brasil, saio do seu caminho... Você prometeu, Nico! Prometeu que ia me deixar ajudar! — gritou. Parei onde estava. — Prometi que te deixava ficar e olhar, detetive... Não que ia desfilar de braço dado com você pela cidade... — Por favor... Continuei andando. A gente tenta... As palavras se repetiam em minha cabeça, eu quase podia vê-la dizê-las novamente. E se não der certo... Respirei fundo, encarando o piso encerado de ladrilhos terracota. E se der? E aí, Nico, o que você vai fazer? Verônica Ele sumiu entrando pela porta do quarto e eu fiquei ali. Não tinha muito que pudesse fazer sem ele, ainda mais sabendo que teria que lidar com duas facções da Yakuza, em apenas dez dias, sem apoio policial e com o pé machucado. Droga de peruano filho da puta! Custava confiar em mim? Revirei os olhos. Deve ser do tipo que acha que mulher só serve mesmo como reservatório de porra. Vesti minha calcinha e a calça jeans. Tomaria banho no albergue, pelo menos não tinha que encarar aquele desgraçado arrogante de novo. Estava fechando os botões da camisa, quando Nicolas apareceu no arco que dava para o jardim. — Uma tentativa... — falou de repente. — E acredite, não é uma pessoa fácil de enganar! Sorri animada, mas ele não. — E você precisa fazer tudo como eu mandar... Porque o Nakai não vai sair fácil da toca, ele vai mandar os capangas... — Estreitou os olhos, aproximando-se de mim. — A gente precisa tentá-lo, corazón... Senti um friozinho subir pela espinha, arrepiando tudo dentro de mim. Que merda, Verônica... Acabou de dar e já está querendo repetir a dose? — Combinado! — Pisquei fazendo graça e tentando não parecer afetada. — Tome um banho enquanto eu preparo uma pequena mala... Já que as roupas de Maribel serviram em você, poupamos tempo... Odeio compras e não posso deixar que ande por aí como um dos integrantes de Brooklyn Nine-Nine. Ri sem querer. — Ei, está dizendo que eu não sei me vestir? — perguntei sarcástica. Nicolas correu os olhos por mim, dos pés até a cabeça, e então virou as costas e seguiu pelo jardim. Filho da puta convencido! Tirei a roupa e entrei debaixo do chuveiro morno, lavando o corpo e os cabelos com os produtos que estavam na prateleira. Já que íamos mesmo fingir ser um casal, eu podia parar de cerimônia e, ao menos, lavar o cabelo direito. Terminei e me enrolei na toalha, para usar o secador. Espero que você não se importe de me emprestar sua escova também, Maribel! Pensei enquanto escovava os cabelos. Deixei-os lisos, mas ressaltei o corte desfiado, fazendo-o cair em ondas. Ia mostrar para aquele mafioso folgado quem era a investigadora Malta. Voltei para o quarto e encontrei Nicolas sentado na cama. Havia uma calça jeans clara de corte ajustado e um suéter cor-de-rosa clarinho, além de uma blusinha branca, tênis, lingerie, a maioria das peças ainda com etiqueta. — Minha prima compra mais roupas do que consegue usar... — Deu de ombros quando percebeu que eu encarava as roupas. Soltei a toalha sem desviar os olhos dos dele, só para fazer graça mesmo. Nicolas correu os olhos por mim, a língua brincando perto dos dentes e aquele sorrisinho sarcástico e irritantemente sexy brilhando no canto dos lábios. — Veja se serve... — falou como se eu não o afetasse. Obedeci e, para a nossa sorte, realmente serviu. — Consegue calçar os sapatos? Foram os mais confortáveis que encontrei. Peguei um dos tênis na mão e conferi o número. — Sim... São um número maior, ficarão confortáveis, mesmo com o inchaço... Fez sinal para que eu colocasse o pé ruim sobre a cama e abriu uma caixa de primeiros socorros. Deixei que passasse a pomada e, enquanto sua mão escorregava em minha pele, fiquei encarando-o. Eu não tinha muita gente cuidando de mim, então era estranho, mas não de um jeito ruim, muito pelo contrário; era exatamente esse contrário que me preocupava. — Pronto! — Colocou meu pé de volta no chão. — Calce e veja se consegue andar... Não quero chegar à fazenda carregando ninguém no colo. — Vê? — Levantei assim que terminei de calçar os sapatos. — Apta ao trabalho, chefe! — provoquei. Nicolas estreitou os olhos para mim. — Pare com isso! Não sou seu chefe... — Abri a boca para falar, mas ele me silenciou com o dedo em riste. — Se fosse... Sua escapadinha em Lima teria rendido bem mais que um tornozelo inchado! Pegou as duas bolsas de couro e jogou sobre os ombros. — Vamos... O caminho é longo e não quero me atrasar para o almoço. — Pegou um par de óculos escuros e colocou no rosto. Assim que passamos pelo portão da entrada, vi o esportivo moderno preto estacionado junto ao meio-fio. Era um daqueles carros que a gente só vê nos salões do automóvel, ou quando tem mandado para a casa de algum bandido famoso. O homem que havia me levado até o aeroporto estava encostado na lateral do carro e, assim que viu Nicolas, tirou a chave do bolso, estendendo para ele. — Tem certeza de que não quer que eu o acompanhe, chefe? Com o Nakai na jogada e essa garota... O olhar de Nicolas para ele foi tão letal que o homem parou a frase no meio e baixou a cabeça. — Reporte qualquer atitude suspeita... — Apertou o botão e as portas se levantaram. — Volto amanhã, no final da tarde. O homem aquiesceu, ainda de cabeça baixa. Nicolas sinalizou para que eu entrasse e, assim que me sentei, ele baixou a porta fechando-a, então deu a volta, ocupando seu lugar junto ao volante. Assim que se sentou, tirou a pistola da cintura e colocou no console. Encarou-me no instante em que percebeu que eu olhava para a arma. — Se vamos fingir, eu preciso confiar em você... — Fez uma pausa, baixando um pouco os óculos escuros. — Se eu desconfiar, corazón..., será uma única vez... Não esqueça... Levantei uma sobrancelha sem dizer nada. Podia estar sob a voz de comando dele, mas não ia deixar o filho da puta me intimidar. Seguimos viagem por uma estrada quase vazia e, pouco a pouco, a cidade foi ficando para trás. Eu não tinha a menor ideia de para onde estávamos indo, mas achei que perguntar também não faria diferença, porque eu não conhecia ninguém naquele lugar. Tinha apostado minhas fichas nele e precisava confiar. Depois de algum tempo, a paisagem começou a mudar. Campos de cultivo e parreiras de uva, por todos os lados. Eu nem sabia que no Peru se plantava uva. — Duas safras por ano... — Nicolas disse, cortando o silêncio no carro. — Albillo, alicante, moscatel... Muitas uvas gostam do nosso clima... — Acelerou levantando poeira vermelha pela estrada e fazendo a ansiedade gelar meu estômago. — Como pode ver, temos mais que ruínas e lhamas... — Eu nunca achei que... — tentei explicar, mas depois desisti. — Esquece! — Karina me disse que você não queria visitá-la... — explicou. — Não era por causa do país... — defendi-me. — Era só... — Orgulho? — interrompeu. — Talvez... Sorriu satisfeito, como se me fazer admitir meus erros o fizesse mais forte. Paramos em frente a uma porteira elegante, com dois condores de cobre, um de cada lado dos pilares. Assim que paramos, ele se abriu. Seguimos pela estrada particular mais uns bons minutos, até que pude avistar uma bela casa antiga de fazenda. Reformada e pintada de amarelo escuro, com detalhes terracota. — Onde estamos? — não resisti. — Vamos visitar minha tia... Encarei-o sem entender, enquanto ele parava o carro e puxava o freio de mão. — Você queria uma prova de fogo... — Sorriu debochado, abrindo as portas do carro e dando a volta. — Se conseguir convencer Tia Lupita de que somos um casal... Nakai será moleza! — Estendeu a mão para mim. — Venha, corazón... — Piscou. — Estou ansioso para ver se é tão boa quanto diz... Nicolas Eu tinha feito questão de não avisar ninguém sobre nossa chegada. Queria mesmo saber se Verônica era tão boa em fingir quanto dizia. E, para ser sincero, um fim de semana de tranquilidade até que me faria bem. Joguei as alças das duas bolsas de couro sobre os ombros e entrelacei nossos dedos; mal tinha dado alguns passos e Camucha apareceu na varanda. — Senhora! Senhora! — gritou. — Venha ver o milagre que aconteceu! Reprimi o riso, preparando-me. Não demorou e minha tia apareceu, secando as mãos no avental azul. Os cabelos ondulados, presos em um coque baixo e frouxo, o rosto, ainda que mais velho, trazia a mesma beleza latina que tinha desde sempre. Encarou-nos com olhos astutos e sobrancelhas baixas por alguns instantes. — Milagre de San Cristobán, Camucha! — Bateu com o ombro no da mulher que ajudara a nos criar. — Eu não disse que, se acendêssemos aquela vela na capela todos os dias, ele iria ouvir? Os dedos pequenos em torno dos meus se apertaram um pouco mais, mas logo afrouxaram, como se ela quisesse esconder que estava com medo. Eu também estava, Tia Lupe era melhor que qualquer cão farejador do mundo para mentiras, mas eu não ia dizer isso a ela. Entreguei as bolsas a Camucha e abri os braços. — Estou em casa, tia... — Sorri. A mulher me abraçou de imediato, afundando o rosto em meu peito. Com o passar dos anos, trocamos de papel. Eu passei a ser o apoio, e ela, a se aconchegar em mim. — Nico... — Baixou meu rosto e o beijou. — Quanto tempo, mi niño... Beijei-a também, acariciando seu rosto. Não tivera a chance de conhecer minha mãe, mas não podia me queixar da que a vida tinha me dado. Nunca senti falta de afeto nem de colo, porque sempre tive Tia Lupita comigo. — Esta é Verônica, tia... Minha... — Parei a frase no meio, nunca a tinha dito. — Namorada... — Verônica tomou a frente, segurando em minha mão e descansando o rosto em meu braço. — Nico ainda está se acostumando, tia! — Sorriu de um jeito doce e ficou na ponta dos pés, beijando meu rosto. — Deve imaginar como é difícil para ele! — brincou. O sorriso no rosto de Tia Lupe nasceu devagar, mas ganhou força assim que eu repeti o gesto, beijando o topo da cabeça de Verônica. — Madre de Dios, achei que este dia nunca chegaria! — Abriu os braços para Verônica. — Estou feliz que tenham vindo até aqui, querida... Seja bem-vinda em minha casa... Depois de um longo abraço, voltou a atenção para mim. — Ande, vá mostrar a casa a Verônica, enquanto eu ajudo Camucha a trocar os lençóis! — Estreitou os olhos para mim. — Você vem tão pouco aqui, Nicolas, que seu quarto está todo empoeirado! — Prometo que virei mais, tia... Os negócios... — Não me venha com negócios! Aliás, niño, está proibido de falar de negócios enquanto estiver por aqui! E você, pequeña... — Voltou os olhos para Verônica. — Aprenda a comandar seu homem! Não seja burra como eu, mostre quem manda... Negócios... — Já estava uns bons passos à frente, mas continuava falando. — Ele fala como se eu não o conhecesse... Negócios... Verônica riu e eu acabei rindo também. — Confesso que tremi na base... — brincou, dando-me um sorriso de canto. — E você ainda não viu nada! — Pisquei. — Agora venha comigo, senhorita, vou mostrar a casa a você. Aquiesceu, caminhando ao meu lado. A casa da fazenda era antiga, mas muito bem-cuidada por Tia Lupe. Ela havia crescido ali e, depois de tudo que houve com papai e meu avô, quis voltar para onde se sentia segura. — Nossa, Nico, que casa linda... — Verônica sorriu admirada, assim que passamos pela grande sala. Parou em frente à parede de madeira, coberta de armas de cano longo, dos mais variados tipos. — É uma bela coleção... — Correu os dedos pelos detalhes dourados de uma carabina antiga. — Meu avô era militar... — contei, enquanto ela admirava a parede. — Antes de descobrir que havia mais merdas escondidas entre os mocinhos do que entre os bandidos... — Ri, mas meu riso morreu logo, porque ela baixou os olhos, como se algo a incomodasse. Eu conhecia pouco de Verônica Malta, apenas o que ela deixava que vissem, mas em poucos dias ao seu lado tinha percebido que todas as informações que eu tinha eram apenas a ponta do iceberg. Karina havia me contado que ficaram órfãs bem cedo e que fora Verônica a assumir boa parte da sua criação, já que os avós tinham muita idade. Eu tinha tido uma infância complicada, mas sempre tive apoio e uma família amorosa com quem contar quando as coisas estavam ruins, Verônica não. — Venha... — Toquei suas costas carinhosamente, em um gesto protetor que não pude evitar. — Aquelas duas já devem ter terminado de arrumar o quarto, assim você se senta um pouco e poupa seu pé. Levei-a pelo corredor aberto, que dava para os quartos. Tia Lupe e a governanta estavam saindo. — Descansem um pouco, enquanto Guille e Maribel não chegam! — Bateu em meu ombro carinhosamente. — Então... — Verônica sentou-se na cama assim que fechei a porta e tirou o tênis, colocando o pé machucado para cima. — Quais são os planos? Livrei-me do blazer e virei-me para ela assim que terminou a frase. — Ficamos aqui pelo fim de semana... Amanhã à tarde voltamos para Cusco... — expliquei, desabotoando a camisa. — Se Nakai estiver mesmo por perto, vai ficar sabendo da nossa pequena viagem e vai se interessar em descobrir mais... Não sou do tipo que anda com mulheres a tiracolo, corazón... E é por isso que temos que ser cautelosos... Ele não pode achar que estou exibindo você, porque se eu realmente me importasse... — Fiz uma pausa, aproximando-me dela. — Iria escondê-la... Assim que parei, bem em sua frente, Verônica levantou a mão, deslizando suavemente pela minha tatuagem, analisando o desenho cuidadosamente. — El Condor... — disse devagar. — Não esperava alguém como você... — Sexy e fodedor? — provoquei, levantando-a. — Compassivo e gentil... — Ergueu uma sobrancelha sarcástica e eu acabei rindo. — Você fica mais bonito quando ri assim... De verdade... Não resisti. Puxei-a para mim e tomei sua boca. Não era a mesma urgência de quando havíamos transado, mas eu não pude evitar. Passei o braço em torno da sua cintura, colando nosso corpo, e Verônica enlaçou meu pescoço, cruzando as mãos em minha nuca. — Não tem ninguém olhando nossa encenação... — incitou perto da minha orelha. Apertei-a mais, deixando meu pau pulsar contra seu estômago, arrancando um gemido cheio de desejo dela. — Tem razão! — Soltei-a de uma vez e virei as costas. — Vista algo mais confortável... O dia será quente... Tirei a camisa e vesti uma camiseta, troquei também a calça social por um jeans. Quando passei pela porta, ela ainda me encarava sem entender. Meneei a cabeça em cumprimento e segui pelo corredor, em direção à cozinha. Se ela queria continuar nesse jogo de provocação, tinha que entender logo que eu era mestre em segurar emoções. Camucha começava a arrumar a mesa, enquanto Tia Lupe mexia em uma grande panela. Peguei um garfo e espetei um pedaço de peixe do ceviche. — Vai me contar de uma vez como isso aconteceu? Ou espera que eu acredite que, de repente, el senhor de la muerte acabou rendido... Peguei mais um pedaço de peixe e enfiei na boca. — E pare de desarrumar meu prato! — xingou, tirando a travessa de comida de perto de mim. — Achei que ficaria feliz... — Encostei na bancada, apoiando as mãos na madeira. — Vive dizendo que eu preciso acertar minha vida... — Dei de ombros só para irritá-la. Tia Lupe limpou as mãos em um pano e jogou com força sobre a mesa. — Já disse a ela o que faz para viver? A garota não parece o tipo de moça que aceitaria sua vida, Nico! Olhe bem para a carinha de boneca de porcelana dela! Deve ser uma dessas socialites metidas que frequentam seu hotel! Limpei a garganta para não rir. Se ela soubesse como Verônica ganha a vida, ia ter certeza de que eu estava mesmo maluco. — Não se preocupe, tia... Verônica sabe exatamente quem eu sou... — limitei-me a dizer. — E não se importa? — Imagino que não, já que veio até aqui comigo por vontade própria... Olhei a poeira na estrada e agradeci mentalmente a pontualidade de Guille. — Guillermo chegou! — avisei, já deixando a cozinha. Queria testar Verônica, não minha paciência, então tinha que evitar ficar sozinho com Tia Lupe. O esportivo prateado parou ao lado do meu e Maribel correu até mim, pendurando-se em meu pescoço. — Nico! — Beijou meu rosto. — Eu disse ao Guille que a previsão era de chuva! — Deu de ombros. — Agora tenho certeza! Baguncei seus cabelos longos e ondulados, fazendo-a fechar a cara. — Não tenho mais doze anos, sabia? — inquiriu revoltada. — Tem quase dezoito... Aliás... Diga o que quer para comemorar seu aniversário, muñequita... Sabe que faço tudo por você! Ganhei um sorriso. Sabia bem como derrubar as barreiras daquela peruaninha metida a princesa inca. — Você poderia me ensinar a atirar... — Ergueu uma sobrancelha inquisidora. — Lembra-se? Foi o que me prometeu ano passado... — Para que quer atirar, Maria Isabel Huamán? Tem seguranças competentes, dispostos a isso por você... Não precisa sujar suas mãos com pólvora... Esperei que fizesse alguma gracinha, mas ela encarou-me fundo nos olhos. Nenhuma sombra de sorriso no rosto bonito e delicado. — Nunca se sabe... Prefiro aprender a cuidar de mim mesma e não ficar à mercê de ninguém... Minha boca se curvou em um sorriso de canto, segundos depois. — Agora sim, está pronta para ter uma arma! — Pisquei. — Vamos treinar mais tarde... — avisei. — Aliás, emprestei suas roupas para a minha namorada... — Reprimi o riso, sabendo do espanto que ia causar. — Está brincando, não é? — perguntou curiosa. — A mala dela foi extraviada, pequeña... E você sabe como eu odeio compras... — Não é isso, seu bobo! — Bateu em meu peito. — Que história é essa de namorada, Nicolas? — Aaaaah, é uma longa história... Conto a você outro dia! — Beijei seu rosto e a soltei, para cumprimentar Guille. — ¿Como estás, hermano? — cumprimentou-me abraçando e batendo em minhas costas, conferindo se Maribel já tinha ido. — E que história é essa de namorada? — Longa história... Nakai está interessado nela, eu estou caçando o desgraçado, isca, namoro... Você sabe... Difícil de explicar... É a irmã da Karina... — confessei por fim. — Verônica? A policial? — perguntou rindo. — Por La Santa Muerte, Nico... — Bateu em minha têmpora com a ponta dos dedos. — Você é maluco mesmo! Ri com ele, mas não podia negar que meu primo tinha razão. Era uma porra de plano fadado ao fracasso, eu só não sabia quem ia fracassar primeiro. Nakai, Verônica ou eu. Verônica Troquei o suéter de lã e a calça por um vestido vermelho florido, de alças finas e um pouco acima dos joelhos. Penteei os cabelos e os prendi em um rabo de cavalo alto, antes de parar em frente ao espelho de corpo inteiro do banheiro privativo. Nunca na minha vida eu escolheria um vestido como aquele, mas tinha que confessar que parecia bem mais feminina e delicada com ele. Estava tão acostumada a escolher roupas pela praticidade, que tinha me esquecido que elas também podiam servir para me deixar mais bonita. É, Verônica... Só não esquece que é encenação, ok? Em alguns dias você volta para sua vida e o Condor para a dele, que aliás, está no extremo oposto de tudo que você acha certo. Deixei o quarto e, a cada passo que dava, as vozes e risadas iam se tornando mais audíveis. Vim de uma família pequena, em que meus pais eram filhos únicos, e cedo demais perdi o pouco que tinha, então aquela cena que se desenrolava frente aos meus olhos fazia meu coração se encher de sentimentos estranhos. Acha que alguém como eu não pode ter uma família? As palavras de Nicolas ecoavam em meus pensamentos, enquanto eu o via rir e brincar com os primos. Assim que percebeu minha presença, o riso morreu em seu rosto, olhos perdidos nos meus. — Então essa é a domadora de feras? — Um homem que aparentava ter a mesma idade que eu se aproximou. Não se parecia com Nico nem com nenhum deles. Tinha a pele clara, levemente bronzeada de sol, cabelos castanhos e um par de olhos azuis que reluziam como faróis. Parou em minha frente, como se quisesse me analisar, mas em seguida sorriu, abrindo os braços para mim. — Seja bem-vinda à família, prima! — Abraçou-me, mas algo em seu olhar deixava claro que ele sabia bem quem eu era e o que fazia ali. A garota com quem Nicolas conversava também veio até mim. — Maribel, imagino... — Sorri. — Desculpe pegar suas roupas... É que o Nico... — Aah, tudo bem! — Abraçou-me apertado. — Mamãe vive dizendo que tenho mais roupas do que sou capaz de usar! — Piscou e bateu o ombro o no meu. Nos sentamos para o almoço e Nicolas foi dizendo o nome dos pratos, até chegar aos tomates recheados que haviam me enganado em Aguas Calientes. — Nem pensar! — Coloquei a mão acima do prato, quando ele tentou me servir. — Quase morri de indigestão com essa pimentinha! — confessei. — Jurava que era um tomate! Todos começaram a rir e eu acabei rindo também. — Veja, Camucha... Está namorando o Nico e não come pimenta! — Guadalupe pontuou. — Vou ensiná-la a gostar, tia... De tudo... — Nico colocou a mão sobre meu joelho. — Não é, corazón? Era um carinho bobo, ou pelo menos devia ser, mas senti o calor se espalhar por mim como um rastilho de pólvora, até minhas bochechas, que eu podia jurar que tinham corado. Sorri, porque tinha medo de gaguejar e acabar sendo pega. Eu não entendia muito de culinária peruana, mas tinha que dar o braço a torcer para Karina, porque era tudo realmente delicioso. Depois do almoço Maribel me convidou para ir com ela até o jardim, para tomar sol, enquanto Nicolas e Guillermo conversavam no escritório. Contornamos a casa para chegar a um belo gramado cheio de roseiras coloridas. Amarelas, vermelhas, brancas e cor-de-rosa, em vários tons, desde o maravilha até o rosa-pálido dos buquês de noiva. Havia um pergolado de madeira clara e, debaixo dele, um sofá e duas poltronas feitos de fibra trançada e pintados de branco. Nós nos sentamos ali. — A fazenda é linda... — comentei. — Por isso mamãe ama tanto este lugar... — Sorriu. — Sua mãe tem bom gosto! — Deixei a cabeça cair contra o encosto, fechando os olhos para sentir o sol. — Eu também amaria, se morasse aqui. — Você pode morar, quando se casar com o Nico! — animou-se de imediato, fazendo-me perceber a merda que havia dito. Eu tinha falado sem pensar, mas agora tinha que encontrar um jeito de me sair bem. — Acha que ele vai se casar comigo? — devolvi só para virar o jogo. Pelo menos você aprendeu algo com aquele curso chato de técnicas de interrogatório, Verônica! — Ele nunca trouxe uma garota aqui, sabia? — Sorriu de canto. — E eu nunca o vi tão preocupado com alguém... Ele até escolheu os pedaços mais macios do lomo para você... — Deu de ombros, servindo um pouco de refresco em meu copo. — Deve significar alguma coisa! — brincou. E significa! — pensei. Que ele é um ótimo ator... Conversamos sobre um monte de coisas. Desde gatos, até sapatos de grife e séries coreanas, até que Nicolas entrou em meu campo de visão. Óculos escuros no rosto, alisou os cabelos para trás. Estava sério, conversando sobre algo, mas, quando nos viu, sorriu meio disfarçadamente, e eu soltei um suspiro sem querer. — Viu? Ele já riu mais hoje do que no último ano todo! Parece que viu passarinho verde! — a garota cochichou em meu ouvido e eu acabei rindo mais. — Não sei o que essa pequena diaba lhe disse, mas provavelmente é mentira... — Nicolas brincou, parando ao meu lado. — Muito pelo contrário... Eu só digo verdades, Verônica... As mais difíceis e que ninguém ousa dizer! — Levantou-se e ia saindo. — Não quer mais treinar? — Nico perguntou e ela parou no mesmo instante. — Sério? — O sorriso em seu rosto se alargou. — Se prometer ser cuidadosa e não contar a ninguém... — Combinado! Descemos a pequena colina, até perto de um riacho. O fim de tarde estava quente e agradável. Encarei minha mão, dentro da de Nicolas, dedos entrelaçados despreocupadamente. Era estranho como parecia simples fingir. — Vai me contar o que vamos treinar? — perguntei quando paramos perto de uma cerca. — Algo que você, provavelmente, gosta de fazer... — Sorriu maliciosamente, deixando-me sem entender. Só quando Guille arrumou as latas sobre as estacas da cerca, eu entendi o que faríamos. — Faroeste? — Ergui uma sobrancelha para ele. — Sério? — Não me diga que não sabe atirar, detetive? — cochichou em meu ouvido. — Achei mesmo que aquela pistola estava nova demais para cinco anos de serviço... Venha aqui, Maribel... — Tirou a pistola da cintura e se posicionou, explicando para a garota como deveria fazer. Era errado de tantas formas que eu nem podia enumerar, mas tinha que dizer que o ver ali, de arma em punho, acertando um tiro depois do outro, era sexy para inferno. O demônio era o anjo mais bonito, Verônica... Maribel errou duas vezes, na terceira já estava perdendo a paciência e Nicolas também. Desencostei de onde estava e estendi a mão. — Deixe que alguém do tamanho dela ensine... — Ergui uma sobrancelha e esperei. Nicolas pensou, pensou, mas, no fim das contas, colocou a pistola em minha mão. — Tem que apoiar o braço assim... — Mostrei como segurava com a mão livre no antebraço. — Se aprender a atirar segurando com as duas mãos, nunca vai conseguir atirar rápido, em uma situação de emergência. — Dei o primeiro tiro, derrubando a primeira lata. — Conforme for aprendendo, com o peso da arma, o tranco que ela dá, você vai tirando o apoio... — Engatilhei e acertei mais uma. — Eles acham que somos fracas... — Revirei os olhos. — E sabe de uma coisa... — Sorri de canto. — É melhor assim... — Engatilhei rápido e acertei uma, depois outra e a última. — Woooow... — Guille gritou. — Parece que temos uma concorrente à altura para El Condor... — brincou, batendo palmas. Entreguei a pistola na mão de Maribel e virei as costas. Nicolas estava encostado em um toco de árvore, braços cruzados na frente do corpo e aquele sorriso cheio de malícia nos lábios. — A pistola é nova, porque perdi a anterior em uma operação... — expliquei cheia de orgulho. Nicolas Levei alguns segundos para conseguir parar de sorrir. Eu não conhecia muitas mulheres que tinham tido coragem de tirar uma arma da minha mão e, certamente, nenhuma delas atirava tão bem. Subimos a colina quando a noite caiu. Tia Lupe havia mandado acender a fogueira e preparado milho e batatas para assar, além de ceviche, pollo a la brasa e causa limeña. A mesa tinha sido posta com todos os tipos de acompanhamentos e bebidas, e o huayno tocava animado, tocado pelos funcionários. — Madrecita... — Maribel correu até a mãe. — Você tem que ver a Verônica atirando! — Bateu palmas animada. — Parecia até a Lara Croft! Tia Lupe sorriu, mas, quando voltou o rosto para o meu, tinha aquele olhar de quem diz: ok, vou fingir que você me engana só para não te desapontar. — Para uma jornalista de viagem... — Ergueu uma sobrancelha inquisidora para Verônica. — Você tem muitos talentos escondidos. — Verônica treina tiro, tia... — expliquei. — É como ela faz para diminuir o estresse de aguentar o Nico, mamá! — Guille completou, batendo em minhas costas e fazendo todos rirem. Peguei um copo, enchi com o líquido cor de vinho da jarra e ofereci a Verônica. Ela levou à boca, mas, quando provou o sabor, voltou os olhos para os meus. — Se chama Chicha Morada... — expliquei. — É feita com esse milho aqui... — Peguei uma espiga de milho negro e entreguei em sua mão. — Nós cozinhamos com abacaxi e especiarias, depois deixamos fermentar... É daí que vem o álcool... — Vinho de milho... — Sorriu, dando mais um gole. — É bom! Muito bom! Servi um copo para mim também e começamos a comer. Eu era bom em apresentar os tesouros da minha terra, tinha sido exatamente por isso que escolhera o ramo hoteleiro como fachada, mas mostrar a ela do que eu gostava era mais divertido. Continuamos comendo e nos divertindo por mais alguns copos de chicha. A brasileira balançava os quadris no ritmo da música, levada pelo álcool e incentivada por Maribel. Eu continuei olhando-a sem conseguir desviar. Era como se tivesse me hipnotizado. Quando o milho ficou pronto, peguei uma espiga na brasa e tirei a palha, depois passei pasta de savina-vermelha e levei à boca. — Hum... Parece bom... — Verônica comentou. — Pimenta, corazón... A pior de todas... Puxei-a para mais perto, e ela continuou balançando os quadris, roçando em meu pau e levando um pouco do meu juízo com ela. — Meu avô dizia que a savina se parecia comigo... — contei junto ao seu ouvido. — É mesmo? — Sorriu e mordeu o lábio. — Quero provar... — Tem certeza? — Cravei meus olhos nos dela. — Queima como o inferno... Já nem era de pimenta que falávamos, o assunto tinha ganhado outro tom, ali, escondidos na luz fraca do jardim, só eu e ela. Verônica aquiesceu e eu passei a ponta da língua na pimenta, oferecendo a ela. Quando lambeu a pimenta, eu afundei minha boca na sua, sugando e beijando. O calor da pimenta e o sabor da bebida tinham combinado perfeitamente com o gosto dela. Sustentei-a com o braço, deixando-a na ponta dos pés, para que sentisse como eu estava duro. — Então? Forte demais? — provoquei, raspando a barba em seu pescoço. — Forte o suficiente... — Passou a língua nos meus lábios, antes de me beijar de novo. — Vem comigo para o quarto... Era um misto de ordem e pedido que eu exigia que fosse aceito. Não era bom em não estar no controle, mas ela também não era e eu não pretendia disputar força, não naquela hora. Verônica entrelaçou nossos dedos e me levou por trás da casa, sem que passássemos pelo meio da festa. Entramos no quarto e eu passei a chave na porta, prensando-a contra a parede. — Sabe o que eu acho? — perguntou, mas não esperou que eu respondesse. — Que aquele seu vinho amorteceu minha boca, peruano... — Riu, descendo a mão pelo meu peito. — Porque quero mais um pouco dessa pimenta caliente que você tem... Sorri, umedecendo os lábios, descendo a alça do vestido com a ponta dos dedos. — Acha que aguenta? — provoquei. — Tinha certeza de que você estaria dolorida hoje... Ela tirou a outra alça, fazendo o vestido cair no chão e revelar o corpo terrivelmente sexy que tinha. Os seios arrepiados de desejo, subindo e descendo com o respirar. Encostou-se em mim e puxou meu rosto para o seu. — Vale a pena! — Sorriu maliciosa. Tirei a camiseta e joguei no chão. A pele quente dela contra a minha, os bicos dos seios roçando em meu peito. Desceu as mãos até minha calça e abriu o botão, descendo o zíper. Deixei que caísse no chão e ela afundou os dedos por dentro da cueca, circundando a cabeça do meu pau e espalhando lubrificação pela glande; depois levou o dedo à boca e o chupou, fazendo-me reprimir um gemido e sentir meu corpo todo pulsar de desejo. — Bom... — Mordeu o lábio. — Mais quente que qualquer pimenta, corazón... — imitou-me. Peguei-a no colo e levei para a cama. Queria tê-la devagar, sem pressa ou urgência, aproveitando cada sensação. O que nos restava de roupa ficou no chão e eu a deitei em meu colchão, com aroma de lavanda e lençóis de percal. Verônica separou as pernas acomodando meu corpo e eu levei os dedos até sua boceta, lambuzando-os em sua excitação e espalhando em meu pau. Quando a penetrei, ela jogou a cabeça para trás e reprimiu o gemido. Continuei os movimentos, mais lentos que na última vez, indo fundo e saindo devagar, senti-a se contorcer e apertar as coxas em torno de mim. — Gosta assim? — perguntei penetrando-a mais uma vez e ela aquiesceu, puxando minha boca para a sua. Beijei-a com todo o desejo que sentia, esfregando nossa língua sem perder o ritmo com o qual a fodia. Quando senti que estava perto de gozar, levei a mão a suas costas, baixando pela bunda redonda até o vão; deslizei pelo períneo até o ânus e então introduzi suavemente, apenas um pouco. — Aaaah... — gemeu mais alto do que gostaria e cravou os dentes em meu pescoço. Quando ela gozou, eu gozei junto, não fui capaz de segurar, olhos fechados, arfando contra seu ouvido, até deixar a cabeça pender em seu ombro. Ficamos em silêncio, respirações entrecortadas, como se ainda estivéssemos fora do ar. Depois de alguns segundos, Verônica riu. — Eu disse que ainda vamos morrer disso... — brincou. — Ao menos vamos morrer satisfeitos, corazón... Verônica Acordei sozinha na cama. Não tinha ideia de que horas eram, mas, a julgar pelo sol que entrava pela fresta da cortina, devia ser tarde. Virei-me de lado, afundando o rosto no travesseiro. Tinha o perfume dele. Tudo ali tinha o cheiro dele. Comida de qualidade, acomodação cinco estrelas e uma boa foda... Aproveita, garota! Tudo bem gostar do serviço, desde que não se empolgue demais... Tomei uma ducha e vesti um short jeans e uma blusinha branca, com detalhes rendados. Maribel realmente tem bom gosto! Se não fosse de uma família de traficantes, eu ia pedir a ajuda dela para renovar meu guarda-roupas! Saí do quarto e caminhei até a cozinha. Os remédios que Nico me dera realmente haviam resolvido, tanto o inchaço do tornozelo, quanto o mal de altitude. Eu me sentia bem, relaxada e até um pouco feliz, o que era muito estranho, já que nossa razão primordial para estar naquele lugar era vingança. — Que bom que acordou, querida! — Guadalupe cumprimentou. — Quer um pouco de café? Aquiesci sorrindo. — Bom dia... Desculpe ter dormido demais... Não sei o que houve, eu sempre... Guadalupe riu. — Aaaaah, querida, eu sei bem... A cama quando é quente segura a gente! — Piscou e eu baixei os olhos, disfarçando para não rir. — Onde estão todos? — perguntei, levando a xícara à boca. — Nico e Guille, trabalhando como sempre... Maribel foi a Cusco, visitar uma amiga, mas lhe deixou um beijo! Disse também que você pode ficar com as roupas de que gostar, já que ficaram ótimas em você... Sorri. — Agora Camucha acordou com as costas doendo e eu lhe dei o dia de folga! Vou ter que dar conta do almoço sozinha... — Precisa de ajuda? — perguntei já virando o café na boca. — Pode não parecer, mas eu até que me viro bem na cozinha... — Tão bem como atira? — Ergueu a sobrancelha, deixando-me sem graça. Quando percebeu, limpou as mãos no avental e segurou as minhas. — Não sei quem, Verônica, nem o que a levou para perto do meu Nico, mas, sabe o que eu acho? — perguntou e eu neguei. — O destino às vezes tem um jeito estranho de colocar as coisas no lugar... — Sorriu. — Nico é um bom menino... Tem aquela pose de el senhor de la muerte, como dizia meu pai, mas no fundo é um bom menino... Cuide dele... Concordei com a cabeça e sorri, mas meu coração estava apertado e dolorido, como se aquele teatro todo fosse verdadeiro. — Agora venha até aqui, corte essas batatas e essas cenouras... Vamos fazer um cozido de alpaca... — Guadalupe chamou como se não tivéssemos mais do que uma conversa trivial. Depois de almoçar, juntamos nossas coisas nas bolsas e colocamos no banco porta-malas do carro. — Prometo que não demoro a voltar, Tia Lupe... — Beijou as mãos da tia. — É o que você sempre diz, e eu só o vejo no ano seguinte! — reclamou. — Não seja dramática... Sabe que vale para mim mais que toda a prata do mundo... — brincou e ela sorriu. Puxou o sobrinho para si e afundou o rosto em seu pescoço. Era tão bonito de se ver, que mal dava para lembrar quem realmente era e o que fazia. — Cuidem-se... — pediu. — Não sei explicar, mas Nico sabe como sou sensitiva e sinto um aperto no coração, sempre que penso em vocês dois indo embora... Deveriam ficar por aqui mais alguns dias... Não pude não sorrir. Fazia tempo que não tinha alguém realmente preocupado comigo. — Cuide-se a senhora também... E se perceber alguma movimentação... — Falo com o Morales e encontro você em Lima... Tantos anos, Nico... Já sei o protocolo de cor... Entramos no carro, fazendo o caminho inverso. Meu coração estava estranho e aflito. Eu nunca fui do tipo sentimental, então era desconfortável e incômodo. Não é seu mundo, Verônica... Você nem vai mais ver essas pessoas... Um efeito colateral, apenas isso! Peguei o telefone no bolso da jaqueta, para conferir o horário, e, de repente, senti uma vontade imensa de ouvir a voz de alguém que realmente fazia parte do meu mundo. Comecei a digitar o telefone de Fábio. — Se quer ligar para alguém, use meu telefone... — Nicolas pegou o aparelho no console e colocou em meu colo. — Até que esse arranjo termine, corazón... Eu mando... Lembra-se? — Só preciso falar com o meu chefe... Ele deve estar preocupado, já que não uso mais o número antigo e... — Fale com quem achar que deve, mas use este... — Bateu contra a tela apagada. — Não é rastreável e eu posso saber com quem anda falando... O seu... só use para falar comigo ou Nacho... Concordei com a cabeça. Eu podia ser forte e dona de mim, mas não era idiota e tinha ciência de que Nicolas Huamán entendia bem mais daquele mundo do que eu. Digitei o número de Fábio e esperei que atendesse. — Mota falando... — atendeu. — Oi, Fábio! Sou... — Meu Deus, Verônica, quer me dizer onde foi que se enfiou? — gritou antes mesmo de cumprimentar. — Sabe quantas vezes liguei para você? Achei que tinha acontecido uma desgraça! — Na praia? — debochei usando meu melhor tom de sarcasmo. — Acha que me engana com esse joguinho? — devolveu. — A quem pensa que engana, Verônica? Eu sei muito bem onde você está! E foi aí que um pequeno estalo aconteceu em minha cabeça. — Sabe? Como sabe? — inquiri. Fábio levou um segundo para responder. — Porque conheço você, garota... Desde que era uma magricela marrenta, querendo esporrar o mundo, lembra? Respirei fundo. Não tinha razão para desconfiar do Fábio. Ele sempre fora correto comigo e com todo o trabalho de policial. Tinha cuidado de mim e me protegido tantas vezes que eu nem podia contar. Fábio não é um traidor, Verônica, você o conhece... — Estou ligando para dizer que não precisa se preocupar e que eu estou bem... — encurtei o assunto. — O telefone é seu? Por que não deixou o número visível? — insistiu. — Não é meu... É da pousada em que estou. Pago por minuto, inclusive... Então vou desligar ou gasto todo o meu dinheiro com você, Fábio! — brinquei, mas ele não riu. — Se estiver com problemas, ou precisar de ajuda... Sabe que pode me chamar, não é? Foi minha vez de ficar em silêncio. — Se quiser... — disse pausadamente. — Ligue para a Vivi... Sabe o telefone dela de cor? Senti um arrepio frio, na base da coluna, subir tão rápido que tremi, involuntariamente. Vivi era o nome que dávamos para uma linha secreta que usávamos em operações sob disfarce. Ninguém sabia o número além de Fábio, eu e o Diogo da TI. — Sei sim, não se preocupe... Tentei parecer despreocupada, porque, se ele tinha resgatado a Vivi, talvez também estivesse desconfiando de alguém. Desliguei e mantive os olhos no aparelho em minhas mãos. — O quanto você confia nele? — Nicolas perguntou de repente. — Muito! Fábio é meu chefe desde que entrei para a polícia... É um amigo e sempre cuidou de nós... Ele e o Celso são as únicas pessoas em quem eu realmente confio e... — Celso Mori, o fotógrafo forense com uma cobertura de cinco milhões... Voltei os olhos para ele sem entender. — Eu sei de tudo, Verônica... Tudo que me interessa ou envolve de alguma maneira eu encontro e descubro. — O Celso? Não! Você deve estar enganado... Celso mora em um prediozinho popular que nem elevador tem, Nicolas... Ele não discutiu e eu também não. Ficamos em silêncio pelo que restou do caminho, mas minha cabeça fervia, cheia de pensamentos. Celso? Com uma cobertura milionária? Não! O cara mal sabe combinar uma camisa e uma gravata... Yakuza? Só porque é descendente de japoneses? Balancei a cabeça em negativa para mim mesma. Conhecia o Celso pelo mesmo tempo que conhecia o Fábio. Tínhamos trabalhado juntos por tantos plantões, dia e noite, nas piores e melhores condições. Ele até adotou um gato! Um cara que adota um gatinho fofo na rua não pode ser um bandido sem escrúpulos! Meus olhos me levaram direto até Nicolas. Pode sim, Verônica... Você sabe muito bem o tipo de homem que o Condor é, até ele consegue ser gentil quando quer. — Vamos pegar mais roupas para você e depois seguimos direto para o hotel... — Nicolas falou, acabando com minha guerra mental. — Precisa de alguma coisa da cidade? Neguei com a cabeça, ainda tentava processar as informações. Estacionamos junto ao meio-fio, onde um homem de terno escuro nos esperava no portão. — Você espera aqui... Eu vou pegar o necessário e volto para irmos até a estação. Concordei mais uma vez. Ele desceu do carro e conversou algo com o capanga, que não pude ouvir. Seu semblante estava diferente, fechado e impenetrável, como quando eu o conheci. Eu tinha descoberto em poucos dias que havia dois Nicos, o que ele mostrava ao mundo e o que apenas a família conhecia. Fiquei sentada ali, olhando o movimento na praça. O homem permaneceu junto ao portão, olhos astutos vigiando tudo ao redor. Não demorou muito, Nicolas saiu, acionou o controle e guardou outra valise no porta-malas. — O helicóptero já está a sua espera, chefe... — avisou. Nicolas Assim que chegamos à estação de Aguas Calientes, vi Nacho parado ao lado do carro. — Vou chamar um táxi de confiança para levá-la ao hotel... — avisei, pegando um pedaço de papel e uma caneta. — Esta é a senha para o elevador da cobertura, memorize e depois rasgue. Ninguém a tem além de mim e Nacho. Você ficará mais à vontade lá. — Não quero ficar à vontade, Nicolas, quero saber o que está acontecendo... — retrucou. — Não é problema seu... — falei sem encará-la, guardando a caneta de volta no console. — Tenho certeza de que fico mais segura com você do que sozinha e desarmada em um hotel... Virei de uma vez, batendo a mão na lataria ao seu lado e fazendo-a pular de susto. Odiava ser questionado e, por melhor que fosse a boceta dela, não ia permitir que tirasse minha autoridade. — Faça o que estou mandando... — adverti encarando-a de frente. — Ou você me mata? — provocou. — Ou nosso acordo acaba aqui, detetive... Se eu tiver que lidar com você além dos meus problemas, freto um avião hoje mesmo e a coloco de volta no colo do seu amiguinho policial, em quem você confia tanto... Engoliu em seco, os olhos esverdeados perdidos nos meus. Acenei para um motorista executivo e ele caminhou até onde estávamos. — Leve a Srta. Malta até meu hotel... A recepção cuida dos custos. Virei as costas e entrei no carro com Nacho. — Onde estão? — perguntei. — No Aguero, chefe... Eu quase não os reconheci... Se não fosse pela tatuagem da santa no peito do Tito... Subimos o morro em direção ao local. O Aguero era um bairro simples, de trabalhadores locais, bem longe das paisagens que os turistas queriam. Tito, Canho e Polaco trabalhavam para mim no empacotamento. Eram conhecidos por toda a vizinhança, já que haviam crescido por lá. Não tinham informações nem seriam úteis para nada, o que significava que matá-los era apenas uma afronta. Nacho parou o carro em uma rua de terra sem saída, bem em frente a um casebre de madeira pintado de azul. Eu conhecia o lugar, tinha comido papas rellenas com dona Lucía algumas vezes. Era a avó do Tito, mas por sorte já não morava mais com ele. Peguei a semiautomática no console e enfiei na cintura da calça. Nacho bateu o pé na porta, abrindo-a e apontando a pistola. — Não acho que eles estejam por perto... — comentei. — Melhor garantir, chefe... Entramos para encontrar a pequena sala revirada. O chão de terra batida manchado de sangue e o cheiro pungente de morte deixava o cenário assustador. Os três garotos estavam deitados no chão, mãos amarradas com corda para trás. Empurrei um deles com o pé, virando-o de frente. Estava machucado. Cortes e queimaduras por todo o corpo. A pele do rosto havia sido removida, e a boca, enchida com o pó branco que eu conhecia bem. — É nosso? — perguntei. — Não sei, chefe... Não encontrei nenhuma embalagem e... Ergui a sobrancelha e fechei o rosto, oscilando os olhos entre o garoto e Nacho. — Quer que eu prove? — questionei. — Não senhor... Ajoelhou em frente o corpo sem vida e tirou o canivete do bolso, com a ponta, pegou um pouco de pó da boca do cadáver e colocou em sua língua. — Não é pura como a nossa, chefe... — concluiu depois de experimentar. Corri os olhos pelo lugar, caminhando entre os cômodos. Quando cheguei ao último quarto, parei. Havia um condor morto no chão, com as asas arrancadas e coberto de cocaína. Caminhei até perto dele, para ver o que era que tinha dobrado dentro do bico. Aproximei-me e levei a mão. Era uma fotografia, minha com Verônica, saindo de casa em Cusco. “Nada como uma boceta nova para fazer um homem sair da linha...” — as palavras do Matsuya ecoavam em meus pensamentos. “Eles querem foder você, Nico... Os dois filhos da puta querem se aproveitar da morte da garota e terminar o que começaram vinte e dois anos atrás!” O recado escrito com sangue na parede dizia: Olho por olho, dente por dente. — E eu vou arrancar os seus, seu filho de uma cadela! — Soquei o móvel com força. Virei-me para encontrar Nacho logo atrás de mim. — A brasileira, chefe... É problema... — Respirou fundo, desviando os olhos dos meus quando eu o encarei. — Se o senhor a entregar, quem sabe... Sei que não é da minha conta, mas... — Tem razão... — concordei. — Não é da sua conta! Saí do quarto e abri a torneira da pia, limpando a mão e a corrente de ouro. Enfiei no bolso e alisei os cabelos para trás. Dê uma boa indenização às famílias e um enterro decente a esses pobres diabos. Não economize — instruí. — Volto com o carro e você fica, tenta descobrir quem foi o desgraçado que fez isso. Nacho abriu a boca para falar, mas eu interrompi. — O mandante eu sei, porra! Quero saber o executante... Traga-o até mim, vivo. Entrei no carro e virei a chave. Odiava essa parte do trabalho, por mais que fingisse não me importar; a verdade é que eu me via em cada um deles. Sabia que, mais dia, menos dia, um dos meus seria o corpo jogado no chão, como tinha sido com Karina. Parei em frente a casa, no Centro, e desci. Dona Lucía não demorou a aparecer, caminhando devagar até o portão. Parou em minha frente, olhos questionadores mirando os meus, e então eu aquiesci silenciosamente. Baixei o olhar, mãos cruzadas na frente do corpo. Tinha visto Tito crescer desde menino. Essa era a grande diferença entre mim e a Yakuza. Eu conhecia minha gente, cuidava deles. Podia não ser um santo, mas não era um demônio também. O que eu fazia eram negócios. Vendia para quem queria e tinha dinheiro para pagar, apenas. — Nacho vai cuidar de tudo, abuelita... Não se preocupe... Também vai cuidar da senhora... Ninguém a irá desamparar... — expliquei. Dona Lucía não disse nada, concordou, a mão enrugada sobre a manga do meu blazer caro. — Cuide-se, filho... Para não ser o próximo... Depois virou as costas e voltou para dentro da casa, enquanto eu pegava meu rumo de volta para o hotel. Era uma afronta clara e direta para mim. Não uma retaliação ou briga boba, era pessoal e o condor morto no meio da droga deixava claro isso. Eles queriam minha cabeça, e iam usar o que fosse preciso para isso. Cocei os olhos por baixo dos óculos escuros, estava cansado, mas não podia me dar ao luxo de descansar, não até que aquele maldito japonês estivesse debaixo da terra. Só assim eu teria paz. Peguei o telefone no bolso e liguei para Guille. — Mande Tia Lupe e a Maribel para longe... — avisei. — Não interessa aonde, Guille, pode ser a porra de qualquer lugar, contanto que elas estejam seguras e longe das vistas daqueles malditos japoneses. — Aconteceu algo? — perguntou sem entender minha raiva. — Três garotos sem rosto e um condor mutilado, no Aguero... Tinha também um recadinho de amor, do merda do Nakai... — Como sabe que foi o Nakai, Nico? — Fez uma pausa e respirou tão fundo que eu pude ouvir do outro lado. — Eu avisei a você que, quando se tornasse pessoal, era o seu fim... — Uma foto minha com Verônica, no bico do bicho, Guille... Já é pessoal, companheiro... Só o que posso fazer é acabar com aquele filho da puta de uma vez. Meu primo pensou por um tempo. — Estados Unidos... Maribel queria mesmo uma viagem de férias, assim não preciso explicar muito... Madrecita ficaria preocupada... Estou chegando à capital... Vou despachar o carregamento para o Brasil e volto para Cusco... Não vou deixá-lo sozinho. Foi minha vez de fazer silêncio. — Não, Nico... Não me venha com esse negócio de “você assume se eu morrer!”, você não vai morrer, hermano... Eu não vou deixar! Desliguei o telefone. A noite começava a cair, quando estacionei no gramado privado e desci. Assim que contornei o carro, encontrei Verônica saindo pela porta. — Não quero conversar... — Passei por ela sem realmente a olhar. — Também não quer saber o que há naquela caixa? — Apontou para o canto oposto. Parei onde estava, voltando os olhos para a caixa de madeira no chão. Verônica — Estava aqui quando eu cheguei... — expliquei. — Achei melhor não tocar nem tirar do lugar... Também não contei para ninguém. Nicolas se aproximou da caixa e a encarou por alguns segundos, depois tirou o telefone do bolso. — Quero as imagens das câmeras cinco, sete e nove. Envie direto lá para cima. Pegou a caixa e entrou no elevador. Parecia tão possesso que eu nem perguntei nada, apenas o acompanhei. Entramos na cobertura e ele saiu direto para a grande varanda. Deixou a caixa sobre a mesa de vidro e tirou um canivete do bolso, cortando o lacre. Assim que tirou a tampa, eu levei um susto tão grande que precisei escorar na cadeira. — É sua? — Ergueu a camiseta branca, toda rasgada e manchada de sangue. Aquiesci. Uma a uma, as peças de roupa que eu havia deixado no albergue foram sendo tiradas de dentro da caixa. Todas elas manchadas de sangue. Quando a última peça foi tirada, asas imensas, com penas escuras, apareceram. Tinham sido cortadas bem na junta. O rosto de Nicolas se contorceu de ódio, mãos cerradas em punho e olhos estreitos. Deu um grito e jogou a caixa para fora com tanta força que eu senti meu corpo todo tremer. Não ouvi quando caiu, certamente tinha rolado a montanha, já estávamos no lado oposto do hotel. Eu fiquei estática, não conseguia me mexer, porque tinha sido pega de surpresa. Nico sentou-se na cadeira, cobrindo o rosto com as mãos e respirando forte. Talvez precisasse se acalmar, porque eu, certamente, precisava. De repente, levantou o rosto, um riso assustador pairando em seu semblante. — Parece que você conseguiu, brasileira... Aquele maldito Yakuza está te usando para me provocar... — É uma coisa boa, não é? — perguntei a ele, mas também não sabia o que responder. — Aí depende... — Alisou os cabelos, retomando o controle. — Você tem um demônio na sua cola e ele é bom no que faz... — E quem disse que eu não sou? — provoquei, mas a verdade é que eu podia sentir aquela fungada fria e desconfortável do medo no meu cangote. — Venha... Está frio e precisamos conversar... — chamou, abrindo a porta de vidro. Entrei logo depois dele e o segui pelo corredor, até o quarto. Nicolas abriu uma das portas do armário e digitou o segredo no cofre. Tirou uma 9mm de dentro dele e começou a carregar o pente. — Imagino que já tenha visto uma dessas... — Colocou a pistola sobre a cama, perto de mim, e eu aquiesci. — Espero que não precise usar, mas, já que atira tão bem, detetive, é melhor que esteja preparada. — Sei me virar, Nico... Já lhe disse... Não é a primeira vez que eu lido com um bandido... Encarou-me por alguns segundos e achei que fosse reclamar de algo ou dizer que eu não tinha ideia de quem era a Yakuza, mas, de repente, seu olhar suavizou e eu senti meu coração aflito. — Verônica, eu... — Vamos acabar com aquele desgraçado! — Sorri, interrompendo. Nicolas venceu o espaço entre nós em poucos passos. Apoiou o braço na cama e deitou-se sobre mim com tanta pressa que me pegou de surpresa. A boca sedenta, a língua ávida pela minha. Livrou-se das minhas roupas com rapidez e eu fiz o mesmo com as suas. Pouco tempo depois, tínhamos sido tomados pela mesma urgência de saciedade. — Não vou deixar ninguém machucar você, corazón... — sussurrou contra a minha boca entre um gemido e outro. — Juro que não vou... — Eu sei... Ele não se levantou depois de gozar. Nem disse nada, nenhuma piada boba ou provocação. Deitou-se de costas e me puxou para o seu peito. Cigarro na mão, dando um trago e outro e encarando o teto de gesso. Eu também não queria me levantar. Sentia como se aquela sensação ruim no coração fosse voltar, assim que eu o deixasse, então fechei os olhos e fiquei sentindo o perfume dele, acariciando o peito liso sobre a tatuagem que combinava tanto com ele. *** Não sei em que momento peguei no sono, mas quando acordei o quarto estava escuro e eu estava sozinha na cama. Levantei-me e vesti o roupão felpudo, procurando pelo brilho claro que vinha do corredor. Nicolas estava no computador, olhos vidrados na tela, ainda que tivesse me visto de relance. — Descobriu quem foi? — perguntei imaginando o que fazia. — Venha até aqui... — chamou. Aproximei-me da mesa, ficando ao seu lado, e observei a tela dividida em três, mostrando diferentes ângulos da porta de entrada. Nada aparecia, até que a caixa era colocada no chão, por alguém usando luvas pretas de couro. — Quem colocou conhece seu sistema de segurança... — concluí. — Só eu, Guille e Nacho sabemos a posição das câmeras... — continuou. Engoli em seco, sem saber o que dizer. — Confio minha vida aos dois, detetive... E agora? — Nico... Deve ter algo que você não viu... Outras câmeras... Um hacker! — Endireitei o corpo de uma vez. — É isso! Alguém deve ter entrado em seu sistema e apagado as imagens... Deixou essas para semear a discórdia... Já vi isso acontecer! — Já verifiquei... A única pessoa a acessar o sistema de segurança na última semana fui eu... — Manteve os olhos nos meus. Havia neles uma sombra de decepção, misturada a incredulidade. Eu podia imaginar como era difícil para ele. Eu tinha quase morrido por causa de um X9 na polícia e era exatamente por isso que Fábio e eu tínhamos criado a Vivi. Quando a gente confia a vida a alguém, é porque faria de tudo para salvar aquela pessoa, uma troca, lealdade por lealdade. — Nico... Tentei acariciar seu rosto, mas ele afastou minha mão e se levantou. — Agora que sabe o quão perto está o traidor, mantenha a porra da pistola debaixo do travesseiro... — Virou as costas e seguiu em direção ao quarto. — A vida é uma merda, corazón... Espero que esses dias no meio dos bandidos te ensine alguma coisa. Deixei que ele fosse e me sentei na cadeira, repassando as imagens mais uma vez. Tinha que haver algo ali. Eu não conseguia acreditar que Nacho ou Gille tivessem traído Nicolas. Tinha um bom faro para filhos da puta e nenhum dos dois parecia se enquadrar. E o que você entende desse mundo, Verônica? Sempre esteve do outro lado... Eu podia não entender de como as coisas funcionavam dentro de um cartel, mas entendia de traição e sabia bem o gosto amargo que ela deixava. Talvez fosse idiota e eu acabasse me arrependendo, mas, por alguma razão idiota e impensada, eu não queria que Nicolas se sentisse mal. Abri os armários e a geladeira em busca de algo que pudesse cozinhar. Encontrei espaguete, ovos, um pedaço de queijo amarelo, bacon e vinho branco. — Pronto! — falei comigo mesma. Acendi o fogão e coloquei a panela com água sobre a indução. Deixei no fogo baixo, assim conseguiria jogar uma água no corpo e vestir algo mais quente, antes que fervesse. Corri até o banheiro e encontrei Nicolas se secando. — Com licença... — Empurrei-o para o lado e tirei o roupão, entrando no chuveiro. Tomei aquele banho basicão de inverno de cinco minutos, em que a gente lava o necessário e corre para se secar. Nicolas encarou-me sem entender, enquanto eu vestia a calcinha e uma blusa de moletom dele que ficava suficientemente comprida para que eu não precisasse de calça. — Algo que eu deva saber? — perguntou curioso. — Se for incêndio, sugiro que vista uma calça... As escadas de segurança são vazadas... — Carbonara, chefe... Vou te dar o prazer de experimentar minha comida... — Pisquei, correndo de volta para a cozinha. Não demorou muito e ele apareceu junto ao batente. Olhos fixos no que eu fazia, sobrancelhas baixas, com aquele ar de quem analisa tudo. — E vinho! — Dei um gole na garrafa, depois joguei um pouco sobre o bacon. — O toque especial é sempre um bom vinho... — Dei mais um gole. — Um de quinhentos dólares? — perguntou como se não fosse nada. Senti o vinho descer rasgando minha garganta. — Um petit verdot premiado no último festival internacional... Quase uma raridade... Murchei na mesma hora. — Desculpe! — pedi, deixando a garrafa em cima da mesa. — É que estava na prateleira e não na adega, então eu... — Sua sorte, detetive... — ia dando passos em minha direção. — É que tenho uma caixa deles... — Sorriu de canto. — Mas, ainda assim, vai ter que pagar... Mordi o lábio, sentindo aquele calor insano subir pelas minhas pernas, os olhos perdidos nos dele. — Vai cozinhar para mim enquanto eu fodo você... Nicolas Verônica me encarou e estreitou os olhos. Uma sombra de sorriso safado brilhando em seu rosto e as bochechas corando instantaneamente. — Vai! — Movi a cabeça indicando a pia. — Estou com fome. Soltou um riso sem jeito e passou a língua pela boca, deixando a garrafa sobre a mesa. — Para de besteira, Nico! Quando tentou dar um passo, eu a peguei pela nuca, virando de costas para mim. O cabelo torcido em torno do meu punho, prensei-a contra a pia, encaixando meu pau duro em sua bunda. — Acha que estou brincando? — Corri a boca pelo seu pescoço. — Se acha, ainda não me conhece, detetive... Eu nunca prometo algo que não pretenda cumprir... Verônica empinou a bunda, esfregando contra minha ereção e fazendo meu pau se apertar mais. Gemi entredentes, lambendo a parte detrás da orelha dela. Eu gostava de como ela sempre provocava de volta sem nunca recuar. Baixei a calcinha por suas pernas e tirei meu pau para fora. Cuspindo na mão, puxando a pele para trás, expondo a cabeça. Comecei a esfregar em sua boceta, sentindo a pele quente na parte mais sensível do meu corpo. — Rebola, corazón... Como fez lá na fazenda... — pedi e ela obedeceu de imediato. Começamos a dança torturante sem nenhuma música, só o corpo dela e o meu. Cada toque da cabeça do meu pau em sua entrada a fazia arquear mais o corpo, implorando para que eu a enchesse toda. Segurei, queria provocar. — Nico... — o sussurro tinha traços de pedido. — Hum? — perguntei beijando seu pescoço, a mão livre provocando o bico do seio. — Quer alguma coisa? — Quero... — Virou o rosto, capturando minha boca, a língua inquieta buscando pela minha. — O quê? Enfiou a mão entre as pernas, os dedos em torno do meu comprimento. — Seu pau! Guiou-me para dentro e eu não resisti, socando com força e arrancando um gemido alto dela. — Ah... Quanto mais gemia, mais eu queria ir, rápido e fundo, mas precisava me controlar, então parei. — Não para! — pediu. — Quero minha massa, muñeca... Você cozinha, eu fodo... Você para, eu paro... Verônica riu alto e os espasmos da sua barriga quase me fizeram gozar. Precisei pensar em sangue, tiro, cadeira, mesa, a lua lá fora, tudo menos a porra da bunda gostosa que engolia meu pau. Ela tirou a massa do fogo e jogou no escorredor, e eu ia me movendo devagar para dentro dela, vez ou outra, mais rápido, depois me segurava de novo. Estava quase terminando o preparo, quando eu soube que ela não aguentaria. Segurou apertado na borda da bancada e gemeu, uma e outra vez, o canal ordenhando meu pau em um orgasmo que me levou junto. Segurei na bancada também e acelerei, batendo com força contra seu corpo, fundo e forte como nós dois gostávamos. Antes de sair de dentro dela, dei um tapa estalado em sua bunda, de lado, pegando a coxa também. A pele ficou vermelha no mesmo instante. — Ai! — reclamou. — Isso é para você aprender a não me desobedecer... Ainda não era hora de gozar, corazón... Minha comida nem estava pronta e agora vai ficar toda empapada... — Subi a calça e acendi um cigarro. Verônica riu, ainda apoiada contra a pia e correu as mãos pelo rosto. — Você não vale nada, Nicolas Huamán! — Bateu em meu braço e seguiu de volta para o quarto. Aproveitei e terminei a massa, depois servi o vinho em duas taças e coloquei a mesa. Verônica voltou pouco tempo depois, usando uma calça de moletom cor-de-rosa e uma camiseta. Ainda estávamos comendo, quando o interfone tocou. Levantei-me rápido da mesa, porque era a campainha da entrada privada. Assim que liguei a câmera, vi Guille escorado contra a parede. Tinha a mão sobre a clavícula e o rosto contorcido de dor. Corri até o elevador e desci, antes que Verônica pudesse me alcançar. Assim que as portas se abriram lá embaixo, meu primo cambaleou para dentro. A camisa clara, por baixo da jaqueta, coberta de sangue, e a respiração, entrecortada. Apoiei-o com o braço, para que pudesse se manter em pé. — Porra, Guille, o que houve? — perguntei enquanto subíamos. — Interceptaram o carregamento... — Apertou os olhos de dor. — Quem? — Os federais... Na estrada, perto da reserva... — Da reserva? Como perto da reserva? Que merda eles estavam fazendo lá? A rota é nova, ninguém conhece, Guille. — Também queria saber... O Marco e o Mena estão mortos, e a mercadoria já era! — Porra! — gritei, socando a parede. Assim que as portas se abriram, vi o rosto aflito de Verônica. — Ajude-me a colocá-lo no sofá... — pedi e ela obedeceu. Tirei a jaqueta pelos ombros de Guille, enquanto ele gemia de dor, e abri os botões da camisa. — A bala já saiu, só preciso de um curativo e uma porra de uma garrafa de uísque! — Sorriu entredentes, segurando a dor. Deixei-o no sofá e corri até o quarto. Por sorte, o material de curativo que eu havia pegado para tratar Verônica ia servir e, quando voltei, Guille estava bebendo direto do gargalo, com Verônica ao seu lado. — Sei como dói... — Deu de ombros. — Já levei alguns tiros... — explicou. — Por sorte foi de raspão... — Boa garota essa detetive, primo... — Guille riu. — Sabe lidar com uma arma e com o estrago que ela faz, além de aturar você... Estreitei os olhos e levantei uma sobrancelha, sentando-me ao lado dele para começar o curativo. — Conte o que houve, Guillermo... A polícia federal não vigia reserva indígena, hermanito, a menos que alguém denuncie, e ninguém... Parei a frase no meio, não queria continuar. Guille voltou os olhos para os meus. Tínhamos chegado à mesma conclusão, mas nenhum de nós acreditava. — De quem é o carro no jardim? — perguntei alguns segundos depois. — Roubei na estrada... A gente vai ter que se livrar dele rápido. Deixei Verônica cuidando do curativo e liguei para Nacho. — Porra! — xinguei. — O desgraçado desligou o telefone! — Cálmate... — pediu. — É só coincidência, Nico... Acendi um cigarro e puxei um trago, depois entreguei na mão de Guille e acendi outro para mim. — Espero que seja... Quando terminamos, Guille estava suficientemente bêbado para não sentir dor. Ajudei-o a se deitar no sofá para que ficasse mais confortável e chamei Verônica para perto de mim. — Vou sumir com o carro... — avisei. — Você fica de olho nele, que eu volto logo. A garota aquiesceu e caminhei até o quarto, trocando minha calça de elástico por jeans escuros e uma blusa de moletom preta com capuz. Peguei as luvas também. Desci pelo elevador e abri a porta do porão, atrás de um galão de combustível que pudesse usar. Coloquei no banco detrás e dei a partida. Havia uma antiga estrada desativada que acabava bem no meio da mata, em uma clareira que já não usávamos mais como rota de fuga. Parei o carro lá e despejei o combustível nele todo, principalmente nos bancos, que serviriam como condutor para o fogo. Em seguida, travei meu isqueiro e o joguei para dentro. Estava a uma distância segura, quando ouvi o estouro. Pelo menos um problema, Nico, você resolveu. Continuei caminhando pela estrada deserta, não era perto do hotel, quando meu telefone tocou. — Venha me buscar... Estou na rota antiga... — falei assim que vi o número de Nacho na tela. — Não consigo, chefe... Estou longe... — Longe? — repeti. — É a minha irmã... O desgraçado do meu cunhado bateu nela de novo e... — Espero você amanhã pela manhã... — encurtei o assunto. — Roubaram a nossa carga... — Desliguei. Nacho longe? Bem no dia em que roubam uma carga de que só eu, ele e Guille, além dos brasileiros, sabíamos da entrega? É, companheiro... Sua irmã escolheu um péssimo dia para levar uma surra... Verônica Nicolas demorou a voltar e eu não conseguia dormir, então peguei o maço de cigarro e saí para a varanda. Tinha deixado de fumar muitos anos atrás, mas, depois de tudo que vivi nos últimos dias, fumar era o menor dos riscos. Acendi e dei o primeiro trago, encarando a luz da lua na montanha. Celso tinha uma cobertura milionária, meu celular antigo, uma escuta, e Fábio tinha resgatado nosso meio de comunicação de emergência. Que porra estava acontecendo bem debaixo do meu nariz? Eu estava com a sensação de que tinha escolhido a pílula vermelha. Se você pegar o vermelho, estará no país das maravilhas, e eu mostrarei a você até onde vai a toca do coelho. Eu tinha assistido àquele filme mais de vinte vezes, mas nunca imaginei que chegaria a minha vez de foder com a porra da Matrix. Nicolas é o bandido, garota... Lembra disso. Dei mais um trago, soltando a fumaça para cima. Queria calçar meu par de tênis e correr um pouco, pensava melhor quando estava em movimento, mas nem isso eu podia. Essa merda de vida de isca está acabando com você, Verônica! Tinha fumado três cigarros e minha cabeça parecia que ia explodir de tanto pensar, quando Nicolas chegou. Conferiu a temperatura do primo e abriu a porta de vidro, encostando ao meu lado e pegando o cigarro da minha mão. — Tia Lupe e Maribel estão fora do país... — falou sem me encarar. — Você devia ir também... Abri a boca para responder, mas ele não deixou. — Sei que sabe se virar, como você mesma diz, e não duvido, mas... — Parou a frase no meio e alisou os cabelos para trás, tomando fôlego. Os olhos estavam tristes, pesarosos e preocupados. Havia uma escuridão ali que eu não tinha visto antes, diferente da letalidade com que resolvia as coisas. — Ele não vai parar... — falou tão baixo que mais parecia conversar consigo mesmo. Engoli em seco, queria abraçá-lo apertado, uma sensação estranha que eu nunca sentira. Dei um passo à frente, afastando-me dele. Tinha que ficar longe ou acabaria cedendo mais do que podia. Como se soubesse o que eu sentia, Nicolas levantou os olhos, mirando os meus sem dizer nada. Eu queria dizer que não ia deixá-lo. Que estava ali com ele e que iríamos juntos até o fim, como uma equipe, mas, que equipe era a nossa? Eu não sabia nem de mim, quanto mais dele. Nicolas Huamán, El Condor... Procurado pela polícia das três Américas. Uma porra de um bandido, Verônica... — Vou dormir... — avisei tentando não demonstrar a bagunça que minha cabeça era naquele momento. — Está tarde... — Sorri. Ele aquiesceu e virou de frente para a vista da montanha. Talvez também quisesse esconder de mim o que se passava em sua cabeça. Deitei-me sozinha na cama, com a sensação estranha de que faltava algo, e acordei com a mesma sensação. Nico não estava na cama e seu lado estava intacto, o que deixava claro que não tinha dormido. Levantei-me e caminhei até o banheiro, depois prendi os cabelos em um rabo de cavalo. Passei pela cozinha, em direção ao escritório, e o vi lá fora, esparramado na poltrona, meio encolhido de frio. O cigarro havia apagado sozinho no cinzeiro. Peguei uma manta para o cobrir, mas, assim que tentei tirar o celular do seu colo, ele agarrou meu pulso, olhos astutos nos meus. — Calma, chefe... — brinquei. — Só queria te cobrir. Fui puxada para o seu colo e não ofereci resistência, acariciando sua barba e beijando sua boca suavemente. — Um olho aberto, outro fechado... — repeti a frase que havia me dito. — Sempre... — completou. Aconcheguei-me em seu peito, e ele nos cobriu. — Você nunca relaxa? — perguntei curiosa. Nicolas respirou fundo, depois jogou a cabeça para trás, espreguiçando-se. — Quando estou fodendo você... — A sombra do sorriso de canto brilhando em seu rosto. — Geralmente relaxo... Comecei a rir. — Estou falando sério! — Eu também! Ninguém contou a você que sexo é ótimo para relaxar? Bem que eu te achei estressadinha, detetive! — Bateu em minha bunda, para que eu levantasse. — Conte a verdade... Fazia um bom tempo que você não dava uma bela trepada... — Aí é que você se engana, senhor... — provoquei. — Mas não vou falar da minha vida sexual com você... Esqueça! Ainda estávamos rindo, quando a porta se abriu e Guille passou por ela. — Como está? — Nico perguntou. — Quase bom, mas pronto para pegar o desgraçado que armou a emboscada... Sabe que eu odeio cicatrizes, não sabe? — Deu um gole na garrafa de uísque quase vazia e apontou para o curativo. — Essa vai ficar bem feia! Aliás... — Levantou o dedo em riste. — Onde acho aqueles comprimidos que você costuma ter na gaveta? Isso aqui não está fazendo muito efeito mais! — La tomba... — Nicolas apontou para mim. — Acabou com todos! Encarei sem entender. — Polícia, hermanita... — Guille explicou e eu balancei a cabeça em negativa, rindo. Nicolas enfiou o telefone no bolso e reprimiu um bocejo. — Vou descer até o ambulatório e peço mais... Quando subir quero conversar com você sobre a emboscada... — Diga onde é a enfermaria e eu pego... — propus. — Assim vocês conversam mais à vontade... Eu não era idiota e sabia muito bem que Nicolas também não... Ele não ia me deixar a par dos detalhes importantes sobre o cartel, porque, afinal de contas, eu ainda era la tomba! Desci como estava, de moletom e camiseta. Não era a pessoa mais preocupada do mundo com moda e não pretendia mudar isso por causa de alguns dias na cama de um cara. Até porque não esperava encontrar ninguém no curto caminho do elevador privativo até a enfermaria, mas estava enganada. Assim que passei pela entrada privativa, dei de frente com uma mulher. Ela levou um susto tão grande que derrubou o celular no chão. Tentei pegá-lo, já que a tela mostrava uma ligação em andamento, mas ela o puxou com força, enfiando no bolso da saia. Franzi o cenho sem entender. A garota respirou fundo e se recompôs, com aquela cara de nada que a gente faz quando quer parecer gentil mas na verdade não é. Encarou- me sem entender de onde eu estava vindo, por alguns segundos. — Acho que você se perdeu... — Sorriu. — Aquele elevador é de uso particular.... — Indicou o caminho até o elevador de Nicolas. Havia um certo ar de deboche e uma pitada de presunção em seu olhar, aquela provocação velada que faz a gente querer retribuir na mesma moeda. Respira, Verônica... — Estou procurando a enfermaria... — expliquei sem maiores detalhes. — Se me der licença... — Oh, claro! — Sorriu de novo. — Mas, infelizmente, a Tamara ainda não chegou... — continuou em meu caminho. — Se for uma emergência, posso falar com o Sr. Huamán... Eu estava mesmo... — Não precisa... — Tentei sorrir, mas sei que parecia muito mais uma careta. — Ele mesmo me pediu que viesse! — Balancei o cartão de acesso. — Desculpe... — Esperei que ela se apresentasse. — Teresa... — falou a contragosto. — Agradeço a ajuda, mas imagino que você tenha trabalho a fazer... Eu consigo me virar! — Pisquei. Levei a mão ao seu ombro, tirando-a do meu caminho suavemente, e passei. Podia parecer implicância minha, mas eu não tinha ido com a cara da tal Teresa. Depois de tantos interrogatórios e investigações, eu tinha adquirido uma capacidade estranha e muito bem-vinda de ler as pessoas. Raramente errava. Abri a porta e procurei pelo remédio que Nicolas havia pedido. Coloquei no bolso da calça e ia saindo, quando encontrei novamente Teresa, próximo à porta. — Nicolas se sente mal? — perguntou tentando parecer amigável. Encarei-a por alguns segundos. Aquela sensação de alarme tocando em meus pensamentos sem parar. — São para mim... — menti. — Torci o pé escalando... Sabe como é! — Dei de ombros sorrindo. — Prazer em conhecê-la! — menti novamente. Segui o caminho de volta para o elevador e, assim que passei pela parede de vidro, vi Teresa no balcão da recepção. Conversava com uma garota baixinha de cabelos castanhos, mas os olhos vagavam em minha direção. Encarei-a por alguns segundos, até que ela desviou o olhar, fingindo não ter percebido. Estava claro para mim que ela tinha intimidade com Nicolas, só pela maneira como pronunciara seu nome, mas o que ela estaria fazendo naquele lugar tão cedo e, o mais importante, por que se assustou comigo e escondeu o telefone? O saguão do hotel era cheio de jardins e todos estavam vazios, por que ir tão longe apenas para atender a uma ligação? Teresa parecia aquele tipo de pessoa que passa despercebido, mas aparece sempre em todos os lugares e eu odiava isso. Nicolas — Você o conhece desde que era um chiquito sem dentes na frente, Nico... — Guille defendeu. — E confiei minha vida a ele mais vezes do que posso contar, mi hermano... — frisei. — Acha que quero desconfiar de Nacho? Ele é meu homem de confiança, o único que sabe coisas que só a família sabe, Guille... Sempre o tratei como a um irmão... Meu primo deu um trago no cigarro, soltando a fumaça para longe, depois deu um gole na xícara de café. — Falou com o Chicano? — perguntou. — A mãe dele mora em Arequipa, perto da irmã do Nacho... Talvez... Neguei com a cabeça, cortando sua frase. — Se aquele boliviano filho da puta estiver mesmo me traindo, só vamos levantar suspeitas e fazê-lo ser mais cuidadoso... Concordou, batendo a cinza do cigarro no cinzeiro. — Quero é saber onde está minha mercadoria e pegá-la de volta... Três milhões, Guille... Três milhões que eu não pretendo perder... — Dei um gole no café. — O telefone daquele federal da fronteira... O que está em nossa lista de... regalos... Você ainda tem, não é? — Tenho... No chip do telefone... Se me conseguir um aparelho novo... O meu já era... Deixei-o na cozinha e caminhei até o quarto, tinha alguns aparelhos novos em minha gaveta, para uma eventualidade, então peguei um deles e tirei da caixa. No momento em que entreguei a Guille, meu telefone vibrou no bolso. O número de Nacho vibrando na tela. Atendi no viva-voz e ativei a localização. — Como está o Guille, chefe? — perguntou. — Onde você está? — devolvi. — Por que ainda não voltou? Não queria crer que o homem em quem eu mais confiava depois de Guille estivesse me traindo, mas, até ter certeza, quanto menos ele soubesse, melhor. — Perto de Cusco... — desconversou. — Resolvendo algumas coisas... — Achei que estava em Arequipa... Cuidando da Sole... — provoquei. Nacho ficou em silêncio por alguns segundos e depois suspirou. — Sei que pensa que eu o traí, Nico... — Respirou fundo mais uma vez, raramente me chamava pelo apelido, mesmo tendo crescido comigo. — Vou encontrar o filho da puta que está tentando me incriminar... Desligou em seguida e eu continuei encarando Guille por mais algum tempo. Ainda nos olhávamos quando Verônica apareceu. Colocou os comprimidos sobre a mesa e entregou-me o cartão. — Conheci uma funcionária sua... — comentou, enchendo uma xícara de café e levando à boca. — Teresa, o nome dela... Não que eu tenha algo com isso, mas... ela pareceu estranha e assustada quando me viu... Falava ao telefone, bem perto da sua entrada privativa... — Eu não costumo trazer mulheres aqui, detetive... Qualquer um se assustaria... — limitei-me a dizer. Verônica virou o que restava de café na xícara e seguiu para o quarto. Eu não pretendia ser grosseiro, mas, depois que ela saiu, comecei a achar que tinha sido. Eu era péssimo em lidar com o depois, por isso gostava de terminar meus relacionamentos assim que gozava. Era bem mais simples e eu não gastava tantas palavras desnecessariamente. — Se eu fosse você, ia atrás... — Guille deu mais um trago no cigarro. — Ainda bem que você não é, ou estaríamos à mercê da primeira boceta que encontrasse... — praguejei. A última localização do telefone de Nacho era Cusco, perto dos Chanapatas. Nós não tínhamos negócios por ali, mas o Matsuya tinha. — Vamos para Cusco... Você fala com seu amigo tombo e eu fico na cola daquele boliviano de merda... Tinha acabado de terminar a frase, quando Verônica parou junto à porta. Vestia jeans e uma jaqueta de couro, pronta para sair. — Sabe o que eu aprendi nesses anos de polícia? — perguntou, caminhando para perto da mesa. — Que a gente sempre desconfia da pessoa errada... Se quer minha opinião... Não acho que Nacho está traindo você... — Não quero, detetive... Nem sua opinião, nem conselho... Você acha que entende tudo, mas não consegue nem enxergar o que está debaixo do seu nariz... — irritei-a de propósito. Não queria que se metesse demais. — Então somos dois, El Condor... — Pegou o cigarro em minha mão e deu um trago. — Enquanto você perde tempo correndo atrás de pistas falsas, as verdadeiras vão se perdendo... — Colocou o telefone sobre a mesa, com o vídeo que tinha feito na festa rodando. — Quem garante que a pessoa aqui... — Apontou a pilastra. — É um homem? — frisou. Desafiava-me com o olhar, então eu o sustentei. Verônica não era do tipo ciumenta, nem esperava de mim mais do que alguns dias de cama e parceria, então não havia razões para implicar com Teresa. — Vamos? — perguntou de repente e eu estreitei os olhos sem entender. — Para Cusco! Não achou que eu ficaria aqui curtindo o hotel, não é? — Guille riu, levantando-se e passando o braço bom em torno dos ombros de Verônica. — Se algum dia resolver largar a farda, tombita, tem lugar garantido comigo! Fiquei olhando-os caminhar, alguns passos a minha frente. E se todos tiverem razão, Nico, e você estiver focando na pessoa errada... Não! Teresa não tem a menor condição de trair você... O que a garota sabe? Que você é o chefe? Isso não é nada! Não serve nem como moeda de troca e ela sabe bem... Pegamos o helicóptero e depois seguimos direto para o Centro. Durante todo o percurso, vigiei a localização do telefone de Nacho, mas não tinha certeza se ele não estava se movendo ou se tinha deixado o aparelho em algum lugar. A pior parte de desconfiar de alguém de dentro é que ele sabe de todos os truques. Guillermo tinha razão, eu conhecia Nacho desde criança. José Ignacio Sanchez, o garoto alto e desengonçado cujo pai tinha sido morto junto com o meu, na porra da tentativa de salvar aquela desgraçada da Malena. Nacho fora acolhido pelo meu avô, quando a mãe sumiu no mundo com medo da retaliação da Yakuza. Tinha crescido comigo e com Guille, correndo pela fazenda, e havia se tornado meu grande amigo e confidente. Ficara ao meu lado por todos esses anos e fora essencial para o meu sucesso em duplicar o cartel. Por que diabos me traiu, seu boliviano filho da puta? O que te faltou? Dinheiro? Poder? Caralho, Nacho, era só ter pedido mais, companheiro... Eu teria dado... O carro parou em frente ao portão e nós descemos. Guille havia passado boa parte do percurso, até o Centro, no telefone. — A mercadoria não foi para o armazém... O tombo nem sabia da operação, Nico... — Filho de uma cadela desgraçada! É aquele merda do Nakai, Guille! Tenho certeza de que a nossa mercadoria está a caminho de algum porto! Quer apostar? — Não! Porque eu sei que perderia... — Descubra quais são os navios ancorados com destino ao Oriente... — mandei. — Pode ser que eles tenham voltado para nós ou estejam na Bolívia... Vou fazer algumas ligações e depois nós saímos para pegar o Nacho. Entrei em meu quarto e fechei a porta. Tinha que resolver tudo aquilo logo, não era mais só o assassinato de Karina, era pior. Alguém estava tentando derrubar o meu cartel e eu não podia permitir. Falei com alguns contatos nas polícias e deixei todos de sobreaviso. Preferia perder meu dinheiro para os tombos a ver a maldita Yakuza lucrar em cima da minha desgraça. Quando desliguei, vi Verônica falando ao telefone. Desligou assim que eu me aproximei. — Um carregamento suspeito de batata para Okinawa... — disse de repente. — Aposto que sua mercadoria vai escondida nele... Estreitei os olhos. — Como sabe? — perguntei curioso. — Você tem seus meios, eu tenho os meus... Ia virando as costas, quando eu a segurei pelo braço, girando de frente para mim e prensando contra a mureta do jardim. — Como sabe, Verônica? — insisti. — Vai desconfiar de mim também? Acha que estou trabalhando com o assassino da Karina? — devolveu e eu engoli em seco, mas não voltei atrás. — Sou filha de policial, Nicolas... Tenho meus contatos e velhos amigos em quem sei que posso confiar... Aliás... — Levantou o dedo em riste. — Só estou ajudando porque quero que você se concentre no nosso problema... — Forçou o braço para baixo e eu a soltei. — Assim posso voltar para minha vida de uma vez. Deu alguns passos para longe, de costas para mim, e eu fiquei ali parado, sem saber como reagir, até que tive um rompante de imprudência e a puxei pelo braço novamente, forte, chocando seu corpo contra o meu. Abracei-a apertado e nem sabia o porquê, só que a queria perto. Verônica demorou alguns segundos para retribuir o carinho, as mãos se apertando lentamente contra minhas costas, até acariciar-me de verdade, por cima da camisa. Nenhum de nós disse nada. Não havia uma maneira coerente de explicar aquela necessidade de ter o outro, já que nós dois sabíamos que não passava de colaboração momentânea. Verônica Eram perto de duas da tarde, quando Nicolas saiu com Guille e eu fiquei sozinha na casa. Sentei-me no banco do jardim e dei uma mordida na maçã, andava pensando demais em coisas do passado. Depois da conversa com Nicolas, por mais que eu negasse para ele, a verdade é que eu não sabia mais o que queria da minha vida. Na época do acidente com meus pais, tudo que soube era que o carro que os havia atropelado pertencia ao filho de um figurão do ramo frigorífico, mas nunca conseguimos provar nem mesmo quem estava ao volante. Misteriosamente, todas as imagens das câmeras de segurança haviam sumido. Depois que entrei para a polícia, tentei reabrir o caso e investigar mais a fundo, tinha encontrado algumas pistas novas, mas nunca consegui. Tudo que ouvia era: Não leve para o lado pessoal, Verônica, foi apenas um acidente. Um acidente... Um acidente com meu pai, um acidente com Karina, um acidente comigo, que só não foi fatal porque Nicolas apareceu. Respirei fundo, sentia meu coração apertado sempre que pensava nele. Eu não era do tipo mulher de bandido. Não tinha aquele fetiche que as meninas geralmente têm de se apaixonar pelo bad boy da escola; para ser bem sincera, eu nem era do tipo que se apaixonava, mas com Nicolas algo havia fugido do controle. Não, você não está apaixonada, Verônica! Está envolvida, fragilizada, amedrontada... É isso, garota, você não é de ferro! É melhor admitir logo de uma vez... Joguei a cabeça para trás, sentindo o sol fraco em meu rosto, o perfume das dálias enchendo minhas narinas. Não era verdade, mesmo que eu quisesse que fosse. Eu podia estar vulnerável, mas era bem mais que isso. Era falta, necessidade, vontade, cuidado, preocupação... O cerco estava se fechando e eu tinha medo de que um de nós acabasse ferido. Já tinha perdido meus pais e Karina, não queria perder mais ninguém. Peguei minha carteira, enfiei no bolso do moletom e calcei os tênis. Precisava andar um pouco, organizar as ideias, agora que meu tornozelo começava a permitir. Peguei a pistola e enfiei na cintura da calça, por dentro do moletom. Sentia-me mais segura armada, ainda que não pretendesse atirar. Tinha acabado de descer a rua, quando as palavras de Fábio estalaram em minha cabeça. Se quiser... Fale com a Vivi... Você sabe o número de cor, não é? Engoli em seco. Fábio era o cara correto, policial exemplar, sem uma mácula sequer em todo o extenso currículo. Se tinha falado de uma linha secreta, era porque também estava desconfiando do sistema. A casa de Nicolas ficava perto da Plaza de Armas, então segui caminhando pela marquise de um prédio antigo. Precisava encontrar uma lan house para não levantar suspeitas. Nico tinha me dito para não usar o celular que ele deixara comigo, então um telefone público parecia o mais correto. Entrei na primeira que encontrei. Era dessas lojinhas em que os turistas pagam para poder carregar fotos e fazer ligações internacionais, com computadores antigos e lentos, mas pelo menos lá eu tinha certeza de que ninguém me conhecia ou iria suspeitar de mim. Sentei-me a um dos computadores e me conectei em um aplicativo de VoIP. Liguei no celular pessoal de Fábio, mas ele não atendeu, então eu deixei uma mensagem. — Oi, chefe, como estão as coisas por aí? — tentei soar animada e despreocupada. — Só queria dizer que a praia está ótima e que volto logo. Como a Vivi está? Diga que deixei um olá! Era minha maneira de avisar que tinha deixado recado na linha secreta, sem levantar suspeitas. Digitei o número da Vivi e esperei que caísse na caixa postal. — Como você já imagina, estou no Peru, em Cusco, mais precisamente. Não posso contar nada, mas, caso eu não volte, quero que investigue dois nomes... Isao Nakai e Seiji Matsuya. Desliguei em seguida, o coração acelerado, como se confessar meu medo o fizesse crescer. Tinha me levantado para pagar pelo tempo no computador, quando um táxi parou e a funcionária de Nicolas desceu de dentro dele. Ela olhou para os lados e depois atravessou a rua, em minha direção, caminhando apressada, direto para um beco de comércio informal. Deixa de ser paranoica, Verônica... — Revirei os olhos. Se ele, que é o maior interessado, não está preocupado... — Respirei fundo, não conseguia ignorar. Ok, só para desencargo de consciência... Esperei até que ela passasse por mim, para depois sair da loja, e então escondi-me atrás da pilastra, queria ver para onde ia. A garota trocou algumas palavras com um homem estranho, muito bem-vestido para trabalhar no beco. Estava sempre olhando para os lados, o que indicava medo, mas não parecia ser uma situação de risco. Em minha experiência, se alguém está com medo e não está em perigo, é porque fez merda das grandes! Assim que ela saiu, eu a acompanhei com os olhos, até a praça. Aproximando-me cuidadosamente. A garota entrou em um dos táxis e eu entrei em outro. — Vê aquele carro? — perguntei apontando em frente. — Siga sem que eles percebam! O jovem atrás do volante aquiesceu e seguiu, sempre mantendo um carro de distância. Saímos do Centro e começamos a subir uma rua íngreme, demoramos cerca de quinze minutos para chegar em frente a uma grande construção. A placa dizia Coricancha. Paguei a corrida e desci, seguindo a garota pelo meio da multidão. Ela não entrou pelo portão principal, então, quando se distanciou dos turistas, eu precisei ser mais cuidadosa. A garota desceu pelo barranco, contornando a construção principal em direção aos fundos do terreno. Depois passou por um tapume. Eu me aproximei da porta de madeira com cuidado, não queria ser pega em flagrante, mas, quando abri, não vi ninguém. Passei para dentro, no meio de uma área em reforma. Havia muitos espaços fechados por aquelas telas de segurança que se usa em obra de apartamentos. E eu comecei a me sentir enrolada em uma teia de aranha gigante. Procurei por Teresa pelos cômodos vazios, beirando a parede, e, quanto mais eu me embrenhava no prédio antigo, mais agradecia por ter levado a pistola. Estava com aquela sensação ruim que a gente fica quando pressente o perigo. Calma, Verônica... Está escuro, você não conhece o lugar e vamos combinar que a tensão já vem de tempos... É só isso! — Forcei-me a pensar. Continuei o caminho. Até que ouvi algumas vozes ao longe. Concentrei-me, já tinha ouvido aquele timbre. Mais alguns passos. — Eu disse que não! — uma voz conhecida gritou. — As coisas não são assim... Aqui quem manda sou eu! Entendeu? Parei assim que vi o homem. Era o mesmo da gravação, o tal Matsuya. Ele estava de costas para mim, e tinha um jovem latino a sua frente. Ajoelhado e com as mãos amarradas. Estava nervoso, a voz embargada de choro, mas seu lamento não parecia comover o Yakuza. — A fazenda estava vazia, senhor... Nós olhamos por tudo, todos os celeiros e armazéns, senhor... O condor deve ter imaginado o que faríamos, senhor... Senti um arrepio frio subir pelas minhas costas. A fazenda, a fazenda de Guadalupe! O desgraçado tinha ido atrás da família de Nicolas! O homem de terno sacou algo de dentro do bolso e eu só percebi que era uma navalha quando a lâmina brilhou com o único raio de sol que entrava pela fresta do teto. Segurou o rapaz ajoelhado pelo pescoço e passou a faca, fazendo-o se debater no próprio sangue. Tirei a pistola e a engatilhei, tinha o desgraçado em minha mira e uma vontade imensa de estourar os miolos dele, mas, quando fui apertar o gatilho, Guille foi jogado no chão por dois homens e eu recuei. Coração acelerado, o medo tomando conta de mim, encarando o primo de Nicolas ali, imóvel. Nem sabia se vivo ou morto. — Onde está o Condor? — o Yakusa perguntou. — Se ainda estiver vivo... — Um garoto baixinho riu. — Virá assim que assistir ao vídeo, chefe! Perdi a reação por alguns segundos. Respiração acelerada, como se me faltasse o ar. Eles começaram a chutar e socar Guille, enquanto gravavam com o celular, e eu fiquei tão desesperada para sair de lá e pedir socorro que tropecei em um balde, fazendo barulho. — Ali! — alguém gritou. — Pegue a porra da garota! Corri por entre os cômodos e passagens, rasgando o tecido fino de proteção. Queria sair daquele lugar o mais rápido que pudesse, sabia que, se conseguisse voltar para o prédio principal, estaria salva pelo movimento de turistas. Fui ficando nervosa, até que não reparei no chão e caí um andar, para minha sorte, em cima de um monte de areia. Sacudi a roupa e tentei encontrar a arma, mas, quando vi o vulto dos homens que me seguiam, desisti e corri pela câmara subterrânea. O cheiro de mofo estava impregnado no lugar, úmido e frio. Meu ombro doía pelo tombo e ainda havia areia em meus olhos, então eu tentava limpá-los e correr ao mesmo tempo, amaldiçoando a porra da minha curiosidade, até que o primeiro tiro ecoou e eu me abaixei, sem deixar de correr. Outro tiro, que acertou a madeira entalhada da porta a minha frente, e mais um. Eu tinha certeza de que ia morrer ali, naquela maldita caverna inca, e nem encontrada seria, quando entrei por uma porta e senti um par de braços fortes me puxar para o canto. Ia me debater e socar, quando a boca se aproximou da minha orelha e eu reconheci o perfume. — Shhhhhhhhh... — pediu. Obedeci, meu corpo colado ao seu, enquanto ele engatilhava e apontava a pistola com silenciador. O primeiro homem passou e ele o acertou em cheio na cabeça, espirrando um jato de sangue na parede de pedras. O outro não teve tempo de reação. Nicolas acertou no meio do peito, fazendo-o cair para trás. Eu sentia meu corpo todo tremer. — Nico... — Segurei seu rosto entre minhas mãos. Estava tão aliviada que nem sabia como reagir. — Você está vivo! — Você está comigo agora, corazón... — disse perto do meu rosto. — Não vou deixá-la. Abracei-o apertado, como se precisasse dele para respirar. Havia um mar de confusão e sentimentos desconexos dentro de mim, mas uma certeza era absoluta, eu queria estar com ele, e não conseguia mais fingir o contrário. Nicolas Afundei o nariz em seus cabelos, sentindo o perfume suave que ela tinha. O corpo pequeno colado ao meu, amedrontada e assustada. Apertei-a mais forte, queria que se sentisse segura. Estava tão grato por conhecer aquele lugar que nem conseguia explicar. — Escute bem o que eu vou falar... — Segurei-a pelos ombros, para que escutasse com atenção. — Isso virou uma guerra, corazón... Não sei como vai terminar, nem posso garantir que vou conseguir protegê-la... — Respirei fundo. — Se quiser ir agora, haverá um jato executivo na pista, esperando você, mas se ficar... Eu preciso ter certeza de que posso contar com você... — Estou com você, Nico! Até o fim... Espalmei as mãos na parede atrás dela, prensando seu corpo contra o meu. Meus lábios tocando os seus sem realmente beijar. Ela também não disse nada, as mãos descendo pelo meu peito, até afundar-se por dentro da jaqueta, abraçando-me tão apertado que me fez suspirar. — Quando tudo isso acabar... — ela disse de repente, mas eu não permiti que continuasse. Afundei minha boca na sua, a língua abrindo espaço entre seus lábios, tomando o que eu queria para mim. Sem promessas, nem depois. Quando terminei de beijá-la, eu a levei comigo pelo caminho novamente. Aquela era uma discussão que eu não pretendia ter. — Venha, vamos sair daqui... — Entrelacei nossos dedos, levando- a comigo até a escadaria que dava na rua de baixo, em uma igrejinha antiga bem longe do movimento. Sabia que Matsuya estava nos seguindo desde a noite da festa e não podia arriscar, não com Guille preso. Chegamos à porta da saída e eu empurrei com cuidado. Esperava encontrar a sacristia vazia como sempre, já que a igreja estava abandonada havia muitos anos, mas, assim que passei pela porta, travei no chão. O lugar estava cercado pelos homens do Matsuya, e Teresa, entre eles. Havia um homem ajoelhado no chão, rosto coberto por um saco preto, mãos amarradas para trás. Eu sabia que não era Guillermo pelas roupas, mas, quando o saco foi retirado do seu rosto, cerrei as mãos em punho. Nacho estava lá, o rosto machucado de apanhar, rendido aos pés de Isao Nakai. Nakai riu, assim que percebeu minha surpresa. — Não é que eu consegui mesmo fazê-lo suspeitar do seu cão de guarda? — Alisou os cabelos para trás. — Curioso, não acha? Você suspeitou dele, mas ele não o traiu nem por um segundo... — Revirou os olhos. — Nunca vou entender essa lealdade latina... — Deu uma joelhada no queixo de Nacho, fazendo-o cair contorcendo-se de dor. — Sorte sua que escolheu o lado certo, querida... — Estendeu a mão de Teresa e beijou. Cerrei a mão em punho, sentindo o ódio se espalhar por mim, enquanto Nakai caminhava pelo espaço tranquilamente. — Tenho que dizer que seu gosto para mulheres é tão bom quanto o do seu pai, garoto... Deu alguns passos e levou a mão para tocar Verônica, mas eu não permiti, colocando-me na frente por instinto. — Interessante... — Riu mais, mostrando o dente de ouro na boca. — Quase me dá vontade de entender o que ela tem de especial... Sinalizou para um dos homens e no momento seguinte senti a coronhada fazendo-me cair de joelhos, o sangue escorrendo em minha nuca, deixando-me zonzo. — Desarme os dois... — ordenou. — Depois amarre-os. Não quero surpresas. — Seu maldito desgraçado! — Verônica xingou. — Vou acabar com você! — É mesmo? — Voltou o olhar para ela, sorrateiro. — Como vai fazer isso? — perguntou estreitando os olhos, andando ao redor dela como uma serpente. — Ouvi dizer que você é brava, detetive... Luta bem... Atira ainda melhor... Eu conheci uma outra garota que pensava o mesmo... Bonitinha ela, sabe? Deixe-me ver se lembro o nome... — Batia o indicador no lábio inferior, fazendo graça. — Como era mesmo, querida? — Voltou- se para Teresa. — Karina... — A diaba sorriu. — Isso mesmo... Karina... Bonita e valente... Uma pena ter se acidentado... Fixei os olhos nela, queria que me desse a chance de dizer que Nakai queria desestabilizá-la, que era assim que ele jogava, mas não tive tempo. — Seu demônio filho da puta! — Verônica gritou. Atirou-se em direção a ele escapando do capanga, mas, antes que o atingisse, ele engatilhou a pistola entre os olhos dela, a mão livre apertando seu pescoço, fazendo-a tossir. — Quietinha, boneca... Ou você vai perder a parte divertida... — Sabe que me matar não vai dar o controle do cartel a você, Nakai... — provoquei-o, queria tirar sua atenção de Verônica. — Quando o Manolo souber... Você e o Matsuya estão fora, completamente! O japonês riu alto. — Essa é a questão, garoto... O Manolo só vai saber o que eu quiser que ele saiba, entende? Você se acha muito esperto, Nicolas, mas não passa de um empacotadorzinho como seu pai... Baixei os olhos, controlando a respiração. Não queria dar a ele o gosto de me ver desesperado, porque era assim que ele ganhava. Tinha sido desse jeito quando matou meu pai, usando a garota grávida para tirá-lo do juízo. — O que foi... Hã? Vai me dizer que esqueceu como as coisas funcionam? — Segurou-me pelos cabelos, forçando-me a encará-lo. — Eu sou a lei, camarada... Sou a justiça, a verdade... Entendeu? — perguntou soltando-me. — Eu venço, Nicolas... Sempre... — Fechou a mão e enfiou um soco em meu nariz, fazendo-me apertar os olhos de dor e sentir o gosto de sangue tomar minha boca. Engoli em seco o ódio e a vontade de revidar; mesmo que o pegasse, acabaria morto. — Vou explicar o que vai acontecer aqui... Você, Nicolas... resolveu trair o cartel... Matou o seu primo e os homens de confiança dele... Sabe como são as coisas quando uma mulher entra no meio delas, não é mesmo? Ainda mais uma policial, garoto... — Negou com a cabeça fazendo graça. — Seu pai não lhe ensinou nada? Cerrei o maxilar com raiva. — O cão de guarda aqui tentou avisar ao Manolo, mas você também o pegou... Onde já se viu, caçando sua própria cria pelas ruas de Cusco! — Riu mais. — Ah, e não se preocupe... Graças a Teresa, tenho como provar tudo que estou dizendo... Claro que será necessária uma adaptação das falas, mas, com cinco dias de áudio e um bom produtor, consigo arranjar as coisas... — Sua puta desgraçada... Você colocou uma escuta no meu escritório! — xinguei. — Foi assim que o Nakai soube do carregamento! — constatei. — E da Verônica... — E foi assim que consegui a senha do seu elevador... E mexi nos livros-caixas, é claro! — Aproximou-se de mim e estreitou os olhos. — Eu queria você, Nico... Não só o seu pau, porra! Então era esse o plano... Se o cartel desconfiasse da minha lealdade e, sem Guille e Nacho para desmentir, Nakai teria o apoio de todos... — Não se preocupe, não pretendo matá-lo... — Balançou as mãos no ar fazendo graça. — Vamos deixar que os homens do Manolo resolvam isso... Eu só preciso ajeitar tudo, bem amarrado e sem pontas, Nicolas, e amanhã... serei o dono do seu império! Enquanto ele ia falando, Nacho e eu nos olhamos. Trabalhávamos juntos havia tanto tempo que não era difícil compreender o que o outro pensava. Nacho moveu levemente a sobrancelha, em direção a uma velha pia batismal encostada no canto perto de onde ele estava, e eu entendi no mesmo instante o que pretendia. Quando Nakai se aproximou novamente, Nacho usou a força que tinha para chutar a pia em cima do japonês, derrubando-o no chão, longe da arma. Eu tentei chutar a pistola para Verônica, mas o desgraçado do japonês tinha outra arma. Mirou em Nacho e acertou a cabeça, fazendo-o cair imóvel. Virou-se de lado, rápido, apontando para Verônica e tudo que eu consegui fazer foi me lançar na frente. — Não! — gritei, sentindo o tranco do tiro em meu peito. Verônica Comecei a voltar a mim quando senti a cabeça latejar. Nico! A última lembrança que tinha era dele se atirando sobre mim e absorvendo o tiro. Senti o coração se apertar, a garganta se fechar. Contraí o rosto de dor, todo o meu rosto latejava e eu não conseguia montar a cena completa em minha cabeça. Não, Nico, não! Você não pode ter morrido! Tentei abrir os olhos, mas o lado esquerdo do meu rosto doía tanto e estava tão inchado que só consegui abrir um dos olhos. Estava em uma posição desconfortável, caída de lado, com o rosto no chão frio e úmido de metal. Mãos e tornozelos amarrados. Pelo pouco de visão que tinha, dois homens conversavam baixo. Eu não os ouvia com clareza, mas tinha certeza de que não era em espanhol. A sombra mais alta bateu no que parecia ser uma mesa e o som dos objetos batendo contra a superfície me fez ter um espasmo de susto que, por sorte, nenhum dos dois percebeu. Eu não podia ver quem era, mas a silhueta era alta, esguia e de movimentos elegantes. Alisou os cabelos para trás, descendo as mãos pelo rosto, como se desaprovasse algo. Gesticulou mais um pouco e o homem mais baixo fez uma reverência curvando o corpo, como se precisasse se desculpar. Assim que os dois saíram, forcei meu olho machucado a se abrir ao menos um pouco. Queria entender onde estava, sentia o chão se mover desconfortavelmente. Um cheiro estranho de metal e amônia. O cômodo era de tamanho mediano e estava praticamente vazio, a não ser pela mesa e algumas caixas empilhadas. Estava escuro, muito escuro, sem nenhuma entrada de luz. Que merda, Verônica, você foi pega e não tem nem para quem pedir socorro! Tentei me levantar, forçando o corpo de lado, mas estava tão dolorida que não consegui. Sentia frio, o corpo tremendo e gosto de sangue velho na boca. Minha roupa estava molhada e, pelo cheiro de amônia, tinha certeza de que era urina. Eu não fazia ideia de quanto tempo havia passado, nem se era dia ou noite. Tudo que sabia era que tinha apanhado, bastante, a julgar pela dor no osso da face e nas costelas. De repente, a porta se abriu novamente, atrás de mim e tão rápido que não pude entender onde estava. Mãos fortes me sustentaram para cima, colocando-me em pé. — Vou soltá-la, mas nem pense em fazer alguma gracinha, vagabunda... — falou em um espanhol arrastado, quase incompreensível. O sotaque oriental claro em sua dicção. Esfreguei meus pulsos doloridos, assim que o fio que me prendia foi cortado. O homem saiu de trás de mim e parou perto da mesa. Era oriental e parecia jovem. — Sua sorte é que o saiko não gosta de ver as putas sofrendo... — Curvou a boca em um sorriso sarcástico. — Se fosse pelo chefe... — Parou a frase no meio. — Aqui... Tire as roupas sujas e vista essas. Pode lavar o rosto na bacia. Obedeci, livrando-me da roupa molhada. Sentia tanto frio que teria concordado com qualquer coisa que me deixasse um pouco mais quente. Coloquei uma calça de elástico e um blusão de moletom, depois enfiei a mão em concha na bacia, sentindo o cheiro antes de colocar na boca. Bebi como se estivesse no deserto havia vários dias e, quando terminei, lavei o sangue seco do rosto, sentindo o corte profundo no supercílio e na maçã do rosto. Aproveitei que estava com a cabeça baixa e analisei os objetos sobre a mesa, para saber se algum deles poderia servir de arma caso eu precisasse. Rolos de fita, caixas desmontadas, uma etiquetadora, além de uma tesoura. Senti meus cabelos sendo puxados para trás e o cano frio da arma em minha têmpora. — Nem pensar, boneca! — Puxou com mais força, fazendo-me reprimir o gemido de dor, e guardou o objeto no bolso. — O chefe já avisou que você é bem espertinha... — Segurou meu pulso e virou minha mão para trás, a boca em meu pescoço, fazendo meu estômago se revirar. — Eu gosto das espertinhas, sabia? Vou adorar foder você depois que o chefe cansar... Soltou com força e eu me desequilibrei, caindo sentada, apertando os olhos para aplacar a dor nas costelas. Assim que os abri, vi a barra de ferro caída no chão, perto da parede. Desviei o mais rápido que pude, para que ele não percebesse o que eu tinha descoberto. — Agora comporte-se como uma boa putinha, que eu lhe trago algo para comer, ok? Não respondi, apenas permiti que me sentasse e amarrasse novamente meus tornozelos. Fiquei parada, cabeça baixa, sabia que irritá-lo não ia tornar minha vida mais fácil e eu precisava pensar em um jeito de sair, já que... Engoli em seco, sentindo o coração doer. Você não pode, Nico! Não pode ter morrido assim... Não é justo! Respirei fundo. Justiça, Verônica, quando foi que a justiça fez algo por você? Quando a porta se fechou, esperei alguns minutos para ter certeza de que ele estava longe e depois fui empurrando meu corpo de lado, escorregando pelo piso de metal, até que cheguei à barra. Segurei com força e fiz o caminho de volta, rezando para ser rápida o suficiente para estar de volta ao mesmo lugar, antes que a porta se abrisse. Deixei a barra atrás de mim, escondida. Não seria fácil bater em alguém com as mãos amarradas, mas, se aquele demônio japonês dos infernos tentasse tocar em mim, íamos morrer os dois. Que droga, Nico, você tinha que pular na frente? Achou o quê? Que era o Superman? O pensamento se formou no mesmo instante. Não, Verônica, ele sabia bem o que ia acontecer, se jogou para te salvar... — Respirei fundo. — Me salvar? Porra, Nico... Vai mesmo me deixar uma dívida que eu nem posso pagar? Eu não conseguia chorar. Nunca fui boa em extravasar o que sentia, tinha aprendido a engolir o choro e levantar a cabeça na segunda vez que precisei de ajuda e não tive ninguém com quem contar, mas não sentia menos só porque guardava tudo dentro de mim. Para ser sincera, acho que sofria mais. Cenas que eu queria não ter vivido iam passando em minha cabeça. Karina, Nico, Guille, Nacho. Aquele Yakuza desgraçado tinha matado todos em volta de mim e tudo que eu podia fazer era esperar até que minha hora chegasse também. Será que Fábio ouviu meu recado? Era mesmo confiável ou eu tinha dado um belo tiro no pé contando a ele onde estava? Tudo que eu conseguia pensar era que, no próximo noticiário, seria minha foto do passaporte, comentando sobre um novo acidente em Aguas Calientes. Nicolas O bipe sequencial foi a primeira coisa que ouvi. Minha consciência foi voltando devagar, enquanto eu tentava respirar, sentindo o peito doer. Soube que meu braço estava preso, assim que tentei movê-lo. — Eu ficaria quieto, se fosse você... Abri os olhos devagar, vendo-os ganhar foco. A luz clara do sol não me deixava saber de quem era a silhueta de costas, em frente à janela. — A bala passou bem perto dessa vez, Nicolas... O homem virou-se de frente para mim. Terno preto bem-cortado, traços orientais suaves e olhos esverdeados. Estreitei os meus, não podia crer que era verdade, mas então ele esticou os braços, esfregando uma mão na outra e deixando a pulseira de prata que eu conhecia bem aparecer. — Shin Nakai... — repeti mais para mim mesmo do que para ele. — Não posso afirmar que seja um prazer... — Ajeitou a franja lisa e comprida com as mãos. — Preferia estar em minha casa, cuidando da minha vida, como você gentilmente me pediu... — Exibiu uma expressão sarcástica. — No entanto, aqui estou... — Abriu as mãos mostrando as palmas. Shin e eu não nos víamos desde a infância, quando toda a merda entre nossa família se consumou. Esbarramo-nos duas vezes e depois disso, apenas uma ou outra ligação, sempre para falar de Yuki, mas eu nunca o confundiria, os olhos de Malena estavam lá, eternizados em seu rosto. — Onde estou? — perguntei. Não conseguia ver a rua lá fora, mas sabia que era um hospital. — Seguro... Por enquanto... Dava passos em volta de mim, lentos e controlados. — O que você pretende? — perguntei. Queria saber de Verônica e Guille, se ainda estavam vivos e o que havia acontecido com o corpo de Nacho, mas não ia demonstrar interesse e aumentar sua munição. Shin coçou a barba, mordendo o lábio inferior e encarando o teto de gesso. Tinha alguns anos a menos que eu, mas era tão ou mais perigoso que o pai. — Ainda não sei, peruano... Estou ponderando e analisando minhas possibilidades... Não se preocupe... Vou garantir sua vida, ao menos até ter certeza de qual o melhor caminho para a organização... Cerrei as mãos em punho, apertando com força. Maldito Yakuza arrogante. — Se eu fosse você, guardaria um pouco dessa raiva para usar na hora certa... Sabe que o odeio tanto quanto você a mim... — Esboçou um sorriso, que logo sumiu. — Só sou mais controlado. O mestiço continuou caminhando ao meu redor, como um felino à espreita. — Vou lhe dar uma chance, peruano... Se me convencer de que pode ser útil, eu lhe consigo uma fuga e permito que leve sua garota... — Onde ela está? — Tentei me mover, mas acabei caindo de volta na cama. — Segura também... Não tão confortável, mas... — Balançou a cabeça e estreitou os olhos. — Viva... — Seu desgraçado! Se a machucar... — Contraí o maxilar. — Anda, Huamán... Diz o que eu quero ouvir... — ordenou. — Não quero uma porra de cartel para cuidar e menos ainda o desgraçado do Matsuya se metendo nos meus negócios... — Torceu a boca em uma careta de desgosto. Baixei o olhar, encarando meu peito nu e o quadrado branco sobre a asa do condor. Eu sabia que tinha sido atingido, lembrava-me da dor e, a julgar pelo local do curativo, tinha passado realmente perto. Pensei por alguns segundos. Estava machucado, sem saber quem estava vivo ou morto e preso numa cama, ao lado de uma porra de um Yakuza, não tinha muitas chances. Se o demônio era meu único parceiro, tinha que dançar conforme a música. Respirei fundo, antes de começar. — Seu pai e o Matsuya armaram para me fazer parecer traidor diante do cartel... — comecei. — Não tenho como provar o contrário, ainda mais com Guille e Nacho... — Parei a frase no meio, não conseguia continuar. — Seu primo está vivo... Só não sei onde, ainda..., mas estou resolvendo esse detalhe... — E Nacho? — O cão de guarda tem uma cabeça bem dura... — brincou, mas não era uma piada, então nenhum de nós dois riu. — Está vivo por enquanto..., mas ainda é incerto... Meu pai andou espalhando por aí que foi você quem atirou... — Encarou-me com a sobrancelha erguida. — Mas você obviamente sabe a verdade... — Derrubar os peões e deixar o rei desprotegido... Uma velha regra... Pena você não a conhecer... — debochou, mas eu ignorei. — Preciso que me ajude a provar ao Manolo que eu não traí o cartel... Sem o apoio dele, nenhum de nós vai conseguir impedir a ascensão do seu pai. — Manolo Gomez... — repetiu o nome, batendo o indicador sobre os lábios, como o pai dele fazia. Manolo era meu maior fornecedor. O homem que transformava a coca em produto de exportação, para que eu pudesse distribuir. Tínhamos um bom acordo de trabalho e eu sabia que ele me preferia no negócio a um filho da puta japonês, mas o Nakai era bom em maquiar as coisas. — Preciso de um nome... — disse de repente. — Um em quem o boliviano confie... Não sei se seu primo estará em condições de negociar... Respirei fundo. Queria crer que Guille estava vivo, mas Shin tinha razão; se não estivesse, eu tinha que pensar em outra pessoa. Joguei a cabeça para trás, não queria confiar, mas era a única maneira. — Você! — disse de repente. — Eu? Como assim, eu? — Ergueu a sobrancelha sem entender. — Sei que tenho minha parcela de sangue latino, mas não acho que consiga me passar por peruano, Huamán! Meu espanhol não é tão bom assim... — concluiu sarcástico. — Há um mapa... Em minha fazenda... — expliquei. — Está no caderno do meu avô e mostra a localização exata do meu dinheiro... — Encarei-o por um segundo. — Estou confiando em você... O mestiço estreitou os olhos, fixando-os em mim por alguns segundos antes de responder. — Se espera que eu traia meu pai e minha gente, companheiro, é o mínimo que pode fazer... Por um segundo, tudo que havia acontecido mais de vinte anos atrás voltou e eu sabia que não era só para mim. Eu ainda podia sentir o cheiro pungente daquele beco, o som das sirenes de polícia. Tinha gravado tudo na memória como um filme de terror, um que eu não podia esquecer. Naquela maldita noite fria, eu havia perdido meu pai, e ele, a mãe. Estávamos em lados opostos de uma guerra em que desejávamos o mesmo fim e, para isso, teríamos que deixar as diferenças de lado. Shin tinha razão, era bem mais controlado do que eu. — Dê-me um papel... Vou anotar o endereço e o lugar em que você deve procurar. Aquiesceu, tirando a chave das algemas do bolso e abrindo-as. Estava anotando o local, quando ele levou a mão ao bolso do paletó e tirou o celular. Atendeu em japonês, mas, pelo tom, eu pude ver que algo não estava certo. — O que houve? — perguntei preocupado. — Termine de anotar, peruano... Não somos parceiros, lembra? Entreguei o papel a ele, que o enfiou no bolso e prendeu minha algema novamente. — Se eu voltar, é porque sua estratégia deu certo! — avisou já quase na porta. — Nakai! — chamei. — Diga a ele que é filho da Malena... Manolo gostava muito da sua mãe... Verônica Não sei por quanto tempo dormi, mas acordei com o feixe de luz da porta invadindo o escuro do cômodo em que eu estava. Demorei alguns segundos para focar o rosto que havia entrado, mas aproveitei a distância para segurar a barra de ferro, teria só uma oportunidade, tinha que conseguir. Conforme a forma esguia ia se aproximando, eu fui me preparando. Tantos anos de treinamento iam ter que servir de alguma coisa. Era o mesmo homem que havia trazido as roupas e carregava um saco de fast food na mão. — Aqui... — Abriu e jogou o saco em minha frente. — Pode comer como a cadela que você é... — Riu. Respirei fundo, segurando a ansiedade e a raiva, usando minha melhor cara de mocinha desprotegida. Ajoelhei no chão e virei as costas. Cabeça baixa, bem submissa, como sabia que ele queria que eu fosse. Conhecia aquele tipo muito bem. — Por favor... Você poderia... — Levantei um pouco as mãos, implorando para que ele me soltasse. Funcionou e, no momento em que senti minhas mãos livres, agarrei a barra e o prendi, forçando o metal contra seu pescoço, enforcando- o. Eu era pequena, mas tinha aprendido a usar meu corpo em meu favor, então ele não conseguiu se soltar, nem gritar, até que desmaiou. Arranquei a tesoura do seu bolso e cortei a fita dos meus tornozelos, liberando minhas pernas. Peguei a automática, confirmando que o pente estava cheio, e caminhei para fora, devagar. Empurrei a porta com cuidado, estreitando os olhos por causa da claridade. Ainda não tinha entendido onde estava, quando um homem entrou em meu campo de visão. Ele estalou os olhos e apontou, mas não teve tempo de gritar. Caiu alguns metros a minha frente, o buraco em sua testa vertendo sangue. Parecia algum tipo de depósito, com passagens apertadas entre contêineres, mas só percebi de fato onde estava quando o apito de um navio soou. Um porto! Estou na porra de um porto! Cusco não tinha saída para o mar e como eu não sabia por quanto tempo tinha apagado, podia ser qualquer lugar, em qualquer parte do mundo. — Ali! — alguém gritou em espanhol. Mirei na cabeça que vi, mas não tinha certeza de ter acertado o tiro, então corri. Não sabia para onde ir, porque todos os contêineres pareciam iguais e eu me sentia andando em círculos, mas me recusava a desistir. Tinha mais medo de continuar viva ali do que de morrer tentando fugir. Alguém gritou algo em japonês e eu ouvi os passos se aproximando. Virei a esquina, escondendo-me atrás de outro contêiner, e atirei assim que o homem apareceu, derrubando-o no chão. Desviei-me da mira do companheiro dele e atirei mais algumas vezes, até que vi o gradil. Um segundo para pensar, Verônica... Se fugir, você pode morrer, se ficar, vai morrer com certeza. Subi no gradil e pulei. Sempre fui uma boa nadadora, mas pular de uma altura como aquela era bem diferente de pular em uma piscina aquecida na academia. Senti o corpo todo doer, assim que afundei nas águas geladas do mar. Nadei para longe, ainda submersa. Sabia que, se o navio estivesse em movimento, poderia acabar puxada pela força do motor. Levantei-me buscando um pouco de ar e logo voltei a mergulhar para nadar, sabia que eles iriam atirar, tinha que me manter longe das vistas. Quando meu fôlego acabou, voltei à superfície tentando pensar em uma estratégia, não poderia nadar para sempre nem tinha como pedir socorro. Estava tremendo, meu corpo todo dolorido, os movimentos ficando mais lentos. Sabia que estava entrando em hipotermia e que não tinha o que fazer. Concentrei todas as forças que ainda tinha para pelo menos conseguir vencer o comprimento do navio e ver se do outro lado havia terra. Estava quase chegando à proa, quando perdi os sentidos por um segundo. Sabia que estava no limite, mas pelo menos ia desmaiar antes de morrer. *** Descobri que não estava morta, quando senti meus pulmões doerem. Eu queria respirar, sentia a pressão no peito feita por alguém que tentava me salvar, mas não conseguia voltar. — Vamos! — alguém falou em espanhol, pouco antes de soprar ar direto em minha boca. Tossi, sentindo os pulmões queimarem e aquela sensação de tremor intenso tomar conta de mim. Continuei tossindo e vomitando água salgada. Minha garganta parecia feita de fogo e a barriga doía pelo reflexo involuntário. Alguém me virou de lado, para que eu não me engasgasse, e a única parte quente do meu corpo era o ponto nas costas em que sua mão tocava. Quando finalmente parei de vomitar, tentei entender onde estava. Novamente, havia sido presa no que agora eu sabia que era um contêiner. — Consegue me ouvir? — o homem perguntou. Era jovem, com leves traços orientais, mas tinha os olhos claros, em um tom que eu não conseguia distinguir na pouca luz do lugar. Só sabia que eram claros porque as íris pareciam translúcidas quando ele se aproximava do feixe de luz do sol no teto. Aquiesci. Não tinha vontade de responder, nem sabia se ser salva tinha sido, de fato, uma sorte. — Então ouça com atenção... — Aproximou o rosto do meu. — Nicolas está vivo... — disse bem baixinho, quase num sussurro. — Se quiser vê-lo de novo, precisa confiar em mim... — E por que eu deveria? Você é um deles! — praguejei desviando o rosto. As mãos do homem seguraram meu maxilar, forçando-me a encará-lo novamente. — Porque, se eu quisesse matá-la, não teria me jogado na porra do pacífico para salvá-la, senhorita. O tom era polido e coloquial, um espanhol quase sem sotaque oriental, forte e grave, como uma ordem. Afastou-se e alisou os cabelos para trás, respingando água em mim. O terno estava ensopado, e os pés, descalços. Deu alguns passos e pegou uma sacola sobre a mesa de metal, deixando no colchão ao meu lado. — Vista-se, ou vai acabar morrendo de hipotermia e eu terei estragado meu terno por nada... Quando terminar, vamos ter uma conversa... Virou-se de costas, dando-me privacidade. Eu estava tão cansada e machucada que mal consegui tirar as roupas molhadas e vestir as secas, quanto mais tentar escapar novamente. — Pronto — avisei. Ele tirou o blazer e colocou sobre a mesa. Soltou o que pareciam ser abotoaduras e um anel. Quando se virou de volta para mim, o rosto era duro, sem expressão nem qualquer sombra de sentimento. Eu obviamente não confiava nele, mas, se Nico estava vivo, então pelo menos eu tinha uma chance de ser salva. — Não quero o cartel... — começou. — E se meu pai o tomar, terei que assumir um problema que não desejo. Entende? — perguntou e eu aquiesci. — Vou explicar como as coisas irão funcionar e você vai fazer exatamente o que eu disser... Aquiesci novamente. — Meu pai acha que Nicolas morreu... Está tão tomado pelo desejo de vingar-se, que ficou descuidado... E vamos nos aproveitar disso para restaurar o poder dele... Eu conhecia um pouco de Yakuza e sabia que a maior marca da organização era a lealdade dos membros. Não conseguia entender a motivação dele para trair o próprio pai. — Vai mesmo trair sua organização? — questionei. — Jamais... — Focou os olhos nos meus. — Meu pai deixou de ser a organização assim que colocou seus próprios interesses acima do oyabun... Engoli em seco. O autocontrole dele me amedrontava. — Há quanto tempo estou aqui? — comecei, queria tentar pegá-lo no pulo, conhecia algumas técnicas boas. — Alguns dias... — Quem é você? — Sua chance de escapar com vida... — Onde Nico está? — Seguro... — E eu, onde estou? — Em um navio... — Ergueu a sobrancelha, como se deixasse claro que não era eu quem mandava ali. Deu mais alguns passos para perto, dobrando as mangas da camisa até os antebraços. — Imagino que saiba que terei que bater em você... — Estralou os dedos. Tinha tomado o controle novamente. — Dois homens mortos, um ferido e uma grande confusão... Concordei com a cabeça, mas nem tive tempo de pensar, o soco bateu forte contra meu nariz, fazendo o sangue escorrer pela minha boca. Apertei os olhos de dor, tentando recuperar os sentidos, mas ele tinha razão. Se não me desse um corretivo, levantaríamos suspeita e as chances, minhas e de Nico, acabariam. O Yakuza bateu mais algumas vezes em meu rosto, bem mais leve do que eu tinha certeza de que ele poderia, mas, ainda assim, doeu como a porra do inferno. Eu já estava zonza, quando ele pegou uma garrafinha de água e abriu, entregando a mim. Enchi a boca de água e depois cuspi, livrando-me do sangue. — Limpe com isso... — Jogou a blusa molhada em minhas mãos. Deu alguns passos, massageando os nós dos dedos. — Acredite, senhorita, isso não me dá nenhum prazer... — confessou. — Quando vou sair daqui? — perguntei, limpando o canto da boca. — Logo, se o peruano estiver certo e a porra do fornecedor dele acreditar no plano... Nicolas A noite caiu e o mestiço desgraçado não voltou. Talvez estivesse morto, Manolo não lidava muito bem com estrangeiros e ainda tinha a possibilidade de ter sido pego pelo porra do pai dele. A noite passou e eu não preguei os olhos. Estava preso, sem saber se ainda tinha aliados e totalmente à mercê de alguém que, ainda que não fosse meu inimigo, estava longe de ser amigo também. Quando o dia amanheceu, a porta se abriu e eu me virei ansioso, esperando por Shin, mas não foi o rosto dele que vi. O japonês entrou e encostou-se na parede atrás de mim, arma em punho, pronto para atirar. — Onde está o seu chefe? — perguntei em japonês. Tinha aprendido uma coisa ou outra, desde que a Yakuza se tornou uma pedra em meu sapato. — Resolvendo o seu problema... — disse com aquele ar de deboche que todos eles tinham. Estreitei os olhos, mas não tive tempo de revidar, uma garota latina entrou. Usava um conjunto hospitalar, mas a placa de identificação havia sido retirada da roupa. — Vim fazer o curativo, senhor... Falava de cabeça baixa, olhos assustados desviando dos meus o tempo todo. Eu tinha certeza de que ela sabia quem eu era, meu rosto estava estampado em várias revistas e jornais, além da internet. A moça baixou o lençol até minha cintura e soltou o laço da camisola transpassada que eu usava. Eu queria perguntar a ela onde estava, mas não pretendia colocá-la em um risco desnecessário, porque morta ela certamente não poderia me ajudar. O quadrado de gaze e esparadrapo foi retirado e vi os pontos pequenos, um pouco acima do meu mamilo esquerdo. Parecia bem fechado e sem indícios de infecção. — Então? — perguntei para puxar assunto, mas principalmente porque queria saber qual era minha condição, caso precisasse fugir e me esconder. — O senhor teve muita sorte, o tiro não atingiu nenhuma parte vital e a bala saiu... — explicou enquanto limpava o ferimento. Quando terminou, gesticulou para o homem atrás de mim. — Preciso que o solte... O outro curativo está nas costas... — avisou. O homem pensou por alguns segundos, mas então soltou uma das algemas e eu me virei de lado. Só percebi o quanto doía, quando me mexi. A garota deu a volta e retirou o curativo do ferimento de saída, começando a limpeza. Esperei até que finalizasse e então tentei a única chance que tinha. — Estou com sede... — avisei. — Oh, sim... Vou pegar água... Virou as costas e caminhou até a mesinha do outro lado do quarto. Voltou e se aproximou, para me servir na boca, mas eu coloquei minha mão sobre a sua, escrevendo com o polegar em sua pele suavemente: Donde estoy. Encarei-a enquanto bebia, esperando que me respondesse. Ela repetiu meu gesto, escrevendo em meu peito: Callao. Agradeci com um aceno de cabeça e deitei-me de volta, esperando que o homem prendesse a algema. Callao... — pensei assim que fiquei sozinho. Ao menos ainda estou no Peru. Esperei que o mestiço voltasse até depois da porcaria de sopa que me serviram. Depois que a noite caiu novamente, desisti. Ele não ia voltar e eu tinha de dar um jeito de sair daquela merda de lugar em que estava. Comecei a mover o punho devagar, vendo até onde a grade da cama aguentaria, caso eu desse um puxão. Depois de algum tempo, comecei a sentir que algum parafuso estava desencaixando. Continuei devagar, não queria fazer barulho, mas então a porta se abriu e o mestiço passou por ela. Sacou a pistola tão rápido que por um segundo pensei que fosse o fim. O tiro bateu no metal produzindo um tilintar alto e, de repente, meu braço se soltou. Shin girou a pistola no dedo e guardou no coldre, por dentro da jaqueta de couro. — Se queria coçar a porra do saco, peruano... Podia ter chamado o guarda e pedido que soltasse. Acendeu um cigarro e jogou o maço em cima da minha barriga. — Como foi com o Manolo? — perguntei preocupado. O Yakuza deu o primeiro trago, balançando como se ponderasse. — Mais ou menos... — Soltou a fumaça para cima. — Meu pai o matou... — O Manolo? Como assim, porra? — Sentei-me na cama tão rápido que só depois senti a dor do movimento. Shin deu mais um trago no cigarro, calmamente. — Parece que o seu amigo era mais fiel do que o velho Nakai esperava, então... os dois tiveram um pequeno impasse... — Desgraçado, filho da puta! — xinguei. — Agora a merda toda vai estourar... — Provavelmente... É por isso que estou aqui... Vou dizer o que vamos fazer e espero que você seja tão durão como dizem, porque tem que ser essa noite... — explicou, encarando-me por cima dos olhos. — Diga... — Tenho uma ideia de onde seu primo está, mas vou precisar de cobertura e não posso envolver meus homens... Se algo der errado, Huamán..., eu volto para Tóquio e nem quero saber... Entendeu? Minha motivação aqui é bem pequena... Digamos que só estou aqui para fazer a limpeza... Aquiesci. — Ótimo! — avisou pegando uma sacola no chão, perto da entrada. — Vista isso, eu o espero do lado de fora. — Jogou a sacola e eu a agarrei. Levantei-me e peguei a roupa. Jeans preto, camiseta e jaqueta da mesma cor. Botas de cano alto e uma máscara no estilo ninja, daquelas que deixam apenas os olhos de fora. Assim que saí, Shin estendeu uma pistola para mim. — Espero não me arrepender... — Sabe que não vai... Enfiei a arma na cintura e fechei a jaqueta, baixando também a máscara. O mestiço fez a mesma coisa e descemos pela escada de incêndio, do lado de fora do que, eu só descobri depois, era um convento de freiras. Pisamos na rua e caminhamos até o beco próximo, onde dois homens de confiança do Manolo esperavam encostados em uma van preta. Cumprimentei-os com um aceno de cabeça e tomamos nossos lugares. Eu atrás, com um dos homens, e Shin na direção, com o outro ao seu lado. Callao não era muito familiar para mim, tinha poucos negócios por lá e a maioria deles era chefiado por Guille, então só percebi que estávamos indo em direção ao porto quando comecei a ver as placas de sinalização. O mestiço parou no posto de identificação e não disse nada, apenas tirou a luva preta, exibindo a tatuagem de ideograma japonês no dorso da mão. Imediatamente, os portões se abriram e seguimos em frente. Estacionamos no meio dos armazéns, bem afastados de qualquer um que estivesse de passagem. — Vocês vão pela esquerda... — avisou aos dois homens com um aceno de cabeça. — O peruano vem comigo por aqui... Segurei a arma e caminhei ao lado de Shin, esgueirando-me pelos contêineres até que ele parou. — Eu vou subir... — Indicou a pequena abertura no teto do armazém provisório de metal. — Você espera meu sinal e arromba a porta... Aquiesci, e os homens do Manolo também tomaram seus lugares. Aproximei-me da porta, os olhos esperando atentos pelo sinal, até que ouvi o primeiro som de tiro, abafado pelo silenciador. Shin não teve tempo de atirar de novo, o teto foi alvejado por uma rajada de balas e tudo que ele conseguiu foi rodar, caindo para trás. Soquei o pé na porta com toda a força que tinha, atirando direto na cabeça do homem com a metralhadora. Um dos homens do Manolo entrou comigo, atirando também. Quando os tiros cessaram, vi Guille deitado no chão, as mãos amarradas e os tornozelos também. Tinha se arrastado e se abrigado atrás de um monte de caixas de madeira. — Desculpe, hermanito, acabei me atrasando um pouco! — brinquei assim que ele se mexeu e eu tive certeza de que estava vivo. Verônica Acordei com a rajada de tiros ao longe. Engoli em seco, coração acelerado e aquela sensação de tremor que a gente tem quando está sob estresse muito grande. Lá fora, comandos eram dados em japonês, sem que eu pudesse entender o que estava acontecendo. Minhas mãos ainda estavam amarradas, mas o filho do Nakai havia deixado meus tornozelos livres, então sentei-me no colchão. Nico! Será que é o Nico? Ou a polícia? Talvez Fábio... Não, Verônica, o Fábio não ia conseguir encontrar você rápido assim, ainda mais dentro de sei lá que navio no meio do nada. O corre-corre lá fora só aumentava, luzes de lanterna clareando as frestas, e frases em japonês, até que os tiros foram ficando mais próximos. O som de um helicóptero se aproximou e eu engoli em seco, até que de repente alguém arrebentou a porta. — Polícia! — gritou em espanhol. Virei de costas, mostrando as mãos amarradas e sentindo uma onda de alívio tomar conta de mim. Estava salva. — Vou soltá-la, senhorita... Mantenha a calma... — pediu, mas eu não fui capaz de obedecer. Os tiros ainda ecoavam lá fora e eu não tinha a menor ideia do que estava acontecendo. — Venha, vamos levá-la em segurança. Passou o braço em torno de mim e me escoltou para longe da confusão. Eu ainda olhei para trás algumas vezes, mas não consegui ver nada. Fui colocada sentada na porta de uma ambulância e uma manta foi jogada sobre meus ombros, enquanto um homem com macacão de socorrista me examinava. É isso, Verônica, acabou... Ao menos você vai conseguir voltar para casa..., mas e o Nicolas? Será que ele fez a denúncia? Não! Nico não iria envolver a polícia... O filho do Nakai também não, então... Aquela sensação de que algo não estava certo continuava comigo, como se meu sexto sentido tentasse me avisar sobre algo. Será que o Fábio conseguiu contactar a polícia peruana? — Senhorita... Vou fazer um acesso... — o homem de macacão informou. — Para a medicação... Pegou meu braço e eu não ofereci resistência, continuava com o pensamento a mil, até que o policial alisou os cabelos para trás, mostrando uma tatuagem de dragão japonês no dorso da mão. O estalo me veio tão rápido que puxei a mão e corri, pegando a arma do policial e o rendendo. Ele tentou se soltar, mas eu o agarrei mais forte, arma em sua têmpora. — Onde ele está? — perguntei. — O desgraçado do seu chefe? — Não faço ideia do que está falando, senhorita... Sei que está sob estresse... Eu entendo... Falava calmamente, mas eu podia sentir, pela tensão no seu pescoço, que ele estava nervoso. O enfermeiro mostrou as palmas, olhos estalados para mim, como se ainda tentasse absorver o que tinha acontecido. — Verônica, solte a arma... — ouvi em português, vindo de trás de mim. Virei-me devagar, levando o policial comigo, e vi Celso. Arma em punho e colete à prova de balas da polícia, o que significava que era uma operação oficial. — Anda, garota... Você já foi resgatada, está com a polícia... Ia falando e dando passos em frente, direto para mim. — Sou eu, Verônica... Você me conhece há muitos anos... Trabalhamos juntos... Você até me ajudou a melhorar o guarda-roupas... Lembra disso? Hum? Das noites de plantão e Coca-Cola com tacos? Como diabos Celso estava ali? A Vivi... Não! Fábio não contaria a ele... Ou contaria? Continuei me afastando, conforme ele tentava se aproximar. Precisava ser rápida e decidir que rumo tomaria sem perder o foco do que fazia. Não sei em que momento me distraí, porque só senti a cotovelada no estômago e perdi o ar por alguns segundos. Para a minha sorte, não perdi a arma e consegui atirar na coxa do policial, fazendo-o cair no chão, contorcendo-se de dor. — Perdeu o juízo? — Celso gritou, ainda apontando a arma para mim. — Atirou em um policial? O que acha que está fazendo, Verônica? Estávamos lá os dois, um na mira do outro, em uma dança mortal que sabíamos bem como terminaria. — Como você chegou aqui? — inquiri com a voz firme, não ia deixar que ele me intimidasse. — Como acha que cheguei, hum? — devolveu astuto, apontando para o crachá em seu pescoço. — Sou um homem da lei! Estou aqui para salvá-la e capturar o desgraçado do Condor! Estreitei os olhos. Não tínhamos denúncia alguma contra Nicolas, apesar da extensa ficha; se a polícia brasileira estivesse envolvida em um caso internacional, eu saberia. Estava fora havia pouco tempo. — Sabe o que vai acontecer quando você voltar para o Brasil? — continuou, interrompendo meus pensamentos. — Corregedoria! — aumentou o tom de voz. — E você sabe muito bem o que acontece quando um de nós é pego pela corregedoria! Estresse pós-traumático... — proferiu. — O que acha? Uns bons meses de licença, tratamento pago pela polícia... E você vai poder voltar... Estamos do mesmo lado, Verônica... Somos parceiros... — Onde está o Fábio, Celso? — questionei. Não tive resposta. O policial continuou ali, em silêncio, arma apontada para a minha cabeça. — Por que ele não está aqui? — segui com os questionamentos, mesmo que tivesse menos esperança de resposta a cada nova pergunta. — Como você soube onde eu estava? Eu só contei para o Fábio... — insisti. — Para com isso, Verônica... — Riu, mas parecia mais irônico do que amistoso. — Seja esperta, garota... Você sempre foi... Meus olhos estavam nos dele, mas não era mais o mesmo Celso que eu conhecia. Eu o encarava e sentia como se a máscara tivesse caído. — Desde quando você trabalha para a Yakuza? — soltei de uma vez. Celso esboçou um sorriso, mas logo o conteve. — Ficou maluca? — perguntou admirado. — Você me conhece há anos! Verônica, olha em volta! O que você vê? — questionou, mas não esperou resposta. — Policiais! É isso, garota! Somos os mocinhos! — A sombra de um sorriso sarcástico brilhou em seu rosto mais uma vez. Tudo que eu queria era confiar nele. Sentir-me segura, como havia me sentido tantas vezes, mas não podia. Havia uma pequena luz de emergência dentro da minha cabeça, brilhando forte e avisando que as coisas não eram mais as mesmas. — Onde acha que vai parar se atirar em mim? — interrompeu meus pensamentos mais uma vez. — Cadeia, garota! Lá onde estão todas as vagabundas que você mesma prendeu... — Acho que não, companheiro! — a voz de Nicolas fez meu coração se acelerar. Ele saiu do meio das sombras, rosto coberto por uma máscara preta, mas eu o reconheceria em qualquer lugar. Era o mesmo timbre, o mesmo sotaque, o jeito elegante de se mover, mesmo com uma pistola na mão. Celso levou um susto, oscilando a arma entre mim e Nicolas, sem saber em quem mirar. — Atira nele, Verônica! — gritou. — Anda, atira! Nós não somos inimigos! — insistiu. Os olhos nervosos varriam o espaço entre mim e Nicolas, duas armas apontadas para ele, dando passos atrás. — Quer saber o que houve com o Fábio? — gritou depois de alguns segundos. — Pergunta para ele! Esse vagabundo o matou! — Apontou a arma para Nicolas. — Anda, seu merda! Conta para ela que você grampeou a linha secreta! Conta! — gritou novamente. Por um segundo eu me perdi. Nicolas matou o Fábio? Não sabia mais o que pensar nem como agir, ainda que tivesse certeza de que Celso não era confiável. As peças em minha cabeça desconexas, girando sem parar. Nicolas era o bandido, a porra do chefe do cartel, Celso eu conhecia havia anos... Porra, Verônica! Voltei o olhar para Nicolas. Ele tomou uma bala por você, Verônica... Por que ele faria isso? — Você não entendeu ainda? — Celso continuou. — Ele está usando você, garota, para descobrir informações... Acha que ele e o Nakai são inimigos? — Riu. — Não seja ingênua... Como acha que a Karina acabou nas mãos da Yakuza, hum? — Aproveitou minha dúvida e se aproximou, mantendo Nicolas em sua mira. — A Karina confiava nele, Verônica... Veja como terminou... Ele vai fazer o mesmo com você, assim que não precisar mais... Engoli em seco pela fração de segundos que tinha. Cenas minhas e de Nicolas passando como um filme. Não pode ser verdade... Não pode... Pode? De repente, a imagem do meu pai se formou em meus pensamentos. Ninguém arrisca a vida pelo que não acredita, Verônica... Ninguém arrisca a vida... — repeti em meus pensamentos. Puxei o cão do revólver. — Não! — gritei e apertei o gatilho. Celso caiu para trás. E eu soltei a arma no chão, encarando o rosto do homem com quem eu tinha convivido, em quem tinha confiado por tantos anos, e que quase me matara. No segundo seguinte, os braços de Nicolas me envolveram e eu o apertei forte contra o peito, sentindo o perfume dele me invadir. — Você confiou em mim... — sussurrou em meu ouvido. — Você também... — Segurei seu rosto entre minhas mãos. — Me deu uma arma e dormiu do meu lado todos esses dias... — Encostei meu nariz no seu, acariciando suavemente. Nicolas correu os dedos pelo machucado no osso da minha face e no canto da boca e eu acabei suspirando. — Desculpe fazê-la passar por isso... Beijei sua mão delicadamente e esbocei um sorriso. — Faz parte do trabalho! Seus braços me envolveram novamente, beijando o topo da minha cabeça, e então o som dos tiros e do corre-corre ficou mais alto, aproximando-se rápido. — Acho que vamos ter que terminar essa conversa longe daqui, corazón... — Estendeu a mão. Entrelacei nossos dedos, os olhos em nossas mãos juntas. Nunca pensei que me sentiria tão segura nos braços de alguém que um dia julguei ser meu inimigo. Nicolas Mirei na cabeça do policial ainda vivo e atirei. Depois corri com ela pelo porto, até o local em que o carro ficara estacionado, desviando dos tiros, pelo meio dos contêineres. — Cadê o mestiço? — perguntei assim que vi um dos homens do Manolo. — No carro, porra, anda, Condor, o garoto está sangrando muito. Coloquei Verônica primeiro e entrei em seguida. — Guille! — ela gritou assim que viu meu primo. — Você está vivo! Guillermo tirou a correntinha de dentro da camiseta e beijou a medalha, mostrando a Verônica. — Graças a La Santa Muerte... — Sorriu. — Ninguém vai antes da hora... — completamos em uníssono, Guille, Shin e eu, e acabamos rindo os três. Um dos homens do Manolo assumiu o volante e deu a partida, pisando fundo no acelerador, mas, conforme nos aproximávamos, vimos a barricada da polícia. — Eu assumo... — Shin cortou o silêncio tenso no carro. — Entrei, consigo sair... — Você mal se aguenta em pé, Nakai... — Levantei a sobrancelha para ele. — Então vamos rezar para a santa ser poderosa mesmo, peruano... Paramos o carro e o garoto sentou-se atrás do volante. Diminuiu a velocidade, conforme ia se aproximando do policial armado no portão. O rosto ainda coberto pela máscara, olhos baixos, para passar despercebido. Quando parou esperando a liberação, colocou a mão para fora do carro, exibindo a tatuagem. Eu não conhecia muito de escrita oriental, mas aquele kanji eu conhecia. Era o símbolo da família Nakai e somente o alto escalão da Nakai-Gumi tinha o direito de usar. Shin dirigiu alguns metros à frente e, logo que saímos da visão da polícia, o corpo pendeu para a frente, perdendo os sentidos momentaneamente. Desci rápido e ajudei o homem do Manolo a colocá-lo deitado no chão da van. — Para onde vamos, japonês? — perguntei. — O convento... — sussurrou. — Meus homens estão lá, meu pai não conhece. Fizemos o caminho de volta até o convento e, assim que paramos em frente, o portão de correr se abriu. Guillermo e eu pegamos um de cada lado dos ombros de Shin, apoiando-o para que conseguisse ficar em pé. — Suma com o carro e se esconda por alguns dias... Entrarei em contato assim que a poeira baixar — avisei ao motorista. Entramos no prédio antigo, com Verônica ao nosso lado, seguindo pelos corredores até dar de frente com um homem de preto. — Por aqui! — falou em um espanhol arrastado. Chegamos ao que parecia ser um ambulatório e colocamos Shin em cima da maca, sem a jaqueta. A camiseta foi cortada, exibindo as cinco marcas vermelhas em seu abdômen. — Porra, mestiço, você está parecendo uma peneira! — brinquei e ele riu. Lábios sem cor e cara de dor, mas o olhar estava fixo no meu. Ali, naquela maca, nem parecia cria do Nakai, fazia-me pensar na garota gentil que eu havia conhecido muitos anos atrás. O que ela diria se nos visse do mesmo lado como hoje... — Olhando para mim desse jeito, peruano... Vou achar que se apaixonou pelos meus belos olhos verdes... — provocou. — Obrigado... — soltei de uma vez, não era bom em agradecer. — Você fica me devendo uma! — Contraiu o rosto de dor, assim que a enfermeira mexeu em um dos ferimentos. Quando a dor melhorou, respirou fundo e me encarou novamente. — Seu cão de guarda está aqui... — falou baixo, quase sem forças. — Chame uma ambulância e leve-o para um lugar que você confie... Estamos aqui há alguns dias, é mais seguro sair... Eu volto para o Japão assim que limpar a sujeira... Aquiesci e dei alguns passos para longe, mas voltei o rosto para ele. — Sabe que se seu pai cruzar o meu caminho... ele não volta para casa... — avisei. Shin respirou fundo. — Essa é uma conta que não vou cobrar de você... Meneei a cabeça e caminhei para fora do lugar com Verônica e Guille ao meu lado. Um dos homens de Shin veio conosco, guiando-nos até onde Nacho estava. Conforme ia me aproximando dele, um filme passava em minha cabeça. Nacho, Guille e eu correndo pelo gramado e pulando no rio. As mangas arrancadas do pé, as vassouradas de Tia Lupe. Parei ao seu lado, os dedos tocando o curativo na lateral da sua cabeça. Estava dormindo, sedado provavelmente. Guille ocupou o outro lado. — Qual é o estado dele? — perguntei à jovem de conjunto cirúrgico. — Muito grave? — Ainda não sabemos, senhor... Ele chegou aqui desacordado, mas a bala pegou de raspão. Quando o examinamos mais a fundo, encontramos um edema grande na parte detrás da cabeça; com os recursos que temos, não conseguimos ter certeza, mas provavelmente foi uma pancada. Bati a mão em seu ombro. Tinha esperança de que conseguiríamos. — Vamos sair daqui, companheiro... Os três juntos... E juro que nunca vou me cansar de lhe pedir perdão... Levantei e parei junto à janela. — Preciso de um helicóptero de resgate... — falei ao telefone. — Isso... Tenho um funcionário ferido, quero uma transferência para uma clínica particular em Lima... Imediatamente... Vou enviar o endereço, um momento. — Tapei o telefone e me dirigi à enfermeira. — É possível pousar no telhado? — Temos um campo de futebol a duas casas daqui, senhor... Creio que seja possível lá... — Sim, Calle Salvador, em Callao... Na altura do duzentos e vinte, um campo de futebol. Fica a duas quadras do convento em que ele foi socorrido. Perfeito. Preciso também de um carro confortável... Volto para Lima, assim que meu funcionário for levado. Desliguei e guardei de volta no bolso. — Quanto tempo? — Verônica perguntou. — Dez minutos... Estava escorado contra a parede e a puxei para perto. Estava abatida e machucada, mas ainda mantinha aquele mesmo olhar desafiador e cheio de si. — Tem certeza de que não precisa ser atendida também? — perguntei. — São só escoriações... Preciso de um bom banho e um prato bem grande de comida, além de um colchão macio que não esteja fedendo a urina! As enfermeiras começaram os procedimentos para a remoção de Nacho e, pouco tempo depois, dois socorristas entraram empurrando uma maca. — Sr. Huamán, sou Alejandro... — um deles cumprimentou, mostrando o crachá. — Viemos cuidar da transferência. Acompanhei-os, enquanto colocavam Nacho dentro do helicóptero, e Guille entrou com ele de acompanhante. Logo um sedã escuro virou a esquina e, pela placa, eu sabia que era da companhia que eu havia solicitado. Verônica e eu seguimos de carro, uma curta viagem de pouco mais de meia hora e estávamos passando pelos portões discretos de La Madre, uma clínica particular onde eu sabia que poderíamos nos esconder por alguns dias, sem o risco de sermos pegos no radar de Nakai. Descemos e passamos direto pela recepção. Não era a primeira vez que eu me hospedava ali, então algumas formalidades podiam ser dispensadas. A recepcionista nos acompanhou pelos corredores, até uma das suítes. — Separamos esta para a senhorita... — Sorriu gentilmente, abrindo a porta para que Verônica pudesse entrar. — Uma enfermeira logo virá atendê-la e cuidar dos curativos... — explicou. — O senhor ficará no quarto ao lado, Sr. Huamán... — Onde foi internado o paciente José Ignacio Sanchez? Ele chegou de helicóptero... — Foi acomodado no segundo andar... O Sr. Guillermo está com ele... Aproximei-me de Verônica e toquei sua mão com a minha. — Vou ver como Nacho está e volto logo... Você está segura aqui, corazón... Descanse um pouco. — Nico, eu preciso saber do Fábio... Se ele veio com o Celso, pode estar em apuros, eu preciso... — Vou ver o que descubro, não se preocupe... — acalmei-a. Saí direto para o elevador e assim que vi Guillermo na recepção do segundo andar me aproximei. — Como ele está? — perguntei. — Estável, segundo o plantonista... Amanhã o neurologista virá vê-lo e saberemos melhor o que houve. Alisei os cabelos para trás, sentindo o gosto amargo dos meus próprios erros. Tinha colocado todos em risco. — Para com isso, Nico! — Guille reclamou. — Já te disse que você não é Deus, primo... Não pode cuidar de tudo o tempo todo... — Duvidei dele... — confessei. — E quem não duvidaria? Nunca pensei que aquela puta fosse tão esperta e traiçoeira... — Precisamos encontrá-la... — Serviço feito, hermanito... Está descansando debaixo da terra já... O que me preocupa é aquele monte de merda do Nakai andando por aí com aquele porra do Matsuya a tiracolo... Passou da hora de limpar o nosso quintal já... — Concordo..., mas primeiro temos que falar do cartel... Manolo está morto, os outros sozinhos não conseguem e... Guille bateu em meu ombro, deixando a mão lá. — Toma um banho, Nico... Come alguma coisa e cuida da sua mulher... O cartel vai ser o mesmo amanhã e a gente... — respirou fundo — nunca sabe quanto tempo tem... Suspirei. — Tem razão... — Repeti o gesto, tocando seu ombro também. — Faça o mesmo, Guille... Descanse, mande notícias a sua mãe e peça ao Franco para descobrir se tem algum Fábio, brasileiro, policial civil, por aí... Verônica está preocupada com ele. Meu primo aquiesceu e eu peguei o caminho de volta. Entrei no elevador e cobri o rosto com as mãos, esfregando os olhos. Ela tinha confiado em mim, de verdade, contra todas as convicções, mesmo sabendo tudo a meu respeito. Ela confiou, Nico... Verônica Entrei no banheiro e tirei as roupas sujas que usava havia dias. A cada peça que caía no chão, era como se um pouco de mim se acalmasse. Parei nua em frente ao grande espelho da bancada e encarei meu rosto. Tinha alguns hematomas, o canto esquerdo dos lábios inchado e avermelhado, além do corte pequeno sob o osso da face. Fazia seis anos que eu era policial, cinco que Celso e eu trabalhávamos juntos. Achei que o conhecia e, no fim das contas, quase acabei morta pelas mãos dele. Celso era dez anos mais velho que eu, já estava na polícia quando o acidente com os meus pais se deu. Eu me lembro de que quando entrei no departamento, cheia de sede de vingança, ele foi também o primeiro a me convencer a deixar para lá. Será que ele já era corrupto naquela época? Meu pai havia morrido enquanto investigava o alto escalão da política brasileira. Sempre tentei me convencer de que havia sido apenas um acaso, mas no fundo a verdade ainda batia em mim como um soco de pugilista, certeiro e forte. Entrei embaixo da água morna, sentindo meus músculos tensos relaxarem devagar. Lavei os cabelos e todo o sangue seco que havia em meu rosto. De repente, comecei a sentir minha respiração acelerar, mais, mais, até que não pude conter o choro. Mãos apoiadas no azulejo frio, corpo curvado para a frente e olhos fechados. Eu nem sabia se chorava por Karina, meus pais, ou pelo que havia sofrido. Era um choro forte, convulsivo, daqueles em que a gente não consegue parar de tremer, como se o corpo pedisse socorro para desabar o que o estava sufocando. Quando terminei, sentia-me mais leve, ainda que o vazio estivesse lá, no fundo do meu peito, cobrando seu espaço. Agora é hora de ir, Verônica... Não fez o que podia, não vai morrer por uma vingança... Karina não gostaria disso... Levantei os olhos enquanto me enrolava na toalha e encarei o espelho novamente. — Hora de ir, Verônica... — repeti para o meu reflexo. Por que pensar nisso dói tanto? Assim que saí, vi as roupas sobre a cama. Lingerie, uma calça de moletom fina e uma camiseta de malha com a logomarca da clínica em que estávamos. Vesti e caminhei até a janela, encarando o jardim iluminado lá fora. Eu não sabia onde estava, mas confiava em Nicolas e, se ele achava seguro, então eu estava tranquila. Confiava em Nicolas... Suspirei. Como nunca pensei que fosse possível... — Senhorita? — uma voz gentil chamou à porta. — Sou Lenita... Vim fazer os curativos... Virei de frente para encontrar uma jovem vestida com jaleco de enfermeira. Empurrava um carrinho de metal, daqueles de emergência. Ela sorriu e indicou a cama. — Sente-se aqui... Prometo que não vou demorar. Obedeci, desviando dos seus olhos, sempre que cruzavam com os meus. Eu não queria falar do que havia acontecido, tive medo de que ela perguntasse algo, ainda que para puxar assunto, mas ela não fez. Parecia discreta e gentil, então fui baixando a guarda. — Espero que consiga dormir, senhorita... — disse separando o material usado para descartar. — Este aqui é um analgésico, e este, um calmante leve, apenas para relaxar... Amanhã o médico irá passar para examiná-la melhor e fará uma receita. Logo a copeira lhe trará uma sopa, coma... É bom que esteja alimentada para descansar melhor. Encheu o copo com água, deixando ao lado dos dois comprimidos, e saiu. Os remédios começaram a fazer efeito logo depois que comi. Precisava mesmo de descanso, então me deitei e fechei os olhos. O sono não demorou a vir, mas no meio do cansaço tudo que conseguia pensar era que tinha acabado e o quanto isso pesava dentro de mim. *** Acordei assustada, com aquela sensação ruim de quando a gente sente que tem alguém olhando, mas assim que abri os olhos meu coração se acalmou. Nico estava lá, cabelo molhado penteado para trás, calça de moletom cinza e camiseta branca, os machucados do rosto com pequenos curativos, como os meus. Soltei um suspiro profundo. Aquela sensação de que tudo estava certo novamente, só porque ele estava ali. Desviávamos o olhar um do outro, meio sem querer, mas logo voltávamos a nos procurar. — Por que não me acordou? — perguntei esboçando um sorriso, não queria que nossas últimas lembranças fossem duras e cheias de pesar. — Gosto de te ver dormir... Estendeu a mão e, quando eu coloquei a minha em cima, ficou brincando com os dedos nos meus. Não dissemos nenhuma palavra, mas os sentimentos eram tão densos ali que eu quase podia tocá-los. Nicolas não sorriu um minuto sequer, o rosto pesaroso, preocupado e ansioso. Eu queria abraçá-lo apertado e dizer que me sentia da mesma maneira, mas era tão idiota que tentei reprimir o melhor que pude. — Como o Nacho está? — perguntei para evitar que eu mesma me denunciasse. — Está sendo bem cuidado, ficará bom... Desviei o olhar e suspirei novamente. — Aquele Yakuza que trabalhava com você estava encarregado de limpar a sujeira pela morte da Karina e isso incluía a mim e a você... — Coçou a barba. — O desgraçado fez parecer que eu era o culpado, detetive, talvez a polícia brasileira fique atenta por algum tempo... — Ainda não descobri nada do seu chefe, mas talvez ele possa... — Balançou a cabeça em negativa. — De qualquer maneira, não é mais um problema para você... Aquiesci, a cabeça fervilhando, nem sabia o que dizer e sentia que ele também não. De repente, Nicolas se afastou, ajeitando os cabelos com as mãos, como se precisasse aumentar a distância entre nós. — Vou tentar abafar todo o caso para você, Verônica... Imagino que esteja preocupada com seu trabalho... Afastou-se mais, quase nos pés da cama. Os olhos fugindo dos meus, impessoal e distante. — Quero que saiba que, se depender de mim, não haverá um respingo sequer em você... Amanhã meu advogado virá aqui... Vamos pensar em algo que possa inocen... — Não sei se quero voltar para a polícia... — confessei sem encará-lo, levando a mão até ele. Queria tocá-lo, precisava senti-lo, mas ele se recusou, levantando- se rápido da cama e dando alguns passos pelo quarto, em direção à janela. — Você só está confusa... — Acendeu o cigarro, colocando na boca. — Passou por tanta merda, é claro que está confusa... Logo tudo se encaixa de novo, corazón, não se preocupe... Tinha assumido a máscara de rei do cartel. Aquela armadura impenetrável de quem não se importa com sentimentos. Como quando nos conhecemos. Só que, diferente daquela vez, agora eu o conhecia, entendia cada nuance. Levantei-me também e parei em sua frente, pegando o cigarro de sua mão e dando um trago. — Faz mais de cinco anos que trabalho sob estresse e risco de morte, Nicolas... Não sou uma mocinha indefesa... Seus olhos pousaram nos meus intensamente. O corpo tão perto que eu podia sentir o calor da sua pele, o perfume, o hálito de dente recém- escovado. Não resisti, descendo a mão suavemente em seu peito, tocando o curativo, descendo até perto da barriga, então Nico deu um passo atrás, as mãos cerradas em punho. — Não posso! — disse de repente. — O quê? — perguntei sem entender. — Isso! — Girou o dedo no espaço vazio. — Nós! Eu e você, sexo... É muito bom, mas... — Balançou a cabeça em negativa. — É melhor eu ir... Você precisa descansar... Eu também... Caminhou até perto da porta tão rápido que eu quase não acompanhei. — Espera, Nico... — chamei sem tocá-lo. — Vou matar o Nakai, corazón, como prometi... — Escorou o corpo no batente, cobrindo o rosto com as mãos e esfregando. — Sei que quer vingança, é por isso que está aqui, não é? Não se preocupe, vou dar a você... — E se eu quiser mais que vingança, Nico... — Joguei, dando alguns passos para perto dele. — Vai me dar? Não tive tempo de reação, seu corpo tomou o meu, empurrando-me pelo quarto até a cama. A boca invadindo a minha com tanta urgência que eu podia sentir o gosto metálico de sangue do machucado no meio do beijo, mas não reclamei. Eu queria. Queria Nicolas com a intensidade que ele tinha, completo, sem mudar uma vírgula sequer. Puxei sua camiseta pelos ombros, beijando seu peito nu e ouvindo sua respiração acelerar mais e mais, até ficar entrecortada, como a minha. Baixei a calça e ele a tirou, minhas roupas tiveram o mesmo destino, caídas ao lado da cama e então ele me deitou sobre os lençóis, o joelho empurrando o meu para que acomodasse seu corpo. — Ah... — gemi alto, quando ele me invadiu. A boca procurava pela minha, a língua lambendo meus lábios, as mãos percorrendo meu corpo. Apertei as pernas ao redor da sua cintura e ele mordeu meu pescoço, descendo pela clavícula até o seios. Chupou meu mamilo arrepiado enquanto beliscava o outro e eu joguei a cabeça para trás, estava tão perto de gozar que queria me segurar um pouco mais. Apertei os lençóis com as mãos, mas não fui capaz de evitar. Meus gemidos foram se confundindo com os dele, mais alto e mais alto, até que cessaram, dando lugar a suspiros ofegantes, meu rosto encaixado na curva do seu pescoço, sem que ele saísse de dentro de mim. Eu ainda podia senti-lo pulsar, satisfeito e, a cada movimento do seu corpo, o meu respondia na mesma intensidade. Ficamos assim por um longo tempo, sem dizer uma única palavra, apenas sentindo o outro. — Hum... — ele gemeu de repente, e virou-se de lado, apoiando a cabeça sobre o antebraço. — Dói? — Toquei o curativo com a ponta dos dedos. — Um pouco... As costas doem mais... Aproximei o rosto do peito dele e beijei. — O tiro que você levou por mim... — Você era minha responsabilidade... Eu a coloquei em perigo, então... Levantei os olhos e o encarei, apoiando meu corpo com o braço. — Só isso? — O que quer que eu diga? Você sabe quem eu sou, corazón... O que eu faço, como vivo... — Ajeitou uma mecha de cabelo atrás da orelha. — Agua y aceite... no se mezclan... Nicolas Sustentei seu olhar o melhor que pude. Não havia razão alguma para tornar ainda mais difícil o que já era, por si só. Ela tem uma vida, Nicolas... Não vai renunciar a tudo para ficar com alguém como você! E o mais importante... Por que diabos você quer uma mulher na sua vida? Já não se lembra do seu pai? A garota continuava ali, aconchegada em meu corpo, o perfume dela mesclado ao meu e aquela sensação incômoda de conexão entre nós. Incômoda? Não, confortável, e era exatamente isso que me incomodava. Os dedos corriam suaves em minha pele, ainda que eu a tentasse afastar, como se soubesse o que eu realmente queria. Estava conseguindo, fazendo-me fraquejar. Fechei os olhos por um segundo, sentindo seu toque. — O que espera? — perguntei ainda sem abrir os olhos. — Que eu lhe peça para ser minha mulher? — soltei cheio de irritação e ansiedade. — Você vai aceitar? Ela parou o carinho no mesmo instante, assustada, certamente, e eu acordei. Não deixei que terminasse. Levantei da cama o mais rápido que pude, aumentando o espaço entre nós. Ela foi pega de surpresa, mas era melhor que fosse mesmo assim. Uma foda de despedida... Justo! — Amanhã acertamos tudo e você volta para o Brasil... — expliquei já pegando o rumo da porta. — Durma um pouco, pode ser que precise dar uma entrevista... Vou ver com o advogado o que... — Não espero nada, Nicolas... Não tenho quinze anos, nem estou presa na torre, corazón... — imitou-me. — Não estou jurando amor eterno, nem dizendo que vamos viver o resto da vida juntos, só que gosto disso... — Segurou minha camiseta, sustentando meu olhar. — Nós... Assim... — Sorriu maliciosamente. — Somos uma boa equipe... Esbocei um sorriso, ainda tentando processar, mas não ia deixar que ela percebesse. Deveria ter dito que ela não fazia ideia do que acabara de dizer, mas não era verdade, não para ela. Verônica tinha sido a única mulher a quem realmente mostrei o que era, como sentia, o que queria. Nunca tinha sido apenas sexo, atração, tensão e tesão, era mais. Fora mais desde o primeiro instante. Desde a primeira briga e o primeiro olhar. — Antes que diga que eu não sei o que estou fazendo, Nicolas, eu quero que saiba que... — Você sabe... — Deslizei as mãos pelo seu rosto, levantando seu queixo para que eu pudesse roçar meus lábios nos dela. De leve, aumentando a expectativa. — Se tem alguém que sabe o que quer, detetive... — Sorri de canto. — Sem dúvidas, é você! Tomei-a pelo pescoço, afundando a boca na sua, urgente, com a vontade que eu tinha dela. Verônica enlaçou os braços ao redor do meu pescoço e eu a sustentei, até que as pernas estivessem ao redor da minha cintura. Pressionei-a contra a parede, a boca descendo em sua clavícula, as mãos subindo por dentro da camiseta. — Não quero que isso acabe... — confessou. — Nem eu... Respirei fundo. Não tinha ideia do que aconteceria na manhã seguinte, nem de qual seria meu fim. O cartel havia sido abalado e, por mais que minha honra estivesse restaurada, não sabia ainda o que pensar. Talvez você nem tenha muitos dias... Beijei-a novamente. — Sabe de uma coisa, corazón... — Ri contra seu pescoço e depois segurei seu queixo entre meus dedos, forçando-a a me encarar. — Se for para morrer cedo, quero que seja assim, no meio das suas pernas, fodendo como se não houvesse amanhã... Verônica riu também. — Uma vez um cara me disse que era uma bela maneira de morrer... — brincou. — Acho que concordo com ele! Puxei sua calcinha de lado e enterrei meu pau tão fundo que nós dois arfamos juntos. Moí seu corpo contra a parede com o meu, mais fundo, mais rápido, não conseguia ser de outro jeito com ela, como se a urgência que sentia nunca se aplacasse. Para minha sorte, a brasileira parecia pensar o mesmo, porque se eu tivesse mesmo que deixá-la ir... — Ah... Nico... — gemeu, enquanto seu canal ordenhava meu pau com tanta força que precisei tomar fôlego para continuar. — Isso, detetive... Grita meu nome, vai... Mais alto, para todo mundo saber a quem você pertence... — exigi, apertando seu quadril, minha boca gemendo contra a sua. Verônica Acordei sozinha na cama. Estava tão cansada que nem havia sentido Nicolas se levantar. Espreguicei-me cuidadosamente, nem me lembrava da última vez que dormira tão bem. Talvez por efeito do remédio, mas mais provavelmente por estar com Nico. Levantei-me e fui até o banheiro, para escovar os dentes e me arrumar. Estava penteando os cabelos, quando bateram à porta. — Senhorita... Café da manhã... Saí para encontrar Nicolas, logo atrás da copeira. Calça escura e camisa preta, com uma jaqueta de couro por cima. O dourado da corrente brilhando em seu pescoço a cada movimento que ele dava. Havia uma sacola preta de loja em sua mão. Sorri. — Aproveitem a refeição e avise quando terminar, virei buscar a bandeja... — Agarota sorriu, correndo os olhos entre nós dois. — Sente-se, corazón... Vou explicar o que vamos fazer enquanto você come. Colocou a bandeja de comida sobre a mesa e eu me sentei em uma das cadeiras, de frente para ele. Nicolas serviu o café em duas xícaras, sentado elegantemente, como o homem de negócios que aparecia nos jornais. Os curativos em seu rosto haviam sido substituídos por novos, cabelo bem penteado e barba aparada. — O advogado está lá embaixo, mas achei melhor eu mesmo conversar com você... — explicou. Aquiesci, passando um pouco de manteiga em um pãozinho de leite. — O que vamos dizer é que você sofreu um sequestro e a polícia peruana irá sustentar nossa versão... Sou um homem conhecido, minha fama e meu dinheiro não são segredo... Para todos os efeitos, você e eu já nos conhecíamos... Karina trabalhava para mim, então nossa relação não será difícil de compreender... Você está de licença da polícia, decidiu vir até aqui para cuidar de assuntos pessoais referentes à morte dela. É bem simples e natural, nada com o que se preocupar. Concordei, mordendo mais um pedaço do meu pão. — Nós nos reencontramos e nos envolvemos, uma situação normal, movida pela dor da perda... As pessoas gostam disso... Sofrimento sempre causa empatia... Ia falando e eu, encarando-o. Parecia sempre saber o que dizer, como falar, o que esconder, o que revelar. Pensei em como devia ser difícil manter duas identidades, mas que, apesar disso, ele fazia parecer tão simples. — Entende? — perguntou e eu desviei o olhar, havia perdido o fio da meada. — Desculpe... Tocou a mão sobre a minha, suavemente. — Não se preocupe, tudo isso é apenas para firmar uma história que teremos que contar daqui em diante... Se realmente quiser... — Parou a frase no meio e eu acabei sorrindo. — Deixar claro que a morte de Karina foi um infeliz acidente e que nunca ouvi falar de Isao Nakai ou Seiji Matsuya e não tenho conhecimento algum a respeito da Yakuza... Nicolas levou os olhos até os meus, como se tentasse me compreender. — Não é a primeira vez que conto uma história diferente da verdadeira para a imprensa... — Verônica... — Entrelaçou nossos dedos. — Não a quero envolvida em meus assuntos... Prometo protegê-la e cuidar para que sua vida seja tranquila ao meu lado... Sou um homem de negócios, com uma vida absolutamente normal, ainda que... — Não espero que me proteja... Só... que seja honesto... — Tem minha palavra... — Mesmo que eu não concorde... — Mesmo assim, corazón... Nunca escondi de você quem sou e não pretendo começar agora... Soltei minha mão do seu carinho e estendi a ele em um cumprimento formal. — Então acho que temos um acordo, Sr. Huamán... — brinquei. Nicolas tocou sua mão na minha e no instante seguinte me puxou para o seu colo. Os lábios buscando os meus, a mão livre acariciando minha coxa. Quando o desejo do beijo aplacou e a intensidade diminuiu, eu sorri. — Anda, me dá a sacola... Quanto antes começarmos, antes terminamos... — Há mais uma coisa, corazón... E esta é a parte complicada... Seu amigo Fábio Queiroz... está na cidade... Arregalei os olhos. — Ele está bem? Está machucado? Foi pego pelo Nakai? — perguntei ansiosa. — Ele está vivo, um pouco confuso sobre os fatos... Seu amigo mestiço armou um bom circo, fez parecer que era a vítima, então... — Desviou os olhos dos meus por um segundo e, quando voltou a me encarar, havia uma sombra de letalidade ali. — Espero que você consiga convencê- lo ou terei que resolver do meu jeito... — Não! — falei mais alto do que deveria, mas não estava arrependida. — Fábio é meu amigo, Nicolas... O único que tive e, se não está envolvido na sujeira da polícia, quero garantir que ele volte são e salvo. — Você tem vinte minutos... — Tirou-me do colo e ajeitou a jaqueta. — Vista-se, espero por você no saguão, com o advogado. Seu amigo irá depor logo depois de você e eu espero que diga exatamente o que precisa dizer... Aquiesci. Dentro da bolsa havia uma calça escura ajustada e um suéter de lã azul, além de sapatilhas bonitas e delicadas. Vesti tudo e prendi os cabelos em um rabo de cavalo alto, deixando bem visíveis os machucados em meu rosto. Nicolas tinha razão, o sofrimento causava empatia e, naquele momento, era exatamente do que precisávamos. Deixei o quarto e entrei no elevador. Quando as portas se abriram, vi Nicolas e Guillermo conversando com um homem de terno cinza, de costas para mim. Aproximei-me devagar, até que Nicolas percebeu minha presença e se levantou. — Alberto, esta é Verônica... — apresentou. O homem estendeu a mão em cumprimento. — É um prazer conhecê-la, infelizmente em condições não tão agradáveis... — Sorriu cortês. — Imagino que Nicolas tenha explicado a você a estratégia que concordamos ser a mais correta... Meneei a cabeça em concordância. — Vou acompanhá-la até a delegacia... Algumas formalidades não podem ser dispensadas... Sei que compreende. Eu compreendia, fazia parte do sistema e entendia como as coisas funcionavam. Depois de mais alguns ajustes em nossa história, nós nos levantamos e seguimos em direção à saída. Havia um sedã executivo prateado, estacionado um pouco à frente, além do esportivo preto. Nicolas segurou o passo e eu fiz a mesma coisa, deixando que o advogado e Guille ocupassem os respectivos carros. Quando ficamos sozinhos, ele tirou um aparelho de telefone do bolso e entregou em minhas mãos. — Se algo acontecer, corazón... Há um telefone salvo com o nome Santa Maria Caritá... É de uma igreja... — explicou. — Ligue para lá e diga que precisa sumir... Dê sua localização e em menos de uma hora você estará fora do Peru... Senti um arrepio tomar conta de mim. Se algo acontecer... Com quem? Com ele? Engoli em seco. — Eu confio em Alberto totalmente, mas se perceber qualquer coisa errada... Já sabe... — reforçou. — E caso não consiga telefonar, dentro da delegacia, pode procurar pelo Torres... É um investigador que sei que não tem envolvimento com os japoneses, mas apenas em último caso... Torres é um homem correto, será difícil explicar as coisas a ele. Ia instruindo e eu concordando, ainda que tudo me causasse certa estranheza. Era a primeira vez que eu estava do outro lado da situação. — Tem certeza de que não prefere ir comigo... Meu espanhol é péssimo e eu não conheço quase nada do seu país... — Tenho assuntos urgentes para resolver... Além disso, é melhor que você pareça inocente e vulnerável... — Não me diga que vai atrás daquele demônio... Nicolas deu um trago no cigarro que acabara de acender. — Preciso reestruturar o cartel. Há pessoas que contam com isso... Nicolas Esperei que ela entrasse no carro e, depois, que ele saísse pelo portão, para só então caminhar até onde Guillermo esperava por mim. Assim que me sentei no banco do carona, conferi a pistola dentro do porta-luvas, acoplando o silenciador e acomodando-a no coldre axilar. Peguei também um pente extra e guardei no bolso interno do paletó — Tem certeza de que não está se precipitando? — Guille perguntou, enquanto eu me preparava. — Eu disse a você para ficar... — Não fui eu que tomei um tiro no peito, Nico... — reforçou. — Alguns dias de descanso não seriam maus... Você perdeu muito sangue, ainda sente vertigem... É um risco... — Necessário... — cortei-o. — Nakai provavelmente pensa como você, o que vai facilitar as coisas... Se formos agora, precisaremos de menos homens... E é exatamente o que temos agora... Meia dúzia de homens e nem todos são de confiança... — Dei um trago no cigarro, jogando a cabeça para trás. — Você deveria ficar com o Nacho... Se o pior acontecer, Guille... — Então vamos ter que contar com a lealdade daquele majadero de un carajo! Até que Maribel tenha idade suficiente... — Deu um trago também, soltando a fumaça para fora. Rimos os dois, mas o riso morreu rápido demais. A tensão era grande. — Contou a ela que ia atrás do Nakai? — meu primo perguntou. — Disse que ia reestruturar o cartel... — Vesti a luva de couro na mão esquerda. — Aquele filho da puta estar lá é só um detalhe. — Tirei o cigarro do lábio e soltei a fumaça pela janela, fechando-a em seguida. — Vamos! Dirigimos até um aeroporto particular, onde o avião já esperava por nós. Era a melhor maneira de atravessar a distância que separava Lima de Puerto Maldonado, cidade mais próxima da reserva, onde ficava a fazenda do Boliviano. Aterrissamos no meio da floresta, em uma antiga rota desativada havia muitos anos pela polícia. Assim que a porta se abriu e eu me aproximei das escadas, vi o 4x4 preto estacionado e Franco do lado de fora. — Eu disse a você que ele era uma excelente aquisição! — Guille levantou a sobrancelha por cima dos óculos escuros, a sombra de um sorriso presunçoso brilhando nos lábios. — Hoje vamos descobrir se você tem razão, hermanito! Aproximamo-nos do boliviano e ele meneou a cabeça, sem deixar de mascar o chiclete. Eu havia relutado muito em aceitar Franco Monero entre os meus, porque ele era um Yakuza desde os treze anos, quando foi pego roubando dinheiro em um dos bordéis controlados pelo Matsuya, em La Paz. Não era novidade alguma que garotos jovens fossem levados a entrar na organização como pagamento de dívidas, mas que quisessem sair, essa sim, era uma verdade que não me convencia. — Haverá retirada de mercadoria na fazenda hoje... — explicou sem me encarar, sabia que eu não confiava nele. — É uma carga grande de ópio que vai direto para o comprador na Holanda... — Como você soube? — intervim, ainda que não estivesse falando comigo. — Um dos homens do Epifânio me contou... Ele não gosta dos japoneses, chefe, e não está nem um pouco satisfeito com o rumo do cartel... — Quantos homens do Matsuya estão na fazenda? — perguntei. — Uns vinte... — Deu um trago no cigarro. — Quatro na casa, com certeza... Aquele velho safado morre de medo de ser pego de surpresa, nunca fica sozinho... Os outros devem ter se dividido entre a entrada, o galpão e a ronda... — E os homens do Manolo? — Esperando por nós no caminho... O japonês está usando drone na vigília, provavelmente já sabe da nossa chegada, mas não está contando que temos reforços. Meneei a cabeça e dei a volta, abrindo a porta do carro. — Vamos... A estrada que levava até a fazenda de Manolo era quase uma trilha. Não havia possibilidade de cruzá-la, senão em veículos de tração 4x4 ou hidroavião, saídos do rio que cortava a propriedade. Conforme nos aproximávamos do local, Franco mudou de rota, enfiando o carro pelo meio do mato. — Ei, companheiro, vá devagar! — Guille reclamou. — Isso não é um rali! — Se pretende descer pelo morro e entrar pela frente, é melhor que pare antes do córrego... O carro vai atolar e não vamos poder usá-lo... — avisei. O garoto encarou-me pelo retrovisor como se não acreditasse no que eu havia acabado de falar e eu o encarei de volta. Queria deixar claro que não seria fácil armar para mim. Eu podia ser o chefe do cartel, mas não tinha sido sempre assim. Quando eu era criança, meu pai havia trabalhado com o Manolo e eu conhecia aquela fazenda como a palma da minha mão. Continuei encarando a mata fechada em nossa frente, enquanto o 4x4 ia desviando e se afundando em barro e lama. — Ali! Pode parar ali... — Apontei em frente. — Depois daquelas árvores já é o córrego, se formos beirando-o chegamos mais rápido pela lateral direita. O que você combinou com os homens do Manolo? — perguntei. — Eles virão pelo mangue, de barco pequeno... Já devem estar escondidos esperando para entrar... — conferiu o relógio. — Temos vinte minutos. O garoto desligou o carro e desceu, abrindo o porta-malas, para pegar uma Taurus 40 e pendurar no ombro. Descemos pelo córrego raso, usando o leito quase seco como caminho. Pouco depois, a casa pintada de rosa-pálido entrou em meu campo de visão. Havia uma caminhonete com o emblema de uma ONG de proteção indígena, conhecida por favorecer o tráfico de mercadoria dentro da reserva, estacionado bem na frente. — Acha que pode ser o comprador? — perguntei. — É possível... — Franco respondeu, ainda encarando a movimentação na casa. — Mas de qualquer maneira, não podemos esperar... Do ponto em que estávamos em diante, toda a nossa comunicação foi feita por assovios, imitando os pássaros e gestos. Assim que atingimos o gramado, Franco foi de encontro aos seguranças. — ¡Hola, compañeros! — gritou, rindo e metralhando a entrada da casa. Guille e eu aproveitamos a movimentação de homens para fora e desviamos por trás da caminhonete, direto pela cozinha. Apertei o gatilho assim que o primeiro rosto apareceu, certeiro, no meio da testa, fazendo o homem cair de joelhos no degrau da entrada. Guille acertou o peito do segundo e o terceiro escapou da minha mira; correu para fora, mancando e deixando pegadas vermelhas pelo cimento do chão. Seguimos pelo cômodo, um dando cobertura ao outro. O som de tiros lá fora havia cessado, eu só não sabia se era porque Franco havia matado todos, ou se era ele mesmo o morto. Sinalizei para que Guille subisse as escadas para olhar no andar de cima, enquanto eu vasculhava o de baixo. Meu primo assentiu e nos separamos. Caminhei beirando a parede pela sala, até o escritório, mas tudo estava absolutamente vazio. Quando voltei à sala, ouvi o som de mais alguns tiros e logo depois o ranger de freios de um carro, arrancando tão rápido que mesmo correndo não consegui impedir que fugisse. Assim que pisei na varanda da entrada, cerrei as mãos em punho. Os homens do Manolo estavam lá, amarrados pelos pulsos e tornozelos, o sangue vertendo do pequeno buraco na testa, bem ao lado de Franco caído no chão. O pescoço cortado, enquanto ele tentava balbuciar algo que eu não conseguia entender, os olhos já se revirando e as mãos retesadas de dor e choque. Aproximei o rosto do dele. — Descanse, chico... — sussurrei. — La puta madre! — Guille xingou, parando ao meu lado. — Era uma emboscada! Meu telefone vibrou no bolso e eu enfiei a mão para pegá-lo, sentindo o coração acelerado. O número de Verônica piscava na tela. — Por Dios, corazón... Diga que está em segurança... — pedi. — Uma pena, peruano... — o sotaque pesado que eu conhecia tão bem fez minha garganta fechar. — Sua detetive não pode falar agora, mas, se eu fosse você, viria até aqui bem rápido... Paciência não é uma das minhas virtudes... Verônica Ouvi do meu pai durante todo o tempo que ele esteve comigo que nunca devemos menosprezar o nosso sexto sentido. Sabe aquela vozinha insistente que fala sem que a gente queira ouvir? Então, assim que viramos a esquina, sumindo no meio do trânsito de Lima, ela gritou. Eu sabia que Nicolas confiava no advogado, ou não teria me colocado no mesmo carro que ele, em direção à polícia, mas por alguma razão achei que tinha que ficar esperta. Peguei o celular no bolso e digitei “delegacia” no campo de busca do mapa. Logo os pontos apareceram e nossa localização também. Fiquei acompanhando. Uma, duas delegacias e nada de pararmos. Calma, Verônica... Deve existir uma razão... Talvez seja uma delegacia em específico... Uma sobre a qual eles tenham controle... Tentei disfarçar meu nervosismo o melhor que pude, usando minha cara de donzela traumatizada; na melhor das hipóteses, já ia fazendo um teste com o advogado, para saber se convenceria os policiais. — Falta muito para chegarmos? — Encarnei o burro do Shrek. O advogado me encarou pelo retrovisor. — Logo estaremos lá, Verônica... Imagino que esteja nervosa, mas são apenas formalidades. Não há nada que ligue você com o cartel. Esbocei um sorriso simpático e continuei olhando pela janela. Estávamos em um subúrbio, ainda na cidade de Lima, e, pelo GPS, pude ver que havia, de fato, uma delegacia próxima. — Onde o Fábio está? — perguntei depois de alguns minutos. — Irá nos encontrar na delegacia, não se preocupe. Fábio era mesmo cabeça-dura, não seria nada de mais que tivesse insistido em me acompanhar, eu o conhecia, sabia como se preocupava comigo, então fiquei calada novamente, mas lá no fundo começava a pensar em uma bela rota de fuga. Olhei o painel do carro. Portas travadas, Verônica, não é uma boa... Você vai ter que esperá-lo parar. Estacionamos em frente a uma delegacia de polícia e descemos. — Venha... Vou acompanhá-la durante todo o tempo, não se preocupe. Sorri, mas já não conseguia fingir tão bem. Alberto me deixou sentada em uma fileira de cadeiras e se aproximou da recepcionista. Voltou alguns segundos depois. — Venha, vamos esperar lá dentro. Seu amigo deve estar chegando, é bom que converse com ele antes do depoimento, Verônica... Nicolas não vai admitir erros... Nós dois nos encaramos, mas eu fui a primeira a desviar. A sensação ruim de que estava em perigo não me deixava por um único instante. Um policial nos levou até os fundos da delegacia, a uma sala com janelas de vidro. Não demorou muito e Fábio passou pela porta, acompanhado de outro policial. — Verônica, graças a Deus! — Abraçou-me apertado. — Achei que você tinha morrido! — Estou bem, Fábio... — Sorri. Ele segurou meu rosto entre as mãos, os olhos escuros focados nos meus por um segundo, como se quisesse ler a verdade em minhas palavras. Os dedos tocando os curativos suavemente. — Vou ver se o delegado está pronto, assim vocês aproveitam para conversar. — Saiu da sala. — Eu disse que você não deveria vir... — Alisou os cabelos para trás andando de um lado para o outro. — Aquele merda ali não me convence, Verônica... Pelo amor de Deus, garota, me diz em que você se meteu? Levantei-me também, tentando parecer o mais tranquila possível. — Fábio... Foi apenas um acaso, eu... Desculpe tê-lo preocupado, eu não deveria ter deixado recado... — Como não, Verônica? — levantou o tom de voz. — Se não fosse o Celso comigo, eu nem sei o que teria acontecido... — Respirou fundo, apoiando o corpo na beirada da janela. — Ainda não acredito que ele... — Cobriu o rosto com as mãos. — Ele só queria salvá-la e veja como terminou... Engoli em seco. Precisava fazê-lo entender que Celso não era o que ele pensava, mas como? Sem revelar quem era Nicolas... Apertei os olhos, sentia minha cabeça latejar ainda. — Olha... Eu sei o quanto dói perder alguém, ok? Entendo seu desespero, mas... — Desviou o olhar do meu, encarando as ripas de madeira do teto. — Verônica o que quer que seja... Se me contar... — Segurou minhas mãos. — Eu não tenho medo! Você sabe que eu compro qualquer briga! Eu... Vamos embora, hoje! Eu odeio este lugar, não confio nessas pessoas... Levei-o pela mão, colocando-o sentado ao meu lado sem soltá-lo. — O que eu posso dizer, Fábio... Algumas coisas acontecem... Nicolas é um bom homem... — Bom homem? — levantou o tom, saindo da cadeira. — Um bom homem não intimida policiais! — Coloquei-o de volta, delicadamente. Encarei seus olhos por alguns segundos e, com o indicador, fui batendo em sua palma, suavemente, contando em código Morse o que eu não poderia dizer em palavras. “Celso estava envolvido com a Yakuza. Estamos em risco. Precisamos fugir. Explico tudo depois.” Sorri, como se apenas o acariciasse. — Eu sei que você não acredita, mas eu dei bobeira... Não deveria ter saído para passear sozinha, mal conheço Cusco... Acabei confiando demais em mim mesma... — continuei minha encenação de namoradinha boba e apaixonada. Meu amigo aquiesceu sem dizer nada, os olhos varrendo o perímetro com a experiência de quem já havia passado por mais coisas do que eu. “Peça para ir ao banheiro. Eu vou logo depois e escapamos pela janela.” Concordei com o olhar e me levantei, caminhando até a porta. Ia entrar no banheiro e avisar Nicolas de que estávamos em apuros, assim ele poderia ativar o localizador do celular e me encontrar. Estava disposta a ir atrás do advogado, mas não tive tempo. Assim que cheguei ao corredor, ouvi o primeiro tiro e Alberto apareceu cambaleando em meu campo de visão. — Corre, Verônica! — gritou, dando mais alguns tiros e levando outros. Corri para dentro da sala, desesperada, mas nem precisei explicar. Fábio atirou uma cadeira na janela, estilhaçando o vidro. — Pula! — gritou. — Vamos ter que pular. Obedeci, jogando-me pela janela e rolando em um barranco. Protegi o rosto e o celular, para pelo menos poder pedir socorro depois. Fábio fez o mesmo e descemos o morro até bater contra uma parede de tijolos à mostra. Levantei-me meio zonza, estava toda ralada e suja de terra vermelha, mas viva. Apoiei-me na parede, oferecendo a mão para que Fábio se levantasse também. — Venha, precisamos sair do campo de visão. — Puxou-me pelo pulso, por entre uma construção e outra. As pessoas nos olhavam sem entender, mas ninguém nos parou. O primeiro tiro ecoou pelo meio das casas e nós continuamos correndo, sem saber direito para onde ir. Nicolas! Eu preciso falar com Nicolas! — tentei ligar, mas o telefone caiu direto na caixa de mensagens, então salvei uma. — Nico, fomos pegos! Alberto está ferido na delegacia, eu e Fábio fugimos. Não sei onde estou, ative o localizador. Desliguei sentindo o desespero confundir meu raciocínio. Não conseguia pensar friamente e odiava isso. — A igreja! — gritei, escondendo-me atrás de um muro. Fábio ergueu a sobrancelha sem entender. — Não é isso! É que Nico... — Engoli a frase no meio. — É que sei que é um lugar seguro. Peguei o telefone e apertei o botão de ligação, esperando que alguém atendesse rápido. — Preciso sumir! — gritei assim que a voz masculina atendeu. — Rápido! — Diga onde você está... — Eu não sei... Eu... — Estava nervosa, tentando encontrar algo que identificasse o local em que estávamos, mas não consegui. — Passe um endereço e eu o encontro lá! Estava com o telefone na orelha, esperando pelo endereço, quando Fábio girou o corpo para ver se tínhamos conseguido despistar os bandidos, quando ouvi o tiro e espirro de sangue que saiu do ombro do meu amigo. — Fábio! — gritei, tentando ajudá-lo. — Vai! Corre! — Empurrou-me. — Não é a mim que eles querem, Verônica! Corre! — Não! — gritei de volta. — Não vou deixar você aqui! — Anda! — gritou mais alto ainda. — Se você ficar, morremos os dois, se for, ainda temos uma chance... Eles não querem a mim. Tive um milésimo de segundo para pensar. Um daqueles instantes em que a vida inteira passa por nossa cabeça, mas, no fim das contas, Fábio tinha razão. Encarei-o mais uma vez e corri, pulando no telhado da casa de baixo e rolando pela caída das telhas, até o chão. Meu tornozelo recém- curado reclamou no mesmo instante e eu falseei o pé, caindo de joelho. Quando levantei o rosto, havia um cachorro rosnando para mim. Travei por um instante, pensando em como fugir, já que nem sabia se conseguiria andar rápido, quanto mais correr. — Pipo! — um garotinho gritou. — Aqui! — chamou o cachorro e o segurou pela coleira. Sorri agradecida, encarando seus olhinhos escuros, até que consegui me colocar em pé. A pior parte de fugir era não saber para onde. Eu sentia como se estivesse correndo em círculos, e tinha a sensação de que a cada esquina encontraria um Yakuza. Corri em frente, mancando e olhando para trás, até que cheguei a uma avenida. Sinalizei pedindo carona aos carros que passavam. Tinha que ir para longe o mais rápido que conseguisse, mas, quando o sedã preto se aproximou, tive certeza de que não conseguiria. Tentei correr, mesmo sabendo que não iria longe, mas o carro foi mais rápido, manobrando e parando em minha frente. Dois homens desceram, armas em punho e rostos cobertos por máscaras pretas. Mostrei as palmas em rendição, não havia mais o que fazer. Nicolas Ainda segurava o telefone, quando vi o aviso de mensagens de voz no alto da tela. Coloquei para ouvir, ligando o viva-voz. — Nico, fomos pegos! Alberto está ferido na delegacia, eu e Fábio fugimos. Não sei onde estou, ative o localizador. Engoli em seco. Não havia ligação perdida, então certamente ela havia tentado ligar enquanto ainda estávamos no meio da mata. Droga, Nicolas... Por alguns minutos... Soltei uma lufada de ar, aquela sensação de impotência que eu odiava tomando conta de mim. Fiz o que ela havia pedido, contando com a antena da fazenda para ter a resposta de que precisava. O sistema pensou um pouco, mas logo em seguida Cusco entrou em minha tela. Uma parte da cidade que eu conhecia bem. Corri até a garagem de Manolo e peguei a primeira chave que encontrei no quadro, apertando o controle para descobrir de qual carro era. Os faróis de uma caminhonete antiga piscaram e eu ocupei o volante, com Guille ao meu lado. — O desgraçado do Nakai está com a Verônica! — rosnei baixo. O ódio borbulhava em minhas veias tão forte que eu mal conseguia respirar. Tudo que conseguia pensar era no quanto gostaria de estourar a cabeça daquele filho de uma cadela eu mesmo, com as próprias mãos. Parei na pista, onde o avião que havíamos usado esperava, mas, assim que subi as escadas, vi o piloto caído, ainda em sua poltrona, metade do corpo para baixo, braços estendidos em direção ao chão. Empurrei-o para baixo, deixando o que restava do corpo dele bater contra o piso, e sentei-me na poltrona. — Tem certeza de que ainda lembra como se faz? — Guille perguntou, ocupando o assento ao lado. — Tenho que lembrar... — foi tudo que disse. Coloquei os fones de comunicação e liguei o painel de controle, dando a partida. Começamos a ganhar velocidade e eu puxei o manche para trás, levantando voo. Precisava me concentrar e fazer tudo com calma, ou não seria capaz de chegar até ela. O voo de Maldonado até Cusco era curto, pouco mais de cinquenta minutos, e em todos os momentos meu olhar se dividia entre o painel de controle e o localizador do celular de Verônica. Queria ter certeza de que aquele demônio não ia mudar de destino só para me atrasar mais. Aterrissei em uma pista pequena, dentro do aeroporto, mas distante dos voos comerciais. Assim que desci, um dos funcionários veio até mim. — Resolva os pormenores e entregue o avião ao dono... — instruí. — Mande a conta para o meu hotel, a secretária cuidará do pagamento. Segui em frente sem parar, até encontrar um táxi. — Veja se ainda temos reforços... — avisei meu primo. — Vamos passar em casa e pegar o que precisamos... É hoje que isso termina, Guille... De um jeito ou de outro. Guillermo ficou ao telefone desde o momento em que entramos no carro, até descermos em frente ao portão da nossa casa. Estava destrancando, quando meu celular tocou. Levei a mão até ele de imediato, esperando ouvir a voz de Nakai, mas não era ele. — Sr. Huamán? — a garota perguntou. — Desculpe incomodá-lo... Eu só queria saber se deu tudo certo com a transferência do Sr. Jose Ignacio... Senti um arrepio frio percorrer minha espinha. — Senhor? — perguntou quando eu não respondi. — Quando ele foi transferido? — Hoje pela manhã... O senhor pediu... — Fez uma pausa, como se tentasse entender. — A ligação veio de um dos seus telefones de segurança, Sr. Huamán... Não pensamos em... Estreitei os olhos. Telefone de segurança? Eu só tinha dois números registrados na clínica, meu celular pessoal e o ramal da cobertura. — Vadia filha da puta! — rosnei, esfregando o rosto com a mão. — Mesmo morta ainda consegue foder com a minha vida! — Desculpe, não compreendi... — a moça falou do outro lado. — Não se preocupe — falei antes de desligar. — O que houve? — Guille perguntou preocupado. — Aquela desgraçada da Teresa... — Soquei o portão de metal, produzindo um barulho alto. — Deve ter passado a senha de entrada da cobertura a alguém. Com a correria do sequestro, esqueci de formatar o sistema. — Puta que pariu! — xingou. — Entraram na cobertura? — Provavelmente... E pegaram o Nacho! — Aquele demônio japonês! — Bateu a mão contra o portão. — Vou arrancar o couro dele! — Como dois e dois são quatro, hermanito! — concordei. Passei para dentro do portão, direto até o escritório. O cofre onde guardávamos as armas ficava atrás da lareira falsa, então acionei o botão e esperei que a portinhola se abrisse. Peguei mais dois pentes carregados para a minha pistola e Guille fez o mesmo. — Toma... — Jogou o colete a prova de balas para mim. — Sei que não gosta, mas vista isso... Obedeci. Não era nem de longe uma situação corriqueira, era uma guerra. Uma que tinha começado muitos anos atrás e que ia terminar hoje. Quando saímos pelo portão, dois dos meus homens já estavam parados em frente, com um dos nossos carros. — Eu dirijo... — avisei, estendendo a mão para pegar a chave. — Conheço bem o local que aquele merda escolheu. Dei a partida, seguindo na direção norte por pouco mais de dois quilômetros. Era uma curta viagem, mas, quanto mais eu subia em direção a Qolqanpata, mais o filme em minha cabeça ia se tornando palpável. Eu odiava aquele lugar, nunca mais tinha voltado lá, apesar de ficar tão perto. Guillermo demorou um pouco a perceber o destino que tínhamos, mas, assim que o fez, baixou os olhos para o chão. — Acaba hoje, Guille... Vamos ter nossa vingança... — proferi sem encará-lo. Estacionei em frente ao casarão antigo. Lembranças mesclando-se ao medo e ao ódio que eu sentia. — Vocês esperam aqui, para dar cobertura... — avisei meus homens. — Guille... Você vem comigo... Encarei-o por alguns segundos. Se eu fraquejar, companheiro... — Suspirei. Não precisava falar para que ele entendesse o que eu queria dizer. Chutei a porta de entrada, tinha certeza de que a casa estaria vazia. Depois de tantos anos, não era mais do que ruínas. Os buracos no teto deixavam feixes de luz entrarem, apesar dos tapumes nas janelas. Desde o crime que acontecera naquele local, ninguém mais ousou morar ali. Caminhei para dentro da grande sala. “Oh, meu Deus, não acredito que o pegaram!” — a voz de Tia Lupe era tão audível que eu quase podia vê-la em minha frente. “Não vá, Nico! Não vá!” Eu fui, mas cheguei tarde demais. Quando o vi, já estava morto, e ela nem no Peru estava mais. Aquele tinha sido meu final e meu começo. O garoto havia morrido, e o homem, nascido. Saí para os fundos sabendo o que encontraria, sentia-me em câmera lenta, revivendo uma história que atormentou minha vida desde sempre. Verônica Acordei com a sensação de sufocamento, as mãos amarradas mais uma vez, o rosto coberto por algo que parecia ser um saco de tecido claro. Eu conseguia respirar, mas não o suficiente, então a sensação de tontura, por estar voltando do desmaio, não passava. Estava sobre uma superfície em movimento, mas não parecia ser um carro. Esperei, não havia muito que pudesse fazer. E o Fábio, será que conseguiu escapar? Baleado em um beco qualquer de subúrbio? E se não encontrar socorro? Droga, Verônica... Você veio procurar vingança pela morte da Karina e vai embora com mais um monte de corpos nas costas... Controlei a respiração melhorando minha condição, pelo que pareceu uma eternidade, até que senti o baque do chão contra algo e entendi, finalmente, onde estava. Era um avião, aterrissando em algum lugar. Braços fortes se engancharam por baixo dos meus, mas eu não podia ver quem me carregava. Segui por um trecho, até ser jogada contra algo duro, que depois entendi ser o assoalho de um carro. Quando finalmente paramos, fui carregada novamente. Tudo que eu conseguia ver eram luzes e sombras, então eu soube que entrei no carro, saí dele e depois entrei no que parecia ser uma construção. Um cativeiro talvez, o que me deixava ainda pior. Eu não era do tipo mártir, que fica implorando para morrer no lugar de alguém, mas também não era covarde, não queria servir de isca para pegar alguém com quem eu me importava tanto quanto Nicolas. Entre morrer logo de uma vez ou morrer depois de vê-lo sofrer, eu preferia a primeira opção, por ele e por mim também. Uma voz masculina disse algo em japonês, que eu não consegui decifrar, e então eu senti minhas mãos serem amarradas em torno de algo. — O desgraçado está mais morto que vivo, senhor... — alguém disse em espanhol. — Tem certeza de que precisamos amarrar? — Não me importo que morra aí mesmo, contanto que esteja vivo quando o peruano chegar! — uma voz conhecida ganhou meus ouvidos, fazendo os pelos do meu corpo eriçarem. Quem era o “quase morto”? Fábio? Guille? Mais alguém? Eu não tinha a menor ideia e não havia nada que pudesse fazer. — Hum... — alguém gemeu perto de mim. Mais algum tempo se passou. Minhas mãos doíam, as costas também, além da parte detrás da cabeça, onde provavelmente eu havia levado o golpe que me desacordou. Sabia que estava ao ar livre pelos raios de sol e pelo vento fraco que batia contra meu corpo. — O peruano desceu no aeroporto, senhor... — o homem que falava espanhol avisou. — Ótimo... Logo estará aqui então. — Quer que a gente monte guarda? — perguntou. — Não... Deixe-o entrar e ver a cena maravilhosa que preparei para ele. Meu coração se acelerou e eu voltei a sentir a vertigem ruim da falta de oxigênio. Era Nico, uma emboscada para pegá-lo e depois matar a nós dois. Maldita hora que você me salvou na montanha... Se eu tivesse morrido lá, nenhum de nós dois estaríamos passando por isso... A porra da minha garganta se fechava e eu já não sabia mais se era por falta de ar, nervoso ou vontade de chorar. Provavelmente uma mistura de tudo. Nunca tinha me sentido tão ridiculamente impotente e fraca, como naquele momento. — O que acha que está fazendo, seu desgraçado! A voz de Nicolas ressoou dentro de mim e Nakai riu. — Sabia que minha mãe era uma artista de teatro? — perguntou com aquela voz irritantemente calma que tinha. — Acho que herdei essa veia artística dela... Veja, criei um pequeno espetáculo para que você pudesse relembrar... Consegue, Nicolas? Isso tudo aqui lhe lembra alguém? O divertimento era explícito em sua voz, aquele tom sarcástico de quem tem a faca e o queijo na mão e só espera pelo momento de cortar. — O quê? Não gostou? — Suspirou ironicamente. — Uma pena que será o último espetáculo da sua vida, peruano... Eu jurei que me vingaria daquele monte de bosta que era o seu pai, mas não tive oportunidade de arrancar o mal pela raiz... Veja só... Vocês, seus macacos de merda... Se multiplicam como câncer... — Seu desgraçado filho de uma puta, não ouse falar do meu pai! — Nicolas xingou. — Ohhhhh... Temos um abutre bravo por aqui... — debochou. — Acha que consegue me intimidar? Você é fraco como ele, garoto! — gritou. — E vai acabar com a cara cheia de sangue e lama, no meio de um beco sujo, como você é! Como ele era e aquela vadia mestiça também! Nicolas Senti minha respiração se acelerar, entrecortada, movida pelo ódio que eu carregava no peito. Você é fraco como ele! Fraco, eu não podia discordar, ele realmente fora..., mas também era leal e honrado. E foi a porra da honra que o matou. Se tivesse tido coragem naquele dia e matado o filho daquele demônio, estaríamos juntos até agora, os dois. Eu podia sentir o veneno da raiva correndo em minhas veias, nublando minha visão. Guille estava ao meu lado, mas, mesmo que quisesse, não poderia ajudar. Havia três armas apontadas para nós dois e, se tentássemos algo, acabaríamos todos mortos. — Como vai ser desta vez, chico... — a voz conhecida provocou, usando o meu idioma. — Vai puxar o gatilho? Ou morrer sem fazer a escolha? Isao Nakai caminhou até um dos postes e retirou o saco da cabeça de Verônica, enquanto um de seus homens fazia o mesmo com Nacho. Meu amigo estava lá, prostrado no chão, cabeça tombada para trás e boca entreaberta. Mal parecia vivo, embora eu soubesse que estava. Aquele japonês desgraçado não dava ponto sem nó e eu sabia bem, mas, quando encarei os olhos derrotados de Verônica, aquele veneno queimou mais forte, fazendo minha pele arder. — Solte a garota, Nakai... — pedi, embora soubesse bem que não adiantaria de nada. — Ela não é uma de nós, não deveria estar aqui... — Solto... — O desgraçado esboçou um sorriso. — Você só precisa acertar a cabeça daquele ali... — Apontou em direção a Nacho. — Não é difícil, Nicolas... Você já fez isso uma vez... Lembra-se? Alisou os cabelos para trás e ajeitou os óculos. Estava se divertindo com a porra do desespero que propagava. — Desconfiar da fidelidade do seu próprio cão... Quem diria... Garanto... — Levantou o dedo em riste, sem perder a mira da cabeça de Verônica. — Que o tiro vai doer menos que traição... Você sabe... Esses cães são honestos... Nós os alimentamos e cuidamos deles, aprendem a ser leais por falta de cérebro... Tenho os meus também... Nacho podia não estar acordado, mas ouvir aquele filho da puta destratá-lo daquela maneira me fez contrair o maxilar com tanta força, que pensei que acabaria quebrando os dentes. — Ande logo, garoto... Tenho um avião esperando por mim no aeroporto e não vejo a hora de decolar de volta para a civilização... — debochou. — Quem vai ser? A garota? Atire no cão de caça e eu a deixo ir, antes de matar você e esse bastardo de merda que te acompanha... Vacilei. O dedo no gatilho tremia e eu nunca quis tanto apertá-lo, mas, se matasse Nakai, condenaria todos ao mesmo fim. Verônica, Nacho, Guille e eu, cairíamos como um castelo de cartas. Só tinha tempo para um tiro e aquela era uma decisão que eu não queria tomar. De repente, o rosto do meu pai se formou em minha frente. Eu tinha passado tanto tempo pensando que ele tomara a decisão errada. Que deveria ter matado logo um dos dois e poupado a si mesmo e meu avô, mas ali, no meio daquele circo desgraçado, armado pelo demônio, eu também não sabia o que fazer. — Vamos, Nicolas! — o demônio oriental gritou. — Ou vou perder a paciência e terminar tudo como terminei naquele dia! E foi então que o impensado aconteceu. Os capangas do Nakai caíram no chão, um depois do outro. Só percebi de onde vinham os tiros, quando homens vestidos de preto e encapuzados pularam do telhado. O japonês engatilhou a arma, pressionando contra a têmpora de Verônica. — Afastem-se ou eu atiro nela! — gritou. — Acham que vão me matar? Tudo bem, mas eu levo a vagabunda comigo! Eu já estava pronto para atirar, quando Shin apareceu vindo de trás, pela antiga praça abandonada. A pistola apontada para a cabeça de Nakai. — Desta vez, meu pai, terei que discordar... — Aproximou-se a passos lentos. — Eu aprendi que um homem de honra sempre paga suas dívidas... — a voz era baixa e segura, sem pressa ou desespero. — Hoje eu vou pagar a minha e vou te dar a oportunidade de fazer o mesmo. Os homens desarmaram a mim e a Guille. Eu não ofereci resistência, porque tinha percebido o que ele pretendia, assim que meus olhos cruzaram os dele, compartilhando uma memória dolorosa que nós dois não tínhamos opção de esquecer. Nakai o xingou em japonês, ódio reluzindo em seus olhos estreitos com tanta ferocidade que eu podia sentir de onde estava. — Seu traidor desgraçado! — resmungou. — Acha que vai se safar? Sabe o que acontece com quem trai a organização? — Sei... Porque você me ensinou bem cedo... Deu a volta mostrando a mão direita aberta, onde a falange distal do dedo anelar faltava. — E parece que apesar disso você não aprendeu nada... — Encarou o filho de frente, soltando Verônica e apontando para Shin. — Terei que cortar mais um? — perguntou sarcástico. Shin tirou a navalha de dentro da jaqueta e estendeu ao pai. — Limpe sua honra... — ofereceu, ignorando a provocação. — Ou eu mesmo faço... — Acha mesmo que eu vou me matar? — Nakai riu. — Seu gaijin desgraçado! Sua cobra peçonhenta! Eu deveria tê-lo matado quando nasceu! — Deveria..., mas não matou e aqui estamos nós... Você não vai poder corrigir o erro de ter me deixado viver, mas eu... vou honrar a morte da minha mãe e pagar minha dívida com o Nicolas... Engoli em seco, tentando acalmar o turbilhão de sentimentos dentro de mim. — Desgraçado! — Nakai vociferou. — Seu desgraçado! — O rosto vermelho e transtornado. — Eu vou acabar com você! Eu juro que volto do inferno para te esfolar vivo! — Limpe sua honra, meu pai... — Shin repetiu. Foi então que eu percebi que seus movimentos controlados, a voz mansa, nada tinham a ver com calma, ele estava se poupando. De repente, a dor que sentia ao se mover ficou tão clara que eu quis ajudar, mas, se revelasse sua fraqueza, daria munição ao demônio do pai dele. — Morra com suas dívidas pagas... Você é um Yakuza afinal... Aja como um... — Ofereceu a faca mais uma vez. Shin deu um passo atrás, a respiração mais profunda do que deveria e Nakai sorrateiramente percebeu. Tive uma fração de segundos para agir, joguei-me no chão, rezando para que conseguisse cobrir a distância com meu corpo, e peguei a pistola caída. Mirei no peito, fazendo-o cair para trás, mas não parei, atirando uma e outra vez. Espirros de sangue manchando o cimento e todos que estavam perto dele, até que a munição acabou, mas eu ainda atirei, de novo e de novo. Só parei quando Guille cobriu a arma com sua mão. — Já foi... — sussurrou. Sentei-me no chão, recuperando o controle do meu corpo. Nunca tinha sentido tanto ódio ou permitido que o impulso me governasse, mas não estava arrependido. A poça de sangue em volta do corpo do fantasma que perturbara meus pensamentos a vida toda se tornava maior a cada segundo. Guillermo correu ao encontro de Verônica e Nacho, eu sabia que ia soltá-los e cuidar de tudo, mas não conseguia me mover. Meus olhos estavam no homem a minha frente. O sentimento estampado em seu olhar era o mesmo do meu, um misto de alívio, ódio e dor. Tínhamos começado aquilo juntos e terminado da mesma maneira. Shin curvou o corpo para a frente, usando o balaústre como apoio, até que um de seus homens correu até ele, falando algo em japonês que eu não pude compreender. Ele aquiesceu e respirou fundo, caminhando até perto de mim, e eu me levantei para encará-lo. — Sei que não posso mudar o que houve duas décadas atrás..., mas... — Curvou-se na tentativa de um cumprimento formal, mãos rente ao corpo, como os japoneses faziam. — Ao menos paguei minha dívida... Aceitou o apoio de um dos homens para se levantar e seguiu em direção à porta. — Shin... — chamei e ele parou, já na soleira. — Obrigado... De novo... Sei que não somos amigos, mas se um dia precisar... sou eu quem lhe deve agora... O mestiço meneou a cabeça, mas não disse nada por algum tempo. — Se quiser pegar o Matsuya..., ele tem um contêiner saindo de Callao amanhã ao meio-dia e vai despachá-lo pessoalmente. Sinto não poder participar, peruano... Sumiu pela porta, sem olhar para trás. Verônica Esfreguei meus pulsos doloridos, sem desviar os olhos de Nicolas. Eu tinha minhas cicatrizes, minha vida também não fora fácil, mas perto dele nada do que havia vivido parecia mais tão terrível. Levantei-me com cuidado. Ainda sentia o tornozelo ruim e tinha tantos arranhões e machucados que nem sabia se havia alguma parte do meu corpo que não doesse. Nicolas virou-se para mim e esperou até que eu me aproximasse. — Desculpe por tudo isso, Verônica... Eu... Abracei-o apertado, cortando o que tentava dizer. Meu rosto afundado em seu peito, sentindo o perfume e o calor ali. Eu não queria que se desculpasse e menos ainda que se sentisse mal ou responsável pelo que eu havia vivido, desde minha chegada ao Peru. Tinha sido minha escolha, consciente, desde o primeiro momento. — Você está bem? — perguntei preocupada, segurando seu rosto entre minhas mãos. Nicolas demorou um segundo encarando meu olhar. — Você está toda machucada e ainda pergunta se eu estou bem? — Beijou minha testa, aconchegando-me em seu peito novamente. — Minha casca é grossa, detetive... Não é qualquer ponta afiada que me machuca... Sorri, mesmo sabendo que não era verdade. Seus olhos queriam mostrar firmeza, mas deixavam ver pequenos vislumbres do sentimento que ele não pretendia mostrar. Eu conhecia bem aquela tática, usava com frequência, então deixei que fizesse como preferia. Ainda estávamos na praça, nos fundos da construção, quando dois homens vestidos de preto apareceram na porta. — Cuidaremos da limpeza... — Curvou o corpo, deixando claro que era um Yakuza. Nicolas aquiesceu e ajudou Guille a carregar Nacho até o carro. Os dois acomodaram o amigo e eu me sentei com ele no banco detrás, apoiando sua cabeça para que ficasse confortável. — Cuide do funeral... — Nico falou logo depois de verificar os corpos caídos na calçada. — Vou ligar para a Tamara e pedir que faça o necessário para manter Nacho no hotel. Com Matsuya à solta, eu não confio em deixá-lo no hospital. — É o melhor... Ela consegue os aparelhos necessários... — Vou trocar todas as senhas do sistema, quando chegar nós gravamos uma nova para você. Enquanto eu os ouvia conversar, fiquei olhando para o rosto do homem em meu colo. Parecia ter pouco mais de vinte anos, o rosto estava sereno, apesar da condição em que estava. Tatuagens cobriam seu pescoço e braços, cabelos raspados, cicatrizes diversas por todo o espaço de pele visível nele. Eu sabia que Nacho não gostava muito de mim e podia entender. Alguém que vive num mundo como o dele não tem muitas opções a não ser desconfiar. — Espero que fique bom logo, garoto! Ainda quero ter a chance de ganhar sua confiança! — Esbocei um sorriso. Logo Nicolas ocupou seu lugar junto ao volante e seguimos pelo caminho até que eu reconheci o centro de Cusco. Pelo espelho retrovisor, vez ou outra, trocávamos um olhar, mas ele não disse nada e eu também não. Paramos no aeroporto de Cusco, onde o helicóptero de Nicolas já esperava por nós, e seguimos direto para o hotel. Assim que o sedã foi estacionado, uma maca apareceu na entrada particular, empurrada por uma enfermeira e um funcionário do hotel. — O Dr. Gueras já está esperando na enfermaria, Sr. Huamán... — a moça com o jaleco avisou. — A sala está toda pronta para recebê-lo. O carinho e a gentileza com que tratava Nacho deixavam claro o quanto se preocupava com ele. Eu desci logo depois que o retiraram e segui alguns passos atrás. Não queria incomodar em um momento crucial como aquele. Não acompanhei os procedimentos. A sala era pequena e eu precisava descansar um pouco, sentia o tornozelo inchando mais a cada passo. Sentei-me na beirada da floreira, no hall de entrada, e tirei a sapatilha, encarando o contorno dela marcado em meu pé. Estava arroxeado e dolorido, mas, como eu conseguia mover, tinha esperança de que fosse apenas uma luxação, como na outra vez. Estava tão distraída com meus machucados que nem percebi a aproximação. Nicolas me pegou nos braços, antes que eu conseguisse recusar. Abriu o elevador e subimos os dois. As portas se abriram dentro da cobertura e ele me colocou sentada sobre a mesa do escritório. Mãos apoiadas ao lado do meu corpo, os olhos desviando dos meus, até finalmente me encarar. — Juro para você, Verônica... Essa é a última vez que alguém a machuca por minha causa... Nem que eu tenha que acabar com toda a Yakuza... Eu juro, corazón... Juro... Puxei-o para mim tão apertado quanto pude e não parecia o suficiente. Eu queria mais, me fundir a ele. O coração cheio de sentimentos. Nunca na vida havia sentido tanto medo como naqueles malditos minutos em que Nakai nos manteve em sua mira. Eu sabia exatamente como ele se sentia, porque me sentia igual. — Acabou, Nico... Acabou... — repeti, roçando o nariz em sua pele, procurando por sua boca. O beijo ganhou intensidade rápido. Não havia outro caminho para nós que não aquele. Seus lábios moldados aos meus, suas mãos descendo pelo meu corpo, livrando-me das minhas roupas. Tirei sua jaqueta e abri os botões da camisa, deixando cair no chão. — Quero tanto você, corazón... — sussurrou contra o meu ouvido, encaixando-se entre minhas pernas. Puxei-o para mim pela cintura, separando mais as pernas, para que me penetrasse como nós dois queríamos. — Hum... — gemeu e eu também. — Essa loucura... Eu... Minha vida... não assusta você? Mordi seu pescoço, sentindo a pele se arrepiar, enquanto minhas unhas cravavam-se em suas costas nuas. — Pra caralho! — xinguei, arfando pela intensidade que ele me tomava. — Mas sabe de uma coisa, peruano... — encarei-o —, eu não mudaria nada em você! — Sorri de canto, sugando o ar entre os dentes e mordendo meu lábio. Quando o prazer tomou conta do meu corpo, joguei a cabeça para trás, apoiada nos cotovelos, e Nico segurou meu quadril, chocando contra o dele mais forte e forte, até que soltou um gemido alto, profundo, que quase me fez gozar de novo. Deixou o corpo pesar sobre o meu, apoiados na mesa, sem sair de dentro de mim. Ficamos assim por alguns minutos. Um daqueles silêncios confortáveis de quem não tem nada a dizer, só sentir. E depois de um tempo, ele se levantou. Fechou a calça e estendeu a mão. — Vem... Vamos tomar um banho e eu chamo o médico para ver o seu pé. Aquiesci, apoiando em seu braço para percorrer o espaço do escritório até o quarto. Tomei uma ducha rápida, apoiada na banheira, e vesti uma roupa limpa. Sentei-me na cama, observando enquanto ele trocava as próprias roupas. — Nico... — Respirei fundo. — Sei que você está cheio de problemas, mas... se puder descobrir o que houve com o Fábio... Ele... Eu... Nicolas ergueu uma sobrancelha para mim. — Esse tombo está me saindo pior que a encomenda, corazón... — brincou. Esbocei um sorriso preocupado, não conseguia disfarçar. — Vou ver o que descubro, não se preocupe. Não demorou muito e eu ouvi o barulho das portas do elevador se abrindo. — Aqui, doutor... — a voz grossa dele cortou o silêncio do lugar. — É a segunda vez que ela torce... Temo que tenha sido mais sério dessa vez. Passou pela porta com um homem de meia-idade ao lado dele. — Esse é o Dr. Gueras, Verônica... Ele está cuidando do Nacho e vai cuidar de você também. Sorri, aproximando o pé machucado da beirada da cama. O homem sentou-se em uma banqueta e colocou meu pé em seu colo, examinando minuciosamente. — É apenas uma entorse, não há com o que se preocupar, Verônica... Vou receitar alguns comprimidos e uma pomada para o local... Se puder usar uma bota ortopédica, seria ainda melhor para a recuperação. Pés elevados, bolsa de gelo... Acredito que em poucos dias você já estará bem... — Ótimo! Isso é ótimo, doutor... Obrigada... — Sorri mais uma vez. — Bem... — Levantou-se. — Vou deixar a receita com a Tamara... Ela providenciará tudo de que precise, mas se tiver alguma dúvida... Estarei lá embaixo com o garoto por mais algumas horas e volto amanhã pela manhã também. Nicolas levantou-se e acompanhou o médico até a saída; voltou pouco tempo depois, com um copo d’água e um comprimido. — O doutor disse que vai ajudá-la a descansar e melhorar sua dor... — ofereceu-me. Engoli, bebendo a água, entregando o copo vazio a ele, que em seguida tirou o telefone do bolso e deixou ao meu lado. — Seu amigo foi encontrado pela polícia... Está em um hospital, em Lima... Acho que deveria ligar para ele. Senti uma onda de alívio tão grande tomar conta de mim que nem sabia como retribuir. Nicolas saiu dando-me privacidade e eu digitei o número de Fábio. — Ai, graças a Deus! — falei assim que ouvi sua voz do outro lado da linha. — Lembre-me de nunca mais aceitar nenhuma operação com você... — falou sério. — Meu Deus, garota, você é a porra de um ímã para desgraças! — brincou e acabamos rindo os dois. — Como você está? — perguntei. — Vou ficar bem, não se preocupe... O tiro pegou de raspão, mas acho que terei que desistir do tênis por alguns meses... Sorri, mesmo que ele não pudesse ver. — Quando você volta ao Brasil? — Assim que tiver certeza de que você está mesmo bem e que tem certeza do que quer... — Fábio, eu... — Não sou seu pai, Verônica... Você não me deve satisfações... Nem estou aqui para julgar o que quer que seja que você escolha para a sua vida, querida... Só quero ter certeza de que você está bem, segura e que vai tentar ser feliz... Respirei fundo. — Prometo me cuidar e não me perder do que acredito... Prometo tentar ser feliz no meio desse caminho! — Ri. — Obrigada por tudo, Fábio... Por ter cuidado de mim e me ensinado tanto... Você foi um chefe exemplar e é um excelente amigo... — Devo contar isso como um pedido de demissão adiantado? — Digamos que estou precisando de alguns anos sabáticos... Fábio riu. — Então eu volto amanhã, mas espero vê-la em breve... Nem que seja para uma última rodada de bolinho de mandioca com carne seca e cerveja gelada, no boteco do Abílio. — Prometo! — Te passo o telefone novo da Vivi assim que voltar para o Brasil... Sabe que se precisar... Senti a primeira lágrima escorrer e funguei. — Cuide-se, Verônica... — Você também. Nicolas Aproveitei o tempo em que Verônica conversava com o amigo para organizar a emboscada que livraria minha gente daquela praga desgraçada que era a Yakuza. Eu não podia permitir que um merda de um estrangeiro qualquer ficasse em minha terra, intimidasse e machucasse minha gente e ainda saísse disso tudo ileso. Se queria reerguer o cartel, tinha que começar relembrando a todos da minha força. Afinal de contas, eu ainda era El Condor... O senhor da vida e da morte. Meus melhores homens estavam ou machucados, ou mortos, mas eu sabia que poderia contar com os colombianos. Cesar Martinez era um bom homem e tinha pensamentos e uma história de vida parecida com a minha. Ambos havíamos herdado o legado dos nossos pais e construído um império em cima do que era apenas sonho. Eu comandando o cartel do lado de cá do altiplano, e ele aumentando a produção e transformando um acampamento de pobres coitados na maior área de produção de matéria-prima do hemisfério. Era interessante para ambos os lados que o negócio não parasse, Martinez pensava como eu. Precisei de alguns minutos com ele ao telefone para ter uma estratégia pronta e homens para executá-la. Quando voltei para o quarto, Verônica já dormia. Sentei-me em minha poltrona e coloquei os pés na banqueta de couro. Lá fora, a noite começava a cair, fria e escura. Acendi um cigarro, soprando a fumaça para cima. Queria descansar a cabeça para o que teria que fazer na hora marcada, mas não pude. Lembranças do meu pai povoavam meus pensamentos sem que eu pudesse evitar. Passei tanto tempo suprimindo as memórias que tinha dele, e de repente lá estavam todas elas, vívidas e quase reais. O som do riso, a maneira como ajeitava a franja para trás. — É, pai... No fim das contas, manter o mestiço vivo não foi de tudo ruim... — Sorri de canto, tinha uma dívida com Shin e pagaria com prazer. Fechei os olhos em algum momento, tinha que descansar um pouco, até que chegasse a hora combinada. Quando a madrugada chegou, fechei as cortinas blecaute. Queria que Verônica dormisse bastante, de preferência, até que o serviço de limpeza terminasse. Abri o cofre, tirando um pente carregado para a pistola, e acomodei a arma na cintura, cobrindo com a jaqueta de couro. Peguei a touca preta e os óculos de visão noturna. Era hora de acabar com o problema. Desci pelo elevador e, assim que alcancei o painel de baixo, travei as portas com a minha senha. Queria ter certeza de que Verônica ficaria segura. Passei pela enfermaria, para ver como Nacho estava. Tamara havia concordado em ficar com ele no turno da noite, revezando com o médico que viria na manhã seguinte. — Como ele está? — perguntei assim que passei pela porta. — Respondendo muito bem, não se preocupe... Vamos tirá-lo dessa... — Se precisar de alguma coisa... — Eu peço, fique tranquilo... — Sorriu. Deixei-a com um aceno de cabeça e, quando passei pela entrada privativa, o carro já estava estacionado, com Guille fumando um cigarro do lado de fora. — O Cholo e o Cuna vão ficar aqui de guarda... — avisou. — Os homens do Martinez vêm conosco. Concordei tomando meu lugar no banco da frente e deixando a direção para o meu primo. Chegamos a Lima algumas horas antes de amanhecer. A cidade estava silenciosa e tranquila, como eu precisava que estivesse. Paramos no lugar combinado e, alguns minutos depois, os carros começaram a chegar, estacionando lado a lado, e os homens descendo. Cesar Martinez foi o último a descer. Era poucos centímetros mais baixo que eu, a pele mais morena, e os cabelos, lisos e grossos, raspados, como ele gostava de usar. Estendeu a mão tatuada para mim. — Pronto para a faxina, peruano? — perguntou com um riso sarcástico no rosto. — Vamos ao trabalho! — Apertei sua mão. Dividimo-nos entre os carros, três em cada um, e cada um seguiu seu caminho. Guille, Cesar e eu fomos direto à mansão do desgraçado. Eu não ia esperar até que ele saísse, ia matar aquele rato dentro do próprio ninho. A casa do Yakuza ficava em uma encosta, de frente para o mar e muito bem protegida, mas para a minha sorte a hacker que trabalhava para mim era boa em derrubar sistemas de segurança. Estacionamos antes do campo de visão dos seguranças e seguimos por trás da casa, beirando a encosta, por entre as pedras. Chegamos perto do muro e esperamos que os holofotes se apagassem. Aproveitando o susto dos homens de Matsuya, pulamos o muro, armados de armas em punho, prontos para atirar. Deixei Guille limpando o terreno e corri para dentro da casa. Conforme ia me aproximando do andar de cima, escutei gritos de mulher. Apressei o passo até a porta fechada de onde os gritos vinham. — ¡Ayúdame! — a voz, que parecia de uma garota bem jovem, gritava no meio do choro e do som de tapas e socos. Abri a porta com um pontapé, arma em punho e o dedo coçando para apertar o gatilho, mas não tive tempo. O desgraçado pulou pela janela e, mesmo que eu tenha descarregado a pistola no vazio, não tive garantia de tê-lo acertado. — Filho da puta desgraçado! — Soquei a mão no aparador com tanta força, que afundei a madeira. Só me dei conta de que a garota agonizava na cama, quando a ouvi tossir, engasgada com o próprio sangue. Segurava o pescoço, embora todo o colo já estivesse manchado de vermelho. Peguei-a nos braços e corri escada abaixo. Assim que me viu, Guille abriu a porta traseira de um dos carros. — Leve-a ao hospital mais próximo. Sem detalhes, apenas deixe na emergência e suma — instruí um dos homens do Martinez. O colombiano concordou e passou pelo portão a toda velocidade. Eu escorei no batente da porta, o gosto amargo do fracasso em minha boca. — Não era para ser... — Guille escorou ao meu lado, acendendo um cigarro e oferecendo o maço para mim. — Tudo tem uma hora certa, Nico... Você sabe disso. Não respondi, embora concordasse com a frase. Nossa hora vai chegar, seu desgraçado! Dei um trago no cigarro, soltando a fumaça para cima. — Chefe! — um dos homens gritou. — Este aqui está vivo! — Arrastou um dos seguranças do Matsuya pelos braços, até perto de mim. — Mato? — perguntou com a arma engatilhada na cabeça do mesticinho, que não devia ter mais que vinte anos. — Não! — Dei mais um trago, mexendo no garoto com a ponta da bota. — Deixe vivo para que ele possa avisar que na minha terra o rei sou eu! Verônica Acordei com aquela sensação de sonolência com que a gente fica quando toma remédio para dormir, mas não podia reclamar, precisava mesmo descansar e não conseguiria sozinha. Sentei-me na cama com cuidado, verificando até que ponto meu pé estava bom para andar e, assim que consegui caminhar com apoio até o banheiro, lavei o rosto. A cobertura estava silenciosa, então imaginei que Nicolas saíra cedo. Sentei-me na cozinha, depois de preparar uma xícara de café com ovos mexidos, e liguei a televisão. Fui zapeando pelos canais, até que parei em um jornal matinal local. As cenas de uma chacina estavam na tela. Vários corpos sendo arrastados por policiais e cobertos por saco da perícia. Sangue espalhado pelo chão, além de carros e paredes alvejados. — O milionário do ramo de transportes Seiji Matsuya continua desaparecido. Uma testemunha que não quis revelar o nome afirma que a casa foi invadida por bandidos armados e que o Sr. Matsuya talvez tenha pulado ou sido jogado em direção ao mar. Engoli em seco, absorvendo o que via na tela. — A polícia não tem pistas dos bandidos, já que todo o sistema de segurança foi danificado. O homem que sobreviveu ao ataque está hospitalizado e em condições instáveis, então a polícia espera que ainda possa contar mais sobre o caso. Mudei o canal, para outro noticiário. — Uma noite banhada a sangue na capital do país! Homens armados e encapuzados fizeram uma verdadeira matança em subúrbios e bairros de classe média da cidade, nem mesmo a mansão milionária do CEO da Matsuya-Kai escapou da chacina. — Que morra comido pelos peixes! — xinguei. Respirei fundo. Não conseguia sentir pena dos mortos, tinha sentido na pele o que aqueles demônios de olhos puxados eram capazes de fazer. Desliguei a TV e encarei o dia nascendo lá fora. A neblina deixava a montanha ainda mais mística e bonita. Levei a xícara à boca, pensando no que eu faria da minha vida, agora que Nakai e Matsuya não estavam mais por aqui. Pouco tempo depois, as portas do elevador se abriram e eu me levantei rápido, ansiosa por ver Nicolas bem. Ele parou junto à passagem para a cozinha, descartando a touca e as luvas no lixo. A jaqueta de couro estava manchada de sangue e eu tapei a boca com as mãos. — Não é meu, corazón... — avisou, abrindo o zíper e tirando pelos ombros. Encaramo-nos por alguns segundos. — Acabou? — perguntei. — Não até que eu encontre a carcaça daquele demônio velho..., mas acho que podemos descansar um pouco... — Esboçou um sorriso, abrindo os braços para mim. Atirei-me sobre ele, sentindo seu corpo apertar o meu. Era tão bom e confortável que fazia tudo valer a pena. Afundei o rosto em seu pescoço, o perfume masculino e delicioso que ele tinha ainda estava ali, apesar da noite cheia de tensão. — Gosto do seu cheiro, sabia? — Sorri, beijando seu rosto em direção à boca. — Isso é bom, corazón... Muito bom... Beijou-me devagar e foi deixando a intensidade do desejo e da paixão que sentíamos ganhar força conforme nossos corpos se encaixavam. Nicolas me pegou pela cintura, colocando sobre a mesa. Tirou minha calça, a calcinha e abriu minhas pernas. Os olhos escuros brilhando maliciosos para o que via. — Você nem chegou direito e já está pensando nisso? — brinquei, mas minha mão já estava soltando o botão da sua calça. Ele arqueou o corpo, a boca roçando em minha orelha, a respiração quente brincando em minha pele. — Lembra que eu disse que te foder me relaxa? — Mordiscou meu lóbulo. — Estou tenso, corazón... Quero relaxar... *** Alguns dias depois, meu pé já estava bem melhor, e os machucados em meu rosto não eram mais que pequenas marcas avermelhadas na pele clara. Nicolas também havia se curado do tiro e as coisas estavam tranquilas, desde a manhã daquele dia terrível. Já era fim de tarde, quando descemos para ver como Nacho estava. Nicolas bateu na porta da enfermaria e o médico que havia me atendido abriu. Não pude conter o sorriso, quando vi que Nacho estava acordado. Parecia sonolento e meio grogue, mas os olhos escuros estavam abertos para o mundo novamente. Nicolas parou ao seu lado, tocando sua mão. — Que bom que você voltou, companheiro... — Sorriu de canto. Nacho tentou sorrir também e meus olhos marejaram no mesmo instante. — Desculpe por ter sido tão tolo... Você não merecia... — Nico continuou. Nacho balançou a cabeça de leve, negativamente. — Logo ele conseguirá falar, Nicolas... — O doutor bateu em suas costas. — Por enquanto, podemos afirmar que esse garoto é mesmo duro na queda... Fiquei de longe, observando a cena, sabia bem o quanto uma amizade sincera fazia diferença na vida da gente. Eu nunca tive uma grande família, então só pude contar com amigos, além de Karina e meus avós. Estava feliz que Nicolas tivera a chance de se reconciliar com o amigo. Uma chance que o destino tirou de mim e da minha irmã, mas eu não sentia mais raiva. Tinha aprendido a entender que as coisas são como são, e não como a gente espera que sejam. Aproveitei a distração de Nicolas e saí, parando em frente às portas de vidro que davam para o jardim do hotel. Guille parou ao meu lado pouco depois. — Dia bonito! — comentou. — Com cara de despedida... — completei. — Deixar ir é importante... — Sorriu de canto, estreitando os olhos verdes. Bati a mão em seu ombro, dando um soco de leve. — Quem diria que eu iria conhecer uma tombita de quem gostasse tanto! — brincou e eu acabei rindo, mas o sorriso morreu logo. — Vou deixar a polícia, Guille... — confessei. Ainda não tinha falado aquilo em voz alta, mas ele tinha razão. Deixar ir era importante. Despedir-se, colocar um ponto-final. — Sabe que não precisa, não é? — Levantou uma sobrancelha. — Nico nunca te pediria algo assim e posso apostar que daria um jeito de fazer dar certo... — Sorriu. — Ele é um cara durão, mas está... Como vocês dizem... Arriado! Não pude segurar o riso. — E pelo que vejo ele não é o único... — Bateu a cabeça de lado na minha. — Eu sei que somos... — Girava a mão no ar, buscando pela palavra certa. — Bandidos? — Arqueei a sobrancelha. — Eu ia dizer fora da lei... Soa mais... elegante... — Ajeitou a jaqueta de couro, puxando pela lapela. — Mas bandido serve! — Piscou, mas o rosto logo assumiu um tom sério. — É um negócio, não quem somos... Pense nisso! — Esfregou as mãos em minhas costas e se foi para dentro. Continuei ali, observando a tarde bonita que começava a cair, quando Nicolas parou logo atrás de mim. Deixei o corpo pender contra o dele e ele abraçou meus ombros. — Tenho uma surpresa para você... — falou em meu ouvido, afastando-se um pouco e me oferecendo sua mão. Subi pela montanha guiada por ele, mas a cada passo sentia meu coração mais acelerado e pesado. Não tinha a ver com a altitude, mas sim com o lugar para o qual estávamos nos dirigindo. Assim que nos aproximamos do pico, eu vi o arco de mármore branco. No topo, havia uma estrela solitária, e no meio dele, uma placa. Flores cor-de-rosa haviam sido plantadas e cuidadosamente guiadas para que, com o tempo, cobrissem o arco. Soltei a mão de Nicolas e caminhei até mais perto, queria ler a placa, embora já imaginasse do que se tratava. Que seu brilho nunca se apague — li em pensamento, sentindo as lágrimas descerem. Não era boa em chorar, mas estava aprendendo bem rápido a me permitir sentir. Nicolas Cruzei as mãos na frente do corpo, sentia o coração pesado, mas não estava triste. Tinha me vingado por ela, apesar de tudo, cumprira a promessa que fizera ao encarar seu corpo sem vida. Respirei fundo, vendo Verônica chorar o luto guardado. O corpo prostrado de joelhos, arqueado em direção ao precipício. Eu sabia que aquela tristeza iria passar e que um dia sobraria apenas a saudade, mas, até lá, estava feliz em ver que ela havia parado de tentar ser forte. Dei alguns passos em frente, minhas mãos pesando sobre seus ombros. Não havia o que dizer, todas as palavras pareciam pouco para o que eu queria que ela soubesse de mim. Depois de um longo tempo, ela se levantou, abraçando-me apertado, como se precisasse de colo. Aconcheguei-a junto ao meu peito. — Obrigada por isso... — sussurrou. — Ela merecia saber que nunca vamos esquecê-la... Vimos o sol se pôr ali, abraçados no topo da montanha, no lugar onde tudo começou. Eu não era um religioso comum, do tipo que vai à igreja e se preocupa com rituais, mas naquele momento tinha certeza de que Karina estava conosco, abençoando o que nascera entre nós. Malandrinha... Bem que você dizia que não ia me deixar passar a vida toda sozinho! Sorri. A noite havia acabado de cair, quando voltamos para o hotel. Eu aproveitara que estaríamos fora, para pedir aos funcionários que organizassem tudo na varanda para nós, então, quando as portas do elevador se abriram, Verônica parou no mesmo lugar, a mão tapando a boca pelo susto. — Nico! — Sorriu. — Gostou? — perguntei, admirando a bela decoração. Velas haviam sido dispostas, em diferentes tamanhos, por toda a varanda. O céu, coberto por fios de luzes amarelas, e a mesa, decorada para um belo jantar. — Lembrei-me de que nunca tivemos um encontro decente, Srta. Malta... — Estendi a mão para ela. — Se puder me acompanhar... Eu adoraria jantar com você... O sorriso em seu rosto me fazia querer sorrir também, como se a felicidade dela se estampasse em mim. Sua mão pequena cobriu minha palma e eu a conduzi pelas portas duplas do escritório. Uma música suave tocava e o meu melhor garçom estava a nosso dispor. Puxei a cadeira e ela se sentou, sem parar de sorrir um único segundo. — Este é o vinho preferido do Sr. Huamán, senhorita... É um Syrah encorpado, embora suave... Possui aroma de frutas pretas e notas de chocolate e especiarias... — Mostrou a garrafa, antes de abrir. — Irá acompanhar muito bem o lombo de alpaca com purê de batatas... — Serviu a bebida em nossas taças. — Vou servir a entrada. Assim que ficamos sozinhos, girei o líquido na taça e aproximei do nariz, antes de beber. — Nossa, que sexy! — Verônica brincou, continuava sorrindo. — Você é incrível, sabia? — perguntou. Estendi a mão sobre a mesa, segurando a dela. — Não sou, corazón... Tenho mais falhas do que você poderá contar, mas saiba que farei o melhor para vê-la sempre sorrir assim... Nosso kapchi foi servido e ela levou a primeira garfada à boca. — Espero que goste, são pratos típicos do Peru, escolhidos por mim para compor o cardápio do hotel. — É delicioso, Nico... Você tem muito bom gosto! — Sorriu de canto. — Não me olhe presunçoso assim, ou eu nunca mais o elogio! — reclamou e eu acabei rindo mais. — Ande, pare de me olhar desse jeito e diga algo! Estou ficando sem graça... As bochechas estavam coradas, e os olhos esverdeados fugiam da intensidade dos meus. — Tia Lupe voltou para a fazenda... — contei. — E Maribel para a faculdade... Tudo está seguro novamente... Verônica sorriu. — Ah, que ótimo! Ela deve estar muito feliz! Aquiesci. — Nascemos e crescemos naquela terra... Há muito do que somos lá... — Sabe que nós podíamos passar uns dias com ela? O que você acha? Depois que voltarmos do Brasil... — Ela vai ficar feliz... — concordei. — Já marcou sua ida? Quero acompanhá-la... — Ainda não... — Suspirou. — Sabe que se não quiser... — Eu quero! — interrompeu. — Meu lugar não é mais lá, Nico... Tanta coisa mudou... Eu mudei... Acho que... depois de tudo... não quero mais lutar essa batalha... Concordei com a cabeça. — Vamos tirar umas boas férias, corazón... Podemos viajar o mundo, se quiser... Ou passar meses sem sair do quarto... Você decide... — E o cartel? — Guillermo faz um bom trabalho e logo Nacho estará de volta... Com tudo que houve, nos aproximamos mais do Martinez, ele sempre faz a retaguarda... Verônica sorriu. — Gosto de como você sempre tem o controle de tudo... — comentou e eu sorri também. Enquanto saboreávamos nosso jantar, não consegui deixar de olhá- la um momento sequer. — O que foi? — perguntou em um determinado momento, o rosto assumindo aquele tom rosado de quando ela ficava ansiosa. Levantei-me de onde estava e estendi a mão. — Vem, corazón... Quero minha sobremesa no quarto... O rosto corou um pouco mais, revelando a luxúria que ela não fazia questão de esconder de mim. Levantou-se também e sorriu de canto, passando a mão no gargalo da garrafa de vinho e levando-a consigo. Dispensei os funcionários com um aceno de cabeça e, assim que passamos para dentro da suíte, eu a pressionei contra a parede, uma mão de cada lado do seu corpo, como tinha feito na primeira vez que ela me provocou. O sorriso em seu rosto se alargou. — Não tenho uma faca comigo hoje, El Condor... — Os olhos faiscando de desejo nos meus. Desci a mão pela lateral do seu rosto, até a garganta, sentindo a pulsação forte ali. — Não precisa mais de uma para me render, senhorita... Deslizei uma alça do vestido longo que usava, depois a outra, revelando os seios pequenos e redondos, com os bicos delicados arrepiados de excitação. Verônica respirou mais fundo, como se esperasse pelo passo seguinte, mas eu mantive meus olhos nos dela por mais alguns segundos. Guiei a peça até o chão e tomei seu corpo nu em meus braços, carregando-a até a cama. Deitei-a no colchão, sem desviar o olhar. — Esta noite, corazón... Vou mostrar a você que também sei fazer amor... Quero estar dentro de você até o amanhecer... Ela engoliu em seco, enquanto eu me livrava das minhas roupas e encaixava meu corpo sobre o dela. — Calmo e tranquilo... — Afastei suas pernas, acomodando meu corpo entre elas. — Sentindo cada suspiro... Cada gemido... Beijei sua barriga, subindo devagar até o vale entre o seios, traçando o contorno com a língua. Mordisquei um dos bicos, acariciando o outro com a ponta do polegar, e ela arqueou o corpo um pouco mais, oferecendo-se a mim. — Ah... Nico... — gemeu, a boca entreaberta de desejo. Não resisti, apertando seu quadril com a mão espalmada, metendo meu pau para dentro dela de uma vez e, quando a preenchi completamente, parei. Verônica arfou, mordendo o lábio inferior. — Vai me torturar a noite toda assim? — Esboçou um sorriso atrevido, que levou um pouco do meu juízo. Movi meu corpo para trás e para a frente, sentindo meu pau ser engolido para dentro dela mais uma vez. Verônica fechou os olhos, as unhas cravadas em minha carne, enquanto eu continuava a repetir os movimentos, segurando minha própria excitação, sentindo seu canal quente e úmido se apertar contra o meu pau. Suas pernas se enlaçaram em minha bunda, aumentando a profundidade da penetração, e eu fechei os olhos. Estava quase perdendo o controle, quando os abri e encarei seus olhos esverdeados. Lembrei-me da primeira vez que a vi e do fogo que consumiu meu corpo no pequeno resvalar de mãos. Pela primeira vez em minha vida, tinha encontrado uma mulher que não me desejava apenas pelo que eu podia proporcionar. Verônica ficara ao meu lado nos piores momentos, sem nunca soltar minha mão ou correr para longe. Verônica Eram pouco mais de sete da noite, quando as luzes de São Paulo ficaram visíveis pela janela do avião. Nicolas dormia ao meu lado. Rosto sereno e respiração tranquila, já que finalmente os dias de paz haviam se sobreposto aos de guerra em nossa vida. Meus olhos estavam na janela, mas meu pensamento viajava mais rápido que o Airbus em que estávamos. Tanta coisa havia acontecido em tão pouco tempo que eu às vezes tinha dificuldade em traçar um plano de futuro. É, Ka... Acho que no fim das contas você tinha razão... — Cobri a mão de Nicolas com a minha. — Planejar demais estraga toda a diversão! — Sorri. O que será que o papai diria, Ka? Se me visse agora... — Respirei fundo. O piloto avisou sobre os procedimentos de descida e Nico se mexeu na poltrona, piscando forte e bocejando. Quando abriu os olhos, encarou meu rosto por alguns segundos. Eu nunca fui muito boa em dissimular emoções, então podia jurar que todos os meus sentimentos estavam ali, explícitos em meu rosto. — Tudo bem, corazón? — perguntou e eu aquiesci, mas não tinha esperanças de tê-lo convencido. Pousamos com um clima bom e temperatura agradável na cidade em que eu havia nascido e vivido por quase toda a minha vida. Caminhamos pelo grande corredor, cheio de passageiros, em direção à imigração. Eu ainda não entendia como Nicolas Huamán conseguia manter El Condor em segredo, mas estava feliz em poder ter uma vida normal ao lado dele, pelo menos às vezes. Pegamos nossa bagagem e, assim que chegamos à saída, o motorista contratado já esperava por nós. Passei o endereço do meu velho apartamento e seguimos pelas ruas movimentadas. Eu não podia dizer que sentia falta de casa, desde que meus avós venderam a casa em que eu havia crescido, com meus pais e Karina, nenhum outro lugar foi realmente meu lar. Para ser sincera, eu havia vivido como alguém sem raízes por tanto tempo que me sentia meio como uma folha ao vento, sendo guiada pelo destino. Tinha esperança de que um dia isso mudasse e eu pudesse chamar algum lugar no mundo de realmente meu. Girei a chave na porta e abri. Lá dentro tudo estava exatamente do mesmo jeito, como se nenhum dia tivesse passado e eu ainda fosse a policial Malta de sempre. Nicolas caminhou a passos lentos para dentro, até abrir a cortina da sacada e encarar a vista, nada atrativa, do meu pequeno apartamento de segundo andar. Caminhei por trás e o abracei. — Sei que os condores voam bem alto, mas... — Dei de ombros e mordi de leve, perto da sua omoplata. Ele se virou devagar, os olhos castanhos brilhando com aquela luxúria que sempre tinham. Lambeu o próprio lábio, bem devagar, como se estivesse pensando nas próximas palavras. — Por mim tudo bem, detetive... — Ia caminhando e me forçando a dar passos para trás, guiada por ele, até que encostei na parede. — Condores são capazes de voar baixo também, desde que a presa valha o esforço... Apoiou os braços na parede prendendo-me e aproximou o rosto do meu pescoço, sentindo o perfume. Os lábios roçando minha pele sem realmente tocarem. — Tire a roupa... — as palavras eram carregadas de autoridade, os olhos ainda faiscavam nos meus. Obedeci, descendo a blusa de alças pelos ombros e deixando o sutiã de renda branca à mostra. Depois abri o botão da calça e desci o zíper, sem deixar de encará-lo. Conforme descia o jeans, esbarrei a mão nele, sentindo a dureza da sua ereção. Meu corpo inteiro se arrepiou em antecipação. Não resisti, e assim que tirei a calça, permaneci ajoelhada ali, aos pés dele. Soltei o cinto devagar, encarando seus olhos. Nicolas enlaçou meu cabelo contra seu pulso, a boca entreaberta de desejo. Baixei a cueca e aproximei o rosto do seu pau, umedecendo meus lábios e sentindo-o ofegar em antecipação. Sorri provocativa, sabendo que Nico não era a pessoa mais paciente do mundo e, no minuto seguinte, meu cabelo foi puxado com gosto, fazendo-me soltar um gemido de dor. — Nem pense em não terminar o que começou, detetive... — avisou. — E quem disse que eu não ia... — perguntei taxativa, luxúria brilhando em meu rosto. Toquei os lábios em sua glande, correndo a língua pelo comprimento, arranhando de leve com os dentes, até que ele gemeu e eu soube que era o momento perfeito para continuar. Engoli seu pau, abrindo o fundo da garganta para acomodá-lo, e comecei os movimentos, guiada pelos comandos de Nicolas. — Ah... Corazón... Se quiser me matar, está no caminho certo... — confessou rindo, os olhos fechados e o corpo apoiado em minha mesa. — Onde, Verônica... — sussurrou entrecortado. — Onde quer que eu goze? — Na minha boca... — pedi, retornando ao que fazia. — Hum... — gemeu mais alto e eu apertei as coxas, para diminuir a necessidade que sentia dele ali, dentro de mim. O jato veio forte e eu engoli de uma vez, sugando a última gota e lambendo a glande inchada. Levantei e puxei sua boca para a minha. Queria que ele também sentisse o gosto que eu sentia. — Delicioso... — sussurrei. — Tudo de você é delicioso, amor... Nicolas separou as bocas por um segundo, a mão grande apoiando minha mandíbula. — Repete... — pediu. Levei um segundo para entender e, quando o fiz, sorri. — Meu amor? — perguntei só de provocação. — É o que você, El Condor... Suas mãos desceram até minha cintura e ele me suspendeu, até que eu enlaçasse minhas pernas ao seu redor. Seguiu pelo corredor e me colocou na cama, deitando-se sobre mim, o corpo encaixado no meu de um jeito tão perfeito e delicioso que eu às vezes custava a crer que era real. — Eu te amo, Verônica Malta... Como nunca achei que seria capaz de amar alguém... Como nunca esperei... Engoli em seco, sentindo aquela quentura boa se espalhar do meu estômago por todo o corpo. — Também amo você, Nicolas Huamán... Tanto que chega a doer aqui... — Peguei sua palma e coloquei sobre o peito, em cima do coração. Sua boca encontrou a minha e nada naquele momento podia ser melhor do que tê-lo comigo ali, no lugar em que tantas vezes pensei que ficaria sozinha para sempre. *** Assim que o dia amanheceu, deixei uma mensagem para Nicolas colada na geladeira e chamei um táxi. Queria chegar logo à delegacia, para não ter que me despedir de todo mundo. Eu odiava despedidas. — Bom dia, Verônica! — a policial que ficava no atendimento cumprimentou e eu sorri de volta, meneando a cabeça. O lugar parecia realmente vazio, nem Fábio estava por lá. Caminhei até minha mesa e comecei a encher a pequena caixa de papelão com os meus itens pessoais e lembranças que ficavam ali. Fotografias de festas e reuniões, um porta-retrato do meu pai, a suculenta que eu havia ganhado no restaurante em que almoçávamos, um cachorrinho de gesso que fora presente pelo meu primeiro caso resolvido. Uma a uma, as lembranças foram enchendo meu peito e embargando minha garganta, até que eu precisei limpá-la. Não ia chorar. Tudo na vida tem um começo e um fim, Verônica... E não é porque algo termina que deixa de ser bom... As palavras da minha mãe ecoavam em meus pensamentos, mas pareciam ainda mais fortes e verdadeiras enquanto eu separava meus dois bloquinhos novos de Post-its coloridos. Coloquei um na mesa da Vanessa e outro na mesa do Roberto. Na primeira folha escrevi: “Para se lembrarem de mim! Beijos, Verônica”. No fundo da minha gaveta, estava uma moeda antiga. Fábio e eu a usávamos no cara e coroa, sempre que precisamos decidir alguma tarefa. O que a moeda decidisse, virava lei. Sorri girando-a entre os dedos e depois caminhei até a mesa de Fábio e a coloquei com o verso para cima, já que ele sempre era a “coroa”. É, companheiro... Agora você assume... Sei que fará sempre um trabalho maravilhoso e honrado, como as pessoas de bem merecem... A primeira lágrima caiu sem que eu nem percebesse que estava chorando. Tentei limpar a segunda, mas na terceira desisti. Estava mesmo sozinha na sala, o que tinha de mais em sentir um pouco de tristeza pelo que estava deixando para trás. Peguei a caixa e segui pelos fundos, não queria sair pela porta da frente e encarar o rosto das pessoas ali. A copa estava com as luzes apagadas, mas, assim que bati a mão no interruptor, levei um susto tão grande que quase derrubo minha caixa. — Surpresa! — todos gritaram. Havia uma grande faixa pregada no armário com a frase: “Seja feliz e não olhe para trás!” em letras douradas. Era uma frase que sempre dizíamos para quem saía da polícia. Não era um trabalho fácil e, por mais amor que tivéssemos à profissão, o descanso era bem-vindo e merecido. Um a um, meus colegas foram me abraçando e desejando as melhores coisas. Nicolas havia feito um bom trabalho em apagar a sujeira armada pela Yakuza, então eu era só a Verônica, policial civil, mudando de rumo e aceitando um destino diferente. A mesa de refeições estava cheia de salgadinhos e havia também um bolo de chocolate branco com morangos. Todos começaram a comer e conversar, até que Fábio se aproximou de mim. — Venha até aqui... — chamou, indicando o caminho. — Tenho uma surpresa de aposentadoria para você! — brincou. Sorri de canto, acompanhando-o de volta até sua mesa. Ele abriu a gaveta e me entregou uma pasta. Folheei, vendo o caso do meu pai e uma série de outras folhas que eu ainda não conhecia. Eram registros telefônicos, recibos e notas. Levantei o olhar, encarando-o sem entender. — Vou reabrir o caso do seu pai... — Sorriu. — Finalmente encontrei as provas de que precisava... — Suspirou. — A justiça finalmente será feita! Abracei-o tão apertado que quase o desequilibrei. — Ah, Fábio... Nada me faria mais feliz! — confessei. — Lembra o que eu disse no seu primeiro dia? Aquiesci, sem conseguir responder. Lágrimas cheias de sentimento descendo dos meus olhos. Respirei fundo. — Não importa o tempo que demore... Enquanto eu estiver aqui... ninguém fica sem justiça! Sorri, sentindo o choro aumentar. — Obrigada, Fábio... Meu amigo me abraçou apertado. — Seja tão feliz quanto você merece e eu vou saber que fiz tudo certo! — Beijou meu rosto carinhosamente. — Agora vá, querida... Comprei aquelas coxinhas de mandioca de que você tanto gosta! — Bagunçou meu cabelo de brincadeira, como sempre fazia. — Quero só ver onde você vai encontrar mandioca em Cusco! Sabe que lá é a terra da batata, não é? — brincou. Passei o braço em sua cintura e caminhei com ele de volta para o refeitório. Talvez os finais certos tivessem mesmo o gosto doce do recomeço. Eu não estava triste, tinha decidido minha mudança por vontade própria e estava orgulhosa da minha carreira. Era hora de seguir em frente. Nicolas Logo que acordei, troquei minhas roupas e mandei uma mensagem para Verônica avisando que iria encontrá-la na saída da delegacia. Imaginava o quanto ia custar a ela encerrar aquela parte da sua vida. Esperei pelo motorista e pedi que parasse em uma floricultura. Desci e escolhi um belo buquê de flores, em tons de rosa e marsala. Voltei para o carro e seguimos até o endereço que ela havia fornecido. Fiquei parado ali na entrada, encostado no carro, até que ela aparecesse. Verônica havia sido meu porto seguro nos últimos meses, sem cobrar nada em troca, e eu queria que ela sentisse que tudo aquilo que eu havia dito na cama era mesmo verdade. Não demorou muito e ela apareceu, ao lado do ex-chefe e melhor amigo. Carregava uma pequena caixa de papelão cheia do que, provavelmente, havia sido sua vida, em muitos anos. Sorriu assim que me viu e abraçou o amigo, demorando as mãos em suas costas, como se deixá-lo custasse um pouco mais do que ela gostaria. Fábio se foi com um menear de cabeça. Não era como se fôssemos nos tornar amigos, apenas tínhamos entendido que podíamos coexistir sem que o outro estivesse em risco. — Demorei muito? — ela perguntou aproximando-se de mim. Virei-me de lado e peguei o buquê de flores pela janela aberta. — O necessário, corazón... Ciclos são difíceis de encerrar, mas eu espero que o recomeço valha a pena... — Ofereci-lhe as flores. — Ah, Nico... São lindas, obrigada! — Aproximou o rosto para cheirar. Queria parecer forte, mas eu podia ver em seu olhar o quanto o dia havia mexido com ela. Abri a porta e a sinalizei para que ela entrasse. Assim que ganhamos movimento, entrelacei nossos dedos. — O que quer fazer, Srta. Malta? Estamos a sua disposição... Alexandre e eu! — Ergui a sobrancelha em direção ao motorista. Verônica suspirou, os olhos ainda no buquê de flores. — Sei que vai parecer estranho, mas há um lugar a que eu gostaria muito de ir... Beijei sua têmpora. — Diga o endereço, e vou com você... Pouco tempo depois, paramos em frente a um muro pintado de cinza e eu não demorei a entender o que ela pretendia. Descemos os dois e seguimos lado a lado pela calçada, meu braço em torno dos seus ombros protetoramente. — Eu só estive aqui duas vezes... — confessou. — Uma quando os deixei aqui e outra quando jurei me vingar... Não respondi, entendia que era mais uma confissão para si mesma do que uma conversa comigo. Limitei-me a ampará-la pelo caminho, sentindo algumas das minhas próprias lembranças virem à tona... Aquele era o tipo de lugar em que os maiores amores, as piores dores e todas as culpas vêm à tona. Um lugar em que deixamos quem amamos para sempre, e junto delas, um pedaço de nós mesmos. Verônica parou em frente a uma lápide feita em mármore marrom e soltou um longo suspiro. “Ana e José Augusto Malta, filhos dedicados e pais amorosos” lia- se em letras pretas, ao lado de uma fotografia dos dois. Baixei os olhos, as mãos cruzadas na frente do corpo. Enquanto Verônica conversava com eles em silêncio, deixei meu pensamento vagar. Imagino que eu não seja nem de longe a escolha que o senhor faria para sua filha, Sr. Malta, mas quero que saiba que farei o que puder para mantê-la segura e fazê-la feliz... — Fiz o sinal da cruz e beijei a mão fechada, como fazia sempre que terminava uma oração. Verônica alisava a pedra fria com tanto carinho, que senti meu coração apertar e toquei seu ombro com a palma aberta, acariciando-a suavemente. Quando ela voltou o rosto para o meu, estava sorrindo e eu fiquei sem entender. — Finalmente, Nico... Finalmente vou conseguir justiça! — confessou e eu cerrei o cenho, ainda sem entender. — O Fábio... — continuou. — Ele conseguiu as provas... Vai reabrir o caso do meu pai! Abraçou-me apertado, a cabeça enterrada em meu peito. Apertei-a forte, sentindo seu coração bater junto do meu. Eu entendia tão bem aquele sentimento, que senti um pouco da sua felicidade também. Tinha feito justiça pelo meu pai, como ela iria poder fazer pelo dela. Deixamos o cemitério abraçados. O coração cheio de sentimentos e saudades, mas nem todas elas eram ruins. Voltamos para o apartamento já perto do final da tarde. Havíamos cuidado de todos os detalhes para que ela pudesse deixar o Brasil definitivamente. Verônica tomou banho e vestiu uma das minhas camisetas, chegou de mansinho, enquanto eu observava o movimento da rua, na pequena poltrona da sacada. — Vem aqui... — Bati em minha perna, esperando que ela se sentasse. — Sabe o que eu mais amo em você, Srta. Malta? — Deslizei a mão em suas pernas nuas, acariciando-as. — Minhas coxas grossas e sensuais? — brincou. — Talvez meus belos olhos esverdeados? — Coçou a boca, pensativa. — Ou seria minha habilidade em sempre te surpreender com um palavrão diferente? Ri alto. — Tenho que confessar que é um excelente repertório, mas não! — Nicolas se você disser que é minha boceta... — Levantou o dedo em riste, fazendo-me rir mais. — Sua coragem... — Deslizei o dedo em seu cabelo, brincando com uma mecha. — Sua coragem, sua força... A maneira como nunca desiste do que acredita... — Toquei meu nariz no dela, esfregando devagar. — Você é incrível, Verônica Malta... A mulher mais incrível que conheci na vida e a única que desejo ao meu lado, em todos os momentos... Ela sorriu. Um sorriso tão genuíno que me fez querer confessar o que sentia uma vez mais. As bochechas levemente coradas e os olhos brilhando de amor e desejo. Antes de conhecê-la cheguei a pensar que jamais encontraria alguém com quem pudesse dividir de fato quem era, minha vida, meus segredos, mas havia descoberto com um golpe do destino o que Tia Lupe sempre dissera. Havia alguém certo para nós, não importavam as condições ou as dificuldades, todo mundo tinha alguém que o completava. Verônica A tarde começava a cair, derramando aquela névoa densa e avermelhada sobre a cidade que eu havia aprendido a chamar de lar. Peguei minha bagagem de mão e o casaco, acomodando sobre o antebraço. O pequeno aeroporto estava lotado de turistas indo e vindo, por causa das festividades em honra a Pachamama. Minha breve ida à Colômbia havia sido um grande sucesso. Eu havia assumido algumas responsabilidades na administração dos hotéis, o que significava muito tempo fora, mas também me deixava ter a liberdade a que estava acostumada, sem grandes envolvimentos com o cartel. Segui o caminho da saída, assim que passei pela imigração. Não tinha despachado bagagem e estava ansiosa para chegar em casa e encontrar Nicolas esperando por mim. Estava tão distraída com meus próprios pensamentos, que demorei a perceber a presença do moreno alto próximo à saída. Parecia ainda mais alto com o casaco longo sobre o terno escuro. Barba aparada e cabelos penteados para trás, naquela pose de senhor do mundo que ainda me fazia perder o fôlego. Assim que me viu, baixou um pouco os óculos escuros e sorriu de canto. — Nico! — Apertei o passo, abraçando-o por dentro do casaco, e ele beijou o topo da minha cabeça. — Cusco fica triste sem você, corazón... Fiquei na ponta dos pés, os lábios procurando pelos dele, sentindo sua língua se apossar da minha. Aquela era sua maneira de dizer que havia sentido minha falta e eu retribuí, mostrando minha saudade também. — Vamos? — perguntou depois que nos beijamos. A viagem até a fazenda serviu para que colocássemos os assuntos em dia. Nicolas havia aumentado a potência dos negócios e a inauguração do novo resort de aventura em Cartagena ia de vento em popa. Ideia do Martinez, com quem vínhamos estreitando laços cada vez mais. Assim que descemos, avistando a casa e a planície em que ficava, as luzes das tochas no gramado se tornaram visíveis. — Você vai gostar da festa... Tia Lupe está ansiosa para mostrar a você um pouco mais da nossa cultura. Entrelacei nossos dedos. — Também estou interessada em aprender, afinal de contas estou namorando um descendente direto do inca, não é mesmo? — brinquei. Nico sorriu, levando nossas mãos juntas até seus lábios e beijando suavemente. Estacionamos em frente a casa e eu desci rápido, empolgada com a decoração colorida de bandeirolas e fitas. — Nico! Verônica! — Maribel gritou. — Que bom que chegaram! Madrecita parece que vai ter um treco! É sério, primo... Você nem imagina! Nicolas sorriu, beijando a bochecha da garota, mas não teve tempo para dizer nada, Guadalupe apareceu. — É que este ano temos mais ainda a agradecer, pequeñita! Meus meninos renasceram... — Bateu no rosto de Nico suavemente. — E ganhamos Verônica! — Passou o braço em torno dos meus ombros. — Achei que nenhum de vocês iria finalmente se acertar e, vejam só, ainda há esperança para o mundo! — brincou e acabamos rindo. — Vá tomar uma ducha, querida! Vocês dois ainda estão com poeira da viagem, precisam se purificar! — Bateu de leve em minhas costas. Pegamos nossas malas e seguimos para dentro da casa, rumo ao quarto de Nicolas. Assim que ele abriu a porta, o perfume de alfazema invadiu meus sentidos. Lençóis de cambraia macios e a manta de lã de alpaca eram um convite a nunca mais sair da cama. Joguei-me sobre ela. — Acho que poderia dormir aqui por uns dias seguidos — comentei. Nicolas tirou o casaco e começou a soltar a gravata. Aquele ar elegante e terrivelmente erótico que emanava dele me fez morder o lábio. — Pensando bem... Dormir não é exatamente a palavra... — É mesmo? — Atirou a camisa sobre a cama, bem ao meu lado, exibindo a tatuagem no peito. — E qual é a palavra então, detetive? Foder? Trepar? Como é mesmo que vocês dizem? Comer... Uma dessas palavras se encaixa? Abriu o cinto deixando-o pendurado na calça e soltou o botão, sem abrir o zíper. Meus olhos percorreram o caminho de pelos aparados em sua barriga, até abaixo do umbigo, perdendo-se no volume da cueca. Lambi os lábios sedenta por ele, mas resolvi dar o troco na mesma moeda. Levantei-me e comecei a abrir os botões da camisa branca. Tinha escolhido um belo conjunto de lingerie de renda, porque sabia que ele iria ver. — Primeiro... Não sou mais detetive, Sr. Huamán... Segundo... — Soltei o botão e o zíper, deixando minha calça cair aos meus pés, mostrando a calcinha. — Se quiser me comer... — Colei meu corpo no dele, as mãos escorregando pelo peito nu, até que meus dedos seguraram na beirada da cueca e eu fiquei na ponta dos pés. — Vai ter que fazer valer a pena. Nicolas me segurou pela cintura, arrastando com ele até o banheiro. Ligou o chuveiro e se livrou da minha camisa. Mordeu meu mamilo, enquanto soltava o fecho do sutiã, ainda sobre a renda, fazendo-me arfar. A lateral final da calcinha foi rasgada com tanta pressa que eu senti o golpe do tecido queimar minha pele e tinha certeza de que ficaria com um belo vergão ali. Colocou-me sentada sobre a bancada da pia e abriu minhas pernas. Não tive nem tempo de pensar, sua língua invadiu meu sexo com ferocidade e destreza. Soltei um gemido abafado, sem conseguir segurar. — Shhhhhh! Ou todos vão saber o que estamos fazendo aqui... Engoli em seco o próximo gemido, agarrada em seus cabelos, sentindo sua língua circular e chupar meu clitóris. — Ah, Nico... Que saudade eu senti de você... — confessei, mas ele não parou. — Ah... — gemi baixinho, sentindo a onda de prazer se espalhar com tanta força que nem senti quando ele me penetrou, bombeando sem parar. Cravei as unhas em suas costas, a boca em seu pescoço. A vontade de gemer alto era quase insuportável. Nicolas segurou meu queixo sem gentileza, aquele olhar de ferocidade e tesão brilhando em seu rosto bonito. — Está valendo a pena, corazón? — perguntou com a voz arrastada de prazer, respiração entrecortada e suor escorrendo na têmpora. Mordi o lábio, antes de puxá-lo para um beijo molhado e intenso. Sabia bem o quanto ele era vaidoso e orgulhoso, meu comentário não ia sair barato. Quando finalmente nos afastamos, eu mal conseguia me manter em pé, mas não conseguia tirar o sorriso do rosto. — Você é terrível, Nicolas Huamán, seu metido! — Bati com a toalha de rosto nas costas dele. — Não gostou? — perguntou presunçoso, cheio de empáfia. — É claro que gostei! Você sabe bem disso! — Ergui a sobrancelha. — Valeu a pena? — debochou e eu comecei a rir, depois ele riu também. — Anda, corazón, vamos tomar banho... Depois de seca, eu coloquei uma saia longa marrom e um suéter de lã bege-claro. A noite estava quente, mas a brisa fria do altiplano deixava aquele clima geladinho de fim de inverno. Nicolas abriu o armário, pegou uma calça de linho cru e uma camiseta branca. Eu nunca o tinha visto com a roupa toda clara daquele jeito e menos ainda com os pés descalços, então estranhei. — Sou o chefe da família, corazón, eu faço as oferendas... — Esboçou um sorriso orgulhoso. Nicolas Estendi a mão esperando que ela a cobrisse com a sua. Eu nunca havia trazido ninguém de fora para participar das festas tradicionais em minha família. Ninguém além de Nacho, que era para mim como um irmão, conhecia nossas tradições e ritos, mas com Verônica era diferente. Eu queria que ela fizesse parte da minha vida, de verdade e para sempre. Caminhamos de mãos dadas até o jardim dos fundos, onde todo o cerimonial havia sido preparado. Para nós, em nossa cultura, aquele era o dia mais importante do ano. Dia de agradecer a nossa mãe Terra, pela colheita, proteção, e pelos dias que havíamos tido a felicidade de viver sobre ela. Assim que pisei na grama, Nacho veio até mim com o xale preto de bordados coloridos na barra e jogou sobre meus ombros. Trocamos um olhar de entendimento. Daqueles que só amigos de verdade podem trocar. Guille colocou a coroa de folhas de coca em minha cabeça e eu segui em frente, até o buraco cavado no chão, onde colocaríamos o que representava nossa gratidão. Milho, batatas e folhas de coca, que haviam sido colhidos na fazenda, além de mel e chicha. Depois cobrimos com terra e flores. Quando ergui os braços em direção ao céu, agradecendo pela noite e pela luz da lua e das estrelas, todos aplaudiram e eu me virei para ver Verônica sorrindo, em um canto afastado do jardim. — Nossa... — Alargou o sorriso. — Isso foi lindo, Nico... Nunca pensei que... — Um cara como eu soubesse agradecer? — perguntei provocativo. Ela ficou sem reação, conforme eu ia me aproximando dela. — Sei agradecer, corazón... E sei pedir também... Parei em sua frente, os olhos perdidos nos dela, sem querer desviar. Estava nervoso, o coração acelerado e a boca seca, mas tentei manter minha boa pose de mafioso arrogante, só de provocação. Enfiei a mão no bolso da calça e peguei a caixinha que havia escondido ali, enquanto ela se arrumava. Abri a caixa mostrando o anel de platina e turquesa, rodeado por desenhos geométricos incas. Era único e cheio de significado, como ela era para mim. Verônica não disse nada, mas uma pequena lágrima desceu dos seus olhos, rolando pela pele clara até a bochecha. — Quero que seja minha, Verônica... — pedi. — Para sempre... Mais uma lágrima rolou e então ela estendeu a mão, para que eu deslizasse o anel em seu dedo. Quando terminei, segurou minha mão junto a sua e beijou suavemente, antes de descer até perto da cintura. Acomodou ali, minha palma contra sua barriga, e sorriu. — Eu já sou, Nico... Estamos unidos aqui... Para sempre... Levei um segundo para entender o que significava e, provavelmente, minha expressão me denunciou. Verônica sorriu e eu a apertei junto a mim novamente. A garganta fechada de emoção, sem conseguir soltar uma palavra sequer. — Te quiero, corazón... — sussurrei junto a sua orelha, acariciando sua têmpora com a ponta do nariz Os fogos de artifício estouraram e todos gritavam e dançavam ao som do huayno, mas eu nem queria me mover. Sentia como se, pela primeira vez, tudo em minha vida estivesse no lugar perfeito. Sem nenhuma rachadura, ou fresta, completo, inteiro e feliz. Fim Um pouquinho do que vem por aí...
Roterdã, algumas semanas depois...
— Acha que sou idiota? — A mulher espalha o jornal sobre a
mesa, batendo o indicador nas folhas de papel. — Que tipo de jogo doentio acha que está fazendo? Caminhando de um lado para o outro do escritório, sua postura é altiva e, apesar de estar de frente para um dos maiores chefes do crime organizado no mundo, não demonstra medo algum. Alisa os cabelos para trás e solta uma lufada de ar, tão profunda que os ombros cedem arqueando suavemente. O homem atrás da mesa encara a notícia por um segundo, depois levanta-se devagar, coçando a barba por fazer. O cigarro que descansava aceso sobre o cinzeiro deixa seu lugar para encontrar os lábios entreabertos. Um trago longo e sem pressa alguma. De repente, a mão grande e cerrada em punho encontra a madeira escura em um baque surdo, fazendo a mulher parar o caminhar. — Por que acha que eu tenho algo a ver com isso? — Estreita os olhos azul-claros, cheios de empáfia. A mulher esboça um sorriso provocador. — Não se faça de bobo, Veighe... Sei bem quem está por trás dos seus carregamentos de ópio... — Sabe muito do submundo para quem trabalha em uma organização humanitária, não acha, doutora? O homem caminha ao redor, cigarro aceso na mão e olhar incisivo. A mulher sustenta sua provocação, dentes cerrados segurando o rosnado que gostaria de dar. — Se não está mais interessado em acabar com o esquema, eu obviamente não tenho o que fazer aqui... — Ajeita a bolsa sobre o ombro, dando-lhe as costas e seguindo em direção à porta. — De que esquema exatamente estamos falando, doutora? — a voz baixa e gutural do homem silencia o som dos saltos sobre a madeira do chão. — Meus negócios? Ou os da Yakuza? A mulher não se move por alguns segundos. — Se precisa dos meus serviços, deveria ser um pouco mais dócil... Sabe que não tenho disposição para brigas desnecessárias... E deveria saber também que eu jamais me associaria a um filho da puta desgraçado como Seiji Matsuya... Se ele escapou do inferno, não foi com a minha ajuda... A mulher vira-se cautelosamente, sabe que pisa em terreno perigoso. Respira fundo, soltando o ar dos pulmões de uma vez. — Erik, eu... — Engole as desculpas que não consegue pedir. — Não ajudei o japonês a fugir do Peru... Para ser sincero, o que eu mais queria era que ele tivesse mesmo virado comida de tubarões! O homem apaga o que restava de cigarro, apertando sobre o cristal do cinzeiro. A advogada desliza as mãos da testa para os cabelos cacheados e solta mais uma vez o ar dos pulmões. — Quando vai a Singapura? — pergunta com a voz contida, oferecendo uma pequena trégua. — Amanhã ao cair da tarde... Tenho assuntos importantes a resolver antes da inauguração... — o homem explica. — Sabe que seu negócio estará no radar... — a mulher avisa. — Nunca fui de me esconder nas sombras, não pretendo começar agora..., mas se me permite dizer, doutora... Nesse tabuleiro, Nakai e Matsuya parecem mais peões do que jogadores... — E qual é o seu palpite? — pergunta preocupada. — Ainda não sei..., mas acredite... Vou descobrir!