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A criação da consciência

Lilian Wurzba
A maior tarefa do homem “deveria ser tomar consciência
daquilo que, provido do inconsciente, urge e se impõe a
ele, em vez de ficar inconsciente ou de com ele se
identificar. Porque nos dois casos ele é infiel à sua
vocação, que é criar consciência. À medida que somos
capazes de discernir, o único sentido da existência é
acendermos a luz nas trevas do ser puro e simples.”
(JUNG, Memórias, sonhos e reflexão, p. 282)
O princípio vital é mais ou menos equivalente à “força vital” dos
fisiologistas antigos. Ela governa todas as funções corporais, incluindo
as cerebrais, e portanto também governa a consciência no nível em
que a consciência é determinada por funções do córtex cerebral.
Assim, não devemos buscar pelo principio da vida na consciência, e
mais particularmente não na consciência de si, como fez Kant.
O princípio vital se estende para além de nossa consciência, pois
também mantém as funções vegetativas do corpo que, como sabemos,
não estão sob nosso controle consciente. Nossa consciência é
dependente das funções do cérebro, mas estas por seu turno são
dependentes de um princípio vital e, consequentemente, o princípio
vital representa uma substância, ao passo que a consciência
representa um fenômeno contingente. Ou como diz Schopenhauer: “A
consciência é o objeto de uma ideia transcendente”. Então vemos que
as funções animal e vegetativa estão contidas em uma raiz comum, o
sujeito real. Vamos ousadamente designar a este sujeito transcendental
o nome de “alma”.
(JUNG, Alguns pensamentos sobre psicologia, 1897)
“Ele é, na verdade, um erradicado, que não tem contato verdadeiro com o
passado, a vida dos ancestrais (que sempre vive em seu seio), nem com a
sociedade humana do presente. Não mora numa casa com os outros, não
come e não bebe igual aos outros, mas vive uma vida isolada, envolto
numa ilusão subjetiva elaborada por seu intelecto, e que lhe parece a
verdade recém-descoberta. Este capricho da razão não abala suas
entranhas; ocasionalmente só lhe vira o estômago, porque este considera
tais elucubrações mentais como um bocado bastante indigesto. A alma não
é de hoje! Sua idade conta muitos milhões de anos. A consciência
individual é apenas a florada e a frutificação própria da estação, que se
desenvolveu a partir do perene rizoma subterrâneo, e se encontra em
melhor harmonia com a verdade quando inclui a existência do rizoma em
seus cálculos, pois a trama das raízes é mãe universal.”
(Símbolos da transformação, p. XV)
“Eu me senti compelido a perguntar-me com toda a seriedade: ‘O que é o
mito que você vive?’ Não achei a resposta e tive que confessar-me que na
verdade eu não vivia nem com um mito nem dentro de um mito, e sim
numa nuvem insegura de possibilidades de conceitos, que eu olhava,
aliás, com desconfiança crescente. Eu não sabia que vivia um mito e,
mesmo se soubesse, não teria reconhecido o mito que minha vida tecia
por cima de minha cabeça. Veio-me então, naturalmente, a decisão de
conhecer ‘meu mito’. E considerei isto como tarefa por excelência, pois –
assim eu me dizia – como poderia prestar contas corretamente de meu
fator pessoal, de minha equação pessoal, diante de meus pacientes, se
nada sabia a respeito, e sendo isto, no entanto, tão fundamental para o
reconhecimento do outro? “
(JUNG, Símbolos da transformação, p. XV)
“A psicologia do inconsciente foi introduzida por Freud, graças aos temas
gnósticos da sexualidade, por um lado, e da autoridade paterna nociva, por
outro. O tema de Javé, Deus criador e gnóstico, ressurgia no mito freudiano
do pai original e no Superego, cheio da obscuridade proveniente desse pai.
No mito de Freud, ele se revelava como um demônio que engendrara um
mundo de decepções, de ilusões e de dor. Mas a evolução para o
Materialismo, que já estava prefigurada na alquimia, preocupada com o
segredo da matéria, teve como consequência fechar a visão de Freud a um
outro aspecto essencial da gnose: Freud não discerniu que a imagem original
do espírito constituía um outro deus superior. De acordo com a tradição
gnóstica, foi esse deus superior que enviou aos homens, a fim de ajudá-los, o
Cratera, o vaso da metamorfose em espírito.”
(JUNG, Memórias, p. 178)
Indios pueblos (1924)

“Por que – dizia Lago das Montanhas – os americanos não nos deixam em
paz? Por que querem proibir nossas danças? Por que não querem permitir
que nossos jovens saiam da escola quando devem ir ao Kiwa (lugar do
culto), onde lhes ensinamos religião? [...] Os americanos querem proibir
nossa religião. Por que não nos deixam tranquilos? O que fazemos não é
somente por nós, mas também pelos americanos. E pelo mundo inteiro.
Todo mundo aproveita.
Percebi, devido à sua agitação, que se referia a um elemento muito
importante de sua religião. Então perguntei-lhe: ‘O senhor acredita que suas
práticas religiosas sejam de proveito para todo o mundo?’ Ele respondeu
com muita vivacidade: ‘Naturalmente, se não o fizéssemos, o que seria do
mundo?’ E, com um gesto carregado de sentido, apontou o Sol.
[...] ‘É preciso lembrar que somos um povo – disse – que
permanece no teto do mundo; somos os filhos de nosso Pai, o
Sol e graças à nossa religião ajudamos diariamente nosso Pai a
atravessar o céu. Agimos assim, não só por nós mesmos, mas
pelo mundo inteiro. Se cessássemos nossas práticas religiosas,
em dez anos o Sol não se ergueria mais. Haveria uma noite
eterna.’
Compreendi, então, sobre o que repousava a ‘dignidade’, a
certeza serena do indivíduo isolado: ela era um filho do Sol, sua
vida tinha um sentido cosmológico.”
(JUNG, Memórias, p. 222-3)
Norte da África (1925)

“Sobre uma colina pouco elevada, na vasta savana, esperava-nos um
espetáculo inigualável. Até o horizonte mais distante percebemos imensas
manadas: gazelas, antílopes, gnus, zebras, javalis, etc. Pastando e
sacudindo as cabeças, as manadas se moviam lentamente – ouvia-se
apenas o grito melancólico de uma ave de rapina. Havia o silêncio do
eterno começo, do mundo como sempre fora na condição do não-ser, pois
até há bem pouco tempo, ninguém lá fora para saber que havia ‘esse
mundo’. Afastei-me de meus companheiros até perdê-los de vista. Tinha a
impressão de estar completamente só. Era o primeiro homem, que sabia
ser esse o mundo e que, através de seu conhecimento, acabara de criá-lo
naquele instante.
Tornou-se então extraordinariamente claro para mim o valor cósmico da
consciência: Quod natura relinquit imperfectum, ars perficit ( O que a
natureza deixa imperfeito, a arte aperfeiçoa), diz a alquimia.
Eu, homem, num ato invisível de criação, levo o mundo ao seu
cumprimento, conferindo-lhe existência objetiva. Esse ato foi atribuído
unicamente ao criador, sem se perceber que nesse caso se
rebaixa a vida e o ser, inclusive a alma humana, a uma máquina
calculadora em seus menores detalhes, que continua a funcionar
desprovida de sentido, adaptando-se a regras predeterminadas e
conhecidas a priori. Na desolação de um tal mecanismo de relojoaria,
não há lugar para o drama do homem, do mundo e de Deus; impossível
um ‘dia novo’ que conduzisse a ‘margens novas’, mas simplesmente ao
deserto de processos calculados a priori. Meu velho amigo pueblo me
voltou à memória: acreditava que a razão de ser dos pueblos era o
dever que tinham de ajudar seu Pai, o Sol, a atravessar o céu
diariamente.
Eu invejara neles essa plenitude de sentido e procurara, sem esperança,

nosso próprio mito. Agora, o apreendia, constatando, por outro lado, que
o homem é indispensável à perfeição da criação e que, ainda mais, é o
segundo criador do mundo; é o homem que dá ao mundo, pela primeira
vez, a capacidade de ser objetivo – sem poder ser ouvido, devorando
silenciosamente, gerando, morrendo, abanando a cabeça através de
centenas de milhões de anos, o mundo se desenrolaria na noite mais
profunda do não-ser, para atingir um fim indeterminado. A consciência
humana foi a primeira criadora da existência objetiva e do significado: foi
assim que o homem encontrou seu lugar indispensável no grande
processo do ser.”
(JUNG, Memórias, p. 224-5)
“A história da natureza nos conta a metamorfose fortuita e ao acaso das
espécies, que através de centenas de milhões de anos devoraram e se
entredevoraram. A história biológica e política da humanidade também
nos ensina exaustivamente sobre isso. Mas a história do espírito se
inscreve num outro registro. É aqui que se introduz o milagre da
consciência reflexiva, segunda a cosmogonia. A importância da
consciência é de tal forma vasta que não se pode deixar de supor que o
elemento sentido jazia provavelmente oculto em todo o aparato
biológico, monstruoso e aparentemente insensato, e que enfim pôde
manifestar-se como que por acaso, na escala dos animais de sangue
quente e cérebro diferenciado, não de modo intencional ou previsto,
mas como que pressentido através de um ‘impulso obscuro’, intuitivo e
tateante.”
(JUNG, Memórias, p. 293)
“É o afastamento do homem em relação aos instintos e sua oposição
a eles que cria a consciência. [...] Mas nos afastamos da guia segura
dos instintos e ficamos entregues ao medo, quando nos deparamos
com a possibilidade de caminhos diferentes, porque a consciência
agora é chamada a fazer tudo aquilo que a natureza sempre fez em
favor de seus filhos, a saber: tomar decisões seguras, inquestionáveis
e inequívocas. E, diante disto, somos acometidos por um temor
demasiado humano de que a consciência, nossa conquista
prometeana, ao cabo não seja capaz de nos servir tão bem quanto a
natureza.”
(JUNG, Natureza da psique, p. 337-38)
“Um ser sem opostos é completamente inconcebível, porque seria
impossível estabelecer a sua existência.” (JUNG, Natureza da psique, p.
149)

“A existência só é real quando é consciente para alguém. É por isso que o
Criador precisa do homem consciente, muito embora, por pura
inconsciência, preferisse impedi-lo de tornar-se consciente.” (JUNG,
Resposta a Jó, p. 14)

Conhecer = dar-se conta de, ficar sabendo, verificar, estar familiarizado
com, saber, dominar, experimentar, sofrer, passar por, tomar ou ter
consciência de.
 
Conhecer = relacionar-se, revelar-se, conectar-se
 
Jung – A consciência é a função ou atividade que sustenta a relação dos
conteúdos psíquicos com o ego.
“[...] a consciência é uma reação psíquica que se pode denominar
moral, porque aparece quando a consciência psicológica abandona a
trilha dos costumes, da moral, ou a ela recorre. Portanto, a consciência
significa também, em primeiro lugar e na maioria dos casos individuais,
uma reação a um desvio real ou suposto do código moral e
corresponde, em grande parte, ao medo primitivo do não usual, não
costumeiro e, portanto, não ‘moral’. Uma vez que este comportamento
é, por assim dizer, instintivo e, no melhor dos casos, apenas em parte
resultado da reflexão, pode ainda assim ser moral, mas não pode ter a
pretensão de ser ético. Esta qualificação ele só a merece se for
reflexivo, isto é, se for submetido a um entendimento consciente. Isto
só é possível quando surge uma dúvida fundamental entre dois modos
possíveis de comportamento moral, portanto num conflito de deveres.
[...] Aqui somente a força criadora do etos, que representa a
pessoa inteira, pode dar a decisão final. Como todas as
faculdades criativas do homem, também o etos emana de duas
fontes: da consciência psicológica racional, por um lado, e do
inconsciente irracional, por outro. O etos é uma instância especial
daquilo que chamamos ‘função transcendental’, ou seja, um
entendimento e cooperação entre os fatores conscientes e
inconscientes, expresso na linguagem religiosa como a razão e a
graça.”

(JUNG, Civilização em transição, p. 180-1)


“Nós nos tornamos participantes da vida divina e temos de assumir
uma nova responsabilidade, isto é, a continuação da auto-realização
divina que se expressa na tarefa de nossa individuação. A
individuação não significa apenas que o ser humano se tornou
verdadeiramente humano, distinto do animal, mas que está para se
tornar também parcialmente divino. Isto significa praticamente que ele
se torna adulto, responsável por sua existência, sabendo que não só
ele depende de Deus, mas que Deus também depende dele. A
relação do ser humano com Deus deve sofrer certamente uma
mudança importante: em vez de louvor propiciatório a um rei
imprevisível, ou oração infantil a um pai amoroso, nossa forma de
culto e relacionamento com Deus será uma vida responsável e a
realização da vontade de Deus em nós. Sua bondade significa graça e
luz, e seu lado escuro é a terrível tentação do poder.
Ainda que a encarnação divina seja um acontecimento cósmico e
absoluto, ela se manifesta empiricamente apenas naqueles poucos
indivíduos, capazes de consciência suficiente para tomar decisões
éticas, isto é, de decidir-se pelo bem. Por isso, Deus só pode ser
chamado bom na medida em que é capaz de manifestar sua bondade
nos indivíduos. Sua qualidade moral depende dos indivíduos. Eis a
razão por que se encarnou. A individuação e a existência individual são
indispensáveis para a transformação do Deus criador.”
(Jung, Cartas 1956-1961, p. 36-7)
“O mito deve , enfim, levar a sério o monoteísmo e abandonar o
dualismo (nascido oficialmente) que até hoje faz subsistir um eterno e
tenebroso antagonista ao lado de um bem todo-poderoso. [...] Somente
assim poderão ser atribuídos ao Deus único a totalidade e a síntese dos
opostos que lhe são próprias. Quem já experimentou o fato de que os
opostos, ‘por sua própria natureza’, podem unificar-se graças ao
símbolo, de tal modo que não tendam mais a dispersar-se, nem a se
combater mas, contrariamente, tendam a completar-se reciprocamente e
a dar à vida uma forma plena de sentido, não terá mais dificuldades
diante da ambivalência da imagem de um Deus da natureza e da
criação. Compreenderá precisamente o mito do ‘tornar-se homem’,
necessário a Deus, mensagem cristã essencial como uma confrontação
criadora do homem com os elementos contrários, assim como sua
síntese na totalidade da personalidade, o si-mesmo.
Os contrastes interiores necessários na imagem de um Deus criador
podem ser reconciliados na unidade e totalidade do si-mesmo, enquanto
coniunctio oppositorum. Na experiência do si-mesmo não se cogita mais
de superar o contraste ‘Deus e homem’, como anteriormente, mas da
oposição no próprio seio da imagem de Deus. É esse o sentido do
‘serviço de Deus’, isto é, do serviço que o homem pode prestar a Deus,
para que a luz nasça da trevas, para que o Criador tome consciência de
Sua criação, e que o homem tome consciência de si mesmo.
Tal é a meta, ou uma das metas, que integra o homem na criação de
maneira sensata e que, ao mesmo tempo, confere um sentido a ela. Foi
esse mito explicativo que cresceu em mim no decorrer de decênios.
Trata-se de uma meta que posso reconhecer e apreciar e que graças a
isso me satisfaz.”
(JUNG, Memórias, p.292)

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