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Copyright © 2021 Márcia Lima

Capa: Márcia Lima


Revisão: Deborah A. Ratton
Diagramação Digital: Deborah A. Ratton/Márcia Lima

Esta é uma obra de ficção. Seu intuito é entreter as pessoas. Nomes,


personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da
imaginação da autora. Qualquer semelhança com nomes, datas e
acontecimentos reais é mera coincidência.
Esta obra segue as regras da Nova Ortografia da Língua Portuguesa.
Todos os direitos reservados.
São proibidos o armazenamento e/ou a reprodução de qualquer parte desta
obra, através de quaisquer meios — tangível ou intangível — sem o
consentimento escrito da autora.
Criado no Brasil.
A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei n. 9.610/98 e
punido pelo artigo 184 do Código Penal.
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Alguns meses depois
Eu nasci pobre... E foi no meio dessa pobreza que descobri meu
verdadeiro dom.
Não torça o nariz para a minha maneira de viver a vida; quando
se nasce onde eu nasci, algumas oportunidades se tornam irresistíveis.
O dinheiro seduz, o poder vicia e, acredite, ser rico é muito melhor
do que ser pobre.
Demagogia? Não cabe em minha cobertura com vista de cinco
dígitos, nem em nenhuma parte da vida luxuosa que levo hoje.
Sou bom com uma arma na mão, um exímio atirador, mas sou
ainda melhor como voz de comando. Um estrategista por natureza, que
aprendeu a tirar vantagem dos próprios pontos fracos. Foi assim que me
tornei quem sou.
Eles mataram tudo que eu amava, tiraram meu chão e o teto sobre
minha cabeça, mas eu aprendi com os erros do meu pai e do meu avô.
Peguei o garoto franzino e medroso e transformei no nome mais
temido no Hemisfério Sul.
Sozinho, controlo boa parte da distribuição de drogas, abaixo da
linha do Equador. Sou eu quem abastece as festinhas dos filhos de políticos
e atores famosos, e você provavelmente já cruzou com um dos meus e nem
percebeu.
Não somos os peixes pequenos, que andam pelas ruas de arma na
cintura e com os narizes cheios de pó. Nesse tanque, companheiro, eu sou o
tubarão. Defendo meu território como defendo minha vida e é aqui que
tudo isso começa.
Se mexe com um dos meus, você se coloca em minha mira e, como
já expliquei, eu nunca erro um tiro. Meu nome é Nico Huamán e eu sou o
rei do cartel.
Verônica
Respirei fundo, dando mais um chute no saco de areia, e depois
outro, e outro, até que meu pé começou a arder. O suor escorria em meu
rosto, grudando os fios soltos de cabelo em minhas têmporas.
— O caso da brasileira, morta em um acidente na cidade de Aguas
Calientes, foi encerrado hoje. O investigador responsável afirmou em
coletiva de imprensa esta manhã que não foram encontrados indícios de
crime, e o corpo já foi despachado para sua cidade natal, na grande São
Paulo.
Puxei o ar com força, desferindo socos e chutes, recomeçando a
sequência.
Odiava o quanto os jornais eram manipuláveis e sentia como se
meu peito fosse explodir de raiva e ódio. Sentia-me impotente, mas
precisava me acalmar. Ela merecia isso, minha tranquilidade e meu apoio,
ainda que fosse a última coisa que eu pudesse fazer por ela.
Tirei a roupa e entrei debaixo do feixe de água fria, sentindo os
músculos quentes e doloridos começarem a se recuperar.
Quando terminei, sequei-me e vesti uma calcinha e um sutiã. Calça
jeans escura e uma camisa preta de botões de pérola da mesma cor. Penteei
os cabelos claros em um rabo de cavalo baixo. Assim que tentei enfiar o
sapato no pé, percebi o hematoma de esforço ali, manchando de vermelho
minha pele e deixando clara minha raiva.
Peguei a bolsa, enfiei o celular e a carteira dentro dela e coloquei
os óculos escuros no rosto. Dirigi sem pensar muito no que fazia, só queria
terminar as formalidades e estar livre para o próximo passo.
— Você deveria ter me chamado, Verônica... — Meu amigo
apertou o passo para me acompanhar. — Precisa parar de fingir que dá
conta sozinha... O acidente...
— Não foi acidente, Celso... — interrompi. — Karina podia ser
jovem, mas tinha formação em escalada e conhecia a região muito bem...
Ela não iria simplesmente escorregar de uma montanha...
Falei sem encarar meu amigo, estava cansada de tentar convencer a
todos que minha irmã não tinha se acidentado, ela tinha sido assassinada.
— Cuidou das formalidades? — perguntou mudando de assunto.
Aquiesci sem dizer nada. Era a segunda vez em minha vida que
tinha que cuidar de um enterro. Quando nossos pais morreram, vítimas de
um desgraçado riquinho e chapado, eu era jovem demais para ir atrás de
justiça e acabei aceitando as migalhas que o advogado caro dele nos impôs,
mas com Karina era diferente. Eu não era mais uma garota boba de
dezesseis anos, tinha aprendido a me impor e não ia aceitar menos do que a
verdade.
Caminhei pela pista de pouso vazia. Os passageiros do voo de
Cusco para São Paulo já haviam desembarcado. Um funcionário juntou-se a
nós, guiando-nos até o local em que o caixão da minha irmã estava.
Ao lado dela, dois agentes de segurança do aeroporto e meu chefe.
— O carro funerário acabou de chegar... — Fábio avisou. —
Estamos esperando apenas a sua liberação para que o corpo siga até o local
do sepultamento.
Aquiesci mais uma vez, aproximando-me da grande caixa
frigorífica de metal.
Uma comissária de bordo aproximou-se empurrando um carrinho
com algumas caixas. Dentro delas estava tudo que havia pertencido a
Karina.
— Tem certeza de que não prefere pedir uma autópsia? — Fábio
perguntou, enquanto eu assinava os papéis para o despacho da bagagem e
do corpo.
— Acha mesmo que o desgraçado ia deixar alguma pista nela? —
devolvi.
Fábio respirou fundo, soltando o ar devagar. Era um policial
experiente. Tinha cuidado de mim e me ensinado tudo que eu sabia, desde
que fui transferida para a divisão de homicídios. Podia pensar como eu, mas
jamais iria admitir, ao menos não sem provas.
— Verônica... Não cause problemas... — pediu.
Encarei-o por alguns segundos, mas mantive a boca fechada. Eu
não me importava nem um pouco de foder com a minha vida e a minha
carreira, mas não ia deixar que isso respingasse nele.
Um dos funcionários destravou a porta e um caixão preto e
dourado foi retirado de dentro.
Acompanhei com os olhos, enquanto minha irmãzinha caçula era
empurrada para dentro do furgão preto, não queria machucá-la ainda mais.
Conhecia bem a fama do desgraçado com quem ela havia se envolvido, não
era à toa que ele era conhecido como El Condor... Na cultura Inca, o
Condor era a divindade mais alta, o responsável por despachar as almas, e
ele conhecia muito bem os meios para passar despercebido.
A porta se fechou e eu cerrei as mãos em punho. Sentia os olhos
queimarem, mas nem tinha certeza se conseguiria chorar. Eu queria
vingança, crua e sem piedade. Sangue por sangue... Nada além do
merecido.
Destravei as portas do carro e acomodei as caixas em meu porta-
malas. Celso entrou comigo, mesmo que eu não o tivesse convidado.
Dirigi logo atrás do furgão da funerária, direto para o cemitério.
— Tem certeza de que quer fazer isso assim tão rápido...
Verônica... — Meu amigo respirou fundo. — Sei o quanto odeia enterros e
toda essa coisa de velório e cemitério, mas...
— Não há nada ali, Celso... Nada além de um corpo... Minha irmã
já se foi faz tempo e, quanto antes a enterrar, mais rápido ela poderá
descansar...
Karina tinha sido encontrada boiando em um pequeno braço do
Urubamba. Ficara desaparecida por mais de cinco dias, então não havia
razão para estender o funeral além do necessário. Não tínhamos parentes
próximos e os poucos amigos que ela havia deixado no Brasil, depois de
três anos longe, não iriam despedir-se dela naquela circunstância.
O policial aquiesceu. Conhecia-me bem, já que trabalhávamos
juntos havia um bom tempo.
Desci do carro e caminhei até a sala de cremação, com Celso ao
meu lado. Sentei-me em um dos bancos e esperei, até que ela entrou
empurrada por dois funcionários.
— Quero vê-la... — pedi, aproximando-me do caixão.
— Senhora... — O homem grisalho coçou a cabeça, não sabia bem
como continuar.
— Não me importo com o estado, acredite... Eu não vou me
impressionar... — Tirei o crachá do bolso e mostrei a ele.
O homem aquiesceu e depois abriu a tampa do caixão, deixando-a
ao lado da coroa de flores que o departamento de homicídios havia
mandado.
Dei mais um passo e acariciei seus cabelos carinhosamente. A
tatuagem de coração ainda estava lá, em seu pulso direito. Olhei a minha
por instinto e acabei soltando uma lufada de ar.
Vou fazê-lo pagar, Ka! Juro que vou...
Nicolas
Curvei meu corpo em direção ao sol poente, fazendo uma
reverência. Tinha envergonhado minha linhagem e falhado com ela.
O vento soprou suave, como se a garota dos cabelos cor de mel
estivesse ali. Apertei os olhos cobrindo-os dos reflexos do guarda-corpo de
vidro. Lá embaixo Cusco quase desaparecia, no meio da névoa de poeira
laranja.
— Parece que vai chover, senhor... — Nacho, meu homem de
confiança, falou, mas eu não respondi. — Estranho... Bem no meio do
verão... — comentou.
Ignorei-o. Pensamento longe, traçando os próximos passos, até que
o primeiro pingo caiu.
— Parece que até os deuses estão chorando... — constatou. —
Pobre garota...
Levantei-me alisando os cabelos para trás. Sentindo a garoa fina na
pele. O vento lá de cima balançava minha camisa e despenteava-me.
— Os deuses choram sempre que um inocente morre, Nacho...
Bati em suas costas e segui para dentro. Gostaria de estar presente
em seu funeral, mas sabia que não era sensato. Karina Malta trabalhava
para mim. Nossos verdadeiros negócios podiam não ser conhecidos, mas
era impossível que meu nome não fosse ligado ao dela de alguma maneira.
Livrei-me das roupas empoeiradas encarando minha figura no
espelho de corpo inteiro.
El Condor... O grande dono dos céus, elo entre o divino e o
profano... Descendente do grande Inca...
Corri os olhos pela tatuagem de pássaro que tomava meu peito e
ombros. Não podia deixar que o assassinato da garota ficasse impune. Em
meu território o único que tinha o direito de matar era eu.
Entrei dentro da banheira. A água morna e a hidromassagem ligada
relaxavam meu corpo, mas a cabeça continuava cheia de pensamentos.
Tinha levado um golpe e precisava me recuperar, mas como? Sem levantar
suspeitas no desgraçado do wakagashira.
A porta se abriu devagar, passos suaves pelo piso claro até que a
figura esguia parou ao lado da banheira.
— Não estou de bom humor... — avisei.
A morena de seios fartos desceu o zíper do vestido e deixou que a
peça de roupa caísse no tapete. A calcinha preta transparente teve o mesmo
destino.
— Posso ajudá-lo a relaxar, senhor... Sabe que sou boa nisso...
Peguei o maço de cigarros e acendi um, dando um trago longo e
soltando a fumaça para cima. Não respondi, então ela continuou.
Ajoelhada entre minhas pernas, acariciou meu pau, fechando os
dedos ao redor dele. Começou o movimento de fricção até que fiquei
completamente duro. Seu dedo polegar girando em círculos sobre a glande
exposta, misturando minha lubrificação com água morna da banheira.
Abaixou-se um pouco mais, segurando os seios, um em cada mão e
os apertando contra minha ereção, em um delicioso vai e vem.
Encarava-me com os olhos verdes cheios de desejo. Estava
acostumada a me servir e não era obrigada a isso.
Enfiei a mão em seus cabelos escuros, torcendo-os contra meu
punho, guiando sua cabeça para baixo. Ela obedeceu, recebendo meu pau
em sua boca, sugando e acariciando com a língua. Soltei-a para que voltasse
à superfície quando o ar lhe faltasse, mas ela continuou.
— Hum... — o gemido deixou minha boca sem que eu pudesse
evitar.
Fechei os olhos e, por um segundo, esqueci toda a merda em que
estava metido, até que meu telefone vibrou na beirada da banheira.
Estiquei a mão e reconheci o número internacional no mesmo
instante.
— Sinto muito, docinho... Nosso assunto terá que esperar... —
avisei.
A morena encarou-me desapontada.
— Se quiser continuar, eu...
Afastei com a palma e levantei-me, enrolando a toalha em minha
cintura.
— Assunto importante... Não quero distrações... — Dei um trago
no cigarro e amarrei a toalha em torno da cintura.
Encostado contra a bancada, dei mais um trago no cigarro,
prendendo a fumaça enquanto atendia a ligação.
— Recebi sua fotografia... — a voz com sotaque arrastado disse do
outro lado da linha.
— Se viu, sabe que não vou ficar em silêncio...
— Não esperava que ficasse... — Fez silêncio e eu também. —
Nossos homens, problema nosso...
— Desde que ele não se meta em meu caminho... — avisei.
— Não comece uma guerra, Huamán... Sabe bem o que houve na
última...
Eu sabia, ainda me lembrava do que senti quando o encontrei no
beco. O rosto afundado em uma poça de sangue pegajoso e escuro, mãos
amarradas para trás e pés decepados. Meu pai teve os olhos arrancados e o
corpo mutilado enquanto ainda vivia. Fora vítima da Yakuza porque ousou
se envolver com uma das escravas sexuais do filho do oyabun.
Virei a cabeça para cima, encarando o teto de gesso do meu
banheiro luxuoso.
O pequeno cartel ao qual eu pertencia tinha entrado em guerra com
a máfia japonesa quando meu pai fugiu do Japão com a garota e, mesmo
que o preço dela tenha sido pago, o da traição foi cobrado com juros e todas
as correções possíveis. Meu avô morreu assim, no meio de uma disputa que
não pôde evitar, sem honra ou justiça, como um pobre diabo.
Para ter o corpo dele de volta, oferecemos a trégua que, para nós,
tinha gosto de derrota.
Era a triste história da minha vida e também o que a ligava a Shin
Nakai. Tínhamos um começo diferente e um final parecido, sede de poder e
vingança.
— Como ela está? — perguntei depois de um longo silêncio.
— Bem...
— Conseguiu impedir o disparate daquele filho da puta do seu pai?
— xinguei em espanhol, tinha certeza de que o japonês compreendia, já que
era a língua materna da sua mãe.
— Farei no momento certo... — respondeu em seu inglês polido.
— Estamos quase sem tempo, Nakai... Ou você resolve de uma vez
ou...
— Esse não é um problema seu, Huamán... Yuki é minha irmã... —
interrompeu.
— Não, meu caro... Ela é nossa irmã!
Verônica
O avião começou a se aproximar do chão e a cidade lá embaixo foi
se mostrando devagar. Nuvens espessas e alaranjadas encobriam boa parte
do céu, como uma densa camada de poeira.
Afivelei o cinto e esperei até que o processo de aterrissagem fosse
concluído. Ninguém sabia da minha ida ao Peru. Nem mesmo Celso ou
Fábio, que eram os melhores amigos que eu tinha, se é que colegas de
trabalho contavam como amigos.
Eu sabia que, no momento em que um deles descobrisse minha
tática de passar despercebida e tentar descobrir algo, falharia.
Fábio havia me afastado do trabalho por quinze dias. Tempo que
ele julgava necessário para que eu pudesse viver meu luto em paz, trancada
no apartamento, chorando e cuidando das poucas coisas de Karina que
ainda estavam em casa, mas, definitivamente, chorar e sofrer não estavam
nos planos, o que eu queria era vingança.
Peguei minha bagagem de mão e me posicionei no corredor,
esperando pelo momento de descer, estava ansiosa para pisar naquele
maldito pedaço de terra, acelerada, pensamentos a mil, mas, assim que desci
os primeiros degraus do desembarque, senti o ar me faltar. Aquela leve
tontura que faz você puxar fundo para respirar melhor. Segurei no corrimão,
piscando algumas vezes.
Eu sempre fui atlética, mesmo antes da polícia. Gostava de me
exercitar e praticar esportes. Tinha um bom preparo físico e treinava para a
corrida de fim de ano todos os dias pela manhã, nunca achei que pudesse ter
algum problema para respirar no altiplano.
— Tudo bem, senhorita? — Um homem de meia-idade com
feições indígenas tocou minhas costas gentilmente.
Aquiesci.
— Respire devagar... — Sorriu. — Logo irá se acostumar com o
nosso ar e poderá aproveitar as férias...
Devolvi um meio sorriso, embora estivesse longe de estar em
férias.
Caminhei pelo diminuto aeroporto, a poeira laranja manchava o
piso e as paredes que em algum momento deveriam ter sido brancas.
Vendedores ambulantes, turistas e moradores caminhavam sem muita
pressa. Uma senhora com o bebê amarrado nas costas passou por mim,
cumprimentando com um aceno de cabeça. Lhamas, alpacas e tecidos
coloridos em tons vivos estavam por toda parte.
Peguei minha mala na esteira e segui até a saída.
— Precisa de um táxi, moça? — Um senhor com jaqueta de tecido
marrom acenou. — Preço bom...
Concordei com a cabeça e ele acomodou minha mala no bagageiro
de um Fiat Uno antigo. Abriu a porta e bateu no banco, levantando mais
poeira laranja e quase me fazendo desistir da viagem.
Enquanto seguíamos pelas ruas de Cusco, em direção ao local onde
eu ficaria hospedada, um pouco da vida peruana ia se mostrando para mim.
Era uma cidade cheia de desigualdades. Bairros de casebres de
barro e algumas ruas depois, o luxo dos hotéis cinco estrelas.
Nunca entendi o que havia levado minha irmã até aquele lugar.
Karina era jovem, muito bonita e desenvolta. Estava cursando o primeiro
ano de turismo e sonhava em conhecer o mundo. Suspirei sentindo a culpa
me corroer.
Por que você não veio atrás dela? Por que aceitou uma decisão
tão estúpida? — Apertei os olhos segurando o que, talvez, se tornasse uma
lágrima.
“Você não manda na minha vida, Verônica! Eu tenho vinte e um
anos, posso escolher meu destino!”
Ela podia, tinha o direito legal e moral para isso, mas não tinha a
experiência. Era imatura, deslumbrada, manipulável.
Em minha defesa? O que esperar de uma garota que ficou órfã aos
dezesseis anos, com uma irmã de treze para criar?
Éramos duas crianças brincando de viver a liberdade que todos os
adolescentes buscam. Nossos avós? Mal conseguiam cuidar de si mesmos,
velhos e doentes, deixaram que a vida nos ensinasse.
Eu cresci assim, sem direção, cansada de ter que bancar a mãe.
Talvez por isso nunca tenha tido filhos, então, quando minha irmã resolveu
sumir no mundo, eu só deixei. Preocupei-me, quis saber, investiguei, mas só
deixei. Queria um pouco de paz também, cuidar apenas de mim, nunca
imaginei que a receberia de volta dentro de um caixão.
A gente precisa arcar com as consequências das escolhas, não é?
Aquela seria uma culpa que nunca iria me deixar.
Subimos uma rua íngreme com chão de pedras irregulares e o carro
pulava tanto, que precisei segurar na alça do teto, sentia-me em cima de um
daqueles touros mecânicos em que a gente brinca nas festas de peão.
Quando paramos em frente ao prediozinho antigo, quase não acreditei.
— É aqui, senhorita... — o motorista avisou, talvez percebendo
minha incredulidade. — Já faz um tempo que eles estão em reforma, mas
não se preocupe... É seguro em caso de terremoto.
Ah, então pronto! Se é seguro para terremoto, ok! — debochei
mentalmente, enquanto meus olhos vagavam pela grade verde descascada
da entrada.
Paguei a corrida, peguei minha mala, encaixei a bolsa de mão
sobre ela e abri no anúncio do hotel, só para ter certeza de que estava
mesmo no lugar reservado.
Era lá, a Casa del Inca... Coitado do Inca, inclusive!
Puxei minha mala até a entrada e um sininho, daqueles de vento,
tocou quando abri a porta.
— Seja bem-vinda, senhorita! — Uma mulher na casa dos
cinquenta anos sorriu. Tinha grandes olhos castanhos, expressivos, e um
sorriso amistoso, confortável, mesmo sem alguns dentes. — Como posso
ajudá-la?
— Eu tenho uma reserva... — expliquei. — Verônica Malta...
Entreguei meu documento de identidade, não queria usar nada que
me ligasse à polícia, de qualquer maneira. Tinha levado minha arma apenas
por precaução, não pretendia usá-la fora de serviço.
— Aqui está... — Entregou-me um cartão de acesso. — A suíte
vinte e três é nosso melhor quarto! Vista para a cidade!
Agradeci, pegando o cartão e seguindo até o que julguei ser o
elevador, mas era apenas um armário de vassouras.
Revirei os olhos e subi os quatro lances de escadas até o segundo
andar e, quando o alcancei, parecia que tinha corrido uma maratona de
cinco quilômetros. Passei o cartão e abri.
O quarto era de tamanho razoável, chão de carpete verde-musgo e
paredes revestidas por papel florido de gosto peculiar. Deixei minha mala
sobre a cama e caminhei até as cortinas fechadas, abrindo-as.
Eu não me importava de ficar em lugares simples, estava
acostumada, já que a polícia não me pagava um salário tão incrível assim, e
tinha que concordar com a senhora da recepção de que a vista era mesmo
bonita.
O sol começava a perder força, manchando o céu em vários tons de
laranja, e as luzes do Centro lá embaixo deixavam tudo mais bucólico e
cheio de sentimento.
Estou aqui, Ka... Viu só? Você nunca me convidou para conhecer
sua casa nova, mas eu acabei vindo mesmo assim... Até que não é tão ruim!
— Sorri, mas era um sorriso triste e pesaroso.
Separei uma roupa de dormir e meu nécessaire, depois fechei a
mala. Tomei um banho demorado. Ia ficar em Cusco apenas uma noite, na
manhã seguinte seguiria de trem para Aguas Calientes.
Abri o frigobar e peguei uma garrafinha de água, despejando na
boca de uma vez. Sentia como se a poeira do lugar estivesse em minha
garganta, fechando tudo e me impedindo de respirar confortavelmente.
Liguei meu notebook, de calcinha e camiseta, sentada sobre a
colcha florida em tons de verde e bordô. Tinha separado alguns arquivos
sobre tráfico humano na América do Sul. O Peru era uma importante rota
de saída de meninas, para encher os bordéis no oriente. As mais jovens, e
preferencialmente virgens, eram levadas para porões de hotéis de luxo, em
Tóquio e Okinawa, depois de usadas à exaustão, entregues para quadrilhas
menores em Kamagasaki, de onde raramente escapavam com vida.
Não havia provas de que o cartel peruano tivesse envolvimento
com a Yakuza, mas, a julgar pela quantidade de meninas retiradas do país
por baixo dos panos, ao menos vista grossa eles faziam, e era aí que Karina
entrava. Ela havia se envolvido com o desgraçado do cabeça desse cartel, O
Condor.
Minha irmã fazia bicos como guia de turismo de aventura para
alguns dos hotéis de luxo na cidadela Inca e, provavelmente, foi assim que
conheceu o bandido. Eu não tinha ideia de como iria encontrá-lo, já que seu
rosto não era conhecido pela polícia. Não havia ficha, nem um nome real,
apenas El Condor.
Para a minha sorte, meu kit de boas-vindas do hotel incluía chá de
coca, um sanduíche de queijo e presunto com maionese. Foi o que comi,
lendo e estudando qual seria o próximo passo.
Estava tão entretida no processo, que quando o telefone tocou levei
um susto.
— Adivinha onde estou... — Fábio perguntou.
Respirei fundo, nem queria começar a conversa.
— Comprei cerveja e uma pizza... Achei que minha melhor garota
estaria precisando desabafar um pouco, mas, quando cheguei aqui, não a
encontrei... Verônica, se me disser que está no Peru...
— Estou na praia, Fábio... Não começa... Eu disse que não ia
investigar, lembra? — menti.
— Eu acreditaria, se não a conhecesse... — concluiu. —
Verônica... Por favor... — Soltou o ar dos pulmões com força. — Imagino o
quanto dói... De verdade..., mas se você fizer uma besteira vou acabar
recebendo-a de volta, como Karina... Isso é assunto grande... Se você tiver
mesmo razão, olha...
— Prometo que estarei na delegacia em quinze dias, Fábio... —
encurtei, não havia razão para insistirmos. — Agradeço a preocupação,
mesmo, mas estou de férias, não há nada que você possa fazer...
— Cuide-se! — pediu.
— Eu vou!
Desliguei o telefone e fechei o computador. Meu trem saía às seis
da manhã e eu não queria me atrasar.
Nicolas
— Chefe... — a voz de Nacho quebrou o silêncio da sala. — Ela
vai para Aguas Calientes ao amanhecer... Como o senhor imaginava...
Dei mais um trago no cigarro, soltando a fumaça para cima.
Nuvens espessas cobriam a cidade ainda escura pela madrugada. Virei-me
de frente.
— Mande preparar os voos — avisei. — Partimos em uma hora.
Troquei a calça de elástico e a camiseta pelo terno escuro. Camisa
branca de gola italiana, sem gravata. A corrente de ouro com o medalhão de
La Santa Muerte brilhando de relance em meu pescoço.
Separei o cachecol que tinha sido dado a mim por um grande
amigo artesão. Em uma das pontas, meu sobrenome havia sido tecido junto
com o padrão azul desbotado, em tons de cinza, Huamán, como meu hotel.
Sempre fazia frio no altiplano, independente da época do ano, ao
amanhecer e ao anoitecer. Um dia com quatro estações, diziam os folhetos
de turismo.
Peguei a semiautomática e acomodei na parte detrás da cintura.
Guardei os óculos escuros no bolso interno do blazer e, quando voltei à
sala, Nacho já esperava por mim com a mala.
Voamos em um jato executivo fretado de Lima até Cusco e de lá,
ainda no aeroporto, o helicóptero particular do meu hotel nos esperava, já
pronto para o voo.
Eu havia ganhado um bom pedaço de terra, no topo da velha
montanha, quase ao lado da cidadela. Aceitei como pagamento pela dívida
do filho do ex-presidente e como garantia de sua vida inútil.
Anos depois, transformei o lugar em um belo resort de aventura,
luxo exclusivo, reservado a uma pequena parcela da população que podia
pagar. Usava minha rede de hotéis para lavar dinheiro e proteger minha
imagem de jovem empresário de sucesso. Era como tinha feito para
continuar vivo, já que minha cabeça estava a prêmio havia algum tempo.
— Mande um carro com motorista para a estação de trem... —
avisei à secretária do hotel, logo que o helicóptero levantou voo.
— Achei que iríamos para o hotel, senhor... — Nacho comentou.
— Os homens...
— Quero vê-la com meus próprios olhos...
Encarava a foto da garota em meu celular. Tinha lido sua ficha
mais de uma vez. Vida nada divertida, sem namorado, poucos amigos,
nenhum parente vivo. Frequentava uma academia de luta e pedia junk food
praticamente todos os dias, mas o mais importante de tudo é que ela era
uma policial, da divisão de homicídios.
Eu a deixara sob minha mira porque sabia que Verônica não era
esperta o suficiente para se manter longe de problemas e, se ela se metesse
em confusão, atrapalharia meus planos de vingar a morte de Karina da
maneira que eu pretendia.
Verônica Malta...
Cabelos loiros, lisos e longos. Pele clara e delicada, como a da
irmã. Tinha um rosto de boneca e aquele ar de puta safada que deixa
qualquer homem duro só de olhar. O corpo pequeno e esguio enganava
qualquer um que a desafiasse. Eu havia recebido um vídeo curto de um de
seus treinos e a garota era boa de briga.
Minha curiosidade havia sido ainda mais aguçada desde o dia em
que encontrei um álbum de fotos no quarto de Karina e, depois de conhecer
um pouco mais sobre ela, eu só podia dizer que estava ansioso com o nosso
encontro.
Precisava fazê-la crer que eu não era culpado e que tinha tanto
interesse pela justiça quanto ela, mas não podia revelar quem eu era. O
Condor precisava continuar sem rosto, se eu quisesse manter o meu sem
nenhum furo de bala.
O piloto estacionou o helicóptero ao lado da estação e eu desci
assim que a porta foi aberta. Tinha alguns minutos antes que o trem
chegasse e precisava finalizar meu plano.
Entrei na estação e logo fui cumprimentado.
— Seja bem-vindo de volta, Sr. Huamán... — Uma das
funcionárias sorriu. — Precisa de algo?
— Estou esperando pelo meu motorista...
Logo que ouvi o apito, esperei em um lugar estratégico até que ela
desceu. Carregava uma mala de mão e um mapa, ar de perdida, tentando
entender onde estava e para onde ia.
Aguas Calientes era uma cidadezinha antiga e sem nenhuma
infraestrutura, procurada apenas por causa de Machu Picchu, então não era
de admirar que ela estivesse com dificuldades.
— Vai falar com ela? — meu homem de confiança perguntou. —
Quer que eu lhe ofereça carona?
— Não! — avisei. — Espere por mim no carro, eu o encontro em
breve.
Tirei o cachecol do pescoço e o joguei sobre o antebraço,
caminhando rápido em sua direção. Assim que passei por ela, esbarrei meu
ombro com força, desequilibrando-a. A garota voltou o rosto para mim,
irritada e pronta para xingar, mas, assim que eu a segurei, firme, ajudando-a
a se manter em pé, ela parou.
— Perdão... — pedi em um espanhol polido.
Seus olhos se desviaram por um segundo, direto para minha mão
grande em torno do seu braço, e então eu a soltei, deixando o cachecol cair
propositalmente.
Meneei a cabeça e virei as costas, seguindo meu caminho até sumir
no meio da multidão.
Pela janela, ainda encarei seu rosto confuso mais uma vez e vi
quando se abaixou e pegou o cachecol no chão. Olhou para os lados
procurando por mim, mas não encontrou.
— Deixou seu cachecol cair, senhor... Sei o quanto gosta dele... —
Nacho avisou. — Quer que eu o busque?
— Não!
O homem encarou-me sem entender.
— Quero que ela o entregue para mim, quando decidir me
procurar.
Verônica
O homem sumiu no meio da multidão e eu fiquei lá, com o
cachecol dele nas mãos, sem ter como entregar.
Procurei-o com os olhos por algum tempo, mas, logo que os
passageiros do trem se dispersaram e eu fiquei praticamente sozinha na
estação, desisti.
Huamán... De onde eu me lembro desse nome?
Uma rajada de vento frio bateu contra meu rosto, trazendo o
perfume masculino e marcante até minhas narinas.
Senti meu corpo todo se arrepiar.
Droga de clima dos infernos! Ontem um calor de matar, hoje um
frio de julho!
Ajeitei a bolsa nos ombros e segui pela rua de pedras. Tinha
deixado a mala maior na pousada em Cusco, sabia que não seria fácil
carregar muita bagagem pelas ruelas estreitas de Aguas Calientes.
Eu esperava que o lugar fosse precário e pobre, tinha ideia,
pesquisado um pouco antes da viagem, mas acabei me surpreendendo ainda
mais. Fora das ruas principais, feitas para turistas, a pobreza era explícita.
Esgoto escorrendo pelo meio-fio de ruas malfeitas, casebres de madeira e
alvenaria sem acabamento e crianças descalças, pedindo por “una plata”.
A pousada que eu havia reservado ficava no alto do morro, então a
subida não foi das mais agradáveis, principalmente depois que descobri
minha sensibilidade à altitude. Tive que parar mais de uma vez para tomar
fôlego.
Fiz o check-in e entrei no pequeno quarto. Havia um beliche de
madeira crua e uma mesa de cabeceira, além de um armário sem portas,
para pendurar alguma roupa. O banheiro era igualmente pequeno, com
louças marrons e revestimento florido em tons de amarelo.
Lavei o rosto na pia, passando um pouco de água no pescoço.
Tinha andado tanto que estava suando, mesmo que o clima lá fora ainda
fosse frio.
A mala estava sobre a cama, e ao lado dela, o cachecol azul.
Huamán...
Sentei-me na poltrona com o celular nas mãos, digitei a palavra no
buscador e, instantaneamente, as fotos do luxuoso hotel encheram minha
tela.
“Solar Huamán... A atmosfera Inca ao alcance dos seus olhos” —
dizia o slogan, no banner principal do site.
No mesmo instante me lembrei. Karina havia falado daquele lugar
comigo. Tinha até enviado um folder para mim por e-mail, queria que eu
viesse conhecer onde estava trabalhando. Aquela fora uma de nossas
últimas conversas. Respirei fundo. Talvez, se eu a tivesse escutado...
Não tinha como, Verônica! Você não podia concordar com o as
ideias dela! — Balançava a cabeça em negativa, tentando convencer a mim
mesma. — Uma garota de vinte e poucos anos, largando tudo para viver de
bicos? Não tinha como... Não... Você não podia... Você... — Soltei uma
lufada de ar. — Você tinha que ter dado apoio, pelo menos... Deixou-a
sozinha...
Fui rolando a tela para cima e observando as fotos e comentários.
“Hotel VIP”, dizia um deles. “O melhor em que já me hospedei. É
como voltar no tempo e ser um convidado de honra do grande Inca...”
Revirei os olhos. Um bando de riquinhos metidos, isso sim! O
valor de uma diária era quase um terço do meu salário mensal e meu salário
nem era tão ruim.
Quando cheguei ao fim da página, parei. Havia uma foto do
recebimento de um prêmio oferecido ao hotel por uma revista importante de
turismo internacional, e lá estava ele, o homem do cachecol.
Nicolas Huamán... Então era esse o nome dele... Nicolas...
Encarei o rosto sisudo com um leve ar de sorriso. Tinha as
sobrancelhas grossas, uma barba cheia bem aparada e olhava diretamente
para a lente do fotógrafo.
Engoli em seco a sensação estranha que aquele olhar me causava.
Não sabia explicar, mas meu faro de policial dizia que havia mais em
Nicolas Huamán do que ele deixava transparecer.
Não vai ser fácil, Vê... Um homem como ele não costuma ser
acessível, mas talvez esse cachecol...
Meu estômago roncou e eu decidi conferir o relógio em meu pulso.
Era quase meio-dia e tudo que eu havia comido, desde o dia anterior, era
um sanduíche e uma garrafinha de refrigerante. Estava com fome, zonza e
com uma enxaqueca infernal que eu não sabia se vinha do mal de altitude,
da fome, do cansaço, das noites sem dormir ou da culpa que eu sentia por
ter deixado minha irmã morrer.
Karina podia ser uma garota boba e sem nenhuma
responsabilidade, mas era minha obrigação protegê-la, eu tinha prometido
isso a minha mãe enquanto via o caixão sumir descendo devagar para
dentro da terra.
Peguei a bolsa transversal pequena, que usava para guardar meus
documentos e a arma. Decidi aproveitar a fome e fazer uma pequena volta
de reconhecimento pelas redondezas. Precisava descobrir algo sobre o
desgraçado do Condor. Talvez, se eu conseguisse ter minha vingança,
aplacasse um pouco da culpa que sentia.
Caminhei pelas ruas movimentadas do Centro, cheias de lojinhas
de souvenirs e meninas vestidas a caráter, puxando filhotes de alpacas e
vicunhas pelo cabresto.
Uma garota morena, com ar de cansada, passou por mim e sorriu.
Fiquei olhando, enquanto ela se sentava no degrau de uma
lanchonete e tirava algumas moedas do bolso. Olhou, olhou e depois
guardou tudo na bolsinha de lã novamente.
— Quer um refrigerante? — perguntei. — Acho que você ainda
não almoçou... Se quiser um lanche também...
Ela pensou por um segundo, como se tentasse decidir se deveria
aceitar ou não.
— Eu ainda não almocei... Estou procurando um lugar que venda
uma boa comida... Você pode ser minha guia, se quiser... E eu pago o seu
almoço... — Sorri. — O que acha?
Um segundo depois, o sorriso se alargou no rostinho dela.
— Lá! — Apontou em frente, para um restaurante todo colorido e
com mesas bem decoradas. — Os turistas dizem que a comida é muito boa!
— afirmou.
— Ah, mas eu prefiro comida local, sabe? Algo que você
realmente ache gostoso...
Eu não queria ficar onde os turistas ficavam, não era lá que
encontraria as informações de que precisava.
A menina pensou por um tempo.
— O Chacón! — Sorriu mais largo. — Eles têm o melhor rocoto
relleno do mundo!
De repente, seu rosto mudou.
— Mas não é lugar para a senhorita... É um lugar cheio de
homens... E eles não vão me deixar entrar com o Pipo... — Acariciou a
cabeça do animalzinho que carregava.
— Ah, que pena! — Sorri, colocando a mão em seu ombro. —
Mas se quiser me mostrar onde é, eu lhe dou dinheiro e você escolhe um
lugar mais legal para comer... Eu adoro comida típica, sabe? Vou amar
experimentar esse tal de rocoto!
— Tem certeza? — insistiu.
— Vou te contar um segredo... — Aproximei meu rosto do dela. —
Sou uma garota bem brava... Não tenho medo de homens! — Pisquei e ela
riu.
— Venha... — Segurou minha mão, arrastando-me pelo meio das
ruazinhas.
Saímos do ponto mais movimentado, passando por dentro de um
espaço para shows vazio, e saímos do outro lado, onde as ruas eram mais
vazias.
— Ali, naquela placa azul... — indicou o lugar. — Mas eu acho
que você deveria pedir a comida e comer lá na praça... — Sorriu mais uma
vez. — Ao meio-dia temos a troca da guarda, os turistas gostam muito!
— Ótima dica! — Enfiei a mão na bolsinha e peguei uma nota de
cinquenta soles. — Aqui... — ofereci a ela. — Você foi uma ótima guia...
Coma algo bem gostoso e divida um pouco com o Pipo! — Pisquei e ela riu
mais.
Assim que a garota virou as costas, eu segui em direção ao boteco
com a placa azul. Era um daqueles pulgueiros que eu conhecia como “pé de
porco”, bem sujo e cheio de vagabundos que se acham machos, mas era
exatamente o tipo de lugar em que eu poderia encontrar alguma informação
sobre O Condor.
Sentei-me em uma das banquetas altas, junto ao balcão.
— Uma cerveja... — pedi. — E um daqueles bolinhos... —
Apontei para o que me parecia um tomate, só que um pouco menor,
recheado de algo que eu torcia para ser carne moída.
O homem detrás do balcão mediu-me de cima a baixo e depois
limpou o vão de dentes faltantes com a língua, fazendo aquele barulhinho
nojento. Não perguntou nada, mas o jeito como parou os olhos em meu
corpo deixava clara a maneira como ele costumava tratar mulheres.
Eu tinha noção de que minha figura demonstrava mais fragilidade
do que força e nunca tinha me importado com aquilo. Desde que entrara
para a polícia, havia aprendido a usar minha aparência como trunfo, então
joguei o cabelo de lado, deslizando a mão pela nuca e pescoço, fazendo
charme sem parecer óbvia demais, usando minha melhor cara de turista
deslumbrada.
Um copo americano, daqueles em que a gente costuma tomar
pingado na padaria, foi colocado em minha frente, bem ao lado de uma
garrafa de cerveja. O bolinho de tomate chegou logo depois, com um garfo
e uma faca, que eu evitei olhar duas vezes, para não desistir de comer.
— Começou a esquentar, não é? — Sorri para o atendente. — Que
bom! Assim consigo aproveitar melhor a viagem...
O homem encarou-me por alguns segundos, mas logo desviou o
olhar para alguém atrás de mim.
— Se precisar de um guia... — Um homem baixo, de cabelos
desfiados na altura do pescoço, sentou-se ao meu lado.
Tinha traços orientais misturados a feições indígenas bem
tradicionais do povo peruano e cheirava a suor, maconha e um daqueles
perfumes baratos que lembram banheiro de rodoviária. Sorri para ele como
se estivesse interessada e cortei um pedaço do bolinho. Quando enfiei na
boca, percebi que era pimenta, e não tomate, e não pude impedir a lágrima
solitária de rolar pelo meu rosto.
O homem riu, enchendo meu copo com cerveja e oferecendo a
mim.
— Calma, querida... Isso é forte! — Alisou meu braço. — Vou te
deixar o meu contato... — Tirou um cartão de dentro do bolso da camisa
verde e colocou em minha mão. — Se quiser passear um pouco por aí, eu
conheço os melhores lugares...
Segurei a vontade de revirar os olhos, assim como segurei a
maldita pimenta recheada em meu estômago. No fim das contas, tinha sido
uma bela saída.
Nicolas
— Quando? — perguntei encarando a vista do meu escritório.
— Há uns vinte minutos... — Guille, meu primo e homem de
confiança, avisou. — Os homens viram o Chino com ela dentro do
Chacón...
Balancei a cabeça em negativa, soltando a fumaça do cigarro para
cima. O que diabos aquela garota maluca tinha ido fazer no Chacón?
Conseguir informações, obviamente... — Suspirei.
— Então eu o mando ficar de olho na garota e descubro horas
depois que ela está metida com os homens daquele desgraçado do
Matsuya... — falei calmamente, encarando Nacho pelo canto dos olhos.
— Na-não, senhor! Eu estava de olho nela o tempo todo, chefe! O
cabrón nem tentou nada, apenas deixou o cartão com ela, ele só...
— Não quero nenhum daqueles malditos cercando a brasileira... —
interrompi. — Se ela continuar procurando, vai encontrar e, se encontrar,
Nacho... Sabe bem o que vai acontecer com ela, não é? Aqueles demônios
não brincam em serviço, ainda mais depois do que houve com a outra
brasileira... Agora vá... Tome um trago e volte para a cidade... A noite vai
cair em algumas horas e não quero aquela garota estúpida bisbilhotando
pelos becos.
O homem cumprimentou com um aceno de cabeça e saiu, deixando
no escritório apenas Guille e a mim.
Ele se levantou e abriu uma das garrafas de uísque na bandeja
sobre o frigobar. Encheu dois copos e trouxe um até mim.
— Lembra-se do que o vovô dizia?
— Vovô está morto... Não foi um chefe tão bom assim, já que
morreu tentando fazer um trabalho que ficou para que eu terminasse... —
praguejei.
— Você está perdendo a mão, primo... Levando para o lado
pessoal... Sabe que esse é o começo do fim, não é?
Virei o líquido cor de âmbar de uma vez, batendo o copo na mesa
por mais.
— Vou acabar com aquele japonês filho da puta, Guille, ou eu não
me chamo Nico Huamán...
— Vai é acabar com a cara enfiada em uma vala qualquer, isso
sim...
Virei-me de frente para ele e ergui uma sobrancelha inquisidora.
— Sabe que comigo não funciona, não é? — debochou. — Eu te
conheço desde que você corria das cabras do Epifânio...
Sustentei meu semblante fechado, mas logo suavizei. Guillermo e
eu tínhamos crescido juntos, correndo pela fazenda do meu avô, nos
arredores de Cusco. Era quem me conhecia melhor no mundo e de quem eu
não ousava guardar segredo algum.
Guille, como o chamávamos desde pequeno, era alguns anos mais
jovem que eu, filho da irmã caçula do meu pai. Ninguém sabia ao certo
filho de quem ele era, porque Tia Lupe desafiara a todos para proteger o
homem que, no fim das contas, nunca a amou o suficiente para peitar Dom
Pepe Huamán, meu avô.
Encarei o homem em minha frente por alguns segundos e então ele
soltou o ar dos pulmões de uma vez.
— Acha que não quero vingá-lo? Tio Vigo foi o único pai que
conheci, Nico... Quem me ensinou a ser homem e a honrar a família acima
de tudo...
Continuei encarando-o.
— Se acontecer... — Dei mais um trago no cigarro, batendo a
ponta no cinzeiro de lápis-lazúli. — Você fica com tudo... Aquela velha
ponte, lá na fazenda... Ainda escondo o dinheiro lá, como vovô ensinou...
Você pega o que tiver e leva Tia Lupe para...
— Ela me mata junto, primo! — interrompeu-me. — Se apareço
em casa sem você... Ela mesma dá um jeito em mim, você a conhece...
Acabei rindo e Guillermo fez o mesmo, suavizando o clima.
— Só quero garantir que aquela garota enxerida não vai enfiar a
mão no vespeiro... Eu mesmo vou cuidar de tudo e a despacho para o Brasil
ainda esta semana. Quero cuidar do Matsuya com carinho... — Sorri de
canto. — E deixar o recado dado para o merda do Nakai...
— Se precisar de ajuda... — ofereceu.
— Vou precisar que cuide da distribuição enquanto eu resolvo esse
problema. Não quero que ninguém pense que o cartel está sem dono.
Meu primo aquiesceu.
— Parto para Lima ao entardecer... Não se preocupe, a mercadoria
vai seguir destino.
Depois que Guille me deixou, aproveitei para cuidar de alguns
assuntos pendentes da rede de hotéis. Tinha que continuar fazendo o lícito
funcionar, para não despertar interesse sobre o ilícito.
Eram pouco mais de quatro da tarde, quando minha secretária
interfonou.
— Sr. Huamán... Thomas Knut chegou. Ele disse que prefere
esperar pelo senhor no bar.
— Ótimo! Desço em cinco minutos.
Desliguei o computador e lavei o rosto e as mãos, ajeitando os
cabelos com os dedos.
Thomas era um blogueiro famoso. Uma celebridade no mundo do
turismo de aventura e havia escolhido meu hotel para uma série de vídeos
sobre o altiplano andino. Eu odiava bajular celebridades, mas não era idiota
e sabia que meus negócios dependiam disso em alguns momentos, então
tinha obrigação de tratá-lo bem.
Ajeitei o terno e desci pelo elevador privativo, que ia da minha
cobertura até o saguão principal.
Assim que avistei o bar, eu o vi. Sentado de costas, admirando a
parede de vidro, à beira do desfiladeiro.
— É uma bela vista... — comentou assim que eu me aproximei.
— Huayna Picchu... A montanha jovem... — expliquei. — É lá que
fica o templo da Lua...
— Foi de lá que a garota caiu?
Cerrei as mãos em punho e engoli em seco.
— A polícia acredita que sim, mas, como só encontraram o corpo
dias depois, fica difícil precisar o local da queda...
— Muita correnteza... — comentou, mas eu não respondi. — É um
prazer finalmente conhecê-lo, Nico... — Estendeu a mão.
Cumprimentei-o depois de alguns segundos. Queria deixar claro
que não ia admitir bisbilhoteiros em minhas terras, já tinha problemas
demais com a brasileira enxerida.
— Importa-se de darmos uma volta por aí? Dizem que o pôr do sol
em Machu Picchu é um dos mais bonitos do mundo... Assim você me
mostra o hotel e podemos conversar um pouco.
— Será um prazer...
Esperei até que ele se levantasse e indiquei o caminho com a mão.
O americano metido tinha razão, o pôr do sol em minha terra era
um dos mais bonitos que vi, de todos os lugares que conheci na vida. Tinha
uma magia no ar e uma imponência latente, deixada por meus ancestrais.
Eu amava aquele pedaço de terra e odiava saber que alguém o havia
maculado com o assassinato de um inocente.
Estávamos no jardim suspenso, quando um dos funcionários veio
até mim.
— Sr. Huamán... Uma moça insiste em vê-lo... Ela está com seu
cachecol e disse que é irmã da Karina...
Virei o rosto o suficiente para vê-la e para que ela me visse. Sabia
que Verônica viria até mim, mas ainda não era hora de nos encontrarmos.
— Pegue o cachecol e diga que estou ocupado... Ela pode marcar
um horário se quiser... Não hoje, provavelmente...
Continuei conversando com Thomas e a observando pela visão
periférica. Tinha que mostrar quem mandava e que ela não iria me
intimidar. Sabia bem o que pretendia, não era primeira policial com quem
eu tinha lidado.
Verônica
O filho da puta de uma figa tinha me ignorado. Deliberadamente e
sem nenhum pesar.
Cravei os olhos nele, estreitos e cheios de raiva contida. Ele
continuou conversando com o homem que eu tinha certeza de que conhecia
de algum lugar, mas não se desviou do meu olhar. Provocativo e arrogante,
levou o polegar à boca, limpando o canto e fazendo um calor latente se
espalhar por mim.
Meneou a cabeça, um riso sarcástico brilhando nos lábios grossos e
bem desenhados, depois virou as costas e seguiu pelo jardim, perdendo-se
da minha vista.
Eu não era uma garota fácil de impressionar. Podia contar nos
dedos os homens por quem tive mais do que tesão, mas tinha que concordar
que Nicolas Huamán era um homem atraente. Um filho da puta desgraçado
e, no mínimo, relapso com os funcionários, mas era gostoso para caralho e
despertava em mim uma vontade súbita de fazê-lo abaixar aquele nariz em
pé que ele tinha.
Se acha que vou desistir, bonitão de terno, está muito enganado!
Conheço bem o seu tipo e sei como lidar com idiotas metidos como você!
— Se quiser deixar o cachecol, senhorita... Eu mesma posso...
Senhorita? — a moça chamou assim que notou onde minha atenção estava.
— Não precisa... — Sorri tentando disfarçar meu deboche. —
Prefiro entregar em mãos.
A moça me olhou com aquela cara de “Uhum, sei bem o que você
prefere entregar a ele”, mas eu nem me importei. Tinha deixado de ligar
para opinião alheia muito tempo atrás, quando todos tentaram me convencer
a não me tornar policial, já que era “delicadinha demais”.
Aproveitei que o clima ainda estava agradável e decidi dar uma
pequena caminhada pelo lugar. A polícia não tinha ideia exata de onde
acontecera o acidente de Karina, mas, a julgar pelo estado do corpo, os
arredores do hotel estavam no raio de probabilidade da perícia.
Eu não confiava nem um pouco na polícia peruana. Era
despreparada, sucateada, desinteressada e comprada. Se não era fácil ser
honesta no Brasil, no Peru, bem no meio da rota de saída do tráfico sul-
americano, era quase impossível.
Tinham desistido de investigar o caso de Karina e me enfiado
goela abaixo um acidente, que não consegui engolir.
Talvez o Sr. Huamán esteja mesmo envolvido... Não seria a
primeira vez que uma garota bonita morre misteriosamente em um hotel de
luxo.
Prostituição? Karina não era viciada, tinha fumado maconha uma
ou duas vezes, mas eu também tinha e estava do outro lado dessa conta.
Peguei uma trilha e comecei a caminhar. Pensamento longe.
Gostava de pensar em movimento, sentia como se o sangue fluindo mais
rápido em meu corpo clareasse as ideias.
El Condor... Onde eu ia encontrar aquele filho da puta? E o mais
importante, como Karina, uma garota jovem e com um emprego razoável,
tinha acabado ao lado de um chefe de cartel?
O cartão do homem no bar tinha um ideograma japonês no topo,
preto e vermelho, não era um dos homens do Condor. Eu havia procurado
por boa parte da tarde qualquer coisa que me desse um norte, mas sem
sucesso algum. Era como se ninguém soubesse mais do que o nome do filho
da puta, ou soubesse e tivesse medo de falar.
Continuei seguindo pelo caminho, embora andasse cada vez mais
devagar. A vegetação era baixa, mas a tarde caía quase sem vento. Parei em
um ponto onde podia ver o rio lá embaixo, serpenteando entre as montanhas
altas, como uma linha fina. As águas escuras movendo-se sem parar.
Apoiei o corpo contra uma pedra grande, mas, no fim das contas,
acabei me sentando. Sentia meu peito apertado, aquela sensação ruim de
falta de ar, intensificada pela culpa e pela dor de estar tão perto de onde
tudo aconteceu.
Engoli em seco, pensando nos últimos momentos de Karina. Eu
conhecia um pouco do que o tráfico faz. Tinha encontrado alguns corpos,
poucos suspeitos e muita crueldade pelo meu caminho na delegacia. Nunca
entendi por que Karina acabou no meio de tudo isso.
A gente nunca entende... Ou finge não entender, porque assim dói
menos.
Filha de policial, irmã de policial, e acaba envolvida com um chefe
de cartel.
Escorreguei o pé procurando uma posição mais cômoda e acabei
empurrando algumas pedras montanha abaixo. Eu as vi rolar, batendo aqui e
ali, até se perderem no precipício.
Respirei fundo, não queria chorar. Podia contar nos dedos as
poucas lágrimas que derrubara na vida. Odiava fraquejar, admitir a derrota,
o fracasso, então ergui o olhar, mirando o sol poente. O laranja tingindo o
céu incrivelmente azul. Nunca pensei que o pôr do sol naquele lugar
pudesse ser tão impressionantemente bonito.
Quando comecei a sentir que respirava melhor, eu me levantei.
Tinha que descer até o hotel, para poder pedir um táxi, já que começava a
escurecer rápido. Dei alguns passos e a noite caiu quase que
completamente. Olhei o relógio descrente, não eram nem seis e meia da
tarde e parecia dez da noite.
Liguei a lanterna do celular e continuei o caminho, mas no escuro,
e com pressa, era bem mais difícil achar.
Comecei a sentir a cabeça zonza e o ar parecia não chegar aos
meus pulmões novamente. Garganta seca e olhos ardendo.
Nunca fui do tipo florzinha, que não sabe andar pelo mato, mas a
sensação de passos perto de mim era incômoda. Podia ser só medo do
desconhecido e um pouco de ansiedade por tudo que vinha vivendo, mas
mesmo assim parei, subitamente, e o som de passos continuou, até parar
também.
Virei o celular de frente para mim, podia ligar para o hotel e avisar
que tinha me perdido, eles eram o mais próximo de civilização que eu tinha,
mas quando verifiquei estava sem área.
Foco, Verônica... Foco... Você tem uma arma na bolsa e sabe bem
como usar...
Dei mais alguns passos calculados, buscando pelo caminho que
havia feito. Não estava tão longe, mas quando clareei pequenos olhos
brilhantes perto do chão, levei um susto tão grande que dei alguns passos
atrás e perdi o contato com o chão.
Rolei montanha abaixo, sem conseguir parar, sentindo os arranhões
dos galhos secos. Fechei os olhos e protegi o rosto, até que bati forte contra
uma estrutura de madeira.
— Ai! — gritei involuntariamente, então gemi de dor.
Forcei a vista para enxergar onde estava e se deveria tentar me
mover ou se era melhor esperar. Tinha perdido meu celular na queda e a lua
encoberta não ajudava muito.
Tateei a arma dentro da bolsa, ao menos segura eu iria ficar.
O chão parecia plano, na parte do lugar onde eu havia caído, então
tentei me sentar em uma posição melhor. Tinha machucado o tornozelo,
mas conseguia andar, então apoiei a mão em uma coluna de madeira, e
tentei içar meu corpo, mas a tontura me fez desistir.
Meus braços sangravam, o queixo doía e minhas mãos também.
Respire devagar, Verônica... Ou vai acabar desmaiando... Você
precisa conseguir, garota... Precisa...
Nicolas
— Você e o Chema procuram daqui para a esquerda e eu e o Nacho
vamos pela direita! — avisei meus homens.
Não queria contar que Verônica havia desaparecido ou acabaria
levantando suspeitas dos homens do Matsuya. Se eles descobrissem que ela
era irmã da Karina, então, talvez nem eu fosse capaz de protegê-la.
— Quando a encontrarem, levem-na até minha cobertura... Não
quero ninguém além de nós quatro sabendo disso — avisei.
Eu confiava em meus homens, mas no meu mundo a gente
aprendia a confiar com um olho aberto. Havia sempre um imbecil metido a
esperto, esperando pela oportunidade perfeita para te matar e tomar o poder.
Liguei a lanterna mais por comodidade do que por necessidade,
conhecia minha montanha muito bem.
Tínhamos percorrido uns bons metros, quando pisei em algo que
fez um estalo diferente. Abaixei-me para pegar um celular.
Assoviei chamando Nacho, que estava próximo.
— Ela deve ter escorregado aqui, veja... — Apontei para o chão
remexido em um ponto, perto da queda.
O homem aquiesceu e começou a descer, apoiando-se nos degraus
do terreno.
— A garota tem sorte, chefe... Se tivesse caído do outro lado,
estaria fazendo companhia para irmã a uma hora dessas... — o capanga
brincou, mas eu não sorri.
Por alguma razão que eu não entendia, não gostava que brincassem
com o nome dela.
Desci pela encosta da falésia usando os degraus esculpidos pelo
vento como apoio. Tinha trocado o terno por jeans e jaqueta de couro e os
sapatos por botas de escalada. Justamente por conhecer a região, não a
subestimava.
Depois de uns bons metros montanha abaixo, encontramos uma
cabana de apoio para escaladores e então algo se moveu.
— É ela, chefe... A brasileira — Nacho avisou, já que estava um
pouco à frente.
Apressei o passo e pulei o último degrau.
— Quer que chame os homens? Podemos levá-la à enfermaria... —
falava comigo já abaixado, encarando a garota desmaiada. — Parece que
ela se machucou bastante... — constatou.
Fiz sinal para que ele saísse e clareei a garota com a lanterna.
— Hum... — ela gemeu, mas ainda não tinha acordado.
A camiseta branca estava toda suja de terra, folhas e sangue.
Braços e mãos arranhados e cortados, e no rosto havia um ponto
ensanguentado, no queixo, que não me deixava ver a extensão do ferimento.
As pernas haviam sido protegidas pelo jeans, mas um dos tênis tinha se
perdido na queda, deixando à mostra o tornozelo inchado.
Levei o braço por baixo dos seus, levantando-a pelas axilas.
— Se quiser voltar para o hotel, chefe... O senhor não precisa...
— Eu cuido dela... — avisei sem encará-lo, meus olhos perdidos
na garota.
Peguei-a nos braços, encaixando-a em meu corpo para subir. E
caminhei pelo degrau natural, até a escadaria de pedras antigas. Não
consegui subir com ela pelo mesmo caminho que tinha descido.
Nacho subiu logo atrás de mim.
— Ainda acho que o senhor deveria só avisar à polícia e largar a
garota aí, chefe... Ainda mais uma policial...
Ignorei. Não tinha que me explicar.
Demorei quase uma hora para chegar com ela de volta ao topo da
montanha, onde o hotel ficava. Havia uma entrada particular, reservada para
mim, longe da vista dos turistas. Entrei por ela e caminhei pelo gramado
escuro. Antes de atingir a entrada, a garota se mexeu em meus braços.
Piscou algumas vezes, como se buscasse foco, até que encarou
meu rosto, mas não parecia me ver. Os olhos giraram nas órbitas, pairando
entre a consciência e a inconsciência.
— Quem é você? — soltou de repente.
Baixei o rosto, para que ela pudesse me ver.
— Por hoje? Seu salvador... — Sorri de canto. — Mas você não vai
se lembrar disso, corazón!
Liberei uma das mãos e forcei a palma na cartilagem do seu nariz,
empurrando para trás e para cima, fazendo-a perder a consciência
novamente.
— Quer que chame a enfermeira, chefe? — Nacho perguntou
quase entrando no elevador, mas eu o bloqueei.
— Eu assumo daqui... Mantenha os homens em ronda, alguém
pode tê-la seguido e não quero que saibam que estou com ela.
Encarou-me por um segundo, como se tentasse entender o que eu
pretendia, mas desistiu de discordar e assentiu.
Apertei o botão e esperei que chegássemos à cobertura.
Livrei-me das botas e carreguei-a até o banheiro, acomodando-a na
banheira.
Tirei os tênis e as meias sujas, depois soltei o botão da calça e a
tirei pelas pernas, deixando-a de calcinha.
Livrei-me da camiseta também e molhei a toalha de rosto na pia,
para limpar os braços e as mãos. Não podia colocá-la na cama como estava
e precisava ver se havia algum machucado mais sério, que necessitasse de
ajuda médica.
Limpei o rosto suavemente, até o arranhão profundo no queixo, e
meus olhos se detiveram em sua boca, pequena e delicada. Respirava
tranquila, o nariz levemente inchado pelo golpe que eu lhe dera.
Verônica Malta... O que diabos quer aqui? Deslizei o polegar em
seus lábios, sentindo a respiração quente contra meus dedos, o peito
subindo e descendo sem parar. Deixe-me dizer uma coisa, Verônica... A
vingança é uma merda... Acredite, eu sei bem...
Quando terminei de limpá-la, eu a vesti com uma camiseta limpa e
levei até a cama. O tornozelo estava inchado e levemente arroxeado, então
peguei uma bolsa de gelo e apoiei debaixo dele, para conter o inchaço e a
inflamação.
Apertei o botão do controle, baixando um pouco as cortinas finas, e
acendi a lareira a gás. Quando voltei os olhos para minha cama, não resisti,
aproximando-me um pouco mais.
Quando foi que uma garota dormiu em sua cama, Nico? Suspirei.
Acho que nunca.
Cresci tendo a mulher que quisesse aos meus pés. Tinha dinheiro,
má fama, uma arma na cintura e, acredite, as mulheres se excitam com o
perigo, mas nenhuma delas tinha atravessado a barreira que eu mesmo
havia imposto, desde a morte do meu pai. Quando o vi naquela merda de
sarjeta, ensanguentado e acabado por causa de uma boceta, jurei que nunca
faria o mesmo.
Caminhei pelo espaço, até onde havia deixado a bolsa de couro que
ela carregava. Lá dentro havia uma carteira com documentos pessoais,
cartões e um pouco de dinheiro, brasileiro e peruano. Meu cachecol e uma
semiautomática com a numeração intacta e carregada. Provavelmente, era a
arma de serviço dela.
Guardei o cachecol no armário, junto com os outros. A carteira
enfiei no bolso e tirei a munição da pistola, antes de guardá-la no cofre. Não
ia correr o risco de ter uma garota armada em meu quarto.
Virei as costas, observando-a mais um pouco. Corpo esguio, pernas
e braços magros mas musculosos. Tinha pés delicados e uma pequena
tatuagem de flor, que subia em direção ao tornozelo. Se eu não soubesse
quem era, diria que parecia uma boneca. Rosto jovem, aparentando menos
idade do que tinha, corpo delicado, seios pequenos.
Puxei o cobertor para cima, não queria que sentisse frio, mas no
caminho resvalei os dedos em sua pele macia. Deveria ter parado, era o
correto, mas não fiz. Tateando suas curvas com a ponta dos dedos, até que
ela gemeu. De dor, certamente, mas meu pau não sabia disso e resolveu
acordar.
Respirei fundo, alisando os cabelos para trás.
Nem é tão bonita assim, Nico! Você tem garotas melhores e menos
problemáticas prontinhas para cair de boca no seu pau! Não seja idiota!
Deixei-a no quarto e caminhei até a mesa do escritório. Acendi a
luminária de mesa e coloquei o telefone quebrado sobre ela. Peguei meu
próprio telefone e procurei pelo número de que precisava. A garota do outro
lado da linha atendeu depois de dois toques.
— Preciso que desbloqueie um telefone para mim.
— Consegue plugá-lo na rede? — perguntou.
— Sim.
— Ótimo! Dê-me meia hora.
Levantei-me, enchi um copo com bebida e parei em frente às
grandes janelas de vidro, os olhos perdidos no cume da Montanha Jovem. A
noite seria longa e eu não pretendia dormir até ter certeza de que Verônica
Malta realmente não oferecia perigo para mim.
Verônica
Minha cabeça latejava e o corpo todo doía.
Apertei os olhos e no mesmo instante senti o nariz inchado e
dolorido, como se tivesse sofrido uma pancada.
Abri os olhos assustada.
Estava em uma cama, em um quarto elegante, bem decorado, que
em nada lembrava a pousadinha do fim da rua. Minhas roupas haviam sido
tiradas e trocadas por uma camiseta branca de tamanho bem maior que o
meu. Tentei me levantar rápido, mas minhas costas reclamaram. Respirar
começou a doer também, então apoiei as mãos no colchão, diminuindo o
peso nas costas.
Eu me lembrava de ter escorregado e caído, mas desse momento
em diante tudo era um borrão.
— Ai! — reclamei levando a mão ao queixo. Havia um machucado
grande ali, sobre o osso da mandíbula, que, aliás, doía para inferno.
Tateei as costas. Lembrava-me de ter batido contra algo duro.
Minha arma! Onde está minha arma? Quem diabos me encontrou na
montanha? Porque estava bem óbvio para mim que aquela não era uma
cela de polícia nem o quarto de um hospital público.
Um perfume masculino invadiu meus sentidos assim que me movi
novamente. Virei o rosto e cheirei a camiseta.
Por hoje, seu salvador...
As palavras ecoavam dentro da minha cabeça. Voz grossa, peito
quente, braços fortes. Seu salvador...
Eu não fazia parte do time das mocinhas que esperam pelo príncipe
na torre, então essa história de salvador não colava bem comigo.
Minha arma! Onde está minha arma?
Levantei-me com dificuldade, apoiando na mesa de cabeceira, já
que meu tornozelo estava inchado e dolorido.
Abri algumas gavetas e portas do armário, procurando pela bolsa.
Queria minha pistola e meus documentos. Lembrava que estava com ela
junto do corpo. Podia aceitar que tivesse perdido o telefone, mas não a
bolsa.
Encontrei roupas, relógios, itens pessoais, até que vi o cachecol
azul, o que estava comigo antes de me acidentar.
Huamán... Li na barra mais uma vez. Será que era ele? Na
montanha, me vigiando? Meu salvador uma ova, seu desgraçado! Está
mais para “meu sequestrador!”
Olhei ao redor, estava sozinha em um grande quarto. A cortina à
meia-altura mostrava uma varanda espaçosa e um amanhecer cinzento lá
fora; devia ser cedo, bem cedo e eu estava no alto. Tão alto que não via
mais do que nuvens. Pisquei algumas vezes, a cabeça latejando e os
arranhões em meus braços ardendo. Os nós dos dedos estavam em carne
viva e alguns hematomas manchavam minha pele de roxo- azulado.
Fui me apoiando nos móveis até passar por uma cozinha pequena.
Uma bancada reta de pedra cinza com tudo que era necessário e uma
geladeira de inox. Havia uma mesa redonda com quatro cadeiras elegantes e
uma fruteira sobre ela.
A parede de vidro mostrava o cume de uma montanha. Aproximei-
me e precisei apoiar a mão no vidro por causa da vertigem. Não tinha a
menor possibilidade de fugir.
Atravessei a cozinha e cheguei a um escritório. Era grande e bem
decorado, com vários prêmios e matérias de revistas famosas emoldurando
a única parede que não era feita de vidro.
Passando pelo vão duplo sem portas, encontrei uma antessala com
um sofá e um elevador, mas no painel havia um identificador de digital.
Voltei para dentro do escritório. A grande mesa de concreto estava
organizada e limpa, o computador ligado, mas, assim que movi o mouse,
um pedido de senha apareceu na tela.
É claro que ele não seria tão estúpido, Verônica.
Abri a primeira gaveta. Estava cheia de material de escritório e
uma coleção de canetas de grife. Na segunda, pastas de couro pretas com o
emblema do hotel. Asunción, Cusco, Buenos Aires, Atacama, La Paz, Isla
Marguerita... Etiquetas brancas, coladas nas pastas, mostravam o nome das
cidades e, entre elas, havia uma sem inscrição. Abri por curiosidade e senti
o sangue gelar.
Eram recortes de jornal sobre o acidente de Karina, listas escritas à
mão em uma língua que eu não conhecia, nomes, anotações, mapas. Um
trabalho de investigação que me parecia bem melhor e mais completo do
que o que eu havia recebido da polícia peruana.
Folheei os recortes de jornal, todos locais. Brasileira morta em
Aguas Calientes. Descuido apontado como causa da morte de guia. A
polícia suspende as buscas no caso Karina Malta. Continuei espalhando os
recortes sobre a mesa.
No meio deles, um me chamou atenção. “Navio pesqueiro japonês,
suspeito de servir como camuflagem para tráfico de mulheres, parte de
Callao.” Polícia ignora os indícios. Presa com um clipe de papel, junto da
notícia do navio, havia mais algumas, todas sobre uma grande corporação
internacional chamada NK.
Eu já tinha ouvido falar sobre os negócios escusos da NK Corp.
Seu presidente, Kazuo Nakai era o conhecido e inatingível oyabun da Nakai
Gumi, maior organização Yakuza em funcionamento no mundo, mas não
entendia a conexão, já que a Nakai Gumi atuava apenas no mercado
financeiro.
O que diabos um dono de resort de luxo quer com a Yakuza? Eu
até podia entender que ele tivesse interesse na investigação da morte de
Karina, afinal de contas um acidente como o dela poderia impactar na
credibilidade de segurança do hotel, mas a máfia japonesa? Não conseguia
fazer a ligação em minha cabeça.
Ouvi um som metálico e senti o sangue gelar nas veias. Era o
elevador, o que significava que, fosse quem fosse meu sequestrador, eu o
conheceria em breve.
Comecei a juntar os papéis de volta na pasta o mais rápido que
pude. Guardei e tentei correr até o quarto de volta. Queria me deitar e fingir
que ainda dormia. Seria a melhor saída, mas não tive tempo.
Então parei na cozinha, assim que as portas se abriram, e peguei
uma das facas, no cepo da bancada, escondendo contra o braço o melhor
que pude.
Desarmada é que eu não vou ficar.
O som das portas se abrindo fizeram meu coração disparar, até que
a figura apareceu em meu campo de visão. Carregava uma bandeja de metal
com um prato tampado sobre ela e um copo de suco.
Era ele! Era mesmo ele. Nicolas Huamán. Parou junto à porta e
encarou-me com seus olhos escuros por um segundo. Senti meu corpo todo
estremecer, não conseguia afastar a sensação de perigo que ele despertava
em mim. Sabe aquele sinal interno que a gente tem quando sabe que algo
não é bem o que parece? Com Nicolas, ele parecia mais o apito de um
transatlântico.
Continuei encostada contra o balcão da cozinha, tentando não
parecer óbvia demais, enquanto ele entrava e colocava a bandeja sobre a
mesa.
— Imagino que esteja melhor... Já até se levantou... — comentou.
— Estava com sede... — menti. — Achei que talvez encontrasse
um copo.
Nicolas não disse nada. Passou por mim, em direção ao quarto, e
voltou com um copo cheio de água.
— Ao lado da cama... — Esboçou um sorriso sarcástico de canto,
oferecendo-me o que eu dissera que queria. — Coma algo... Precisa estar
com o estômago cheio para tomar os analgésicos...
Destampou a bandeja mostrando pães, um pedaço de bolo, geleia,
milho cozido e queijo.
— Não fazia ideia do que você costuma comer, então peguei
algumas coisas... Espero que goste.
— Não estou com fome... — avisei. — Quero saber como cheguei
até aqui e onde está minha bolsa...
Nicolas alisou os cabelos com as mãos, cuidadosamente, como se
fosse apenas uma pergunta trivial.
— Eu sei de tudo que acontece em minha montanha, Srta. Malta...
Ergui uma sobrancelha, mas não disse nada, esperei que ele
continuasse.
— Um dos funcionários a viu entrar na trilha... Imaginou que a
senhorita não conhecia bem o local e poderia se colocar em perigo... Estava
certo... Agora, sobre sua bolsa... Não faço ideia... Quando a encontraram,
estava sem ela...
Não era verdade e nós dois sabíamos, mas eu não ia contestá-lo até
saber o que pretendia. Se tinha tido o trabalho de cuidar dos meus
machucados e esconder minha arma, alguma coisa ele, definitivamente,
pretendia.
— Quero ir ao médico... Meu pé... — Parei a frase no meio, sem
sair do lugar, enquanto o homem se aproximava.
Senti o coração acelerar de um jeito tão forte que minha cabeça
latejou ainda mais. Ele chegou tão perto que eu pude sentir o perfume
novamente, o mesmo da camiseta e do cachecol, aquele maldito perfume
que se impregnava em minhas narinas. Estava pronta para atacar, quando
ele ligou a cafeteira, colocando uma xícara vazia embaixo.
— Posso chamar um, se quiser..., mas acho que a enfermeira do
nosso ambulatório é suficiente...
— Prefiro voltar para a pousada... Agradeço o resgate, mas gosto
de cuidar de mim mesma... — tentei não soar provocativa demais, mas
queria deixar claro que não era uma discussão.
O barulho do café expresso sendo preparado cortou o silêncio entre
nós. Nicolas pegou a xícara e deu um gole, despreocupado e relaxado, como
se fôssemos velhos amigos.
Eu sentia meu braço arrepiado desconfortavelmente e não era de
frio.
— Acho que deveria descansar por hoje... Enquanto meus homens
procuram pela sua bolsa... — Deu mais um gole no café. — Coma algo,
descanse um pouco... — Um gole mais e cravou os olhos nos meus, intenso
e profundo, fazendo-me engolir em seco. — Meu serviço de quarto é bem
melhor que o da Pousada del Sol...
Era um aviso silencioso. Uma nota, deixando claro que sair dali
naquele momento não era exatamente uma escolha. Por um segundo, um
pensamento passou por minha cabeça.
Será que procurei tanto para acabar exatamente no lugar que
queria?
Deixei meus olhos vagarem pelo homem a minha frente. Alto,
forte, ombros largos e musculoso do jeito certo. Cabelos bem cortados e
penteados, barba aparada com cuidado, perfume caro, terno sob medida.
Definitivamente, não era o retrato de um mafioso peruano.
— Bem... — disse de repente, como se algum sinal o tivesse
acordado. — Vou deixá-la à vontade para que se alimente... Se precisar de
algo, use o interfone de qualquer um dos cômodos... O número 1 chama
direto na recepção... Volto com a enfermeira, em breve.
Você está começando a ver coisas, Verônica! Ou será que não?
Nicolas
Meu celular tocou no bolso interno do paletó e eu me apressei em
me despedir. Não queria estender nosso assunto, já que seria uma discussão
tola e inútil.
— Encontramos o desgraçado, chefe — Nacho disse assim que
atendi.
— Leve-o ao porão... Quero ter uma conversa com ele.
Desci as escadas externas de acesso e digitei a senha na fechadura
da porta. A sala não tinha janelas, então o cheiro de mofo era constante.
O rapaz com traços orientais estava lá, amarrado na cadeira de
ferro. Olhos estreitos e desafiadores, como o demônio que era. Todos eles,
sem exceção, tinham aquele ar vazio no olhar, uma falta de humanidade
latente, sentiam-se superiores, deuses, não meros mortais.
— O que queria com a garota? — meu homem de confiança
continuou.
— Tentar a sorte, companheiro, apenas isso... Uma mulher bonita,
sozinha no meio do mato... Eu só pretendia oferecer ajuda... — debochou.
Nacho fechou a mão e socou o rosto do garoto, bem no meio do
nariz, fazendo-o piscar e cuspir o sangue que escorria para sua boca.
— Por que o Matsuya te mandou aqui? — continuou interrogando.
— Não sei do que está falando... Sou apenas um turista,
companheiro... Não conheço nenhum Matsuya... — Cuspiu mais uma vez.
— Acha que, só porque sou japonês, conheço todos eles? — Riu cheio de
empáfia.
Nacho cerrou as mãos em punho, pronto para desferir outro golpe,
mas eu o impedi. Um toque em seu ombro, discreto.
Peguei um punhal na mesa de ferro em que os instrumentos que às
vezes éramos obrigados a usar como incentivo ficavam.
Caminhei em volta do garoto, limpando a lâmina em minha mão.
Parei bem atrás dele e passei o punhal, em um golpe rápido, cortando a
camiseta de uma vez e expondo a carpa dragão nas costas dele.
Eu conhecia muito bem aquele desenho, tinha visto mais de uma
vez, e não era do Matsuya.
Puxei-o para trás, pelo cabelo, a lâmina afiada colada à pele do seu
pescoço. Tão perto que, quando ele engoliu em seco, uma linha fina
vermelha se formou.
— O que aquele desgraçado do seu dono quer com a garota? —
perguntei, embora soubesse que não tiraria muito dele. — Ele não tem
negócios por aqui...
O jovem encarou-me com um sorriso provocativo. Sabia que
nenhuma mentira me convenceria.
— Você vai me matar de qualquer jeito, por que eu diria?
— A questão é... Pode ser rápido... Ou pode demorar... A escolha é
sua...
Encarei-o de frente, afastando a arma e limpando o sangue nos
dedos. Continuou em silêncio, desafiando-me com o olhar.
Se quer mostrar que é duro, cabrón, espero que aguente...
Sinalizei para Nacho, que se aproximou, parando ao meu lado.
Entreguei-lhe o punhal.
— Corte a tatuagem e despache em uma caixa bonita para a sede
da NK... Depois leve o garoto até o cume, abra a barriga e o pendure lá, mas
tenha a certeza de o deixar vivo... Faz tempo que não alimentamos os
condores e eles preferem quando a comida se mexe...
Virei as costas e segui em direção à porta. Estava quase saindo,
quando o garoto gritou.
— Espere!
Virei devagar.
— O chefe só queria o que tem direito... Você sabe, a brasileira
deixou uma dívida enorme quando impediu o último carregamento...
Dei alguns passos para dentro.
— E o que seu chefe tinha a ver com o carregamento? Achei que
aquele navio fosse do Matsuya...
O garoto esboçou um sorriso de cabeça baixa.
— Aí eu já não sei, senhor... Sou só o cão de guarda... Você vai ter
que perguntar ao meu dono... — debochou.
Peguei o punhal e passei em seu pescoço em um golpe certeiro. O
garoto ainda me encarava, enquanto o sangue jorrava cobrindo o pescoço.
Entreguei a arma a Nacho e limpei as mãos em uma toalha.
— Ainda quero que remova a tatuagem... — avisei —, um trabalho
limpo, como você já sabe... Mande para o Nakai.
Saí de lá e segui pelo saguão.
Então quer dizer que o Nakai está interessado na policial... O que
aquele maldito japonês pretende? Vendê-la? Irritar a mim? Desgraçado!
Não fosse pela Yuki, eu já teria acabado com ele...
Bati à porta e entrei, confirmando que o ambulatório estava vazio.
Tamara Ibañes trabalhava comigo havia uns bons anos. Era enfermeira, mas
entendia de primeiros socorros melhor que muitos médicos que encontrei.
Era ela quem resolvia boa parte dos problemas, quando alguém se feria e
não podia procurar um hospital, mas eu não queria que ela encontrasse
Verônica.
Vinha desconfiando de que pudesse ter uma maçã podre em meu
cesto e, até que tivesse certeza, a garota ficaria sob minha proteção. Eu
tinha falhado com Karina, não ia cometer o mesmo erro.
— Preciso de material para cuidar de um entorse de tornozelo e
curativo... — avisei, assim que entrei no ambulatório.
— Se quiser trazê-lo aqui, Sr. Huamán...
— Eu mesmo resolvo...
A garota não questionou, sabia bem como as coisas funcionavam.
Juntou o que eu iria precisar em uma caixa e entregou em minhas mãos.
— Aplique a bolsa de gelo e imobilize... É bom que não caminhe e
mantenha o pé para cima. Há mais analgésicos também... Vi que o senhor
levou alguns essa manhã.
Concordei e saí levando a caixa comigo.
Digitei a senha e esperei que o elevador começasse a subir. As
portas se abriram, mas tudo estava em silêncio, então segui para dentro.
Sabia que Verônica tinha vasculhado o máximo que podia da
minha cobertura. Eu havia deixado algumas coisas lá de propósito, queria
que ela fizesse a conexão. Seria bem mais fácil fazê-la entender que eu não
era o vilão, já que ela andava investigando meus negócios em vez de a
Yakuza.
A bandeja de comida continuava intacta e os comprimidos também
não tinham sido tomados.
Segui pelo corredor até o quarto. A garota estava lá, deitada na
cama com cara de dor. Braço por baixo do travesseiro, mirando o teto.
— Estaria melhor se tivesse tomado o remédio...
— Não tomo comprimidos cuja origem não conheço... —
respondeu taxativa.
— Aqui... — Entreguei a cartela cheia em suas mãos. — É só
analgésico, mas, se quiser outra coisa, posso tentar conseguir... —
provoquei.
Tentei levar a mão até o tornozelo machucado, mas ela recuou.
— Deixe-me ver... — pedi.
— Achei que fosse empresário, Sr. Huamán... Não médico...
Baixei a cabeça por um segundo, buscando controle, e então
segurei firme em sua perna. Esticando-a sobre a minha.
— Cárcere privado... Já ouviu falar?
Não respondi, aplicando um pouco de pomada anti-inflamatória na
lesão. Não queria discutir com ela, porque ia perder a linha bem rápido.
Odiava ser desafiado e aquela maldita brasileira parecia saber muito bem
como me tirar do sério.
— Um a três anos em regime fechado... — continuou. — No
Brasil, é claro... Aqui no Peru creio que as coisas sejam diferentes... —
debochou.
Levantei-me devagar, raiva borbulhando em meus olhos.
— Vá embora quando quiser..., mas é bom que saiba voar... — Ri
sarcástico. — Porque é uma bela queda daqui de cima...
Antes que ela pudesse abrir a boca para retrucar, colei meu
indicador em seus lábios, silenciando-a.
— Agora, se quiser descer pelo meu elevador, terá que esperar até
que eu permita.
Dei as costas, mas mantive a atenção nela, então, quando veio para
cima de mim, eu estava preparado.
Agarrei seu braço e girei, tomando a faca e segurando contra sua
garganta. A mão livre agarrando-a pela cintura.
Encarei seu rosto pelo espelho. Estava enraivecida e assustada, o
peito subindo e descendo rápido. Meu braço travando-a para que não se
movesse. Havia uma linha vermelha em seu antebraço e sangue escorrendo
do cabo da faca, o que significava que eu tinha me ferido também.
— Shhhh... Ou vai se machucar mais... — adverti.
A garota cravou os olhos nos meus.
— Quem é você?
Aproximei minha boca da sua orelha, o perfume delicado ainda
estava ali, mesmo depois de tanto tempo. A pele se arrepiou com a minha
respiração e eu não pude deixar de morder o lábio.
Não era do tipo sádico, mas adorava uma boa briga e uma bela
bunda se esfregando no meu pau. Ter os dois de uma vez só era viciante.
— Sou quem você procura, corazón... E sou também sua única
oportunidade de vingar a sua irmã.
Verônica
Senti meu corpo todo se arrepiar.
O coração acelerado, boca seca, mal conseguia respirar e estava
completamente imobilizada por ele.
Nicolas Huamán tinha quase o dobro do meu corpo e força física
suficiente para me derrubar com uma mão. Meu braço cortado ardia, mas o
sangue que manchava meu pescoço deixava claro que ele tinha levado a
pior
Tentei me mexer, mas desisti. Não era tão estúpida assim,
principalmente com uma lâmina afiada em meu pescoço.
Levantei as palmas em sinal de rendição, os olhos focados nos
dele. Era um daqueles momentos em que a gente precisa contar com a sorte,
porque nem reforços eu podia pedir.
Devagar, seu corpo foi se afastando, a faca ainda em minhas
costas, nossos olhares mantidos um no outro através do espelho. Nicolas
afastou-se mais alguns passos e então eu me virei de frente para ele.
A faca foi deixada sobre a cômoda e, um a um, ele soltou os botões
da camisa, que tinha se rasgado com o movimento brusco do braço. Assim
que a tirou, eu vi a tatuagem, um condor em voo, pronto para o ataque. Asas
abertas tomando boa parte do peito até perder-se no ombro.
Conforme respirava, a ave parecia ganhar vida, como se morasse
dentro dele. Era inquietante e terrivelmente sexy, daquele jeito perigoso que
nos instiga a olhar um pouco mais. A corrente de ouro com o medalhão
brilhava a cada passo que dava.
Rasgou um pedaço do tecido branco, enrolou contra a palma
machucada e em um instante o tecido foi tingido de vermelho.
— Dessa vez, muñeca, vou deixar passar... Entendo que essa
cabecinha loira aí não está funcionando como deveria, mas lembre que se
tivermos uma próxima...
Parou a frase no meio, mas seu olhar continuou, ameaçador como
ele era, mesmo quando não tinha intenção.
— El Condor... — deixei sair apenas porque estava em minha
boca, não tinha mais dúvidas.
— Nicolas... Ou Nico, se preferir... El Condor é um apelido de
guerra e, no que diz respeito a mim, Verônica, esta é uma conversa de paz...
— Paz? Achei que você fosse o senhor da morte... — provoquei.
Não era nada esperto da minha parte, mas eu não podia evitar.
Aquele homem despertava toda a minha raiva e outros sentimentos mais
que eu nem sabia classificar.
O homem riu sarcástico.
— Sou inteligente o suficiente para escolher as lutas que valem a
pena, corazón... Não tenho muito tempo livre para perder com briga de
faca... Aliás... — Levantou a mão boa, fazendo um aceno no ar. — Achei
que era menos estúpida... Policial treinada há algum tempo, deveria saber
que não conseguiria imobilizar um homem como eu com uma faca de
cozinha... O que pretendia? — inquiriu. — Me matar? Por que acha que eu
matei Karina...
Ia falando e caminhando pelo quarto, como um felino à espreita,
encurralando-me devagar, envolvendo-me sem que eu pudesse correr.
De repente, abriu a gaveta do criado e pegou um porta-retrato
prateado. Jogou sobre a cama, perto de onde eu estava.
Na fotografia, estavam ele e Karina, vestidos como se para uma
festa ou algo assim. Ele de terno escuro e ela de vestido vermelho. Sorria
tranquila, o rosto pendendo no peito dele.
Senti um aperto tão grande que suspirei sem querer, encarando a
fotografia por mais tempo do que deveria.
— Eu jamais a machucaria... Não havia razão para isso, Karina era
minha amiga.
— Um homem como você não tem amigos, Nicolas... Comparsas,
no máximo... — provoquei, fazendo-o rir novamente.
— Pode não acreditar, Srta. Malta, mas homens como eu... —
frisou. — Têm vida normal... Família, amigos, passeios de fim de semana,
vão ao cinema, comem fora...
— À custa de vidas inocentes... — Revirei os olhos.
— Pelo menos gente como eu pode se gabar de não abandonar a
família...
Golpe duro, bem duro... O que era um bom indício de que ele
realmente conhecia Karina, já que aquela era uma frase bem típica dela.
— Cada um sabe a vida que leva, Srta. Malta... E a morte que o
espera! — Beijou o medalhão que pendia da corrente em seu pescoço. —
Eu não matei Karina, não sou seu inimigo...
— E por que me deixou presa aqui e desarmada, então?
— Porque não a conheço e não sou idiota... — Vestiu uma
camiseta limpa. — Vamos fazer um pequeno trato... Eu vou descer e dar
alguns pontos no corte... Quando voltar, se for uma boa menina... Eu conto
a você quem matou sua irmã e o que pretendo fazer para vingá-la. Por
enquanto... — Abriu uma das portas do armário e pegou uma caixa de
madeira com flores pintadas sobre a tampa. — Pode dar uma olhada nas
coisas que ela deixou aqui.
Colocou a caixa sobre a cama.
— Tem material de curativo aqui... — Indicou a caixa branca que
havia trazido. — Seu corte é superficial, sei que consegue dar conta
sozinha...
Caminhou para fora do quarto, mas, quando chegou à porta, virou-
se para mim novamente.
— É uma oferta de paz, Verônica..., mas entenda que eu não tenho
problema em brigar, se for realmente o que você quer... Só tenha em mente
que lutar contra um aliado serve apenas para fortalecer o rival...
Fiquei parada ali, imóvel, até que ouvi os passos se afastando e,
logo depois, o som das portas do elevador.
Não podia negar que Nicolas tinha razão nas palavras, mas eu
ainda não sabia quem era meu inimigo e meu aliado, havia aprendido a
duras penas a não confiar cegamente nas pessoas e era até considerada
arredia por isso. Não era boa em fazer amizade e pior ainda em manter.
Tinha perdido todo mundo que cheguei a amar um dia e, confesso,
começava a cansar de tanta desconfiança.
Abri a caixa e comecei a tirar os objetos de dentro dela. Um vidro
de perfume, cartões postais, alguns ursinhos de pelúcia e souvenirs, além de
um monte de fotos. Karina sorrindo, abraçada a pessoas que eu não
conhecia, em especial uma moça.
Aparentava alguns anos a menos, longos cabelos cacheados e pele
morena-clara. Tinha belos olhos verdes e estava na maioria das fotos. Dei-
me conta de que não sabia mais muito sobre minha irmã. Não conhecia os
amigos, nem sabia do que gostava ou aonde ia para se divertir. A vida tinha
nos separado, Karina e eu, sem que tivéssemos chance de nos
reconciliarmos.
Continuei passando as fotos, até que encontrei uma de nós duas,
tinha sido tirada no verão, dois anos antes da mudança dela para o Peru.
Estávamos em uma praia, no litoral de São Paulo. Eu deitada na pedra,
tentando ler a apostila que precisava estudar para a prova da polícia, e ela
fazendo o V de vitória com os dedos e mostrando a língua.
Lembrava-me perfeitamente daquele dia e de como nos divertimos
naquela viagem. Tínhamos saído de casa com cem reais e uma mochila,
dispostas a aproveitar o último tempo de folga, já que, segundo ela, eu me
tornaria chata e sem graça, assim que passasse no concurso.
É, Ka, acho que você tinha razão...
Peguei a lhama branca de pelúcia e corri os dedos no pelo macio.
Usava um cachecol com tema andino e tinha uma plaquinha escrita à mão
no pescoço.
“Para que nunca mais se sinta sozinha e saiba que essa também é
sua casa. Nico” — lia-se em espanhol.
Senti a garganta se fechar, como se aquela sensação ruim de não
poder respirar estivesse voltando.
Outra foto dela com Nicolas, em um iate, sentados lado a lado,
com uma bebida nas mãos. Ele usava bermuda e óculos escuros, sorria,
muito diferente do que eu ouvia dizer sobre El Condor.
— Tome um desses...
Dei um pulo de susto, estava tão perdida em pensamentos que não
havia percebido o retorno do meu anfitrião.
Levei alguns segundos para voltar a mim, e ele ficou lá, mão
estendida, com o comprimido na palma.
— Soroche... — disse de repente.
— Oi? — perguntei sem entender.
— O que está sentindo... — Encheu o copo com água da moringa e
ofereceu a mim. — Um pouco de culpa, mágoa, raiva e soroche... — Sorriu
de canto, em uma tentativa de parecer menos sisudo. — Não estou
censurando você, Verônica, acredite... Tenho minhas culpas também...
Mágoa e raiva fazem parte do que sou, então aprendi a lidar...
Coloquei o comprimido na língua sem deixar de encará-lo e sem
engolir também.
— Ainda acha que quero drogá-la, garota? Não seja boba, eu não
desperdiço meu produto! — debochou.
Peguei o copo e bebi, observando a mão enfaixada dele. Eu teria
ficado muito, muito puta, com alguém que me esfaqueasse. Tinha que
concordar que Nicolas Huamán era melhor do que eu em controlar a si
mesmo.
— Puerto Varas... — Bateu com o indicador sobre a fotografia do
barco. — Ela queria conhecer os lagos... Falou tanto disso que decidi levá-
la só para que ficasse calada!
Ri sem conseguir evitar, mas o riso morreu logo.
— Vou cuidar disso, não se preocupe... O desgraçado que fez isso
com ela... — Voltou os olhos para os meus, frio e sereno. — Vai implorar
para morrer também, Verônica... Eu juro!
— Quem foi? — perguntei.
— Estou investigando...
Na mesma hora, lembrei-me do material recortado em sua gaveta.
Sabia que não seria fácil arrancar respostas de um homem como ele, então
usei o que tinha aprendido na polícia, sempre facilite a confissão.
— O que Karina fez para que a Yakuza a matasse, Nicolas?
Nicolas
Pensei por um segundo, não sabia bem o que dizer, porque enganar
Verônica não era como enganar as mulheres que me serviam. Verônica
Malta era astuta e tinha treinamento profissional, sabia lidar com caras
como eu.
Peguei a foto de Helena no meio das outras e coloquei sobre a
colcha branca, depois bati o indicador em seu rosto.
— Helena Viana...
— Quem é Helena Viana? — perguntou curiosa.
— Uma garota por quem Karina se apaixonou...
Eu não conhecia nada sobre Verônica, mas aquele não era o
momento de mentiras. Karina podia não ter tido tempo de revelar à irmã
suas verdades, mas eu não tinha razão para esconder. Esperei até que a
garota absorvesse.
Verônica continuou com o olhar baixo, mirando a fotografia,
depois encarou-me novamente.
— Onde ela está agora?
— Não sei..., mas foi assim que Karina se envolveu com os
Yakuzas...
— O que houve com ela, Nicolas?
Respirei fundo e puxei a poltrona, para me sentar de frente para
ela. Era um assunto difícil, mas, já que eu tinha decidido começar, precisava
ir até o fim.
— Helena trabalhava em uma pequena companhia de dança latina.
Estavam em turnê pela América do Sul e foi assim que ela e Karina se
conheceram. Sua irmã não era muito aberta em relação aos casos amorosos
que tinha, então eu só tomei conhecimento do caso quando Helena foi
sequestrada...
— Tráfico humano... — concluiu.
— Provavelmente... Tudo que soubemos é que um homem de
meia-idade e traços orientais foi a última pessoa a passar na pensão e sair
com ela...
A garota soltou uma lufada de ar, inconformada.
— Estou longe de ser santo, Verônica, mas meus negócios não
incluem vidas, o que eu vendo é meu, não coloco preço no que não me
pertence...
— É claro... — Revirou os olhos sarcástica. — Mas permite que
façam, não é? Desde que não atrapalhem seus negócios...
Respirei fundo.
— Não tenho vocação para herói... — Joguei o corpo para trás,
estralando as costas. — Mas protejo os que são meus e falhei com Karina...
— Voltei o corpo de uma vez, encarando-a de perto. — E juro, por la Santa
Muerte, que o desgraçado que a matou está com os dias contados...
Verônica levantou-se e tentou andar pelo espaço, mas desistiu
assim que o pé machucado reclamou. Cruzou os braços e escorou o corpo
em minha cômoda, provocativa.
— E espera que eu, sendo policial, vá concordar com sua
vingança? — questionou.
Levantei-me também, dando alguns passos em sua direção, gostava
de jogar com ela. Acuá-la, para que ela revidasse. Enfiei a mão no bolso da
calça, peguei o celular e ofereci a ela.
— Se acha que consegue resolver do seu jeito, muñeca, é só
chamá-los...
Estreitou os olhos e me encarou. Eu podia ver o gosto amargo em
seus olhos.
— Seiji Matsuya... — continuei. — Ele é o japonês filho da puta
que tem uma parte dos negócios por aqui. Nosso acordo não incluía essa
sujeira toda que ele anda fazendo, mas não foi ele quem matou a sua irmã e
é justamente isso que eu estou tentando entender...
A garota tinha o olhar focado em algum ponto na imensidão do céu
lá fora e eu quase podia ver as engrenagens em sua cabeça se movendo.
Tentei o máximo que pude não dar informações de que ela não
precisava. Queria que confiasse em mim, não que saísse do Peru com
munição para acabar com meus negócios.
— O Matsuya e o Nakai são inimigos, então, se tenho negócios
com um, não devia ter que me preocupar com o outro...
— Mas... — interrompeu-me.
— Hoje cedo um dos meus homens capturou um garoto andando
pela montanha... Imaginei que fosse um dos homens do Matsuya, mas, para
minha surpresa, encontrei outro desenho em suas costas... Ele estava atrás
de você, Verônica... Na trilha em que você caiu...
Os olhos castanho-esverdeados faiscaram de surpresa.
— Você o viu?
— Achei que fosse coisa da minha cabeça, estava escuro, eu estava
zonza por causa dessa maldita altitude e...
— Sabia que seu celular estava grampeado? — continuei.
Verônica alisou os cabelos para trás.
— Como você sabe? — questionou. — Roubou meu celular
também?
— Não roubei nada seu, corazón, apenas decidi proteger-me! —
Balancei a mão machucada no ar. — Terá tudo de volta amanhã, quando
deixar Cusco em um voo direto para São Paulo... E se quer um conselho...
Cuidado com quem chama de amigo... Karina mexeu com alguns peixes
grandes quando entregou o dossiê para a Interpol.
— São Paulo? Como assim, São Paulo? Ficou maluco? Acha que
vou voltar para casa e esperar que você me dê um telefonema dizendo que
resolveu tudo, depois de me contar que minha irmã estava metida com a
Yakuza e a polícia internacional? — Riu sem humor. — Você deve estar de
brincadeira!
Tentou me empurrar com a mão e sair, mas eu a segurei pelo braço,
trazendo para perto de mim novamente.
— Não estou pedindo opinião, Verônica, estou avisando como
será! Amanhã bem cedo Nacho vai levá-la ao aeroporto e é assim que nossa
história termina, chica.
Soltei-a de uma vez e virei as costas. Estava perdendo tempo
demais com a brasileira, tinha que me concentrar no que era importante,
mas, assim que dei alguns passos, senti a mão pequena em minhas costas,
segurando-me pela camiseta.
— Você não decide por mim, El Condor, não sou uma das suas
putas!
Agi por instinto, segurando-a pelos pulsos e prensando contra a
lateral da geladeira, fazendo um barulho mais alto do que pretendia.
Verônica tentou se soltar, então eu a travei com o corpo, meu joelho entre
suas pernas, impedindo que conseguisse chutar.
Não era sexual, mas de repente se tornou. O peito subindo e
descendo, a calcinha de renda contra o tecido fino da minha calça, as coxas
roçando contra as minhas. Meu pau ganhou vida no mesmo instante e eu
não fiz questão alguma de esconder. Se ela queria brigar, ia ter que encarar
o pacote completo.
— Não vai me pedir para soltá-la? — provoquei, a boca a
centímetros da sua orelha.
— Vai soltar se eu pedir? — devolveu na mesma intensidade.
Era um jogo perigoso e ninguém ali era inocente.
Apertei-a um pouco mais, esfregando minha ereção em sua barriga.
Queria que soubesse como eu me sentia, porque, sendo bem sincero, eu não
queria soltá-la. Segundos depois, afastei-me e ela caiu de joelhos, soltando
um gemido de dor.
— Deveria ter mais cuidado com seu pé machucado, corazón...
Deixei-a lá e saí.
Verônica
Fiquei caída no chão, vendo-o se afastar.
Meu corpo inteiro tremia, o coração batendo tão forte que eu mal
conseguia respirar. Sentia a cabeça zonza e a pele arrepiada.
Merda de comprimido que não ajudou em nada!
Depois de alguns segundos, apoiei a mão na parede de azulejos
cinza e comecei a me levantar devagar. O pé doía como o inferno, mas a
vergonha doía mais. Porra, Verônica, duas tentativas e nem uma porrada
você acertou? Isso que é boa de briga! Se fosse ruim, já estaria debaixo da
terra... Ou pior!
Balancei a cabeça e soltei o ar dos pulmões de uma vez, tentando
controlar a respiração novamente.
Desgraçado! Me enquadrou e ainda teve a audácia de roçar a
porra do pau duro em mim... Achou o quê? Que eu ia me impressionar?
O arrepio tomou conta do meu corpo no mesmo instante em que
me lembrei da sua proximidade. Nicolas Huamán... Eu tinha encontrado o
maldito Condor e, no fim das contas, nem era ele o culpado. Ou era?
Balancei a cabeça novamente, sentia como se tudo lá dentro tivesse
dado um nó imenso e gigante. Sentei-me na cadeira, apoiando os cotovelos
na mesa e encarando o cume da montanha. Estava no ninho do maldito
Condor. Presa contra minha vontade e tudo que podia fazer era esperar.
O perfume dele estava na cozinha toda, impregnado no ar, nos
móveis, na roupa que eu usava, em mim; mas o pior de tudo é que eu não
sentia asco ou nojo, sentia desejo. Aquela picadinha de curiosidade filha da
puta que nos leva a cometer as maiores — e melhores — burradas da nossa
vida.
Esfreguei as mãos frias no rosto, forçando-me a voltar ao foco.
Sempre suspeitei que Karina era homossexual. Quis deixar o caminho livre,
para que ela me contasse quando se sentisse à vontade, mas o destino não
deixou. Ao menos você amou alguém, Ka... Espero que tenha sido feliz...
Senti a primeira lágrima descer e engoli em seco. Era a primeira
que eu realmente deixava cair, sem segurar ou forçar a parar. A psicóloga da
polícia já havia me dito que essa era a causa da maioria dos meus
problemas, segurar, guardar, reprimir, esconder.
Permita-se sentir, Verônica... — ela dizia.
Talvez fosse o medo ou a revolta, mas naquele momento eu
permiti. Enquanto encarava a montanha que a tinha levado, eu permiti.
As lágrimas foram descendo, escorrendo pelo meu rosto e
pingando na mesa e eu só deixei que caíssem. Não pensei em muita coisa,
só deixei acontecer. Não sei quanto tempo passou, mas, quando a vontade
de chorar diminuiu, eu sentia o rosto todo molhado. Os braços e a mesa
estavam na mesma condição.
Peguei o pano de copa e sequei a mesa. Depois me levantei e
caminhei com dificuldade até o banheiro, lavando o rosto na pia. Estava
com frio, então a água morna na torneira foi tão agradável que demorei
mais do que deveria, lavando os antebraços e o pescoço.
— Pode tomar banho se quiser...
Levantei o rosto assustada, para encontrar Nicolas parado junto ao
batente da porta.
— Aquela toalha... — Sinalizou o armário. — Está limpa... —
avisou. — Eu trouxe roupas e itens de higiene... — Deixou uma sacola
sobre a bancada de mármore branco. — Use o que precisar; quando
terminar, vamos conversar...
Fechou a porta e eu virei a chave.
Precisava mesmo de um banho. Os arranhões ainda sangravam um
pouco e a malha fina da camiseta estava grudada em minhas costas.
Tirei com cuidado e liguei a ducha, esperando até que esquentasse.
Lavei os cabelos e deixei que a água morna acalmasse um pouco da minha
tensão. Não estava sendo maltratada e tinha que admitir que ele havia
salvado minha vida.
Toda a história sobre Karina e a garota sequestrada, Yakuza, máfia,
assassinato, girava em torno de mim, como peças de um quebra-cabeça que
eu não conseguia montar. Meu telefone grampeado... Quem havia
conseguido grampear meu telefone? Eu raramente me afastava dele,
ninguém tinha acesso... Ninguém... Não, Vê, não começa com paranoia!
Você sabe que esse é um caminho sem volta!
Precisava mesmo conversar com Nicolas, sem a baboseira de tentar
enfrentá-lo. Essa parte eu já tinha conferido e era mesmo burrice. O homem
era experiente, controlado e estava no território dele, então eu tinha que
jogar com a mente, usar a inteligência, ou não conseguiria sair daquela
merda de cobertura.
Sequei os cabelos com a toalha e penteei. Na sacola havia lingerie
nova e um conjunto de calça e agasalho de moletom com o emblema do
hotel. Vesti a roupa e calcei um chinelo de tira larga no peito do pé,
enfiando até onde conseguia o que estava inchado e enfaixado. Quando saí,
Nicolas estava debruçado no gradil de vidro da grande varanda. Cigarro
aceso na mão, olhos perdidos na paisagem.
Aproximei-me devagar e parei ao seu lado. Não sabia como
começar, mas sabia exatamente o que precisava dizer.
Fiquei em silêncio por alguns segundos e depois enchi os pulmões
de ar, mas, antes que eu pudesse falar, ele começou.
— Eu gostaria de me desculpar...
Engoli minhas desculpas, sentindo o gosto amargo da arrogância
que eu não queria ter.
— Agi mal e fui bruto com você... Espero que entenda que...
— Tudo bem, Nicolas... Estamos alterados e as coisas fogem do
controle, eu... — Apertei os olhos, não queria chorar. — Essa história toda
com Karina, eu...
Ainda estava tentando organizar o que ia dizer, quando ele levou a
mão até minha testa e correu o dedo ali, perto do meu cabelo. Meu coração
deu um tranco no peito e eu esqueci tudo que ia dizer.
— Creme... — Mostrou o indicador. — Desculpe se te assustei.
Limpei a garganta para ganhar tempo, porque, de repente, todos os
pensamentos haviam fugido de mim e só o que havia era ele, Nicolas, em
minha frente.
— Verônica... — soltou devagar, a voz grave e pesada. Sexy,
terrivelmente sexy. — Eu não sou o monstro que procura... Posso não ser
um modelo de conduta, mas Karina era muito importante para mim... —
Respirou fundo, dando um trago no cigarro. — Deve imaginar que eu não
tenho muitos amigos... — Esboçou um sorriso e me olhou de soslaio, mas
logo o reprimiu. — Vou encontrar quem a matou e vou fazê-lo pagar... Você
não precisa sujar suas mãos...
Encarei-o por alguns segundos. Parecia tão despido e sincero que
eu senti vontade de confiar, de ser sincera também. Sempre me disseram
que o diabo era sedutor e eu tinha comprovado isso poucos minutos antes,
mas naquele momento não era sedução, era conexão. Uma estranha, e
totalmente despropositada, conexão.
— Era minha irmãzinha... — confessei mais para mim do que para
ele. — Não me importo de me sujar...
A mão grande cobriu a minha e eu não senti vontade de recuar.
Não exatamente um carinho, mas o calor que o toque dele produzia se
espalhava por todo o meu corpo.
Nicolas cravou os olhos castanhos nos meus. Havia tanta
intensidade naquele olhar que eu me perdi.
— Não quero que se coloque em risco... Falhei com Karina,
Verônica... — Balançou a cabeça em negativa. — Não vou falhar com você
também... É uma dívida de honra...
Engoli em seco o bolo de sentimentos que se formaram em mim.
Fazia tanto tempo que não tinha ninguém em minha defesa que o desejo de
aceitar ajuda gritava. Eu queria abraçá-lo, por mais idiota que fosse, então
recuei, tirando a mão debaixo da sua e ajeitando o cabelo.
Dois passos atrás e o espaço entre nós era impessoal novamente.
— Venha, vamos descer... — Estendeu a mão. — Nacho já pegou
sua bagagem e encerrou sua conta na pousada em Cusco... Vai levá-la direto
ao aeroporto, um voo com escala apenas para abastecer... Comprei duas
poltronas, não permita que ninguém se sente ao seu lado.
Aquiesci, enquanto caminhávamos até o elevador.
Entramos os dois e ele acionou a descida.
— Sua arma... — Entregou-me a pistola. — Fique dentro do meu
carro até o último aviso de embarque...
— Acha que estão atrás de mim? — perguntei, mas ele não
respondeu. — Nicolas, se estão atrás de mim, prefiro ficar e enfrentá-los...
Não sou iniciante, sei lidar com isso...
Nicolas não respondeu, mas o que disse com o olhar fez um arrepio
subir desde a base da minha coluna.
As portas se abriram para um jardim reservado. Não havia
ninguém, apenas um sedã preto, com os faróis acesos. Paramos um pouco
antes e Nicolas enfiou a mão no bolso do terno, tirando um aparelho de
telefone.
— Aqui! — ofereceu-me. — Coloquei seu chip antigo e um
localizador... Mantenha-o aí, até que esteja no Brasil... Assim que chegar lá,
basta abrir e retirar... Salvei meu número pessoal... Ligue se tiver algum
problema...
Segurei o aparelho, mas ele não o soltou. Seus dedos resvalando
nos meus e nosso olhar preso um no outro. Respirei fundo, tentando quebrar
a conexão que havia entre nós, mas não consegui.
Nicolas puxou-me pela mão, fazendo-me quase encostar em seu
peito, sem desviar o olhar. Seu rosto aproximou-se do meu devagar, até que
senti seu hálito quente contra minha boca e separei os lábios, por instinto.
Seus lábios resvalaram nos meus, de lado, e eu pude sentir todo o meu
baixo-ventre e estômago se aquecerem.
Continuou deslizando a boca, suavemente, quase sem encostar, até
perto da minha orelha e então umedeceu os lábios, a ponta da língua
esbarrando em meu lóbulo e arrepiando todo o meu corpo.
— Não confie em ninguém... Ouviu? Ninguém, Verônica, nem
mesmo se eu disser para confiar...
Não consegui responder, então ele retornou o caminho e quando
chegou perto da minha boca eu não resisti, movendo meus lábios para tocá-
lo, ao menos um pouquinho.
— Entendeu? — perguntou tão colado aos meus lábios que mais
parecia um beijo do que uma pergunta. O aroma de menta e nicotina,
misturado ao seu perfume, inebriava-me e eu só conseguia aquiescer depois
de alguns segundos.
— Ótimo!
Afastou-se tão rápido que eu pensei que fosse cair, e nem tinha
onde me escorar.
— Agora vá... Meu helicóptero espera na estação.
Fiquei ali parada, vendo-o se afastar e um homem de terno escuro
se aproximar.
— Srta. Malta... Sou Nacho... Vou acompanhá-la.
Nicolas
Afastei-me dela o mais rápido que pude ou acabaria fazendo uma
merda tão grande que nem eu mesmo saberia como sair.
Que porra, Nico, beijar a garota?
Minha cabeça girava e meu pau latejava dentro da calça. Eu
precisava foder alguém, logo, ou acabaria fodendo a mim mesmo.
Peguei o interfone.
— Mande a Teresa subir... — avisei a secretária.
Liberei o elevador e voltei para o escritório. Precisava de uma
bebida, um cigarro e uma boceta, não necessariamente nessa ordem, já que
algumas urgências eram maiores que as outras.
Não demorou muito e a ruiva apareceu em meu campo de visão.
Teresa trabalhava no SPA, era uma excelente massagista, mas era
ainda melhor nos serviços particulares que prestava a mim e aos clientes
VIPs que a procuravam.
Sorriu discreta, com aquele brilho safado que tinha no olhar, e se
aproximou um pouco mais.
— Estou estressado e nervoso, preciso me acalmar...
Ela encheu um dos copos com uma bela dose de uísque e entregou
a mim. Assim que o peguei, ajoelhou-se entre minhas pernas, soltando o
cinto e descendo o zíper.
Dei um gole na bebida e acendi um cigarro. Fechei os olhos,
sentindo seus dedos se apertarem em torno do meu pau, massageando
cuidadosamente, espalhando uma gota de excitação por toda a glande, bem
devagar.
De repente, eu me vi em outro lugar e era outra mão em meu
corpo.
Verônica... A garota que eu salvei...
Contraí o maxilar reprimindo o gemido, sentindo seus lábios
engolirem cada centímetro de pau que eu tinha. Chupava com vontade,
massageando minhas bolas e arrancando o pouco de juízo que me restava.
Verônica... A louca que havia me enfrentado mais de uma vez.
Não resisti e, segurando-a pelos cabelos, eu me levantei,
debruçando-a sobre a mesa. Levantei a saia e puxei a calcinha para baixo,
depois abri a gaveta e peguei um preservativo.
Soquei fundo, sem dó. Ia tirar a maldita brasileira da minha cabeça
na marra. A garota gemeu e eu segurei dos lados da sua bunda, metendo
com força, saciando minha vontade de sexo, mas a cada estocada era outro
rosto que eu via, com cabelos loiros desgrenhados e aquele maldito perfume
de fêmea no cio que ela emanava para mim.
— Desgraçada! — xinguei, agarrando o cabelo da ruiva e girando
contra meu pulso, trazendo seu corpo para perto do meu.
— Ah... — ela gemeu mais alto, quando eu passei o dedo em volta
da carne esticada pelo meu pau, levando a umidade até o clitóris e
massageando ali, movimentos certeiros, combinados ao balanço dos meus
quadris. Gingava junto dela, mais fundo até que não resistiu, gozando forte
e ordenhando meu pau, que não resistiu e gozou também.
Assim que terminei, eu a soltei. Tivera uma bela gozada, com
aquele sabor amargo no final, aquele, de quando a gente pega a boceta
errada, só para fingir que está no controle.
Merda! — praguejei mentalmente, pegando o que restava do meu
cigarro no cinzeiro e dando um belo trago.
Abri as portas duplas de vidro e caminhei pela varanda, até o
gradil. Soltei a fumaça para cima. Era um começo de tarde frio, mas quase
sem vento.
— Sabe que não me importo que seja bruto, Nico..., mas se quer
um conselho... — a voz da garota ia se aproximando, mas eu não me movi,
até que senti sua mão em meu ombro. — Deveria relaxar um pouco... Uns
dias no iate... Posso ir com você, se quiser...
Virei-me devagar, encarando-a sem nenhuma expressão.
— Se eu precisasse de conselho, Teresa..., tinha trazido o Guille, e
não uma boceta... — Livrei-me do toque e caminhei de volta para dentro.
— Desça... Tenho um compromisso e preciso de um banho.
Estava livrando-me das roupas, quando ouvi o barulho da porta do
elevador. A garota tinha que entender bem qual era o lugar dela.
Entrei debaixo do chuveiro com a água ainda fria. Precisava me
concentrar e voltar ao controle. Tinha resolvido tudo, e despachado
Verônica de volta ao Brasil. Podia não ser o lugar mais seguro do mundo,
mas ao menos ela estaria entre os dela e saberia como se proteger.
Você não é um herói, Nicolas, não assuma esse papel fodido, não
combina em nada com a sua vida!
Saí do banheiro já de calça e camisa. Tinha assuntos a resolver em
Cusco. O ministro da cultura tinha acabado de se hospedar em um dos
hotéis da cidade, para a festa de inauguração do restaurante do filho, e eu
queria aproveitar e marcar alguns pontos com o homem.
Tinha que manter minha vida de empresário cumpridor de leis
intacta e minha moral inabalada, se quisesse que meu cartel continuasse
faturando com a alta roda da sociedade.
Ninguém quer estar envolvido com a sujeira. A gente até gosta de
rolar com os porcos em segredo, mas, quando se levanta, o terno de grife
tem que estar limpo e imaculado. É assim que a vida funciona.
Conferi o horário no relógio, a garota já tinha embarcado e Nacho,
provavelmente, estava no caminho de volta.
Peguei o telefone e liguei.
— Espere-me na estação, vou a Cusco...
— Quer que o busque, chefe? — o homem perguntou.
— Não é necessário.
Desliguei e terminei de me vestir, desci alguns minutos depois.
A viagem de Aguas Calientes até Cusco, de helicóptero, durava
pouco menos de uma hora e de lá peguei um transporte executivo, direto
para o Centro.
— Para onde, Sr. Huamán? — o homem perguntou assim que
atingimos a Plaza de Armas.
— No La Casona.
Tinha acabado de descer do carro, quando a curiosidade falou mais
alto e liguei o programa de GPS, para ver se Verônica já havia chegado a
Lima. Esperei que o sinal do aparelho dela aparecesse em minha tela, mas
nada aconteceu
Calma, Nico... Voos atrasam e não faz nem duas horas que ela
decolou...
Engoli meu faro para merdas, respirei fundo, vestindo minha
melhor máscara de homem de negócios e passei pelas portas duplas de
madeira do hotel.
— Sr. Huamán... É um prazer recebê-lo em nosso hotel! — uma
das atendentes cumprimentou. — O ministro está a sua espera, no café...
Meneei a cabeça em cumprimento e segui pelo caminho que já
conhecia. Assim que passei pelo jardim interno, vi o ministro de costas,
folheando um jornal.
Caminhei até ele e parei em frente.
— Boa Tarde, Sr. Vergara... — Estendi a mão.
— Nico! Que prazer vê-lo de novo! — Sorriu, aceitando meu
cumprimento e batendo em minhas costas. — Que bom que concordou em
ajudar o Chema... Sabe que aquele garoto turrão odeia me ouvir!
Sorri de canto. Conhecia bem o garoto. Era um bom cliente,
pagador da melhor qualidade, mas péssimo em gerir negócios. O pai havia
permitido que construísse o restaurante como última tentativa de fazê-lo se
interessar por mais do que pó e putas, mas eu tinha minhas dúvidas. O
velho Chema que eu conhecia não mudaria tão fácil.
Despedi-me do ministro já com a noite alta e peguei outro carro,
em direção à estação.
A festa era uma boa oportunidade para vigiar os movimentos do
Matsuya, já que atrairia muita gente de fora e disposta a gastar um bom
dinheiro com diversão.
Assim que o helicóptero encostou no chão, vi Nacho encostado no
carro, fumando um cigarro. Desviou os olhos dos meus e eu tive certeza de
que meu faro reprimido estava certo.
— O que houve? — perguntei já temendo a resposta.
— A brasileira, chefe... Ela desceu em Lima e desapareceu...
Verônica
Peguei minha bolsa de mão e empurrei para fora do aeroporto.
Meu pé ainda doía, então andar rápido não era tarefa fácil.
Tinha mentido para a comissária e dado a boa e velha carteirada,
aquilo que a gente faz quando não tem mais saída e do que, maioria das
vezes, se arrepende.
Era um risco? Claro que era, mas o que eu podia fazer? Aceitar e
simplesmente esperar que Nicolas Huamán, que agora eu sabia bem quem
era, cuidasse de tudo, enquanto eu apenas assistia?
Sinalizei para um táxi que passava e pedi que me deixasse perto do
endereço do apartamento que eu tinha contratado pela internet, do chip
novo, obviamente. Porque, se Nicolas tinha descoberto o grampo, podia
descobrir muito mais.
Entrei em uma lanchonete, pedi um sanduíche e uma garrafinha de
cerveja. Estava sozinha, sem minha arma, já que ela estava a caminho do
Brasil, em minha mala, e ainda tinha que dar um jeito de me esconder do
maior bandido do continente.
É, Verônica, você fez um belo trabalho...
Peguei o celular e digitei “Nakai”. É claro que eu conhecia o
sobrenome, a Nakai-Gumi era famosa em todo o mundo por controlar o
mercado financeiro japonês e manter parcerias milionárias no resto do
mundo.
Como você acabou se envolvendo com eles, Ka? Por que não me
pediu ajuda? E foi aí que a verdade doeu. Ela pediu, mais de uma vez, mas
eu sempre achava que era bobagem. Não podia esperar que a garota me
ligasse no meio da noite para dizer, do nada, que estava com problemas com
a maldita Yakuza.
Dei meia dúzia de mordidas no lanche e bebi minha cerveja, depois
desci a pé até o sobrado verde. Apertei a campainha rezando para não ser
uma daquelas furadas que a gente encontra dando sopa por aí, nos sistemas
de hospedagem residencial. Para a minha sorte, uma mulher de meia-idade
atendeu.
— Oi, eu sou a Verônica... — Sorri. — Que reservou o quarto...
Meu espanhol não era dos melhores, já que eu tinha aprendido a
maior parte das palavras assistindo a Rebelde, mas tinha funcionado com
Nicolas, ia ter que funcionar com ela também.
A mulher correu os olhos pelos machucados em meu rosto,
certamente pensando no que eu havia me metido para ter terminado naquele
estado, mas no fim das contas sorriu.
— Claro... Entre.
Caminhei pela pequena sala, até um quartinho com cama de
solteiro, uma arara de roupas vazia e uma mesa de cabeceira.
— É aqui... Se quiser tomar banho, há toalha na gaveta de baixo do
armário, e sopa no fogão caso esteja com fome. O pagamento é adiantado...
— avisou cortês, mas enfática...
— Oh, sim... — Tirei o dinheiro da carteira e entreguei a ela. — Eu
já comi, obrigada, mas aceito o banho.
Para minha sorte, tinha uma troca de roupa na bagagem de mão.
Não podia andar por aí com o blusão do hotel dele e esperar que ninguém
me notasse.
Deitei-me na cama depois do banho, mas não consegui dormir.
Estava ansiosa e nervosa, mas o pior de tudo era que não conseguia tirá-lo
da cabeça de jeito nenhum.
Nicolas Huamán...
O pouco que provei tinha deixado todo o meu corpo acordado,
como uma droga poderosa. Definitivamente, ele fazia jus à fama de rei do
cartel.
Balancei a cabeça em negativa e alisei os cabelos para trás.
Foco, Verônica! Ele é um bandido... BAN-DI-DO! Do tipo que, no
mínimo, não pestanejaria para te matar.
Quando o dia amanheceu, juntei minhas coisas de volta na mala e
saí o mais rápido que consegui. Não queria dar chance para conversa
alguma com a dona da casa, nem queria que ela se lembrasse muito de mim.
Se Nicolas decidisse me procurar, quanto menos ela soubesse, melhor.
Peguei um táxi de volta para o aeroporto e, de lá, um voo para
Arequipa. Tinha que sair do radar do Condor, mas de carro não conseguiria
chegar a Cusco e investigar o que precisava antes de acabarem meus dias de
licença, então precisei improvisar.
De Arequipa a Cusco eram mais quinhentos quilômetros. Eu não
podia comprar uma passagem direta, porque aí teria que mostrar meus
documentos e me registrar como passageira, o que acabaria com a minha
tática de passar despercebida, então fui pegando ônibus de linha, até estar
perto o suficiente para chamar um táxi e não gastar toda a minha poupança.
Eram quase oito da noite quando cheguei a Cusco. Cansada, suja e
com o pé machucado ainda mais inchado do que quando saí da cidade.
Parei em uma das lojinhas do Centro e comprei uma mochila
pequena. Precisava me livrar da mala e carregar o que fosse essencial junto
de mim, o tempo todo, não podia dar bobeira, tinha noção do quanto o que
eu queria fazer era perigoso. Todo mundo tinha medo da Yakuza e a polícia
não era diferente. Eu podia ser corajosa, mas não era estúpida nem queria
acabar como minha irmã.
Andei um pouco pelo Centro, aproveitando que estava frio para
cobrir minha cabeça com o capuz do moletom. Tinha a sorte de ser magra e
baixinha, então não era tão difícil assim me passar por adolescente de
férias.
Estava descendo uma das ruas próximas, quando vi um sedã
executivo preto parar junto ao meio-fio, no que parecia ser a parte detrás de
um restaurante em construção que eu tinha visto mais cedo.
Gelei, engolindo em seco um pouco de medo e ansiedade que senti,
mas, quando o passageiro desceu, não era o Condor.
O homem, na faixa dos cinquenta, sessenta anos, tinha traços
orientais e olhar frio e sisudo. Deu uma ordem ao garoto que o
acompanhava e, logo depois de um telefonema, os dois entraram pelas
portas de metal.
Meu sexto sentido apitou. Não era incomum que orientais se
fixassem no Peru, o país tinha um histórico de imigração com o Japão, mas
aquele homem ali estava longe de ser um trabalhador comum.
Dei a volta e passei em frente, depois me sentei em uma praça, de
onde conseguia observar o lugar. A placa dizia La Morada, comida típica
peruana e tinha o nome de um chefe famoso local.
Digitei o nome em meu celular e o dono era José Maria Vergara,
filho do ministro da cultura. Pesquisei pelo nome do homem e a maioria das
notícias eram escândalos. Bebedeiras, jogos ilegais, sexo ilegal. Era uma
longa e bonita ficha para o filho de um homem público.
Então quer dizer que o riquinho de merda está com negócios
extraoficiais...
Só havia uma coisa na vida que eu odiava mais do que bandidos
confessos... Políticos!
Eles se fingiam de bons-moços, preocupados com a nação, e na
verdade eram a pior parte da sociedade, ou pelo menos a maior parte deles
era!
Na internet, as notícias sobre o restaurante diziam que inauguraria
no dia seguinte, em uma festa privada, para membros seletos da sociedade.
Nem se atreva, Verônica! Nem pense, porque ele, obviamente, não
iria ajudar você a entrar.
Quando o cansaço bateu, encontrei um albergue de juventude,
daqueles bem bosta, mas que deixam passar aquela velha história de “já
trago meu documento” e tudo bem. Deitei-me na cama e tentei dormir, mas
não consegui. Tinha que encontrar um jeito de entrar naquela maldita festa.
Nicolas
Eu não era idiota e sabia muito bem quais eram as verdadeiras
intenções da garota. Só precisava de um pouco de sorte, e ela cairia em meu
colo.
Verônica havia se livrado do chip de celular, como eu imaginei que
faria, mas ela não contava com o localizador que eu havia colocado dentro
da mala de mão, de que ela só tinha se livrado depois de chegar a Cusco.
— Quer que eu a encontre, chefe? Cusco é nosso território, trago a
garota aqui em menos de duas horas... — Nacho propôs, enquanto eu vestia
meu terno.
— Não é necessário... Se eu bem a conheço, nos encontraremos em
breve.
Falei o mínimo possível, porque Guille tinha descoberto, por
acaso, um dos homens do Matsuya dentro do voo de Lima para São Paulo.
Eu ainda não sabia se fora coincidência, um golpe de sorte ou se
estava mesmo sendo traído por um dos meus, já que pelo menos quatro
homens de confiança sabiam do retorno de Verônica ao Brasil.
Em meu ramo, a parte pior e mais difícil era sempre encontrar a
maçã podre no cesto, porque, vamos combinar, não éramos homens cheios
de virtudes.
Terminei de me vestir e acomodei a semiautomática na parte detrás
do cós da calça. Não era uma situação de risco iminente, e sim um encontro
da sociedade, eu não precisava de mais do que minha arma pessoal.
Entramos no carro, Nacho, eu e o motorista, direto até o centro de
Cusco. Canhões de luzes iluminavam e sinalizavam a entrada, enquanto
projetores desenhavam símbolos antigos nas paredes caiadas do antigo
casarão. Tinha sido um trabalho primoroso de reforma, todo feito com o
dinheiro do povo, obviamente, mas quem era eu para criticar?
— Espere por mim do lado de fora e faça uma boa ronda. Se
encontrar algo estranho, fale comigo antes de agir... — instruí. — Não
quero problemas na festa do ministro.
O homem aquiesceu e desceu, abrindo a porta para mim. Ajeitei o
terno escuro e alisei os cabelos para trás, mostrando meu melhor sorriso.
A entrada estava cheia de repórteres locais e da capital. Pessoas se
aglomeravam para ter a chance de ver de perto alguns dos famosos que
também haviam sido convidados.
Enfiei a mão no bolso do blazer e retirei meu convite, enquanto
corria os olhos, discretamente, pelos presentes.
— Seja bem-vindo, Sr. Huamán... É um prazer tê-lo conosco esta
noite... — A recepcionista sorriu.
Meneei a cabeça em cumprimento e segui para dentro.
Eu odiava aquele tipo de festa, mas tinha aprendido a tolerar pelo
bem dos negócios. Era nisso que Guille e eu nos diferenciávamos. Ele era
melhor lidando com cinquenta homens armados e um caminhão cheio de
produto, eu me dava melhor no covil dos chacais, fingindo ser como eles.
— Nico! — O filho do ministro abriu os braços assim que me viu.
Chema me devia um bom dinheiro, então me tratava como seu
melhor amigo, pensando que assim eu seria mais brando quando chegasse a
hora de cobrá-lo.
Bateu em minhas costas, em um cumprimento exagerado, que eu
retribuí à minha maneira.
— Venha, quero lhe apresentar algumas pessoas... Estávamos
falando do seu hotel! Tenho ideias em mente para uma semana inca, veja,
aquela é Eleonora Rualta, você precisa conhecê-la...
Segui com ele pelo meio das pessoas, cumprimentando uns,
ignorando outros, como sempre. Faz parte do negócio manter a pose de
inatingível. Se você distribui sorrisos demais, acaba taxado de carne de
vaca, e as pessoas brigam é pelos faisões.
A tal Eleonora, secretária de cultura do governo e encarregada de
melhorar o turismo na região, tinha até um plano, mas meu interesse não
estava na semana inca, e sim na brasileira desmiolada e sem nenhum amor à
vida que eu precisava encontrar.
Ia aquiescendo e respondendo monossilabicamente, enquanto meus
olhos astutos vagavam pelo salão. Meu apelido não tinha sido dado à toa.
A brasileira era esperta. Depois de tudo que eu havia contado a ela
sobre Karina e a Yakuza, não ia simplesmente deixar para lá e seguir com a
vida.
Já passava das dez da noite, quando o homem de costas chamou
minha atenção. Estatura mediana, cabelos lisos e curtos e aquela postura de
que o mundo devia se curvar a ele. Estreitei os olhos sem querer, cerrando
os dentes e sentindo o maxilar doer.
Eu sabia do envolvimento de Chema com o Yakuza. As festas
milionárias do herdeiro eram sempre abastecidas com as garotas que a
máfia japonesa enviava, como cortesia, pelos olhos fechados do ministro
quanto ao tráfico de mulheres.
Nunca fui do tipo que enfia mão em vespeiro que não me pertence,
eu tinha meu telhado de vidro também, então me mantinha longe de
problemas, mas, desde o sequestro de Helena e o assassinato de Karina,
aquele vespeiro tinha se tornado meu também.
Peguei uma taça de champanhe e dei a volta no salão, sem que o
japonês pudesse me ver. Ele terminou a bebida e depois caminhou a passos
largos até perto da entrada de serviço, onde um jovem oriental o esperava.
Não pude ouvir o que falavam, mas, assim que o garoto estendeu a
mão para alisar os cabelos para trás, eu vi o rabo da carpa em sua mão. Que
diabos um homem do Nakai estaria fazendo com o Matsuya?
— Precisa de algo? — Chema chegou sorrateiro, por trás, como se
estivesse me vigiando.
— Sim... Descobrir onde é o banheiro! Animar um pouco tudo
isso, sabe como é... — Bati no bolso do terno e o garoto riu animado.
— É claro! Venha, vamos até o meu escritório. Há um banheiro
particular lá...
Acompanhei-o pelo corredor da cozinha, até subir um lance de
escadas e encontrar um escritório suntuoso e elegante.
— Aqui, acredito que a mesa de madeira de lei que ganhei do
Nevada seja melhor que a bancada do banheiro! — Riu.
Passava a língua pela boca, fungando e chupando o ar, como os
viciados fazem por antecipação ao que virá. Tirei o pino do bolso e abri,
espalhando sobre a mesa e repartindo com um cartão do restaurante. Depois
passei o cartão na língua, sentindo-a amortecer com a pureza da droga e
aumentando a expectativa do garoto. Quando cheirou a primeira carreira,
riu alto.
— Oh... Essa é forte! — constatou.
— Para os meus bons clientes, somente o melhor... — Sorri
discreto, oferecendo mais uma carreira ao garoto.
Eu precisava de informações, e ele, de um pouco de felicidade
gratuita, então estávamos felizes os dois.
Caminhei até o bar e enchi um copo com uísque, voltando para
perto da mesa e dando alguns goles.
— Tem certeza de que não quer? — perguntou, quando sobrou
apenas uma carreira.
— Prefiro um bom doze anos... — Bati com o indicador no copo e
tirei o lenço do bolso do blazer, oferecendo a ele, para que limpasse o pó
branco do nariz.
Não tinha dado a ele o suficiente para que ficasse chapado, apenas
um agrado, em troca da conversa sincera que eu queria ter.
— E os negócios, como andam? — perguntei depois de mais
alguns goles. — Os verdadeiros, porque esse aqui, companheiro... Sabemos
que dá mais dor de cabeça que dinheiro... — brinquei e ele riu.
— Meu pai não iria sossegar enquanto eu não fingisse que trabalho
de verdade, você sabe, ele se preocupa demais...
Aquiesci.
— Se precisar de algo, sabe que pode falar direto comigo... Tem
meu telefone pessoal... — lembrei-o. — A festa está muito bonita, você fez
um ótimo trabalho... Até o Matsuya apareceu...
— Ah, ele tem aparecido bastante por aqui... — Riu. — Os
negócios estão deslanchando... Tem até gente de fora vindo...
— Nakai? — perguntei despretensiosamente, já que pouca gente
sabia do meu passado com Isao. — Achei que eles fossem inimigos...
Chema riu, batendo em minhas costas.
— Você sabe como é o mundo dos negócios... Às vezes a gente
precisa baixar a guarda e aceitar as coisas como são... — Riu mais um
pouco, esfregando o nariz para aproveitar o pouco de pó que poderia ter
ficado parado na narina. — O Seiji quer ampliar os negócios... Diversificar
os ramos...
Concordei mais uma vez.
— Drogas? — perguntei apenas por curiosidade.
— Não, Nico! — Arregalou os olhos. — Eu e você, nós... O
cartel... Bem, o negócio é seu, sempre será...
Levei o copo à boca, disfarçando um sorriso sem vontade. Então os
dois filhos da puta estão se unindo contra mim... E usando meus aliados...
Descemos as escadas alguns minutos depois.
A festa ainda estava cheia e animada, com todos ansiosos para a
apresentação de dança típica que teríamos. Era minha deixa para sair de
fininho e procurar por Verônica na cidade. Eu até tinha uma ideia de por
onde começar.
Passei pelo grande salão e estava quase descendo a escada quando
vi, pelo reflexo do vidro, um vulto correndo, meio sem jeito, atravessando o
jardim em direção à entrada dos fundos.
Fiz o trajeto contrário, conhecia bem aquele casarão, mesmo
depois da reforma, e contava com isso para surpreender quem quer que
fosse o intruso.
Caminhei devagar, beirando a parede, a mão na arma, olhos e
ouvidos atentos. Vi primeiro o ombro de uma jaqueta preta e então levei a
mão com força. Tinha só uma chance, não ia desperdiçar.
Verônica
Senti o puxão, mas não tive tempo de reagir. Fui empurrada contra
a parede de tijolos, o cano frio da arma em minha têmpora, enquanto um
antebraço forte mantinha meu pescoço preso.
Levantei as mãos em sinal de rendição, não tinha nem como lutar.
O coração acelerado e aquela sensação de adrenalina incontrolável em que a
gente fica quando sabe que a vida está por um fio.
E foi então que o aperto afrouxou e eu inspirei com força, sentindo
aquele maldito perfume conhecido invadir meus sentidos.
— Sabe o que eu deveria fazer? — Engatilhou a pistola, tão
próximo do meu rosto que o barulho me fez tremer involuntariamente. —
Estourar os miolos que você não tem, detetive...
— Faça! — provoquei.
Nicolas me virou de frente em um único movimento, batendo
minhas costas contra a parede e fazendo-me reprimir um gemido de dor. O
olhar que tinha beirava a animalidade. Maxilar contrito, o joelho entre
minhas pernas, mantendo-as abertas e presas, impedindo-me de revidar.
Desceu o cano da arma pela lateral do meu rosto, até meus lábios,
tocando-os devagar. Respiração entrecortada, dele e minha, como se
estivéssemos em sincronia. Eu sentia um misto de medo e excitação se
espalhar pelas minhas veias, como um veneno poderoso e paralisante.
Nicolas segurou-me pelo braço, forte, sem dizer uma palavra
sequer. Arrastou-me por dentro do terreno, de volta ao portão de serviço, na
rua adjacente e continuou, até que atingimos a esquina. A rua de pedras e o
passo rápido dele me faziam tropeçar e eu o sentia me sustentar pelo braço,
forte e dolorosamente. Empurrou-me para dentro de um portão de ferro e
atravessamos um jardim escuro. Assim que passamos pela porta do que
parecia ser uma casa antiga, ele me prensou contra a parede.
— Hum... — gemi de dor, mas mantive os olhos focados nos dele.
— Sabe o que eu acho, garota? — perguntou, mas não esperava
uma resposta. — Você não tem ideia de com quem está brigando! Entrou
nessa achando que ia ser como suas operaçõezinhas de fundo de quintal...
— Forçou o joelho entre minhas pernas, roçando em mim de propósito. —
Sabe o que acontece quando um pardal tenta voar com os condores?
A arma passeava em meu rosto, descendo pelo pescoço e clavícula,
brincando no decote da camisa de botões. Eu sentia meu corpo todo tremer
e se aquecer, a excitação pulsava entre minhas pernas, bem no local em que
seu joelho me tocava.
— Se vai me matar, deveria fazer isso de uma vez... Não se deve
apontar uma arma se não há intenção de atirar...
O movimento foi tão rápido que, quando ouvi o tiro, tive certeza de
que era em mim, mas o grito esganiçado do pássaro lá fora e o sorriso de
Nicolas deixaram claro que não.
— Tem razão, Verônica... Não se desperdiça um tiro engatilhado...
— Umedeceu os lábios, aproximando-os dos meus. — Para sua sorte, ainda
não era sua vez.
Ele ficou parado ali, por alguns segundos, respirando junto a minha
boca, como se travasse uma guerra mental contra o que queria e o que
deveria fazer, exatamente como eu, e sem aviso algum sua língua invadiu a
minha, ansiosa e ávida por espaço.
— Hum... — gemi de novo, mas dessa vez não era de dor.
Nicolas prensou o corpo contra o meu, apertando o pau duro contra
meu estômago e fazendo-me arfar. A boca moía a minha com tanta
velocidade e fome que era quase doloroso.
Abriu o botão da minha calça e a puxou para baixo, com calcinha e
tudo, até os tornozelos, sem nem pensar. Livrei minhas pernas das roupas,
enquanto soltava o cinto e o botão, baixando o zíper.
Senti suas mãos em minha bunda e enlacei as pernas em sua
cintura, sem deixar de beijá-lo. Era uma urgência incontrolável por mais,
tão intensa e forte que o roçar do elástico da cueca em meu clitóris quase
me fez gozar, sem que eu nem fosse tocada de verdade por ele.
— Ah... — gemi mais alto, quando ele mordeu meu pescoço,
chupando com força.
Nicolas me colocou sobre uma base de madeira e enfiou a mão
entre nossos corpos, fazendo-me tremer em antecipação, tanto que quando
me penetrou eu soltei mais um gemido alto e forte, impossível de controlar.
Apertei as coxas contra sua cintura, sentindo-o ir mais fundo e
mais fundo, causando um misto de prazer e ardência, deixando-me zonza.
Sua mão espalmou-se contra meu peito, baixando-me, e então ele
agarrou-me pelo quadril, chocando-o com força contra sua pelve uma e
outra vez, até que eu senti o princípio de espasmo em meu canal. Arqueei o
corpo esperando o gozo que viria, mas Nicolas puxou-me pelo cabelo,
enlaçando em torno do pulso e levantando-me de volta.
— Olhos abertos... — ordenou. — Quero vê-la gozar...
Obedeci, mordendo o lábio para segurar o gemido. Estava tão
molhada que o sentia escorregar para dentro e para fora arrepiando minha
pele.
Quando o orgasmo veio, perdi os sentidos por um segundo, testa
apoiada na dele, as mãos deslizando em seu peito ainda coberto.
Com a mesma força que me invadiu, Nicolas me deixou. Eu mal
conseguia organizar os pensamentos, quanto mais descer da porra da mesa.
Respirei fundo e tentei pensar no que faria a seguir. Nicolas deu
dois passos em frente, apoiando as mãos na pia. Depois alisou os cabelos
para trás. A arma ainda sobre a bancada, a luz da lua iluminando sua
silhueta.
Que porra, Verônica! Que porra você acabou de fazer?
— Há um banheiro seguindo o corredor... — a voz grave e
profunda dele estava carregada de um sentimento que eu não sabia como
definir.
Arrependimento? Era compreensível que fosse, eu me sentia do
mesmo jeito, sem saber bem o que pensar.
Peguei minhas roupas e segui até o final do corredor. Com as luzes
apagadas, eu não sabia bem onde estava, mas, quando cheguei ao banheiro
e apertei o interruptor, vi que era uma casa antiga, tradicional e muito bem-
cuidada.
O ladrilho do chão tinha um tom de terracota, clássico do estilo
latino, com azulejos amarelos, ornamentados por flores azuis na faixa
decorativa. Liguei o chuveiro e deixei que a água caísse sobre mim, mas o
toque de Nicolas ainda estava ali, na pele sensível pelas carícias e dolorida
pela intensidade do sexo.
Passei sabonete nas mãos e comecei a lavar meu corpo, mas tudo
que sentia ainda era as mãos dele, o toque, o beijo, o gosto, o cheiro de suor
e perfume caro, os gemidos contidos, a barba cerrada arranhando meu
pescoço.
Talvez ainda fosse efeito do ato, mas a verdade é que meu tesão
por ele tinha aumentado, e não diminuído. Alisei os cabelos para trás e
soltei uma lufada de ar buscando um pouco de clareza, mas, assim que me
virei de volta para a porta, Nicolas estava lá. Mãos cruzadas sobre o peito
nu, a calça aberta, mostrando o caminho de pelos escuros que descia abaixo
do umbigo, perdendo-se no elástico da cueca branca, onde o volume já
estava formado.
Soltei o ar dos pulmões sem querer, hipnotizada por seus olhos
escuros.
— Sabe de uma coisa? — perguntou, dando passos em direção ao
boxe de vidro. — Ainda não estou satisfeito.
Mordi o lábio reprimindo o sorriso safado que insistia em ganhar
meus lábios.
Nicolas
Ela sorriu e eu perdi o pouco de sanidade que ainda tinha.
Já estava no inferno mesmo, ia aproveitar o que podia do demônio
loiro que a vida tinha colocado em minha frente.
Entrei com ela no espaço apertado do boxe ainda de calça.
Verônica demorou alguns segundos analisando o desenho em meu peito,
traçando-o com a ponta dos dedos, descendo em direção a minha cintura.
Baixou minha calça e eu a tirei. Acariciou o monte que meu pau duro
formava na frente da cueca com a mão, enchendo-a com gosto, lábios
semiabertos, como se estivesse me provando devagar.
Senti-me pulsar contra seus dedos, latejando de desejo.
— Gosta do que vê? — perguntei ensaiando um sorriso de canto
que combinava com o dela.
Tínhamos chegado àquele ponto em que a queda é inevitável, então
estávamos aproveitando a descida.
— Gosto mais do que sinto... — Apertou os dedos em torno do
volume, fazendo-me gemer.
Deixei que baixasse minha cueca e, quando o fez, encaixei o pau
entre suas pernas, sem penetrá-la. Segurei em sua nuca, elevando a cabeça
para que eu pudesse beijá-la, minha língua tateando a dela, mordiscando
seus lábios e sugando-os. Com a outra mão, acariciei seus lábios íntimos
separando-os para que, quando me movesse, pudesse friccionar meu pau
contra seu clitóris.
— Hum... Nicolas... — gemeu contra minha boca, quando
comecei. — Ah...
Brinquei com ela, controlando o que sentia pelos gemidos que
soltava, até que ela mesma não aguentou, levando a mão até a boceta e
guiando meu pau para dentro.
Ergui sua perna, encaixando em minha cintura para melhorar a
posição, e então comecei a fodê-la com a vontade filha da puta que ela me
dava. Quanto mais eu investia, mais queria, rápido, forte, sentindo minhas
bolas socarem contra sua carne macia. Era viciante, mais que qualquer
heroína que eu pudesse produzir.
— Porra, brasileira... Precisava ser gostosa assim? — brinquei e
ela riu contra o meu pescoço, arrepiando minha pele.
— Nico... — sussurrou, mas não foi capaz de continuar.
Quando sua perna fraquejou, eu soube que era hora de ir fundo,
buscando minha própria liberação.
Gozei ouvindo-a gemer tão alto que podia apostar que metade de
Cusco havia ouvido também.
Quando recobrei o controle, estava apoiado contra a parede de
azulejos amarelos, Verônica abraçada a mim. Os braços pequenos mal
chegavam em minhas costas, o rosto enterrado em meu peito. Respiração
entrecortada, quase imóvel, como se precisasse de um tempo para se
recuperar.
Segurei seu rosto entre minhas mãos e encarei seus olhos castanho-
esverdeados. Por um segundo, não queria pensar no depois, nem em como
seria quando ela ponderasse e fugisse mais uma vez. Eu só queria ser o
Nico, não o Condor, nem o rei do cartel, só o homem.
Ela encarou-me por um longo tempo, depois cruzou as mãos em
minha nuca, o nariz contra meu pescoço, respirando ainda acelerado.
— Vem... — Levei-a pela cintura, já que o inchaço no tornozelo
ainda era evidente. — Está frio, você vai acabar doente.
Verônica não ofereceu resistência, acompanhando-me para fora do
boxe. Enrolei uma toalha em volta dela, outra em minha cintura, e comecei
a secar seus cabelos.
— Está com fome? — perguntei. — Eu posso...
Ela negou com a cabeça, interrompendo-me. Os olhos se perdiam
nos meus a cada vez que nossos olhares se cruzavam. Era como se ela não
quisesse dizer, mas esperasse que eu entendesse mesmo assim.
— Venha... — Estendi a mão e ela a cobriu com a sua.
Levei-a até meu quarto e a coloquei sentada na cama, enquanto
vestia uma calça de elástico.
— Vou conseguir algo para você vestir...
Deixei-a e atravessei o jardim interno, até o quarto de Maribel...
Abri o armário em busca de algo que Verônica pudesse usar para dormir.
Encontrei uma calça de moletom e uma camiseta, e levei até ela.
— Aqui... — coloquei na cama ao seu lado.
A garota ficou encarando a camiseta cor-de-rosa por alguns
segundos e, mesmo que não precisasse, senti-me no dever de explicar.
— Minha prima... — expliquei. — Esta casa em que estamos...
pertence a minha família há muito tempo...
Verônica continuou encarando a roupa e a mim, como se buscasse
entender.
— O quê? Achou que eu tinha nascido de uma chocadeira ou algo
assim? — brinquei e ela esboçou um sorriso. — Eu sou só um homem,
Verônica... Posso ter escolhido um caminho diferente do seu, mas sou
humano, como você.
— Vai mesmo preparar algo para eu comer? — Sorriu provocativa.
— Posso tentar... Não faço ideia de como está a despensa... Não
venho muito aqui... — confessei.
Vestiu a calça e depois a camiseta, arrumando os cabelos com as
mãos, depois respirou fundo.
— Nicolas, eu...
— Nico... — interrompi. — Pode me chamar de Nico, como fez
agora há pouco... — Sorri de canto, vendo o rubor manchar sua pele clara.
— Mas hoje não vamos conversar, corazón... Amanhã... Hoje não...
— Aceito a comida, então... — Sorriu. — Não como desde o
almoço.
Desencostei-me da cômoda em que estava e segui pelo corredor, de
volta até a cozinha, e acendi as luzes.
A noite estava fria e Verônica esfregou os próprios braços, quando
se sentou na grande mesa de madeira.
— Você não sente frio, não?
— Gosto do clima daqui... O frio me faz pensar melhor... — Sorri
de canto, pegando uma frigideira e colocando no fogo.
Quebrei três ovos e mexi. Coloquei um pouco de farinha de milho
fina e sal. Fritei em porções, como panquecas, do jeito que Tia Lupe fazia
quando éramos crianças.
Quando terminei coloquei o prato na mesa e peguei uma das
panquecas, dando uma mordida generosa.
— Desculpe o cardápio enxuto, senhorita, mas é o que este chefe
consegue preparar no meio da madrugada e com uma geladeira vazia.
Verônica levou à boca e deu uma mordida; depois de mastigar
sorriu.
— Até que você é bom nisso! — brincou.
Depois de comer, eu a levei até o quarto, não podia deixar que
voltasse para o albergue, não sem proteção. Alguém provavelmente tinha
nos visto sair juntos, isso se não a estivessem seguindo antes. Se a garota
não ia mesmo embora, ao menos tinha que se manter longe de problemas.
— Durma um pouco... Logo vai amanhecer e aí vamos conversar...
— expliquei.
— Você não vai dormir? — perguntou.
— Depois...
Vesti uma blusa e deixei-a na cama. Segui até o jardim, acendendo
um cigarro e dando um trago longo.
Havia algo naquela garota que despertava o melhor e o pior de
mim. Se me desafiava, eu queria ir além, dominá-la, subjugá-la, mostrar
quem mandava, mas, se baixava a guarda, levava a minha com ela e tudo
que eu queria era protegê-la. Verônica Malta tinha um dom que ninguém
mais tinha, ela conseguia trazer de volta à tona um Nico que havia sido
soterrado pelo poder. Um que cheguei a pensar que não existia mais.
Verônica
Acordei com a claridade entrando pelas cortinas finas da janela.
Nico dormia ao meu lado. Parecia tão relaxado e tranquilo que fiquei alguns
segundos encarando o homem na cama.
Era tão jovem para o peso que carregava. Não parecia ter muito
mais que trinta anos. Rosto bonito, corpo perfeito, nem parecia o homem
letal de quem eu ouvira falar.
Havia uma cicatriz funda no pescoço, perto do osso da clavícula,
provavelmente um tiro. Pela manga da camiseta branca, a cicatriz de um
corte de faca marcava sua pele morena em um tom mais claro e levemente
brilhante.
Quanta coisa você já viu? Pelo que já passou?
Eu queria enxergar nele o que via antes de o conhecer, mas, a cada
minuto que passava com Nicolas Huamán, aquela imagem desaparecia um
pouco mais.
Levantei-me com o cuidado de não o acordar. Não sabia em que
momento da noite ele havia deitado, talvez precisasse de um pouco mais de
descanso, e assim eu poderia me preparar. Não podia fraquejar, não estava
ali para encontrar um romance ou algo do tipo, Karina, Karina era o foco.
Tateei pela cama, mas desisti quando Nicolas ressonou. Olhei nas
duas mesas de cabeceira e sobre a cômoda, mas não encontrei.
Caminhei até a cozinha rezando para ainda estarmos sozinhos e
procurei pelo chão, mas também não encontrei.
— Droga! — xinguei baixinho.
— Estava procurando por isso? — a voz grave me fez pular de
susto.
Virei-me para encontrar Nicolas junto ao arco da entrada, a pistola
pendurada no indicador.
— Achou mesmo que eu a deixaria dando sopa por aí? —
provocou.
Soltei o ar dos pulmões de uma vez, mas, quando ia começar a
explicar, vi o aparelho debaixo da minha camisa.
— Não! — Ergui a sobrancelha. — Estava procurando por isto! —
Balancei o celular, já em minha mão. — Gravei uma conversa que ouvi
ontem, lá nos fundos do restaurante... Não conheço bem os nomes, mas
você deve... — Parei a frase no ar e revirei os olhos. — Achou mesmo que
eu ia tentar te matar? — perguntei surpresa.
Nicolas deu alguns passos e puxou uma cadeira, espreguiçando-se.
— Por que não? Você e eu não somos amigos... Não temos
nenhum... — correu os olhos pelo meu corpo de um jeito íntimo —
negócio...
Engoli em seco as palavras, porque, ainda que fossem verdadeiras,
não eram exatamente o que uma garota quer ouvir depois de transar com
alguém.
— Talvez no seu mundo... — ignorei o gosto amargo em minha
boca, usando minha melhor cara de deboche — a traição seja normal e
esperada, mas no meu... — Peguei uma maçã na cesta de frutas e dei uma
mordida. — A gente não costuma apunhalar as pessoas pelas costas...
De repente, ele se levantou, apoiando o corpo na mesa, de frente
para mim. Poucos centímetros entre nós.
— Um olho aberto, outro fechado... Sempre... Não importa quem
seja... — falou encarando-me.
Senti o coração pesar, não sabia o que dizer, porque, ainda que não
fôssemos nada um para o outro e tudo não passasse de uma boa foda,
naquele momento parecia íntimo e pessoal demais.
— Nico, eu... — Engoli em seco, sem conseguir continuar.
— Foi por minha causa, Verônica... Karina morreu por minha
causa...
Alisou os cabelos para trás, parecia mais pesaroso do que
ameaçador e, para ser sincera, eu não queria censurá-lo nem o culpar, ao
menos não naquele momento.
— Isao Nakai e eu temos uma dívida... Um acerto de contas que só
vai terminar quando um dos dois morrer... — confessou.
Não parecia uma disputa por território ou qualquer coisa
relacionada ao cartel, tinha cara de assunto pessoal, então não perguntei
nada, apenas deixei que ele falasse.
— Minha mãe morreu quando eu nasci... Um parto difícil,
daqueles em que não se pode fazer muito a não ser rezar para que pelo
menos um dos dois se salve... — Respirou fundo. — Eu me salvei, ela
não...
Baixei os olhos para os pés. Família era um assunto complicado
para mim também.
— Meu pai nunca quis outra mulher, passou uns bons anos
sozinho, até que uma antiga vizinha da sua infância reapareceu... Ela se
chamava Malena Santiago... — Respirou fundo. — Malena era como
Karina... Levava luz por onde passava e tudo parecia melhor com ela por
perto. Meu pai sempre a amou, mas não achava que tinha o direito de ficar
com ela... Deu espaço demais, e o Nakai apareceu...
Nicolas cerrou as mãos em punho, tão forte que veias subiram por
seu antebraço, o peito indo e vindo, mostrando o ódio que sentia.
— Meu pai acabou morto, a Malena também, e aqui estamos nós,
Nakai e eu, disputando quem consegue ferir mais o outro.
Respirei fundo, podia sentir um pouco da dor dele apenas por
encará-lo. Nicolas não era tão bom em esconder sentimentos quanto eu
pensava, ou havia desistido de fingir para mim.
— Sinto muito... — soltei meio sem querer.
— Por quê? Ele merecia! Era um traficante filho da puta,
igualzinho a mim... — Deu de ombros, enquanto acendia um cigarro. —
Daquele tipo que você deve adorar pegar em flagrante e encher de porrada!
— Piscou, ainda com o cigarro entre os lábios.
Eu sabia bem o que estava fazendo, usava aquela mesma tática
quando queria fingir que não me importava com nada.
Eles morreram... Morreu, a gente enterra!
Era cruel. Eu era cruel e era desumana também. Para ser sincera,
não era, mas eu fingia e, quando fingia, doía menos. Fui aprendendo a não
me importar e a repetir isso como um mantra, até que se tornasse verdade.
Era estranho olhar para Nicolas Huamán, porque eu sentia como se
olhasse no espelho. Podíamos ter seguido caminhos diferentes, mas
tínhamos muito mais coisas em comum do que gostaríamos.
Nicolas virou as costas, encarando o jardim.
— Nicolas... — chamei, mas ele não se virou. Respirei fundo um
milhão de vezes, tomando coragem para dizer o que estava entalado em
minha garganta. — Não é sua culpa...
Devagar ele se virou para mim, encarando-me por mais alguns
segundos.
— Não é sua também... E olha para você... Está machucada, quase
morreu e ainda assim... não desiste...
Tentava parecer duro, inabalável como o homem que eu havia
conhecido, mas eu o via um pouco melhor agora, como se o véu tivesse
sido retirado.
— Volta para casa, brasileira... Antes que se machuque de
verdade... — Deu um trago no cigarro. — Estou cansado de recolher corpos
ao meu redor...
Jogou a ponta do cigarro no chão e pisou em cima, dando-me as
costas novamente e seguindo pelo corredor.
— Nico... — chamei.
Ele não se virou, mas parou onde estava.
— Deixe-me ajudar... — pedi. — Você quer a sua vingança, eu
quero a minha...
Nicolas
As palavras bateram em mim como um tapa, forte, espalmado, no
meio do rosto.
Eu conhecia bem o tamanho do buraco que era a vingança e o
quanto a gente se machucava na queda, mas não podia dizer a ela que não
compensava. Porque, no fim das contas, quando a gente sabe que a justiça
foi feita, vale sim.
Soltei o ar dos pulmões de uma vez, alisando os cabelos para trás e
coçando a barba.
— Deixo você ficar e observar... Do meu jeito, detetive... Sem
escapadas e sem surpresas... — Cruzei o espaço entre nós em alguns passos.
— Eu dito as regras e você obedece... — Corri a mão pela lateral do seu
rosto, levantando o queixo para que me encarasse de perto. — Bem
quietinha e dócil, como um gatinho... Nada de garras para fora, sem
questionar, sem pensar muito... Apenas obedecendo...
Verônica entreabriu os lábios e eu senti meu pau latejar dentro da
cueca. Tudo tinha sempre um viés sexual entre nós, a porra de um desejo
que eu mal conseguia controlar.
— Sim senhor... — provocou, mordendo de leve o lábio inferior,
como se também não pudesse evitar. — Mas sabe que não sou detetive...
Minha mão foi escorregando pelo pescoço e seios, sentindo o bico
arrepiado e arrancando um arfar suave dela. Desci pela cintura, umbigo, até
o cós da calça e afundei ali, acariciando o pequeno monte de pelos aparados
que ela tinha, sem desviar os olhos dos seus.
— Mais uma coisa... — falei, descendo um dedo até a entrada da
sua boceta e fazendo-a fechar os olhos por um segundo. — Enquanto
estivermos com isso... — Trouxe-a para perto, roçando os lábios em sua
orelha. — Você fica na minha casa... Nada de hotel, senão não consigo te
proteger e você vai ser uma pedra chata no meu sapato...
— Sabe o que eu acho? — perguntou com um olhar sagaz, cheio
de malícia. — Que você gostou tanto de foder ontem que está querendo
uma desculpa para fazer de novo...
Enfiou a mão por dentro da minha camiseta, arranhando meu peito
com as unhas e arrepiando minha pele. Eu estava tão duro e pronto para
foder aquela desgraçada gostosa de novo, que mal conseguia falar.
— E se eu quiser... — Aprofundei mais o dedo, sentindo a umidade
dela se espalhar, quente, pelas paredes do canal. — Acha que aguenta? —
provoquei.
— Acho que posso tentar... — Puxou-me pelo pescoço, levando até
perto da sua altura, e sussurrou em meu ouvido. — Chefe...
No minuto seguinte, ela estava sentada na mesa e meu pau
castigando a boceta dela com gosto.
— Ah... Nico... — sussurrou e agarrei seu quadril esfregando
contra mim e sentindo seu canal se apertar.
Podia ter parado, estava quase gozando, mas não conseguia. Eu
queria mais e mais. Tinha lidado com as piores drogas a vida toda e acabei
viciado na porra da brasileira em poucos dias.
— Hum... — gemeu mais forte, cravando as unhas em minhas
costas.
Aquele ardor de arranhado estava por toda a minha pele, mas eu
podia apostar que ela ia arder muito mais quando eu parasse. Puxei-a pela
nuca, moendo minha boca contra a dela, minha língua fodendo sua boca,
enquanto meu pau se deliciava mais um pouco, indo e vindo sem parar.
Quando minhas pernas fraquejaram, eu me apoiei na mesa,
aumentando o ritmo, até que o ar me faltou. Nunca na vida eu tinha gozado
com tanta intensidade. Sentia a cabeça girar e aquele calafrio que a gente
não consegue controlar, só sentir.
Deixei a cabeça pesar contra seu ombro e ela me abraçou, as mãos
acariciando minhas costas ardidas e suadas...
— A gente precisa ir com calma... — Riu contra minha pele,
fazendo-me arrepiar mais. — Sabia que isso mata, não é?
— Dá uma boa lápide... — brinquei, guardando o pau dentro da
cueca e encostando ao lado dela para acender um cigarro. — Nicolas
Huamán... — Dei um trago. — Morreu feliz, fodendo como uma britadeira
desgraçada!
Verônica riu e pegou o cigarro da minha mão, levando à boca.
— O que você conseguiu gravar... Deixe-me ver...
Ela pegou o telefone e procurou pela gravação, depois aumentou o
som.
No vídeo, um homem que eu conhecia bem aparecia ao fundo,
falando com alguém que eu não conseguia ver.
“Eu já disse, estamos ficando sem tempo!” — gritou e depois
estendeu a mão, como se pegasse alguém pelo colarinho. “Meus assuntos
não interessam! Só o que precisa saber é que uma nova era está
nascendo...” — Riu debochado, ajeitando o terno. “O velho está com o pé
na cova e o filho é muito melhor de negócios... Isso! Tanto que até me deu a
garota.”
Senti meu sangue se aquecer nas veias e cerrei as mãos em punho,
involuntariamente. Não queria acreditar, mas a verdade é que fazia todo
sentido.
O homem escondido atrás da pilastra falava tão baixo que não
podíamos escutá-lo, tudo que conseguíamos ver dele eram as mãos
gesticulando sem parar, mas estava tão longe, que era impossível
reconhecer.
“Duvido que o Condor se importe, mas se acha que sim...
Podemos tentar...” — Riu novamente. “Nada como uma boceta nova para
fazer um homem perder a linha!” — Soltou uma gargalhada.
— Então? — Verônica perguntou. — Entendeu alguma coisa?
— Mais do que gostaria... — Dei mais um trago, soltando a
fumaça para cima. — Parece que os dois demônios japoneses estão de
conluio...
— Tem ideia de quem pode ser o homem escondido na pilastra? —
continuou.
Alisei os cabelos com a mão livre.
— Um dos meus, provavelmente...
— Um traidor...
— Alguém querendo meu posto... É como as coisas são por aqui,
corazón... Olho por olho, dente por dente...
Desviei os olhos dos dela. Tinha deixado muita coisa de fora, sobre
meu pai e Malena, não queria que ela soubesse de Yuki e de toda a merda
que o Nakai, pelo visto, pretendia fazer. Isso eu resolveria com o Shin,
quando chegasse a hora. Quanto menos Verônica soubesse, mais segura
estaria.
— Precisamos pegá-los... antes que se unam então... —
interrompeu meus pensamentos.
— Eu até que gostaria, mas não é fácil fazer o filho da puta do
Nakai sair da toca, acredite... Eu já o cacei de todas as maneiras possíveis...
Ele é liso, como as malditas carpas de que tanto gosta...
— Uma isca... — Desceu, tomando cuidado de pisar com o pé
bom. — Você disse que ele estava atrás de mim... Se achar que... — ia
falando e o plano se formando. — Se achar que estamos juntos, então...
— Não! — Tentei me afastar, mas ela me conteve.
— Era de mim que ele falava, não era? A boceta nova... Ele acha
que você... — Desviou o olhar.
— Não vou fazer isso... — Empurrei-a e me afastei.
— É só fingir, Nicolas... A gente finge que está junto por alguns
dias... Olha, eu tenho mais dez dias de licença, posso adiar minha passagem
e... — Respirou fundo. — Só fingir... para pegar o desgraçado... Você não
precisa...
Dei um passo, segurando seu rosto com uma das mãos.
— Me importar? — questionei. — Acha que não me importo?
Verônica ficou sem reação. Muda, os olhos perdidos nos meus. Por
um segundo, mais sentimentos do que eu gostaria passaram por nós, uma
conexão estranha, cheia de entendimento e similaridades.
Soltei-a de uma vez, obrigando-a a se escorar na mesa para não
cair.
— Não vou usar você de isca, brasileira... Já disse que estou
cansado de bancar o coveiro... — disse já lhe dando as costas.
— E eu já lhe disse que não sou uma das suas garotas... Sei me
cuidar, Nicolas... Tenho treinamento e experiência... Não será a primeira
vez que me coloco de isca para um filho da puta qualquer... Eu consigo!
Eu a tinha estudado cuidadosamente. Sabia dos feitos, das muitas
prisões e das operações criminosas que tinha conseguido desmembrar.
Sabia que ela era boa no que fazia e que tinha sangue-frio suficiente para o
trabalho, mas eu não queria e nem entendia a razão.
Tinha dado alguns passos, quando ela segurou meu braço.
— Por favor, confie em mim... Eu consigo... Você só precisa fingir
que... — Parou a frase, meus olhos acompanhando os dela, esperando pelo
que viria.
— Estou apaixonado? — adiantei-me provocando-a. — Difícil que
alguém acredite! — Ri sem humor.
— Você mesmo disse que não está conseguindo pegar o Nakai... Se
ele achar que sou importante para você, vai vir atrás de mim com mais
vontade... Não acha? — perguntou, mas eu não respondi, livrei-me dela e
segui meu caminho. — E aí a gente só precisa pegá-lo, Nico! — falou mais
alto. — Eu fiz esse tipo de coisa minha carreira toda, sei o que estou
fazendo... Eu...
A voz dela ia ficando mais alta, conforme eu me afastava, mas eu
não parei. Não gostava do rumo daquela conversa e não queria continuar.
— A gente tenta, ok? Só tenta... E, se não der, eu volto para o
Brasil, saio do seu caminho... Você prometeu, Nico! Prometeu que ia me
deixar ajudar! — gritou.
Parei onde estava.
— Prometi que te deixava ficar e olhar, detetive... Não que ia
desfilar de braço dado com você pela cidade...
— Por favor...
Continuei andando.
A gente tenta... As palavras se repetiam em minha cabeça, eu quase
podia vê-la dizê-las novamente. E se não der certo...
Respirei fundo, encarando o piso encerado de ladrilhos terracota.
E se der? E aí, Nico, o que você vai fazer?
Verônica
Ele sumiu entrando pela porta do quarto e eu fiquei ali.
Não tinha muito que pudesse fazer sem ele, ainda mais sabendo
que teria que lidar com duas facções da Yakuza, em apenas dez dias, sem
apoio policial e com o pé machucado.
Droga de peruano filho da puta! Custava confiar em mim? Revirei
os olhos. Deve ser do tipo que acha que mulher só serve mesmo como
reservatório de porra.
Vesti minha calcinha e a calça jeans. Tomaria banho no albergue,
pelo menos não tinha que encarar aquele desgraçado arrogante de novo.
Estava fechando os botões da camisa, quando Nicolas apareceu no
arco que dava para o jardim.
— Uma tentativa... — falou de repente. — E acredite, não é uma
pessoa fácil de enganar!
Sorri animada, mas ele não.
— E você precisa fazer tudo como eu mandar... Porque o Nakai
não vai sair fácil da toca, ele vai mandar os capangas... — Estreitou os
olhos, aproximando-se de mim. — A gente precisa tentá-lo, corazón...
Senti um friozinho subir pela espinha, arrepiando tudo dentro de
mim.
Que merda, Verônica... Acabou de dar e já está querendo repetir a
dose?
— Combinado! — Pisquei fazendo graça e tentando não parecer
afetada.
— Tome um banho enquanto eu preparo uma pequena mala... Já
que as roupas de Maribel serviram em você, poupamos tempo... Odeio
compras e não posso deixar que ande por aí como um dos integrantes de
Brooklyn Nine-Nine.
Ri sem querer.
— Ei, está dizendo que eu não sei me vestir? — perguntei
sarcástica.
Nicolas correu os olhos por mim, dos pés até a cabeça, e então
virou as costas e seguiu pelo jardim.
Filho da puta convencido!
Tirei a roupa e entrei debaixo do chuveiro morno, lavando o corpo
e os cabelos com os produtos que estavam na prateleira. Já que íamos
mesmo fingir ser um casal, eu podia parar de cerimônia e, ao menos, lavar o
cabelo direito.
Terminei e me enrolei na toalha, para usar o secador.
Espero que você não se importe de me emprestar sua escova
também, Maribel!
Pensei enquanto escovava os cabelos. Deixei-os lisos, mas ressaltei
o corte desfiado, fazendo-o cair em ondas. Ia mostrar para aquele mafioso
folgado quem era a investigadora Malta.
Voltei para o quarto e encontrei Nicolas sentado na cama. Havia
uma calça jeans clara de corte ajustado e um suéter cor-de-rosa clarinho,
além de uma blusinha branca, tênis, lingerie, a maioria das peças ainda com
etiqueta.
— Minha prima compra mais roupas do que consegue usar... —
Deu de ombros quando percebeu que eu encarava as roupas.
Soltei a toalha sem desviar os olhos dos dele, só para fazer graça
mesmo. Nicolas correu os olhos por mim, a língua brincando perto dos
dentes e aquele sorrisinho sarcástico e irritantemente sexy brilhando no
canto dos lábios.
— Veja se serve... — falou como se eu não o afetasse.
Obedeci e, para a nossa sorte, realmente serviu.
— Consegue calçar os sapatos? Foram os mais confortáveis que
encontrei.
Peguei um dos tênis na mão e conferi o número.
— Sim... São um número maior, ficarão confortáveis, mesmo com
o inchaço...
Fez sinal para que eu colocasse o pé ruim sobre a cama e abriu
uma caixa de primeiros socorros.
Deixei que passasse a pomada e, enquanto sua mão escorregava em
minha pele, fiquei encarando-o. Eu não tinha muita gente cuidando de mim,
então era estranho, mas não de um jeito ruim, muito pelo contrário; era
exatamente esse contrário que me preocupava.
— Pronto! — Colocou meu pé de volta no chão. — Calce e veja se
consegue andar... Não quero chegar à fazenda carregando ninguém no colo.
— Vê? — Levantei assim que terminei de calçar os sapatos. —
Apta ao trabalho, chefe! — provoquei.
Nicolas estreitou os olhos para mim.
— Pare com isso! Não sou seu chefe... — Abri a boca para falar,
mas ele me silenciou com o dedo em riste. — Se fosse... Sua escapadinha
em Lima teria rendido bem mais que um tornozelo inchado!
Pegou as duas bolsas de couro e jogou sobre os ombros.
— Vamos... O caminho é longo e não quero me atrasar para o
almoço. — Pegou um par de óculos escuros e colocou no rosto.
Assim que passamos pelo portão da entrada, vi o esportivo
moderno preto estacionado junto ao meio-fio. Era um daqueles carros que a
gente só vê nos salões do automóvel, ou quando tem mandado para a casa
de algum bandido famoso.
O homem que havia me levado até o aeroporto estava encostado na
lateral do carro e, assim que viu Nicolas, tirou a chave do bolso, estendendo
para ele.
— Tem certeza de que não quer que eu o acompanhe, chefe? Com
o Nakai na jogada e essa garota...
O olhar de Nicolas para ele foi tão letal que o homem parou a frase
no meio e baixou a cabeça.
— Reporte qualquer atitude suspeita... — Apertou o botão e as
portas se levantaram. — Volto amanhã, no final da tarde.
O homem aquiesceu, ainda de cabeça baixa.
Nicolas sinalizou para que eu entrasse e, assim que me sentei, ele
baixou a porta fechando-a, então deu a volta, ocupando seu lugar junto ao
volante. Assim que se sentou, tirou a pistola da cintura e colocou no
console. Encarou-me no instante em que percebeu que eu olhava para a
arma.
— Se vamos fingir, eu preciso confiar em você... — Fez uma
pausa, baixando um pouco os óculos escuros. — Se eu desconfiar,
corazón..., será uma única vez... Não esqueça...
Levantei uma sobrancelha sem dizer nada. Podia estar sob a voz de
comando dele, mas não ia deixar o filho da puta me intimidar.
Seguimos viagem por uma estrada quase vazia e, pouco a pouco, a
cidade foi ficando para trás.
Eu não tinha a menor ideia de para onde estávamos indo, mas achei
que perguntar também não faria diferença, porque eu não conhecia ninguém
naquele lugar. Tinha apostado minhas fichas nele e precisava confiar.
Depois de algum tempo, a paisagem começou a mudar. Campos de
cultivo e parreiras de uva, por todos os lados. Eu nem sabia que no Peru se
plantava uva.
— Duas safras por ano... — Nicolas disse, cortando o silêncio no
carro. — Albillo, alicante, moscatel... Muitas uvas gostam do nosso clima...
— Acelerou levantando poeira vermelha pela estrada e fazendo a ansiedade
gelar meu estômago. — Como pode ver, temos mais que ruínas e lhamas...
— Eu nunca achei que... — tentei explicar, mas depois desisti. —
Esquece!
— Karina me disse que você não queria visitá-la... — explicou.
— Não era por causa do país... — defendi-me. — Era só...
— Orgulho? — interrompeu.
— Talvez...
Sorriu satisfeito, como se me fazer admitir meus erros o fizesse
mais forte.
Paramos em frente a uma porteira elegante, com dois condores de
cobre, um de cada lado dos pilares. Assim que paramos, ele se abriu.
Seguimos pela estrada particular mais uns bons minutos, até que
pude avistar uma bela casa antiga de fazenda. Reformada e pintada de
amarelo escuro, com detalhes terracota.
— Onde estamos? — não resisti.
— Vamos visitar minha tia...
Encarei-o sem entender, enquanto ele parava o carro e puxava o
freio de mão.
— Você queria uma prova de fogo... — Sorriu debochado, abrindo
as portas do carro e dando a volta. — Se conseguir convencer Tia Lupita de
que somos um casal... Nakai será moleza! — Estendeu a mão para mim. —
Venha, corazón... — Piscou. — Estou ansioso para ver se é tão boa quanto
diz...
Nicolas
Eu tinha feito questão de não avisar ninguém sobre nossa chegada.
Queria mesmo saber se Verônica era tão boa em fingir quanto dizia. E, para
ser sincero, um fim de semana de tranquilidade até que me faria bem.
Joguei as alças das duas bolsas de couro sobre os ombros e
entrelacei nossos dedos; mal tinha dado alguns passos e Camucha apareceu
na varanda.
— Senhora! Senhora! — gritou. — Venha ver o milagre que
aconteceu!
Reprimi o riso, preparando-me.
Não demorou e minha tia apareceu, secando as mãos no avental
azul.
Os cabelos ondulados, presos em um coque baixo e frouxo, o rosto,
ainda que mais velho, trazia a mesma beleza latina que tinha desde sempre.
Encarou-nos com olhos astutos e sobrancelhas baixas por alguns
instantes.
— Milagre de San Cristobán, Camucha! — Bateu com o ombro no
da mulher que ajudara a nos criar. — Eu não disse que, se acendêssemos
aquela vela na capela todos os dias, ele iria ouvir?
Os dedos pequenos em torno dos meus se apertaram um pouco
mais, mas logo afrouxaram, como se ela quisesse esconder que estava com
medo. Eu também estava, Tia Lupe era melhor que qualquer cão farejador
do mundo para mentiras, mas eu não ia dizer isso a ela.
Entreguei as bolsas a Camucha e abri os braços.
— Estou em casa, tia... — Sorri.
A mulher me abraçou de imediato, afundando o rosto em meu
peito. Com o passar dos anos, trocamos de papel. Eu passei a ser o apoio, e
ela, a se aconchegar em mim.
— Nico... — Baixou meu rosto e o beijou. — Quanto tempo, mi
niño...
Beijei-a também, acariciando seu rosto. Não tivera a chance de
conhecer minha mãe, mas não podia me queixar da que a vida tinha me
dado. Nunca senti falta de afeto nem de colo, porque sempre tive Tia Lupita
comigo.
— Esta é Verônica, tia... Minha... — Parei a frase no meio, nunca a
tinha dito.
— Namorada... — Verônica tomou a frente, segurando em minha
mão e descansando o rosto em meu braço. — Nico ainda está se
acostumando, tia! — Sorriu de um jeito doce e ficou na ponta dos pés,
beijando meu rosto. — Deve imaginar como é difícil para ele! — brincou.
O sorriso no rosto de Tia Lupe nasceu devagar, mas ganhou força
assim que eu repeti o gesto, beijando o topo da cabeça de Verônica.
— Madre de Dios, achei que este dia nunca chegaria! — Abriu os
braços para Verônica. — Estou feliz que tenham vindo até aqui, querida...
Seja bem-vinda em minha casa...
Depois de um longo abraço, voltou a atenção para mim.
— Ande, vá mostrar a casa a Verônica, enquanto eu ajudo
Camucha a trocar os lençóis! — Estreitou os olhos para mim. — Você vem
tão pouco aqui, Nicolas, que seu quarto está todo empoeirado!
— Prometo que virei mais, tia... Os negócios...
— Não me venha com negócios! Aliás, niño, está proibido de falar
de negócios enquanto estiver por aqui! E você, pequeña... — Voltou os
olhos para Verônica. — Aprenda a comandar seu homem! Não seja burra
como eu, mostre quem manda... Negócios... — Já estava uns bons passos à
frente, mas continuava falando. — Ele fala como se eu não o conhecesse...
Negócios...
Verônica riu e eu acabei rindo também.
— Confesso que tremi na base... — brincou, dando-me um sorriso
de canto.
— E você ainda não viu nada! — Pisquei. — Agora venha comigo,
senhorita, vou mostrar a casa a você.
Aquiesceu, caminhando ao meu lado.
A casa da fazenda era antiga, mas muito bem-cuidada por Tia
Lupe. Ela havia crescido ali e, depois de tudo que houve com papai e meu
avô, quis voltar para onde se sentia segura.
— Nossa, Nico, que casa linda... — Verônica sorriu admirada,
assim que passamos pela grande sala.
Parou em frente à parede de madeira, coberta de armas de cano
longo, dos mais variados tipos.
— É uma bela coleção... — Correu os dedos pelos detalhes
dourados de uma carabina antiga.
— Meu avô era militar... — contei, enquanto ela admirava a
parede. — Antes de descobrir que havia mais merdas escondidas entre os
mocinhos do que entre os bandidos... — Ri, mas meu riso morreu logo,
porque ela baixou os olhos, como se algo a incomodasse.
Eu conhecia pouco de Verônica Malta, apenas o que ela deixava
que vissem, mas em poucos dias ao seu lado tinha percebido que todas as
informações que eu tinha eram apenas a ponta do iceberg.
Karina havia me contado que ficaram órfãs bem cedo e que fora
Verônica a assumir boa parte da sua criação, já que os avós tinham muita
idade. Eu tinha tido uma infância complicada, mas sempre tive apoio e uma
família amorosa com quem contar quando as coisas estavam ruins, Verônica
não.
— Venha... — Toquei suas costas carinhosamente, em um gesto
protetor que não pude evitar. — Aquelas duas já devem ter terminado de
arrumar o quarto, assim você se senta um pouco e poupa seu pé.
Levei-a pelo corredor aberto, que dava para os quartos. Tia Lupe e
a governanta estavam saindo.
— Descansem um pouco, enquanto Guille e Maribel não chegam!
— Bateu em meu ombro carinhosamente.
— Então... — Verônica sentou-se na cama assim que fechei a porta
e tirou o tênis, colocando o pé machucado para cima. — Quais são os
planos?
Livrei-me do blazer e virei-me para ela assim que terminou a frase.
— Ficamos aqui pelo fim de semana... Amanhã à tarde voltamos
para Cusco... — expliquei, desabotoando a camisa. — Se Nakai estiver
mesmo por perto, vai ficar sabendo da nossa pequena viagem e vai se
interessar em descobrir mais... Não sou do tipo que anda com mulheres a
tiracolo, corazón... E é por isso que temos que ser cautelosos... Ele não
pode achar que estou exibindo você, porque se eu realmente me
importasse... — Fiz uma pausa, aproximando-me dela. — Iria escondê-la...
Assim que parei, bem em sua frente, Verônica levantou a mão,
deslizando suavemente pela minha tatuagem, analisando o desenho
cuidadosamente.
— El Condor... — disse devagar. — Não esperava alguém como
você...
— Sexy e fodedor? — provoquei, levantando-a.
— Compassivo e gentil... — Ergueu uma sobrancelha sarcástica e
eu acabei rindo. — Você fica mais bonito quando ri assim... De verdade...
Não resisti. Puxei-a para mim e tomei sua boca. Não era a mesma
urgência de quando havíamos transado, mas eu não pude evitar. Passei o
braço em torno da sua cintura, colando nosso corpo, e Verônica enlaçou
meu pescoço, cruzando as mãos em minha nuca.
— Não tem ninguém olhando nossa encenação... — incitou perto
da minha orelha.
Apertei-a mais, deixando meu pau pulsar contra seu estômago,
arrancando um gemido cheio de desejo dela.
— Tem razão! — Soltei-a de uma vez e virei as costas. — Vista
algo mais confortável... O dia será quente...
Tirei a camisa e vesti uma camiseta, troquei também a calça social
por um jeans. Quando passei pela porta, ela ainda me encarava sem
entender. Meneei a cabeça em cumprimento e segui pelo corredor, em
direção à cozinha.
Se ela queria continuar nesse jogo de provocação, tinha que
entender logo que eu era mestre em segurar emoções.
Camucha começava a arrumar a mesa, enquanto Tia Lupe mexia
em uma grande panela. Peguei um garfo e espetei um pedaço de peixe do
ceviche.
— Vai me contar de uma vez como isso aconteceu? Ou espera que
eu acredite que, de repente, el senhor de la muerte acabou rendido...
Peguei mais um pedaço de peixe e enfiei na boca.
— E pare de desarrumar meu prato! — xingou, tirando a travessa
de comida de perto de mim.
— Achei que ficaria feliz... — Encostei na bancada, apoiando as
mãos na madeira. — Vive dizendo que eu preciso acertar minha vida... —
Dei de ombros só para irritá-la.
Tia Lupe limpou as mãos em um pano e jogou com força sobre a
mesa.
— Já disse a ela o que faz para viver? A garota não parece o tipo
de moça que aceitaria sua vida, Nico! Olhe bem para a carinha de boneca de
porcelana dela! Deve ser uma dessas socialites metidas que frequentam seu
hotel!
Limpei a garganta para não rir. Se ela soubesse como Verônica
ganha a vida, ia ter certeza de que eu estava mesmo maluco.
— Não se preocupe, tia... Verônica sabe exatamente quem eu sou...
— limitei-me a dizer.
— E não se importa?
— Imagino que não, já que veio até aqui comigo por vontade
própria...
Olhei a poeira na estrada e agradeci mentalmente a pontualidade de
Guille.
— Guillermo chegou! — avisei, já deixando a cozinha.
Queria testar Verônica, não minha paciência, então tinha que evitar
ficar sozinho com Tia Lupe.
O esportivo prateado parou ao lado do meu e Maribel correu até
mim, pendurando-se em meu pescoço.
— Nico! — Beijou meu rosto. — Eu disse ao Guille que a previsão
era de chuva! — Deu de ombros. — Agora tenho certeza!
Baguncei seus cabelos longos e ondulados, fazendo-a fechar a cara.
— Não tenho mais doze anos, sabia? — inquiriu revoltada.
— Tem quase dezoito... Aliás... Diga o que quer para comemorar
seu aniversário, muñequita... Sabe que faço tudo por você!
Ganhei um sorriso. Sabia bem como derrubar as barreiras daquela
peruaninha metida a princesa inca.
— Você poderia me ensinar a atirar... — Ergueu uma sobrancelha
inquisidora. — Lembra-se? Foi o que me prometeu ano passado...
— Para que quer atirar, Maria Isabel Huamán? Tem seguranças
competentes, dispostos a isso por você... Não precisa sujar suas mãos com
pólvora...
Esperei que fizesse alguma gracinha, mas ela encarou-me fundo
nos olhos. Nenhuma sombra de sorriso no rosto bonito e delicado.
— Nunca se sabe... Prefiro aprender a cuidar de mim mesma e não
ficar à mercê de ninguém...
Minha boca se curvou em um sorriso de canto, segundos depois.
— Agora sim, está pronta para ter uma arma! — Pisquei. —
Vamos treinar mais tarde... — avisei. — Aliás, emprestei suas roupas para a
minha namorada... — Reprimi o riso, sabendo do espanto que ia causar.
— Está brincando, não é? — perguntou curiosa.
— A mala dela foi extraviada, pequeña... E você sabe como eu
odeio compras...
— Não é isso, seu bobo! — Bateu em meu peito. — Que história é
essa de namorada, Nicolas?
— Aaaaah, é uma longa história... Conto a você outro dia! —
Beijei seu rosto e a soltei, para cumprimentar Guille.
— ¿Como estás, hermano? — cumprimentou-me abraçando e
batendo em minhas costas, conferindo se Maribel já tinha ido. — E que
história é essa de namorada?
— Longa história... Nakai está interessado nela, eu estou caçando o
desgraçado, isca, namoro... Você sabe... Difícil de explicar... É a irmã da
Karina... — confessei por fim.
— Verônica? A policial? — perguntou rindo. — Por La Santa
Muerte, Nico... — Bateu em minha têmpora com a ponta dos dedos. —
Você é maluco mesmo!
Ri com ele, mas não podia negar que meu primo tinha razão. Era
uma porra de plano fadado ao fracasso, eu só não sabia quem ia fracassar
primeiro. Nakai, Verônica ou eu.
Verônica
Troquei o suéter de lã e a calça por um vestido vermelho florido,
de alças finas e um pouco acima dos joelhos. Penteei os cabelos e os prendi
em um rabo de cavalo alto, antes de parar em frente ao espelho de corpo
inteiro do banheiro privativo.
Nunca na minha vida eu escolheria um vestido como aquele, mas
tinha que confessar que parecia bem mais feminina e delicada com ele.
Estava tão acostumada a escolher roupas pela praticidade, que tinha me
esquecido que elas também podiam servir para me deixar mais bonita.
É, Verônica... Só não esquece que é encenação, ok? Em alguns
dias você volta para sua vida e o Condor para a dele, que aliás, está no
extremo oposto de tudo que você acha certo.
Deixei o quarto e, a cada passo que dava, as vozes e risadas iam se
tornando mais audíveis.
Vim de uma família pequena, em que meus pais eram filhos
únicos, e cedo demais perdi o pouco que tinha, então aquela cena que se
desenrolava frente aos meus olhos fazia meu coração se encher de
sentimentos estranhos.
Acha que alguém como eu não pode ter uma família? As palavras
de Nicolas ecoavam em meus pensamentos, enquanto eu o via rir e brincar
com os primos.
Assim que percebeu minha presença, o riso morreu em seu rosto,
olhos perdidos nos meus.
— Então essa é a domadora de feras? — Um homem que
aparentava ter a mesma idade que eu se aproximou.
Não se parecia com Nico nem com nenhum deles. Tinha a pele
clara, levemente bronzeada de sol, cabelos castanhos e um par de olhos
azuis que reluziam como faróis. Parou em minha frente, como se quisesse
me analisar, mas em seguida sorriu, abrindo os braços para mim.
— Seja bem-vinda à família, prima! — Abraçou-me, mas algo em
seu olhar deixava claro que ele sabia bem quem eu era e o que fazia ali.
A garota com quem Nicolas conversava também veio até mim.
— Maribel, imagino... — Sorri. — Desculpe pegar suas roupas... É
que o Nico...
— Aah, tudo bem! — Abraçou-me apertado. — Mamãe vive
dizendo que tenho mais roupas do que sou capaz de usar! — Piscou e bateu
o ombro o no meu.
Nos sentamos para o almoço e Nicolas foi dizendo o nome dos
pratos, até chegar aos tomates recheados que haviam me enganado em
Aguas Calientes.
— Nem pensar! — Coloquei a mão acima do prato, quando ele
tentou me servir. — Quase morri de indigestão com essa pimentinha! —
confessei. — Jurava que era um tomate!
Todos começaram a rir e eu acabei rindo também.
— Veja, Camucha... Está namorando o Nico e não come pimenta!
— Guadalupe pontuou.
— Vou ensiná-la a gostar, tia... De tudo... — Nico colocou a mão
sobre meu joelho. — Não é, corazón?
Era um carinho bobo, ou pelo menos devia ser, mas senti o calor se
espalhar por mim como um rastilho de pólvora, até minhas bochechas, que
eu podia jurar que tinham corado.
Sorri, porque tinha medo de gaguejar e acabar sendo pega.
Eu não entendia muito de culinária peruana, mas tinha que dar o
braço a torcer para Karina, porque era tudo realmente delicioso.
Depois do almoço Maribel me convidou para ir com ela até o
jardim, para tomar sol, enquanto Nicolas e Guillermo conversavam no
escritório.
Contornamos a casa para chegar a um belo gramado cheio de
roseiras coloridas. Amarelas, vermelhas, brancas e cor-de-rosa, em vários
tons, desde o maravilha até o rosa-pálido dos buquês de noiva. Havia um
pergolado de madeira clara e, debaixo dele, um sofá e duas poltronas feitos
de fibra trançada e pintados de branco. Nós nos sentamos ali.
— A fazenda é linda... — comentei.
— Por isso mamãe ama tanto este lugar... — Sorriu.
— Sua mãe tem bom gosto! — Deixei a cabeça cair contra o
encosto, fechando os olhos para sentir o sol. — Eu também amaria, se
morasse aqui.
— Você pode morar, quando se casar com o Nico! — animou-se de
imediato, fazendo-me perceber a merda que havia dito.
Eu tinha falado sem pensar, mas agora tinha que encontrar um jeito
de me sair bem.
— Acha que ele vai se casar comigo? — devolvi só para virar o
jogo.
Pelo menos você aprendeu algo com aquele curso chato de
técnicas de interrogatório, Verônica!
— Ele nunca trouxe uma garota aqui, sabia? — Sorriu de canto. —
E eu nunca o vi tão preocupado com alguém... Ele até escolheu os pedaços
mais macios do lomo para você... — Deu de ombros, servindo um pouco de
refresco em meu copo. — Deve significar alguma coisa! — brincou.
E significa! — pensei. Que ele é um ótimo ator...
Conversamos sobre um monte de coisas. Desde gatos, até sapatos
de grife e séries coreanas, até que Nicolas entrou em meu campo de visão.
Óculos escuros no rosto, alisou os cabelos para trás. Estava sério,
conversando sobre algo, mas, quando nos viu, sorriu meio disfarçadamente,
e eu soltei um suspiro sem querer.
— Viu? Ele já riu mais hoje do que no último ano todo! Parece que
viu passarinho verde! — a garota cochichou em meu ouvido e eu acabei
rindo mais.
— Não sei o que essa pequena diaba lhe disse, mas provavelmente
é mentira... — Nicolas brincou, parando ao meu lado.
— Muito pelo contrário... Eu só digo verdades, Verônica... As mais
difíceis e que ninguém ousa dizer! — Levantou-se e ia saindo.
— Não quer mais treinar? — Nico perguntou e ela parou no
mesmo instante.
— Sério? — O sorriso em seu rosto se alargou.
— Se prometer ser cuidadosa e não contar a ninguém...
— Combinado!
Descemos a pequena colina, até perto de um riacho. O fim de tarde
estava quente e agradável. Encarei minha mão, dentro da de Nicolas, dedos
entrelaçados despreocupadamente. Era estranho como parecia simples
fingir.
— Vai me contar o que vamos treinar? — perguntei quando
paramos perto de uma cerca.
— Algo que você, provavelmente, gosta de fazer... — Sorriu
maliciosamente, deixando-me sem entender.
Só quando Guille arrumou as latas sobre as estacas da cerca, eu
entendi o que faríamos.
— Faroeste? — Ergui uma sobrancelha para ele. — Sério?
— Não me diga que não sabe atirar, detetive? — cochichou em
meu ouvido. — Achei mesmo que aquela pistola estava nova demais para
cinco anos de serviço... Venha aqui, Maribel... — Tirou a pistola da cintura
e se posicionou, explicando para a garota como deveria fazer.
Era errado de tantas formas que eu nem podia enumerar, mas tinha
que dizer que o ver ali, de arma em punho, acertando um tiro depois do
outro, era sexy para inferno.
O demônio era o anjo mais bonito, Verônica...
Maribel errou duas vezes, na terceira já estava perdendo a
paciência e Nicolas também. Desencostei de onde estava e estendi a mão.
— Deixe que alguém do tamanho dela ensine... — Ergui uma
sobrancelha e esperei.
Nicolas pensou, pensou, mas, no fim das contas, colocou a pistola
em minha mão.
— Tem que apoiar o braço assim... — Mostrei como segurava com
a mão livre no antebraço. — Se aprender a atirar segurando com as duas
mãos, nunca vai conseguir atirar rápido, em uma situação de emergência. —
Dei o primeiro tiro, derrubando a primeira lata. — Conforme for
aprendendo, com o peso da arma, o tranco que ela dá, você vai tirando o
apoio... — Engatilhei e acertei mais uma. — Eles acham que somos fracas...
— Revirei os olhos. — E sabe de uma coisa... — Sorri de canto. — É
melhor assim... — Engatilhei rápido e acertei uma, depois outra e a última.
— Woooow... — Guille gritou. — Parece que temos uma
concorrente à altura para El Condor... — brincou, batendo palmas.
Entreguei a pistola na mão de Maribel e virei as costas. Nicolas
estava encostado em um toco de árvore, braços cruzados na frente do corpo
e aquele sorriso cheio de malícia nos lábios.
— A pistola é nova, porque perdi a anterior em uma operação... —
expliquei cheia de orgulho.
Nicolas
Levei alguns segundos para conseguir parar de sorrir.
Eu não conhecia muitas mulheres que tinham tido coragem de tirar
uma arma da minha mão e, certamente, nenhuma delas atirava tão bem.
Subimos a colina quando a noite caiu.
Tia Lupe havia mandado acender a fogueira e preparado milho e
batatas para assar, além de ceviche, pollo a la brasa e causa limeña. A mesa
tinha sido posta com todos os tipos de acompanhamentos e bebidas, e o
huayno tocava animado, tocado pelos funcionários.
— Madrecita... — Maribel correu até a mãe. — Você tem que ver a
Verônica atirando! — Bateu palmas animada. — Parecia até a Lara Croft!
Tia Lupe sorriu, mas, quando voltou o rosto para o meu, tinha
aquele olhar de quem diz: ok, vou fingir que você me engana só para não te
desapontar.
— Para uma jornalista de viagem... — Ergueu uma sobrancelha
inquisidora para Verônica. — Você tem muitos talentos escondidos.
— Verônica treina tiro, tia... — expliquei.
— É como ela faz para diminuir o estresse de aguentar o Nico,
mamá! — Guille completou, batendo em minhas costas e fazendo todos
rirem.
Peguei um copo, enchi com o líquido cor de vinho da jarra e
ofereci a Verônica. Ela levou à boca, mas, quando provou o sabor, voltou os
olhos para os meus.
— Se chama Chicha Morada... — expliquei. — É feita com esse
milho aqui... — Peguei uma espiga de milho negro e entreguei em sua mão.
— Nós cozinhamos com abacaxi e especiarias, depois deixamos fermentar...
É daí que vem o álcool...
— Vinho de milho... — Sorriu, dando mais um gole. — É bom!
Muito bom!
Servi um copo para mim também e começamos a comer. Eu era
bom em apresentar os tesouros da minha terra, tinha sido exatamente por
isso que escolhera o ramo hoteleiro como fachada, mas mostrar a ela do que
eu gostava era mais divertido.
Continuamos comendo e nos divertindo por mais alguns copos de
chicha.
A brasileira balançava os quadris no ritmo da música, levada pelo
álcool e incentivada por Maribel. Eu continuei olhando-a sem conseguir
desviar. Era como se tivesse me hipnotizado.
Quando o milho ficou pronto, peguei uma espiga na brasa e tirei a
palha, depois passei pasta de savina-vermelha e levei à boca.
— Hum... Parece bom... — Verônica comentou.
— Pimenta, corazón... A pior de todas...
Puxei-a para mais perto, e ela continuou balançando os quadris,
roçando em meu pau e levando um pouco do meu juízo com ela.
— Meu avô dizia que a savina se parecia comigo... — contei junto
ao seu ouvido.
— É mesmo? — Sorriu e mordeu o lábio. — Quero provar...
— Tem certeza? — Cravei meus olhos nos dela. — Queima como
o inferno...
Já nem era de pimenta que falávamos, o assunto tinha ganhado
outro tom, ali, escondidos na luz fraca do jardim, só eu e ela.
Verônica aquiesceu e eu passei a ponta da língua na pimenta,
oferecendo a ela.
Quando lambeu a pimenta, eu afundei minha boca na sua, sugando
e beijando. O calor da pimenta e o sabor da bebida tinham combinado
perfeitamente com o gosto dela.
Sustentei-a com o braço, deixando-a na ponta dos pés, para que
sentisse como eu estava duro.
— Então? Forte demais? — provoquei, raspando a barba em seu
pescoço.
— Forte o suficiente... — Passou a língua nos meus lábios, antes
de me beijar de novo.
— Vem comigo para o quarto...
Era um misto de ordem e pedido que eu exigia que fosse aceito.
Não era bom em não estar no controle, mas ela também não era e eu não
pretendia disputar força, não naquela hora.
Verônica entrelaçou nossos dedos e me levou por trás da casa, sem
que passássemos pelo meio da festa.
Entramos no quarto e eu passei a chave na porta, prensando-a
contra a parede.
— Sabe o que eu acho? — perguntou, mas não esperou que eu
respondesse. — Que aquele seu vinho amorteceu minha boca, peruano... —
Riu, descendo a mão pelo meu peito. — Porque quero mais um pouco dessa
pimenta caliente que você tem...
Sorri, umedecendo os lábios, descendo a alça do vestido com a
ponta dos dedos.
— Acha que aguenta? — provoquei. — Tinha certeza de que você
estaria dolorida hoje...
Ela tirou a outra alça, fazendo o vestido cair no chão e revelar o
corpo terrivelmente sexy que tinha. Os seios arrepiados de desejo, subindo e
descendo com o respirar.
Encostou-se em mim e puxou meu rosto para o seu.
— Vale a pena! — Sorriu maliciosa.
Tirei a camiseta e joguei no chão. A pele quente dela contra a
minha, os bicos dos seios roçando em meu peito. Desceu as mãos até minha
calça e abriu o botão, descendo o zíper. Deixei que caísse no chão e ela
afundou os dedos por dentro da cueca, circundando a cabeça do meu pau e
espalhando lubrificação pela glande; depois levou o dedo à boca e o
chupou, fazendo-me reprimir um gemido e sentir meu corpo todo pulsar de
desejo.
— Bom... — Mordeu o lábio. — Mais quente que qualquer
pimenta, corazón... — imitou-me.
Peguei-a no colo e levei para a cama. Queria tê-la devagar, sem
pressa ou urgência, aproveitando cada sensação.
O que nos restava de roupa ficou no chão e eu a deitei em meu
colchão, com aroma de lavanda e lençóis de percal.
Verônica separou as pernas acomodando meu corpo e eu levei os
dedos até sua boceta, lambuzando-os em sua excitação e espalhando em
meu pau. Quando a penetrei, ela jogou a cabeça para trás e reprimiu o
gemido.
Continuei os movimentos, mais lentos que na última vez, indo
fundo e saindo devagar, senti-a se contorcer e apertar as coxas em torno de
mim.
— Gosta assim? — perguntei penetrando-a mais uma vez e ela
aquiesceu, puxando minha boca para a sua.
Beijei-a com todo o desejo que sentia, esfregando nossa língua sem
perder o ritmo com o qual a fodia.
Quando senti que estava perto de gozar, levei a mão a suas costas,
baixando pela bunda redonda até o vão; deslizei pelo períneo até o ânus e
então introduzi suavemente, apenas um pouco.
— Aaaah... — gemeu mais alto do que gostaria e cravou os dentes
em meu pescoço.
Quando ela gozou, eu gozei junto, não fui capaz de segurar, olhos
fechados, arfando contra seu ouvido, até deixar a cabeça pender em seu
ombro.
Ficamos em silêncio, respirações entrecortadas, como se ainda
estivéssemos fora do ar. Depois de alguns segundos, Verônica riu.
— Eu disse que ainda vamos morrer disso... — brincou.
— Ao menos vamos morrer satisfeitos, corazón...
Verônica
Acordei sozinha na cama.
Não tinha ideia de que horas eram, mas, a julgar pelo sol que
entrava pela fresta da cortina, devia ser tarde.
Virei-me de lado, afundando o rosto no travesseiro. Tinha o
perfume dele. Tudo ali tinha o cheiro dele.
Comida de qualidade, acomodação cinco estrelas e uma boa
foda... Aproveita, garota! Tudo bem gostar do serviço, desde que não se
empolgue demais...
Tomei uma ducha e vesti um short jeans e uma blusinha branca,
com detalhes rendados. Maribel realmente tem bom gosto! Se não fosse de
uma família de traficantes, eu ia pedir a ajuda dela para renovar meu
guarda-roupas!
Saí do quarto e caminhei até a cozinha. Os remédios que Nico me
dera realmente haviam resolvido, tanto o inchaço do tornozelo, quanto o
mal de altitude. Eu me sentia bem, relaxada e até um pouco feliz, o que era
muito estranho, já que nossa razão primordial para estar naquele lugar era
vingança.
— Que bom que acordou, querida! — Guadalupe cumprimentou.
— Quer um pouco de café?
Aquiesci sorrindo.
— Bom dia... Desculpe ter dormido demais... Não sei o que houve,
eu sempre...
Guadalupe riu.
— Aaaaah, querida, eu sei bem... A cama quando é quente segura a
gente! — Piscou e eu baixei os olhos, disfarçando para não rir.
— Onde estão todos? — perguntei, levando a xícara à boca.
— Nico e Guille, trabalhando como sempre... Maribel foi a Cusco,
visitar uma amiga, mas lhe deixou um beijo! Disse também que você pode
ficar com as roupas de que gostar, já que ficaram ótimas em você...
Sorri.
— Agora Camucha acordou com as costas doendo e eu lhe dei o
dia de folga! Vou ter que dar conta do almoço sozinha...
— Precisa de ajuda? — perguntei já virando o café na boca. —
Pode não parecer, mas eu até que me viro bem na cozinha...
— Tão bem como atira? — Ergueu a sobrancelha, deixando-me
sem graça.
Quando percebeu, limpou as mãos no avental e segurou as minhas.
— Não sei quem, Verônica, nem o que a levou para perto do meu
Nico, mas, sabe o que eu acho? — perguntou e eu neguei. — O destino às
vezes tem um jeito estranho de colocar as coisas no lugar... — Sorriu. —
Nico é um bom menino... Tem aquela pose de el senhor de la muerte, como
dizia meu pai, mas no fundo é um bom menino... Cuide dele...
Concordei com a cabeça e sorri, mas meu coração estava apertado
e dolorido, como se aquele teatro todo fosse verdadeiro.
— Agora venha até aqui, corte essas batatas e essas cenouras...
Vamos fazer um cozido de alpaca... — Guadalupe chamou como se não
tivéssemos mais do que uma conversa trivial.
Depois de almoçar, juntamos nossas coisas nas bolsas e colocamos
no banco porta-malas do carro.
— Prometo que não demoro a voltar, Tia Lupe... — Beijou as mãos
da tia.
— É o que você sempre diz, e eu só o vejo no ano seguinte! —
reclamou.
— Não seja dramática... Sabe que vale para mim mais que toda a
prata do mundo... — brincou e ela sorriu.
Puxou o sobrinho para si e afundou o rosto em seu pescoço.
Era tão bonito de se ver, que mal dava para lembrar quem
realmente era e o que fazia.
— Cuidem-se... — pediu. — Não sei explicar, mas Nico sabe
como sou sensitiva e sinto um aperto no coração, sempre que penso em
vocês dois indo embora... Deveriam ficar por aqui mais alguns dias...
Não pude não sorrir. Fazia tempo que não tinha alguém realmente
preocupado comigo.
— Cuide-se a senhora também... E se perceber alguma
movimentação...
— Falo com o Morales e encontro você em Lima... Tantos anos,
Nico... Já sei o protocolo de cor...
Entramos no carro, fazendo o caminho inverso. Meu coração
estava estranho e aflito. Eu nunca fui do tipo sentimental, então era
desconfortável e incômodo.
Não é seu mundo, Verônica... Você nem vai mais ver essas
pessoas... Um efeito colateral, apenas isso!
Peguei o telefone no bolso da jaqueta, para conferir o horário, e, de
repente, senti uma vontade imensa de ouvir a voz de alguém que realmente
fazia parte do meu mundo.
Comecei a digitar o telefone de Fábio.
— Se quer ligar para alguém, use meu telefone... — Nicolas pegou
o aparelho no console e colocou em meu colo. — Até que esse arranjo
termine, corazón... Eu mando... Lembra-se?
— Só preciso falar com o meu chefe... Ele deve estar preocupado,
já que não uso mais o número antigo e...
— Fale com quem achar que deve, mas use este... — Bateu contra
a tela apagada. — Não é rastreável e eu posso saber com quem anda
falando... O seu... só use para falar comigo ou Nacho...
Concordei com a cabeça. Eu podia ser forte e dona de mim, mas
não era idiota e tinha ciência de que Nicolas Huamán entendia bem mais
daquele mundo do que eu.
Digitei o número de Fábio e esperei que atendesse.
— Mota falando... — atendeu.
— Oi, Fábio! Sou...
— Meu Deus, Verônica, quer me dizer onde foi que se enfiou? —
gritou antes mesmo de cumprimentar. — Sabe quantas vezes liguei para
você? Achei que tinha acontecido uma desgraça!
— Na praia? — debochei usando meu melhor tom de sarcasmo.
— Acha que me engana com esse joguinho? — devolveu. — A
quem pensa que engana, Verônica? Eu sei muito bem onde você está!
E foi aí que um pequeno estalo aconteceu em minha cabeça.
— Sabe? Como sabe? — inquiri.
Fábio levou um segundo para responder.
— Porque conheço você, garota... Desde que era uma magricela
marrenta, querendo esporrar o mundo, lembra?
Respirei fundo. Não tinha razão para desconfiar do Fábio. Ele
sempre fora correto comigo e com todo o trabalho de policial. Tinha
cuidado de mim e me protegido tantas vezes que eu nem podia contar.
Fábio não é um traidor, Verônica, você o conhece...
— Estou ligando para dizer que não precisa se preocupar e que eu
estou bem... — encurtei o assunto.
— O telefone é seu? Por que não deixou o número visível? —
insistiu.
— Não é meu... É da pousada em que estou. Pago por minuto,
inclusive... Então vou desligar ou gasto todo o meu dinheiro com você,
Fábio! — brinquei, mas ele não riu.
— Se estiver com problemas, ou precisar de ajuda... Sabe que pode
me chamar, não é?
Foi minha vez de ficar em silêncio.
— Se quiser... — disse pausadamente. — Ligue para a Vivi... Sabe
o telefone dela de cor?
Senti um arrepio frio, na base da coluna, subir tão rápido que tremi,
involuntariamente. Vivi era o nome que dávamos para uma linha secreta
que usávamos em operações sob disfarce. Ninguém sabia o número além de
Fábio, eu e o Diogo da TI.
— Sei sim, não se preocupe...
Tentei parecer despreocupada, porque, se ele tinha resgatado a
Vivi, talvez também estivesse desconfiando de alguém.
Desliguei e mantive os olhos no aparelho em minhas mãos.
— O quanto você confia nele? — Nicolas perguntou de repente.
— Muito! Fábio é meu chefe desde que entrei para a polícia... É
um amigo e sempre cuidou de nós... Ele e o Celso são as únicas pessoas em
quem eu realmente confio e...
— Celso Mori, o fotógrafo forense com uma cobertura de cinco
milhões...
Voltei os olhos para ele sem entender.
— Eu sei de tudo, Verônica... Tudo que me interessa ou envolve de
alguma maneira eu encontro e descubro.
— O Celso? Não! Você deve estar enganado... Celso mora em um
prediozinho popular que nem elevador tem, Nicolas...
Ele não discutiu e eu também não. Ficamos em silêncio pelo que
restou do caminho, mas minha cabeça fervia, cheia de pensamentos.
Celso? Com uma cobertura milionária? Não! O cara mal sabe
combinar uma camisa e uma gravata... Yakuza? Só porque é descendente de
japoneses?
Balancei a cabeça em negativa para mim mesma. Conhecia o Celso
pelo mesmo tempo que conhecia o Fábio. Tínhamos trabalhado juntos por
tantos plantões, dia e noite, nas piores e melhores condições.
Ele até adotou um gato! Um cara que adota um gatinho fofo na
rua não pode ser um bandido sem escrúpulos!
Meus olhos me levaram direto até Nicolas. Pode sim, Verônica...
Você sabe muito bem o tipo de homem que o Condor é, até ele consegue ser
gentil quando quer.
— Vamos pegar mais roupas para você e depois seguimos direto
para o hotel... — Nicolas falou, acabando com minha guerra mental. —
Precisa de alguma coisa da cidade?
Neguei com a cabeça, ainda tentava processar as informações.
Estacionamos junto ao meio-fio, onde um homem de terno escuro
nos esperava no portão.
— Você espera aqui... Eu vou pegar o necessário e volto para irmos
até a estação.
Concordei mais uma vez.
Ele desceu do carro e conversou algo com o capanga, que não pude
ouvir. Seu semblante estava diferente, fechado e impenetrável, como
quando eu o conheci. Eu tinha descoberto em poucos dias que havia dois
Nicos, o que ele mostrava ao mundo e o que apenas a família conhecia.
Fiquei sentada ali, olhando o movimento na praça. O homem
permaneceu junto ao portão, olhos astutos vigiando tudo ao redor.
Não demorou muito, Nicolas saiu, acionou o controle e guardou
outra valise no porta-malas.
— O helicóptero já está a sua espera, chefe... — avisou.
Nicolas
Assim que chegamos à estação de Aguas Calientes, vi Nacho
parado ao lado do carro.
— Vou chamar um táxi de confiança para levá-la ao hotel... —
avisei, pegando um pedaço de papel e uma caneta. — Esta é a senha para o
elevador da cobertura, memorize e depois rasgue. Ninguém a tem além de
mim e Nacho. Você ficará mais à vontade lá.
— Não quero ficar à vontade, Nicolas, quero saber o que está
acontecendo... — retrucou.
— Não é problema seu... — falei sem encará-la, guardando a
caneta de volta no console.
— Tenho certeza de que fico mais segura com você do que sozinha
e desarmada em um hotel...
Virei de uma vez, batendo a mão na lataria ao seu lado e fazendo-a
pular de susto. Odiava ser questionado e, por melhor que fosse a boceta
dela, não ia permitir que tirasse minha autoridade.
— Faça o que estou mandando... — adverti encarando-a de frente.
— Ou você me mata? — provocou.
— Ou nosso acordo acaba aqui, detetive... Se eu tiver que lidar
com você além dos meus problemas, freto um avião hoje mesmo e a coloco
de volta no colo do seu amiguinho policial, em quem você confia tanto...
Engoliu em seco, os olhos esverdeados perdidos nos meus. Acenei
para um motorista executivo e ele caminhou até onde estávamos.
— Leve a Srta. Malta até meu hotel... A recepção cuida dos custos.
Virei as costas e entrei no carro com Nacho.
— Onde estão? — perguntei.
— No Aguero, chefe... Eu quase não os reconheci... Se não fosse
pela tatuagem da santa no peito do Tito...
Subimos o morro em direção ao local. O Aguero era um bairro
simples, de trabalhadores locais, bem longe das paisagens que os turistas
queriam.
Tito, Canho e Polaco trabalhavam para mim no empacotamento.
Eram conhecidos por toda a vizinhança, já que haviam crescido por lá. Não
tinham informações nem seriam úteis para nada, o que significava que
matá-los era apenas uma afronta.
Nacho parou o carro em uma rua de terra sem saída, bem em frente
a um casebre de madeira pintado de azul.
Eu conhecia o lugar, tinha comido papas rellenas com dona Lucía
algumas vezes. Era a avó do Tito, mas por sorte já não morava mais com
ele.
Peguei a semiautomática no console e enfiei na cintura da calça.
Nacho bateu o pé na porta, abrindo-a e apontando a pistola.
— Não acho que eles estejam por perto... — comentei.
— Melhor garantir, chefe...
Entramos para encontrar a pequena sala revirada.
O chão de terra batida manchado de sangue e o cheiro pungente de
morte deixava o cenário assustador. Os três garotos estavam deitados no
chão, mãos amarradas com corda para trás.
Empurrei um deles com o pé, virando-o de frente.
Estava machucado. Cortes e queimaduras por todo o corpo. A pele
do rosto havia sido removida, e a boca, enchida com o pó branco que eu
conhecia bem.
— É nosso? — perguntei.
— Não sei, chefe... Não encontrei nenhuma embalagem e...
Ergui a sobrancelha e fechei o rosto, oscilando os olhos entre o
garoto e Nacho.
— Quer que eu prove? — questionei.
— Não senhor...
Ajoelhou em frente o corpo sem vida e tirou o canivete do bolso,
com a ponta, pegou um pouco de pó da boca do cadáver e colocou em sua
língua.
— Não é pura como a nossa, chefe... — concluiu depois de
experimentar.
Corri os olhos pelo lugar, caminhando entre os cômodos. Quando
cheguei ao último quarto, parei.
Havia um condor morto no chão, com as asas arrancadas e coberto
de cocaína.
Caminhei até perto dele, para ver o que era que tinha dobrado
dentro do bico. Aproximei-me e levei a mão. Era uma fotografia, minha
com Verônica, saindo de casa em Cusco.
“Nada como uma boceta nova para fazer um homem sair da
linha...” — as palavras do Matsuya ecoavam em meus pensamentos. “Eles
querem foder você, Nico... Os dois filhos da puta querem se aproveitar da
morte da garota e terminar o que começaram vinte e dois anos atrás!”
O recado escrito com sangue na parede dizia: Olho por olho, dente
por dente.
— E eu vou arrancar os seus, seu filho de uma cadela! — Soquei o
móvel com força.
Virei-me para encontrar Nacho logo atrás de mim.
— A brasileira, chefe... É problema... — Respirou fundo,
desviando os olhos dos meus quando eu o encarei. — Se o senhor a
entregar, quem sabe... Sei que não é da minha conta, mas...
— Tem razão... — concordei. — Não é da sua conta!
Saí do quarto e abri a torneira da pia, limpando a mão e a corrente
de ouro. Enfiei no bolso e alisei os cabelos para trás.
Dê uma boa indenização às famílias e um enterro decente a esses
pobres diabos. Não economize — instruí. — Volto com o carro e você fica,
tenta descobrir quem foi o desgraçado que fez isso.
Nacho abriu a boca para falar, mas eu interrompi.
— O mandante eu sei, porra! Quero saber o executante... Traga-o
até mim, vivo.
Entrei no carro e virei a chave. Odiava essa parte do trabalho, por
mais que fingisse não me importar; a verdade é que eu me via em cada um
deles. Sabia que, mais dia, menos dia, um dos meus seria o corpo jogado no
chão, como tinha sido com Karina.
Parei em frente a casa, no Centro, e desci. Dona Lucía não
demorou a aparecer, caminhando devagar até o portão. Parou em minha
frente, olhos questionadores mirando os meus, e então eu aquiesci
silenciosamente.
Baixei o olhar, mãos cruzadas na frente do corpo. Tinha visto Tito
crescer desde menino. Essa era a grande diferença entre mim e a Yakuza.
Eu conhecia minha gente, cuidava deles. Podia não ser um santo, mas não
era um demônio também. O que eu fazia eram negócios. Vendia para quem
queria e tinha dinheiro para pagar, apenas.
— Nacho vai cuidar de tudo, abuelita... Não se preocupe...
Também vai cuidar da senhora... Ninguém a irá desamparar... — expliquei.
Dona Lucía não disse nada, concordou, a mão enrugada sobre a
manga do meu blazer caro.
— Cuide-se, filho... Para não ser o próximo...
Depois virou as costas e voltou para dentro da casa, enquanto eu
pegava meu rumo de volta para o hotel.
Era uma afronta clara e direta para mim. Não uma retaliação ou
briga boba, era pessoal e o condor morto no meio da droga deixava claro
isso. Eles queriam minha cabeça, e iam usar o que fosse preciso para isso.
Cocei os olhos por baixo dos óculos escuros, estava cansado, mas
não podia me dar ao luxo de descansar, não até que aquele maldito japonês
estivesse debaixo da terra. Só assim eu teria paz.
Peguei o telefone no bolso e liguei para Guille.
— Mande Tia Lupe e a Maribel para longe... — avisei. — Não
interessa aonde, Guille, pode ser a porra de qualquer lugar, contanto que
elas estejam seguras e longe das vistas daqueles malditos japoneses.
— Aconteceu algo? — perguntou sem entender minha raiva.
— Três garotos sem rosto e um condor mutilado, no Aguero...
Tinha também um recadinho de amor, do merda do Nakai...
— Como sabe que foi o Nakai, Nico? — Fez uma pausa e respirou
tão fundo que eu pude ouvir do outro lado. — Eu avisei a você que, quando
se tornasse pessoal, era o seu fim...
— Uma foto minha com Verônica, no bico do bicho, Guille... Já é
pessoal, companheiro... Só o que posso fazer é acabar com aquele filho da
puta de uma vez.
Meu primo pensou por um tempo.
— Estados Unidos... Maribel queria mesmo uma viagem de férias,
assim não preciso explicar muito... Madrecita ficaria preocupada... Estou
chegando à capital... Vou despachar o carregamento para o Brasil e volto
para Cusco... Não vou deixá-lo sozinho.
Foi minha vez de fazer silêncio.
— Não, Nico... Não me venha com esse negócio de “você assume
se eu morrer!”, você não vai morrer, hermano... Eu não vou deixar!
Desliguei o telefone. A noite começava a cair, quando estacionei
no gramado privado e desci. Assim que contornei o carro, encontrei
Verônica saindo pela porta.
— Não quero conversar... — Passei por ela sem realmente a olhar.
— Também não quer saber o que há naquela caixa? — Apontou
para o canto oposto.
Parei onde estava, voltando os olhos para a caixa de madeira no
chão.
Verônica
— Estava aqui quando eu cheguei... — expliquei. — Achei melhor
não tocar nem tirar do lugar... Também não contei para ninguém.
Nicolas se aproximou da caixa e a encarou por alguns segundos,
depois tirou o telefone do bolso.
— Quero as imagens das câmeras cinco, sete e nove. Envie direto
lá para cima.
Pegou a caixa e entrou no elevador. Parecia tão possesso que eu
nem perguntei nada, apenas o acompanhei.
Entramos na cobertura e ele saiu direto para a grande varanda.
Deixou a caixa sobre a mesa de vidro e tirou um canivete do bolso,
cortando o lacre. Assim que tirou a tampa, eu levei um susto tão grande que
precisei escorar na cadeira.
— É sua? — Ergueu a camiseta branca, toda rasgada e manchada
de sangue.
Aquiesci.
Uma a uma, as peças de roupa que eu havia deixado no albergue
foram sendo tiradas de dentro da caixa. Todas elas manchadas de sangue.
Quando a última peça foi tirada, asas imensas, com penas escuras,
apareceram. Tinham sido cortadas bem na junta.
O rosto de Nicolas se contorceu de ódio, mãos cerradas em punho
e olhos estreitos. Deu um grito e jogou a caixa para fora com tanta força
que eu senti meu corpo todo tremer. Não ouvi quando caiu, certamente
tinha rolado a montanha, já estávamos no lado oposto do hotel.
Eu fiquei estática, não conseguia me mexer, porque tinha sido pega
de surpresa.
Nico sentou-se na cadeira, cobrindo o rosto com as mãos e
respirando forte. Talvez precisasse se acalmar, porque eu, certamente,
precisava.
De repente, levantou o rosto, um riso assustador pairando em seu
semblante.
— Parece que você conseguiu, brasileira... Aquele maldito Yakuza
está te usando para me provocar...
— É uma coisa boa, não é? — perguntei a ele, mas também não
sabia o que responder.
— Aí depende... — Alisou os cabelos, retomando o controle. —
Você tem um demônio na sua cola e ele é bom no que faz...
— E quem disse que eu não sou? — provoquei, mas a verdade é
que eu podia sentir aquela fungada fria e desconfortável do medo no meu
cangote.
— Venha... Está frio e precisamos conversar... — chamou, abrindo
a porta de vidro.
Entrei logo depois dele e o segui pelo corredor, até o quarto.
Nicolas abriu uma das portas do armário e digitou o segredo no cofre. Tirou
uma 9mm de dentro dele e começou a carregar o pente.
— Imagino que já tenha visto uma dessas... — Colocou a pistola
sobre a cama, perto de mim, e eu aquiesci. — Espero que não precise usar,
mas, já que atira tão bem, detetive, é melhor que esteja preparada.
— Sei me virar, Nico... Já lhe disse... Não é a primeira vez que eu
lido com um bandido...
Encarou-me por alguns segundos e achei que fosse reclamar de
algo ou dizer que eu não tinha ideia de quem era a Yakuza, mas, de repente,
seu olhar suavizou e eu senti meu coração aflito.
— Verônica, eu...
— Vamos acabar com aquele desgraçado! — Sorri, interrompendo.
Nicolas venceu o espaço entre nós em poucos passos. Apoiou o
braço na cama e deitou-se sobre mim com tanta pressa que me pegou de
surpresa. A boca sedenta, a língua ávida pela minha. Livrou-se das minhas
roupas com rapidez e eu fiz o mesmo com as suas. Pouco tempo depois,
tínhamos sido tomados pela mesma urgência de saciedade.
— Não vou deixar ninguém machucar você, corazón... —
sussurrou contra a minha boca entre um gemido e outro. — Juro que não
vou...
— Eu sei...
Ele não se levantou depois de gozar. Nem disse nada, nenhuma
piada boba ou provocação. Deitou-se de costas e me puxou para o seu peito.
Cigarro na mão, dando um trago e outro e encarando o teto de gesso.
Eu também não queria me levantar. Sentia como se aquela
sensação ruim no coração fosse voltar, assim que eu o deixasse, então
fechei os olhos e fiquei sentindo o perfume dele, acariciando o peito liso
sobre a tatuagem que combinava tanto com ele.
***
Não sei em que momento peguei no sono, mas quando acordei o
quarto estava escuro e eu estava sozinha na cama.
Levantei-me e vesti o roupão felpudo, procurando pelo brilho claro
que vinha do corredor.
Nicolas estava no computador, olhos vidrados na tela, ainda que
tivesse me visto de relance.
— Descobriu quem foi? — perguntei imaginando o que fazia.
— Venha até aqui... — chamou.
Aproximei-me da mesa, ficando ao seu lado, e observei a tela
dividida em três, mostrando diferentes ângulos da porta de entrada.
Nada aparecia, até que a caixa era colocada no chão, por alguém
usando luvas pretas de couro.
— Quem colocou conhece seu sistema de segurança... — concluí.
— Só eu, Guille e Nacho sabemos a posição das câmeras... —
continuou.
Engoli em seco, sem saber o que dizer.
— Confio minha vida aos dois, detetive... E agora?
— Nico... Deve ter algo que você não viu... Outras câmeras... Um
hacker! — Endireitei o corpo de uma vez. — É isso! Alguém deve ter
entrado em seu sistema e apagado as imagens... Deixou essas para semear a
discórdia... Já vi isso acontecer!
— Já verifiquei... A única pessoa a acessar o sistema de segurança
na última semana fui eu... — Manteve os olhos nos meus.
Havia neles uma sombra de decepção, misturada a incredulidade.
Eu podia imaginar como era difícil para ele. Eu tinha quase morrido por
causa de um X9 na polícia e era exatamente por isso que Fábio e eu
tínhamos criado a Vivi.
Quando a gente confia a vida a alguém, é porque faria de tudo para
salvar aquela pessoa, uma troca, lealdade por lealdade.
— Nico...
Tentei acariciar seu rosto, mas ele afastou minha mão e se
levantou.
— Agora que sabe o quão perto está o traidor, mantenha a porra da
pistola debaixo do travesseiro... — Virou as costas e seguiu em direção ao
quarto. — A vida é uma merda, corazón... Espero que esses dias no meio
dos bandidos te ensine alguma coisa.
Deixei que ele fosse e me sentei na cadeira, repassando as imagens
mais uma vez.
Tinha que haver algo ali. Eu não conseguia acreditar que Nacho ou
Gille tivessem traído Nicolas. Tinha um bom faro para filhos da puta e
nenhum dos dois parecia se enquadrar.
E o que você entende desse mundo, Verônica? Sempre esteve do
outro lado...
Eu podia não entender de como as coisas funcionavam dentro de
um cartel, mas entendia de traição e sabia bem o gosto amargo que ela
deixava. Talvez fosse idiota e eu acabasse me arrependendo, mas, por
alguma razão idiota e impensada, eu não queria que Nicolas se sentisse mal.
Abri os armários e a geladeira em busca de algo que pudesse
cozinhar. Encontrei espaguete, ovos, um pedaço de queijo amarelo, bacon e
vinho branco.
— Pronto! — falei comigo mesma.
Acendi o fogão e coloquei a panela com água sobre a indução.
Deixei no fogo baixo, assim conseguiria jogar uma água no corpo e vestir
algo mais quente, antes que fervesse.
Corri até o banheiro e encontrei Nicolas se secando.
— Com licença... — Empurrei-o para o lado e tirei o roupão,
entrando no chuveiro.
Tomei aquele banho basicão de inverno de cinco minutos, em que a
gente lava o necessário e corre para se secar.
Nicolas encarou-me sem entender, enquanto eu vestia a calcinha e
uma blusa de moletom dele que ficava suficientemente comprida para que
eu não precisasse de calça.
— Algo que eu deva saber? — perguntou curioso. — Se for
incêndio, sugiro que vista uma calça... As escadas de segurança são
vazadas...
— Carbonara, chefe... Vou te dar o prazer de experimentar minha
comida... — Pisquei, correndo de volta para a cozinha.
Não demorou muito e ele apareceu junto ao batente. Olhos fixos no
que eu fazia, sobrancelhas baixas, com aquele ar de quem analisa tudo.
— E vinho! — Dei um gole na garrafa, depois joguei um pouco
sobre o bacon. — O toque especial é sempre um bom vinho... — Dei mais
um gole.
— Um de quinhentos dólares? — perguntou como se não fosse
nada.
Senti o vinho descer rasgando minha garganta.
— Um petit verdot premiado no último festival internacional...
Quase uma raridade...
Murchei na mesma hora.
— Desculpe! — pedi, deixando a garrafa em cima da mesa. — É
que estava na prateleira e não na adega, então eu...
— Sua sorte, detetive... — ia dando passos em minha direção. — É
que tenho uma caixa deles... — Sorriu de canto. — Mas, ainda assim, vai
ter que pagar...
Mordi o lábio, sentindo aquele calor insano subir pelas minhas
pernas, os olhos perdidos nos dele.
— Vai cozinhar para mim enquanto eu fodo você...
Nicolas
Verônica me encarou e estreitou os olhos. Uma sombra de sorriso
safado brilhando em seu rosto e as bochechas corando instantaneamente.
— Vai! — Movi a cabeça indicando a pia. — Estou com fome.
Soltou um riso sem jeito e passou a língua pela boca, deixando a
garrafa sobre a mesa.
— Para de besteira, Nico!
Quando tentou dar um passo, eu a peguei pela nuca, virando de
costas para mim. O cabelo torcido em torno do meu punho, prensei-a contra
a pia, encaixando meu pau duro em sua bunda.
— Acha que estou brincando? — Corri a boca pelo seu pescoço.
— Se acha, ainda não me conhece, detetive... Eu nunca prometo algo que
não pretenda cumprir...
Verônica empinou a bunda, esfregando contra minha ereção e
fazendo meu pau se apertar mais.
Gemi entredentes, lambendo a parte detrás da orelha dela. Eu
gostava de como ela sempre provocava de volta sem nunca recuar.
Baixei a calcinha por suas pernas e tirei meu pau para fora.
Cuspindo na mão, puxando a pele para trás, expondo a cabeça. Comecei a
esfregar em sua boceta, sentindo a pele quente na parte mais sensível do
meu corpo.
— Rebola, corazón... Como fez lá na fazenda... — pedi e ela
obedeceu de imediato.
Começamos a dança torturante sem nenhuma música, só o corpo
dela e o meu. Cada toque da cabeça do meu pau em sua entrada a fazia
arquear mais o corpo, implorando para que eu a enchesse toda. Segurei,
queria provocar.
— Nico... — o sussurro tinha traços de pedido.
— Hum? — perguntei beijando seu pescoço, a mão livre
provocando o bico do seio. — Quer alguma coisa?
— Quero... — Virou o rosto, capturando minha boca, a língua
inquieta buscando pela minha.
— O quê?
Enfiou a mão entre as pernas, os dedos em torno do meu
comprimento.
— Seu pau!
Guiou-me para dentro e eu não resisti, socando com força e
arrancando um gemido alto dela.
— Ah...
Quanto mais gemia, mais eu queria ir, rápido e fundo, mas
precisava me controlar, então parei.
— Não para! — pediu.
— Quero minha massa, muñeca... Você cozinha, eu fodo... Você
para, eu paro...
Verônica riu alto e os espasmos da sua barriga quase me fizeram
gozar. Precisei pensar em sangue, tiro, cadeira, mesa, a lua lá fora, tudo
menos a porra da bunda gostosa que engolia meu pau.
Ela tirou a massa do fogo e jogou no escorredor, e eu ia me
movendo devagar para dentro dela, vez ou outra, mais rápido, depois me
segurava de novo.
Estava quase terminando o preparo, quando eu soube que ela não
aguentaria. Segurou apertado na borda da bancada e gemeu, uma e outra
vez, o canal ordenhando meu pau em um orgasmo que me levou junto.
Segurei na bancada também e acelerei, batendo com força contra seu corpo,
fundo e forte como nós dois gostávamos.
Antes de sair de dentro dela, dei um tapa estalado em sua bunda, de
lado, pegando a coxa também. A pele ficou vermelha no mesmo instante.
— Ai! — reclamou.
— Isso é para você aprender a não me desobedecer... Ainda não era
hora de gozar, corazón... Minha comida nem estava pronta e agora vai ficar
toda empapada... — Subi a calça e acendi um cigarro.
Verônica riu, ainda apoiada contra a pia e correu as mãos pelo
rosto.
— Você não vale nada, Nicolas Huamán! — Bateu em meu braço e
seguiu de volta para o quarto.
Aproveitei e terminei a massa, depois servi o vinho em duas taças e
coloquei a mesa. Verônica voltou pouco tempo depois, usando uma calça de
moletom cor-de-rosa e uma camiseta.
Ainda estávamos comendo, quando o interfone tocou. Levantei-me
rápido da mesa, porque era a campainha da entrada privada.
Assim que liguei a câmera, vi Guille escorado contra a parede.
Tinha a mão sobre a clavícula e o rosto contorcido de dor.
Corri até o elevador e desci, antes que Verônica pudesse me
alcançar.
Assim que as portas se abriram lá embaixo, meu primo cambaleou
para dentro. A camisa clara, por baixo da jaqueta, coberta de sangue, e a
respiração, entrecortada.
Apoiei-o com o braço, para que pudesse se manter em pé.
— Porra, Guille, o que houve? — perguntei enquanto subíamos.
— Interceptaram o carregamento... — Apertou os olhos de dor.
— Quem?
— Os federais... Na estrada, perto da reserva...
— Da reserva? Como perto da reserva? Que merda eles estavam
fazendo lá? A rota é nova, ninguém conhece, Guille.
— Também queria saber... O Marco e o Mena estão mortos, e a
mercadoria já era!
— Porra! — gritei, socando a parede.
Assim que as portas se abriram, vi o rosto aflito de Verônica.
— Ajude-me a colocá-lo no sofá... — pedi e ela obedeceu.
Tirei a jaqueta pelos ombros de Guille, enquanto ele gemia de dor,
e abri os botões da camisa.
— A bala já saiu, só preciso de um curativo e uma porra de uma
garrafa de uísque! — Sorriu entredentes, segurando a dor.
Deixei-o no sofá e corri até o quarto. Por sorte, o material de
curativo que eu havia pegado para tratar Verônica ia servir e, quando voltei,
Guille estava bebendo direto do gargalo, com Verônica ao seu lado.
— Sei como dói... — Deu de ombros. — Já levei alguns tiros... —
explicou. — Por sorte foi de raspão...
— Boa garota essa detetive, primo... — Guille riu. — Sabe lidar
com uma arma e com o estrago que ela faz, além de aturar você...
Estreitei os olhos e levantei uma sobrancelha, sentando-me ao lado
dele para começar o curativo.
— Conte o que houve, Guillermo... A polícia federal não vigia
reserva indígena, hermanito, a menos que alguém denuncie, e ninguém...
Parei a frase no meio, não queria continuar.
Guille voltou os olhos para os meus. Tínhamos chegado à mesma
conclusão, mas nenhum de nós acreditava.
— De quem é o carro no jardim? — perguntei alguns segundos
depois.
— Roubei na estrada... A gente vai ter que se livrar dele rápido.
Deixei Verônica cuidando do curativo e liguei para Nacho.
— Porra! — xinguei. — O desgraçado desligou o telefone!
— Cálmate... — pediu. — É só coincidência, Nico...
Acendi um cigarro e puxei um trago, depois entreguei na mão de
Guille e acendi outro para mim.
— Espero que seja...
Quando terminamos, Guille estava suficientemente bêbado para
não sentir dor.
Ajudei-o a se deitar no sofá para que ficasse mais confortável e
chamei Verônica para perto de mim.
— Vou sumir com o carro... — avisei. — Você fica de olho nele,
que eu volto logo.
A garota aquiesceu e caminhei até o quarto, trocando minha calça
de elástico por jeans escuros e uma blusa de moletom preta com capuz.
Peguei as luvas também.
Desci pelo elevador e abri a porta do porão, atrás de um galão de
combustível que pudesse usar. Coloquei no banco detrás e dei a partida.
Havia uma antiga estrada desativada que acabava bem no meio da
mata, em uma clareira que já não usávamos mais como rota de fuga. Parei o
carro lá e despejei o combustível nele todo, principalmente nos bancos, que
serviriam como condutor para o fogo. Em seguida, travei meu isqueiro e o
joguei para dentro.
Estava a uma distância segura, quando ouvi o estouro. Pelo menos
um problema, Nico, você resolveu.
Continuei caminhando pela estrada deserta, não era perto do hotel,
quando meu telefone tocou.
— Venha me buscar... Estou na rota antiga... — falei assim que vi o
número de Nacho na tela.
— Não consigo, chefe... Estou longe...
— Longe? — repeti.
— É a minha irmã... O desgraçado do meu cunhado bateu nela de
novo e...
— Espero você amanhã pela manhã... — encurtei o assunto. —
Roubaram a nossa carga... — Desliguei.
Nacho longe? Bem no dia em que roubam uma carga de que só eu,
ele e Guille, além dos brasileiros, sabíamos da entrega? É, companheiro...
Sua irmã escolheu um péssimo dia para levar uma surra...
Verônica
Nicolas demorou a voltar e eu não conseguia dormir, então peguei
o maço de cigarro e saí para a varanda. Tinha deixado de fumar muitos anos
atrás, mas, depois de tudo que vivi nos últimos dias, fumar era o menor dos
riscos.
Acendi e dei o primeiro trago, encarando a luz da lua na montanha.
Celso tinha uma cobertura milionária, meu celular antigo, uma
escuta, e Fábio tinha resgatado nosso meio de comunicação de emergência.
Que porra estava acontecendo bem debaixo do meu nariz?
Eu estava com a sensação de que tinha escolhido a pílula vermelha.
Se você pegar o vermelho, estará no país das maravilhas, e eu
mostrarei a você até onde vai a toca do coelho.
Eu tinha assistido àquele filme mais de vinte vezes, mas nunca
imaginei que chegaria a minha vez de foder com a porra da Matrix.
Nicolas é o bandido, garota... Lembra disso.
Dei mais um trago, soltando a fumaça para cima. Queria calçar
meu par de tênis e correr um pouco, pensava melhor quando estava em
movimento, mas nem isso eu podia. Essa merda de vida de isca está
acabando com você, Verônica!
Tinha fumado três cigarros e minha cabeça parecia que ia explodir
de tanto pensar, quando Nicolas chegou.
Conferiu a temperatura do primo e abriu a porta de vidro,
encostando ao meu lado e pegando o cigarro da minha mão.
— Tia Lupe e Maribel estão fora do país... — falou sem me
encarar. — Você devia ir também...
Abri a boca para responder, mas ele não deixou.
— Sei que sabe se virar, como você mesma diz, e não duvido,
mas... — Parou a frase no meio e alisou os cabelos para trás, tomando
fôlego.
Os olhos estavam tristes, pesarosos e preocupados. Havia uma
escuridão ali que eu não tinha visto antes, diferente da letalidade com que
resolvia as coisas.
— Ele não vai parar... — falou tão baixo que mais parecia
conversar consigo mesmo.
Engoli em seco, queria abraçá-lo apertado, uma sensação estranha
que eu nunca sentira.
Dei um passo à frente, afastando-me dele. Tinha que ficar longe ou
acabaria cedendo mais do que podia.
Como se soubesse o que eu sentia, Nicolas levantou os olhos,
mirando os meus sem dizer nada.
Eu queria dizer que não ia deixá-lo. Que estava ali com ele e que
iríamos juntos até o fim, como uma equipe, mas, que equipe era a nossa? Eu
não sabia nem de mim, quanto mais dele. Nicolas Huamán, El Condor...
Procurado pela polícia das três Américas. Uma porra de um bandido,
Verônica...
— Vou dormir... — avisei tentando não demonstrar a bagunça que
minha cabeça era naquele momento. — Está tarde... — Sorri.
Ele aquiesceu e virou de frente para a vista da montanha. Talvez
também quisesse esconder de mim o que se passava em sua cabeça.
Deitei-me sozinha na cama, com a sensação estranha de que faltava
algo, e acordei com a mesma sensação. Nico não estava na cama e seu lado
estava intacto, o que deixava claro que não tinha dormido.
Levantei-me e caminhei até o banheiro, depois prendi os cabelos
em um rabo de cavalo. Passei pela cozinha, em direção ao escritório, e o vi
lá fora, esparramado na poltrona, meio encolhido de frio. O cigarro havia
apagado sozinho no cinzeiro. Peguei uma manta para o cobrir, mas, assim
que tentei tirar o celular do seu colo, ele agarrou meu pulso, olhos astutos
nos meus.
— Calma, chefe... — brinquei. — Só queria te cobrir.
Fui puxada para o seu colo e não ofereci resistência, acariciando
sua barba e beijando sua boca suavemente.
— Um olho aberto, outro fechado... — repeti a frase que havia me
dito.
— Sempre... — completou.
Aconcheguei-me em seu peito, e ele nos cobriu.
— Você nunca relaxa? — perguntei curiosa.
Nicolas respirou fundo, depois jogou a cabeça para trás,
espreguiçando-se.
— Quando estou fodendo você... — A sombra do sorriso de canto
brilhando em seu rosto. — Geralmente relaxo...
Comecei a rir.
— Estou falando sério!
— Eu também! Ninguém contou a você que sexo é ótimo para
relaxar? Bem que eu te achei estressadinha, detetive! — Bateu em minha
bunda, para que eu levantasse. — Conte a verdade... Fazia um bom tempo
que você não dava uma bela trepada...
— Aí é que você se engana, senhor... — provoquei. — Mas não
vou falar da minha vida sexual com você... Esqueça!
Ainda estávamos rindo, quando a porta se abriu e Guille passou
por ela.
— Como está? — Nico perguntou.
— Quase bom, mas pronto para pegar o desgraçado que armou a
emboscada... Sabe que eu odeio cicatrizes, não sabe? — Deu um gole na
garrafa de uísque quase vazia e apontou para o curativo.
— Essa vai ficar bem feia! Aliás... — Levantou o dedo em riste. —
Onde acho aqueles comprimidos que você costuma ter na gaveta? Isso aqui
não está fazendo muito efeito mais!
— La tomba... — Nicolas apontou para mim. — Acabou com
todos!
Encarei sem entender.
— Polícia, hermanita... — Guille explicou e eu balancei a cabeça
em negativa, rindo.
Nicolas enfiou o telefone no bolso e reprimiu um bocejo.
— Vou descer até o ambulatório e peço mais... Quando subir quero
conversar com você sobre a emboscada...
— Diga onde é a enfermaria e eu pego... — propus. — Assim
vocês conversam mais à vontade...
Eu não era idiota e sabia muito bem que Nicolas também não... Ele
não ia me deixar a par dos detalhes importantes sobre o cartel, porque,
afinal de contas, eu ainda era la tomba!
Desci como estava, de moletom e camiseta. Não era a pessoa mais
preocupada do mundo com moda e não pretendia mudar isso por causa de
alguns dias na cama de um cara. Até porque não esperava encontrar
ninguém no curto caminho do elevador privativo até a enfermaria, mas
estava enganada.
Assim que passei pela entrada privativa, dei de frente com uma
mulher. Ela levou um susto tão grande que derrubou o celular no chão.
Tentei pegá-lo, já que a tela mostrava uma ligação em andamento, mas ela o
puxou com força, enfiando no bolso da saia.
Franzi o cenho sem entender.
A garota respirou fundo e se recompôs, com aquela cara de nada
que a gente faz quando quer parecer gentil mas na verdade não é. Encarou-
me sem entender de onde eu estava vindo, por alguns segundos.
— Acho que você se perdeu... — Sorriu. — Aquele elevador é de
uso particular.... — Indicou o caminho até o elevador de Nicolas.
Havia um certo ar de deboche e uma pitada de presunção em seu
olhar, aquela provocação velada que faz a gente querer retribuir na mesma
moeda.
Respira, Verônica...
— Estou procurando a enfermaria... — expliquei sem maiores
detalhes. — Se me der licença...
— Oh, claro! — Sorriu de novo. — Mas, infelizmente, a Tamara
ainda não chegou... — continuou em meu caminho. — Se for uma
emergência, posso falar com o Sr. Huamán... Eu estava mesmo...
— Não precisa... — Tentei sorrir, mas sei que parecia muito mais
uma careta. — Ele mesmo me pediu que viesse! — Balancei o cartão de
acesso. — Desculpe... — Esperei que ela se apresentasse.
— Teresa... — falou a contragosto.
— Agradeço a ajuda, mas imagino que você tenha trabalho a
fazer... Eu consigo me virar! — Pisquei.
Levei a mão ao seu ombro, tirando-a do meu caminho suavemente,
e passei. Podia parecer implicância minha, mas eu não tinha ido com a cara
da tal Teresa. Depois de tantos interrogatórios e investigações, eu tinha
adquirido uma capacidade estranha e muito bem-vinda de ler as pessoas.
Raramente errava.
Abri a porta e procurei pelo remédio que Nicolas havia pedido.
Coloquei no bolso da calça e ia saindo, quando encontrei novamente Teresa,
próximo à porta.
— Nicolas se sente mal? — perguntou tentando parecer amigável.
Encarei-a por alguns segundos. Aquela sensação de alarme tocando
em meus pensamentos sem parar.
— São para mim... — menti. — Torci o pé escalando... Sabe como
é! — Dei de ombros sorrindo. — Prazer em conhecê-la! — menti
novamente.
Segui o caminho de volta para o elevador e, assim que passei pela
parede de vidro, vi Teresa no balcão da recepção. Conversava com uma
garota baixinha de cabelos castanhos, mas os olhos vagavam em minha
direção.
Encarei-a por alguns segundos, até que ela desviou o olhar,
fingindo não ter percebido.
Estava claro para mim que ela tinha intimidade com Nicolas, só
pela maneira como pronunciara seu nome, mas o que ela estaria fazendo
naquele lugar tão cedo e, o mais importante, por que se assustou comigo e
escondeu o telefone? O saguão do hotel era cheio de jardins e todos
estavam vazios, por que ir tão longe apenas para atender a uma ligação?
Teresa parecia aquele tipo de pessoa que passa despercebido, mas
aparece sempre em todos os lugares e eu odiava isso.
Nicolas
— Você o conhece desde que era um chiquito sem dentes na frente,
Nico... — Guille defendeu.
— E confiei minha vida a ele mais vezes do que posso contar, mi
hermano... — frisei. — Acha que quero desconfiar de Nacho? Ele é meu
homem de confiança, o único que sabe coisas que só a família sabe,
Guille... Sempre o tratei como a um irmão...
Meu primo deu um trago no cigarro, soltando a fumaça para longe,
depois deu um gole na xícara de café.
— Falou com o Chicano? — perguntou. — A mãe dele mora em
Arequipa, perto da irmã do Nacho... Talvez...
Neguei com a cabeça, cortando sua frase.
— Se aquele boliviano filho da puta estiver mesmo me traindo, só
vamos levantar suspeitas e fazê-lo ser mais cuidadoso...
Concordou, batendo a cinza do cigarro no cinzeiro.
— Quero é saber onde está minha mercadoria e pegá-la de volta...
Três milhões, Guille... Três milhões que eu não pretendo perder... — Dei
um gole no café. — O telefone daquele federal da fronteira... O que está em
nossa lista de... regalos... Você ainda tem, não é?
— Tenho... No chip do telefone... Se me conseguir um aparelho
novo... O meu já era...
Deixei-o na cozinha e caminhei até o quarto, tinha alguns
aparelhos novos em minha gaveta, para uma eventualidade, então peguei
um deles e tirei da caixa.
No momento em que entreguei a Guille, meu telefone vibrou no
bolso. O número de Nacho vibrando na tela. Atendi no viva-voz e ativei a
localização.
— Como está o Guille, chefe? — perguntou.
— Onde você está? — devolvi. — Por que ainda não voltou?
Não queria crer que o homem em quem eu mais confiava depois de
Guille estivesse me traindo, mas, até ter certeza, quanto menos ele
soubesse, melhor.
— Perto de Cusco... — desconversou. — Resolvendo algumas
coisas...
— Achei que estava em Arequipa... Cuidando da Sole... —
provoquei.
Nacho ficou em silêncio por alguns segundos e depois suspirou.
— Sei que pensa que eu o traí, Nico... — Respirou fundo mais uma
vez, raramente me chamava pelo apelido, mesmo tendo crescido comigo. —
Vou encontrar o filho da puta que está tentando me incriminar...
Desligou em seguida e eu continuei encarando Guille por mais
algum tempo. Ainda nos olhávamos quando Verônica apareceu.
Colocou os comprimidos sobre a mesa e entregou-me o cartão.
— Conheci uma funcionária sua... — comentou, enchendo uma
xícara de café e levando à boca. — Teresa, o nome dela... Não que eu tenha
algo com isso, mas... ela pareceu estranha e assustada quando me viu...
Falava ao telefone, bem perto da sua entrada privativa...
— Eu não costumo trazer mulheres aqui, detetive... Qualquer um
se assustaria... — limitei-me a dizer.
Verônica virou o que restava de café na xícara e seguiu para o
quarto. Eu não pretendia ser grosseiro, mas, depois que ela saiu, comecei a
achar que tinha sido. Eu era péssimo em lidar com o depois, por isso
gostava de terminar meus relacionamentos assim que gozava. Era bem mais
simples e eu não gastava tantas palavras desnecessariamente.
— Se eu fosse você, ia atrás... — Guille deu mais um trago no
cigarro.
— Ainda bem que você não é, ou estaríamos à mercê da primeira
boceta que encontrasse... — praguejei.
A última localização do telefone de Nacho era Cusco, perto dos
Chanapatas. Nós não tínhamos negócios por ali, mas o Matsuya tinha.
— Vamos para Cusco... Você fala com seu amigo tombo e eu fico
na cola daquele boliviano de merda...
Tinha acabado de terminar a frase, quando Verônica parou junto à
porta. Vestia jeans e uma jaqueta de couro, pronta para sair.
— Sabe o que eu aprendi nesses anos de polícia? — perguntou,
caminhando para perto da mesa. — Que a gente sempre desconfia da pessoa
errada... Se quer minha opinião... Não acho que Nacho está traindo você...
— Não quero, detetive... Nem sua opinião, nem conselho... Você
acha que entende tudo, mas não consegue nem enxergar o que está debaixo
do seu nariz... — irritei-a de propósito. Não queria que se metesse demais.
— Então somos dois, El Condor... — Pegou o cigarro em minha
mão e deu um trago. — Enquanto você perde tempo correndo atrás de
pistas falsas, as verdadeiras vão se perdendo... — Colocou o telefone sobre
a mesa, com o vídeo que tinha feito na festa rodando. — Quem garante que
a pessoa aqui... — Apontou a pilastra. — É um homem? — frisou.
Desafiava-me com o olhar, então eu o sustentei. Verônica não era
do tipo ciumenta, nem esperava de mim mais do que alguns dias de cama e
parceria, então não havia razões para implicar com Teresa.
— Vamos? — perguntou de repente e eu estreitei os olhos sem
entender. — Para Cusco! Não achou que eu ficaria aqui curtindo o hotel,
não é?
— Guille riu, levantando-se e passando o braço bom em torno dos
ombros de Verônica.
— Se algum dia resolver largar a farda, tombita, tem lugar
garantido comigo!
Fiquei olhando-os caminhar, alguns passos a minha frente.
E se todos tiverem razão, Nico, e você estiver focando na pessoa
errada... Não! Teresa não tem a menor condição de trair você... O que a
garota sabe? Que você é o chefe? Isso não é nada! Não serve nem como
moeda de troca e ela sabe bem...
Pegamos o helicóptero e depois seguimos direto para o Centro.
Durante todo o percurso, vigiei a localização do telefone de Nacho, mas não
tinha certeza se ele não estava se movendo ou se tinha deixado o aparelho
em algum lugar. A pior parte de desconfiar de alguém de dentro é que ele
sabe de todos os truques.
Guillermo tinha razão, eu conhecia Nacho desde criança. José
Ignacio Sanchez, o garoto alto e desengonçado cujo pai tinha sido morto
junto com o meu, na porra da tentativa de salvar aquela desgraçada da
Malena.
Nacho fora acolhido pelo meu avô, quando a mãe sumiu no mundo
com medo da retaliação da Yakuza. Tinha crescido comigo e com Guille,
correndo pela fazenda, e havia se tornado meu grande amigo e confidente.
Ficara ao meu lado por todos esses anos e fora essencial para o meu sucesso
em duplicar o cartel.
Por que diabos me traiu, seu boliviano filho da puta? O que te
faltou? Dinheiro? Poder? Caralho, Nacho, era só ter pedido mais,
companheiro... Eu teria dado...
O carro parou em frente ao portão e nós descemos. Guille havia
passado boa parte do percurso, até o Centro, no telefone.
— A mercadoria não foi para o armazém... O tombo nem sabia da
operação, Nico...
— Filho de uma cadela desgraçada! É aquele merda do Nakai,
Guille! Tenho certeza de que a nossa mercadoria está a caminho de algum
porto! Quer apostar?
— Não! Porque eu sei que perderia...
— Descubra quais são os navios ancorados com destino ao
Oriente... — mandei. — Pode ser que eles tenham voltado para nós ou
estejam na Bolívia... Vou fazer algumas ligações e depois nós saímos para
pegar o Nacho.
Entrei em meu quarto e fechei a porta. Tinha que resolver tudo
aquilo logo, não era mais só o assassinato de Karina, era pior. Alguém
estava tentando derrubar o meu cartel e eu não podia permitir.
Falei com alguns contatos nas polícias e deixei todos de
sobreaviso. Preferia perder meu dinheiro para os tombos a ver a maldita
Yakuza lucrar em cima da minha desgraça.
Quando desliguei, vi Verônica falando ao telefone. Desligou assim
que eu me aproximei.
— Um carregamento suspeito de batata para Okinawa... — disse
de repente. — Aposto que sua mercadoria vai escondida nele...
Estreitei os olhos.
— Como sabe? — perguntei curioso.
— Você tem seus meios, eu tenho os meus...
Ia virando as costas, quando eu a segurei pelo braço, girando de
frente para mim e prensando contra a mureta do jardim.
— Como sabe, Verônica? — insisti.
— Vai desconfiar de mim também? Acha que estou trabalhando
com o assassino da Karina? — devolveu e eu engoli em seco, mas não
voltei atrás. — Sou filha de policial, Nicolas... Tenho meus contatos e
velhos amigos em quem sei que posso confiar... Aliás... — Levantou o dedo
em riste. — Só estou ajudando porque quero que você se concentre no
nosso problema... — Forçou o braço para baixo e eu a soltei. — Assim
posso voltar para minha vida de uma vez.
Deu alguns passos para longe, de costas para mim, e eu fiquei ali
parado, sem saber como reagir, até que tive um rompante de imprudência e
a puxei pelo braço novamente, forte, chocando seu corpo contra o meu.
Abracei-a apertado e nem sabia o porquê, só que a queria perto.
Verônica demorou alguns segundos para retribuir o carinho, as
mãos se apertando lentamente contra minhas costas, até acariciar-me de
verdade, por cima da camisa.
Nenhum de nós disse nada. Não havia uma maneira coerente de
explicar aquela necessidade de ter o outro, já que nós dois sabíamos que
não passava de colaboração momentânea.
Verônica
Eram perto de duas da tarde, quando Nicolas saiu com Guille e eu
fiquei sozinha na casa. Sentei-me no banco do jardim e dei uma mordida na
maçã, andava pensando demais em coisas do passado. Depois da conversa
com Nicolas, por mais que eu negasse para ele, a verdade é que eu não
sabia mais o que queria da minha vida.
Na época do acidente com meus pais, tudo que soube era que o
carro que os havia atropelado pertencia ao filho de um figurão do ramo
frigorífico, mas nunca conseguimos provar nem mesmo quem estava ao
volante. Misteriosamente, todas as imagens das câmeras de segurança
haviam sumido.
Depois que entrei para a polícia, tentei reabrir o caso e investigar
mais a fundo, tinha encontrado algumas pistas novas, mas nunca consegui.
Tudo que ouvia era: Não leve para o lado pessoal, Verônica, foi apenas um
acidente.
Um acidente...
Um acidente com meu pai, um acidente com Karina, um acidente
comigo, que só não foi fatal porque Nicolas apareceu.
Respirei fundo, sentia meu coração apertado sempre que pensava
nele. Eu não era do tipo mulher de bandido. Não tinha aquele fetiche que as
meninas geralmente têm de se apaixonar pelo bad boy da escola; para ser
bem sincera, eu nem era do tipo que se apaixonava, mas com Nicolas algo
havia fugido do controle.
Não, você não está apaixonada, Verônica! Está envolvida,
fragilizada, amedrontada... É isso, garota, você não é de ferro! É melhor
admitir logo de uma vez...
Joguei a cabeça para trás, sentindo o sol fraco em meu rosto, o
perfume das dálias enchendo minhas narinas.
Não era verdade, mesmo que eu quisesse que fosse. Eu podia estar
vulnerável, mas era bem mais que isso. Era falta, necessidade, vontade,
cuidado, preocupação... O cerco estava se fechando e eu tinha medo de que
um de nós acabasse ferido. Já tinha perdido meus pais e Karina, não queria
perder mais ninguém.
Peguei minha carteira, enfiei no bolso do moletom e calcei os tênis.
Precisava andar um pouco, organizar as ideias, agora que meu tornozelo
começava a permitir.
Peguei a pistola e enfiei na cintura da calça, por dentro do
moletom. Sentia-me mais segura armada, ainda que não pretendesse atirar.
Tinha acabado de descer a rua, quando as palavras de Fábio
estalaram em minha cabeça.
Se quiser... Fale com a Vivi... Você sabe o número de cor, não é?
Engoli em seco. Fábio era o cara correto, policial exemplar, sem
uma mácula sequer em todo o extenso currículo. Se tinha falado de uma
linha secreta, era porque também estava desconfiando do sistema.
A casa de Nicolas ficava perto da Plaza de Armas, então segui
caminhando pela marquise de um prédio antigo. Precisava encontrar uma
lan house para não levantar suspeitas. Nico tinha me dito para não usar o
celular que ele deixara comigo, então um telefone público parecia o mais
correto.
Entrei na primeira que encontrei. Era dessas lojinhas em que os
turistas pagam para poder carregar fotos e fazer ligações internacionais,
com computadores antigos e lentos, mas pelo menos lá eu tinha certeza de
que ninguém me conhecia ou iria suspeitar de mim.
Sentei-me a um dos computadores e me conectei em um aplicativo
de VoIP. Liguei no celular pessoal de Fábio, mas ele não atendeu, então eu
deixei uma mensagem.
— Oi, chefe, como estão as coisas por aí? — tentei soar animada e
despreocupada. — Só queria dizer que a praia está ótima e que volto logo.
Como a Vivi está? Diga que deixei um olá!
Era minha maneira de avisar que tinha deixado recado na linha
secreta, sem levantar suspeitas.
Digitei o número da Vivi e esperei que caísse na caixa postal.
— Como você já imagina, estou no Peru, em Cusco, mais
precisamente. Não posso contar nada, mas, caso eu não volte, quero que
investigue dois nomes... Isao Nakai e Seiji Matsuya.
Desliguei em seguida, o coração acelerado, como se confessar meu
medo o fizesse crescer.
Tinha me levantado para pagar pelo tempo no computador, quando
um táxi parou e a funcionária de Nicolas desceu de dentro dele.
Ela olhou para os lados e depois atravessou a rua, em minha
direção, caminhando apressada, direto para um beco de comércio informal.
Deixa de ser paranoica, Verônica... — Revirei os olhos. Se ele, que
é o maior interessado, não está preocupado... — Respirei fundo, não
conseguia ignorar. Ok, só para desencargo de consciência...
Esperei até que ela passasse por mim, para depois sair da loja, e
então escondi-me atrás da pilastra, queria ver para onde ia.
A garota trocou algumas palavras com um homem estranho, muito
bem-vestido para trabalhar no beco. Estava sempre olhando para os lados, o
que indicava medo, mas não parecia ser uma situação de risco.
Em minha experiência, se alguém está com medo e não está em
perigo, é porque fez merda das grandes!
Assim que ela saiu, eu a acompanhei com os olhos, até a praça.
Aproximando-me cuidadosamente. A garota entrou em um dos táxis e eu
entrei em outro.
— Vê aquele carro? — perguntei apontando em frente. — Siga
sem que eles percebam!
O jovem atrás do volante aquiesceu e seguiu, sempre mantendo um
carro de distância.
Saímos do Centro e começamos a subir uma rua íngreme,
demoramos cerca de quinze minutos para chegar em frente a uma grande
construção. A placa dizia Coricancha.
Paguei a corrida e desci, seguindo a garota pelo meio da multidão.
Ela não entrou pelo portão principal, então, quando se distanciou
dos turistas, eu precisei ser mais cuidadosa. A garota desceu pelo barranco,
contornando a construção principal em direção aos fundos do terreno.
Depois passou por um tapume.
Eu me aproximei da porta de madeira com cuidado, não queria ser
pega em flagrante, mas, quando abri, não vi ninguém. Passei para dentro, no
meio de uma área em reforma. Havia muitos espaços fechados por aquelas
telas de segurança que se usa em obra de apartamentos. E eu comecei a me
sentir enrolada em uma teia de aranha gigante.
Procurei por Teresa pelos cômodos vazios, beirando a parede, e,
quanto mais eu me embrenhava no prédio antigo, mais agradecia por ter
levado a pistola. Estava com aquela sensação ruim que a gente fica quando
pressente o perigo.
Calma, Verônica... Está escuro, você não conhece o lugar e vamos
combinar que a tensão já vem de tempos... É só isso! — Forcei-me a pensar.
Continuei o caminho. Até que ouvi algumas vozes ao longe.
Concentrei-me, já tinha ouvido aquele timbre. Mais alguns passos.
— Eu disse que não! — uma voz conhecida gritou. — As coisas
não são assim... Aqui quem manda sou eu! Entendeu?
Parei assim que vi o homem. Era o mesmo da gravação, o tal
Matsuya. Ele estava de costas para mim, e tinha um jovem latino a sua
frente. Ajoelhado e com as mãos amarradas.
Estava nervoso, a voz embargada de choro, mas seu lamento não
parecia comover o Yakuza.
— A fazenda estava vazia, senhor... Nós olhamos por tudo, todos
os celeiros e armazéns, senhor... O condor deve ter imaginado o que
faríamos, senhor...
Senti um arrepio frio subir pelas minhas costas. A fazenda, a
fazenda de Guadalupe! O desgraçado tinha ido atrás da família de Nicolas!
O homem de terno sacou algo de dentro do bolso e eu só percebi
que era uma navalha quando a lâmina brilhou com o único raio de sol que
entrava pela fresta do teto.
Segurou o rapaz ajoelhado pelo pescoço e passou a faca, fazendo-o
se debater no próprio sangue.
Tirei a pistola e a engatilhei, tinha o desgraçado em minha mira e
uma vontade imensa de estourar os miolos dele, mas, quando fui apertar o
gatilho, Guille foi jogado no chão por dois homens e eu recuei.
Coração acelerado, o medo tomando conta de mim, encarando o
primo de Nicolas ali, imóvel. Nem sabia se vivo ou morto.
— Onde está o Condor? — o Yakusa perguntou.
— Se ainda estiver vivo... — Um garoto baixinho riu. — Virá
assim que assistir ao vídeo, chefe!
Perdi a reação por alguns segundos. Respiração acelerada, como se
me faltasse o ar. Eles começaram a chutar e socar Guille, enquanto
gravavam com o celular, e eu fiquei tão desesperada para sair de lá e pedir
socorro que tropecei em um balde, fazendo barulho.
— Ali! — alguém gritou. — Pegue a porra da garota!
Corri por entre os cômodos e passagens, rasgando o tecido fino de
proteção. Queria sair daquele lugar o mais rápido que pudesse, sabia que, se
conseguisse voltar para o prédio principal, estaria salva pelo movimento de
turistas. Fui ficando nervosa, até que não reparei no chão e caí um andar,
para minha sorte, em cima de um monte de areia. Sacudi a roupa e tentei
encontrar a arma, mas, quando vi o vulto dos homens que me seguiam,
desisti e corri pela câmara subterrânea.
O cheiro de mofo estava impregnado no lugar, úmido e frio. Meu
ombro doía pelo tombo e ainda havia areia em meus olhos, então eu tentava
limpá-los e correr ao mesmo tempo, amaldiçoando a porra da minha
curiosidade, até que o primeiro tiro ecoou e eu me abaixei, sem deixar de
correr.
Outro tiro, que acertou a madeira entalhada da porta a minha
frente, e mais um. Eu tinha certeza de que ia morrer ali, naquela maldita
caverna inca, e nem encontrada seria, quando entrei por uma porta e senti
um par de braços fortes me puxar para o canto. Ia me debater e socar,
quando a boca se aproximou da minha orelha e eu reconheci o perfume.
— Shhhhhhhhh... — pediu.
Obedeci, meu corpo colado ao seu, enquanto ele engatilhava e
apontava a pistola com silenciador. O primeiro homem passou e ele o
acertou em cheio na cabeça, espirrando um jato de sangue na parede de
pedras. O outro não teve tempo de reação. Nicolas acertou no meio do
peito, fazendo-o cair para trás.
Eu sentia meu corpo todo tremer.
— Nico... — Segurei seu rosto entre minhas mãos. Estava tão
aliviada que nem sabia como reagir. — Você está vivo!
— Você está comigo agora, corazón... — disse perto do meu rosto.
— Não vou deixá-la.
Abracei-o apertado, como se precisasse dele para respirar. Havia
um mar de confusão e sentimentos desconexos dentro de mim, mas uma
certeza era absoluta, eu queria estar com ele, e não conseguia mais fingir o
contrário.
Nicolas
Afundei o nariz em seus cabelos, sentindo o perfume suave que ela
tinha. O corpo pequeno colado ao meu, amedrontada e assustada. Apertei-a
mais forte, queria que se sentisse segura. Estava tão grato por conhecer
aquele lugar que nem conseguia explicar.
— Escute bem o que eu vou falar... — Segurei-a pelos ombros,
para que escutasse com atenção. — Isso virou uma guerra, corazón... Não
sei como vai terminar, nem posso garantir que vou conseguir protegê-la...
— Respirei fundo. — Se quiser ir agora, haverá um jato executivo na pista,
esperando você, mas se ficar... Eu preciso ter certeza de que posso contar
com você...
— Estou com você, Nico! Até o fim...
Espalmei as mãos na parede atrás dela, prensando seu corpo contra
o meu. Meus lábios tocando os seus sem realmente beijar.
Ela também não disse nada, as mãos descendo pelo meu peito, até
afundar-se por dentro da jaqueta, abraçando-me tão apertado que me fez
suspirar.
— Quando tudo isso acabar... — ela disse de repente, mas eu não
permiti que continuasse.
Afundei minha boca na sua, a língua abrindo espaço entre seus
lábios, tomando o que eu queria para mim. Sem promessas, nem depois.
Quando terminei de beijá-la, eu a levei comigo pelo caminho novamente.
Aquela era uma discussão que eu não pretendia ter.
— Venha, vamos sair daqui... — Entrelacei nossos dedos, levando-
a comigo até a escadaria que dava na rua de baixo, em uma igrejinha antiga
bem longe do movimento.
Sabia que Matsuya estava nos seguindo desde a noite da festa e
não podia arriscar, não com Guille preso.
Chegamos à porta da saída e eu empurrei com cuidado. Esperava
encontrar a sacristia vazia como sempre, já que a igreja estava abandonada
havia muitos anos, mas, assim que passei pela porta, travei no chão.
O lugar estava cercado pelos homens do Matsuya, e Teresa, entre
eles.
Havia um homem ajoelhado no chão, rosto coberto por um saco
preto, mãos amarradas para trás. Eu sabia que não era Guillermo pelas
roupas, mas, quando o saco foi retirado do seu rosto, cerrei as mãos em
punho.
Nacho estava lá, o rosto machucado de apanhar, rendido aos pés de
Isao Nakai.
Nakai riu, assim que percebeu minha surpresa.
— Não é que eu consegui mesmo fazê-lo suspeitar do seu cão de
guarda? — Alisou os cabelos para trás. — Curioso, não acha? Você
suspeitou dele, mas ele não o traiu nem por um segundo... — Revirou os
olhos. — Nunca vou entender essa lealdade latina... — Deu uma joelhada
no queixo de Nacho, fazendo-o cair contorcendo-se de dor. — Sorte sua que
escolheu o lado certo, querida... — Estendeu a mão de Teresa e beijou.
Cerrei a mão em punho, sentindo o ódio se espalhar por mim,
enquanto Nakai caminhava pelo espaço tranquilamente.
— Tenho que dizer que seu gosto para mulheres é tão bom quanto
o do seu pai, garoto...
Deu alguns passos e levou a mão para tocar Verônica, mas eu não
permiti, colocando-me na frente por instinto.
— Interessante... — Riu mais, mostrando o dente de ouro na boca.
— Quase me dá vontade de entender o que ela tem de especial...
Sinalizou para um dos homens e no momento seguinte senti a
coronhada fazendo-me cair de joelhos, o sangue escorrendo em minha nuca,
deixando-me zonzo.
— Desarme os dois... — ordenou. — Depois amarre-os. Não quero
surpresas.
— Seu maldito desgraçado! — Verônica xingou. — Vou acabar
com você!
— É mesmo? — Voltou o olhar para ela, sorrateiro. — Como vai
fazer isso? — perguntou estreitando os olhos, andando ao redor dela como
uma serpente. — Ouvi dizer que você é brava, detetive... Luta bem... Atira
ainda melhor... Eu conheci uma outra garota que pensava o mesmo...
Bonitinha ela, sabe? Deixe-me ver se lembro o nome... — Batia o indicador
no lábio inferior, fazendo graça. — Como era mesmo, querida? — Voltou-
se para Teresa.
— Karina... — A diaba sorriu.
— Isso mesmo... Karina... Bonita e valente... Uma pena ter se
acidentado...
Fixei os olhos nela, queria que me desse a chance de dizer que
Nakai queria desestabilizá-la, que era assim que ele jogava, mas não tive
tempo.
— Seu demônio filho da puta! — Verônica gritou.
Atirou-se em direção a ele escapando do capanga, mas, antes que o
atingisse, ele engatilhou a pistola entre os olhos dela, a mão livre apertando
seu pescoço, fazendo-a tossir.
— Quietinha, boneca... Ou você vai perder a parte divertida...
— Sabe que me matar não vai dar o controle do cartel a você,
Nakai... — provoquei-o, queria tirar sua atenção de Verônica. — Quando o
Manolo souber... Você e o Matsuya estão fora, completamente!
O japonês riu alto.
— Essa é a questão, garoto... O Manolo só vai saber o que eu
quiser que ele saiba, entende? Você se acha muito esperto, Nicolas, mas não
passa de um empacotadorzinho como seu pai...
Baixei os olhos, controlando a respiração. Não queria dar a ele o
gosto de me ver desesperado, porque era assim que ele ganhava. Tinha sido
desse jeito quando matou meu pai, usando a garota grávida para tirá-lo do
juízo.
— O que foi... Hã? Vai me dizer que esqueceu como as coisas
funcionam? — Segurou-me pelos cabelos, forçando-me a encará-lo. — Eu
sou a lei, camarada... Sou a justiça, a verdade... Entendeu? — perguntou
soltando-me. — Eu venço, Nicolas... Sempre... — Fechou a mão e enfiou
um soco em meu nariz, fazendo-me apertar os olhos de dor e sentir o gosto
de sangue tomar minha boca.
Engoli em seco o ódio e a vontade de revidar; mesmo que o
pegasse, acabaria morto.
— Vou explicar o que vai acontecer aqui... Você, Nicolas...
resolveu trair o cartel... Matou o seu primo e os homens de confiança dele...
Sabe como são as coisas quando uma mulher entra no meio delas, não é
mesmo? Ainda mais uma policial, garoto... — Negou com a cabeça fazendo
graça. — Seu pai não lhe ensinou nada?
Cerrei o maxilar com raiva.
— O cão de guarda aqui tentou avisar ao Manolo, mas você
também o pegou... Onde já se viu, caçando sua própria cria pelas ruas de
Cusco! — Riu mais. — Ah, e não se preocupe... Graças a Teresa, tenho
como provar tudo que estou dizendo... Claro que será necessária uma
adaptação das falas, mas, com cinco dias de áudio e um bom produtor,
consigo arranjar as coisas...
— Sua puta desgraçada... Você colocou uma escuta no meu
escritório! — xinguei. — Foi assim que o Nakai soube do carregamento! —
constatei. — E da Verônica...
— E foi assim que consegui a senha do seu elevador... E mexi nos
livros-caixas, é claro! — Aproximou-se de mim e estreitou os olhos. — Eu
queria você, Nico... Não só o seu pau, porra!
Então era esse o plano... Se o cartel desconfiasse da minha lealdade
e, sem Guille e Nacho para desmentir, Nakai teria o apoio de todos...
— Não se preocupe, não pretendo matá-lo... — Balançou as mãos
no ar fazendo graça. — Vamos deixar que os homens do Manolo resolvam
isso... Eu só preciso ajeitar tudo, bem amarrado e sem pontas, Nicolas, e
amanhã... serei o dono do seu império!
Enquanto ele ia falando, Nacho e eu nos olhamos. Trabalhávamos
juntos havia tanto tempo que não era difícil compreender o que o outro
pensava. Nacho moveu levemente a sobrancelha, em direção a uma velha
pia batismal encostada no canto perto de onde ele estava, e eu entendi no
mesmo instante o que pretendia.
Quando Nakai se aproximou novamente, Nacho usou a força que
tinha para chutar a pia em cima do japonês, derrubando-o no chão, longe da
arma. Eu tentei chutar a pistola para Verônica, mas o desgraçado do japonês
tinha outra arma. Mirou em Nacho e acertou a cabeça, fazendo-o cair
imóvel. Virou-se de lado, rápido, apontando para Verônica e tudo que eu
consegui fazer foi me lançar na frente.
— Não! — gritei, sentindo o tranco do tiro em meu peito.
Verônica
Comecei a voltar a mim quando senti a cabeça latejar.
Nico! A última lembrança que tinha era dele se atirando sobre mim
e absorvendo o tiro.
Senti o coração se apertar, a garganta se fechar. Contraí o rosto de
dor, todo o meu rosto latejava e eu não conseguia montar a cena completa
em minha cabeça.
Não, Nico, não! Você não pode ter morrido!
Tentei abrir os olhos, mas o lado esquerdo do meu rosto doía tanto
e estava tão inchado que só consegui abrir um dos olhos. Estava em uma
posição desconfortável, caída de lado, com o rosto no chão frio e úmido de
metal. Mãos e tornozelos amarrados.
Pelo pouco de visão que tinha, dois homens conversavam baixo.
Eu não os ouvia com clareza, mas tinha certeza de que não era em espanhol.
A sombra mais alta bateu no que parecia ser uma mesa e o som dos
objetos batendo contra a superfície me fez ter um espasmo de susto que, por
sorte, nenhum dos dois percebeu.
Eu não podia ver quem era, mas a silhueta era alta, esguia e de
movimentos elegantes. Alisou os cabelos para trás, descendo as mãos pelo
rosto, como se desaprovasse algo. Gesticulou mais um pouco e o homem
mais baixo fez uma reverência curvando o corpo, como se precisasse se
desculpar.
Assim que os dois saíram, forcei meu olho machucado a se abrir ao
menos um pouco. Queria entender onde estava, sentia o chão se mover
desconfortavelmente. Um cheiro estranho de metal e amônia. O cômodo era
de tamanho mediano e estava praticamente vazio, a não ser pela mesa e
algumas caixas empilhadas. Estava escuro, muito escuro, sem nenhuma
entrada de luz.
Que merda, Verônica, você foi pega e não tem nem para quem
pedir socorro!
Tentei me levantar, forçando o corpo de lado, mas estava tão
dolorida que não consegui. Sentia frio, o corpo tremendo e gosto de sangue
velho na boca. Minha roupa estava molhada e, pelo cheiro de amônia, tinha
certeza de que era urina.
Eu não fazia ideia de quanto tempo havia passado, nem se era dia
ou noite. Tudo que sabia era que tinha apanhado, bastante, a julgar pela dor
no osso da face e nas costelas.
De repente, a porta se abriu novamente, atrás de mim e tão rápido
que não pude entender onde estava.
Mãos fortes me sustentaram para cima, colocando-me em pé.
— Vou soltá-la, mas nem pense em fazer alguma gracinha,
vagabunda... — falou em um espanhol arrastado, quase incompreensível. O
sotaque oriental claro em sua dicção.
Esfreguei meus pulsos doloridos, assim que o fio que me prendia
foi cortado. O homem saiu de trás de mim e parou perto da mesa. Era
oriental e parecia jovem.
— Sua sorte é que o saiko não gosta de ver as putas sofrendo... —
Curvou a boca em um sorriso sarcástico. — Se fosse pelo chefe... — Parou
a frase no meio. — Aqui... Tire as roupas sujas e vista essas. Pode lavar o
rosto na bacia.
Obedeci, livrando-me da roupa molhada. Sentia tanto frio que teria
concordado com qualquer coisa que me deixasse um pouco mais quente.
Coloquei uma calça de elástico e um blusão de moletom, depois
enfiei a mão em concha na bacia, sentindo o cheiro antes de colocar na
boca.
Bebi como se estivesse no deserto havia vários dias e, quando
terminei, lavei o sangue seco do rosto, sentindo o corte profundo no
supercílio e na maçã do rosto. Aproveitei que estava com a cabeça baixa e
analisei os objetos sobre a mesa, para saber se algum deles poderia servir de
arma caso eu precisasse. Rolos de fita, caixas desmontadas, uma
etiquetadora, além de uma tesoura.
Senti meus cabelos sendo puxados para trás e o cano frio da arma
em minha têmpora.
— Nem pensar, boneca! — Puxou com mais força, fazendo-me
reprimir o gemido de dor, e guardou o objeto no bolso. — O chefe já avisou
que você é bem espertinha... — Segurou meu pulso e virou minha mão para
trás, a boca em meu pescoço, fazendo meu estômago se revirar. — Eu gosto
das espertinhas, sabia? Vou adorar foder você depois que o chefe cansar...
Soltou com força e eu me desequilibrei, caindo sentada, apertando
os olhos para aplacar a dor nas costelas. Assim que os abri, vi a barra de
ferro caída no chão, perto da parede. Desviei o mais rápido que pude, para
que ele não percebesse o que eu tinha descoberto.
— Agora comporte-se como uma boa putinha, que eu lhe trago
algo para comer, ok?
Não respondi, apenas permiti que me sentasse e amarrasse
novamente meus tornozelos. Fiquei parada, cabeça baixa, sabia que irritá-lo
não ia tornar minha vida mais fácil e eu precisava pensar em um jeito de
sair, já que... Engoli em seco, sentindo o coração doer.
Você não pode, Nico! Não pode ter morrido assim... Não é justo!
Respirei fundo. Justiça, Verônica, quando foi que a justiça fez algo por
você?
Quando a porta se fechou, esperei alguns minutos para ter certeza
de que ele estava longe e depois fui empurrando meu corpo de lado,
escorregando pelo piso de metal, até que cheguei à barra. Segurei com força
e fiz o caminho de volta, rezando para ser rápida o suficiente para estar de
volta ao mesmo lugar, antes que a porta se abrisse.
Deixei a barra atrás de mim, escondida. Não seria fácil bater em
alguém com as mãos amarradas, mas, se aquele demônio japonês dos
infernos tentasse tocar em mim, íamos morrer os dois.
Que droga, Nico, você tinha que pular na frente? Achou o quê?
Que era o Superman?
O pensamento se formou no mesmo instante.
Não, Verônica, ele sabia bem o que ia acontecer, se jogou para te
salvar... — Respirei fundo. — Me salvar? Porra, Nico... Vai mesmo me
deixar uma dívida que eu nem posso pagar?
Eu não conseguia chorar. Nunca fui boa em extravasar o que
sentia, tinha aprendido a engolir o choro e levantar a cabeça na segunda vez
que precisei de ajuda e não tive ninguém com quem contar, mas não sentia
menos só porque guardava tudo dentro de mim. Para ser sincera, acho que
sofria mais.
Cenas que eu queria não ter vivido iam passando em minha cabeça.
Karina, Nico, Guille, Nacho. Aquele Yakuza desgraçado tinha matado todos
em volta de mim e tudo que eu podia fazer era esperar até que minha hora
chegasse também.
Será que Fábio ouviu meu recado? Era mesmo confiável ou eu
tinha dado um belo tiro no pé contando a ele onde estava?
Tudo que eu conseguia pensar era que, no próximo noticiário, seria
minha foto do passaporte, comentando sobre um novo acidente em Aguas
Calientes.
Nicolas
O bipe sequencial foi a primeira coisa que ouvi.
Minha consciência foi voltando devagar, enquanto eu tentava
respirar, sentindo o peito doer.
Soube que meu braço estava preso, assim que tentei movê-lo.
— Eu ficaria quieto, se fosse você...
Abri os olhos devagar, vendo-os ganhar foco. A luz clara do sol
não me deixava saber de quem era a silhueta de costas, em frente à janela.
— A bala passou bem perto dessa vez, Nicolas...
O homem virou-se de frente para mim. Terno preto bem-cortado,
traços orientais suaves e olhos esverdeados.
Estreitei os meus, não podia crer que era verdade, mas então ele
esticou os braços, esfregando uma mão na outra e deixando a pulseira de
prata que eu conhecia bem aparecer.
— Shin Nakai... — repeti mais para mim mesmo do que para ele.
— Não posso afirmar que seja um prazer... — Ajeitou a franja lisa
e comprida com as mãos. — Preferia estar em minha casa, cuidando da
minha vida, como você gentilmente me pediu... — Exibiu uma expressão
sarcástica. — No entanto, aqui estou... — Abriu as mãos mostrando as
palmas.
Shin e eu não nos víamos desde a infância, quando toda a merda
entre nossa família se consumou. Esbarramo-nos duas vezes e depois disso,
apenas uma ou outra ligação, sempre para falar de Yuki, mas eu nunca o
confundiria, os olhos de Malena estavam lá, eternizados em seu rosto.
— Onde estou? — perguntei.
Não conseguia ver a rua lá fora, mas sabia que era um hospital.
— Seguro... Por enquanto...
Dava passos em volta de mim, lentos e controlados.
— O que você pretende? — perguntei.
Queria saber de Verônica e Guille, se ainda estavam vivos e o que
havia acontecido com o corpo de Nacho, mas não ia demonstrar interesse e
aumentar sua munição.
Shin coçou a barba, mordendo o lábio inferior e encarando o teto
de gesso. Tinha alguns anos a menos que eu, mas era tão ou mais perigoso
que o pai.
— Ainda não sei, peruano... Estou ponderando e analisando
minhas possibilidades... Não se preocupe... Vou garantir sua vida, ao menos
até ter certeza de qual o melhor caminho para a organização...
Cerrei as mãos em punho, apertando com força. Maldito Yakuza
arrogante.
— Se eu fosse você, guardaria um pouco dessa raiva para usar na
hora certa... Sabe que o odeio tanto quanto você a mim... — Esboçou um
sorriso, que logo sumiu. — Só sou mais controlado.
O mestiço continuou caminhando ao meu redor, como um felino à
espreita.
— Vou lhe dar uma chance, peruano... Se me convencer de que
pode ser útil, eu lhe consigo uma fuga e permito que leve sua garota...
— Onde ela está? — Tentei me mover, mas acabei caindo de volta
na cama.
— Segura também... Não tão confortável, mas... — Balançou a
cabeça e estreitou os olhos. — Viva...
— Seu desgraçado! Se a machucar... — Contraí o maxilar.
— Anda, Huamán... Diz o que eu quero ouvir... — ordenou. —
Não quero uma porra de cartel para cuidar e menos ainda o desgraçado do
Matsuya se metendo nos meus negócios... — Torceu a boca em uma careta
de desgosto.
Baixei o olhar, encarando meu peito nu e o quadrado branco sobre
a asa do condor. Eu sabia que tinha sido atingido, lembrava-me da dor e, a
julgar pelo local do curativo, tinha passado realmente perto.
Pensei por alguns segundos. Estava machucado, sem saber quem
estava vivo ou morto e preso numa cama, ao lado de uma porra de um
Yakuza, não tinha muitas chances.
Se o demônio era meu único parceiro, tinha que dançar conforme
a música.
Respirei fundo, antes de começar.
— Seu pai e o Matsuya armaram para me fazer parecer traidor
diante do cartel... — comecei. — Não tenho como provar o contrário, ainda
mais com Guille e Nacho... — Parei a frase no meio, não conseguia
continuar.
— Seu primo está vivo... Só não sei onde, ainda..., mas estou
resolvendo esse detalhe...
— E Nacho?
— O cão de guarda tem uma cabeça bem dura... — brincou, mas
não era uma piada, então nenhum de nós dois riu. — Está vivo por
enquanto..., mas ainda é incerto... Meu pai andou espalhando por aí que foi
você quem atirou... — Encarou-me com a sobrancelha erguida.
— Mas você obviamente sabe a verdade...
— Derrubar os peões e deixar o rei desprotegido... Uma velha
regra... Pena você não a conhecer... — debochou, mas eu ignorei.
— Preciso que me ajude a provar ao Manolo que eu não traí o
cartel... Sem o apoio dele, nenhum de nós vai conseguir impedir a ascensão
do seu pai.
— Manolo Gomez... — repetiu o nome, batendo o indicador sobre
os lábios, como o pai dele fazia.
Manolo era meu maior fornecedor. O homem que transformava a
coca em produto de exportação, para que eu pudesse distribuir. Tínhamos
um bom acordo de trabalho e eu sabia que ele me preferia no negócio a um
filho da puta japonês, mas o Nakai era bom em maquiar as coisas.
— Preciso de um nome... — disse de repente. — Um em quem o
boliviano confie... Não sei se seu primo estará em condições de negociar...
Respirei fundo. Queria crer que Guille estava vivo, mas Shin tinha
razão; se não estivesse, eu tinha que pensar em outra pessoa.
Joguei a cabeça para trás, não queria confiar, mas era a única
maneira.
— Você! — disse de repente.
— Eu? Como assim, eu? — Ergueu a sobrancelha sem entender. —
Sei que tenho minha parcela de sangue latino, mas não acho que consiga me
passar por peruano, Huamán! Meu espanhol não é tão bom assim... —
concluiu sarcástico.
— Há um mapa... Em minha fazenda... — expliquei. — Está no
caderno do meu avô e mostra a localização exata do meu dinheiro... —
Encarei-o por um segundo. — Estou confiando em você...
O mestiço estreitou os olhos, fixando-os em mim por alguns
segundos antes de responder.
— Se espera que eu traia meu pai e minha gente, companheiro, é o
mínimo que pode fazer...
Por um segundo, tudo que havia acontecido mais de vinte anos
atrás voltou e eu sabia que não era só para mim. Eu ainda podia sentir o
cheiro pungente daquele beco, o som das sirenes de polícia. Tinha gravado
tudo na memória como um filme de terror, um que eu não podia esquecer.
Naquela maldita noite fria, eu havia perdido meu pai, e ele, a mãe.
Estávamos em lados opostos de uma guerra em que desejávamos o mesmo
fim e, para isso, teríamos que deixar as diferenças de lado.
Shin tinha razão, era bem mais controlado do que eu.
— Dê-me um papel... Vou anotar o endereço e o lugar em que você
deve procurar.
Aquiesceu, tirando a chave das algemas do bolso e abrindo-as.
Estava anotando o local, quando ele levou a mão ao bolso do
paletó e tirou o celular.
Atendeu em japonês, mas, pelo tom, eu pude ver que algo não
estava certo.
— O que houve? — perguntei preocupado.
— Termine de anotar, peruano... Não somos parceiros, lembra?
Entreguei o papel a ele, que o enfiou no bolso e prendeu minha
algema novamente.
— Se eu voltar, é porque sua estratégia deu certo! — avisou já
quase na porta.
— Nakai! — chamei.
— Diga a ele que é filho da Malena... Manolo gostava muito da
sua mãe...
Verônica
Não sei por quanto tempo dormi, mas acordei com o feixe de luz
da porta invadindo o escuro do cômodo em que eu estava.
Demorei alguns segundos para focar o rosto que havia entrado,
mas aproveitei a distância para segurar a barra de ferro, teria só uma
oportunidade, tinha que conseguir.
Conforme a forma esguia ia se aproximando, eu fui me
preparando. Tantos anos de treinamento iam ter que servir de alguma coisa.
Era o mesmo homem que havia trazido as roupas e carregava um
saco de fast food na mão.
— Aqui... — Abriu e jogou o saco em minha frente. — Pode
comer como a cadela que você é... — Riu.
Respirei fundo, segurando a ansiedade e a raiva, usando minha
melhor cara de mocinha desprotegida.
Ajoelhei no chão e virei as costas. Cabeça baixa, bem submissa,
como sabia que ele queria que eu fosse. Conhecia aquele tipo muito bem.
— Por favor... Você poderia... — Levantei um pouco as mãos,
implorando para que ele me soltasse.
Funcionou e, no momento em que senti minhas mãos livres,
agarrei a barra e o prendi, forçando o metal contra seu pescoço, enforcando-
o. Eu era pequena, mas tinha aprendido a usar meu corpo em meu favor,
então ele não conseguiu se soltar, nem gritar, até que desmaiou.
Arranquei a tesoura do seu bolso e cortei a fita dos meus
tornozelos, liberando minhas pernas. Peguei a automática, confirmando que
o pente estava cheio, e caminhei para fora, devagar. Empurrei a porta com
cuidado, estreitando os olhos por causa da claridade.
Ainda não tinha entendido onde estava, quando um homem entrou
em meu campo de visão. Ele estalou os olhos e apontou, mas não teve
tempo de gritar. Caiu alguns metros a minha frente, o buraco em sua testa
vertendo sangue.
Parecia algum tipo de depósito, com passagens apertadas entre
contêineres, mas só percebi de fato onde estava quando o apito de um navio
soou.
Um porto! Estou na porra de um porto!
Cusco não tinha saída para o mar e como eu não sabia por quanto
tempo tinha apagado, podia ser qualquer lugar, em qualquer parte do
mundo.
— Ali! — alguém gritou em espanhol.
Mirei na cabeça que vi, mas não tinha certeza de ter acertado o tiro,
então corri.
Não sabia para onde ir, porque todos os contêineres pareciam
iguais e eu me sentia andando em círculos, mas me recusava a desistir.
Tinha mais medo de continuar viva ali do que de morrer tentando fugir.
Alguém gritou algo em japonês e eu ouvi os passos se
aproximando. Virei a esquina, escondendo-me atrás de outro contêiner, e
atirei assim que o homem apareceu, derrubando-o no chão.
Desviei-me da mira do companheiro dele e atirei mais algumas
vezes, até que vi o gradil.
Um segundo para pensar, Verônica... Se fugir, você pode morrer, se
ficar, vai morrer com certeza.
Subi no gradil e pulei. Sempre fui uma boa nadadora, mas pular de
uma altura como aquela era bem diferente de pular em uma piscina
aquecida na academia. Senti o corpo todo doer, assim que afundei nas águas
geladas do mar.
Nadei para longe, ainda submersa. Sabia que, se o navio estivesse
em movimento, poderia acabar puxada pela força do motor. Levantei-me
buscando um pouco de ar e logo voltei a mergulhar para nadar, sabia que
eles iriam atirar, tinha que me manter longe das vistas.
Quando meu fôlego acabou, voltei à superfície tentando pensar em
uma estratégia, não poderia nadar para sempre nem tinha como pedir
socorro. Estava tremendo, meu corpo todo dolorido, os movimentos ficando
mais lentos. Sabia que estava entrando em hipotermia e que não tinha o que
fazer.
Concentrei todas as forças que ainda tinha para pelo menos
conseguir vencer o comprimento do navio e ver se do outro lado havia terra.
Estava quase chegando à proa, quando perdi os sentidos por um
segundo. Sabia que estava no limite, mas pelo menos ia desmaiar antes de
morrer.
***
Descobri que não estava morta, quando senti meus pulmões
doerem.
Eu queria respirar, sentia a pressão no peito feita por alguém que
tentava me salvar, mas não conseguia voltar.
— Vamos! — alguém falou em espanhol, pouco antes de soprar ar
direto em minha boca.
Tossi, sentindo os pulmões queimarem e aquela sensação de tremor
intenso tomar conta de mim.
Continuei tossindo e vomitando água salgada. Minha garganta
parecia feita de fogo e a barriga doía pelo reflexo involuntário.
Alguém me virou de lado, para que eu não me engasgasse, e a
única parte quente do meu corpo era o ponto nas costas em que sua mão
tocava.
Quando finalmente parei de vomitar, tentei entender onde estava.
Novamente, havia sido presa no que agora eu sabia que era um contêiner.
— Consegue me ouvir? — o homem perguntou.
Era jovem, com leves traços orientais, mas tinha os olhos claros,
em um tom que eu não conseguia distinguir na pouca luz do lugar. Só sabia
que eram claros porque as íris pareciam translúcidas quando ele se
aproximava do feixe de luz do sol no teto.
Aquiesci. Não tinha vontade de responder, nem sabia se ser salva
tinha sido, de fato, uma sorte.
— Então ouça com atenção... — Aproximou o rosto do meu. —
Nicolas está vivo... — disse bem baixinho, quase num sussurro. — Se
quiser vê-lo de novo, precisa confiar em mim...
— E por que eu deveria? Você é um deles! — praguejei desviando
o rosto.
As mãos do homem seguraram meu maxilar, forçando-me a
encará-lo novamente.
— Porque, se eu quisesse matá-la, não teria me jogado na porra do
pacífico para salvá-la, senhorita.
O tom era polido e coloquial, um espanhol quase sem sotaque
oriental, forte e grave, como uma ordem.
Afastou-se e alisou os cabelos para trás, respingando água em
mim. O terno estava ensopado, e os pés, descalços.
Deu alguns passos e pegou uma sacola sobre a mesa de metal,
deixando no colchão ao meu lado.
— Vista-se, ou vai acabar morrendo de hipotermia e eu terei
estragado meu terno por nada... Quando terminar, vamos ter uma conversa...
Virou-se de costas, dando-me privacidade.
Eu estava tão cansada e machucada que mal consegui tirar as
roupas molhadas e vestir as secas, quanto mais tentar escapar novamente.
— Pronto — avisei.
Ele tirou o blazer e colocou sobre a mesa. Soltou o que pareciam
ser abotoaduras e um anel.
Quando se virou de volta para mim, o rosto era duro, sem
expressão nem qualquer sombra de sentimento.
Eu obviamente não confiava nele, mas, se Nico estava vivo, então
pelo menos eu tinha uma chance de ser salva.
— Não quero o cartel... — começou. — E se meu pai o tomar, terei
que assumir um problema que não desejo. Entende? — perguntou e eu
aquiesci. — Vou explicar como as coisas irão funcionar e você vai fazer
exatamente o que eu disser...
Aquiesci novamente.
— Meu pai acha que Nicolas morreu... Está tão tomado pelo desejo
de vingar-se, que ficou descuidado... E vamos nos aproveitar disso para
restaurar o poder dele...
Eu conhecia um pouco de Yakuza e sabia que a maior marca da
organização era a lealdade dos membros. Não conseguia entender a
motivação dele para trair o próprio pai.
— Vai mesmo trair sua organização? — questionei.
— Jamais... — Focou os olhos nos meus. — Meu pai deixou de ser
a organização assim que colocou seus próprios interesses acima do
oyabun...
Engoli em seco. O autocontrole dele me amedrontava.
— Há quanto tempo estou aqui? — comecei, queria tentar pegá-lo
no pulo, conhecia algumas técnicas boas.
— Alguns dias...
— Quem é você?
— Sua chance de escapar com vida...
— Onde Nico está?
— Seguro...
— E eu, onde estou?
— Em um navio... — Ergueu a sobrancelha, como se deixasse
claro que não era eu quem mandava ali.
Deu mais alguns passos para perto, dobrando as mangas da camisa
até os antebraços.
— Imagino que saiba que terei que bater em você... — Estralou os
dedos. Tinha tomado o controle novamente. — Dois homens mortos, um
ferido e uma grande confusão...
Concordei com a cabeça, mas nem tive tempo de pensar, o soco
bateu forte contra meu nariz, fazendo o sangue escorrer pela minha boca.
Apertei os olhos de dor, tentando recuperar os sentidos, mas ele tinha razão.
Se não me desse um corretivo, levantaríamos suspeita e as chances, minhas
e de Nico, acabariam.
O Yakuza bateu mais algumas vezes em meu rosto, bem mais leve
do que eu tinha certeza de que ele poderia, mas, ainda assim, doeu como a
porra do inferno. Eu já estava zonza, quando ele pegou uma garrafinha de
água e abriu, entregando a mim.
Enchi a boca de água e depois cuspi, livrando-me do sangue.
— Limpe com isso... — Jogou a blusa molhada em minhas mãos.
Deu alguns passos, massageando os nós dos dedos.
— Acredite, senhorita, isso não me dá nenhum prazer... —
confessou.
— Quando vou sair daqui? — perguntei, limpando o canto da
boca.
— Logo, se o peruano estiver certo e a porra do fornecedor dele
acreditar no plano...
Nicolas
A noite caiu e o mestiço desgraçado não voltou.
Talvez estivesse morto, Manolo não lidava muito bem com
estrangeiros e ainda tinha a possibilidade de ter sido pego pelo porra do pai
dele.
A noite passou e eu não preguei os olhos. Estava preso, sem saber
se ainda tinha aliados e totalmente à mercê de alguém que, ainda que não
fosse meu inimigo, estava longe de ser amigo também.
Quando o dia amanheceu, a porta se abriu e eu me virei ansioso,
esperando por Shin, mas não foi o rosto dele que vi.
O japonês entrou e encostou-se na parede atrás de mim, arma em
punho, pronto para atirar.
— Onde está o seu chefe? — perguntei em japonês. Tinha
aprendido uma coisa ou outra, desde que a Yakuza se tornou uma pedra em
meu sapato.
— Resolvendo o seu problema... — disse com aquele ar de
deboche que todos eles tinham.
Estreitei os olhos, mas não tive tempo de revidar, uma garota latina
entrou. Usava um conjunto hospitalar, mas a placa de identificação havia
sido retirada da roupa.
— Vim fazer o curativo, senhor...
Falava de cabeça baixa, olhos assustados desviando dos meus o
tempo todo. Eu tinha certeza de que ela sabia quem eu era, meu rosto estava
estampado em várias revistas e jornais, além da internet.
A moça baixou o lençol até minha cintura e soltou o laço da
camisola transpassada que eu usava.
Eu queria perguntar a ela onde estava, mas não pretendia colocá-la
em um risco desnecessário, porque morta ela certamente não poderia me
ajudar.
O quadrado de gaze e esparadrapo foi retirado e vi os pontos
pequenos, um pouco acima do meu mamilo esquerdo. Parecia bem fechado
e sem indícios de infecção.
— Então? — perguntei para puxar assunto, mas principalmente
porque queria saber qual era minha condição, caso precisasse fugir e me
esconder.
— O senhor teve muita sorte, o tiro não atingiu nenhuma parte
vital e a bala saiu... — explicou enquanto limpava o ferimento.
Quando terminou, gesticulou para o homem atrás de mim.
— Preciso que o solte... O outro curativo está nas costas... —
avisou.
O homem pensou por alguns segundos, mas então soltou uma das
algemas e eu me virei de lado.
Só percebi o quanto doía, quando me mexi.
A garota deu a volta e retirou o curativo do ferimento de saída,
começando a limpeza. Esperei até que finalizasse e então tentei a única
chance que tinha.
— Estou com sede... — avisei.
— Oh, sim... Vou pegar água...
Virou as costas e caminhou até a mesinha do outro lado do quarto.
Voltou e se aproximou, para me servir na boca, mas eu coloquei minha mão
sobre a sua, escrevendo com o polegar em sua pele suavemente: Donde
estoy.
Encarei-a enquanto bebia, esperando que me respondesse. Ela
repetiu meu gesto, escrevendo em meu peito: Callao.
Agradeci com um aceno de cabeça e deitei-me de volta, esperando
que o homem prendesse a algema.
Callao... — pensei assim que fiquei sozinho. Ao menos ainda estou
no Peru.
Esperei que o mestiço voltasse até depois da porcaria de sopa que
me serviram. Depois que a noite caiu novamente, desisti. Ele não ia voltar e
eu tinha de dar um jeito de sair daquela merda de lugar em que estava.
Comecei a mover o punho devagar, vendo até onde a grade da
cama aguentaria, caso eu desse um puxão. Depois de algum tempo, comecei
a sentir que algum parafuso estava desencaixando. Continuei devagar, não
queria fazer barulho, mas então a porta se abriu e o mestiço passou por ela.
Sacou a pistola tão rápido que por um segundo pensei que fosse o fim.
O tiro bateu no metal produzindo um tilintar alto e, de repente,
meu braço se soltou.
Shin girou a pistola no dedo e guardou no coldre, por dentro da
jaqueta de couro.
— Se queria coçar a porra do saco, peruano... Podia ter chamado o
guarda e pedido que soltasse.
Acendeu um cigarro e jogou o maço em cima da minha barriga.
— Como foi com o Manolo? — perguntei preocupado.
O Yakuza deu o primeiro trago, balançando como se ponderasse.
— Mais ou menos... — Soltou a fumaça para cima. — Meu pai o
matou...
— O Manolo? Como assim, porra? — Sentei-me na cama tão
rápido que só depois senti a dor do movimento.
Shin deu mais um trago no cigarro, calmamente.
— Parece que o seu amigo era mais fiel do que o velho Nakai
esperava, então... os dois tiveram um pequeno impasse...
— Desgraçado, filho da puta! — xinguei. — Agora a merda toda
vai estourar...
— Provavelmente... É por isso que estou aqui... Vou dizer o que
vamos fazer e espero que você seja tão durão como dizem, porque tem que
ser essa noite... — explicou, encarando-me por cima dos olhos.
— Diga...
— Tenho uma ideia de onde seu primo está, mas vou precisar de
cobertura e não posso envolver meus homens... Se algo der errado,
Huamán..., eu volto para Tóquio e nem quero saber... Entendeu? Minha
motivação aqui é bem pequena... Digamos que só estou aqui para fazer a
limpeza...
Aquiesci.
— Ótimo! — avisou pegando uma sacola no chão, perto da
entrada. — Vista isso, eu o espero do lado de fora. — Jogou a sacola e eu a
agarrei.
Levantei-me e peguei a roupa. Jeans preto, camiseta e jaqueta da
mesma cor. Botas de cano alto e uma máscara no estilo ninja, daquelas que
deixam apenas os olhos de fora.
Assim que saí, Shin estendeu uma pistola para mim.
— Espero não me arrepender...
— Sabe que não vai...
Enfiei a arma na cintura e fechei a jaqueta, baixando também a
máscara. O mestiço fez a mesma coisa e descemos pela escada de incêndio,
do lado de fora do que, eu só descobri depois, era um convento de freiras.
Pisamos na rua e caminhamos até o beco próximo, onde dois
homens de confiança do Manolo esperavam encostados em uma van preta.
Cumprimentei-os com um aceno de cabeça e tomamos nossos
lugares. Eu atrás, com um dos homens, e Shin na direção, com o outro ao
seu lado. Callao não era muito familiar para mim, tinha poucos negócios
por lá e a maioria deles era chefiado por Guille, então só percebi que
estávamos indo em direção ao porto quando comecei a ver as placas de
sinalização.
O mestiço parou no posto de identificação e não disse nada, apenas
tirou a luva preta, exibindo a tatuagem de ideograma japonês no dorso da
mão. Imediatamente, os portões se abriram e seguimos em frente.
Estacionamos no meio dos armazéns, bem afastados de qualquer
um que estivesse de passagem.
— Vocês vão pela esquerda... — avisou aos dois homens com um
aceno de cabeça. — O peruano vem comigo por aqui...
Segurei a arma e caminhei ao lado de Shin, esgueirando-me pelos
contêineres até que ele parou.
— Eu vou subir... — Indicou a pequena abertura no teto do
armazém provisório de metal. — Você espera meu sinal e arromba a porta...
Aquiesci, e os homens do Manolo também tomaram seus lugares.
Aproximei-me da porta, os olhos esperando atentos pelo sinal, até que ouvi
o primeiro som de tiro, abafado pelo silenciador. Shin não teve tempo de
atirar de novo, o teto foi alvejado por uma rajada de balas e tudo que ele
conseguiu foi rodar, caindo para trás.
Soquei o pé na porta com toda a força que tinha, atirando direto na
cabeça do homem com a metralhadora. Um dos homens do Manolo entrou
comigo, atirando também. Quando os tiros cessaram, vi Guille deitado no
chão, as mãos amarradas e os tornozelos também. Tinha se arrastado e se
abrigado atrás de um monte de caixas de madeira.
— Desculpe, hermanito, acabei me atrasando um pouco! —
brinquei assim que ele se mexeu e eu tive certeza de que estava vivo.
Verônica
Acordei com a rajada de tiros ao longe.
Engoli em seco, coração acelerado e aquela sensação de tremor que
a gente tem quando está sob estresse muito grande.
Lá fora, comandos eram dados em japonês, sem que eu pudesse
entender o que estava acontecendo. Minhas mãos ainda estavam amarradas,
mas o filho do Nakai havia deixado meus tornozelos livres, então sentei-me
no colchão.
Nico! Será que é o Nico? Ou a polícia? Talvez Fábio... Não,
Verônica, o Fábio não ia conseguir encontrar você rápido assim, ainda
mais dentro de sei lá que navio no meio do nada.
O corre-corre lá fora só aumentava, luzes de lanterna clareando as
frestas, e frases em japonês, até que os tiros foram ficando mais próximos.
O som de um helicóptero se aproximou e eu engoli em seco, até que de
repente alguém arrebentou a porta.
— Polícia! — gritou em espanhol.
Virei de costas, mostrando as mãos amarradas e sentindo uma onda
de alívio tomar conta de mim. Estava salva.
— Vou soltá-la, senhorita... Mantenha a calma... — pediu, mas eu
não fui capaz de obedecer.
Os tiros ainda ecoavam lá fora e eu não tinha a menor ideia do que
estava acontecendo.
— Venha, vamos levá-la em segurança.
Passou o braço em torno de mim e me escoltou para longe da
confusão. Eu ainda olhei para trás algumas vezes, mas não consegui ver
nada.
Fui colocada sentada na porta de uma ambulância e uma manta foi
jogada sobre meus ombros, enquanto um homem com macacão de
socorrista me examinava.
É isso, Verônica, acabou... Ao menos você vai conseguir voltar
para casa..., mas e o Nicolas? Será que ele fez a denúncia? Não! Nico não
iria envolver a polícia... O filho do Nakai também não, então...
Aquela sensação de que algo não estava certo continuava comigo,
como se meu sexto sentido tentasse me avisar sobre algo.
Será que o Fábio conseguiu contactar a polícia peruana?
— Senhorita... Vou fazer um acesso... — o homem de macacão
informou. — Para a medicação...
Pegou meu braço e eu não ofereci resistência, continuava com o
pensamento a mil, até que o policial alisou os cabelos para trás, mostrando
uma tatuagem de dragão japonês no dorso da mão.
O estalo me veio tão rápido que puxei a mão e corri, pegando a
arma do policial e o rendendo.
Ele tentou se soltar, mas eu o agarrei mais forte, arma em sua
têmpora.
— Onde ele está? — perguntei. — O desgraçado do seu chefe?
— Não faço ideia do que está falando, senhorita... Sei que está sob
estresse... Eu entendo...
Falava calmamente, mas eu podia sentir, pela tensão no seu
pescoço, que ele estava nervoso.
O enfermeiro mostrou as palmas, olhos estalados para mim, como
se ainda tentasse absorver o que tinha acontecido.
— Verônica, solte a arma... — ouvi em português, vindo de trás de
mim.
Virei-me devagar, levando o policial comigo, e vi Celso. Arma em
punho e colete à prova de balas da polícia, o que significava que era uma
operação oficial.
— Anda, garota... Você já foi resgatada, está com a polícia... Ia
falando e dando passos em frente, direto para mim. — Sou eu, Verônica...
Você me conhece há muitos anos... Trabalhamos juntos... Você até me
ajudou a melhorar o guarda-roupas... Lembra disso? Hum? Das noites de
plantão e Coca-Cola com tacos?
Como diabos Celso estava ali? A Vivi... Não! Fábio não contaria a
ele... Ou contaria?
Continuei me afastando, conforme ele tentava se aproximar.
Precisava ser rápida e decidir que rumo tomaria sem perder o foco do que
fazia.
Não sei em que momento me distraí, porque só senti a cotovelada
no estômago e perdi o ar por alguns segundos. Para a minha sorte, não perdi
a arma e consegui atirar na coxa do policial, fazendo-o cair no chão,
contorcendo-se de dor.
— Perdeu o juízo? — Celso gritou, ainda apontando a arma para
mim. — Atirou em um policial? O que acha que está fazendo, Verônica?
Estávamos lá os dois, um na mira do outro, em uma dança mortal
que sabíamos bem como terminaria.
— Como você chegou aqui? — inquiri com a voz firme, não ia
deixar que ele me intimidasse.
— Como acha que cheguei, hum? — devolveu astuto, apontando
para o crachá em seu pescoço. — Sou um homem da lei! Estou aqui para
salvá-la e capturar o desgraçado do Condor!
Estreitei os olhos. Não tínhamos denúncia alguma contra Nicolas,
apesar da extensa ficha; se a polícia brasileira estivesse envolvida em um
caso internacional, eu saberia. Estava fora havia pouco tempo.
— Sabe o que vai acontecer quando você voltar para o Brasil? —
continuou, interrompendo meus pensamentos. — Corregedoria! —
aumentou o tom de voz. — E você sabe muito bem o que acontece quando
um de nós é pego pela corregedoria! Estresse pós-traumático... — proferiu.
— O que acha? Uns bons meses de licença, tratamento pago pela polícia...
E você vai poder voltar... Estamos do mesmo lado, Verônica... Somos
parceiros...
— Onde está o Fábio, Celso? — questionei.
Não tive resposta. O policial continuou ali, em silêncio, arma
apontada para a minha cabeça.
— Por que ele não está aqui? — segui com os questionamentos,
mesmo que tivesse menos esperança de resposta a cada nova pergunta. —
Como você soube onde eu estava? Eu só contei para o Fábio... — insisti.
— Para com isso, Verônica... — Riu, mas parecia mais irônico do
que amistoso. — Seja esperta, garota... Você sempre foi...
Meus olhos estavam nos dele, mas não era mais o mesmo Celso
que eu conhecia. Eu o encarava e sentia como se a máscara tivesse caído.
— Desde quando você trabalha para a Yakuza? — soltei de uma
vez.
Celso esboçou um sorriso, mas logo o conteve.
— Ficou maluca? — perguntou admirado. — Você me conhece há
anos! Verônica, olha em volta! O que você vê? — questionou, mas não
esperou resposta. — Policiais! É isso, garota! Somos os mocinhos! — A
sombra de um sorriso sarcástico brilhou em seu rosto mais uma vez.
Tudo que eu queria era confiar nele. Sentir-me segura, como havia
me sentido tantas vezes, mas não podia. Havia uma pequena luz de
emergência dentro da minha cabeça, brilhando forte e avisando que as
coisas não eram mais as mesmas.
— Onde acha que vai parar se atirar em mim? — interrompeu
meus pensamentos mais uma vez. — Cadeia, garota! Lá onde estão todas as
vagabundas que você mesma prendeu...
— Acho que não, companheiro! — a voz de Nicolas fez meu
coração se acelerar.
Ele saiu do meio das sombras, rosto coberto por uma máscara
preta, mas eu o reconheceria em qualquer lugar. Era o mesmo timbre, o
mesmo sotaque, o jeito elegante de se mover, mesmo com uma pistola na
mão.
Celso levou um susto, oscilando a arma entre mim e Nicolas, sem
saber em quem mirar.
— Atira nele, Verônica! — gritou. — Anda, atira! Nós não somos
inimigos! — insistiu.
Os olhos nervosos varriam o espaço entre mim e Nicolas, duas
armas apontadas para ele, dando passos atrás.
— Quer saber o que houve com o Fábio? — gritou depois de
alguns segundos. — Pergunta para ele! Esse vagabundo o matou! —
Apontou a arma para Nicolas. — Anda, seu merda! Conta para ela que você
grampeou a linha secreta! Conta! — gritou novamente.
Por um segundo eu me perdi. Nicolas matou o Fábio? Não sabia
mais o que pensar nem como agir, ainda que tivesse certeza de que Celso
não era confiável. As peças em minha cabeça desconexas, girando sem
parar. Nicolas era o bandido, a porra do chefe do cartel, Celso eu conhecia
havia anos... Porra, Verônica!
Voltei o olhar para Nicolas.
Ele tomou uma bala por você, Verônica... Por que ele faria isso?
— Você não entendeu ainda? — Celso continuou. — Ele está
usando você, garota, para descobrir informações... Acha que ele e o Nakai
são inimigos? — Riu. — Não seja ingênua... Como acha que a Karina
acabou nas mãos da Yakuza, hum? — Aproveitou minha dúvida e se
aproximou, mantendo Nicolas em sua mira. — A Karina confiava nele,
Verônica... Veja como terminou... Ele vai fazer o mesmo com você, assim
que não precisar mais...
Engoli em seco pela fração de segundos que tinha. Cenas minhas e
de Nicolas passando como um filme. Não pode ser verdade... Não pode...
Pode?
De repente, a imagem do meu pai se formou em meus
pensamentos. Ninguém arrisca a vida pelo que não acredita, Verônica...
Ninguém arrisca a vida... — repeti em meus pensamentos.
Puxei o cão do revólver.
— Não! — gritei e apertei o gatilho.
Celso caiu para trás. E eu soltei a arma no chão, encarando o rosto
do homem com quem eu tinha convivido, em quem tinha confiado por
tantos anos, e que quase me matara.
No segundo seguinte, os braços de Nicolas me envolveram e eu o
apertei forte contra o peito, sentindo o perfume dele me invadir.
— Você confiou em mim... — sussurrou em meu ouvido.
— Você também... — Segurei seu rosto entre minhas mãos. — Me
deu uma arma e dormiu do meu lado todos esses dias... — Encostei meu
nariz no seu, acariciando suavemente.
Nicolas correu os dedos pelo machucado no osso da minha face e
no canto da boca e eu acabei suspirando.
— Desculpe fazê-la passar por isso...
Beijei sua mão delicadamente e esbocei um sorriso.
— Faz parte do trabalho!
Seus braços me envolveram novamente, beijando o topo da minha
cabeça, e então o som dos tiros e do corre-corre ficou mais alto,
aproximando-se rápido.
— Acho que vamos ter que terminar essa conversa longe daqui,
corazón... — Estendeu a mão.
Entrelacei nossos dedos, os olhos em nossas mãos juntas. Nunca
pensei que me sentiria tão segura nos braços de alguém que um dia julguei
ser meu inimigo.
Nicolas
Mirei na cabeça do policial ainda vivo e atirei. Depois corri com
ela pelo porto, até o local em que o carro ficara estacionado, desviando dos
tiros, pelo meio dos contêineres.
— Cadê o mestiço? — perguntei assim que vi um dos homens do
Manolo.
— No carro, porra, anda, Condor, o garoto está sangrando muito.
Coloquei Verônica primeiro e entrei em seguida.
— Guille! — ela gritou assim que viu meu primo. — Você está
vivo!
Guillermo tirou a correntinha de dentro da camiseta e beijou a
medalha, mostrando a Verônica.
— Graças a La Santa Muerte... — Sorriu.
— Ninguém vai antes da hora... — completamos em uníssono,
Guille, Shin e eu, e acabamos rindo os três.
Um dos homens do Manolo assumiu o volante e deu a partida,
pisando fundo no acelerador, mas, conforme nos aproximávamos, vimos a
barricada da polícia.
— Eu assumo... — Shin cortou o silêncio tenso no carro. — Entrei,
consigo sair...
— Você mal se aguenta em pé, Nakai... — Levantei a sobrancelha
para ele.
— Então vamos rezar para a santa ser poderosa mesmo, peruano...
Paramos o carro e o garoto sentou-se atrás do volante. Diminuiu a
velocidade, conforme ia se aproximando do policial armado no portão. O
rosto ainda coberto pela máscara, olhos baixos, para passar despercebido.
Quando parou esperando a liberação, colocou a mão para fora do carro,
exibindo a tatuagem.
Eu não conhecia muito de escrita oriental, mas aquele kanji eu
conhecia. Era o símbolo da família Nakai e somente o alto escalão da
Nakai-Gumi tinha o direito de usar.
Shin dirigiu alguns metros à frente e, logo que saímos da visão da
polícia, o corpo pendeu para a frente, perdendo os sentidos
momentaneamente.
Desci rápido e ajudei o homem do Manolo a colocá-lo deitado no
chão da van.
— Para onde vamos, japonês? — perguntei.
— O convento... — sussurrou. — Meus homens estão lá, meu pai
não conhece.
Fizemos o caminho de volta até o convento e, assim que paramos
em frente, o portão de correr se abriu.
Guillermo e eu pegamos um de cada lado dos ombros de Shin,
apoiando-o para que conseguisse ficar em pé.
— Suma com o carro e se esconda por alguns dias... Entrarei em
contato assim que a poeira baixar — avisei ao motorista.
Entramos no prédio antigo, com Verônica ao nosso lado, seguindo
pelos corredores até dar de frente com um homem de preto.
— Por aqui! — falou em um espanhol arrastado.
Chegamos ao que parecia ser um ambulatório e colocamos Shin
em cima da maca, sem a jaqueta. A camiseta foi cortada, exibindo as cinco
marcas vermelhas em seu abdômen.
— Porra, mestiço, você está parecendo uma peneira! — brinquei e
ele riu.
Lábios sem cor e cara de dor, mas o olhar estava fixo no meu. Ali,
naquela maca, nem parecia cria do Nakai, fazia-me pensar na garota gentil
que eu havia conhecido muitos anos atrás. O que ela diria se nos visse do
mesmo lado como hoje...
— Olhando para mim desse jeito, peruano... Vou achar que se
apaixonou pelos meus belos olhos verdes... — provocou.
— Obrigado... — soltei de uma vez, não era bom em agradecer.
— Você fica me devendo uma! — Contraiu o rosto de dor, assim
que a enfermeira mexeu em um dos ferimentos.
Quando a dor melhorou, respirou fundo e me encarou novamente.
— Seu cão de guarda está aqui... — falou baixo, quase sem forças.
— Chame uma ambulância e leve-o para um lugar que você confie...
Estamos aqui há alguns dias, é mais seguro sair... Eu volto para o Japão
assim que limpar a sujeira...
Aquiesci e dei alguns passos para longe, mas voltei o rosto para
ele.
— Sabe que se seu pai cruzar o meu caminho... ele não volta para
casa... — avisei.
Shin respirou fundo.
— Essa é uma conta que não vou cobrar de você...
Meneei a cabeça e caminhei para fora do lugar com Verônica e
Guille ao meu lado. Um dos homens de Shin veio conosco, guiando-nos até
onde Nacho estava.
Conforme ia me aproximando dele, um filme passava em minha
cabeça. Nacho, Guille e eu correndo pelo gramado e pulando no rio. As
mangas arrancadas do pé, as vassouradas de Tia Lupe.
Parei ao seu lado, os dedos tocando o curativo na lateral da sua
cabeça. Estava dormindo, sedado provavelmente. Guille ocupou o outro
lado.
— Qual é o estado dele? — perguntei à jovem de conjunto
cirúrgico. — Muito grave?
— Ainda não sabemos, senhor... Ele chegou aqui desacordado, mas
a bala pegou de raspão. Quando o examinamos mais a fundo, encontramos
um edema grande na parte detrás da cabeça; com os recursos que temos,
não conseguimos ter certeza, mas provavelmente foi uma pancada.
Bati a mão em seu ombro. Tinha esperança de que conseguiríamos.
— Vamos sair daqui, companheiro... Os três juntos... E juro que
nunca vou me cansar de lhe pedir perdão...
Levantei e parei junto à janela.
— Preciso de um helicóptero de resgate... — falei ao telefone. —
Isso... Tenho um funcionário ferido, quero uma transferência para uma
clínica particular em Lima... Imediatamente... Vou enviar o endereço, um
momento. — Tapei o telefone e me dirigi à enfermeira. — É possível
pousar no telhado?
— Temos um campo de futebol a duas casas daqui, senhor... Creio
que seja possível lá...
— Sim, Calle Salvador, em Callao... Na altura do duzentos e vinte,
um campo de futebol. Fica a duas quadras do convento em que ele foi
socorrido. Perfeito. Preciso também de um carro confortável... Volto para
Lima, assim que meu funcionário for levado.
Desliguei e guardei de volta no bolso.
— Quanto tempo? — Verônica perguntou.
— Dez minutos...
Estava escorado contra a parede e a puxei para perto. Estava
abatida e machucada, mas ainda mantinha aquele mesmo olhar desafiador e
cheio de si.
— Tem certeza de que não precisa ser atendida também? —
perguntei.
— São só escoriações... Preciso de um bom banho e um prato bem
grande de comida, além de um colchão macio que não esteja fedendo a
urina!
As enfermeiras começaram os procedimentos para a remoção de
Nacho e, pouco tempo depois, dois socorristas entraram empurrando uma
maca.
— Sr. Huamán, sou Alejandro... — um deles cumprimentou,
mostrando o crachá. — Viemos cuidar da transferência.
Acompanhei-os, enquanto colocavam Nacho dentro do helicóptero,
e Guille entrou com ele de acompanhante.
Logo um sedã escuro virou a esquina e, pela placa, eu sabia que era
da companhia que eu havia solicitado.
Verônica e eu seguimos de carro, uma curta viagem de pouco mais
de meia hora e estávamos passando pelos portões discretos de La Madre,
uma clínica particular onde eu sabia que poderíamos nos esconder por
alguns dias, sem o risco de sermos pegos no radar de Nakai.
Descemos e passamos direto pela recepção. Não era a primeira vez
que eu me hospedava ali, então algumas formalidades podiam ser
dispensadas. A recepcionista nos acompanhou pelos corredores, até uma
das suítes.
— Separamos esta para a senhorita... — Sorriu gentilmente,
abrindo a porta para que Verônica pudesse entrar. — Uma enfermeira logo
virá atendê-la e cuidar dos curativos... — explicou. — O senhor ficará no
quarto ao lado, Sr. Huamán...
— Onde foi internado o paciente José Ignacio Sanchez? Ele
chegou de helicóptero...
— Foi acomodado no segundo andar... O Sr. Guillermo está com
ele...
Aproximei-me de Verônica e toquei sua mão com a minha.
— Vou ver como Nacho está e volto logo... Você está segura aqui,
corazón... Descanse um pouco.
— Nico, eu preciso saber do Fábio... Se ele veio com o Celso, pode
estar em apuros, eu preciso...
— Vou ver o que descubro, não se preocupe... — acalmei-a.
Saí direto para o elevador e assim que vi Guillermo na recepção do
segundo andar me aproximei.
— Como ele está? — perguntei.
— Estável, segundo o plantonista... Amanhã o neurologista virá
vê-lo e saberemos melhor o que houve.
Alisei os cabelos para trás, sentindo o gosto amargo dos meus
próprios erros. Tinha colocado todos em risco.
— Para com isso, Nico! — Guille reclamou. — Já te disse que
você não é Deus, primo... Não pode cuidar de tudo o tempo todo...
— Duvidei dele... — confessei.
— E quem não duvidaria? Nunca pensei que aquela puta fosse tão
esperta e traiçoeira...
— Precisamos encontrá-la...
— Serviço feito, hermanito... Está descansando debaixo da terra
já... O que me preocupa é aquele monte de merda do Nakai andando por aí
com aquele porra do Matsuya a tiracolo... Passou da hora de limpar o nosso
quintal já...
— Concordo..., mas primeiro temos que falar do cartel... Manolo
está morto, os outros sozinhos não conseguem e...
Guille bateu em meu ombro, deixando a mão lá.
— Toma um banho, Nico... Come alguma coisa e cuida da sua
mulher... O cartel vai ser o mesmo amanhã e a gente... — respirou fundo —
nunca sabe quanto tempo tem...
Suspirei.
— Tem razão... — Repeti o gesto, tocando seu ombro também. —
Faça o mesmo, Guille... Descanse, mande notícias a sua mãe e peça ao
Franco para descobrir se tem algum Fábio, brasileiro, policial civil, por aí...
Verônica está preocupada com ele.
Meu primo aquiesceu e eu peguei o caminho de volta. Entrei no
elevador e cobri o rosto com as mãos, esfregando os olhos. Ela tinha
confiado em mim, de verdade, contra todas as convicções, mesmo sabendo
tudo a meu respeito. Ela confiou, Nico...
Verônica
Entrei no banheiro e tirei as roupas sujas que usava havia dias. A
cada peça que caía no chão, era como se um pouco de mim se acalmasse.
Parei nua em frente ao grande espelho da bancada e encarei meu
rosto. Tinha alguns hematomas, o canto esquerdo dos lábios inchado e
avermelhado, além do corte pequeno sob o osso da face. Fazia seis anos que
eu era policial, cinco que Celso e eu trabalhávamos juntos. Achei que o
conhecia e, no fim das contas, quase acabei morta pelas mãos dele.
Celso era dez anos mais velho que eu, já estava na polícia quando
o acidente com os meus pais se deu. Eu me lembro de que quando entrei no
departamento, cheia de sede de vingança, ele foi também o primeiro a me
convencer a deixar para lá.
Será que ele já era corrupto naquela época?
Meu pai havia morrido enquanto investigava o alto escalão da
política brasileira. Sempre tentei me convencer de que havia sido apenas
um acaso, mas no fundo a verdade ainda batia em mim como um soco de
pugilista, certeiro e forte.
Entrei embaixo da água morna, sentindo meus músculos tensos
relaxarem devagar. Lavei os cabelos e todo o sangue seco que havia em
meu rosto.
De repente, comecei a sentir minha respiração acelerar, mais, mais,
até que não pude conter o choro. Mãos apoiadas no azulejo frio, corpo
curvado para a frente e olhos fechados. Eu nem sabia se chorava por
Karina, meus pais, ou pelo que havia sofrido. Era um choro forte,
convulsivo, daqueles em que a gente não consegue parar de tremer, como se
o corpo pedisse socorro para desabar o que o estava sufocando.
Quando terminei, sentia-me mais leve, ainda que o vazio estivesse
lá, no fundo do meu peito, cobrando seu espaço.
Agora é hora de ir, Verônica... Não fez o que podia, não vai morrer
por uma vingança... Karina não gostaria disso...
Levantei os olhos enquanto me enrolava na toalha e encarei o
espelho novamente.
— Hora de ir, Verônica... — repeti para o meu reflexo.
Por que pensar nisso dói tanto?
Assim que saí, vi as roupas sobre a cama. Lingerie, uma calça de
moletom fina e uma camiseta de malha com a logomarca da clínica em que
estávamos. Vesti e caminhei até a janela, encarando o jardim iluminado lá
fora. Eu não sabia onde estava, mas confiava em Nicolas e, se ele achava
seguro, então eu estava tranquila.
Confiava em Nicolas... Suspirei. Como nunca pensei que fosse
possível...
— Senhorita? — uma voz gentil chamou à porta. — Sou Lenita...
Vim fazer os curativos...
Virei de frente para encontrar uma jovem vestida com jaleco de
enfermeira. Empurrava um carrinho de metal, daqueles de emergência. Ela
sorriu e indicou a cama.
— Sente-se aqui... Prometo que não vou demorar.
Obedeci, desviando dos seus olhos, sempre que cruzavam com os
meus. Eu não queria falar do que havia acontecido, tive medo de que ela
perguntasse algo, ainda que para puxar assunto, mas ela não fez. Parecia
discreta e gentil, então fui baixando a guarda.
— Espero que consiga dormir, senhorita... — disse separando o
material usado para descartar. — Este aqui é um analgésico, e este, um
calmante leve, apenas para relaxar... Amanhã o médico irá passar para
examiná-la melhor e fará uma receita. Logo a copeira lhe trará uma sopa,
coma... É bom que esteja alimentada para descansar melhor.
Encheu o copo com água, deixando ao lado dos dois comprimidos,
e saiu.
Os remédios começaram a fazer efeito logo depois que comi.
Precisava mesmo de descanso, então me deitei e fechei os olhos. O sono
não demorou a vir, mas no meio do cansaço tudo que conseguia pensar era
que tinha acabado e o quanto isso pesava dentro de mim.
***
Acordei assustada, com aquela sensação ruim de quando a gente
sente que tem alguém olhando, mas assim que abri os olhos meu coração se
acalmou.
Nico estava lá, cabelo molhado penteado para trás, calça de
moletom cinza e camiseta branca, os machucados do rosto com pequenos
curativos, como os meus.
Soltei um suspiro profundo. Aquela sensação de que tudo estava
certo novamente, só porque ele estava ali. Desviávamos o olhar um do
outro, meio sem querer, mas logo voltávamos a nos procurar.
— Por que não me acordou? — perguntei esboçando um sorriso,
não queria que nossas últimas lembranças fossem duras e cheias de pesar.
— Gosto de te ver dormir...
Estendeu a mão e, quando eu coloquei a minha em cima, ficou
brincando com os dedos nos meus. Não dissemos nenhuma palavra, mas os
sentimentos eram tão densos ali que eu quase podia tocá-los.
Nicolas não sorriu um minuto sequer, o rosto pesaroso, preocupado
e ansioso. Eu queria abraçá-lo apertado e dizer que me sentia da mesma
maneira, mas era tão idiota que tentei reprimir o melhor que pude.
— Como o Nacho está? — perguntei para evitar que eu mesma me
denunciasse.
— Está sendo bem cuidado, ficará bom...
Desviei o olhar e suspirei novamente.
— Aquele Yakuza que trabalhava com você estava encarregado de
limpar a sujeira pela morte da Karina e isso incluía a mim e a você... —
Coçou a barba. — O desgraçado fez parecer que eu era o culpado, detetive,
talvez a polícia brasileira fique atenta por algum tempo... — Ainda não
descobri nada do seu chefe, mas talvez ele possa... — Balançou a cabeça
em negativa. — De qualquer maneira, não é mais um problema para você...
Aquiesci, a cabeça fervilhando, nem sabia o que dizer e sentia que
ele também não.
De repente, Nicolas se afastou, ajeitando os cabelos com as mãos,
como se precisasse aumentar a distância entre nós.
— Vou tentar abafar todo o caso para você, Verônica... Imagino
que esteja preocupada com seu trabalho...
Afastou-se mais, quase nos pés da cama. Os olhos fugindo dos
meus, impessoal e distante.
— Quero que saiba que, se depender de mim, não haverá um
respingo sequer em você... Amanhã meu advogado virá aqui... Vamos
pensar em algo que possa inocen...
— Não sei se quero voltar para a polícia... — confessei sem
encará-lo, levando a mão até ele.
Queria tocá-lo, precisava senti-lo, mas ele se recusou, levantando-
se rápido da cama e dando alguns passos pelo quarto, em direção à janela.
— Você só está confusa... — Acendeu o cigarro, colocando na
boca. — Passou por tanta merda, é claro que está confusa... Logo tudo se
encaixa de novo, corazón, não se preocupe...
Tinha assumido a máscara de rei do cartel. Aquela armadura
impenetrável de quem não se importa com sentimentos. Como quando nos
conhecemos. Só que, diferente daquela vez, agora eu o conhecia, entendia
cada nuance.
Levantei-me também e parei em sua frente, pegando o cigarro de
sua mão e dando um trago.
— Faz mais de cinco anos que trabalho sob estresse e risco de
morte, Nicolas... Não sou uma mocinha indefesa...
Seus olhos pousaram nos meus intensamente. O corpo tão perto
que eu podia sentir o calor da sua pele, o perfume, o hálito de dente recém-
escovado.
Não resisti, descendo a mão suavemente em seu peito, tocando o
curativo, descendo até perto da barriga, então Nico deu um passo atrás, as
mãos cerradas em punho.
— Não posso! — disse de repente.
— O quê? — perguntei sem entender.
— Isso! — Girou o dedo no espaço vazio. — Nós! Eu e você,
sexo... É muito bom, mas... — Balançou a cabeça em negativa. — É melhor
eu ir... Você precisa descansar... Eu também...
Caminhou até perto da porta tão rápido que eu quase não
acompanhei.
— Espera, Nico... — chamei sem tocá-lo.
— Vou matar o Nakai, corazón, como prometi... — Escorou o
corpo no batente, cobrindo o rosto com as mãos e esfregando. — Sei que
quer vingança, é por isso que está aqui, não é? Não se preocupe, vou dar a
você...
— E se eu quiser mais que vingança, Nico... — Joguei, dando
alguns passos para perto dele. — Vai me dar?
Não tive tempo de reação, seu corpo tomou o meu, empurrando-me
pelo quarto até a cama. A boca invadindo a minha com tanta urgência que
eu podia sentir o gosto metálico de sangue do machucado no meio do beijo,
mas não reclamei. Eu queria. Queria Nicolas com a intensidade que ele
tinha, completo, sem mudar uma vírgula sequer.
Puxei sua camiseta pelos ombros, beijando seu peito nu e ouvindo
sua respiração acelerar mais e mais, até ficar entrecortada, como a minha.
Baixei a calça e ele a tirou, minhas roupas tiveram o mesmo destino, caídas
ao lado da cama e então ele me deitou sobre os lençóis, o joelho
empurrando o meu para que acomodasse seu corpo.
— Ah... — gemi alto, quando ele me invadiu.
A boca procurava pela minha, a língua lambendo meus lábios, as
mãos percorrendo meu corpo.
Apertei as pernas ao redor da sua cintura e ele mordeu meu
pescoço, descendo pela clavícula até o seios. Chupou meu mamilo
arrepiado enquanto beliscava o outro e eu joguei a cabeça para trás, estava
tão perto de gozar que queria me segurar um pouco mais. Apertei os lençóis
com as mãos, mas não fui capaz de evitar.
Meus gemidos foram se confundindo com os dele, mais alto e mais
alto, até que cessaram, dando lugar a suspiros ofegantes, meu rosto
encaixado na curva do seu pescoço, sem que ele saísse de dentro de mim.
Eu ainda podia senti-lo pulsar, satisfeito e, a cada movimento do
seu corpo, o meu respondia na mesma intensidade. Ficamos assim por um
longo tempo, sem dizer uma única palavra, apenas sentindo o outro.
— Hum... — ele gemeu de repente, e virou-se de lado, apoiando a
cabeça sobre o antebraço.
— Dói? — Toquei o curativo com a ponta dos dedos.
— Um pouco... As costas doem mais...
Aproximei o rosto do peito dele e beijei.
— O tiro que você levou por mim...
— Você era minha responsabilidade... Eu a coloquei em perigo,
então...
Levantei os olhos e o encarei, apoiando meu corpo com o braço.
— Só isso?
— O que quer que eu diga? Você sabe quem eu sou, corazón... O
que eu faço, como vivo... — Ajeitou uma mecha de cabelo atrás da orelha.
— Agua y aceite... no se mezclan...
Nicolas
Sustentei seu olhar o melhor que pude. Não havia razão alguma
para tornar ainda mais difícil o que já era, por si só.
Ela tem uma vida, Nicolas... Não vai renunciar a tudo para ficar
com alguém como você! E o mais importante... Por que diabos você quer
uma mulher na sua vida? Já não se lembra do seu pai?
A garota continuava ali, aconchegada em meu corpo, o perfume
dela mesclado ao meu e aquela sensação incômoda de conexão entre nós.
Incômoda? Não, confortável, e era exatamente isso que me
incomodava.
Os dedos corriam suaves em minha pele, ainda que eu a tentasse
afastar, como se soubesse o que eu realmente queria. Estava conseguindo,
fazendo-me fraquejar. Fechei os olhos por um segundo, sentindo seu toque.
— O que espera? — perguntei ainda sem abrir os olhos. — Que eu
lhe peça para ser minha mulher? — soltei cheio de irritação e ansiedade. —
Você vai aceitar?
Ela parou o carinho no mesmo instante, assustada, certamente, e eu
acordei. Não deixei que terminasse. Levantei da cama o mais rápido que
pude, aumentando o espaço entre nós. Ela foi pega de surpresa, mas era
melhor que fosse mesmo assim. Uma foda de despedida... Justo!
— Amanhã acertamos tudo e você volta para o Brasil... —
expliquei já pegando o rumo da porta. — Durma um pouco, pode ser que
precise dar uma entrevista... Vou ver com o advogado o que...
— Não espero nada, Nicolas... Não tenho quinze anos, nem estou
presa na torre, corazón... — imitou-me. — Não estou jurando amor eterno,
nem dizendo que vamos viver o resto da vida juntos, só que gosto disso...
— Segurou minha camiseta, sustentando meu olhar. — Nós... Assim... —
Sorriu maliciosamente. — Somos uma boa equipe...
Esbocei um sorriso, ainda tentando processar, mas não ia deixar
que ela percebesse.
Deveria ter dito que ela não fazia ideia do que acabara de dizer,
mas não era verdade, não para ela. Verônica tinha sido a única mulher a
quem realmente mostrei o que era, como sentia, o que queria. Nunca tinha
sido apenas sexo, atração, tensão e tesão, era mais. Fora mais desde o
primeiro instante. Desde a primeira briga e o primeiro olhar.
— Antes que diga que eu não sei o que estou fazendo, Nicolas, eu
quero que saiba que...
— Você sabe... — Deslizei as mãos pelo seu rosto, levantando seu
queixo para que eu pudesse roçar meus lábios nos dela. De leve,
aumentando a expectativa. — Se tem alguém que sabe o que quer,
detetive... — Sorri de canto. — Sem dúvidas, é você!
Tomei-a pelo pescoço, afundando a boca na sua, urgente, com a
vontade que eu tinha dela. Verônica enlaçou os braços ao redor do meu
pescoço e eu a sustentei, até que as pernas estivessem ao redor da minha
cintura.
Pressionei-a contra a parede, a boca descendo em sua clavícula, as
mãos subindo por dentro da camiseta.
— Não quero que isso acabe... — confessou.
— Nem eu...
Respirei fundo. Não tinha ideia do que aconteceria na manhã
seguinte, nem de qual seria meu fim. O cartel havia sido abalado e, por mais
que minha honra estivesse restaurada, não sabia ainda o que pensar.
Talvez você nem tenha muitos dias...
Beijei-a novamente.
— Sabe de uma coisa, corazón... — Ri contra seu pescoço e depois
segurei seu queixo entre meus dedos, forçando-a a me encarar. — Se for
para morrer cedo, quero que seja assim, no meio das suas pernas, fodendo
como se não houvesse amanhã...
Verônica riu também.
— Uma vez um cara me disse que era uma bela maneira de
morrer... — brincou. — Acho que concordo com ele!
Puxei sua calcinha de lado e enterrei meu pau tão fundo que nós
dois arfamos juntos. Moí seu corpo contra a parede com o meu, mais fundo,
mais rápido, não conseguia ser de outro jeito com ela, como se a urgência
que sentia nunca se aplacasse.
Para minha sorte, a brasileira parecia pensar o mesmo, porque se
eu tivesse mesmo que deixá-la ir...
— Ah... Nico... — gemeu, enquanto seu canal ordenhava meu pau
com tanta força que precisei tomar fôlego para continuar.
— Isso, detetive... Grita meu nome, vai... Mais alto, para todo
mundo saber a quem você pertence... — exigi, apertando seu quadril, minha
boca gemendo contra a sua.
Verônica
Acordei sozinha na cama. Estava tão cansada que nem havia
sentido Nicolas se levantar.
Espreguicei-me cuidadosamente, nem me lembrava da última vez
que dormira tão bem. Talvez por efeito do remédio, mas mais
provavelmente por estar com Nico.
Levantei-me e fui até o banheiro, para escovar os dentes e me
arrumar. Estava penteando os cabelos, quando bateram à porta.
— Senhorita... Café da manhã...
Saí para encontrar Nicolas, logo atrás da copeira. Calça escura e
camisa preta, com uma jaqueta de couro por cima. O dourado da corrente
brilhando em seu pescoço a cada movimento que ele dava. Havia uma
sacola preta de loja em sua mão.
Sorri.
— Aproveitem a refeição e avise quando terminar, virei buscar a
bandeja... — Agarota sorriu, correndo os olhos entre nós dois.
— Sente-se, corazón... Vou explicar o que vamos fazer enquanto
você come.
Colocou a bandeja de comida sobre a mesa e eu me sentei em uma
das cadeiras, de frente para ele.
Nicolas serviu o café em duas xícaras, sentado elegantemente,
como o homem de negócios que aparecia nos jornais. Os curativos em seu
rosto haviam sido substituídos por novos, cabelo bem penteado e barba
aparada.
— O advogado está lá embaixo, mas achei melhor eu mesmo
conversar com você... — explicou.
Aquiesci, passando um pouco de manteiga em um pãozinho de
leite.
— O que vamos dizer é que você sofreu um sequestro e a polícia
peruana irá sustentar nossa versão... Sou um homem conhecido, minha
fama e meu dinheiro não são segredo... Para todos os efeitos, você e eu já
nos conhecíamos... Karina trabalhava para mim, então nossa relação não
será difícil de compreender... Você está de licença da polícia, decidiu vir até
aqui para cuidar de assuntos pessoais referentes à morte dela. É bem
simples e natural, nada com o que se preocupar.
Concordei, mordendo mais um pedaço do meu pão.
— Nós nos reencontramos e nos envolvemos, uma situação
normal, movida pela dor da perda... As pessoas gostam disso... Sofrimento
sempre causa empatia...
Ia falando e eu, encarando-o. Parecia sempre saber o que dizer,
como falar, o que esconder, o que revelar. Pensei em como devia ser difícil
manter duas identidades, mas que, apesar disso, ele fazia parecer tão
simples.
— Entende? — perguntou e eu desviei o olhar, havia perdido o fio
da meada.
— Desculpe...
Tocou a mão sobre a minha, suavemente.
— Não se preocupe, tudo isso é apenas para firmar uma história
que teremos que contar daqui em diante... Se realmente quiser... — Parou a
frase no meio e eu acabei sorrindo.
— Deixar claro que a morte de Karina foi um infeliz acidente e que
nunca ouvi falar de Isao Nakai ou Seiji Matsuya e não tenho conhecimento
algum a respeito da Yakuza...
Nicolas levou os olhos até os meus, como se tentasse me
compreender.
— Não é a primeira vez que conto uma história diferente da
verdadeira para a imprensa...
— Verônica... — Entrelaçou nossos dedos. — Não a quero
envolvida em meus assuntos... Prometo protegê-la e cuidar para que sua
vida seja tranquila ao meu lado... Sou um homem de negócios, com uma
vida absolutamente normal, ainda que...
— Não espero que me proteja... Só... que seja honesto...
— Tem minha palavra...
— Mesmo que eu não concorde...
— Mesmo assim, corazón... Nunca escondi de você quem sou e
não pretendo começar agora...
Soltei minha mão do seu carinho e estendi a ele em um
cumprimento formal.
— Então acho que temos um acordo, Sr. Huamán... — brinquei.
Nicolas tocou sua mão na minha e no instante seguinte me puxou
para o seu colo. Os lábios buscando os meus, a mão livre acariciando minha
coxa. Quando o desejo do beijo aplacou e a intensidade diminuiu, eu sorri.
— Anda, me dá a sacola... Quanto antes começarmos, antes
terminamos...
— Há mais uma coisa, corazón... E esta é a parte complicada... Seu
amigo Fábio Queiroz... está na cidade...
Arregalei os olhos.
— Ele está bem? Está machucado? Foi pego pelo Nakai? —
perguntei ansiosa.
— Ele está vivo, um pouco confuso sobre os fatos... Seu amigo
mestiço armou um bom circo, fez parecer que era a vítima, então... —
Desviou os olhos dos meus por um segundo e, quando voltou a me encarar,
havia uma sombra de letalidade ali. — Espero que você consiga convencê-
lo ou terei que resolver do meu jeito...
— Não! — falei mais alto do que deveria, mas não estava
arrependida. — Fábio é meu amigo, Nicolas... O único que tive e, se não
está envolvido na sujeira da polícia, quero garantir que ele volte são e salvo.
— Você tem vinte minutos... — Tirou-me do colo e ajeitou a
jaqueta. — Vista-se, espero por você no saguão, com o advogado. Seu
amigo irá depor logo depois de você e eu espero que diga exatamente o que
precisa dizer...
Aquiesci.
Dentro da bolsa havia uma calça escura ajustada e um suéter de lã
azul, além de sapatilhas bonitas e delicadas. Vesti tudo e prendi os cabelos
em um rabo de cavalo alto, deixando bem visíveis os machucados em meu
rosto. Nicolas tinha razão, o sofrimento causava empatia e, naquele
momento, era exatamente do que precisávamos.
Deixei o quarto e entrei no elevador. Quando as portas se abriram,
vi Nicolas e Guillermo conversando com um homem de terno cinza, de
costas para mim. Aproximei-me devagar, até que Nicolas percebeu minha
presença e se levantou.
— Alberto, esta é Verônica... — apresentou.
O homem estendeu a mão em cumprimento.
— É um prazer conhecê-la, infelizmente em condições não tão
agradáveis... — Sorriu cortês. — Imagino que Nicolas tenha explicado a
você a estratégia que concordamos ser a mais correta...
Meneei a cabeça em concordância.
— Vou acompanhá-la até a delegacia... Algumas formalidades não
podem ser dispensadas... Sei que compreende.
Eu compreendia, fazia parte do sistema e entendia como as coisas
funcionavam.
Depois de mais alguns ajustes em nossa história, nós nos
levantamos e seguimos em direção à saída. Havia um sedã executivo
prateado, estacionado um pouco à frente, além do esportivo preto.
Nicolas segurou o passo e eu fiz a mesma coisa, deixando que o
advogado e Guille ocupassem os respectivos carros.
Quando ficamos sozinhos, ele tirou um aparelho de telefone do
bolso e entregou em minhas mãos.
— Se algo acontecer, corazón... Há um telefone salvo com o nome
Santa Maria Caritá... É de uma igreja... — explicou. — Ligue para lá e diga
que precisa sumir... Dê sua localização e em menos de uma hora você estará
fora do Peru...
Senti um arrepio tomar conta de mim.
Se algo acontecer... Com quem? Com ele? Engoli em seco.
— Eu confio em Alberto totalmente, mas se perceber qualquer
coisa errada... Já sabe... — reforçou. — E caso não consiga telefonar, dentro
da delegacia, pode procurar pelo Torres... É um investigador que sei que
não tem envolvimento com os japoneses, mas apenas em último caso...
Torres é um homem correto, será difícil explicar as coisas a ele.
Ia instruindo e eu concordando, ainda que tudo me causasse certa
estranheza. Era a primeira vez que eu estava do outro lado da situação.
— Tem certeza de que não prefere ir comigo... Meu espanhol é
péssimo e eu não conheço quase nada do seu país...
— Tenho assuntos urgentes para resolver... Além disso, é melhor
que você pareça inocente e vulnerável...
— Não me diga que vai atrás daquele demônio...
Nicolas deu um trago no cigarro que acabara de acender.
— Preciso reestruturar o cartel. Há pessoas que contam com isso...
Nicolas
Esperei que ela entrasse no carro e, depois, que ele saísse pelo
portão, para só então caminhar até onde Guillermo esperava por mim.
Assim que me sentei no banco do carona, conferi a pistola dentro
do porta-luvas, acoplando o silenciador e acomodando-a no coldre axilar.
Peguei também um pente extra e guardei no bolso interno do paletó
— Tem certeza de que não está se precipitando? — Guille
perguntou, enquanto eu me preparava.
— Eu disse a você para ficar...
— Não fui eu que tomei um tiro no peito, Nico... — reforçou. —
Alguns dias de descanso não seriam maus... Você perdeu muito sangue,
ainda sente vertigem... É um risco...
— Necessário... — cortei-o. — Nakai provavelmente pensa como
você, o que vai facilitar as coisas... Se formos agora, precisaremos de
menos homens... E é exatamente o que temos agora... Meia dúzia de
homens e nem todos são de confiança... — Dei um trago no cigarro,
jogando a cabeça para trás. — Você deveria ficar com o Nacho... Se o pior
acontecer, Guille...
— Então vamos ter que contar com a lealdade daquele majadero
de un carajo! Até que Maribel tenha idade suficiente... — Deu um trago
também, soltando a fumaça para fora.
Rimos os dois, mas o riso morreu rápido demais. A tensão era
grande.
— Contou a ela que ia atrás do Nakai? — meu primo perguntou.
— Disse que ia reestruturar o cartel... — Vesti a luva de couro na
mão esquerda. — Aquele filho da puta estar lá é só um detalhe. — Tirei o
cigarro do lábio e soltei a fumaça pela janela, fechando-a em seguida. —
Vamos!
Dirigimos até um aeroporto particular, onde o avião já esperava por
nós. Era a melhor maneira de atravessar a distância que separava Lima de
Puerto Maldonado, cidade mais próxima da reserva, onde ficava a fazenda
do Boliviano.
Aterrissamos no meio da floresta, em uma antiga rota desativada
havia muitos anos pela polícia. Assim que a porta se abriu e eu me
aproximei das escadas, vi o 4x4 preto estacionado e Franco do lado de fora.
— Eu disse a você que ele era uma excelente aquisição! — Guille
levantou a sobrancelha por cima dos óculos escuros, a sombra de um sorriso
presunçoso brilhando nos lábios.
— Hoje vamos descobrir se você tem razão, hermanito!
Aproximamo-nos do boliviano e ele meneou a cabeça, sem deixar
de mascar o chiclete.
Eu havia relutado muito em aceitar Franco Monero entre os meus,
porque ele era um Yakuza desde os treze anos, quando foi pego roubando
dinheiro em um dos bordéis controlados pelo Matsuya, em La Paz.
Não era novidade alguma que garotos jovens fossem levados a
entrar na organização como pagamento de dívidas, mas que quisessem sair,
essa sim, era uma verdade que não me convencia.
— Haverá retirada de mercadoria na fazenda hoje... — explicou
sem me encarar, sabia que eu não confiava nele. — É uma carga grande de
ópio que vai direto para o comprador na Holanda...
— Como você soube? — intervim, ainda que não estivesse falando
comigo.
— Um dos homens do Epifânio me contou... Ele não gosta dos
japoneses, chefe, e não está nem um pouco satisfeito com o rumo do
cartel...
— Quantos homens do Matsuya estão na fazenda? — perguntei.
— Uns vinte... — Deu um trago no cigarro. — Quatro na casa,
com certeza... Aquele velho safado morre de medo de ser pego de surpresa,
nunca fica sozinho... Os outros devem ter se dividido entre a entrada, o
galpão e a ronda...
— E os homens do Manolo?
— Esperando por nós no caminho... O japonês está usando drone
na vigília, provavelmente já sabe da nossa chegada, mas não está contando
que temos reforços.
Meneei a cabeça e dei a volta, abrindo a porta do carro.
— Vamos...
A estrada que levava até a fazenda de Manolo era quase uma trilha.
Não havia possibilidade de cruzá-la, senão em veículos de tração 4x4 ou
hidroavião, saídos do rio que cortava a propriedade.
Conforme nos aproximávamos do local, Franco mudou de rota,
enfiando o carro pelo meio do mato.
— Ei, companheiro, vá devagar! — Guille reclamou. — Isso não é
um rali!
— Se pretende descer pelo morro e entrar pela frente, é melhor que
pare antes do córrego... O carro vai atolar e não vamos poder usá-lo... —
avisei.
O garoto encarou-me pelo retrovisor como se não acreditasse no
que eu havia acabado de falar e eu o encarei de volta. Queria deixar claro
que não seria fácil armar para mim.
Eu podia ser o chefe do cartel, mas não tinha sido sempre assim.
Quando eu era criança, meu pai havia trabalhado com o Manolo e eu
conhecia aquela fazenda como a palma da minha mão.
Continuei encarando a mata fechada em nossa frente, enquanto o
4x4 ia desviando e se afundando em barro e lama.
— Ali! Pode parar ali... — Apontei em frente. — Depois daquelas
árvores já é o córrego, se formos beirando-o chegamos mais rápido pela
lateral direita. O que você combinou com os homens do Manolo? —
perguntei.
— Eles virão pelo mangue, de barco pequeno... Já devem estar
escondidos esperando para entrar... — conferiu o relógio. — Temos vinte
minutos.
O garoto desligou o carro e desceu, abrindo o porta-malas, para
pegar uma Taurus 40 e pendurar no ombro.
Descemos pelo córrego raso, usando o leito quase seco como
caminho. Pouco depois, a casa pintada de rosa-pálido entrou em meu campo
de visão.
Havia uma caminhonete com o emblema de uma ONG de proteção
indígena, conhecida por favorecer o tráfico de mercadoria dentro da
reserva, estacionado bem na frente.
— Acha que pode ser o comprador? — perguntei.
— É possível... — Franco respondeu, ainda encarando a
movimentação na casa. — Mas de qualquer maneira, não podemos
esperar...
Do ponto em que estávamos em diante, toda a nossa comunicação
foi feita por assovios, imitando os pássaros e gestos.
Assim que atingimos o gramado, Franco foi de encontro aos
seguranças.
— ¡Hola, compañeros! — gritou, rindo e metralhando a entrada da
casa.
Guille e eu aproveitamos a movimentação de homens para fora e
desviamos por trás da caminhonete, direto pela cozinha.
Apertei o gatilho assim que o primeiro rosto apareceu, certeiro, no
meio da testa, fazendo o homem cair de joelhos no degrau da entrada.
Guille acertou o peito do segundo e o terceiro escapou da minha mira;
correu para fora, mancando e deixando pegadas vermelhas pelo cimento do
chão.
Seguimos pelo cômodo, um dando cobertura ao outro. O som de
tiros lá fora havia cessado, eu só não sabia se era porque Franco havia
matado todos, ou se era ele mesmo o morto.
Sinalizei para que Guille subisse as escadas para olhar no andar de
cima, enquanto eu vasculhava o de baixo. Meu primo assentiu e nos
separamos.
Caminhei beirando a parede pela sala, até o escritório, mas tudo
estava absolutamente vazio. Quando voltei à sala, ouvi o som de mais
alguns tiros e logo depois o ranger de freios de um carro, arrancando tão
rápido que mesmo correndo não consegui impedir que fugisse.
Assim que pisei na varanda da entrada, cerrei as mãos em punho.
Os homens do Manolo estavam lá, amarrados pelos pulsos e
tornozelos, o sangue vertendo do pequeno buraco na testa, bem ao lado de
Franco caído no chão. O pescoço cortado, enquanto ele tentava balbuciar
algo que eu não conseguia entender, os olhos já se revirando e as mãos
retesadas de dor e choque.
Aproximei o rosto do dele.
— Descanse, chico... — sussurrei.
— La puta madre! — Guille xingou, parando ao meu lado. — Era
uma emboscada!
Meu telefone vibrou no bolso e eu enfiei a mão para pegá-lo,
sentindo o coração acelerado. O número de Verônica piscava na tela.
— Por Dios, corazón... Diga que está em segurança... — pedi.
— Uma pena, peruano... — o sotaque pesado que eu conhecia tão
bem fez minha garganta fechar. — Sua detetive não pode falar agora, mas,
se eu fosse você, viria até aqui bem rápido... Paciência não é uma das
minhas virtudes...
Verônica
Ouvi do meu pai durante todo o tempo que ele esteve comigo que
nunca devemos menosprezar o nosso sexto sentido.
Sabe aquela vozinha insistente que fala sem que a gente queira
ouvir? Então, assim que viramos a esquina, sumindo no meio do trânsito de
Lima, ela gritou.
Eu sabia que Nicolas confiava no advogado, ou não teria me
colocado no mesmo carro que ele, em direção à polícia, mas por alguma
razão achei que tinha que ficar esperta. Peguei o celular no bolso e digitei
“delegacia” no campo de busca do mapa. Logo os pontos apareceram e
nossa localização também. Fiquei acompanhando. Uma, duas delegacias e
nada de pararmos.
Calma, Verônica... Deve existir uma razão... Talvez seja uma
delegacia em específico... Uma sobre a qual eles tenham controle...
Tentei disfarçar meu nervosismo o melhor que pude, usando minha
cara de donzela traumatizada; na melhor das hipóteses, já ia fazendo um
teste com o advogado, para saber se convenceria os policiais.
— Falta muito para chegarmos? — Encarnei o burro do Shrek.
O advogado me encarou pelo retrovisor.
— Logo estaremos lá, Verônica... Imagino que esteja nervosa, mas
são apenas formalidades. Não há nada que ligue você com o cartel.
Esbocei um sorriso simpático e continuei olhando pela janela.
Estávamos em um subúrbio, ainda na cidade de Lima, e, pelo GPS,
pude ver que havia, de fato, uma delegacia próxima.
— Onde o Fábio está? — perguntei depois de alguns minutos.
— Irá nos encontrar na delegacia, não se preocupe.
Fábio era mesmo cabeça-dura, não seria nada de mais que tivesse
insistido em me acompanhar, eu o conhecia, sabia como se preocupava
comigo, então fiquei calada novamente, mas lá no fundo começava a pensar
em uma bela rota de fuga.
Olhei o painel do carro. Portas travadas, Verônica, não é uma
boa... Você vai ter que esperá-lo parar.
Estacionamos em frente a uma delegacia de polícia e descemos.
— Venha... Vou acompanhá-la durante todo o tempo, não se
preocupe.
Sorri, mas já não conseguia fingir tão bem.
Alberto me deixou sentada em uma fileira de cadeiras e se
aproximou da recepcionista.
Voltou alguns segundos depois.
— Venha, vamos esperar lá dentro. Seu amigo deve estar
chegando, é bom que converse com ele antes do depoimento, Verônica...
Nicolas não vai admitir erros...
Nós dois nos encaramos, mas eu fui a primeira a desviar. A
sensação ruim de que estava em perigo não me deixava por um único
instante.
Um policial nos levou até os fundos da delegacia, a uma sala com
janelas de vidro. Não demorou muito e Fábio passou pela porta,
acompanhado de outro policial.
— Verônica, graças a Deus! — Abraçou-me apertado. — Achei
que você tinha morrido!
— Estou bem, Fábio... — Sorri.
Ele segurou meu rosto entre as mãos, os olhos escuros focados nos
meus por um segundo, como se quisesse ler a verdade em minhas palavras.
Os dedos tocando os curativos suavemente.
— Vou ver se o delegado está pronto, assim vocês aproveitam para
conversar. — Saiu da sala.
— Eu disse que você não deveria vir... — Alisou os cabelos para
trás andando de um lado para o outro. — Aquele merda ali não me
convence, Verônica... Pelo amor de Deus, garota, me diz em que você se
meteu?
Levantei-me também, tentando parecer o mais tranquila possível.
— Fábio... Foi apenas um acaso, eu... Desculpe tê-lo preocupado,
eu não deveria ter deixado recado...
— Como não, Verônica? — levantou o tom de voz. — Se não fosse
o Celso comigo, eu nem sei o que teria acontecido... — Respirou fundo,
apoiando o corpo na beirada da janela. — Ainda não acredito que ele... —
Cobriu o rosto com as mãos. — Ele só queria salvá-la e veja como
terminou...
Engoli em seco. Precisava fazê-lo entender que Celso não era o
que ele pensava, mas como? Sem revelar quem era Nicolas...
Apertei os olhos, sentia minha cabeça latejar ainda.
— Olha... Eu sei o quanto dói perder alguém, ok? Entendo seu
desespero, mas... — Desviou o olhar do meu, encarando as ripas de madeira
do teto. — Verônica o que quer que seja... Se me contar... — Segurou
minhas mãos. — Eu não tenho medo! Você sabe que eu compro qualquer
briga! Eu... Vamos embora, hoje! Eu odeio este lugar, não confio nessas
pessoas...
Levei-o pela mão, colocando-o sentado ao meu lado sem soltá-lo.
— O que eu posso dizer, Fábio... Algumas coisas acontecem...
Nicolas é um bom homem...
— Bom homem? — levantou o tom, saindo da cadeira. — Um
bom homem não intimida policiais! — Coloquei-o de volta, delicadamente.
Encarei seus olhos por alguns segundos e, com o indicador, fui
batendo em sua palma, suavemente, contando em código Morse o que eu
não poderia dizer em palavras.
“Celso estava envolvido com a Yakuza. Estamos em risco.
Precisamos fugir. Explico tudo depois.”
Sorri, como se apenas o acariciasse.
— Eu sei que você não acredita, mas eu dei bobeira... Não deveria
ter saído para passear sozinha, mal conheço Cusco... Acabei confiando
demais em mim mesma... — continuei minha encenação de namoradinha
boba e apaixonada.
Meu amigo aquiesceu sem dizer nada, os olhos varrendo o
perímetro com a experiência de quem já havia passado por mais coisas do
que eu.
“Peça para ir ao banheiro. Eu vou logo depois e escapamos pela
janela.”
Concordei com o olhar e me levantei, caminhando até a porta. Ia
entrar no banheiro e avisar Nicolas de que estávamos em apuros, assim ele
poderia ativar o localizador do celular e me encontrar.
Estava disposta a ir atrás do advogado, mas não tive tempo. Assim
que cheguei ao corredor, ouvi o primeiro tiro e Alberto apareceu
cambaleando em meu campo de visão.
— Corre, Verônica! — gritou, dando mais alguns tiros e levando
outros.
Corri para dentro da sala, desesperada, mas nem precisei explicar.
Fábio atirou uma cadeira na janela, estilhaçando o vidro.
— Pula! — gritou. — Vamos ter que pular.
Obedeci, jogando-me pela janela e rolando em um barranco.
Protegi o rosto e o celular, para pelo menos poder pedir socorro depois.
Fábio fez o mesmo e descemos o morro até bater contra uma parede de
tijolos à mostra.
Levantei-me meio zonza, estava toda ralada e suja de terra
vermelha, mas viva. Apoiei-me na parede, oferecendo a mão para que Fábio
se levantasse também.
— Venha, precisamos sair do campo de visão. — Puxou-me pelo
pulso, por entre uma construção e outra.
As pessoas nos olhavam sem entender, mas ninguém nos parou. O
primeiro tiro ecoou pelo meio das casas e nós continuamos correndo, sem
saber direito para onde ir.
Nicolas! Eu preciso falar com Nicolas! — tentei ligar, mas o
telefone caiu direto na caixa de mensagens, então salvei uma.
— Nico, fomos pegos! Alberto está ferido na delegacia, eu e Fábio
fugimos. Não sei onde estou, ative o localizador.
Desliguei sentindo o desespero confundir meu raciocínio. Não
conseguia pensar friamente e odiava isso.
— A igreja! — gritei, escondendo-me atrás de um muro.
Fábio ergueu a sobrancelha sem entender.
— Não é isso! É que Nico... — Engoli a frase no meio. — É que
sei que é um lugar seguro.
Peguei o telefone e apertei o botão de ligação, esperando que
alguém atendesse rápido.
— Preciso sumir! — gritei assim que a voz masculina atendeu. —
Rápido!
— Diga onde você está...
— Eu não sei... Eu... — Estava nervosa, tentando encontrar algo
que identificasse o local em que estávamos, mas não consegui. — Passe um
endereço e eu o encontro lá!
Estava com o telefone na orelha, esperando pelo endereço, quando
Fábio girou o corpo para ver se tínhamos conseguido despistar os bandidos,
quando ouvi o tiro e espirro de sangue que saiu do ombro do meu amigo.
— Fábio! — gritei, tentando ajudá-lo.
— Vai! Corre! — Empurrou-me. — Não é a mim que eles querem,
Verônica! Corre!
— Não! — gritei de volta. — Não vou deixar você aqui!
— Anda! — gritou mais alto ainda. — Se você ficar, morremos os
dois, se for, ainda temos uma chance... Eles não querem a mim.
Tive um milésimo de segundo para pensar. Um daqueles instantes
em que a vida inteira passa por nossa cabeça, mas, no fim das contas, Fábio
tinha razão.
Encarei-o mais uma vez e corri, pulando no telhado da casa de
baixo e rolando pela caída das telhas, até o chão. Meu tornozelo recém-
curado reclamou no mesmo instante e eu falseei o pé, caindo de joelho.
Quando levantei o rosto, havia um cachorro rosnando para mim.
Travei por um instante, pensando em como fugir, já que nem sabia se
conseguiria andar rápido, quanto mais correr.
— Pipo! — um garotinho gritou. — Aqui! — chamou o cachorro e
o segurou pela coleira.
Sorri agradecida, encarando seus olhinhos escuros, até que
consegui me colocar em pé.
A pior parte de fugir era não saber para onde. Eu sentia como se
estivesse correndo em círculos, e tinha a sensação de que a cada esquina
encontraria um Yakuza.
Corri em frente, mancando e olhando para trás, até que cheguei a
uma avenida. Sinalizei pedindo carona aos carros que passavam. Tinha que
ir para longe o mais rápido que conseguisse, mas, quando o sedã preto se
aproximou, tive certeza de que não conseguiria.
Tentei correr, mesmo sabendo que não iria longe, mas o carro foi
mais rápido, manobrando e parando em minha frente. Dois homens
desceram, armas em punho e rostos cobertos por máscaras pretas. Mostrei
as palmas em rendição, não havia mais o que fazer.
Nicolas
Ainda segurava o telefone, quando vi o aviso de mensagens de voz
no alto da tela. Coloquei para ouvir, ligando o viva-voz.
— Nico, fomos pegos! Alberto está ferido na delegacia, eu e Fábio
fugimos. Não sei onde estou, ative o localizador.
Engoli em seco. Não havia ligação perdida, então certamente ela
havia tentado ligar enquanto ainda estávamos no meio da mata.
Droga, Nicolas... Por alguns minutos...
Soltei uma lufada de ar, aquela sensação de impotência que eu
odiava tomando conta de mim.
Fiz o que ela havia pedido, contando com a antena da fazenda para
ter a resposta de que precisava. O sistema pensou um pouco, mas logo em
seguida Cusco entrou em minha tela. Uma parte da cidade que eu conhecia
bem.
Corri até a garagem de Manolo e peguei a primeira chave que
encontrei no quadro, apertando o controle para descobrir de qual carro era.
Os faróis de uma caminhonete antiga piscaram e eu ocupei o
volante, com Guille ao meu lado.
— O desgraçado do Nakai está com a Verônica! — rosnei baixo.
O ódio borbulhava em minhas veias tão forte que eu mal conseguia
respirar. Tudo que conseguia pensar era no quanto gostaria de estourar a
cabeça daquele filho de uma cadela eu mesmo, com as próprias mãos.
Parei na pista, onde o avião que havíamos usado esperava, mas,
assim que subi as escadas, vi o piloto caído, ainda em sua poltrona, metade
do corpo para baixo, braços estendidos em direção ao chão.
Empurrei-o para baixo, deixando o que restava do corpo dele bater
contra o piso, e sentei-me na poltrona.
— Tem certeza de que ainda lembra como se faz? — Guille
perguntou, ocupando o assento ao lado.
— Tenho que lembrar... — foi tudo que disse.
Coloquei os fones de comunicação e liguei o painel de controle,
dando a partida. Começamos a ganhar velocidade e eu puxei o manche para
trás, levantando voo.
Precisava me concentrar e fazer tudo com calma, ou não seria
capaz de chegar até ela.
O voo de Maldonado até Cusco era curto, pouco mais de cinquenta
minutos, e em todos os momentos meu olhar se dividia entre o painel de
controle e o localizador do celular de Verônica. Queria ter certeza de que
aquele demônio não ia mudar de destino só para me atrasar mais.
Aterrissei em uma pista pequena, dentro do aeroporto, mas distante
dos voos comerciais. Assim que desci, um dos funcionários veio até mim.
— Resolva os pormenores e entregue o avião ao dono... — instruí.
— Mande a conta para o meu hotel, a secretária cuidará do pagamento.
Segui em frente sem parar, até encontrar um táxi.
— Veja se ainda temos reforços... — avisei meu primo. — Vamos
passar em casa e pegar o que precisamos... É hoje que isso termina, Guille...
De um jeito ou de outro.
Guillermo ficou ao telefone desde o momento em que entramos no
carro, até descermos em frente ao portão da nossa casa. Estava
destrancando, quando meu celular tocou. Levei a mão até ele de imediato,
esperando ouvir a voz de Nakai, mas não era ele.
— Sr. Huamán? — a garota perguntou. — Desculpe incomodá-lo...
Eu só queria saber se deu tudo certo com a transferência do Sr. Jose
Ignacio...
Senti um arrepio frio percorrer minha espinha.
— Senhor? — perguntou quando eu não respondi.
— Quando ele foi transferido?
— Hoje pela manhã... O senhor pediu... — Fez uma pausa, como
se tentasse entender. — A ligação veio de um dos seus telefones de
segurança, Sr. Huamán... Não pensamos em...
Estreitei os olhos.
Telefone de segurança? Eu só tinha dois números registrados na
clínica, meu celular pessoal e o ramal da cobertura.
— Vadia filha da puta! — rosnei, esfregando o rosto com a mão.
— Mesmo morta ainda consegue foder com a minha vida!
— Desculpe, não compreendi... — a moça falou do outro lado.
— Não se preocupe — falei antes de desligar.
— O que houve? — Guille perguntou preocupado.
— Aquela desgraçada da Teresa... — Soquei o portão de metal,
produzindo um barulho alto. — Deve ter passado a senha de entrada da
cobertura a alguém. Com a correria do sequestro, esqueci de formatar o
sistema.
— Puta que pariu! — xingou. — Entraram na cobertura?
— Provavelmente... E pegaram o Nacho!
— Aquele demônio japonês! — Bateu a mão contra o portão. —
Vou arrancar o couro dele!
— Como dois e dois são quatro, hermanito! — concordei.
Passei para dentro do portão, direto até o escritório. O cofre onde
guardávamos as armas ficava atrás da lareira falsa, então acionei o botão e
esperei que a portinhola se abrisse.
Peguei mais dois pentes carregados para a minha pistola e Guille
fez o mesmo.
— Toma... — Jogou o colete a prova de balas para mim. — Sei que
não gosta, mas vista isso...
Obedeci. Não era nem de longe uma situação corriqueira, era uma
guerra. Uma que tinha começado muitos anos atrás e que ia terminar hoje.
Quando saímos pelo portão, dois dos meus homens já estavam
parados em frente, com um dos nossos carros.
— Eu dirijo... — avisei, estendendo a mão para pegar a chave. —
Conheço bem o local que aquele merda escolheu.
Dei a partida, seguindo na direção norte por pouco mais de dois
quilômetros. Era uma curta viagem, mas, quanto mais eu subia em direção a
Qolqanpata, mais o filme em minha cabeça ia se tornando palpável. Eu
odiava aquele lugar, nunca mais tinha voltado lá, apesar de ficar tão perto.
Guillermo demorou um pouco a perceber o destino que tínhamos,
mas, assim que o fez, baixou os olhos para o chão.
— Acaba hoje, Guille... Vamos ter nossa vingança... — proferi sem
encará-lo.
Estacionei em frente ao casarão antigo. Lembranças mesclando-se
ao medo e ao ódio que eu sentia.
— Vocês esperam aqui, para dar cobertura... — avisei meus
homens. — Guille... Você vem comigo...
Encarei-o por alguns segundos.
Se eu fraquejar, companheiro... — Suspirei. Não precisava falar
para que ele entendesse o que eu queria dizer.
Chutei a porta de entrada, tinha certeza de que a casa estaria vazia.
Depois de tantos anos, não era mais do que ruínas. Os buracos no teto
deixavam feixes de luz entrarem, apesar dos tapumes nas janelas. Desde o
crime que acontecera naquele local, ninguém mais ousou morar ali.
Caminhei para dentro da grande sala.
“Oh, meu Deus, não acredito que o pegaram!” — a voz de Tia
Lupe era tão audível que eu quase podia vê-la em minha frente. “Não vá,
Nico! Não vá!”
Eu fui, mas cheguei tarde demais. Quando o vi, já estava morto, e
ela nem no Peru estava mais.
Aquele tinha sido meu final e meu começo. O garoto havia
morrido, e o homem, nascido.
Saí para os fundos sabendo o que encontraria, sentia-me em
câmera lenta, revivendo uma história que atormentou minha vida desde
sempre.
Verônica
Acordei com a sensação de sufocamento, as mãos amarradas mais
uma vez, o rosto coberto por algo que parecia ser um saco de tecido claro.
Eu conseguia respirar, mas não o suficiente, então a sensação de
tontura, por estar voltando do desmaio, não passava.
Estava sobre uma superfície em movimento, mas não parecia ser
um carro. Esperei, não havia muito que pudesse fazer.
E o Fábio, será que conseguiu escapar? Baleado em um beco
qualquer de subúrbio? E se não encontrar socorro? Droga, Verônica...
Você veio procurar vingança pela morte da Karina e vai embora com mais
um monte de corpos nas costas...
Controlei a respiração melhorando minha condição, pelo que
pareceu uma eternidade, até que senti o baque do chão contra algo e
entendi, finalmente, onde estava. Era um avião, aterrissando em algum
lugar.
Braços fortes se engancharam por baixo dos meus, mas eu não
podia ver quem me carregava. Segui por um trecho, até ser jogada contra
algo duro, que depois entendi ser o assoalho de um carro.
Quando finalmente paramos, fui carregada novamente. Tudo que
eu conseguia ver eram luzes e sombras, então eu soube que entrei no carro,
saí dele e depois entrei no que parecia ser uma construção. Um cativeiro
talvez, o que me deixava ainda pior.
Eu não era do tipo mártir, que fica implorando para morrer no lugar
de alguém, mas também não era covarde, não queria servir de isca para
pegar alguém com quem eu me importava tanto quanto Nicolas.
Entre morrer logo de uma vez ou morrer depois de vê-lo sofrer, eu
preferia a primeira opção, por ele e por mim também.
Uma voz masculina disse algo em japonês, que eu não consegui
decifrar, e então eu senti minhas mãos serem amarradas em torno de algo.
— O desgraçado está mais morto que vivo, senhor... — alguém
disse em espanhol. — Tem certeza de que precisamos amarrar?
— Não me importo que morra aí mesmo, contanto que esteja vivo
quando o peruano chegar! — uma voz conhecida ganhou meus ouvidos,
fazendo os pelos do meu corpo eriçarem.
Quem era o “quase morto”? Fábio? Guille? Mais alguém?
Eu não tinha a menor ideia e não havia nada que pudesse fazer.
— Hum... — alguém gemeu perto de mim.
Mais algum tempo se passou. Minhas mãos doíam, as costas
também, além da parte detrás da cabeça, onde provavelmente eu havia
levado o golpe que me desacordou. Sabia que estava ao ar livre pelos raios
de sol e pelo vento fraco que batia contra meu corpo.
— O peruano desceu no aeroporto, senhor... — o homem que
falava espanhol avisou.
— Ótimo... Logo estará aqui então.
— Quer que a gente monte guarda? — perguntou.
— Não... Deixe-o entrar e ver a cena maravilhosa que preparei
para ele.
Meu coração se acelerou e eu voltei a sentir a vertigem ruim da
falta de oxigênio. Era Nico, uma emboscada para pegá-lo e depois matar a
nós dois.
Maldita hora que você me salvou na montanha... Se eu tivesse
morrido lá, nenhum de nós dois estaríamos passando por isso...
A porra da minha garganta se fechava e eu já não sabia mais se era
por falta de ar, nervoso ou vontade de chorar. Provavelmente uma mistura
de tudo. Nunca tinha me sentido tão ridiculamente impotente e fraca, como
naquele momento.
— O que acha que está fazendo, seu desgraçado!
A voz de Nicolas ressoou dentro de mim e Nakai riu.
— Sabia que minha mãe era uma artista de teatro? — perguntou
com aquela voz irritantemente calma que tinha. — Acho que herdei essa
veia artística dela... Veja, criei um pequeno espetáculo para que você
pudesse relembrar... Consegue, Nicolas? Isso tudo aqui lhe lembra alguém?
O divertimento era explícito em sua voz, aquele tom sarcástico de
quem tem a faca e o queijo na mão e só espera pelo momento de cortar.
— O quê? Não gostou? — Suspirou ironicamente. — Uma pena
que será o último espetáculo da sua vida, peruano... Eu jurei que me
vingaria daquele monte de bosta que era o seu pai, mas não tive
oportunidade de arrancar o mal pela raiz... Veja só... Vocês, seus macacos
de merda... Se multiplicam como câncer...
— Seu desgraçado filho de uma puta, não ouse falar do meu pai!
— Nicolas xingou.
— Ohhhhh... Temos um abutre bravo por aqui... — debochou. —
Acha que consegue me intimidar? Você é fraco como ele, garoto! — gritou.
— E vai acabar com a cara cheia de sangue e lama, no meio de um beco
sujo, como você é! Como ele era e aquela vadia mestiça também!
Nicolas
Senti minha respiração se acelerar, entrecortada, movida pelo ódio
que eu carregava no peito.
Você é fraco como ele!
Fraco, eu não podia discordar, ele realmente fora..., mas também
era leal e honrado. E foi a porra da honra que o matou. Se tivesse tido
coragem naquele dia e matado o filho daquele demônio, estaríamos juntos
até agora, os dois.
Eu podia sentir o veneno da raiva correndo em minhas veias,
nublando minha visão.
Guille estava ao meu lado, mas, mesmo que quisesse, não poderia
ajudar. Havia três armas apontadas para nós dois e, se tentássemos algo,
acabaríamos todos mortos.
— Como vai ser desta vez, chico... — a voz conhecida provocou,
usando o meu idioma. — Vai puxar o gatilho? Ou morrer sem fazer a
escolha?
Isao Nakai caminhou até um dos postes e retirou o saco da cabeça
de Verônica, enquanto um de seus homens fazia o mesmo com Nacho.
Meu amigo estava lá, prostrado no chão, cabeça tombada para trás
e boca entreaberta. Mal parecia vivo, embora eu soubesse que estava.
Aquele japonês desgraçado não dava ponto sem nó e eu sabia bem, mas,
quando encarei os olhos derrotados de Verônica, aquele veneno queimou
mais forte, fazendo minha pele arder.
— Solte a garota, Nakai... — pedi, embora soubesse bem que não
adiantaria de nada. — Ela não é uma de nós, não deveria estar aqui...
— Solto... — O desgraçado esboçou um sorriso. — Você só
precisa acertar a cabeça daquele ali... — Apontou em direção a Nacho. —
Não é difícil, Nicolas... Você já fez isso uma vez... Lembra-se?
Alisou os cabelos para trás e ajeitou os óculos. Estava se divertindo
com a porra do desespero que propagava.
— Desconfiar da fidelidade do seu próprio cão... Quem diria...
Garanto... — Levantou o dedo em riste, sem perder a mira da cabeça de
Verônica. — Que o tiro vai doer menos que traição... Você sabe... Esses
cães são honestos... Nós os alimentamos e cuidamos deles, aprendem a ser
leais por falta de cérebro... Tenho os meus também...
Nacho podia não estar acordado, mas ouvir aquele filho da puta
destratá-lo daquela maneira me fez contrair o maxilar com tanta força, que
pensei que acabaria quebrando os dentes.
— Ande logo, garoto... Tenho um avião esperando por mim no
aeroporto e não vejo a hora de decolar de volta para a civilização... —
debochou. — Quem vai ser? A garota? Atire no cão de caça e eu a deixo ir,
antes de matar você e esse bastardo de merda que te acompanha...
Vacilei. O dedo no gatilho tremia e eu nunca quis tanto apertá-lo,
mas, se matasse Nakai, condenaria todos ao mesmo fim. Verônica, Nacho,
Guille e eu, cairíamos como um castelo de cartas. Só tinha tempo para um
tiro e aquela era uma decisão que eu não queria tomar.
De repente, o rosto do meu pai se formou em minha frente. Eu
tinha passado tanto tempo pensando que ele tomara a decisão errada. Que
deveria ter matado logo um dos dois e poupado a si mesmo e meu avô, mas
ali, no meio daquele circo desgraçado, armado pelo demônio, eu também
não sabia o que fazer.
— Vamos, Nicolas! — o demônio oriental gritou. — Ou vou
perder a paciência e terminar tudo como terminei naquele dia!
E foi então que o impensado aconteceu.
Os capangas do Nakai caíram no chão, um depois do outro. Só
percebi de onde vinham os tiros, quando homens vestidos de preto e
encapuzados pularam do telhado. O japonês engatilhou a arma,
pressionando contra a têmpora de Verônica.
— Afastem-se ou eu atiro nela! — gritou. — Acham que vão me
matar? Tudo bem, mas eu levo a vagabunda comigo!
Eu já estava pronto para atirar, quando Shin apareceu vindo de trás,
pela antiga praça abandonada. A pistola apontada para a cabeça de Nakai.
— Desta vez, meu pai, terei que discordar... — Aproximou-se a
passos lentos. — Eu aprendi que um homem de honra sempre paga suas
dívidas... — a voz era baixa e segura, sem pressa ou desespero. — Hoje eu
vou pagar a minha e vou te dar a oportunidade de fazer o mesmo.
Os homens desarmaram a mim e a Guille. Eu não ofereci
resistência, porque tinha percebido o que ele pretendia, assim que meus
olhos cruzaram os dele, compartilhando uma memória dolorosa que nós
dois não tínhamos opção de esquecer.
Nakai o xingou em japonês, ódio reluzindo em seus olhos estreitos
com tanta ferocidade que eu podia sentir de onde estava.
— Seu traidor desgraçado! — resmungou. — Acha que vai se
safar? Sabe o que acontece com quem trai a organização?
— Sei... Porque você me ensinou bem cedo...
Deu a volta mostrando a mão direita aberta, onde a falange distal
do dedo anelar faltava.
— E parece que apesar disso você não aprendeu nada... — Encarou
o filho de frente, soltando Verônica e apontando para Shin. — Terei que
cortar mais um? — perguntou sarcástico.
Shin tirou a navalha de dentro da jaqueta e estendeu ao pai.
— Limpe sua honra... — ofereceu, ignorando a provocação. — Ou
eu mesmo faço...
— Acha mesmo que eu vou me matar? — Nakai riu. — Seu gaijin
desgraçado! Sua cobra peçonhenta! Eu deveria tê-lo matado quando nasceu!
— Deveria..., mas não matou e aqui estamos nós... Você não vai
poder corrigir o erro de ter me deixado viver, mas eu... vou honrar a morte
da minha mãe e pagar minha dívida com o Nicolas...
Engoli em seco, tentando acalmar o turbilhão de sentimentos
dentro de mim.
— Desgraçado! — Nakai vociferou. — Seu desgraçado! — O
rosto vermelho e transtornado. — Eu vou acabar com você! Eu juro que
volto do inferno para te esfolar vivo!
— Limpe sua honra, meu pai... — Shin repetiu.
Foi então que eu percebi que seus movimentos controlados, a voz
mansa, nada tinham a ver com calma, ele estava se poupando. De repente, a
dor que sentia ao se mover ficou tão clara que eu quis ajudar, mas, se
revelasse sua fraqueza, daria munição ao demônio do pai dele.
— Morra com suas dívidas pagas... Você é um Yakuza afinal... Aja
como um... — Ofereceu a faca mais uma vez.
Shin deu um passo atrás, a respiração mais profunda do que
deveria e Nakai sorrateiramente percebeu. Tive uma fração de segundos
para agir, joguei-me no chão, rezando para que conseguisse cobrir a
distância com meu corpo, e peguei a pistola caída.
Mirei no peito, fazendo-o cair para trás, mas não parei, atirando
uma e outra vez. Espirros de sangue manchando o cimento e todos que
estavam perto dele, até que a munição acabou, mas eu ainda atirei, de novo
e de novo. Só parei quando Guille cobriu a arma com sua mão.
— Já foi... — sussurrou.
Sentei-me no chão, recuperando o controle do meu corpo. Nunca
tinha sentido tanto ódio ou permitido que o impulso me governasse, mas
não estava arrependido. A poça de sangue em volta do corpo do fantasma
que perturbara meus pensamentos a vida toda se tornava maior a cada
segundo.
Guillermo correu ao encontro de Verônica e Nacho, eu sabia que ia
soltá-los e cuidar de tudo, mas não conseguia me mover. Meus olhos
estavam no homem a minha frente. O sentimento estampado em seu olhar
era o mesmo do meu, um misto de alívio, ódio e dor. Tínhamos começado
aquilo juntos e terminado da mesma maneira.
Shin curvou o corpo para a frente, usando o balaústre como apoio,
até que um de seus homens correu até ele, falando algo em japonês que eu
não pude compreender.
Ele aquiesceu e respirou fundo, caminhando até perto de mim, e eu
me levantei para encará-lo.
— Sei que não posso mudar o que houve duas décadas atrás...,
mas... — Curvou-se na tentativa de um cumprimento formal, mãos rente ao
corpo, como os japoneses faziam. — Ao menos paguei minha dívida...
Aceitou o apoio de um dos homens para se levantar e seguiu em
direção à porta.
— Shin... — chamei e ele parou, já na soleira. — Obrigado... De
novo... Sei que não somos amigos, mas se um dia precisar... sou eu quem
lhe deve agora...
O mestiço meneou a cabeça, mas não disse nada por algum tempo.
— Se quiser pegar o Matsuya..., ele tem um contêiner saindo de
Callao amanhã ao meio-dia e vai despachá-lo pessoalmente. Sinto não
poder participar, peruano...
Sumiu pela porta, sem olhar para trás.
Verônica
Esfreguei meus pulsos doloridos, sem desviar os olhos de Nicolas.
Eu tinha minhas cicatrizes, minha vida também não fora fácil, mas
perto dele nada do que havia vivido parecia mais tão terrível.
Levantei-me com cuidado. Ainda sentia o tornozelo ruim e tinha
tantos arranhões e machucados que nem sabia se havia alguma parte do
meu corpo que não doesse. Nicolas virou-se para mim e esperou até que eu
me aproximasse.
— Desculpe por tudo isso, Verônica... Eu...
Abracei-o apertado, cortando o que tentava dizer. Meu rosto
afundado em seu peito, sentindo o perfume e o calor ali. Eu não queria que
se desculpasse e menos ainda que se sentisse mal ou responsável pelo que
eu havia vivido, desde minha chegada ao Peru. Tinha sido minha escolha,
consciente, desde o primeiro momento.
— Você está bem? — perguntei preocupada, segurando seu rosto
entre minhas mãos.
Nicolas demorou um segundo encarando meu olhar.
— Você está toda machucada e ainda pergunta se eu estou bem? —
Beijou minha testa, aconchegando-me em seu peito novamente.
— Minha casca é grossa, detetive... Não é qualquer ponta afiada
que me machuca...
Sorri, mesmo sabendo que não era verdade. Seus olhos queriam
mostrar firmeza, mas deixavam ver pequenos vislumbres do sentimento que
ele não pretendia mostrar. Eu conhecia bem aquela tática, usava com
frequência, então deixei que fizesse como preferia.
Ainda estávamos na praça, nos fundos da construção, quando dois
homens vestidos de preto apareceram na porta.
— Cuidaremos da limpeza... — Curvou o corpo, deixando claro
que era um Yakuza.
Nicolas aquiesceu e ajudou Guille a carregar Nacho até o carro. Os
dois acomodaram o amigo e eu me sentei com ele no banco detrás,
apoiando sua cabeça para que ficasse confortável.
— Cuide do funeral... — Nico falou logo depois de verificar os
corpos caídos na calçada. — Vou ligar para a Tamara e pedir que faça o
necessário para manter Nacho no hotel. Com Matsuya à solta, eu não confio
em deixá-lo no hospital.
— É o melhor... Ela consegue os aparelhos necessários...
— Vou trocar todas as senhas do sistema, quando chegar nós
gravamos uma nova para você.
Enquanto eu os ouvia conversar, fiquei olhando para o rosto do
homem em meu colo. Parecia ter pouco mais de vinte anos, o rosto estava
sereno, apesar da condição em que estava. Tatuagens cobriam seu pescoço e
braços, cabelos raspados, cicatrizes diversas por todo o espaço de pele
visível nele.
Eu sabia que Nacho não gostava muito de mim e podia entender.
Alguém que vive num mundo como o dele não tem muitas opções a não ser
desconfiar.
— Espero que fique bom logo, garoto! Ainda quero ter a chance de
ganhar sua confiança! — Esbocei um sorriso.
Logo Nicolas ocupou seu lugar junto ao volante e seguimos pelo
caminho até que eu reconheci o centro de Cusco.
Pelo espelho retrovisor, vez ou outra, trocávamos um olhar, mas
ele não disse nada e eu também não.
Paramos no aeroporto de Cusco, onde o helicóptero de Nicolas já
esperava por nós, e seguimos direto para o hotel. Assim que o sedã foi
estacionado, uma maca apareceu na entrada particular, empurrada por uma
enfermeira e um funcionário do hotel.
— O Dr. Gueras já está esperando na enfermaria, Sr. Huamán... —
a moça com o jaleco avisou. — A sala está toda pronta para recebê-lo.
O carinho e a gentileza com que tratava Nacho deixavam claro o
quanto se preocupava com ele. Eu desci logo depois que o retiraram e segui
alguns passos atrás. Não queria incomodar em um momento crucial como
aquele.
Não acompanhei os procedimentos. A sala era pequena e eu
precisava descansar um pouco, sentia o tornozelo inchando mais a cada
passo.
Sentei-me na beirada da floreira, no hall de entrada, e tirei a
sapatilha, encarando o contorno dela marcado em meu pé. Estava arroxeado
e dolorido, mas, como eu conseguia mover, tinha esperança de que fosse
apenas uma luxação, como na outra vez.
Estava tão distraída com meus machucados que nem percebi a
aproximação.
Nicolas me pegou nos braços, antes que eu conseguisse recusar.
Abriu o elevador e subimos os dois.
As portas se abriram dentro da cobertura e ele me colocou sentada
sobre a mesa do escritório. Mãos apoiadas ao lado do meu corpo, os olhos
desviando dos meus, até finalmente me encarar.
— Juro para você, Verônica... Essa é a última vez que alguém a
machuca por minha causa... Nem que eu tenha que acabar com toda a
Yakuza... Eu juro, corazón... Juro...
Puxei-o para mim tão apertado quanto pude e não parecia o
suficiente. Eu queria mais, me fundir a ele. O coração cheio de sentimentos.
Nunca na vida havia sentido tanto medo como naqueles malditos minutos
em que Nakai nos manteve em sua mira.
Eu sabia exatamente como ele se sentia, porque me sentia igual.
— Acabou, Nico... Acabou... — repeti, roçando o nariz em sua
pele, procurando por sua boca.
O beijo ganhou intensidade rápido. Não havia outro caminho para
nós que não aquele.
Seus lábios moldados aos meus, suas mãos descendo pelo meu
corpo, livrando-me das minhas roupas. Tirei sua jaqueta e abri os botões da
camisa, deixando cair no chão.
— Quero tanto você, corazón... — sussurrou contra o meu ouvido,
encaixando-se entre minhas pernas.
Puxei-o para mim pela cintura, separando mais as pernas, para que
me penetrasse como nós dois queríamos.
— Hum... — gemeu e eu também. — Essa loucura... Eu... Minha
vida... não assusta você?
Mordi seu pescoço, sentindo a pele se arrepiar, enquanto minhas
unhas cravavam-se em suas costas nuas.
— Pra caralho! — xinguei, arfando pela intensidade que ele me
tomava. — Mas sabe de uma coisa, peruano... — encarei-o —, eu não
mudaria nada em você! — Sorri de canto, sugando o ar entre os dentes e
mordendo meu lábio.
Quando o prazer tomou conta do meu corpo, joguei a cabeça para
trás, apoiada nos cotovelos, e Nico segurou meu quadril, chocando contra o
dele mais forte e forte, até que soltou um gemido alto, profundo, que quase
me fez gozar de novo.
Deixou o corpo pesar sobre o meu, apoiados na mesa, sem sair de
dentro de mim. Ficamos assim por alguns minutos. Um daqueles silêncios
confortáveis de quem não tem nada a dizer, só sentir. E depois de um
tempo, ele se levantou. Fechou a calça e estendeu a mão.
— Vem... Vamos tomar um banho e eu chamo o médico para ver o
seu pé.
Aquiesci, apoiando em seu braço para percorrer o espaço do
escritório até o quarto. Tomei uma ducha rápida, apoiada na banheira, e
vesti uma roupa limpa. Sentei-me na cama, observando enquanto ele
trocava as próprias roupas.
— Nico... — Respirei fundo. — Sei que você está cheio de
problemas, mas... se puder descobrir o que houve com o Fábio... Ele... Eu...
Nicolas ergueu uma sobrancelha para mim.
— Esse tombo está me saindo pior que a encomenda, corazón... —
brincou.
Esbocei um sorriso preocupado, não conseguia disfarçar.
— Vou ver o que descubro, não se preocupe.
Não demorou muito e eu ouvi o barulho das portas do elevador se
abrindo.
— Aqui, doutor... — a voz grossa dele cortou o silêncio do lugar.
— É a segunda vez que ela torce... Temo que tenha sido mais sério dessa
vez.
Passou pela porta com um homem de meia-idade ao lado dele.
— Esse é o Dr. Gueras, Verônica... Ele está cuidando do Nacho e
vai cuidar de você também.
Sorri, aproximando o pé machucado da beirada da cama. O homem
sentou-se em uma banqueta e colocou meu pé em seu colo, examinando
minuciosamente.
— É apenas uma entorse, não há com o que se preocupar,
Verônica... Vou receitar alguns comprimidos e uma pomada para o local...
Se puder usar uma bota ortopédica, seria ainda melhor para a recuperação.
Pés elevados, bolsa de gelo... Acredito que em poucos dias você já estará
bem...
— Ótimo! Isso é ótimo, doutor... Obrigada... — Sorri mais uma
vez.
— Bem... — Levantou-se. — Vou deixar a receita com a Tamara...
Ela providenciará tudo de que precise, mas se tiver alguma dúvida... Estarei
lá embaixo com o garoto por mais algumas horas e volto amanhã pela
manhã também.
Nicolas levantou-se e acompanhou o médico até a saída; voltou
pouco tempo depois, com um copo d’água e um comprimido.
— O doutor disse que vai ajudá-la a descansar e melhorar sua dor...
— ofereceu-me.
Engoli, bebendo a água, entregando o copo vazio a ele, que em
seguida tirou o telefone do bolso e deixou ao meu lado.
— Seu amigo foi encontrado pela polícia... Está em um hospital,
em Lima... Acho que deveria ligar para ele.
Senti uma onda de alívio tão grande tomar conta de mim que nem
sabia como retribuir.
Nicolas saiu dando-me privacidade e eu digitei o número de Fábio.
— Ai, graças a Deus! — falei assim que ouvi sua voz do outro lado
da linha.
— Lembre-me de nunca mais aceitar nenhuma operação com
você... — falou sério. — Meu Deus, garota, você é a porra de um ímã para
desgraças! — brincou e acabamos rindo os dois.
— Como você está? — perguntei.
— Vou ficar bem, não se preocupe... O tiro pegou de raspão, mas
acho que terei que desistir do tênis por alguns meses...
Sorri, mesmo que ele não pudesse ver.
— Quando você volta ao Brasil?
— Assim que tiver certeza de que você está mesmo bem e que tem
certeza do que quer...
— Fábio, eu...
— Não sou seu pai, Verônica... Você não me deve satisfações...
Nem estou aqui para julgar o que quer que seja que você escolha para a sua
vida, querida... Só quero ter certeza de que você está bem, segura e que vai
tentar ser feliz...
Respirei fundo.
— Prometo me cuidar e não me perder do que acredito... Prometo
tentar ser feliz no meio desse caminho! — Ri. — Obrigada por tudo,
Fábio... Por ter cuidado de mim e me ensinado tanto... Você foi um chefe
exemplar e é um excelente amigo...
— Devo contar isso como um pedido de demissão adiantado?
— Digamos que estou precisando de alguns anos sabáticos...
Fábio riu.
— Então eu volto amanhã, mas espero vê-la em breve... Nem que
seja para uma última rodada de bolinho de mandioca com carne seca e
cerveja gelada, no boteco do Abílio.
— Prometo!
— Te passo o telefone novo da Vivi assim que voltar para o
Brasil... Sabe que se precisar...
Senti a primeira lágrima escorrer e funguei.
— Cuide-se, Verônica...
— Você também.
Nicolas
Aproveitei o tempo em que Verônica conversava com o amigo para
organizar a emboscada que livraria minha gente daquela praga desgraçada
que era a Yakuza.
Eu não podia permitir que um merda de um estrangeiro qualquer
ficasse em minha terra, intimidasse e machucasse minha gente e ainda
saísse disso tudo ileso. Se queria reerguer o cartel, tinha que começar
relembrando a todos da minha força. Afinal de contas, eu ainda era El
Condor... O senhor da vida e da morte.
Meus melhores homens estavam ou machucados, ou mortos, mas
eu sabia que poderia contar com os colombianos.
Cesar Martinez era um bom homem e tinha pensamentos e uma
história de vida parecida com a minha. Ambos havíamos herdado o legado
dos nossos pais e construído um império em cima do que era apenas sonho.
Eu comandando o cartel do lado de cá do altiplano, e ele aumentando a
produção e transformando um acampamento de pobres coitados na maior
área de produção de matéria-prima do hemisfério.
Era interessante para ambos os lados que o negócio não parasse,
Martinez pensava como eu.
Precisei de alguns minutos com ele ao telefone para ter uma
estratégia pronta e homens para executá-la.
Quando voltei para o quarto, Verônica já dormia.
Sentei-me em minha poltrona e coloquei os pés na banqueta de
couro. Lá fora, a noite começava a cair, fria e escura. Acendi um cigarro,
soprando a fumaça para cima. Queria descansar a cabeça para o que teria
que fazer na hora marcada, mas não pude. Lembranças do meu pai
povoavam meus pensamentos sem que eu pudesse evitar.
Passei tanto tempo suprimindo as memórias que tinha dele, e de
repente lá estavam todas elas, vívidas e quase reais. O som do riso, a
maneira como ajeitava a franja para trás.
— É, pai... No fim das contas, manter o mestiço vivo não foi de
tudo ruim... — Sorri de canto, tinha uma dívida com Shin e pagaria com
prazer.
Fechei os olhos em algum momento, tinha que descansar um
pouco, até que chegasse a hora combinada.
Quando a madrugada chegou, fechei as cortinas blecaute. Queria
que Verônica dormisse bastante, de preferência, até que o serviço de
limpeza terminasse.
Abri o cofre, tirando um pente carregado para a pistola, e acomodei
a arma na cintura, cobrindo com a jaqueta de couro. Peguei a touca preta e
os óculos de visão noturna. Era hora de acabar com o problema.
Desci pelo elevador e, assim que alcancei o painel de baixo, travei
as portas com a minha senha. Queria ter certeza de que Verônica ficaria
segura.
Passei pela enfermaria, para ver como Nacho estava. Tamara havia
concordado em ficar com ele no turno da noite, revezando com o médico
que viria na manhã seguinte.
— Como ele está? — perguntei assim que passei pela porta.
— Respondendo muito bem, não se preocupe... Vamos tirá-lo
dessa...
— Se precisar de alguma coisa...
— Eu peço, fique tranquilo... — Sorriu.
Deixei-a com um aceno de cabeça e, quando passei pela entrada
privativa, o carro já estava estacionado, com Guille fumando um cigarro do
lado de fora.
— O Cholo e o Cuna vão ficar aqui de guarda... — avisou. — Os
homens do Martinez vêm conosco.
Concordei tomando meu lugar no banco da frente e deixando a
direção para o meu primo.
Chegamos a Lima algumas horas antes de amanhecer. A cidade
estava silenciosa e tranquila, como eu precisava que estivesse.
Paramos no lugar combinado e, alguns minutos depois, os carros
começaram a chegar, estacionando lado a lado, e os homens descendo.
Cesar Martinez foi o último a descer.
Era poucos centímetros mais baixo que eu, a pele mais morena, e
os cabelos, lisos e grossos, raspados, como ele gostava de usar. Estendeu a
mão tatuada para mim.
— Pronto para a faxina, peruano? — perguntou com um riso
sarcástico no rosto.
— Vamos ao trabalho! — Apertei sua mão.
Dividimo-nos entre os carros, três em cada um, e cada um seguiu
seu caminho.
Guille, Cesar e eu fomos direto à mansão do desgraçado. Eu não ia
esperar até que ele saísse, ia matar aquele rato dentro do próprio ninho.
A casa do Yakuza ficava em uma encosta, de frente para o mar e
muito bem protegida, mas para a minha sorte a hacker que trabalhava para
mim era boa em derrubar sistemas de segurança.
Estacionamos antes do campo de visão dos seguranças e seguimos
por trás da casa, beirando a encosta, por entre as pedras. Chegamos perto do
muro e esperamos que os holofotes se apagassem.
Aproveitando o susto dos homens de Matsuya, pulamos o muro,
armados de armas em punho, prontos para atirar.
Deixei Guille limpando o terreno e corri para dentro da casa.
Conforme ia me aproximando do andar de cima, escutei gritos de mulher.
Apressei o passo até a porta fechada de onde os gritos vinham.
— ¡Ayúdame! — a voz, que parecia de uma garota bem jovem,
gritava no meio do choro e do som de tapas e socos.
Abri a porta com um pontapé, arma em punho e o dedo coçando
para apertar o gatilho, mas não tive tempo. O desgraçado pulou pela janela
e, mesmo que eu tenha descarregado a pistola no vazio, não tive garantia de
tê-lo acertado.
— Filho da puta desgraçado! — Soquei a mão no aparador com
tanta força, que afundei a madeira.
Só me dei conta de que a garota agonizava na cama, quando a ouvi
tossir, engasgada com o próprio sangue. Segurava o pescoço, embora todo o
colo já estivesse manchado de vermelho.
Peguei-a nos braços e corri escada abaixo. Assim que me viu,
Guille abriu a porta traseira de um dos carros.
— Leve-a ao hospital mais próximo. Sem detalhes, apenas deixe
na emergência e suma — instruí um dos homens do Martinez.
O colombiano concordou e passou pelo portão a toda velocidade.
Eu escorei no batente da porta, o gosto amargo do fracasso em
minha boca.
— Não era para ser... — Guille escorou ao meu lado, acendendo
um cigarro e oferecendo o maço para mim. — Tudo tem uma hora certa,
Nico... Você sabe disso.
Não respondi, embora concordasse com a frase.
Nossa hora vai chegar, seu desgraçado!
Dei um trago no cigarro, soltando a fumaça para cima.
— Chefe! — um dos homens gritou. — Este aqui está vivo! —
Arrastou um dos seguranças do Matsuya pelos braços, até perto de mim. —
Mato? — perguntou com a arma engatilhada na cabeça do mesticinho, que
não devia ter mais que vinte anos.
— Não! — Dei mais um trago, mexendo no garoto com a ponta da
bota. — Deixe vivo para que ele possa avisar que na minha terra o rei sou
eu!
Verônica
Acordei com aquela sensação de sonolência com que a gente fica
quando toma remédio para dormir, mas não podia reclamar, precisava
mesmo descansar e não conseguiria sozinha.
Sentei-me na cama com cuidado, verificando até que ponto meu pé
estava bom para andar e, assim que consegui caminhar com apoio até o
banheiro, lavei o rosto.
A cobertura estava silenciosa, então imaginei que Nicolas saíra
cedo. Sentei-me na cozinha, depois de preparar uma xícara de café com
ovos mexidos, e liguei a televisão. Fui zapeando pelos canais, até que parei
em um jornal matinal local.
As cenas de uma chacina estavam na tela. Vários corpos sendo
arrastados por policiais e cobertos por saco da perícia. Sangue espalhado
pelo chão, além de carros e paredes alvejados.
— O milionário do ramo de transportes Seiji Matsuya continua
desaparecido. Uma testemunha que não quis revelar o nome afirma que a
casa foi invadida por bandidos armados e que o Sr. Matsuya talvez tenha
pulado ou sido jogado em direção ao mar.
Engoli em seco, absorvendo o que via na tela.
— A polícia não tem pistas dos bandidos, já que todo o sistema de
segurança foi danificado. O homem que sobreviveu ao ataque está
hospitalizado e em condições instáveis, então a polícia espera que ainda
possa contar mais sobre o caso.
Mudei o canal, para outro noticiário.
— Uma noite banhada a sangue na capital do país! Homens
armados e encapuzados fizeram uma verdadeira matança em subúrbios e
bairros de classe média da cidade, nem mesmo a mansão milionária do
CEO da Matsuya-Kai escapou da chacina.
— Que morra comido pelos peixes! — xinguei.
Respirei fundo. Não conseguia sentir pena dos mortos, tinha
sentido na pele o que aqueles demônios de olhos puxados eram capazes de
fazer.
Desliguei a TV e encarei o dia nascendo lá fora. A neblina deixava
a montanha ainda mais mística e bonita.
Levei a xícara à boca, pensando no que eu faria da minha vida,
agora que Nakai e Matsuya não estavam mais por aqui.
Pouco tempo depois, as portas do elevador se abriram e eu me
levantei rápido, ansiosa por ver Nicolas bem.
Ele parou junto à passagem para a cozinha, descartando a touca e
as luvas no lixo. A jaqueta de couro estava manchada de sangue e eu tapei a
boca com as mãos.
— Não é meu, corazón... — avisou, abrindo o zíper e tirando pelos
ombros.
Encaramo-nos por alguns segundos.
— Acabou? — perguntei.
— Não até que eu encontre a carcaça daquele demônio velho...,
mas acho que podemos descansar um pouco... — Esboçou um sorriso,
abrindo os braços para mim.
Atirei-me sobre ele, sentindo seu corpo apertar o meu. Era tão bom
e confortável que fazia tudo valer a pena. Afundei o rosto em seu pescoço,
o perfume masculino e delicioso que ele tinha ainda estava ali, apesar da
noite cheia de tensão.
— Gosto do seu cheiro, sabia? — Sorri, beijando seu rosto em
direção à boca.
— Isso é bom, corazón... Muito bom...
Beijou-me devagar e foi deixando a intensidade do desejo e da
paixão que sentíamos ganhar força conforme nossos corpos se encaixavam.
Nicolas me pegou pela cintura, colocando sobre a mesa. Tirou
minha calça, a calcinha e abriu minhas pernas. Os olhos escuros brilhando
maliciosos para o que via.
— Você nem chegou direito e já está pensando nisso? — brinquei,
mas minha mão já estava soltando o botão da sua calça.
Ele arqueou o corpo, a boca roçando em minha orelha, a respiração
quente brincando em minha pele.
— Lembra que eu disse que te foder me relaxa? — Mordiscou meu
lóbulo. — Estou tenso, corazón... Quero relaxar...
***
Alguns dias depois, meu pé já estava bem melhor, e os
machucados em meu rosto não eram mais que pequenas marcas
avermelhadas na pele clara.
Nicolas também havia se curado do tiro e as coisas estavam
tranquilas, desde a manhã daquele dia terrível.
Já era fim de tarde, quando descemos para ver como Nacho estava.
Nicolas bateu na porta da enfermaria e o médico que havia me
atendido abriu. Não pude conter o sorriso, quando vi que Nacho estava
acordado. Parecia sonolento e meio grogue, mas os olhos escuros estavam
abertos para o mundo novamente.
Nicolas parou ao seu lado, tocando sua mão.
— Que bom que você voltou, companheiro... — Sorriu de canto.
Nacho tentou sorrir também e meus olhos marejaram no mesmo
instante.
— Desculpe por ter sido tão tolo... Você não merecia... — Nico
continuou.
Nacho balançou a cabeça de leve, negativamente.
— Logo ele conseguirá falar, Nicolas... — O doutor bateu em suas
costas. — Por enquanto, podemos afirmar que esse garoto é mesmo duro na
queda...
Fiquei de longe, observando a cena, sabia bem o quanto uma
amizade sincera fazia diferença na vida da gente. Eu nunca tive uma grande
família, então só pude contar com amigos, além de Karina e meus avós.
Estava feliz que Nicolas tivera a chance de se reconciliar com o amigo.
Uma chance que o destino tirou de mim e da minha irmã, mas eu não sentia
mais raiva. Tinha aprendido a entender que as coisas são como são, e não
como a gente espera que sejam.
Aproveitei a distração de Nicolas e saí, parando em frente às portas
de vidro que davam para o jardim do hotel. Guille parou ao meu lado pouco
depois.
— Dia bonito! — comentou.
— Com cara de despedida... — completei.
— Deixar ir é importante... — Sorriu de canto, estreitando os olhos
verdes.
Bati a mão em seu ombro, dando um soco de leve.
— Quem diria que eu iria conhecer uma tombita de quem gostasse
tanto! — brincou e eu acabei rindo, mas o sorriso morreu logo.
— Vou deixar a polícia, Guille... — confessei.
Ainda não tinha falado aquilo em voz alta, mas ele tinha razão.
Deixar ir era importante. Despedir-se, colocar um ponto-final.
— Sabe que não precisa, não é? — Levantou uma sobrancelha. —
Nico nunca te pediria algo assim e posso apostar que daria um jeito de fazer
dar certo... — Sorriu. — Ele é um cara durão, mas está... Como vocês
dizem... Arriado!
Não pude segurar o riso.
— E pelo que vejo ele não é o único... — Bateu a cabeça de lado
na minha. — Eu sei que somos... — Girava a mão no ar, buscando pela
palavra certa.
— Bandidos? — Arqueei a sobrancelha.
— Eu ia dizer fora da lei... Soa mais... elegante... — Ajeitou a
jaqueta de couro, puxando pela lapela. — Mas bandido serve! — Piscou,
mas o rosto logo assumiu um tom sério. — É um negócio, não quem
somos... Pense nisso! — Esfregou as mãos em minhas costas e se foi para
dentro.
Continuei ali, observando a tarde bonita que começava a cair,
quando Nicolas parou logo atrás de mim. Deixei o corpo pender contra o
dele e ele abraçou meus ombros.
— Tenho uma surpresa para você... — falou em meu ouvido,
afastando-se um pouco e me oferecendo sua mão.
Subi pela montanha guiada por ele, mas a cada passo sentia meu
coração mais acelerado e pesado. Não tinha a ver com a altitude, mas sim
com o lugar para o qual estávamos nos dirigindo.
Assim que nos aproximamos do pico, eu vi o arco de mármore
branco. No topo, havia uma estrela solitária, e no meio dele, uma placa.
Flores cor-de-rosa haviam sido plantadas e cuidadosamente guiadas para
que, com o tempo, cobrissem o arco. Soltei a mão de Nicolas e caminhei até
mais perto, queria ler a placa, embora já imaginasse do que se tratava.
Que seu brilho nunca se apague — li em pensamento, sentindo as
lágrimas descerem.
Não era boa em chorar, mas estava aprendendo bem rápido a me
permitir sentir.
Nicolas
Cruzei as mãos na frente do corpo, sentia o coração pesado, mas
não estava triste. Tinha me vingado por ela, apesar de tudo, cumprira a
promessa que fizera ao encarar seu corpo sem vida.
Respirei fundo, vendo Verônica chorar o luto guardado. O corpo
prostrado de joelhos, arqueado em direção ao precipício. Eu sabia que
aquela tristeza iria passar e que um dia sobraria apenas a saudade, mas, até
lá, estava feliz em ver que ela havia parado de tentar ser forte.
Dei alguns passos em frente, minhas mãos pesando sobre seus
ombros. Não havia o que dizer, todas as palavras pareciam pouco para o que
eu queria que ela soubesse de mim.
Depois de um longo tempo, ela se levantou, abraçando-me
apertado, como se precisasse de colo. Aconcheguei-a junto ao meu peito.
— Obrigada por isso... — sussurrou.
— Ela merecia saber que nunca vamos esquecê-la...
Vimos o sol se pôr ali, abraçados no topo da montanha, no lugar
onde tudo começou. Eu não era um religioso comum, do tipo que vai à
igreja e se preocupa com rituais, mas naquele momento tinha certeza de que
Karina estava conosco, abençoando o que nascera entre nós.
Malandrinha... Bem que você dizia que não ia me deixar passar a
vida toda sozinho! Sorri.
A noite havia acabado de cair, quando voltamos para o hotel. Eu
aproveitara que estaríamos fora, para pedir aos funcionários que
organizassem tudo na varanda para nós, então, quando as portas do elevador
se abriram, Verônica parou no mesmo lugar, a mão tapando a boca pelo
susto.
— Nico! — Sorriu.
— Gostou? — perguntei, admirando a bela decoração.
Velas haviam sido dispostas, em diferentes tamanhos, por toda a
varanda. O céu, coberto por fios de luzes amarelas, e a mesa, decorada para
um belo jantar.
— Lembrei-me de que nunca tivemos um encontro decente, Srta.
Malta... — Estendi a mão para ela. — Se puder me acompanhar... Eu
adoraria jantar com você...
O sorriso em seu rosto me fazia querer sorrir também, como se a
felicidade dela se estampasse em mim.
Sua mão pequena cobriu minha palma e eu a conduzi pelas portas
duplas do escritório.
Uma música suave tocava e o meu melhor garçom estava a nosso
dispor.
Puxei a cadeira e ela se sentou, sem parar de sorrir um único
segundo.
— Este é o vinho preferido do Sr. Huamán, senhorita... É um Syrah
encorpado, embora suave... Possui aroma de frutas pretas e notas de
chocolate e especiarias... — Mostrou a garrafa, antes de abrir. — Irá
acompanhar muito bem o lombo de alpaca com purê de batatas... — Serviu
a bebida em nossas taças. — Vou servir a entrada.
Assim que ficamos sozinhos, girei o líquido na taça e aproximei do
nariz, antes de beber.
— Nossa, que sexy! — Verônica brincou, continuava sorrindo. —
Você é incrível, sabia? — perguntou.
Estendi a mão sobre a mesa, segurando a dela.
— Não sou, corazón... Tenho mais falhas do que você poderá
contar, mas saiba que farei o melhor para vê-la sempre sorrir assim...
Nosso kapchi foi servido e ela levou a primeira garfada à boca.
— Espero que goste, são pratos típicos do Peru, escolhidos por
mim para compor o cardápio do hotel.
— É delicioso, Nico... Você tem muito bom gosto! — Sorriu de
canto. — Não me olhe presunçoso assim, ou eu nunca mais o elogio! —
reclamou e eu acabei rindo mais. — Ande, pare de me olhar desse jeito e
diga algo! Estou ficando sem graça...
As bochechas estavam coradas, e os olhos esverdeados fugiam da
intensidade dos meus.
— Tia Lupe voltou para a fazenda... — contei. — E Maribel para a
faculdade... Tudo está seguro novamente...
Verônica sorriu.
— Ah, que ótimo! Ela deve estar muito feliz!
Aquiesci.
— Nascemos e crescemos naquela terra... Há muito do que somos
lá...
— Sabe que nós podíamos passar uns dias com ela? O que você
acha? Depois que voltarmos do Brasil...
— Ela vai ficar feliz... — concordei. — Já marcou sua ida? Quero
acompanhá-la...
— Ainda não... — Suspirou.
— Sabe que se não quiser...
— Eu quero! — interrompeu. — Meu lugar não é mais lá, Nico...
Tanta coisa mudou... Eu mudei... Acho que... depois de tudo... não quero
mais lutar essa batalha...
Concordei com a cabeça.
— Vamos tirar umas boas férias, corazón... Podemos viajar o
mundo, se quiser... Ou passar meses sem sair do quarto... Você decide...
— E o cartel?
— Guillermo faz um bom trabalho e logo Nacho estará de volta...
Com tudo que houve, nos aproximamos mais do Martinez, ele sempre faz a
retaguarda...
Verônica sorriu.
— Gosto de como você sempre tem o controle de tudo... —
comentou e eu sorri também.
Enquanto saboreávamos nosso jantar, não consegui deixar de olhá-
la um momento sequer.
— O que foi? — perguntou em um determinado momento, o rosto
assumindo aquele tom rosado de quando ela ficava ansiosa.
Levantei-me de onde estava e estendi a mão.
— Vem, corazón... Quero minha sobremesa no quarto...
O rosto corou um pouco mais, revelando a luxúria que ela não
fazia questão de esconder de mim. Levantou-se também e sorriu de canto,
passando a mão no gargalo da garrafa de vinho e levando-a consigo.
Dispensei os funcionários com um aceno de cabeça e, assim que
passamos para dentro da suíte, eu a pressionei contra a parede, uma mão de
cada lado do seu corpo, como tinha feito na primeira vez que ela me
provocou.
O sorriso em seu rosto se alargou.
— Não tenho uma faca comigo hoje, El Condor... — Os olhos
faiscando de desejo nos meus.
Desci a mão pela lateral do seu rosto, até a garganta, sentindo a
pulsação forte ali.
— Não precisa mais de uma para me render, senhorita...
Deslizei uma alça do vestido longo que usava, depois a outra,
revelando os seios pequenos e redondos, com os bicos delicados arrepiados
de excitação. Verônica respirou mais fundo, como se esperasse pelo passo
seguinte, mas eu mantive meus olhos nos dela por mais alguns segundos.
Guiei a peça até o chão e tomei seu corpo nu em meus braços,
carregando-a até a cama.
Deitei-a no colchão, sem desviar o olhar.
— Esta noite, corazón... Vou mostrar a você que também sei fazer
amor... Quero estar dentro de você até o amanhecer...
Ela engoliu em seco, enquanto eu me livrava das minhas roupas e
encaixava meu corpo sobre o dela.
— Calmo e tranquilo... — Afastei suas pernas, acomodando meu
corpo entre elas. — Sentindo cada suspiro... Cada gemido...
Beijei sua barriga, subindo devagar até o vale entre o seios,
traçando o contorno com a língua. Mordisquei um dos bicos, acariciando o
outro com a ponta do polegar, e ela arqueou o corpo um pouco mais,
oferecendo-se a mim.
— Ah... Nico... — gemeu, a boca entreaberta de desejo.
Não resisti, apertando seu quadril com a mão espalmada, metendo
meu pau para dentro dela de uma vez e, quando a preenchi completamente,
parei. Verônica arfou, mordendo o lábio inferior.
— Vai me torturar a noite toda assim? — Esboçou um sorriso
atrevido, que levou um pouco do meu juízo.
Movi meu corpo para trás e para a frente, sentindo meu pau ser
engolido para dentro dela mais uma vez.
Verônica fechou os olhos, as unhas cravadas em minha carne,
enquanto eu continuava a repetir os movimentos, segurando minha própria
excitação, sentindo seu canal quente e úmido se apertar contra o meu pau.
Suas pernas se enlaçaram em minha bunda, aumentando a profundidade da
penetração, e eu fechei os olhos. Estava quase perdendo o controle, quando
os abri e encarei seus olhos esverdeados.
Lembrei-me da primeira vez que a vi e do fogo que consumiu meu
corpo no pequeno resvalar de mãos.
Pela primeira vez em minha vida, tinha encontrado uma mulher
que não me desejava apenas pelo que eu podia proporcionar. Verônica
ficara ao meu lado nos piores momentos, sem nunca soltar minha mão ou
correr para longe.
Verônica
Eram pouco mais de sete da noite, quando as luzes de São Paulo
ficaram visíveis pela janela do avião.
Nicolas dormia ao meu lado. Rosto sereno e respiração tranquila,
já que finalmente os dias de paz haviam se sobreposto aos de guerra em
nossa vida.
Meus olhos estavam na janela, mas meu pensamento viajava mais
rápido que o Airbus em que estávamos. Tanta coisa havia acontecido em tão
pouco tempo que eu às vezes tinha dificuldade em traçar um plano de
futuro.
É, Ka... Acho que no fim das contas você tinha razão... — Cobri a
mão de Nicolas com a minha. — Planejar demais estraga toda a diversão!
— Sorri.
O que será que o papai diria, Ka? Se me visse agora... — Respirei
fundo.
O piloto avisou sobre os procedimentos de descida e Nico se
mexeu na poltrona, piscando forte e bocejando.
Quando abriu os olhos, encarou meu rosto por alguns segundos. Eu
nunca fui muito boa em dissimular emoções, então podia jurar que todos os
meus sentimentos estavam ali, explícitos em meu rosto.
— Tudo bem, corazón? — perguntou e eu aquiesci, mas não tinha
esperanças de tê-lo convencido.
Pousamos com um clima bom e temperatura agradável na cidade
em que eu havia nascido e vivido por quase toda a minha vida.
Caminhamos pelo grande corredor, cheio de passageiros, em
direção à imigração.
Eu ainda não entendia como Nicolas Huamán conseguia manter El
Condor em segredo, mas estava feliz em poder ter uma vida normal ao lado
dele, pelo menos às vezes.
Pegamos nossa bagagem e, assim que chegamos à saída, o
motorista contratado já esperava por nós.
Passei o endereço do meu velho apartamento e seguimos pelas ruas
movimentadas.
Eu não podia dizer que sentia falta de casa, desde que meus avós
venderam a casa em que eu havia crescido, com meus pais e Karina,
nenhum outro lugar foi realmente meu lar. Para ser sincera, eu havia vivido
como alguém sem raízes por tanto tempo que me sentia meio como uma
folha ao vento, sendo guiada pelo destino. Tinha esperança de que um dia
isso mudasse e eu pudesse chamar algum lugar no mundo de realmente
meu.
Girei a chave na porta e abri.
Lá dentro tudo estava exatamente do mesmo jeito, como se
nenhum dia tivesse passado e eu ainda fosse a policial Malta de sempre.
Nicolas caminhou a passos lentos para dentro, até abrir a cortina da
sacada e encarar a vista, nada atrativa, do meu pequeno apartamento de
segundo andar.
Caminhei por trás e o abracei.
— Sei que os condores voam bem alto, mas... — Dei de ombros e
mordi de leve, perto da sua omoplata.
Ele se virou devagar, os olhos castanhos brilhando com aquela
luxúria que sempre tinham. Lambeu o próprio lábio, bem devagar, como se
estivesse pensando nas próximas palavras.
— Por mim tudo bem, detetive... — Ia caminhando e me forçando
a dar passos para trás, guiada por ele, até que encostei na parede. —
Condores são capazes de voar baixo também, desde que a presa valha o
esforço...
Apoiou os braços na parede prendendo-me e aproximou o rosto do
meu pescoço, sentindo o perfume. Os lábios roçando minha pele sem
realmente tocarem.
— Tire a roupa... — as palavras eram carregadas de autoridade, os
olhos ainda faiscavam nos meus.
Obedeci, descendo a blusa de alças pelos ombros e deixando o
sutiã de renda branca à mostra. Depois abri o botão da calça e desci o zíper,
sem deixar de encará-lo. Conforme descia o jeans, esbarrei a mão nele,
sentindo a dureza da sua ereção. Meu corpo inteiro se arrepiou em
antecipação.
Não resisti, e assim que tirei a calça, permaneci ajoelhada ali, aos
pés dele. Soltei o cinto devagar, encarando seus olhos. Nicolas enlaçou meu
cabelo contra seu pulso, a boca entreaberta de desejo. Baixei a cueca e
aproximei o rosto do seu pau, umedecendo meus lábios e sentindo-o ofegar
em antecipação.
Sorri provocativa, sabendo que Nico não era a pessoa mais
paciente do mundo e, no minuto seguinte, meu cabelo foi puxado com
gosto, fazendo-me soltar um gemido de dor.
— Nem pense em não terminar o que começou, detetive... —
avisou.
— E quem disse que eu não ia... — perguntei taxativa, luxúria
brilhando em meu rosto.
Toquei os lábios em sua glande, correndo a língua pelo
comprimento, arranhando de leve com os dentes, até que ele gemeu e eu
soube que era o momento perfeito para continuar. Engoli seu pau, abrindo o
fundo da garganta para acomodá-lo, e comecei os movimentos, guiada pelos
comandos de Nicolas.
— Ah... Corazón... Se quiser me matar, está no caminho certo... —
confessou rindo, os olhos fechados e o corpo apoiado em minha mesa. —
Onde, Verônica... — sussurrou entrecortado. — Onde quer que eu goze?
— Na minha boca... — pedi, retornando ao que fazia.
— Hum... — gemeu mais alto e eu apertei as coxas, para diminuir
a necessidade que sentia dele ali, dentro de mim.
O jato veio forte e eu engoli de uma vez, sugando a última gota e
lambendo a glande inchada. Levantei e puxei sua boca para a minha. Queria
que ele também sentisse o gosto que eu sentia.
— Delicioso... — sussurrei. — Tudo de você é delicioso, amor...
Nicolas separou as bocas por um segundo, a mão grande apoiando
minha mandíbula.
— Repete... — pediu.
Levei um segundo para entender e, quando o fiz, sorri.
— Meu amor? — perguntei só de provocação. — É o que você, El
Condor...
Suas mãos desceram até minha cintura e ele me suspendeu, até que
eu enlaçasse minhas pernas ao seu redor.
Seguiu pelo corredor e me colocou na cama, deitando-se sobre
mim, o corpo encaixado no meu de um jeito tão perfeito e delicioso que eu
às vezes custava a crer que era real.
— Eu te amo, Verônica Malta... Como nunca achei que seria capaz
de amar alguém... Como nunca esperei...
Engoli em seco, sentindo aquela quentura boa se espalhar do meu
estômago por todo o corpo.
— Também amo você, Nicolas Huamán... Tanto que chega a doer
aqui... — Peguei sua palma e coloquei sobre o peito, em cima do coração.
Sua boca encontrou a minha e nada naquele momento podia ser
melhor do que tê-lo comigo ali, no lugar em que tantas vezes pensei que
ficaria sozinha para sempre.
***
Assim que o dia amanheceu, deixei uma mensagem para Nicolas
colada na geladeira e chamei um táxi. Queria chegar logo à delegacia, para
não ter que me despedir de todo mundo. Eu odiava despedidas.
— Bom dia, Verônica! — a policial que ficava no atendimento
cumprimentou e eu sorri de volta, meneando a cabeça.
O lugar parecia realmente vazio, nem Fábio estava por lá.
Caminhei até minha mesa e comecei a encher a pequena caixa de papelão
com os meus itens pessoais e lembranças que ficavam ali.
Fotografias de festas e reuniões, um porta-retrato do meu pai, a
suculenta que eu havia ganhado no restaurante em que almoçávamos, um
cachorrinho de gesso que fora presente pelo meu primeiro caso resolvido.
Uma a uma, as lembranças foram enchendo meu peito e embargando minha
garganta, até que eu precisei limpá-la. Não ia chorar.
Tudo na vida tem um começo e um fim, Verônica... E não é porque
algo termina que deixa de ser bom...
As palavras da minha mãe ecoavam em meus pensamentos, mas
pareciam ainda mais fortes e verdadeiras enquanto eu separava meus dois
bloquinhos novos de Post-its coloridos. Coloquei um na mesa da Vanessa e
outro na mesa do Roberto. Na primeira folha escrevi: “Para se lembrarem
de mim! Beijos, Verônica”.
No fundo da minha gaveta, estava uma moeda antiga. Fábio e eu a
usávamos no cara e coroa, sempre que precisamos decidir alguma tarefa. O
que a moeda decidisse, virava lei.
Sorri girando-a entre os dedos e depois caminhei até a mesa de
Fábio e a coloquei com o verso para cima, já que ele sempre era a “coroa”.
É, companheiro... Agora você assume... Sei que fará sempre um
trabalho maravilhoso e honrado, como as pessoas de bem merecem...
A primeira lágrima caiu sem que eu nem percebesse que estava
chorando. Tentei limpar a segunda, mas na terceira desisti. Estava mesmo
sozinha na sala, o que tinha de mais em sentir um pouco de tristeza pelo que
estava deixando para trás.
Peguei a caixa e segui pelos fundos, não queria sair pela porta da
frente e encarar o rosto das pessoas ali. A copa estava com as luzes
apagadas, mas, assim que bati a mão no interruptor, levei um susto tão
grande que quase derrubo minha caixa.
— Surpresa! — todos gritaram.
Havia uma grande faixa pregada no armário com a frase: “Seja
feliz e não olhe para trás!” em letras douradas. Era uma frase que sempre
dizíamos para quem saía da polícia. Não era um trabalho fácil e, por mais
amor que tivéssemos à profissão, o descanso era bem-vindo e merecido.
Um a um, meus colegas foram me abraçando e desejando as
melhores coisas. Nicolas havia feito um bom trabalho em apagar a sujeira
armada pela Yakuza, então eu era só a Verônica, policial civil, mudando de
rumo e aceitando um destino diferente.
A mesa de refeições estava cheia de salgadinhos e havia também
um bolo de chocolate branco com morangos. Todos começaram a comer e
conversar, até que Fábio se aproximou de mim.
— Venha até aqui... — chamou, indicando o caminho. — Tenho
uma surpresa de aposentadoria para você! — brincou.
Sorri de canto, acompanhando-o de volta até sua mesa. Ele abriu a
gaveta e me entregou uma pasta. Folheei, vendo o caso do meu pai e uma
série de outras folhas que eu ainda não conhecia. Eram registros telefônicos,
recibos e notas. Levantei o olhar, encarando-o sem entender.
— Vou reabrir o caso do seu pai... — Sorriu. — Finalmente
encontrei as provas de que precisava... — Suspirou. — A justiça finalmente
será feita!
Abracei-o tão apertado que quase o desequilibrei.
— Ah, Fábio... Nada me faria mais feliz! — confessei.
— Lembra o que eu disse no seu primeiro dia?
Aquiesci, sem conseguir responder. Lágrimas cheias de sentimento
descendo dos meus olhos.
Respirei fundo.
— Não importa o tempo que demore... Enquanto eu estiver aqui...
ninguém fica sem justiça!
Sorri, sentindo o choro aumentar.
— Obrigada, Fábio...
Meu amigo me abraçou apertado.
— Seja tão feliz quanto você merece e eu vou saber que fiz tudo
certo! — Beijou meu rosto carinhosamente. — Agora vá, querida...
Comprei aquelas coxinhas de mandioca de que você tanto gosta! —
Bagunçou meu cabelo de brincadeira, como sempre fazia. — Quero só ver
onde você vai encontrar mandioca em Cusco! Sabe que lá é a terra da
batata, não é? — brincou.
Passei o braço em sua cintura e caminhei com ele de volta para o
refeitório.
Talvez os finais certos tivessem mesmo o gosto doce do recomeço.
Eu não estava triste, tinha decidido minha mudança por vontade própria e
estava orgulhosa da minha carreira. Era hora de seguir em frente.
Nicolas
Logo que acordei, troquei minhas roupas e mandei uma mensagem
para Verônica avisando que iria encontrá-la na saída da delegacia.
Imaginava o quanto ia custar a ela encerrar aquela parte da sua vida.
Esperei pelo motorista e pedi que parasse em uma floricultura.
Desci e escolhi um belo buquê de flores, em tons de rosa e marsala. Voltei
para o carro e seguimos até o endereço que ela havia fornecido.
Fiquei parado ali na entrada, encostado no carro, até que ela
aparecesse. Verônica havia sido meu porto seguro nos últimos meses, sem
cobrar nada em troca, e eu queria que ela sentisse que tudo aquilo que eu
havia dito na cama era mesmo verdade.
Não demorou muito e ela apareceu, ao lado do ex-chefe e melhor
amigo. Carregava uma pequena caixa de papelão cheia do que,
provavelmente, havia sido sua vida, em muitos anos.
Sorriu assim que me viu e abraçou o amigo, demorando as mãos
em suas costas, como se deixá-lo custasse um pouco mais do que ela
gostaria.
Fábio se foi com um menear de cabeça. Não era como se fôssemos
nos tornar amigos, apenas tínhamos entendido que podíamos coexistir sem
que o outro estivesse em risco.
— Demorei muito? — ela perguntou aproximando-se de mim.
Virei-me de lado e peguei o buquê de flores pela janela aberta.
— O necessário, corazón... Ciclos são difíceis de encerrar, mas eu
espero que o recomeço valha a pena... — Ofereci-lhe as flores.
— Ah, Nico... São lindas, obrigada! — Aproximou o rosto para
cheirar.
Queria parecer forte, mas eu podia ver em seu olhar o quanto o dia
havia mexido com ela.
Abri a porta e a sinalizei para que ela entrasse. Assim que
ganhamos movimento, entrelacei nossos dedos.
— O que quer fazer, Srta. Malta? Estamos a sua disposição...
Alexandre e eu! — Ergui a sobrancelha em direção ao motorista.
Verônica suspirou, os olhos ainda no buquê de flores.
— Sei que vai parecer estranho, mas há um lugar a que eu gostaria
muito de ir...
Beijei sua têmpora.
— Diga o endereço, e vou com você...
Pouco tempo depois, paramos em frente a um muro pintado de
cinza e eu não demorei a entender o que ela pretendia.
Descemos os dois e seguimos lado a lado pela calçada, meu braço
em torno dos seus ombros protetoramente.
— Eu só estive aqui duas vezes... — confessou. — Uma quando os
deixei aqui e outra quando jurei me vingar...
Não respondi, entendia que era mais uma confissão para si mesma
do que uma conversa comigo. Limitei-me a ampará-la pelo caminho,
sentindo algumas das minhas próprias lembranças virem à tona...
Aquele era o tipo de lugar em que os maiores amores, as piores
dores e todas as culpas vêm à tona. Um lugar em que deixamos quem
amamos para sempre, e junto delas, um pedaço de nós mesmos.
Verônica parou em frente a uma lápide feita em mármore marrom e
soltou um longo suspiro.
“Ana e José Augusto Malta, filhos dedicados e pais amorosos” lia-
se em letras pretas, ao lado de uma fotografia dos dois. Baixei os olhos, as
mãos cruzadas na frente do corpo. Enquanto Verônica conversava com eles
em silêncio, deixei meu pensamento vagar.
Imagino que eu não seja nem de longe a escolha que o senhor
faria para sua filha, Sr. Malta, mas quero que saiba que farei o que puder
para mantê-la segura e fazê-la feliz... — Fiz o sinal da cruz e beijei a mão
fechada, como fazia sempre que terminava uma oração.
Verônica alisava a pedra fria com tanto carinho, que senti meu
coração apertar e toquei seu ombro com a palma aberta, acariciando-a
suavemente.
Quando ela voltou o rosto para o meu, estava sorrindo e eu fiquei
sem entender.
— Finalmente, Nico... Finalmente vou conseguir justiça! —
confessou e eu cerrei o cenho, ainda sem entender. — O Fábio... —
continuou. — Ele conseguiu as provas... Vai reabrir o caso do meu pai!
Abraçou-me apertado, a cabeça enterrada em meu peito. Apertei-a
forte, sentindo seu coração bater junto do meu. Eu entendia tão bem aquele
sentimento, que senti um pouco da sua felicidade também. Tinha feito
justiça pelo meu pai, como ela iria poder fazer pelo dela.
Deixamos o cemitério abraçados. O coração cheio de sentimentos e
saudades, mas nem todas elas eram ruins.
Voltamos para o apartamento já perto do final da tarde. Havíamos
cuidado de todos os detalhes para que ela pudesse deixar o Brasil
definitivamente.
Verônica tomou banho e vestiu uma das minhas camisetas, chegou
de mansinho, enquanto eu observava o movimento da rua, na pequena
poltrona da sacada.
— Vem aqui... — Bati em minha perna, esperando que ela se
sentasse. — Sabe o que eu mais amo em você, Srta. Malta? — Deslizei a
mão em suas pernas nuas, acariciando-as.
— Minhas coxas grossas e sensuais? — brincou. — Talvez meus
belos olhos esverdeados? — Coçou a boca, pensativa. — Ou seria minha
habilidade em sempre te surpreender com um palavrão diferente?
Ri alto.
— Tenho que confessar que é um excelente repertório, mas não!
— Nicolas se você disser que é minha boceta... — Levantou o
dedo em riste, fazendo-me rir mais.
— Sua coragem... — Deslizei o dedo em seu cabelo, brincando
com uma mecha. — Sua coragem, sua força... A maneira como nunca
desiste do que acredita... — Toquei meu nariz no dela, esfregando devagar.
— Você é incrível, Verônica Malta... A mulher mais incrível que conheci na
vida e a única que desejo ao meu lado, em todos os momentos...
Ela sorriu. Um sorriso tão genuíno que me fez querer confessar o
que sentia uma vez mais. As bochechas levemente coradas e os olhos
brilhando de amor e desejo.
Antes de conhecê-la cheguei a pensar que jamais encontraria
alguém com quem pudesse dividir de fato quem era, minha vida, meus
segredos, mas havia descoberto com um golpe do destino o que Tia Lupe
sempre dissera. Havia alguém certo para nós, não importavam as condições
ou as dificuldades, todo mundo tinha alguém que o completava.
Verônica
A tarde começava a cair, derramando aquela névoa densa e
avermelhada sobre a cidade que eu havia aprendido a chamar de lar.
Peguei minha bagagem de mão e o casaco, acomodando sobre o
antebraço. O pequeno aeroporto estava lotado de turistas indo e vindo, por
causa das festividades em honra a Pachamama.
Minha breve ida à Colômbia havia sido um grande sucesso.
Eu havia assumido algumas responsabilidades na administração
dos hotéis, o que significava muito tempo fora, mas também me deixava ter
a liberdade a que estava acostumada, sem grandes envolvimentos com o
cartel.
Segui o caminho da saída, assim que passei pela imigração. Não
tinha despachado bagagem e estava ansiosa para chegar em casa e encontrar
Nicolas esperando por mim.
Estava tão distraída com meus próprios pensamentos, que demorei
a perceber a presença do moreno alto próximo à saída.
Parecia ainda mais alto com o casaco longo sobre o terno escuro.
Barba aparada e cabelos penteados para trás, naquela pose de senhor do
mundo que ainda me fazia perder o fôlego. Assim que me viu, baixou um
pouco os óculos escuros e sorriu de canto.
— Nico! — Apertei o passo, abraçando-o por dentro do casaco, e
ele beijou o topo da minha cabeça.
— Cusco fica triste sem você, corazón...
Fiquei na ponta dos pés, os lábios procurando pelos dele, sentindo
sua língua se apossar da minha. Aquela era sua maneira de dizer que havia
sentido minha falta e eu retribuí, mostrando minha saudade também.
— Vamos? — perguntou depois que nos beijamos.
A viagem até a fazenda serviu para que colocássemos os assuntos
em dia. Nicolas havia aumentado a potência dos negócios e a inauguração
do novo resort de aventura em Cartagena ia de vento em popa. Ideia do
Martinez, com quem vínhamos estreitando laços cada vez mais.
Assim que descemos, avistando a casa e a planície em que ficava,
as luzes das tochas no gramado se tornaram visíveis.
— Você vai gostar da festa... Tia Lupe está ansiosa para mostrar a
você um pouco mais da nossa cultura.
Entrelacei nossos dedos.
— Também estou interessada em aprender, afinal de contas estou
namorando um descendente direto do inca, não é mesmo? — brinquei.
Nico sorriu, levando nossas mãos juntas até seus lábios e beijando
suavemente.
Estacionamos em frente a casa e eu desci rápido, empolgada com a
decoração colorida de bandeirolas e fitas.
— Nico! Verônica! — Maribel gritou. — Que bom que chegaram!
Madrecita parece que vai ter um treco! É sério, primo... Você nem imagina!
Nicolas sorriu, beijando a bochecha da garota, mas não teve tempo
para dizer nada, Guadalupe apareceu.
— É que este ano temos mais ainda a agradecer, pequeñita! Meus
meninos renasceram... — Bateu no rosto de Nico suavemente. — E
ganhamos Verônica! — Passou o braço em torno dos meus ombros. —
Achei que nenhum de vocês iria finalmente se acertar e, vejam só, ainda há
esperança para o mundo! — brincou e acabamos rindo. — Vá tomar uma
ducha, querida! Vocês dois ainda estão com poeira da viagem, precisam se
purificar! — Bateu de leve em minhas costas.
Pegamos nossas malas e seguimos para dentro da casa, rumo ao
quarto de Nicolas. Assim que ele abriu a porta, o perfume de alfazema
invadiu meus sentidos. Lençóis de cambraia macios e a manta de lã de
alpaca eram um convite a nunca mais sair da cama. Joguei-me sobre ela.
— Acho que poderia dormir aqui por uns dias seguidos —
comentei.
Nicolas tirou o casaco e começou a soltar a gravata. Aquele ar
elegante e terrivelmente erótico que emanava dele me fez morder o lábio.
— Pensando bem... Dormir não é exatamente a palavra...
— É mesmo? — Atirou a camisa sobre a cama, bem ao meu lado,
exibindo a tatuagem no peito. — E qual é a palavra então, detetive? Foder?
Trepar? Como é mesmo que vocês dizem? Comer... Uma dessas palavras se
encaixa?
Abriu o cinto deixando-o pendurado na calça e soltou o botão, sem
abrir o zíper. Meus olhos percorreram o caminho de pelos aparados em sua
barriga, até abaixo do umbigo, perdendo-se no volume da cueca.
Lambi os lábios sedenta por ele, mas resolvi dar o troco na mesma
moeda. Levantei-me e comecei a abrir os botões da camisa branca. Tinha
escolhido um belo conjunto de lingerie de renda, porque sabia que ele iria
ver.
— Primeiro... Não sou mais detetive, Sr. Huamán... Segundo... —
Soltei o botão e o zíper, deixando minha calça cair aos meus pés, mostrando
a calcinha. — Se quiser me comer... — Colei meu corpo no dele, as mãos
escorregando pelo peito nu, até que meus dedos seguraram na beirada da
cueca e eu fiquei na ponta dos pés. — Vai ter que fazer valer a pena.
Nicolas me segurou pela cintura, arrastando com ele até o
banheiro. Ligou o chuveiro e se livrou da minha camisa. Mordeu meu
mamilo, enquanto soltava o fecho do sutiã, ainda sobre a renda, fazendo-me
arfar. A lateral final da calcinha foi rasgada com tanta pressa que eu senti o
golpe do tecido queimar minha pele e tinha certeza de que ficaria com um
belo vergão ali.
Colocou-me sentada sobre a bancada da pia e abriu minhas pernas.
Não tive nem tempo de pensar, sua língua invadiu meu sexo com ferocidade
e destreza. Soltei um gemido abafado, sem conseguir segurar.
— Shhhhhh! Ou todos vão saber o que estamos fazendo aqui...
Engoli em seco o próximo gemido, agarrada em seus cabelos,
sentindo sua língua circular e chupar meu clitóris.
— Ah, Nico... Que saudade eu senti de você... — confessei, mas
ele não parou. — Ah... — gemi baixinho, sentindo a onda de prazer se
espalhar com tanta força que nem senti quando ele me penetrou,
bombeando sem parar.
Cravei as unhas em suas costas, a boca em seu pescoço. A vontade
de gemer alto era quase insuportável.
Nicolas segurou meu queixo sem gentileza, aquele olhar de
ferocidade e tesão brilhando em seu rosto bonito.
— Está valendo a pena, corazón? — perguntou com a voz
arrastada de prazer, respiração entrecortada e suor escorrendo na têmpora.
Mordi o lábio, antes de puxá-lo para um beijo molhado e intenso.
Sabia bem o quanto ele era vaidoso e orgulhoso, meu comentário não ia sair
barato.
Quando finalmente nos afastamos, eu mal conseguia me manter em
pé, mas não conseguia tirar o sorriso do rosto.
— Você é terrível, Nicolas Huamán, seu metido! — Bati com a
toalha de rosto nas costas dele.
— Não gostou? — perguntou presunçoso, cheio de empáfia.
— É claro que gostei! Você sabe bem disso! — Ergui a
sobrancelha.
— Valeu a pena? — debochou e eu comecei a rir, depois ele riu
também. — Anda, corazón, vamos tomar banho...
Depois de seca, eu coloquei uma saia longa marrom e um suéter de
lã bege-claro. A noite estava quente, mas a brisa fria do altiplano deixava
aquele clima geladinho de fim de inverno.
Nicolas abriu o armário, pegou uma calça de linho cru e uma
camiseta branca. Eu nunca o tinha visto com a roupa toda clara daquele
jeito e menos ainda com os pés descalços, então estranhei.
— Sou o chefe da família, corazón, eu faço as oferendas... —
Esboçou um sorriso orgulhoso.
Nicolas
Estendi a mão esperando que ela a cobrisse com a sua.
Eu nunca havia trazido ninguém de fora para participar das festas
tradicionais em minha família. Ninguém além de Nacho, que era para mim
como um irmão, conhecia nossas tradições e ritos, mas com Verônica era
diferente. Eu queria que ela fizesse parte da minha vida, de verdade e para
sempre.
Caminhamos de mãos dadas até o jardim dos fundos, onde todo o
cerimonial havia sido preparado. Para nós, em nossa cultura, aquele era o
dia mais importante do ano. Dia de agradecer a nossa mãe Terra, pela
colheita, proteção, e pelos dias que havíamos tido a felicidade de viver
sobre ela.
Assim que pisei na grama, Nacho veio até mim com o xale preto
de bordados coloridos na barra e jogou sobre meus ombros. Trocamos um
olhar de entendimento. Daqueles que só amigos de verdade podem trocar.
Guille colocou a coroa de folhas de coca em minha cabeça e eu
segui em frente, até o buraco cavado no chão, onde colocaríamos o que
representava nossa gratidão.
Milho, batatas e folhas de coca, que haviam sido colhidos na
fazenda, além de mel e chicha. Depois cobrimos com terra e flores. Quando
ergui os braços em direção ao céu, agradecendo pela noite e pela luz da lua
e das estrelas, todos aplaudiram e eu me virei para ver Verônica sorrindo,
em um canto afastado do jardim.
— Nossa... — Alargou o sorriso. — Isso foi lindo, Nico... Nunca
pensei que...
— Um cara como eu soubesse agradecer? — perguntei
provocativo.
Ela ficou sem reação, conforme eu ia me aproximando dela.
— Sei agradecer, corazón... E sei pedir também...
Parei em sua frente, os olhos perdidos nos dela, sem querer desviar.
Estava nervoso, o coração acelerado e a boca seca, mas tentei manter minha
boa pose de mafioso arrogante, só de provocação.
Enfiei a mão no bolso da calça e peguei a caixinha que havia
escondido ali, enquanto ela se arrumava. Abri a caixa mostrando o anel de
platina e turquesa, rodeado por desenhos geométricos incas. Era único e
cheio de significado, como ela era para mim.
Verônica não disse nada, mas uma pequena lágrima desceu dos
seus olhos, rolando pela pele clara até a bochecha.
— Quero que seja minha, Verônica... — pedi. — Para sempre...
Mais uma lágrima rolou e então ela estendeu a mão, para que eu
deslizasse o anel em seu dedo. Quando terminei, segurou minha mão junto
a sua e beijou suavemente, antes de descer até perto da cintura. Acomodou
ali, minha palma contra sua barriga, e sorriu.
— Eu já sou, Nico... Estamos unidos aqui... Para sempre...
Levei um segundo para entender o que significava e,
provavelmente, minha expressão me denunciou. Verônica sorriu e eu a
apertei junto a mim novamente. A garganta fechada de emoção, sem
conseguir soltar uma palavra sequer.
— Te quiero, corazón... — sussurrei junto a sua orelha, acariciando
sua têmpora com a ponta do nariz
Os fogos de artifício estouraram e todos gritavam e dançavam ao
som do huayno, mas eu nem queria me mover. Sentia como se, pela
primeira vez, tudo em minha vida estivesse no lugar perfeito. Sem nenhuma
rachadura, ou fresta, completo, inteiro e feliz.
Fim
Um pouquinho do que vem por aí...

Roterdã, algumas semanas depois...

— Acha que sou idiota? — A mulher espalha o jornal sobre a


mesa, batendo o indicador nas folhas de papel. — Que tipo de jogo doentio
acha que está fazendo?
Caminhando de um lado para o outro do escritório, sua postura é
altiva e, apesar de estar de frente para um dos maiores chefes do crime
organizado no mundo, não demonstra medo algum.
Alisa os cabelos para trás e solta uma lufada de ar, tão profunda
que os ombros cedem arqueando suavemente.
O homem atrás da mesa encara a notícia por um segundo, depois
levanta-se devagar, coçando a barba por fazer. O cigarro que descansava
aceso sobre o cinzeiro deixa seu lugar para encontrar os lábios entreabertos.
Um trago longo e sem pressa alguma.
De repente, a mão grande e cerrada em punho encontra a madeira
escura em um baque surdo, fazendo a mulher parar o caminhar.
— Por que acha que eu tenho algo a ver com isso? — Estreita os
olhos azul-claros, cheios de empáfia.
A mulher esboça um sorriso provocador.
— Não se faça de bobo, Veighe... Sei bem quem está por trás dos
seus carregamentos de ópio...
— Sabe muito do submundo para quem trabalha em uma
organização humanitária, não acha, doutora?
O homem caminha ao redor, cigarro aceso na mão e olhar incisivo.
A mulher sustenta sua provocação, dentes cerrados segurando o
rosnado que gostaria de dar.
— Se não está mais interessado em acabar com o esquema, eu
obviamente não tenho o que fazer aqui... — Ajeita a bolsa sobre o ombro,
dando-lhe as costas e seguindo em direção à porta.
— De que esquema exatamente estamos falando, doutora? — a voz
baixa e gutural do homem silencia o som dos saltos sobre a madeira do
chão. — Meus negócios? Ou os da Yakuza?
A mulher não se move por alguns segundos.
— Se precisa dos meus serviços, deveria ser um pouco mais
dócil... Sabe que não tenho disposição para brigas desnecessárias... E
deveria saber também que eu jamais me associaria a um filho da puta
desgraçado como Seiji Matsuya... Se ele escapou do inferno, não foi com a
minha ajuda...
A mulher vira-se cautelosamente, sabe que pisa em terreno
perigoso. Respira fundo, soltando o ar dos pulmões de uma vez.
— Erik, eu... — Engole as desculpas que não consegue pedir.
— Não ajudei o japonês a fugir do Peru... Para ser sincero, o que
eu mais queria era que ele tivesse mesmo virado comida de tubarões!
O homem apaga o que restava de cigarro, apertando sobre o cristal
do cinzeiro.
A advogada desliza as mãos da testa para os cabelos cacheados e
solta mais uma vez o ar dos pulmões.
— Quando vai a Singapura? — pergunta com a voz contida,
oferecendo uma pequena trégua.
— Amanhã ao cair da tarde... Tenho assuntos importantes a
resolver antes da inauguração... — o homem explica.
— Sabe que seu negócio estará no radar... — a mulher avisa.
— Nunca fui de me esconder nas sombras, não pretendo começar
agora..., mas se me permite dizer, doutora... Nesse tabuleiro, Nakai e
Matsuya parecem mais peões do que jogadores...
— E qual é o seu palpite? — pergunta preocupada.
— Ainda não sei..., mas acredite... Vou descobrir!

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