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O Sujeito Oculto: As populações rurais durante a Revolução Russa.

Gabriel Oliveira de Carvalho Senra

Introdução

É notório que ao se tratar deste grande evento histórico que foi a Revolução Russa de 1917 surja uma
miríade de informações envolvendo guerras, manifestações urbanas, revolucionários, imperadores e
imperatrizes depostos e fuzilados e os desenvolvimentos políticos ocorridos tanto nas assembléias quanto
nas ruas. Impressiona, também, que por vezes é esquecida a participação daquele ator cuja importância no
desenrolar dos eventos dificilmente poderia ser superestimada: a população rural2. Afinal de contas, falar
do Império Russo durante a virada do século XIX para o século XX é falar de um país com cerca 80% da
população vivendo no campo, falar de um poder autárquico baseado essencialmente em estruturas
políticas semifeudais, de um país onde o capitalismo e, portanto, a própria constituição da classe operária,
ainda estava no princípio do processo de afirmação. Neste texto procura-se, desta forma, fazer um breve
histórico dos desenvolvimentos que acometeram as populações que sobrevivem diretamente do setor
agrícola, desde suas condições gerais anteriores à Revolução até as coletivizações forçadas, ocorridas a
partir de 1928, no contexto do Primeiro Plano Quinquenal (1928-1932). Pretende-se, por fim, demonstrar
que, longe de serem insignificantes, as tais populações foram um ponto de referência sobre o qual os
líderes bolcheviques sempre tiveram de lidar, em praticamente todas as suas decisões, durante o processo
de construção do socialismo na Rússia, foram, portanto, o “sujeito oculto” da revolução proletária
socialista.

1. O Campo antes da Revolução

As mudanças por que passa a condição rural na Rússia desde meados do século anterior são
essenciais para entender os desenvolvimentos que levaram ao agravamento do estado político e
econômico do País, estabelecendo as condições para a possibilidade de uma revolução social.
A partir do momento em que se torna insustentável a manutenção da ordem feudal na Rússia, cujo
atraso extremo frente às potências capitalistas mais avançadas se fez sentir em derrotas militares cada vez
mais regulares e pujantes durante o século XIX, o Estado Russo passa tomar algumas medidas
modernizadoras, representadas significativamente na abolição da servidão em 1861. O campo, até então
organizado economicamente sobre relações ainda feudais e politicamente em torno do mir (espécie de
comuna que tinha alguma importância administrativa local), viu então principiar a dissolução de sua
estrutura. Tal processo, porém, foi levado a cabo de forma a garantir a manutenção do poder das antigas

1
Texto escrito como Trabalho Final da matéria de História Econômica do Século XX, ministrado pelo professor Hugo Corrêa no
segundo semestre de 2016, no curso de Ciências Econômicas da Universidade Federal Fluminense.
2
Assim também ocorre com as narrativas ligeiras (ou ruins mesmo) da Revolução Francesa. Aparentemente, é mais importante
determinar precisamente a nomenclatura das diferentes fases da composição da assembleia representativa do que informar sobre a
enorme convulsão social que ocorreu no campo, que transformou em absoluto a estrutura produtiva do país e cuja singularidade se
fez presente em seu processo geral de industrialização, fazendo sentir seus efeitos político-econômicos até hoje.
aristocracias latifundiárias locais e então o camponês, livre e com seu pedaço de terra, passa a ser
obrigado a pagar reparações intermináveis aos seus antigos senhores, garantindo também sua vinculação
ao “chão”, assim reproduzindo as condições que supostamente foram abolidas. Isto, aliado à pesada carga
de impostos que incidia sobra os mesmos, colaborou para a deterioração brutal das condições de vida
desta população em fins do século, à exceção de alguns poucos que conseguiram enriquecer (os kulaks).
Assim, encontramos neste período os indícios da penetração do capitalismo na Rússia: a formação de
uma classe de fazendeiros capitalistas frente à outra de trabalhadores pauperizados e assalariados, esta em
número crescente pelo abandono inevitável dos camponeses empobrecidos de suas terras. O campo
dividia-se assim em grupos sociais de interesses antagônicos, que foram desta forma apreendidos por
Lênin: os kulaks (fazendeiros ricos), que se aproveitaram da ainda relativa desapropriação das terras
camponesas; os camponeses médios, que estava também em processo de empobrecimento acelerado; os
camponeses pobres, que mesmo quando ainda possuíam terras eram obrigados a se tornarem assalariados;
os grandes latifundiários, ainda símbolo de sustentação do regime absoluto.
Conforme apontado por HILL (1963), a supracitada mir foi, porém, um fator de interferência no
avanço das transformações sociais. A partir das reformas, ela foi transformada também em uma unidade
da administração burocrática russa, responsável por sua vez pela coleta de impostos e outros assuntos
locais, pondo assim “em xeque os negócios e empreendimentos dos kulaks, pois impedia o surto de
fazendas isoladas, nas quais o capital pudesse investir proveitosamente e limitava a concentração de terras
por hipoteca ou venda” (pág. 74). Ao mesmo tempo, porém, o controle cada vez maior de tal estrutura por
parte dos camponeses ricos acarretava a alocação do peso dos impostos sobre os pobres, agravando suas
condições de existência.
Assim, já com na Revolução de 1905, as tensões resultantes de décadas de desfacelamento da ordem
feudal e de degradação da condição campesina foram canalizadas em grandes revoltas que, apesar de
serem esmagadas pelo Estado, foram interpretadas pelas classes dominantes como a necessidade de se
consolidar uma nova base social para o regime, para além da própria aristocracia latifundiária. Desta
forma, no período iniciado junto com a nomeação de Stolipin como Primeiro Ministro, seguem-se uma
série de reformas obstinadas a acelerar o desenvolvimento das relações capitalistas no campo, tentando-se
assim cooptar o apoio dos elementos burgueses do mesmo. Aboliram-se o pagamento das reparações
supracitadas; outorgou-se o direito de propriedade absoluta aos chefes das famílias e o de estabelecer
contratos fora da região de origem; dispuseram-se créditos de forma a permitir o avanço da centralização
das terras. Todas estas medidas atacavam diretamente a forma de organização baseada na mir, abrindo
espaço para a livre negociação das terras, para a desapropriação das terras dos camponeses mais pobres e
para o avanço econômico dos kulaks, adotando-se portanto o que Lênin chamou de “via Prussiana” 3.
A consolidação de tais relações esbarrou no agravamento da crise institucional do regime, com a
insatisfação da burguesia e a organização do proletariado cada vez mais patentes, esbarrou na catástrofe
da Guerra e na Revolução.

3
Em oposição à chamada “via americana”, baseada na repartição da área rural entre os produtores, e a transformações a posteriori
dos mesmos em capitalistas.
2. Lênin e o Campesinato

As características de tal população, citadas no item acima, foram capturadas amplamente por Lênin,
que a analisou profundamente, por toda a vida, como parte de sua militância revolucionária. Ele entendia
que os interesses diferenciados e por vezes antagônicos dos diferentes grupos sociais que formavam as
populações rurais as colocavam como atores diferenciados frente à ação revolucionária do Partido
Comunista. A necessidade de se matizar o trato com as populações rurais, expresso também na própria
confusão da consciência de classe campesina, é retratada no texto de Lênin de 1913, O Campesinato e a
Classe Operária:
“Deste modo, a própria situação dos pequenos agricultores na sociedade contemporânea
transforma-os inevitavelmente em pequenos burgueses. Eles oscilam incessantemente entre os
operários assalariados e os capitalistas. A maioria dos camponeses vivem na pobreza e arruínam-
se, transformando-se em proletários, e a minoria pende para os capitalistas e apoia a dependência
em que estes mantêm as massas da população rural. Por isso em todos os países capitalistas o
campesinato na sua massa permanece até hoje afastado do movimento socialista dos operários,
aderindo a diferentes partidos reacionários e burgueses. Só uma organização independente dos
operários assalariados, que trave uma consequente luta de classe, é capaz de arrancar o
campesinato à influência da burguesia e de esclarecê-lo acerca da situação sem saída dos
pequenos produtores na sociedade capitalista. (...) Na Rússia, a posição dos camponeses em
relação ao capitalismo é absolutamente idêntica à que vemos na Áustria, na Alemanha, etc. A
nossa “peculiaridade” é o nosso atraso: o camponês tem pela frente não ainda o grande
proprietário capitalista, mas o grande proprietário feudal, que é o principal esteio do atraso
económico e político da Rússia. ”

Desde a perspectiva, prevista há muito, de que a revolução na Rússia seria primeiro de caráter
burguês, sendo logo por outra, socialista, cada grupo social teria um papel diferenciado no processo
revolucionário como um todo. A primeira etapa seria a luta conjunta do campesinato contra as instituições
feudais, dentro da lógica da primeira revolução (ou seja, em conluio com a burguesia.). Assim,
“Quanto mais decidida e consequente for a destruição e a eliminação da propriedade latifundiária
da terra, quanto mais resoluta e consequente for, em geral, a transformação agrária democrático-
burguesa na Rússia, tanto mais forte e rápido será o desenvolvimento da luta de classe do
proletariado agrícola contra o campesinato rico (a burguesia camponesa). ”4
E também:
“Não pensamos que os camponeses possuem pouca terra e necessitam de mais terra. Esta é uma
opinião corrente; dizemos que a propriedade agrária dos latifundiários é a base do jugo que
oprime o campesinato e o torna atrasado. Não se trata de que os camponeses tenham pouca terra
ou não. Abaixo o regime de servidão! É assim que deve colocar-se a questão do ponto de vista da
luta de classe revolucionária (...). ”5

Aproveitando-se o apoio dos camponeses pobres, seria levada a cabo a revolução proletária, pondo-
se fim ao poder político da burguesia. Por fim, “mediante a pressão estatal e experiência das vantagens
das fazendas coletivas em larga escala”6, conseguir-se-ia o apoio dos camponeses pobres e médios na
erradicação dos kulaks enquanto classe.

3. A Revolução de Outubro

De forma geral, pode-se definir que as duas revoluções que ocorreram no ano de 1917 são
consequência do agravamento das contradições latentes da estrutura socioeconômica do país,
potencializadas pela guerra e pela incompetência total e completa das classes dominantes o país.

4
Lênin, Resolução Sobre a Questão Agrária (1917).
5
Lênin, Relatório Sobre a Questão Agrária (1917).
6
Hill (63), pág. 76.
A mesma estrutura social “pesada” e retrógrada, que impediu o desenvolvimento das relações
capitalistas no campo, também impediu por séculos o desenvolvimento das indústrias nas cidades. De
fato, ainda em meados do século XIX, a maioria das indústrias ainda estavam nas mãos do Estado.
Mesmo as reformas supracitadas, ocorridas na segunda metade do século, não foram capazes de formar
uma burguesia nacional forte o suficiente para tomar para si um projeto de desenvolvimento para o país.
Assim, somente em finais do século que a Rússia passa a conhecer algum florescimento em termos de
suas industrias capitalistas, engendrado principalmente via Capital estrangeiro (em especial, o britânico e
o francês). Em consequência deste, formava-se também a figura da classe operária, enfrentando condições
terríveis de trabalho e logo conscientizada por ideias revolucionárias importadas do ocidente. Neste país,
a luta de classes se fazia presente desde seus primórdios. Esta pôs-se desde logo em confronto também
com a autocracia, incrivelmente ineficiente e retrógrada, e a sua rigidez foi também a causa da sua queda.
Apesar da derrotada Revolução de 1905, o regime pouco fez para se salvar de novos distúrbios.
Arrastada para a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) por causa principalmente de sua dependência
financeira, no conflito se tornaram novamente gritantes a total incapacidade da monarquia a fazer
qualquer coisa próxima à uma administração mínima. O caos, as mortes e fome foram a fagulha que abriu
espaço para uma nova Revolução (a de Fevereiro de 1917), desta vez com o papel ativo também da
pequena burguesia nacional, interessada pela substituição do regime por um modelo liberal e mais
propício aos desenvolvimentos de sua própria classe. Assim, no período posterior à sua consecução, o
caos generalizado e a influência cada vez maior dos bolcheviques (principalmente por meio dos sovietes)
permitiram, em final de Outubro a tomada do Estado pelo Partido Comunista, realizando-se, assim, a
primeira revolução socialista vitoriosa da história.
Conforme havia sido apontado por Lênin em seus estudos, para que fosse garantido o poder dos
sovietes após Outubro, era fundamental cooptar o apoio do campesinato, especificamente do campesinato
pobre, que constituía em si a maior parcela da população do país. Isto foi feito instigando-se contra aquele
que era, em sua vida cotidiana, seu explorador atroz: a aristocracia fundiária. Mediante a mera intimação
a fazerem os camponeses mesmos a tomada das terras dos seus senhores, garantiu-se a tão esperada
Reforma Agrária, a extinção dos latifundiários enquanto classe e a lealdade aos bolcheviques na defesa da
Revolução.

4. O Campo durante o Comunismo de Guerra

Poucos meses após a tomada do poder pelos bolcheviques, a guerra civil era realidade na Rússia.
Contra a ameaça dos exércitos “brancos”, contrarrevolucionários apoiados em peso pela maioria dos
países capitalistas, o governo viu-se na necessidade de remodelar radicalmente o sentido de suas políticas,
que tinham de responder imediatamente às condições dificílimas que se apresentavam. Assim, a
circunstância da guerra implicou a tomada de medidas bem mais radicais do que as que haviam sido
levadas a cabo até então, iniciando-se um processo de centralização das decisões políticas em volta do
Partido, de planejamento econômico central, a nacionalização das indústrias e o controle direto por parte
dos trabalhadores por sobre vários órgãos diferenciados de produção.
Toda a economia se direcionava assim para o esforço de guerra, e o campo, no aprovisionamento do
exército e das cidades, representava assim um ponto central. Devido às já referidas ocupações das grandes
propriedades, e suas subsequentes divisões entre uma grande massa de pequenos camponeses, aliada ao
próprio estado calamitoso do país em geral, tinha ocorrido nos últimos meses uma redução brutal da
produção agrícola, prejudicando assim o abastecimento do país. Para contornar o problema, foi tentada a
criação de “destacamentos de alimentos”, compostos principalmente por camponeses pobres, cujo
objetivo era expropriação todo o tipo de excedente que pudesse estar em mãos da classe dos camponeses
ricos (inflamando-se, ao mesmo tempo, as contradições entre tais interesses diversos). Tal iniciativa
falhou, entretanto, pela desconfiança cada vez maior em um Estado que se mostrava cada vez mais
centralizado e pela relativa influência que o kulak ainda exercia no meio rural. Desta forma, procurou-se
então basear-se na ajuda que poderia ser oferecida pelo camponês médio, mas este tampouco poderia
oferecer grandes resultados para o aumento da produção. Desta época datam os primeiros experimentos
relativos às fazendas coletivas, que também falharam devido à ausência completa de máquinas e
incrementos agrícolas necessários a produção.
Com a deterioração das condições de abastecimento das cidades, “o método pelo qual as
necessidades do Exército Vermelho, das fábricas dedicadas à produção da guerra e da população urbana
puderam ser atendidas foi o método brutal da requisição, ditado e justificado pela necessidade militar”
(CARR, pág. 31). Este, obviamente, não podia gerar senão o descontentamento geral destas populações
rurais expropriadas, e somente pode manter-se conquanto a guerra civil não findava.
Deve-se apontar, finalmente, que o triunfo bolchevique contra os exércitos brancos só foi possível
pela incorporação em massa de camponeses ao Exército Vermelho. Assim, a “lealdade” ainda devida
pelos mesmos aos revolucionários, aliada à percepção de que as tropas inimigas representavam de fato as
forças dos antigos senhores feudais foram suficientes para a estabilidade em meio aos combates e a
aniquilação final dos inimigos entre os anos de 1920 e 1921.

5. A NEP

O “Comunismo de Guerra”, parido como resposta imediata às urgências que se apresentaram ao


Governo durante a guerra civil, não podia mais se sustentar com o final do conflito. O país estava
arrasado pela destruição e pela fome, a indústria e o restante da infraestrutura nacional se encontravam
totalmente desarticuladas, o Partido Comunista tinha perdido um contingente substancial de militantes,
interferindo-se assim na capacidade administrativa do Estado. As revoltas camponesas que marcaram o
período imediatamente posterior ao fim da guerra foram um bom indício de que as populações rurais não
iam suportar mais a degradação de suas condições nem a expropriação de seus produtos, ameaçando,
portanto, a ligação com o proletariado que havia sido feita pela redistribuição das terras no período
revolucionário.
A Nova Política Econômica (NEP) foi concebida assim como um “recuo tático” necessário para que
fosse mantido o poder político dos bolcheviques. O elemento principal desta consistia em “amarrar” o
camponês ao regime, abrindo-se espaço assim para a melhora de suas condições de vida mediante a
reabertura das possiblidades de livre comércio do país. O auto-interesse do camponês deveria ser o
elemento propulsor da recuperação econômica russa, possibilitando o abastecimento das cidades e o
reerguimento gradual das indústrias. Deveria estar estimulada a produção de um excedente para além de
sua própria subsistência que, após tributado em proporção fixa pelo Estado, deveria ser vendido no
mercado.
Na mesma medida que garantiu o retorno de condições toleráveis de vida ao campesinato e o
abastecimento das cidades, a NEP permitiu também a volta do enriquecimento dos kulaks, este sendo o
principal tipo produtor do campo, conquanto os camponeses pobres ainda se restringiam ao seu nível de
subsistência. Reaparecia-se, assim, a figura do pequeno capitalista rural. Em decorrência da recuperação
também das indústrias rurais e artesanais, e portanto das relações comerciais entre as mesmas e o campo,
surge parida da NEP uma outra figura: a dos homens-NEP, comerciantes varejistas enriquecidos que se
aproveitaram das possibilidades abertas por sobre toda a economia.
Desde logo, porém, tornaram-se visíveis as limitações desta política: nos anos de 1922 e 1923, como
a recuperação industrial encontrava-se ainda muito limitada, e os seus produtos não eram fonte de procura
muito intensa por parte dos camponeses, a despeito da necessidade contínua de uma quantidade de
alimentos cada vez mais por parte das cidades, o que se viu foi um processo de elevação constante do
preços da produção agrícola frente a produção industrial. Isto gerou uma série de descontentamentos e
revoltas por parte do proletariado, que viu o seu salário real cair e aumentar o número de desempregados,
devido aos preços baixos dos produtos que trabalhavam. Para contornar a situação, as indústrias passaram
a organizar trustes destinados a controlar os fluxos comerciais e os preços de suas próprias mercadorias,
invertendo assim o processo e fazendo os preços dos artigos industriais avançarem rapidamente por sobre
os da produção rural, gerando assim danos enormes ao campesinato. Este fenômeno, conhecido como
“Crise da Tesoura”, se resolveu quando os lucros obtidos pelas empresas foram suficientes para estimular
a produção e consequentemente baixar o preço dos produtos industrializados, aliado às boas colheitas
obtidas neste período, normalizando as condições de troca entre os dois setores.
Em resposta à essas violentas oscilações, o governo soviético começou a aplicar o controle de preços,
que apesar de contrariar as perspectivas da economia de mercado, foram essenciais para garantir o
prosseguimento da recuperação econômica. Garantido o abastecimento geral do país, a prosperidade foi
tamanha que foi possível, a partir de então, a exportação do excedente gerado pela agricultura (1924).

6. Bukhárin e Preobazhenski

Assim que estava claro que a NEP tinha cumprido seu papel de manter o poder político da Rússia nas
mãos dos bolcheviques, mediante o entrelaçamento da recuperação econômica à melhoria material do
campesinato, recuperaram-se as discussões, sublimadas pela guerra civil e pelo desastre econômico,
referente a qual o caminho que deveria trilhar o país em direção à sua industrialização. No mesmo
momento em que principiava a ascensão de Stalin ao poder, foram feitos intensos debates acerca dessa
questão, já que, com a definição da doutrina do “socialismo em um só país”, a equiparação econômica da
URSS aos países capitalistas mais avançados só poderia ser feita mediante recursos próprios, o que em si
dificultava em muito a tarefa.
A chamada “via agrária”, que tinha como maior defensor Bukhárin, entendia que a posição do poder
dos sovietes ainda era muito frágil, bastante dependente, portanto, da “aliança com o campesinato”
garantida pela NEP. Sintetizada na fórmula “avanço à passos de lesma”, esta defendia que a
industrialização da URSS deveria ser feita à base do florescimento econômico, do enriquecimento das
populações agrárias, principalmente dos camponeses ricos. Assim, com uma política de concessões aos
kulaks, seria garantido o reerguimento da produção agrícola, e, consequentemente, da indústria nacional,
tanto pelo estímulo gerada pelos ganhos deste setor quanto pelos recursos que proviriam da venda no
exterior de um excedente cada vez maior.
Representante da “ala esquerda” do Partido, Preobazhenski entendia que o imperativo da
industrialização rápida é que deveria ser a partir de então o foco das políticas do governo soviético, já que
a NEP principiara o ressurgimento da classe capitalista no campo, de altos comerciantes que se
aproveitavam das fragilidades da economia nacional e ainda não abria possibilidade para a melhora das
condições de vida da classe operária, que a seu ver era a que mais arcava com o peso da industrialização
lenta7. Assim, conforme exposto em sua “lei fundamental da acumulação socialista”, os recursos
necessários para a industrialização deveriam provir da exploração das formas ainda capitalistas de
produção, que se encontravam por sua vez principalmente do campo. A deterioração dos termos de troca
entre o campo e a cidade, em favor desta última, era portanto fundamental para a alavancagem do
progresso econômico e a consequente construção do caminho para o socialismo.

7. A Industrialização Acelerada e seus efeitos sobre o Campesinato

As discussões sobre o futuro da economia soviética se acirraram quando reapareceram os problemas


relacionados à política de benefícios aos camponeses. No ano de 1925, a despeito do otimismo em relação
à colheita, houveram problemas quanto ao abastecimento das cidades, à oferta de cereais, o que
engendrou um processo repentino de desestabilização econômica. De fato, mesmo com a regulação dos
preços que garantiu a prosperidade nos anos anteriores, a oferta escassa de bens industriais e a maior
liquidez representada por seus produtos in natura fez com que os camponeses ricos represassem sua
produção. Apenas quando os preços foram “liberados” e atingiram um patamar alto é que a produção
começou a escoar. Esta demonstração do poderio econômico dos kulaks foi paradigmática ao Partido, e
apontava para a necessidade premente de mudança do foco das diretrizes econômicas.
Em 1927, entretanto, tinha-se a expectativa de um fornecimento normal, já que no anterior a safra
tinha sido abundante e não houveram problemas no abastecimento das cidades. Em face da ameaça de
guerra estrangeira contra a URSS, e da ainda insuficiente oferta de produtos industrializados, ocorreu
porém novamente a preferência pela estocagem por parte dos kulaks, só que dessa vez a situação não se
resolveu naturalmente. O que foi feito foi a adoção de “medidas extraordinárias” por parte do governo
soviético, que consistiam por sua vez na obrigatoriedade da entrega de todo o estoque possível por parte
dos camponeses ricos e médios. Como era de se esperar, não houve muito pacifismo nem tranquilidade na
aplicação destas, e as revoltas camponesas consequentes, aliadas à necessidade de se importarem cereais

7
Conforme aponta Callinicos (1992), mesmo com o abandono posterior da NEP e a ênfase dada às coletivizações forçadas, quem
arcou com o maior peso da industrialização acelerada foi de fato o trabalhador urbano. Assim, “(...) a industrialização ‘socialista’ na
URSS tornou-se possível não só pela destruição do campesinato, mas também pela intensa exploração da própria classe que, em
teoria, dirigia o país, e que supostamente deveria ser a principal beneficiária das mudanças em andamento. ” (pág. 45). Tal aumento
da exploração se deu pelo aumento brutal da produtividade e da intensidade do trabalho, pela diminuição dos direitos trabalhistas e
pela queda do salário real.
para o abastecimento da cidade, foram um duro golpe no regime, e a posição de anuência em relação ao
campesinato se viu cada vez mais fragilizada.
Em 1928, mesmo com a reorganização do sistema de coleta, sendo agora estabelecidas cotas de
produção para as aldeias específicas, que deveriam ser atingidas principalmente com a ajuda do kulak8,
não foi possível evitar a ocultação da produção e seu direcionamento ao mercado negro, onde os preços
dos cereais eram mais favoráveis. Assim, de novo houve uma crise de abastecimento das cidades, que só
foi sanada mediante a importação e a racionalização dos alimentos. Esta, por sua vez, enterrou todas as
crenças que ainda restavam na possibilidade de se construir o avanço econômico soviético mediante a
política de estímulos à iniciativa privada no campo.
Nestes mesmos anos, foram gestados pelos líderes sovietes os planos de retorno à lógica do
planejamento econômico central, que fora adotado somente no período do comunismo de guerra, e logo
abandonado em favor da NEP. Identificada com o próprio processo de industrialização do país, visto
principalmente a partir de meados dos anos 1920 como fundamental para a garantia da sobrevivência da
URSS e para a construção do socialismo, esta ganhou força com a recuperação econômica e com a
percepção do crescente atraso da indústria soviética frente às correspondentes dos países avançados,
frente mesmo ao florescimento econômico da agricultura. Junto à necessidade da independência
econômica, acresce-se a ameaça de que guerra que pairou sobre o país em 1926/1927, que serviu para
acrescentar o ímpeto do desenvolvimento da indústria militar ao quadro geral. A racionalização,
modernização e mecanização tornaram-se, assim, imperativos nacionais.
Para a perspectiva do planejamento central, além dos já mencionados distúrbios envolvendo a
produção e distribuição dos gêneros alimentícios, somava-se como obstáculo a estrutura extremamente
atrasada da produção campesina. Seus métodos e materiais de trabalhos eram rudimentares e as células de
produção pequenas e fragmentadas não podiam senão fazer a produção ser bem aquém do possível.
Acrescenta-se a problemática representada pelo mir. Essa estrutura, que ganhou sobrevida pela Revolução
de Outubro e a consequente reforma agrária, representava ainda uma forma de resistência política
possível as sovietes de camponeses locais, constituindo-se, portanto, em um entrave à necessária
administração unificada, requerida pelo planejamento central.
Neste período anterior ao Plano Quinquenal, foram feitas ainda uma série de tentativas relacionadas à
produção coletiva, sob a forma das experiências dos colcoses e dos sovcoses. Os colcoses eram fazendas
coletivas formadas pela junção de pequenas propriedades campesinas, cujo experiência inicial não
floresceu, devido ao seu tamanho mínimo. Sovcoses eram fazendas do governo soviético propriamente
dito, implantadas em geral em terras virgens e baseadas essencialmente na utilização intensiva de
maquinaria. Apesar de também não terem dado certo, estes evidenciaram a importância das máquinas
para o aumento da produtividade agrícola, e foram um dos motivos para a alavancagem do trator como
símbolo da modernização do campo russo.
De qualquer forma,
“A primeira condição da industrialização era que o camponês fornecesse o alimento
necessário às cidades e fábricas, a preços que não representassem um peso intolerável aos
salários, e sem o desvio de mais do que um mínimo dos recursos da indústria para a manufatura
dos bens de consumo para o mercado camponês (...). A operação bem-sucedida dos primeiros
meses de 1928 foi interpretada como mostra de que, com uma suficiente aplicação de força, a

8
Esse sistema ficou conhecido como “método ural-siberiano”, devido às áreas em fora primeiramente aplicado.
coerção do camponês era praticável, e mesmo indispensável. O camponês, o fator recalcitrante
numa economia socialista planificada, tinha de ser domesticado. ” (CARR, pág. 122)

A industrialização como meta absoluta do regime soviético foi corporificada pela promulgação do
Primeiro Plano Quinquenal, em 1929.

8. O Plano Quinquenal e as Coletivizações

As pretensões relacionadas ao planejamento central da economia e ao impulso industrializante como


um todo se materializaram no Primeiro Plano Quinquenal, que determinava objetivos de crescimento para
o período entre 1929 e 1933. Este estabelecia metas de investimento e produção grandiosas para a
indústria pesada, mas abarcava em si todo o conjunto da economia, agricultura inclusa. Neste sentido,
procurou colocar a questão do abastecimento em rígido controle, evitando-se a sordidez representada
pelas oscilações da vontade campesina. Para o necessário aumento da produtividade, foram criadas
diretrizes quanto à modernização da agricultura, principalmente via a difusão de tratores e de
implementos. Toda a perspectiva contida no plano dependia do aumento da produção no campo.
Conclui-se, então, que a NEP viu seus dias contados quando, a partir de conflitos cada vez maiores
entre o campo e a cidade, a aliado as crescentes pressões em favor de uma industrialização rápida do país,
tornou-se insustentável a base de favorecimento ao campo (e, mais especificamente, ao camponês rico)
que garantia a mesma. Conforme destaca Carr,
“Continuava existindo ainda um livre mercado nos produtos da indústria privada, de
pequena escala, e acima de tudo na agricultura. Mas a subordinação de todas as principais
atividades econômicas aos ditames do plano, e a pressões cada vez mais duras ao camponês,
tornavam anômalos e precários esses resquícios da NEP. Tais resquícios foram tolerados
enquanto era conveniente tolerá-los, mas pareciam ter pouca importância. ” (CARR, pág. 140)

Em 1929, utilizando-se de novo os métodos de coação já conhecido dos anos anteriores, foi
conseguido o alcance das cotas estabelecidas. De novo, as revoltas campesinas foram ferozes, e
estabeleceu-se assim o impulso final à coletivização do campo, baseada principalmente na difusão dos
colcoses. Este processo que deveria, em princípio, ser adotado gradual e voluntariamente, pelo incentivo
das desordens camponesas e pelo impulso da industrialização acelerada, passou a ser compulsório, e de
necessidade imediata.
Assim, entre 1929 e 1930 foi montado “um grande exército de ativistas” cujo objetivo era principiar
a coletivização em massa. Para isso, foi exigido dos camponeses todos seus meios de trabalho (animais,
ferramentas e implementos) e o sua realocação para os colcoses. Em relação aos kulaks que resistissem,
estes seriam expulsos da área, ou então deportados para regiões longínquas. Como não foram apenas estes
que resistiram, a categoria ‘kulak” foi consideravelmente ampliada no período. Foram criados colcoses
gigantescos, a partir das novas terras “coletivizadas”, mas cuja expansão ainda maior foi minada pela
resistência campesina à sua aderência e a total falta de gente especializada, necessária à organização
mínima da produção. Este fato, aliado ao suprimento inadequado de máquinas e outros tipos de
equipamentos necessários, fez temer uma catástrofe na produção no 1930. Assim sendo, por um curto
período “a pressão relaxou, e durante a primavera muitos camponeses que haviam sido forçados aos
colcoses puderam deixá-los”9.
Safra garantida, no ano seguinte o processo se reiniciou, com uma resistência menor devido à já
inexistência do kulak. Já “em meados de 1931 dois terços de todas as propriedades nas principais áreas
produtoras de cereal, haviam sido incorporados aos colcoses, e o resto incorporou-se nos anos que se
seguiram”10. O que seguiu foi a repetição dos problemas vistos no ano anterior, de falta de organização
(agravada pelo fato de os melhores agricultoras – os kulaks – não estarem mais disponíveis) e maquinaria,
aliado à uma maior coleta de cereal e dois anos de colheitas ruins. A falta de alimentos gerou a ruína do
campesinato, e entre 1 e 5 milhões de pessoas foram vitimadas pela fome, no inverno. Ao fim da
aristocracia latifundiária, 14 anos antes, somava-se agora a liquidação dos kulaks como classe.
Este foi o fim de um período, iniciado na Revolução, em que o campesinato ainda se apresentava
como um fator político à parte, independente, em certo sentido, das possibilidades de controle do Partido.
Tal característica se derivava, a princípio, tanto pelas estruturas feudais que tinham sobrevivido por
séculos no campo, e cujo processo de dissolução lançaram novas figuras sociais que impunham extrema
dificuldade na atividade revolucionária dos bolcheviques, aliado à falta que os mesmos sempre tiveram de
uma base social firme nestas áreas. As populações rurais eram o que compunham a grande maioria da
população Russa, e de fato continuaria a fazê-lo por décadas. Agora, porém, nas fazendas coletivas, tal
população era perfeitamente administrável por parte dos governos soviéticos (tal como haviam se tornado
os sindicatos, nas cidades, mais ou menos no mesmo período), e não se apresentava mais como um fator
de ponderação na política da URSS. O sujeito com quem os revolucionários sempre tiveram de lidar, o
sujeito oculto representado pelas populações camponesas russas, simplesmente torna-se inexistente.

Bibliografia

CARR, E.H. A Revolução Russa de Lênin a Stalin (1917-1929). Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
CALLINICOS, A. A vingança da história: o marxismo e as revoluções do leste europeu. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1992.

HILL, C. Lênin e a Revolução Russa. Rio de Janeiro: Zahar, 1963.

LÊNIN, V. O Partido Operário e o Campesinato. Disponível em


https://www.marxists.org/portugues/lenin/1901/03/04.htm, acessado em 05/01/2017

O Campesinato e a Classe Operária. Disponível em


https://www.marxists.org/portugues/lenin/1913/06/12.htm, acessado em 05/01/2017

Resolução Sobre a Questão Agrária. Disponível em


https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/05/13.htm, acessado em 05/01/2017

Relatório Sobre a Questão Agrária. Disponível em


https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/05/11.htm, acessado em 05/01/2017

9
Carr (1978), pág. 147
10
Ibid., pág. 147

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