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A obra relata um caso fictício que ocorreu com um grupo de cinco


espeleólogos que ficaram aprisionados em uma caverna após uma avalanche que
causou a interdição completa da saída. 

Ao decorrer das horas que se sucederam após o incidente, familiares


notificam á associação de espeleologia, imediatamente membros dirigiram-se para o
local. Após trinta e dois dias, equipes de resgate desobstruíram a saída, as custas de
intensos esforços e gastos, além da perda de dez vidas de operários que ali
trabalhavam.  

Durante o vigésimo dia, percebeu-se que o grupo levava consigo um rádio


transmissor e receptor, então, prontamente instalaram uma unidade eletrônica capaz
de enviar sinais para esse rádio e receber sinais dele. Estabelecida comunicação
percebeu-se que possuíam escassos mantimentos e não havia elementos animais ou
vegetais na caverna que pudessem ser utilizadas como alimento. Perguntaram quanto
tempo mais seria necessário para que os tirassem de lá. Foi-lhes informado que cerca
de dez dias, se não houvesse mais avalanches. Requisitando a opinião de um médico,
foi-lhes informado pelo mesmo que seriam escassas as possibilidades de subsistirem
por mais dez dias com os mantimentos que ainda lhes restavam. Adiante Whetmore,
integrante do grupo, indagou em seu próprio nome e em representação dos outros se
subsistiriam então mais dez dias se se alimentassem de carne humana, a contra gosto
foi-lhes respondido que sim. Whetmore perguntou se seria aconselhável que tirassem a
sorte para definir quem seria sacrificado, porém ninguém atreveu-se a responder-lhe
mesmo com insistência de Whetmore, após isso cessou-se a comunicação. 

Quando finalmente foram libertados percebeu-se que Whetmore tinha sido


assassinado para servir de alimento. Após se recuperarem da tragédia, através de
tratamento médico e psicológico, foram denunciados pelo assassinato de Roger
Whetmore. 

Os réus alegaram que ceifaram a vida de Roger no vigésimo terceiro dia,


data em que foram tirar na sorte quem moreria, e este recusou-se a participar. Apesar
disso, os outros quatro decidiram prosseguir; lançaram os dados, um a um, mas
quando chegou a vez Whetmore, como este se recusou, um dos réus questionou-lhe
se havia alguma objeção a que seus dados fossem lançados; como a afirmação de
Whetmore foi negativa, os dados foram lançados. O único fator determinante para a
sua morte foi a sorte. 

Os réus foram julgados culpados e sentenciados à morte pela forca, em


primeira instância. A suprema corte, por maioria de votos, manteve a sentença

Fonte: http://www.webartigos.com/articles/2521/1/Breve-Analise-Do-Livro-o-Caso-Dos-
Exploradores-De-Cavernas/pagina1.html#ixzz1J4PqDOeg
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O CASO DOS EXPLORADORES DE CAVERNAS - AVALIAÇÃO À LUZ DO


ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Este ensaio, inspirado pela magistral obra do Professor Lon L. Fuller da


Harvard Law School intitulada O caso dos exploradores de Cavernas, e traduzida para
o português pelo Professor Plauto Faraco de Azevedo da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, objetiva analisar o referido caso à luz do ordenamento jurídico pátrio,
com especial atenção à Carta Magna e ao Código Penal Brasileiro.  
 
Reconhece-se desde já a variedade de filosofias jurídicas trazidas a lume pelo autor
para justificar os diferentes votos proferidos pelos juízes do caso. Sendo assim, não se
tem a audácia de pretender construir aqui uma argumentação que figure como única e
absoluta solução admissível para o tema, antes pelo contrário. Reconhece-se que uma
situação como esta, dado as condições peculiares que a envolvem, favorece
argumentações que defendem teses diametralmente opostas.  
 
O fictício Caso dos Exploradores de Cavernas se inicia em princípios de maio de 4299
quando cinco membros de uma sociedade amadorística de exploradores penetraram
em uma caverna de rocha calcárea no Condado de Stowfield. Quando já se
encontravam bem distantes da entrada um grande desmoronamento bloqueou-lhes
completamente a única saída. Seus familiares, tendo notado a ausência deles,
avisaram a sociedade e uma equipe de socorro foi enviada ao local.  
 
Embora a equipe trabalhasse constantemente novos deslizamentos, que provocaram a
morte de dez operários, dificultavam o salvamento. Durante este período os
prisioneiros esgotaram as escassas provisões alimentares de que dispunham.  
 
Descoberto que os exploradores levavam consigo um rádio transistorizado
estabeleceu-se a comunicação entre eles e os responsáveis pelo resgate. Tendo
aqueles questionado sobre o tempo necessário para as equipes os resgatarem foram
informados que a desobstrução demoraria pelo menos dez dias. Descreveram a
quantidade de alimentos de que dispunham e perguntaram ao médico da equipe se
seria possível sobreviverem com aqueles mantimentos durante os dez dias faltantes.
Informados que dificilmente sobreviveriam com o que dispunham um dos
encavernados, Whetmore, em nome do grupo, perguntou se poderiam resistir se
sorteassem um dentre eles para matar e comer. Muito a contragosto o médico da
equipe respondeu afirmativamente. Quanto a um pronunciamento moral sobre a
questão não houve quem se dispusesse a assumir o papel de conselheiro. A partir
deste momento interrompeu-se a comunicação radiofônica.  
 
No trigésimo segundo dia conseguiu a equipe libertar os exploradores, mas Whetmore
tinha já sido morto e servido de alimento a seus companheiros. A morte aconteceu no
vigésimo terceiro dia do cativeiro, três dias após cessarem as comunicações de rádio.  
 
Segundo o relato dos quatro sobreviventes [1] dentro da caverna, por sugestão de
Whetmore, todos acordaram em sortear uma vítima através de um lance de dados;
porém, antes de realizarem o sorteio, Whetmore declarou querer esperar mais uma
semana, pelo que foi acusado de violar o pacto. Recusando-se a lançar os dados o
fizeram seus companheiros em seu lugar e, para seu infortúnio, a sorte caiu sobre o
próprio Whetmore que foi morto e serviu de alimento para os encavernados.  
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Após um intensivo tratamento psicológico e nutricional foram os quatro sobreviventes
submetidos ao juri popular acusados pela prática de homicídio. Eximindo-se os jurados
de expedir o veredicto o caso foi resolvido pelo juiz de primeira instância, o qual
declarou culpados os réus e condenou-os à pena capital, em obediência aos ditames
da lei do país. Sensibilizados com o desfecho do caso os jurados enviaram uma
petição ao chefe do poder executivo para que comutasse a pena de morte em seis
meses de prisão. Semelhante documento foi elaborado pelo próprio juiz que proferiu a
sentença. O chefe do executivo resolveu esperar a decisão da Suprema Corte à qual
recorreram os condenados. Os cinco juízes desta Corte proferiram seus votos. Dois
juízes manifestaram-se pela absolvição, dois pela condenação e, devido a abstenção
de um dos juízes, ocorreu um empate. Face a esta circunstância foi confirmada a
sentença condenatória de primeira instância, mantendo-se a condenação dos
acusados.[2]  
 
Como todos os Estados Democráticos de Direito, a República Federativa do Brasil,
fundamentada e orientada pelo princípio da dignidade da pessoa humana, proclama no
art. 5°, caput [3], da Carta Magna a vida como direito fundamental do indivíduo. Ao
declarar isso quer a Constituição dizer que o indivíduo tem direito a uma continuidade
na sua existência como pessoa humana, quer significar que, nas palavras de José
Afonso da Silva, tem "direito a não ter interrompido o processo vital senão pela morte
espontânea e inevitável".  
 
É pelo reconhecimento deste direito de continuidade à vida que a legislação penal
tipifica e pune os atos atentatórios à existência e à integridade física e moral das
pessoas. Assim, eliminar a vida de um ser humano é conduta que se amolda à norma
penal incriminadora disposta no art. 121 do Código Penal (homicídio), que prevê pena
de reclusão de seis a vinte anos para o autor deste delito.  
 
Numa primeira análise a solução do caso em tela parece simples: se a norma penal
prevê que quem mata pratica conduta típica do homicídio e, se os sobreviventes do
caso que se analisa mataram seu companheiro, então a conduta dos sobreviventes se
ajusta ao tipo previsto pela norma penal.  
 
Entretanto, na linha da boa doutrina de Damásio E. de Jesus, a conduta típica não
basta para que exista crime pois para que este reste configurado faz-se necessário que
o ordenamento reprove o comportamento do sujeito, considerando o fato como ilícito,
antijurídico. Geralmente o fato típico também é antijurídico[4], salvante os casos em
que fica caracterizada uma das causas excludentes da ilicitude (causa de justificação)
que, nos termos do art. 23 do Código Penal são o estado de necessidade, a legítima
defesa, e o estrito cumprimento de dever legal ou exercício regular de direito. As
causas excludentes da ilicitude licitam uma conduta humana que se amoldou à figura
típica.  
 
Dito isto acredita-se que os sobreviventes do Caso dos Exploradores de Cavernas
estariam amparados na legislação brasileira pela excludente de ilicitude prevista no
inciso I do artigo 23 e artigo 24, ambos do Código Penal: o estado de necessidade.  
 
 
 
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Dentre acontecimentos históricos que se tornaram famosos o direito aponta como


típicos do estado de necessidade: (a) o caso da fragata "La Méduse", que em 1816
encalhou em um banco de areia na costa africana. Ordenado o abandono do navio,
147 pessoas ficaram numa enorme jangada e o restante dos passageiros e tripulantes
em chalupas que deveriam rebocar a jangada. Entretanto os cabos que ligavam as
embarcações romperam-se e não foram reatados. A antropofagia foi praticada sobre os
corpos dos companheiros mortos. Dos 147 náufragos, salvaram-se 15, alguns dos
quais vieram a morrer depois de hospitalizados [5]; (b) o caso do iate inglês
Mignonette, que naufragou em julho de 1884. Depois de vários dias no mar, o mais
jovem náufrago foi morto pelos companheiros, que mais tarde alegaram estado de
necessidade perante o júri.  
 
Os doutrinadores pátrios também exemplificam casos que configurariam típicos
estados de necessidade. Cite-se, como exemplo, Magalhães Noronha, que aponta
como clássicos os casos "do expectador de uma casa de diversões que incendeia e
que para se salvar fere ou mata outro expectador; o do alpinista que precipita no
abismo o companheiro, visto que a corda que os sustenta não suporta o seu peso etc."
e continua afirmando estarem, "sem a menor dúvida, compreendidos como estado de
necessidade os casos da tábua e dos dois náufragos (tabula unius capax), e de
antropofagia, em que, em expedições, morrendo à fome, os expedicionários combinam
matar e comer um companheiro".  
 
Para que se configure o estado de necessidade a doutrina aponta como requisitos
indispensáveis:  
 
a) Atualidade do perigo: consiste na exigência de que o perigo seja atual ou que esteja
na iminência de ocorrer. A caracterização de um simples perigo eventual não legitima a
aplicação da excludente da ilicitude;  
 
b) Inevitabilidade do perigo: a situação deve estar de tal forma configurada que não
admita outra forma de o sujeito resguardar o bem jurídico sem violar direito alheio.
Também deflui deste requisito que o meio empregado pelo sujeito deve ser o menos
nocivo possível. O sacrifício de bem jurídico de terceiro inocente só é admitido pelo
ordenamento jurídico como recurso último para que o sujeito proteja direito seu ou de
teceiro;  
 
c) Que o perigo não tenha sido voluntariamente provocado pelo sujeito;  
 
d) Razoabilidade da conduta do agente: É necessário que não seja razoável se exigir o
sacrifício do bem juridicamente tutelado do agente, devendo existir, pelo menos, um
equilíbrio entre os direitos em conflito. Consiste, em outras palavras na inexigibilidade
de sacrifício do bem ameaçado, isso porque não se pode exigir de ninguém conduta de
santo ou mártir a sacrificar bem seu em nome da preservação de bem de outrem frente
a perigo para cuja ocorrência não concorreu.  
 
Presentes estes requisitos configurado está o estado de necessidade a licitar a conduta
típica do sujeito.  
 
Relativamente ao caso que aqui se estuda nota-se que (a) o perigo de morte era
iminente, tendo o próprio médico da equipe de salvamento admitido que eram
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praticamente inexistentes as chances de sobreviverem os exploradores pelo período


mínimo estimado de dez dias para o sucesso das operações de salvamento; (b) a
caverna calcárea na qual encontravam-se enclausurados os exploradores não oferecia
qualquer forma de alimento que pudesse ser utilizada ao invés da própria carne
humana dos próprios exploradores. Matar um companheiro para da sua carne se
alimentar foi o único recurso possível para satisfazer a necessidade vital de
alimentação; (c) ao perigo de morte por inanição nenhum dos exploradores tinha dado
causa já que a caverna subterrânea em que se encontravam presos teve sua saída
bloqueada por um desmoronamento natural; (d) os bens jurídicos em conflito são a vida
de cada um dos exploradores não sendo razoável exigir que um deles sacrificasse a
vida para resguardar a dos outros.  
 
Vê-se, portanto, que sob o império da legislação penal brasileira o estado de
necessidade resta cabal e plenamente configurado no Caso dos Exploradores de
Cavernas. Os sobreviventes seriam absolvidos da acusação de homicídio. A Carta
Constitucional não preve solução diversa. O bem jurídico que estava em jogo era a vida
e ela a Constituição erigiu a patamar de direito fundamental. Quando o direito à vida de
duas pessoas entram em conflito sem que nenhuma tenha dado causa para que isso
ocorresse e sem que haja outra maneira de se resolver a situação não há como a Carta
Magna declarar o direito de uma pessoa a viver em detrimento da outra, sem violar o
direito tutelado no inc. XLI do art. 5° do seu próprio texto[6], incorrendo em explícita
contradição. Nas palavras de Magalhães Noronha: "Na colisão de dois bens jurídicos
igualmente tutelados, o Estado não pode intervir, salvando um e sacrificando o outro,"
resta aguardar a solução do conflito para proclamá-la legítima.  
 
É porque a Constituição proclama o direito fundamental do indivíduo à vida – pré-
requisito para a existência de todos os outros direitos - que, nas palavras de José
Afonso da Silva, pelo nosso ordenamento "se reputa legítimo até mesmo tirar a vida a
outrem em estado de necessidade de salvação da própria."  
 
 
 
 
 
NOTAS:  
 
[1]Como poderá o leitor observar ter-se-ão como verdadeiras as declarações dos
sobreviventes, sem questionamentos sobre a sua validade, somente com o propósito
de viabilizar este estudo.  
 
[2] Inobstante as flagrantes diferenças entre o direito processual penal e material penal
expostos no caso e os seus correspondentes brasileiros acredita-se que a situação
fática apresentada serve ao propósito visado.  
 
[3] Sob o Título II, Dos Direitos e Garantias Fundamentais, a Constituição Federal
dispõe em seu 5° artigo, caput, que "Todos são iguais perante a lei, garantindo-se aos
brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à segurança ..." Grifou-se.  
 
[4] Em verdade antijuridicidade (ou ilicitude) e tipicidade são conceitos que andam
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juntos. Existe uma presunção de que o fato que se ajusta ao tipo é antijurídico,
presunção que só é afastada se a lei permitir expressamente o comportamento típico
do sujeito. É o que ocorre no art. 23 do Código Penal Brasileiro.  
 
[5] O trágico naufrágio da fragata La Méduse foi imortalizado em famoso quadro de
Géricault, hoje no Museu do Louvre, em Paris.  
 
[6] Segundo a Constituição Federal, art. 5°, XLI: "a lei punirá qualquer discriminação
atentatória dos direitos e liberdades fundamentais". A vida, independentemente das
qualidades particulares de cada ser humano, é direito fundamental proclamado tal pela
Constituição Federal. Assim, estando em conflito o direito de duas pessoas à vida não
há como exigir o sacrifício de uma - talvez por critérios de idade ou saúde - para
salvaguardar a vida de outra, pois os bens jurídicos em conflito são igualmente
protegidos pela lei maior do Estado brasileiro.  
 
 
 
BIBLIOGRAFIA:  
 
BRASIL. Decreto-lei n. 2.848 de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. 37. ed. São
Paulo: Saraiva, 1999.  
 
_______. Constituição da República Federativa do Brasil de 05 de outubro de 1988. 21.
ed. São Paulo: Saraiva, 1999.  
 
FRANCO, Alberto S.; STOCO, Rui; SILVA JR., José; NINNO, Wilson; FELTRIN,
Sebastião O.; BETANHO, Luiz C.; GUASTINI, Vicente C. R. Código Penal e sua
Interpretação Jurisprudencial. 2 vols. 6. ed., ver. e ampl. São Paulo: ed. Revista dos
Tribunais, 1997.  
 
FULLER, Lon L. O Caso dos Exploradores de Cavernas. Tradução do original inglês e
introdução por Plauto Faraco de Azevedo. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor,
1976. 10ª reimpressão:1999.  
 
MIRABETE, Julio F.Código Penal Interpretado. 1. ed. São Paulo: Atlas, 1999.  
 
NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal. 31. ed. São Paulo: Saraiva, 1995.  
 
PASSOS, Nicanor S. O Caso da Medusa. Consulex, Brasília, ano IV, v. I, p. 11, nov.
2000.  
 
SILVA, José A.; Curso de Direito Constitucional Positivo. 19. ed., rev. e atual. São
Paulo: Malheiros Editores, 2001.
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 1. INTRODUÇÃO

“THE CASE OF THE SPELUNCEAN EXPLORERS” consiste em um estudo da


argumentação jurídica elaborado pelo professor de Jurisprudence da Harvard Law School, Lon
Fuller, em 1949. O caso proposto ocorre no ano 4300, onde quatro indivíduos são julgados pelo
assassinato de Roger Whetmore. Condenados pelo crime em primeira instância no Tribunal do
Condado de Stownfield, Fuller descreve os fatos através do pronunciamento dos cinco juízes da
Suprema Corte de Newgarth, onde os acusados recorreram da decisão.

Como temas das argumentações dos juízes Truepenny, Foster, Tatting, Keen e
Handy, Fuller se utiliza das contraposições das correntes jusnaturalista e positivista, dos métodos
hermenêuticos e dogmáticos de interpretação, da legalidade e da legitimidade das normas, das
atribuições de cada um dos poderes do Estado e algumas outras questões que proporcionam
distintas abordagens ao caso.

2. DA ARGUMENTAÇÃO DO JUÍZ TRUEPENNY

O primeiro a se pronunciar foi o juiz Truepenny, também presidente da Suprema


Corte, que cuidou de revisitar o episódio do crime e a sentença condenatória proferida em
primeira instância. Segundo Truepenny, os acusados eram membros da Sociedade de
Espeleológica, uma organização amadorística de exploração de cavernas. Em meados de maio de
4299 estavam eles em companhia de Roger Whetmore, também membro da Sociedade
Espeleológica, em uma expedição quando foram surpreendidos por um deslizamento que
bloqueou a única saída da caverna em que se encontravam. Passando-se alguns dias sem
informações, os familiares dos exploradores entraram em contato com o secretário da Sociedade
que, com os dados deixados pelos exploradores sobre a localização da caverna, enviou
prontamente uma equipe de socorro.

A remota localização da caverna e os custos envolvidos no trabalho de resgate


tornavam esta tarefa extremamente difícil. Engenheiros, geólogos e outros técnicos formavam
um enorme campo de trabalho, frustrado diversas vezes por novos deslizamentos que tolhiam a
desobstrução da caverna. Sabendo-se que poucos eram os mantimentos levados pelos
exploradores e que nenhum alimento poderia ser encontrado no interior da caverna, o risco de
que morressem de inanição antes de serem resgatados era evidente.

Contados vinte dias do deslizamento que bloqueou a entrada da caverna, se soube


que os exploradores levavam consigo um rádio comunicador, o que possibilitou a troca de
informação entre estes e a equipe de resgate. Na primeira interação, a equipe de resgate foi
questionada pelos exploradores sobre o tempo previsto para que se concluísse a operação, dando-
lhes como reposta o prazo de dez dias, desde que não houvesse novos deslizamentos. Também
nesta oportunidade, a equipe médica que acompanhava o resgate foi questionada pelos
exploradores sobre a possibilidade de sobrevivência, em vista do prazo previsto de resgate e da
falta de provisões, respondendo-lhes que seria uma remota possibilidade.

Após um intervalo sem se manifestarem, os exploradores solicitaram um novo


contato com a equipe médica, no qual Roger Whetmore, em nome dos exploradores, questionou
sobre a possibilidade de eles sobreviverem utilizando a carne de um dos membros como
alimento, recebendo a resposta em sentido afirmativo. Posteriormente, em um novo contato,
Whetmore questionou se seria adequado que se tirasse na sorte o individuo a ser sacrificado, mas
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não recebeu resposta de nenhuma dos presentes. Todos se recusaram a opinar e desde então os
exploradores não se comunicaram com a equipe de socorro.

Concluído o resgate, se soube pelos acusados que Whetmore propôs se escolher


pelos dados o indivíduo a ser sacrificado, sendo estes inicialmente contrários a idéia. Depois de
alguma discussão, todos os membros concordaram e, pouco antes de serem os dados lançados,
Whetmore revogou sua opinião, resolvendo esperar por mais uma semana. Todavia, já decididos
com a proposta inicial do próprio Whetmore, os exploradores o acusaram de quebrar o acordo e
deliberaram que os dados seriam lançados mesmo sem a sua concordância. Um dos acusados
procedeu no lanço dos dados representando o dissidente, que por sua vez não se opôs à maneira
pela qual os dados foram lançados. Tendo sorte adversa, Whetmore foi sacrificado.

Denunciados os exploradores pelo assassinato, o representante do júri solicitou ao


juiz que os jurados pudessem emitir um veredicto especial, acolhendo ou não as provas e
deixando ao juiz decidir se haveria ou não culpabilidade dos réus. Sendo os relatos dos acusados
aceitos como prova pelo júri da primeira instância, o juiz declarou-os então como culpados e
condenou-os à forca à luz da lei. Todavia, tanto os jurados como o próprio juiz eram contrários à
condenação dos acusados, dado que estes emitiram, separadamente, pedidos ao chefe do
executivo que comutasse a pena de morte em prisão de seis meses.

De acordo com o entendimento do presidente da Suprema Corte, Truepenny, os


jurados e o juiz do Tribunal do Condado optaram pela melhor e única escolha, visto que os
dispositivos legais, especificamente o mais relevante ao caso, “Quem quer que intencionalmente
prive a outrem da vida será punido com a morte”, não possibilitavam qualquer exceção de
aplicabilidade. Assim, consoante com a decisão da primeira instância, Truepenny decide manter
a acusação e a conseqüente condenação, mesmo que indesejada, e recomenda a mesma postura
aos colegas, sob o argumento de preservar a força normativa da lei, deixando ao executivo a
possibilidade de conceder alguma forma de clemência para com os acusados.
 
3. DA ARGUMENTAÇÃO DO JUÍZ FOSTER

Para Foster, o segundo juiz da Suprema Corte a se pronunciar, o posicionamento do


seu colega Truepenny implicaria não apenas na injusta penalização dos acusados, mas também
na condenação da própria lei pelo senso comum. Justificando seu veredicto favorável à
absolvição dos réus, Foster põe a salvo a validade dos dispositivos legais utilizando-se
inicialmente de uma remissão às teorias do jusnaturalismo iluminista e do contratualismo
rousseauneano.

Em sentido do direito natural, o juiz afirma que o direito positivo só pode incidir
sobre os indivíduos que se encontram em condição de coexistência social. Em casos contrários,
como aquele em que se achavam os acusados, onde a preservação de suas vidas só foi possível
em detrimento de outra, o direito positivado perde o seu significado, pois cessante ratione legis,
cessat et ipsa lex. Embora de forma obscura, Foster também procura preservar a lei em vista de
sua aquiescência para com os acusados invocando o princípio da limitação territorial. Assim
como não é possível se aplicar uma lei em casos exclusos dos limites geográficos do Estado, o
juiz sugere que a mesma lógica seja aplicada ao caso dos exploradores, que se encontravam tão
distantes da força coercitiva dos dispositivos legais quanto se estivessem milhas distantes do
território do Estado.
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Do contratualismo, Foster lembra que, embora hipoteticamente, a fundamentação do


direito e do Estado no período iluminista foi interpretada através de um contrato celebrado pelos
homens de acordo com os seus fins e suas circunstâncias. Assim como as normas que regulam as
relações de uma sociedade normal não poderiam ser aplicada à vítima e aos acusados enquanto
confinados na caverna, a trágica circunstância na qual se encontravam os exploradores fez com
que estes firmassem um contrato adequado às suas necessidades. Se o contrato firmado entre os
homens em uma sociedade normal fundamenta coerções estatais que punem condutas
indesejadas até com a privação da vida dos indivíduos bem como permitem que estes coloquem
suas vidas em risco, como ocorreu a dez membros da equipe de resgate, o contrato dos
exploradores deve ser interpretado como válido na medida em que se fez necessário.

A segunda linda argumentativa adotada pelo juiz refere-se à questão interpretativa,


onde seria possível violar a letra da lei sem violar a própria lei. Em sentido exemplificativo,
menciona o caso onde o individuo, embora tenha infringido a lei de trânsito que prescreve o
tempo máximo de duas horas como limite para se permanecer estacionado, não sofreu sansões
pelo fato de a infração ter sido causada por um evento público que o impediu de mover o seu
veículo. Também, mostrou como a letra da lei pode ser falha em casos onde questões gramaticais
concedam interpretações distintas do teor da lei, onde este último deve prevalecer ao sentido
literal. Exposta a questão da relevância interpretativa, J. Foster lembra que embora não se tenha
positivamente excluso de culpabilidade os casos de legítima defesa, a jurisprudência assim a
interpreta. Não há como se adequar os casos de legítima defesa à vista da letra da lei, que
expressamente não permite exceções, mas apenas ao teor da lei que permite a interpretação de
que ela não é aplicada aos casos de legítima defesa.
 
4. DA ARGUMENTAÇÃO DO JUÍZ TATTING

J. Tatting, o terceiro juiz a se pronunciar, inicia a justificativa de abstinência de seu


voto comentado a dificuldade de se julgar o caso desprovido de qualquer interferência
emocional, dado a tragédia que o caso afigura. Dividido entre a simpatia para com os acusados e
a aversão para com o crime por eles cometido, o juiz utiliza-se da quase totalidade de seu
discurso para questionar a validade dos argumentos versados pelo colega J. Foster. Sobre a
argüição jusnaturalista, Tatting questiona se o estado de natureza se deve pelo fato de estarem os
exploradores presos na caverna, pela fome ou pelo contrato firmado. Do momento em que este
fato realmente ocorreu, questiona se foi à obstrução da entrada na caverna, no agravamento da
fome ou no ato contratual. A partir desta interrogação, o juiz também exemplifica a
inconsistência na argumentação do colega na hipótese de como se deveria proceder no caso de
um desses indivíduos ter adquirido a maioridade enquanto no interior da caverna, não submetido
ao direito positivado, no sentido de qual seria a data apropriada a considerar. Também sobre o
estado de natureza, Tatting se afirma juiz com o dever de aplicar as leis positivas e não outras,
assim como não teria autoridade de instaurar um tribunal do direito natural. Transcendendo à
questão instrumental da argumentação do colega, passa a questionar a essência do direito natural,
sua estranheza quando se observa as sobreposições dos direitos que nela foram fundamentadas.
Sobre a primeira parte da argumentação de J. Foster, portanto, J. Tatting refuta a hipótese de que
os acusados encontravam-se à luz do direito natural, bem com a obrigação do tribunal em julgar
o caso baseando-se nesta espécie de direito, visto que não é sua matéria.

Da segunda linha argumentativa defendida por Foster, pela qual se entendia que
nenhum dos acusados violou os dispositivos legais dado que uma lei deve ser aplicada segundo o
seu propósito, Tatting lembra que outros objetivos, alem da prevenção, também são imputados à
lei penal. Sobre a hipótese da legítima defesa, assevera que a doutrina sempre a interpretou como
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um ato involuntário. Da hipótese de exceção na lei em favor dos acusados, o juiz questiona qual
seria a sua abrangência, pois embora o critério para se escolher a vítima tenha sido a sorte
decidida nos dados, haveria outras possibilidades de estabelecê-lo, como a debilidade física e a
crença. Finalizando sua argumentação, Tatting reafirma a incoerência e a irracionalidade dos
argumentos de seu colega Foster, mas as dúvidas relacionadas ao caso o impede de se manifestar
favorável ou contrário à acusação dos réus.
 
5. DA ARGUMENTAÇÃO DO JUÍZ KEEN

O juiz Keen, em seu discurso, lembra da necessidade de se distinguir as atribuições


do executivo e do judiciário. Neste sentido, desaprova a menção feita pelo juiz Truepenny no
sentido de recomendar a clemência executiva, dado que esta decisão caberia apenas ao chefe do
executivo. Como cidadão, admite claramente que é favorável à absolvição dos acusados. No
entanto, como prescrevem as atribuições de sua profissão de juiz, deve ele necessariamente
promover a observância das leis como são de fato, sem distinguir o “bom” do “mau”, o “justo”
do “injusto”. O que é necessário, portanto, é tratar se os acusados são ou não culpados pela letra
da lei. A dificuldade no caso sub judice, segundo este juiz, é decorrente de interpretações
personalíssimas, como classificou a maior parte dos argumentos de seus colegas, que não faziam
distinção dos aspectos legais e morais.
Utilizando-se do discurso de seu colega Foster, Keen observa que a idéia de que a lei traria em si
um propósito que poderia justificar sua própria inobservância, quando desejada pelo tribunal,
configuraria um ato legislativo arbitrário do judiciário, desrespeitando o princípio da divisão dos
poderes. A interferência nas atribuições do legislativo por parte do judiciário e o decorrente
conflito entre o os poderes gerou considerável insegurança. Este hábito da revisão legislativa é
arraigado na tradição profissional dos juízes e consiste em encontrar um único propósito pelo
qual se criou a lei, descobrir se o legislador omitiu algo e, a partir de então, preencher a lacuna
deixada na lei.

Neste sentido, Keen observa que a pretensão de se encontrar um propósito para a lei
é ilusória. Primeiramente porque a tipificação do assassinato como crime é uma convicção
humana de que o assassinato é injusto e que algo deve ocorrer com o assassino. Também, dado
que os motivos que levaram os legisladores a promulgarem suas leis estão relacionados
intimamente no contexto no qual estão inseridos, o hipotético propósito das normas poderia se
perder com o tempo e suas conseqüentes mudanças políticas e culturais. Não sabendo, assim, o
propósito da lei, também não se poderia saber se há lacunas. Ainda versando sobre a questão
interpretativa, o juiz Keen afirma que a excludente da legítima defesa se aplica apenas aos casos
onde o indivíduo tem a sua vida ameaçada de forma agressiva, reagindo sem intenção.

Ao concluir o seu voto favorável a condenação, Keen justifica novamente sua


decisão lembrando que a possibilidade de se seguir a lei criando-se exceções de forma
interpretativa, implicaria problemas futuros. Se a postura de aplicação fidedigna da lei fosse
adotada sempre pelos tribunais, a questão da legítima defesa, por exemplo, seria observada numa
revisão legislativa baseada em critérios cientificamente fundamentados, evitando argumentações
metafísicas.
 
6. DA ARGUMENTAÇÃO DO JUÍZ HANDY

Handy inicia a justificativa de seu voto contrário à condenação dos acusados


versando sobre a problemática de se julgar o caso à luz de teorias abstratas e legalistas ao passo
de se julgar pelo conhecimento prático. Lembra que o povo é governado não pela lei, mas por
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outros indivíduos e que um bom governo se dá quando os governantes compreendem o


sentimento e concepção popular e, de todos os ramos do governo, é o judiciário que tem a maior
possibilidade de perder o contato com o povo pelas contraposições teóricas que tratam suas
questões.

Admite, entretanto, que assuntos referentes à forma do Estado, por exemplo, devem
permanecer como regras a serem seguidas, mas que em assuntos referentes a outros domínios as
formalidades e conceitos abstratos devem ser tratados como instrumentos, escolhendo o mais
adequado à obtenção do resultado pretendido. A não-conformidade das ações do governo para
com seus governantes é, para Handy, a maior causa do ocaso dos governos. Neste sentido,
aplicando a lógica de seu raciocínio ao caso, afirma que sua resolução não implicaria maiores
dificuldades, dado que a repercussão do caso se deu mundialmente e que, de acordo com a
opinião pública, sondada pela mídia, não se deve condenar os réus. Diz, ainda, que o próprio
senso comum e a opinião particular dos juízes do tribunal, manifestadamente contrários à
condenação, seriam suficientes para julgá-lo harmonicamente com o entendimento dos
governados. Também, procedendo desta forma, não estariam desvirtuando a lei mais do que seus
predecessores no caso da excludente de legítima defesa.

Das críticas sobre a relevância da opinião pública que propõe ao julgar o caso e dos
riscos, o juiz adverte que das quatro formas de se livrar um individuo culpado por um crime da
acusação, três são altamente suscetíveis a interferências emocionais e pessoais. Seja quando o
representante do ministério público não solicita a instauração do processo, seja a absolvição pelo
júri ou um indulto do executivo, não há garantias que tais decisões sejam revestidas apenas pelas
formalidades legais.

Como ponto decisivo na resolução do caso sub judice, Handy considera que algumas
questões sobre o chefe do executivo, como sua idade avançada e de princípios rígidos, poderiam
fazer com que sua decisão fosse contrária ao confiado pelo tribunal. Mesmo considerando que
informações não-oficiais não sejam adequadas, encerra sua argumentação relatando saber que a
secretária do chefe do executivo o ouviu se manifestar contrariamente à absolvição dos réus.

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