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decifrar um enigma: como o ouro se tornou em 2019 o segundo maior produto de exportação de
Roraima sem que o Estado tenha uma única mina operando legalmente?
Garimpo na Terra Indígena Yanomami, onde índice de pessoas contaminadas por mercúrio chega a
92% em algumas aldeias
Foto: ISA / BBC News Brasil
As exportações têm como destino quase exclusivo a Índia e ocorrem enquanto a Terra Indígena
Yanomami, parcialmente localizada em Roraima, enfrenta a maior invasão de garimpeiros desde sua
demarcação, nos anos 1990 - o que leva autoridades ouvidas pela BBC News Brasil a afirmar que o
ouro exportado está sendo retirado ilegalmente do território indígena.
Há décadas Roraima lida com garimpos ilegais, atividade associada a graves danos ambientais e
sociais. Mas o ouro extraído dessas áreas costumava ser negociado no mercado negro e sua origem
não aparecia nas estatísticas do governo.
A diferença é que, agora, ao menos parte das transações tem entrado nos cadastros federais.
Investigadores trabalham com as hipóteses de que o garimpo ilegal cresceu tanto que ficou difícil
ocultá-lo dos registros oficiais e de que há um esquema para fraudar a origem do ouro proveniente
de áreas indígenas.
Uma das suspeitas é que garimpeiros estejam comprando notas fiscais de uma empresa autorizada a
explorar minérios em Roraima, "esquentando" o ouro extraído ilegalmente e permitindo que ele seja
vendido por preços de mercado, mais altos que os do mercado clandestino.
Indústria de joias
Segundo o Comex Stat, portal do Ministério da Economia sobre comércio exterior, desde setembro
de 2018, 194 kg de ouro originário de Roraima foram exportados para a Índia.
Dono de uma poderosa indústria de joias, o país asiático é o quarto maior importador de ouro
brasileiro no mundo. Só outro país além da Índia comprou ouro roraimense: os Emirados Árabes
Unidos, que receberam 1 kg do metal em maio deste ano.
Loja de jóias na Índia na véspera do festival Diwali; país é o terceiro maior importador de ouro do
mundo.
Foto: Getty Images / BBC News Brasil
Iniciadas em setembro de 2018, as vendas de ouro oriundo de Roraima já renderam US$ 7,8
milhões (o equivalente a R$ 30,2 milhões) e tiveram um salto a partir de janeiro, após Jair
Bolsonaro assumir a Presidência e o Exército desativar bases que dificultavam o acesso de
garimpeiros ao território yanomami.
Bolsonaro costuma exaltar as riquezas minerais da terra yanomami e já defendeu liberar a
exploração econômica na área. Segundo a CPRM (empresa pública de pesquisa geológica), o
território indígena abriga a maioria das reservas de ouro conhecidas de Roraima. Não há estudos
que estimem o tamanho dos depósitos.
As vendas para a Índia em 2019 somaram US$ 6,5 milhões e tornaram o ouro o segundo produto
mais exportado por Roraima, atrás da soja.
O cruzamento de dados divulgados pelo Ministério da Economia indica que ao menos parte do
metal foi vendida por meio de uma empresa de Caieiras, na Grande São Paulo.
No entanto, segundo a Agência Nacional de Mineração (ANM), órgão responsável por conceder e
monitorar licenças para mineradores, não há e não havia nenhuma mina de ouro operando
legalmente em Roraima no período em que as exportações aconteceram. O Ministério de Minas e
Energia confirma a informação.
"Tudo leva a crer que o ouro esteja saindo de garimpos ilegais", afirma à BBC News Brasil Eugênio
Tavares, representante da ANM em Roraima e ex-superindentente do Departamento Nacional de
Produção Mineral (DNPM) no Estado.
Tavares diz que o metal exportado está provavelmente saindo da região do rio Uraricoera, na Terra
Indígena Yanomami. No fim de maio, uma comitiva com líderes dos povos yanomami e ye'kwana
denunciou a órgãos federais em Brasília que ao menos 10 mil garimpeiros estariam atuando dentro
do território.
O volume de garimpeiros equivale a quase 40% da população da terra indígena.
Barras de ouro avaliadas em R$ 1,3 milhão apreendidas pela Polícia Federal no aeroporto de Boa
Vista, em 2018
Foto: Polícia Federal / BBC News Brasil
Ação contra garimpo ilegal no território yanomami em 2016, quando balsas usadas pelos
garimpeiros foram destruídas
Foto: Ibama / BBC News Brasil
A Polícia Federal e o Ministério Público Federal disseram à BBC que estão investigando denúncias
sobre o ouro exportado por Roraima e sobre o garimpo no território yanomami, mas que o caso
tramita sob sigilo.
O Ministério de Minas e Energia afirmou que "não tinha conhecimento" do caso e "tomará as
providências cabíveis na alçada de suas competências", coordenando-se com outros órgãos para
averiguar a situação in loco.
O Exército, por meio do Comando Militar da Amazônia, diz ter realizado diversas operações contra
o garimpo ilegal em Roraima em 2018. A BBC questionou por que o órgão desativou no fim de
2018 bases nos rios Uraricoera e Mucajaí que dificultavam o acesso de barcos ao território
yanomami.
O Exército respondeu que as instalações eram temporárias e funcionaram por 107 dias, em sistema
de rodízio de pessoal. O órgão afirmou ainda que, em 30 de maio, soldados voltaram a transitar
pelos dois rios para combater o garimpo, e que militares patrulham a fronteira permanentemente
para reprimir atividades ilegais.
A Secretaria de Segurança de Roraima não respondeu perguntas sobre o tema.
Maior parte das ocorrências de ouro (Au) em Roraima fica no território Yanomami, no noroeste do
Estado
Foto: CPRM / BBC News Brasil
Ele afirma que a mina da empresa deve começar a operar até o fim do ano e que está à disposição
dos investigadores.
Segundo o representante da ANM, a prática de "esquentar o ouro" (fraudar sua origem para lhe dar
aspecto de legalidade) é comum e explicaria a aparição de Roraima nos registros de exportação do
metal.
Tavares afirma que o cadastro da origem do ouro exige a indicação de uma empresa autorizada a
minerar no território. "Sem esse dado, o sistema trava e não tem nem como avançar."
Ele diz acreditar que não há garimpos ilegais em Roraima fora de áreas indígenas que possam ser a
origem do ouro exportado.
Terra Indígena Yanomami fica na fronteira do Brasil com Venezuela, nos Estados de Roraima e
Amazonas
Foto: Google / BBC News Brasil
"Como não é possível impedir a exploração ilegal que não paga impostos e precisamos gerar
empregos no Estado, sugerimos que a União agilize os procedimentos de legalização da exploração
racional sustentável de nossos ativos minerais", afirmou Telmário na carta.
Em entrevista à BBC, o senador também disse acreditar que o ouro exportado tenha saído da Terra
Indígena Yanomami. Telmário afirma que a vitória de Bolsonaro em 2018 estimulou o ingresso de
garimpeiros no território e aqueceu o comércio ilegal de ouro no Estado.
"Quando o presidente falou em rever as regras para permitir a mineração (em terras indígenas), isso
proporcionou uma corrida dos garimpeiros", diz Telmário.
A Presidência da República não quis comentar a fala do senador.
Efeitos do garimpo ilegal
Telmário afirma que, enquanto for ilegal, o garimpo "será uma porta aberta para um monte de
irregularidades, como corrupção policial, assassinatos e contaminação de rios". Mas ele diz que a
regularização da atividade controlaria os danos e garantiria melhores condições de vida aos
indígenas, além de aquecer a economia local.
Já a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), principal organização indígena do país, é
contra a regulamentação da mineração - assim como a Hutukara, maior associação yanomami,
liderada por Davi Kopenawa.
"O garimpo não traz benefício pra ninguém. Só traz doença e degradação ambiental. Não tem
dinheiro que pague a nossa floresta, os rios e as vidas do nosso povo", disse Kopenawa em uma
reunião no Ministério Público Federal (MPF), em Brasília, em maio.