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Two Spirit Como Critica Colonial
Two Spirit Como Critica Colonial
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REVISTA DE ESTUDOS E PESQUISAS SOBRE AS AMÉRICAS VOL.11 Nº 1, 2017
americanos de pessoas com dois espíritos, quais categorias como colonialismo, poder, raça e
masculino e feminino. Essas lideranças se viam saber foram e são operacionalizadas. Podemos, por
então diante do desafio de se consolidar como exemplo, compreender a ausência de um
grupo autônomo e com agenda própria, estando à movimento homossexual indígena organizado no
margem dos movimentos indígena e LGBTIQ2. Brasil, a partir das perspectivas two-spirit? De que
Como veremos, o movimento indígena não lhes forma esses processos nos permitem alcançar as
dava espaço, por serem homo/bi/transexuais; fraturas do processo de colonização,
tampouco o movimento LGBTIQ lhes dava voz, compreendendo as políticas indigenistas como
por serem indígenas. Mais recentemente, contudo, parte de um complexo de dispositivos de
várias obras de autores e ativistas two-spirit vêm normalização e heteronormatização da vida
sendo publicadas e parte considerável dos Estados indígena, em todos os seus aspectos?
Unidos e Canadá contam já com organizações two- Essa discussão será retomada adiante, mas,
spirit. desde já, nos parece importante estabelecermos
Se a literatura recente produzida no Brasil que a ausência de um movimento two-spirit
vem incorporando algumas de suas reflexões para brasileiro, nos moldes dos Estados Unidos, seja
melhor compreender as sexualidades queer no reflexo de – e se reflita em – relações de poder
contexto indígena brasileiro (por exemplo, específicas estabelecidas não apenas dentro das
Fernandes, 2015), uma análise de suas possíveis aldeias mas no âmbito de zonas de interstício:
contribuições para a compreensão e crítica do espaços discursivos de disseminação de
aparato normalizador/colonial é algo ainda a ser identidades e resistências às categorias coloniais.
feito. Nosso objetivo é, além de recuperar o Nosso argumento, seguindo o raciocínio de
pensamento two-spirit como crítica colonial, diversos intelectuais e escritores two-spirit, é o de
buscar aqui, mesmo que preliminarmente, apontar que a atualização dessa identidade não pode ser
algumas das possibilidades de análise do contexto compreendida fora do contexto colonial, ainda em
indígena homossexual brasileiro, partindo das curso. Assim, para compreendermos a emergência,
reflexões two-spirit. Desta forma, nosso intuito ou não, de movimentos indígenas homossexuais,
aqui será o de trazer sua perspectiva a respeito faz-se necessário buscar entendê-los não apenas
destes processos, de modo que eles saiam da enquanto demandas de gênero ou sobre o corpo mas,
eventual condição de objeto de pesquisa e passem sobretudo, como fenômenos políticos relacionados à
a fornecer, por meio de suas experiências e forma como sua relação com o Estado, com os
perspectivas, o deslocamento epistêmico próprios indígenas e com a sociedade envolvente se
necessário para compreender os processos pelos mantém.
2
As ponderações do ativista Cherokee, Qwo-
Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transgêneros,
Transexuais, Intersexuais e Queer. Vale notar que alguns Li Driskill vão nesse sentido:
intelectuais, ativistas e estudiosos cada vez mais vêm
incorporando à sigla os two-spirit, resultando na sigla
LGBTIQ2.
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seguiu sobre os rumos a serem tomados naquele sempre o caso de muitos indígenas LGBT
urbanos que deixaram suas reservas e famílias
encontro certamente merecem um espaço aqui. por conta da vergonha ao ser dito que ser
LGBT é errado e isso não é ser indígena. Como
Após a convocação, um indígena do Leech líder de uma organização Two-Spirit, é uma
missão criar um lugar seguro para
Lake Band ofOjibwe (Minnesota), sintetizou um companheiros que veem o termo/identidade de
desabafo que, de uma forma ou de outra, é Two-Spirit como aquela que afirma sua
orientação sexual e/ou de gênero E sua
relativamente comum nas várias comunidades e identidade nativa. Mas isso é apenas metade da
jornada. A partir daí trata-se de mostrar a esses
fóruns virtuais two-spirit: mesmos indivíduos a rica história que existia
em muitas de nossas nações antes do contato,
que honravam e respeitavam seus “two-spirit”
É só uma sugestão. Fui a alguns desses (uma vez mais poderíamos também usar uma
encontros e os achei bem tediosos. Eu não das centenas de palavras e nossas próprias
preciso viajar milhares de milhas para ver linguagens no lugar do termo “two-spirit”).
algumas pessoas dançando em volta de um Posso lhe relatar poderosas experiências que
tambor. Eu quero algo que possa levar dos tenho testemunhado nos eventos como o
encontros e reuniões. Gostaria de ver algum Encontro que o NE2SS está preparando. Tome
tipo de treinamento sendo oferecido: ou então como exemplo o jovem gay Sioux que
uma direção sobre como eu posso trazer compareceu ao nosso último encontro. Ele
mudança social na minha comunidade, havia dado as costas à sua própria cultura por
prevenção ao suicídio entre jovens indígenas e ser gay e se mudou para a cidade de Nova
buscar dar a eles um programa que combata o Iorque. Ele fez isso porque alguns de seus
suicídio, transformar questões indígenas em familiares e muitos de seus amigos viraram as
questões políticas para os atuais e futuros costas para ele por ele ser gay. Como resultado
candidatos políticos, prevenir o bullyingda de sua vinda ao encontro, ele abraçou sua
juventude LGBT. Acho que se vamos a esses identidade two-spirit, sua identidade
encontros eles tem que evoluir para algo que wintke[palavra Lakota para referir-se a uma
desenvolva as habilidades daqueles presentes. categoria social two-spirit]. Agora ele está
Deveríamos ter oficinas para aconselhamento, trabalhando em sua indumentária para grass-
etc. Essa deve ser a razão porque eu gostaria de dance para o próximo encontro (...). Hoje ele
gastar dinheiro para estar presente em um sabe que ele não escolheu entre ser gay ou
encontro, mais do que apenas para ver outros indígena – ele é wintke/two-spirit, uma
como eu. Eu posso ficar em casa e fazer isso. identidade que condiz integralmente com seu
(Tradução livre) ser. Eu mal posso esperar até nosso próximo
encontro para vê-lo dançar em nosso Pow-
À longa discussão que se seguiu, destaco Wow. São histórias como estas e muitas outras
que me motivam a fazer o que eu faço por
aquela manifestação escrita pelo representante da minha comunidade. (Tradução livre)
NE2SS, responsável pela organização do Encontro
Neste longo trecho ficam claros já dois
– mesmo personagem que surge no início desta
pontos, devidamente destacados aqui, mas que
seção ao qual retornaremos em seguida:
seriam recorrentes na conversa que houve entre
(...) concordo que o tambor e alguns outros essa liderança e eu, naquele verão nova-iorquino.
itens como a maraca são a batida do coração de
nossa cultura e a dança e alguns outros gestos e O primeiro ponto é o aspecto sagrado
movimentos trazem vida à nossa cultura. Isso
reivindicado pelos two-spirit. Nesse sentido, meu
dito, espero que tenha sido fácil reaver o que
nos foi tirado pela colonização. Eu também sei interlocutor lançou mão da medicine wheel em sua
que a colonização segue bem e viva com a
estratégia de dividir e conquistar, sendo nós explicação: trata-se de uma representação
mesmos por vezes nossos piores inimigos:
“encontros são tediosos”, “tambor vs. maraca”, simbólica utilizada por alguns povos indígenas dos
“indicando não-indígenas para posições de
liderança como Agentes Indígenas – para falar Estados Unidos e Canadá para diversos conceitos
em nosso nome”... há inúmeros exemplos. Eu
espirituais, também chamada de SacredHoop(Arco
também tenho um período difícil percebendo
como os encontros podem ser chatos. É quase Sagrado).
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Francisco (National Center for LesbianRights), indígena por meio de linhas de crédito e demandas
elas conseguiram reverter, em janeiro de 2006, a territoriais. Dessa maneira, as decisões Cherokee e
decisão, utilizando-se do argumento de que o Navajo, mencionadas aqui, no sentido de não
Conselho não refletia a visão tradicional dos permitir tais uniões, teriam algo a dizer no tocante
Cherokee, mas, antes, valores cristãos e europeus. às “formas como a heteronormatividade contribui
Uma consequência disso foi um aumento no para a construção das perspectivas ideológicas
número de etnias – como os Navajo, por exemplo – dominantes da legitimidade política [...]; ao papel
proibindo casamentos entre indivíduos do mesmo dos discursos sobre sexualidade na política
sexo como forma de impedir novos pedidos. Entre indígena [...]; sobre a matriz complexa de
os Cherokee, especificamente, a decisão contrária privilégios sexuais, imperiais e raciais” (p. 5). Para
ao reconhecimento da união de pessoas do mesmo isso, os autores propõem transformar os estudos
sexo se mantém, sendo o reconhecimento da união indígenas não mais em objeto, mas em
de Reynolds e McKinley um caso específico, dado metodologia, redirecionando nosso pensamento, de
que a decisão do Conselho não poderia retroagir modo a perceber como a “civilização” imposta
sobre a petição apresentada pelo casal – lembro aos pelas ideologias coloniais se liga estreitamente a
leitores que os Navajo e Cherokee citados aqui são estruturas heteronormativas de família e trabalho
as duas maiores populações indígenas nos Estados (p.15).
Unidos, possuindo, juntas, mais de 1.000.000 de Esse conjunto de provocações seria
indivíduos (dados do USCensus, 2000). Dessa devidamente enfrentado em Driskill, Finley, Gilley
maneira, as críticas two-spirit não são apenas e Morgensen (2011): a heteronormatividade é um
compreendidas no âmbito da luta contra a projeto colonial, e a descolonização dos
homofobia nativa, mas também a partir de um conhecimentos indígenas de gênero e sexualidade
lugar de enunciação no qual essa homofobia é vista são um resultado das críticas queere two-spirit.
como produto da colonização. Nesta perspectiva, Neste sentido, os conhecimentos indígenas seriam
essas críticas são, em seu cerne, críticas ao próprio uma base - metodológica, não ideológica - para a
sistema colonial. teoria social, interrompendo a autoridade colonial
Isso fica ainda mais evidente ao seguirmos sobre o conhecimento (p. 3). Os autores se
a análise que Justice,Rifkin e Schneider (2010) remetem, para situar as críticas two-spirit como
fazem a partir das decisões tomadas pelos descolonização metodológica, ao livro de Linda
Conselhos Navajo e Cherokee no percurso Tuhiwai Smith, DecolonizingMethodologies, sobre
sintetizado acima. Nesse texto, os autores buscam o qual trataremos mais à frente. Neste livro, a
relacionar a legislação mais recente nos Estados autora:
Unidos - a qual avançou nas formas de
Critica a autoridade colonial convocando os
reconhecimento legal de casais do mesmo sexo-; povos indígenas a criar conhecimentos
distintos, tanto no que é dito quanto em como
com a redução nos contornos da soberania se diz. Para Smith, “metodologias indígenas’
representam o trabalho intelectual os povos
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indígenas podem começar a estudar de modo a governo colonial. As atuais lutas das nações
descolonizar tanto o conhecimento quanto os indígenas devem questionar e desafiar sua
métodos para produzi-lo”. [...] Uma guinada relação com pessoas LGBTQ2. Como muitos
metodológica voltada aos conhecimentos de nossos autores defendem, ao romper
indígenas tornam acessível valorizar a sistemas colonialmente impostos e
multiplicidade, complexidade, contestação e internalizados de gênero e sexualidade, as
mudança entre as reivindicações por críticas queer e two-spirit podem mover
conhecimento dos povos indígenas. movimentos descoloniais para fora das lógicas
(DRISKILL et al, 2011, p. 4) (Tradução livre) dominantes e narrativas de “nação”.
Convidamos acadêmicos, ativistas e artistas a
Dessa maneira, as críticas two-spirit imaginar o que as críticas indígenas queere
two-spirit podem fazer para interromper o
constituem um contraponto à representação colonialismo externo e internalizado, o
heteropatriarcado, os binarismos de gênero, e
colonial, pondo em evidência sua produção em outras formas de opressão. (DRISKILL et al,
2011, p. 17-19) (Tradução livre)
termos de relações de poder. O two-spirit assim,
deixa gradualmente de ser percebido como uma O autor que melhor parece avançar no
identidade pan-indígena pautada em sexualidades sentido de formular o two-spirit enquanto crítica
ou mesmo em um papel social sagrado, passando a colonial é, justamente, Qwo-Li Driskill, ativista
se constituir em uma crítica teórica e metodológica two-spirit, Cherokee e, atualmente, professor na
à grande narrativa advinda da colonização. Trata- Universidade do Estado do Oregon.
se de expor feridas abertas pelo processo de Suasideiassãomaisclaramenteexpostas e
colonização, não apenas visto como algo ocorrido desenvolvidasemdoisensaios: “Stolen from our
em um passado histórico, mas em relações atuais e bodies: First Nations Two-Spirits/Queers and the
presentes tanto no relacionamento dos two-spirit Journey to a Sovereign Erotic” (2004); e
com a sociedade envolvente quanto em suas “Doubleweaving: Two-Spirit critiques – Building
próprias culturas. alliances between Native and Queer Studies”
Neste caminho, chega-se a uma formulação (2010).
interessante do que o two-spirit representa, quando No primeiro texto, Driskill aponta como a
acionado enquanto discurso e método recuperação de suas sexualidades, enquanto povos
descolonizante: indígenas, está inter-relacionada com as feridas e
traumas históricos e com o processo de
No nível da comunidade, two-spirit veio a ser
usado diversas vezes para referenciar os descolonização em andamento. Neste sentido, ele
fundamentos históricos da diversidade sexual e
de gênero nas sociedades indígenas da América
lança mão da ideia de “soberania erótica”
do Norte, uma interligação contemporânea de (sovereignerotics) para referir-se à “totalidade
gênero, sexualidade, espiritualidade e papeis
sociais, ou uma crítica do heteropatriarcado em erótica curada e/ou em processo de cura do trauma
comunidades nativas e não nativas. É nos
termos do uso comunitário e sua crítica do histórico ao qual os povos indígenas continuam a
heteropatriarcado que encontramos nossa
inspiração para reacender seu poder como sobreviver, enraizada nas histórias, tradições e
ferramenta analítica [...] Este livro convoca
acadêmicos e ativistas a prestar atenção para as
lutas pela resistência de nossas nações”
formas pelas quais a heteronormatividade – a (DRISKILL, 2004, p. 51).
normalização e privilégio da
heterossexualidade patriarcal e suas expressões Neste espírito de uma soberania erótica,
sexuais e de gênero – mina as lutas pela
descolonização e soberania e eleva o poder do Driskill traz sua definição do termo two-spirit:
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trata-se de uma “palavra que resiste às definições professores e pela televisão: a descolonização das
coloniais de quem nós somos. É uma expressão de sexualidades, rumo a uma soberania erótica, passa
nossas identidades sexuais e de gênero como necessariamente por “desmascarar os espectros de
independentes (sovereign) daquelas dos conquistadores, padres e políticos que invadiram
movimentos LGBT brancos” (p.51). Em que essas nossos espíritos e mentes, insistindo em dizer que
identidades se diferem daquelas, dos movimentos eles estão disponíveis, e começar a cuidar das
não-indígenas? O autor responde a isto adiante: feridas abertas deixadas pela colonização em nossa
carne”.
Eu menciono minhas experiências com trauma
neste ensaio porque agressão sexual, sexismo, Em seu outro texto (Driskill, 2010), o autor
homofobia, e transfobia estão enredadas com a
história da colonização. Agressão sexual é um postula de forma ainda mais clara a agenda
ato explícito da colonização que teve enormes
impactos tanto nas identidades nacionais
descolonialtwo-spirit, vindo a formular o que
quanto pessoais e devido às suas conexões com entende por tal descolonização, baseando-se
a mentalidade colonial, pode ser compreendida
como uma forma colonial de violência e sobretudo nas ideias de Linda Smith (já citada
opressão. […] O processo de traduzir o que é
ser two-spirit com termos das comunidades aqui) e da feminista chicana Emma Pérez, a quem
brancas se torna muito complexo. Não sou
necessariamente queer, em contextos retornaremos adiante. Segundo ele, os two-spirit
Cherokee, porque diferenças não são vistas da
mesma maneira como se estivessem em estão afirmando perspectivas nativo-centradas
contextos Euroamericanos. Não sou e tribais específicas de gênero e sexualidade
necessariamente transgênero em contextos como uma forma de criticar colonialismo,
Cherokee, porque sou simplesmente o gênero queerfobia, racismo e misoginia como parte
que sou. Não sou necessariamente gay, porque das lutas descoloniais. [Eles] compartilham
essa palavra apoia-se no conceito de homens- experiências sob regimes coloniais patriarcais e
amando-homens, e ignora a complexidade da polarizadas de gênero para buscar controlar as
minha identidade de gênero. É somente dentro nações indígenas. Essas experiências dão
dos rígidos regimes de gênero da América origem às críticas que posicionam os gêneros e
branca que eu me torno Transou Queer. sexualidades two-spirit/LGBT nativos como
Enquanto homofobia, transfobia e sexismo são opostas aos poderes coloniais. Necessário neste
problemas em comunidades nativas, em muitas processo são críticas tanto da natureza colonial
de nossas realidades tribais essas formas de de muitos movimentos LGBTQ nos Estados
opressão são o resultado da colonização e Unidos e a queer-/transfobia internalizada
genocídio que não aceitam mulheres como pelas nações indígenas. As críticas two-spirit –
líderes, ou pessoas com gêneros ou através da teoria, artes e ativismo – são uma
sexualidades extra-ordinários. Como nativos, parte de movimentos descoloniais radicais mais
nossas vidas e identidades eróticas tem sido amplos. Descolonização na maior parte dos
colonizadas juntamente com nossas terras Estados Unidos e Canadá é um processo muito
natais. (pp. 51-52) (Tradução livre) diferente dos movimentos de descolonização e
pós-coloniais em outras partes do mundo. Ao
A colonização da sexualidade, prossegue usar o termo descolonização, estou falando de
resistência radical, em curso, contra o
ele, se dá pela internalização dos valores sexuais colonialismo que inclui lutas por reparação
da cultura dominante, sendo as sexualidades fora territorial, auto-determinação, cura de traumas
históricos, continuidade cultural e
do modelo dicotômico vistas como algo ilícito e reconciliação. Eu não vejo descolonização
como um processo que termina
pecaminoso, esvaziado de seu conteúdo espiritual necessariamente nos estados “pós-coloniais”
claramente definidos no sul da Ásia, na África
(p. 54). Tal opressão e imposição desses valores e em outras partes do mundo (DRISKILL,
2010, p. 69) (Tradução livre)
não se dão, segundo Driskill, somente por meio de
soldados e missionários, mas também pelos
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A partir do trecho citado, em relação à uma luta contínua entre múltiplas formas de
discussão desenvolvida aqui, cabe-nos salientar [in]diferença.
alguns pontos. Em primeiro lugar, a perspectiva de Muitas destas ideias aparecem, como já dito
que o colonialismo não seja uma página virada na aqui, nos textos de Linda Smith e de Emma Pérez,
história desses coletivos. Neste sentido, vários ambas referenciadas por autores two-spirit, como
destes autores demonstram resistências tanto à Driskill e Morgensen, por exemplo.
literatura pós-colonial (por não concordarem com a Linda Tuhiwai Smith, escritora Maori e
perspectiva de que o colonialismo tenha chegado professora na Universityof Auckland, escreve em
ao fim), quanto ao queer(moldado e pensado a seu Decolonizingmethodologies: researchand
partir da sociedade branca, sem incluir, em suas Indigenous people(2008) como a pesquisa é um
discussões, maiores problematizações sobre o lugar de luta entre as formas de conhecimento
projeto colonial). Desta forma, se nos séculos ocidentais e as formas de conhecimento dos
anteriores, como vimos até aqui, os indígenas “Outros” (p. 2). Neste sentido, partindo de autores
queer sofriam todo o tipo de perseguição, como Edward Said, AshisNandy, Albert Memmi e
assassinatos de jovens indígenas LGBTQ2 como Frantz Fanon, a autora assume que tal
Fred Martinez (Navajo, 2001), Amy Soos empreendimento é impossível sem que haja uma
(Pima/Maricopa, 2002), AlejandoLucero (Hopi, análise do imperialismo, que permita compreender
2002), Ryan Hoskie (Navajo, 2005), dentre tantos as formas complexas a partir das quais a
outros, são apontados pelos two-spirit como claro construção do conhecimento se inscreve nas
sinal de que as relações pautadas pelo colonialismo práticas coloniais e imperiais (loc. cit.). Assim, a
seguem em curso. Em segundo lugar, a postura das formação de um campo discursivo do saber sobre
críticas two-spirit é reflexo de (e se reflete em) os “Outros” estaria necessariamente atrelada à sua
uma postura de descolonização sexual, subjugação por meio da expansão econômica,
cosmológica, epistemológica e política em relação unilinear e a partir de uma ideia de
não apenas à sociedade envolvente, mas no tocante realização/conquista. Destaco aqui a visão crítica
às suas próprias culturas. Neste sentido, a narrativa da autora no tocante à História, enquanto narrativa
two-spirit se pretende um discurso de resistência, totalizante e etnocentrada: há, segundo ela, na
chamando a atenção para como o colonialismo em visão Ocidental da história, um projeto atrelado às
curso molda as relações de poder, gênero, perspectivas imperiais/coloniais sobre o Outro, por
conhecimento e familiares em suas próprias trazer, em sua longa narrativa, uma ideia
comunidades. Neste sentido, o próprio termo two- subjacente de progresso e desenvolvimento 9. Tal
spirit é, em si, uma crítica, por chamar a atenção narrativa coerente, patriarcal e construída em
para como a terminologia colonial é limitada, ao termos binários, objetifica os Outros,
lidar com este tipo de fenômeno social. Trata-se de desumanizando-os e mantendo-os à margem de
9
Para uma crítica desta grande narrativa, cf. Dussel, 2005.
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suas próprias histórias, tirando-lhes a agência de Neste sentido, não há, na literatura
transformar suas próprias narrativas e produzida pelos ativistas e autores two-spirit,
conhecimentos. grandes espaços dedicados a examinar esta ou
A outra autora mencionada, Emma Pérez, é aquela ação, ideologia ou política, especificamente,
professora da Universityof Colorado Boulder e a não ser para contextualizar suas críticas. Isto quer
uma feminista chicana que propõe, a partir de dizer, na prática, que não lhes interessa uma
autores pós-modernos (1999, p. XIV) a ideia de avaliação das boardingschools, ou da Doutrina do
descolonização do imaginário (1999, 2003), a Destino Manifesto11, por exemplo (voltaremos a
partir da perspectiva de que a narrativa histórica estes pontos adiante), justamente pelas razões
sempre omitiu a questão do gênero10. Segundo ela, apontadas acima: privilegiar este eixo de análise é
descolonizar o imaginário seria útil ao: permitir ao colonizador manter o lugar de
enunciação privilegiado, a história oficial,
Nos ajudar a repensar a história de uma forma
que torna a agência transformadora para permitindo ser relegado a uma narrativa
aqueles nas margens. Colonial, para meu
propósito aqui, pode ser definido simplesmente “alternativa”, somente.
como governantes versus governados, sem
esquecer que os colonizados podem também se
A perspectiva de imaginário em Pérez –
tornar como os governantes e assimilar a bem como o de metodologia, em Smith – remetem
mentalidade colonial. Essa mentalidade
colonial acredita em uma linguagem a uma discussão com relação a existência de um
normativa, raça, cultura, gênero, classe e
sexualidade. O imaginário colonial é uma espaço fronteiriço não apenas de intenso vazio
forma de pensar sobre as histórias e identidades
nacionais que devem ser disputadas se as existencial mas também enquanto lugar de
contradições não forem compreendidas, muito
menos resolvidas. Quando conceituado de
transformação, no qual surgem transformações,
certas formas, a nomeação das coisas deixa já convergências, conflitos e criação. De certa forma,
algo de fora, deixa algo não fito, deixa
silêncios e lacunas que devem ser descobertos.
[...] Se estamos dividindo as histórias do nosso 11
passado em categorias tais como relações Assim escreve Fonseca, sintetizando a ideia de “Doutrina
coloniais, pós-coloniais, e assim por diante, do Destino Manifesto”: “Ao conquistarem a independência e
então proponho um imaginário descolonial estabelecerem um governo democrático baseado em
como um espaço de ruptura, a alternativa para princípios ‘universais’ e na liberdade religiosa, os norte-
o que está escrito na história. Como americanos acreditavam estar cumprindo a promessa outrora
contestamos o passado para revisá-lo de uma feita pelos primeiros colonos: os Estados Unidos haviam-se
maneira que diga mais das nossas histórias? tornado uma "cidade na colina", um paradigma de ‘ordem
Em outras palavras, como vamos descolonizar celestial’, um modelo de ‘progresso rumo à perfeição’, um
nossa história? Para descolonizar nossa história exemplo inspirador para toda a humanidade. Nas décadas
e nossas imaginações históricas, precisamos seguintes, esse modelo de autopercepção evoluiria a partir
descobrir as vozes do passado que honram dessa premissa. À medida que o país se tornava mais forte e
múltiplas experiências, em vez de se prender próspero, sobrevivendo "às intempéries do destino, aos
ao que é fácil, permitindo que o olhar colonial infortúnios da má-sorte, ao ódio infeccioso da Europa, à
heteronormativo branco reconstrua e interprete malevolência de reis e tiranos" (discurso de orador anônimo
nosso passado. (PÉREZ, 2003, p. 123) da Assembleia Legislativa de Ohio, 1826), a crença inicial
(Tradução livre) em uma experiência política fadada a inspirar pelo exemplo
dava lugar a visão mais ambiciosa, de um país que
transformaria o mundo por expansão. Exportar o ‘modelo
norte-americano’ tornou-se o ‘Destino Manifesto’ do país –
um conceito originalmente criado para justificar a expansão
territorial em direção ao oeste, mas que logo passaria a
10
Como ela escreve (1999, p. XIV), seu objetivo é englobar fronteiras cada vez mais distantes, tanto em termos
“totakethehis out ofthe Chicana story” (tirar o his[pronome geográficos como, anos mais tarde, ideológicos.”
masculino em inglês] da história Chicana). (FONSECA, 2007, pp. 172-173)
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tal perspectiva iria de encontro à visão de que as fronteira, mas certamente essa perspectiva deve ir
narrativas aqui descritas – tanto no caso brasileiro além da assunção de uma separação estrita entre
quanto do norte-americano – se dão a partir do pessoas, saberes, subjetividades etc.. Tal fronteira
apagamento e do obliteramento dessas identidades, deve ser compreendida como um espaço
um relato de como a sexualidade se deixou intersticial e móvel, a partir do qual pessoas e
reprimir entre coletivos indígenas ao longo do coletividades se identificam. Vejamos.
processo de colonização, ainda em curso - trata-se,
Pontos de Contato
justamente, de afirmar-se o contrário.
Assim, salienta-se aqui não somente o
Não há, vimos, identidade possível fora do
caráter repressor inerente ao próprio processo
padrão de poder imposto ao longo do processo de
colonial, mas também seu caráter criativo, ao
colonização. Se buscarmos compreendê-lo a partir
tornar possível novas formas de resi/exi-stência.
das críticas two-spirit, o surgimento de um
De certa forma, o que torna possível a existência
discurso de preconceito aos indígenas queer por
do surgimento e consolidação do two-spirit
parte dos próprios indígenas pode ser
enquanto crítica epistêmica à colonização em
compreendido não apenas no contexto das técnicas
curso, foi o próprio processo de
de dominação dos povos indígenas, mas também
racialização/proletarização/modernização/coloniza
da formação dos movimentos indígenas, com suas
ção/ heterossexualização/normalização dos grupos
divisões e conflitos internos.
nos quais estes sujeitos se inseriam e se inserem.
Ora, até aqui nosso percurso parece levar à
Um ponto importante aqui é, neste sentido, chamar
conclusão de que o surgimento de uma identidade
a atenção para como essa nuvem discursiva dentro
two-spirit faz sentido enquanto uma das possíveis
da qual tais perspectivas fazem sentido
“estratégias políticas surgidas em situações coloniais
transcendem a concepção jurídica do poder: a
de extrema complexidade e diversidade, e na qual os
igreja, as fofocas, os olhares, a televisão, a família
atores sociais indígenas estão engajados em relações
e o cotidiano mantêm o domínio formado pelas
de poder desmedidamente assimétricas” (Baines,
relações de poder.
1997, p. 68). Isso remete ao que foi apresentado em
Trata-se de se voltar o olhar sobre as
nosso argumento, de que movimentos indígenas
“feridas coloniais” (nos termos da feminista
homossexuais são fruto de uma demanda coletiva
chicana Gloria Anzaldúa12), de se captar
que diz respeito a relações de poder mais
justamente os espaços onde são produzidas novas
abrangentes do que a mera repressão da
formas de convívio e reflexões, marcadas por
homossexualidade por brancos heterossexuais.
espaços de trocas e redefinições. Um olhar nas e a
Dito de modo geral, e pretendo aprofundar
partir das dobras, das zonas de interstício. Não me
este ponto adiante, no Brasil, os movimentos
refiro aqui, evidentemente, à noção espacial de
indígenas (incluindo os movimentos de jovens e de
12
CfAnzaldúa, 2005.
mulheres indígenas) não desenvolveram a crítica
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da colonização ao ponto de torná-la extensiva à recente do Brasil traz, ainda, exemplos de como o
crítica do que passam os indígenas com outras aparato repressor e colonial é empregado quando
sexualidades. Ocorre, como vimos, uma leitura os movimentos indígenas buscam descolonizar-se
parcial da colonização e uma apropriação do – bastante ilustrativos, neste sentido, foram a
debate por outros, legitimados como agenda de luta repressão a movimentos como “Brasil, outros
- a exemplo da luta pela terra, pela saúde, pela 500”, ocorrido em Santa Cruz de Cabrália, em
educação, pelo desenvolvimento etc. A crítica a 2000; ou na ocupação da antiga sede do Museu do
tais constructos necessariamente passa por uma Índio/Aldeia Maracanã, no Rio de Janeiro, em
crítica ao colonialismo em curso e às suas 2013. Tais iniciativas, ainda que existam, não
consequências dentro do próprio movimento chegaram a se transformar em uma crítica
indígena, ainda não tendo encontrado espaços de epistemológica mais elaborada ao colonialismo e
existência. Dito de outro modo, as demandas às suas categorias. Neste sentido, não houve uma
indígenas têm sido previamente estruturadas por passagem rumo a uma incorporação indígena desta
relações de poder estabelecidos com aliados não- perspectiva que “se desprendesse” (Mignolo, 2008)
indígenas, via de regra heteronormatizadores, das categorias ocidental/moderna/colonial, de
tendo como consequência a não instrumentalização modo a torna-la uma crítica social indígena de sua
das demandas dos indígenas homossexuais Ao que própria realidade – como os two-spirit fizeram.
tudo indica o indígena homossexual, no Brasil, não Com relação à comparação entre os
encontra condições de possibilidade frente ao índio movimentos indígenas nos Estados Unidos e no
hiper-real (Ramos, 1995): não há uma Brasil, várias poderiam ser as questões aqui
homossexualidade indígena, mas “índios colocadas, mas penso ser uma questão chave o fato
homossexuais”; não há indígenas queer, mas gays, de o movimento indígena no Brasil surgir, de
lésbicas e trans que são, quase que por acaso, forma organizada, também após a ditadura e com
indígenas. uma participação importantíssima da Igreja
Retomaremos esta questão nas próximas Católica e com uma agenda voltada para tutela,
páginas, mas, de modo geral, a gênese do demarcação, política de segurança nacional,
movimento indígena brasileiro contemporâneo em desenvolvimento e meio ambiente. Nos Estados
um momento de saída da ditadura militar e Unidos, por outro lado, ele se reorganiza e se
organizado por setores da igreja católica; sua pauta fortalece na esteira das lutas pelos direitos
em torno de questões de segurança nacional, humanos, ao final da década de 1960, tornando
demarcação, tutela, desenvolvimento e meio possível o cruzamento de perspectivas
ambiente; dentre outros fatores, não teria programáticas com movimentos raciais e
propiciado uma ruptura mais aprofundada com a homossexuais, por exemplo. Afirmo isto à luz do
lógica colonial moderna, cristã e heterossexual ao que escutei em uma das entrevistas realizadas com
qual foram historicamente submetidos. A história um ativista two-spirit, quando lhe perguntei qual
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foi o “estalo” para que o movimento começasse a Seymour Meyer, se torna Comissário de Assuntos
se organizar em torno da agenda queer: “Foi Indígenas no Bureau of Indian Affairs. Sua
durante o final dos anos 60... íamos a protestos administração se pautou na busca pelo fim do
pelos direitos homossexuais, e víamos alguns relacionamento entre os povos indígenas e o
indígenas ao nosso lado; quando íamos a protestos governo federal, com o fim das Reservas como
pelos direitos indígenas, víamos as mesmas unidades políticas independentes. Deste modo, o
pessoas... daí começamos a nos perguntar: por que Governo instituiu um programa de realocação e
não nos organizamos e começamos a lutar pelos empregos buscando incentivar os indígenas a
nossos próprios direitos?!”. Vale a pena, buscar áreas urbanas, ao mesmo tempo em que
entretanto, abrir um parêntesis a fim de situar buscava transferir gradualmente, para os Estados, a
algumas destas questões, historicamente. jurisdição sobre as áreas indígenas (Public Law
Apesar de, antes das décadas de 1960-70, 280, de 15 de agosto de 1953). Como aponta
haver movimentos pró-indígenas naquele país - Fixico (2004), as políticas de realocação (incluindo
como a Indian Rights Association, fundada em o Indian Relocation Act, de 1956) partiam do
1882 - e indígenas - como The Societyof American pressuposto de que os indígenas fossem
Indians (1911-1923) e o National Congressof trabalhadores assalariados prontos para a economia
American Indians, fundado em 1944 -; o pós-guerra: uma potencial “prosperidade” nas
movimento indígena se intensificou e reorganizou cidades seria a solução para a penúria encontrada
após a década de 1960, sobretudo após um nas áreas indígenas. O resultado disso foi, como
recrudescimento das políticas de extermínio indica o autor, um deslocamento de cerca de
(termination) e de assimilação compulsória dos 750.000 indígenas para as cidades, entre as
povos indígenas entre as décadas de 1940 e 1960, décadas de 1950 e 1980, de modo que nos anos
por meio da expulsão de seus territórios e sua 1990 dois terços da população indígena
realocação em grandes centros como Denver, estadunidense moravam em áreas urbanas. Além
Chicago, Seattle, Los Angeles, Detroit, disso, entre 1953 e 1964, cerca de 109 povos
Minneapolis e San Francisco 13. indígenas perderam o reconhecimento federal
A raiz deste tipo de prática pode ser (Houseconcurrentresolution 108, de 1 de agosto de
encontrada na forma como o governo norte- 1953), passando a perder o status de indígenas,
americano passou a lidar com a questão indígena suas terras, acesso a serviços de saúde, educação e,
após a Segunda Guerra Mundial. Na década de assim, passando a estar sujeitos a tributos.
1950, por exemplo, um ex-Diretor do programa de Entretanto, em vez de “assimilarem” o ambiente
campos de detenções para japoneses, Dillon urbano, como buscavam estas leis, os indígenas
passaram a formar entre si novas alianças políticas.
13
Esperamos ter oportunidade de deixar isso claro adiante, É necessário compreender, por exemplo, que desde
mas a presença indígena nessas áreas urbanas parece ter sido
fator importante para a emergência, organização e o século XIX (casos Cherokee vs. Georgia, 1831, e
consolidação do movimento two-spirit.
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Talton vs. Mayes, 1896) a relação do Governo dos de irem dormir. Paradigmático deste período é a
Estados Unidos com os povos indígenas era no CarlisleIndian Industrial School, na
sentido de que elas fossem nações domésticas Pennsylvania(1879-1918), primeira
dependentes soberanas, de modo que não eram boardingschoolindígena federal operando fora das
considerados cidadãos norte-americanos (até o áreas de Reserva, fundada pelo Capitão Richard
IndianCitizenshipAct, de 1924), tampouco as Henry Pratt, autor da frase “mate o índio, salve o
garantias da Carta de Direitos valiam para eles (até homem” (1892), tendo como objetivo a
o Indian Civil RightsAct, de 1968). Eram, afinal, “civilização e assimilação” completa dos
praticamente párias expulsos de seus territórios e indígenas.
abandonados à própria sorte e ao racismo, em Nota-se aí como a ideia de Civilização
centros urbanos longe de suas terras. denota atributos de raça, gênero, saber e
A prática não era novidade: desde a década legitimidade enunciatória: como apontou Young
de 1830, pelo menos, com o Indian Removal Act, o (2005), trata-se do projeto ideológico do
Governo dos Estados Unidos tinha como praxe Imperialismo; mas também do princípio norteador
retirar indígenas de seus territórios para realocá-los da ordem discursiva hegemônica para definir seu
em outras áreas ou dividir suas terras em próprio self; da narrativa única e teleológica,
loteamentos (Dawes/General AllotmentAct, 1887) justificando o status quo, a hierarquia racial, sexual
– Edmunds (2004), por exemplo, aponta que dos e intelectual; da consolidação de marcadores da
138.000.000 acres de terras indígenas existentes diferença relacionando, como apontou Stoler
em 1880, havia apenas 48.000.000 de acres em (1995), propriedades invisíveis e características
1934, sendo dois terços destes territórios visíveis; do laboratório de categorias liberais,
destinados posteriormente à posse de brancos. nacionais e modernas; da ascensão e consolidação
Além disso, ao longo do século XIX, se tornou da ordem moral burguesa. A Civilização, como
parte das políticas governamentais separar os aponta Bell (2004), denota ainda a seleção
jovens indígenas de suas famílias para mandá-los histórica de documentação e narrativas, afetando a
às boardingschools ou a escolas missionárias. representação dos grupos mais marginalizados: não
Lomawaima (2004) destaca como era a rotina apenas as narrativas assimilacionistas vieram a
nestas escolas: as crianças tinham seus cabelos distorcer suas histórias, mas também seus sistemas
cortados, eram proibidos de falar em sua língua e de organização (parentesco, práticas sociais,
recebiam disciplina aos moldes militares: eram gênero) nas quais tais histórias poderiam ser
acordados às 5:45h, sendo obrigados a fazerem interpretadas em sua plenitude.
exercícios; às 6:45h tomavam café; aulas de O colonialismo molda as memórias e
trabalho industrial às 8h, e escola formal às 9h; constitui outros lugares de enunciação,
após o almoço vinham mais aulas de trabalho devidamente legitimados: eis o porquê da
industrial até a noite, sendo 9h da noite o horário importância do movimento redpower(ver parágrafo
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os Estados Unidos (Cornwall International Bridge) exemplo, é o mesmo local onde houve o massacre
para protestar às restrições impostas pelo governo de centenas de Lakotas, a maioria desarmada, pela
estadunidense à livre movimentação de indígenas 7ª. Cavalaria em dezembro de 1890; a Trail of
entre os dois países; no final de 1969, após um Broken Treaties traz em seu nome a referência à
incêndio no Centro Indígena de San Francisco, TrailofTears(“Trilha de lágrimas”), ocorrida na
cerca de 90 indígenas – na maioria universitários - década de 1830, em consequência do
ocupam a ilha de Alcatraz: a ocupação virá a durar IndianRemovalAct, de 1830, quando 125.000
dezenove meses; em julho de 1971, membros da indígenas Cherokees, Creeks, Seminoles,
AIM fazem uma contra-comemoração do dia da Chickasaws, dentre outros, de Estados como
independência no Monte Rushmore; em 1972, o Georgia, Carolina do Norte, Tennessee, Alabama e
AIM organiza uma marcha a Washington com Florida foram deslocados – dos 15.000 Cherokees
mais de dois mil indígenas, ocupando o prédio do à época, 4.000 morreram no deslocamento forçado
Bureau of Indian Affairs, exigindo reconhecimento para abrir espaço para a “civilização” - sobretudo
federal da autodeterminação indígena, no que viria plantações de algodão. Neste sentido, como
a ser conhecido como Trail of broken Treaties apontamos aqui, o redpower buscou descentrar as
(trilha dos tratados rompidos); em fevereiro de narrativas a partir das quais massacres e abusos
1973 há a ocupação de WoundedKnee, na Dakota eram/são percebidos como conquistas de uma
do Sul, organizada pelo AIM – a repressão ao crescente e benevolente nação liberal.
movimento deixa mortos, feridos e 1200 presos, Desse modo, se o impulso e motivação para
entre 1973 e 1976 61 homicídios a membros do os two-spirit buscarem se organizar vieram dessa
AIM são registrados, alguns dos quais jamais agenda, pode-se dizer que a tal perspectiva
sendo investigados. Tais lutas resultaram na descolonizadora da História, vista aqui, somou-se
assinatura, em 1975, do Indian Self Determination uma crítica à heteronormatividade e ao patriarcado
and Education Act, dando aos indígenas direitos de imbricados nestas outras narrativas. As histórias e
administrar seus programas e serviços por meio de narrativas two-spirit são silenciadas, se diluindo
contratos com o Bureau of Indian Affairs e com o em lutas cujos protagonistas são, quase sempre,
Indian Health Service (IHS). homens – associados a ideais de virilidade e
Evidentemente que a relação acima não se belicosidade. Como apontaram Dussel, Smith,
presta a sintetizar todas as lutas dos povos Fanon, entre outros, trata-se de se dominar o
indígenas daquele país no período, tampouco supor imaginário do Outro, justificando-se a violência,
que tais demandas tenham se encerrado em meados declarando-se inocente e estruturando uma
dos anos 1970. Contudo, é importante demonstrar narrativa condizente com tal perspectiva,
aqui como alguns dos alvos destas ações buscaram, esvaziando o outro de si e de qualquer agência em
justamente, retomar a agência histórica sobre termos de elaborar suas próprias narrativas.
locais bastante emblemáticos: WoundedKnee, por
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pensamentos two-spirit e decolonial nos indicam moradia, alianças e vida doméstica dos povos
algumas direções. Buscarei sintetizar algumas indígenas, na medida em que buscam normalizar
delas, tendo em mente que pretendo mais salientar espaços, temporalidades e subjetividades
indígenas. À colonização corresponde,
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na busca por desvincular suas identidades do públicas. Entretanto, o que era visto como “câncer
binarismo sexual, chamando a atenção para como gay” nos idos dos anos 1980 certamente não se
as sexualidades indígenas dizem respeito a vinculava, em termos de possibilidade, à imagem
elementos de sua cosmologia e ontologia; e na tradicionalmente veiculada no Brasil quanto aos
busca por chamar a atenção aos aspectos povos indígenas. Naquele momento, o indígena se
normativos e epistêmicos de um colonialismo em vinculava à consolidação das lutas e difusão dos
curso, ecos dos movimentos que marcaram a luta resultados das políticas de segurança nacional e
pelos direitos humanos nos Estados Unidos. desenvolvimento, implementados pela Ditadura
Entretanto, o two-spirit desvincula-se dos Militar no país – a atuação e trajetória pessoal do
movimentos indígenas, ao chamar a atenção para índio Xavante Mário Juruna (1943-2002), único
como a homofobia nativa é fruto da incorporação indígena a ser eleito deputado federal (1983-1987)
de um sistema moral e de valores imposto ao longo na história do Brasil, sintetiza tal perspectiva.
da colonização; também se desprendendo dos Neste sentido, no imaginário do país, os povos
movimentos relacionados a gênero e sexualidade, indígenas ainda eram associados à defesa da
por não estes não incorporarem, justamente, a Amazônia, às suas riquezas, e aos valores
crítica ao colonialismo – além do que, como referentes à selva – seja como o “bom selvagem”,
vimos, não pensarem ser a identidade two-spirit ou como o “guerreiro” (Conklin e Graham, 1994).
uma identidade necessariamente sexual. A De uma maneira ou de outra, tal trajetória deixou
sexualidade, buscamos demostrar, é um meio pelo marcas na organização, com o amplo apoio de
qual aqueles indígenas exercem seu papel sagrado setores progressistas da Igreja Católica, dos
em suas culturas. Naquele país o advento da AIDS movimentos indígenas no país.
surge em um contexto conservador, marcado pela Desta forma, as demandas em torno de
gestão Ronald Reagan, com os movimentos tutela, demarcações, desenvolvimento e meio
LGBTIQ contrapondo-se a tal conservadorismo. ambiente, naquele momento, deixavam pouco
Isto fez com que houvesse uma intensificação das espaço para reivindicações específicas de gênero e
lutas por parte desses coletivos, a fim de terem sexualidade. Sacchi (2003), por exemplo, aponta
garantidos seus direitos por cuidados e prevenção, como apenas na década de 1990 houve o início da
contexto no qual os two-spirit iniciam sua criação, por parte das mulheres indígenas, de
organização formal, a fim de conquistarem tais organizações próprias e da criação de
direitos voltados para seus próprios contextos departamento de mulheres em organizações
culturais. No Brasil, por outro lado, a AIDS surge indígenas na Amazônia – mesmo momento em que
no mesmo contexto da redemocratização, sendo os autoras feministas latino-americanas criticam um
movimentos LGBTIQ incorporados, em certa processo de institucionalização do feminismo na
medida, à luta contra a doença, tornando-se canal região, financiado e pautado por agências de
fundamental na implementação das políticas fomento, pelo Banco Mundial e pelas conferências
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da ONU, “tendo altos custos para o feminismo ao indígenas deve não apenas levar em conta a
perder-se boa parte de seus postulados políticos cosmologia e a ontologia dos povos indígenas, mas
mais éticos e revolucionários” (Curiel, 2010, p. também os processos e relações de poder a partir
73). Neste sentido, retomando Sacchi, dos quais o tema é percebido pelos diversos atores
envolvidos.
É importante chamar atenção às categorias e
conceitos utilizados no campo discursivo das Neste sentido, é possível que algum espaço
ONGs e agências de cooperação – ênfase no
empowerment e equidade de gênero, maior já esteja se abrindo para estas questões, partindo da
“participação” e “parceria” das mulheres nos
projetos de desenvolvimento com perspectiva
produção dos próprios indígenas. Exemplo disto é
de gênero, para citar alguns deles – que são o texto produzido recentemente por Manuela
transpostos (“traduzidos”) de um campo
estritamente feminista e ocidental para outras LavinasPicq (professora na Universidade San
realidades que não as mesmas em que foram
criados. [...] o conceito de gênero, de origem Francisco de Quito, Equador) e Josi Tikuna (aluna
acadêmica, foi ressignificado e traduzido em
diferentes formas de ação, e passa a ter um de Antropologia no Instituto de Natureza e Cultura,
caráter transversal e de presença obrigatória,
condicionante mesmo de financiamento de
da Universidade Federal do Amazonas), intitulado
projetos comprometidos com a cidadania e o Sexual Modernity in Amazonia (“Modernidade
desenvolvimento, articulando atores até então
distanciados. (SACCHI, 2003, pp. 103-104) sexual na Amazônia”) 15. Neste texto as autoras
Desta maneira, os movimentos de mulheres apontam, por exemplo, como as regras Tikuna
indígenas têm galgado um longo caminho para se respeitam casais do mesmo sexo, sendo o
desvincular de uma agenda masculina ou não- casamento algo necessariamente entre pessoas de
indígena, rumo a uma descolonização, atrelando-se diferentes clãs, não importando se são, ou não, de
a interesses de agências de fomento internacionais sexos diferentes. Desta maneira, os autores que
Além disso, com relação ao próprio espaço naquele povo erraram por não haver percebido as
acadêmico para reflexões sobre o tema, não penso uniões homoafetivas como permitidas. Mais que
que seja necessário destacar aqui as diferenças na isso, o texto indica que, para as mulheres Tikuna,
norte-americana e brasileira – a leitura deste enquanto a discriminação sexual foi trazida pelas
trabalho deixa claro o amplo conjunto de textos e igrejas evangélicas”, incutindo aí a ideia de que
reflexões já bastante amadurecidas escritas por tais uniões seriam pecaminosas. Desta forma, as
autores indígenas norte-americanos. No Brasil, por NgüeTügümaêgüé(mulher que faz sexo com outra
outro lado, tem-se ainda pela frente o desafio não mulher) e os Kaigüwecü(homem que faz sexo com
apenas de se buscar consolidar espaços para a outro homem) seriam associados à poluição e
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abominação. Ao final, concluem as autoras – BELL, Betty. “Gender in Native America” Em:
DELORIA, Philip J.; SALISBURY, Neal. A
utilizando-se de autores two-spirit, como Driskill e
companion to American Indian History.Oxford:
Rifkin: BlackwellPublishers. Pp. 307-319. 2004.
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EDMUNDS, Russell David. “Native Americans DELORIA, Philip J.; SALISBURY, Neal. A
and the United States, Canada and Mexico” Em: companion to American Indian History. Oxford:
DELORIA, Philip J.; SALISBURY, Neal. A Blackwell Publishers. Pp. 422-439. 2004.
companion to American Indian History. Oxford:
Blackwell Publishers. Pp. 397-420. 2004. MIANO BORRUSO, Marinella. Hombre, mujer y
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