Leitura preliminar ao encontro ao vivo no dia 4 de fevereiro de 2019
(todas as citações são de ensinamentos de Lama Padma Samten)
Está tudo aberto
“Nós não estamos condenados a viver nos mundos que nós herdamos. O mundo não é algo que está pronto, do qual somos vítimas. O mundo nós construímos com nossos olhares. Ele é plástico, mágico.”
(TEDx Amazônia, novembro de 2010, vídeo completo)
"As coisas, na verdade, estão todas abertas. Nós podemos simplesmente nos levantar e construir os mundos favoráveis. Nós não somos prisioneiros daquilo que está ao redor. A nossa prisão está no nível sutil, porque não conseguimos viver de outro modo. [...] Parece que o mundo inteiro é isso, abrimos os jornais e é isso, ligamos a TV e é isso, mas não é isso — se a gente se levanta e começa a se mover, as coisas estão abertas. Mesmo as fronteiras econômicas não são sólidas. As mentes das pessoas têm uma mobilidade. Se a gente se dirige às pessoas além das fronteiras, elas respondem além das fronteiras. Existe uma comunicação. A compaixão é um processo desse tipo. [...] Compaixão é um atravessar das regras, atravessar das fronteiras e das barreiras todas. Podemos manifestar amor, compaixão, alegria, equanimidade, generosidade, moralidade, paz, energia constante, concentração e sabedoria em todas as direções, independente das paredes e das aparências que as coisas têm. Nós podemos nos dirigir desse modo às pessoas e elas começam a responder desse modo também. Esses são os mundos verdadeiros. Mas de repente vamos nos desestruturando dentro de papéis, criamos mundos rígidos e pensamos que precisamos obedecer àquilo, mas não precisamos, pois são mundos fabricados, não são mundos reais. O mundo que atravessa as fronteiras, que atravessa as limitações é o mundo verdadeiro."
(Teatro Hebraica, Porto Alegre, em setembro de 2017, transcrição)
Desagregação e falta de sonho coletivo
"Estamos educando as crianças para que elas sejam inseridas no processo econômico convencional. A educação não brota de uma comunidade raciocinando o que deseja para si, quais os saberes necessários para todos andarem melhor. Quase nunca tem uma reunião entre mães e pais para pensarem o que seria melhor para a comunidade, o que seria melhor para as crianças. Nós estamos num grau de desagregação agora que os filhos olham as vidas dos pais e eles não querem copiar. É diferente de outros tempos, nos quais os adultos sabiam como viver a vida e as crianças aprendiam. Agora, não. Tem uma desconexão. A escola tenta substituir isso, mas onde insere os jovens?A falta de um sonho dentro das famílias é mortal para os filhos. Na ausência de um sonho coletivo familiar, eles também não são capazes de gerar visões de mundo para si mesmos, não conseguem se ver de uma forma elevada. Isso vai fragmentando o tecido social. Vai craquelando tudo."
"Que visão de futuro nós oferecemos aos nossos jovens? Qual sociedade imaginamos? [...] O processo educacional tem de brotar da comunidade. Caso contrário, ele vai brotar do Banco do Brasil, da Caixa Econômica Federal, da Petrobras, de grandes empresas formando gente para trabalhar."
(Abril de 2017 em Timbaúba, PE, vídeo completo)
Desempoderamento
"Nós nos dispomos a vender a nossa própria vida, vender nosso tempo, e ficamos feliz quando alguém compra, daí temos um emprego. O processo econômico é totalmente alienante — e essa alienação começa na escola. Ivan Illich foi um dos primeiros a descobrir que esse é um processo adoecedor. Quando tudo dá certo, adoecemos. E quando adoecemos o sistema novamente nos preda [vendendo soluções paliativas, externas e individuais]. Você perde a capacidade de refletir você mesmo sobre o que está te adoecendo."
(Maio de 2018, vídeo completo)
Inteligência não humana e isolamento
"A conexão da responsabilidade universal com a visão espiritual é introduzida por S. S. o Dalai Lama através da seguinte reflexão: “Não importa quanto poder tenhamos, nem quanto recursos tenhamos, a felicidade vai depender de nossa dimensão de afeto, de carinho, de compaixão e de amor. Se nós não tivermos isso, a nossa vida vai parecer muito infeliz e sem sentido”. Nós, seres humanos, somos cooptados por uma aspiração de atingir poder e recursos, mas isso é um engano. Esses poderes e recursos não vão proporcionar a experiência que todos buscamos e que só vem com compaixão, amor e afeto.
No tempo da nossa cultura atual vemos ações de desenvolvimento que não contemplam estes valores, é como se fossem originadas fora do âmbito humano. São geradas por uma lógica que não é mais propriamente humana uma vez que não tem por objetivo explícito trazer felicidade e reduzir o sofrimento, mas são referenciadas por números abstratos e sem emoção.
As organizações referenciadas assim não têm emoções humanas mas têm aspirações de dominação e de recursos. Dentro dessa perspectiva podemos dizer que nós, seres humanos, estamos quase “colonizados” por este tipo de inteligência alienígena. Ou seja, é como se surgisse uma “inteligência”, que não é uma inteligência humana propriamente, e que começa a gerar os processos todos com uma lógica própria onde a felicidade ou infelicidade dos seres humanos nem é contemplada. E aí, nós, seres humanos, temos que nos juntar e priorizar a reintrodução dos valores humanos. Nossa fragilidade é sermos cooptados por este tipo de inteligência cuja ação, se continuada, não apenas nos trará crescente infelicidade como também destruirá o suporte da vida sobre o planeta.
Sob o ponto de vista dessa inteligência não humana e fria, quando nós não estamos bem, ela não oferece uma visão investigativa que busque a origem dos desequilíbrios, mas indica soluções externas na forma de substâncias químicas de felicidade ou de alívio ou apoio psicológico como se você fosse unilateralmente desequilibrado. Em todos os momentos há por trás a visão de que a realidade é sólida na forma como se oferece, assim é o mundo real. Surge sempre a sugestão: reprograme sua mente, pois o problema é seu! A verdade é isso que está aqui!
Entendendo assim tentamos nos “ajustar”. As dificuldades são tratadas a portas fechadas como se fossem problemas individuais. Mesmo que a introdução desta cultura acarrete o surgimento de uma epidemia de doenças comportamentais e emocionais o que as pessoas pensam é: “esse desajuste é meu!” O problema parece individual e a pessoa é tratada individualmente. Surge uma epidemia de pessoas que se drogam e são tratadas uma a uma. Surge uma epidemia de pessoas que não tem inserção social e que tentam romper isso do jeito que puderem, e aí também são tratadas com violência, uma a uma. Gostaria de ver estudos estatísticos que tratem disso.
Em dois pontos temos o desequilíbrio. As pessoas que abandonam a visão ampla e tentam em vão obter o resultado de felicidade e segurança que almejam e as pessoas que mesmo aspirando não encontram a entrada e estão alijadas deste processo também ficam infelizes. Em nenhum ponto há um ganho real.
(Palestra para a comunidade do Coque, Recife - PE, em agosto de 2004. Trecho maior aqui e também no livro "Mandala do lótus")
O resumo das notícias
"Os próprios meios de comunicação estão presos no paradigma econômico e na estrutura formal de poder, enquanto tem outras coisas acontecendo que estão contornando essa estrutura econômica e essa estrutura de poder. As notícias que vêm são sempre assim: “as estruturas de poder estão abaladas”. Isso se dá porque nós vemos contravenções por todos os lados. Nesta visão, é como se só as estruturas de poder importassem. Mas isso não importa muito. A gente acha um escândalo que coisas horríveis estejam acontecendo por todo lado, mas coisas horríveis por quê? Porque a estrutura de poder não está conseguindo responder à demanda para ela se manter no controle das coisas. É isso. Essas são as notícias. O tempo todo a gente está dizendo: “Olha, não dá. A polícia não dá conta, o judiciário não dá conta, o legislativo não dá conta, o executivo não dá conta, o sistema democrático não dá conta, o exército não dá conta, nada está dando conta.”O processo econômico não dá conta. Essa é a notícia que a gente ouve o tempo todo. Mas e aí? O mundo desabou? Não, o mundo não desabou."
(Fevereiro de 2017, Viamão - RS, vídeo completo)
Compaixão e processo econômico
“A compaixão é que sustenta o mundo, não o processo econômico. Nesse momento estamos nessa bolha: nós acreditamos que o processo econômico é a base do mundo, mas não é. A base do mundo é nossa capacidade de nos interessarmos uns pelos outros. Isso é o que faz as coisas se ampliarem e melhorarem, isso é o que sustenta as coisas. Sua Santidade o Dalai Lama diz que cada um de nós foi sustentado sem nenhuma expectativa de retorno. Nós fomos cuidados, isso não é uma atividade econômica. Quando as coisas afundam, surgem catástrofes e grandes dificuldades, como é que resolvemos? Surgem muitos voluntários, as pessoas se autoorganizam e fazem tudo melhorar. Isso é o que sustenta o funcionamento do mundo.
Quando os pais e mães não conseguem cuidar de seus filhos, aparece alguém para cuidar. Quando não aparece, surgem obstáculos — e esse é um outro ponto muito importante. Por exemplo, agora nós estamos vivendo o que eu considero uma incompreensão toda essa violência urbana que estamos vivendo. Pensamos que são as pessoas, continuamos com a visão de criminalizar um a um. É como se estivéssemos em uma epidemia, mas tirando cada pessoa doente, sem nos darmos conta de que é uma epidemia. […] Nós precisamos de mais antropólogos estudando essas populações: o que está acontecendo? Por que tantos jovens estão agindo assim? A noção individual é assim: “Esses jovens não são boas pessoas”. Nós temos o processo econômico, que nós chamamos do processo normal, e nós temos as pessoas excluídas do processo econômico. Nós estamos tão presos a essa visão de acreditar que a única solução é a inserção no processo econômico. Mas o processo econômico, como ele se estabelece, não tem lugar para todos e nem é feito para isso. […]
Então nós imaginamos que o mundo vai se equilibrar porque pegamos uma porção de pessoas com visões sectárias que puxam tudo para si. Isso não vai dar certo. O que é o processo econômico? Um monte de gente puxando tudo para si. Esse processo não resolve. Quem estuda a economia do sistema capitalista sabe que existe sempre uma bolsa grande de seres excluídos do processo econômico. Mas, na forma em que estamos olhando hoje, os excluídos do processo econômico estão excluídos da vida, estão excluídos do mundo, eles não tem lugar, porque o mundo se confunde com o processo econômico. E esse é um problema, porque o mundo é alguma coisa muito mais ampla do que o processo econômico, mas hoje nós os fundimos. Nós fomos colonizados pela visão econômica, então essas pessoas não têm lugar. […]
Na medida em que nós vemos uma dificuldade do processo econômico de absorver as pessoas, os jovens (especialmente a partir da crise de 2008 na Europa e nos EUA) se sentem excedentes e calculam que talvez nessa vida eles não venham a trabalhar de modo formal. E aí vem a pergunta: “O que eu faço com a minha vida?”. Esse é uma boa pergunta. Considero uma pergunta essencial.
A dificuldade que nós estamos vivendo vem pela predominância da visão econômica como algo que resolve a nossa vida. Ou seja, nossa vida é assim: ter um emprego, poder comprar as coisas que a gente quer, poder viver mais ou menos como a gente quer e ter uma visão de futuro para outras coisas que a gente vai comprar… Isso não é a vida! Mas ela se torna. E então a falência desse processo vem com esse tipo de crise, com esse conflito. […]
Estamos em um ponto de desatrelar o processo econômico do processo social, do destino político, da vida da população: o que nós fazemos com as crianças, como podemos andar? O processo econômico não vai dar conta disso, até mesmo por razões ambientais. […]
Então as pessoas começam a se organizar. Começam a surgir o movimento das comunidades, eles se aproximam da natureza, tentam se juntar para gerar outros objetivos e viver a vida de um outro jeito — processos que não deveríamos ter abandonado. O processo econômico é um ornamento, uma construção dentro de uma coisa mais ampla. Mas nós não deveríamos abdicar da nossa vida para isso. Então imagino que estejamos vivendo nesse tempo. Nosso desafio é esse: como podemos viver de modo mais amplo?”
(Setembro de 2016, Viamão - RS, vídeo completo da palestra)
Sentar em roda
"O processo econômico não é do mal. O processo econômico é apenas o processo econômico. Ele não é a vida nacional, nem nunca quis ser. Mas nós não acordamos para isso, então ficamos sempre caudatários do processo econômico, que acaba virando uma ideologia, uma realidade que domina o nosso imaginário — a gente só fala dele. Por exemplo, nós estamos agora em uma crise. Mas essa crise é muito maior sob o ponto de vista do processo econômico do que sob o ponto de vista da realidade ampla. Mas só se fala nisso... E o resto? Como é que estamos nos mantendo apesar de toda essa crise? Nós temos um coração pulsando não sabemos onde. Se formos analisar o tamanho da crise, a quantidade de políticos, empresários e os valores trilionários envolvidos... deveria ter tudo afundado, o Brasil deveria já ter sido partido ao meio e estar queimando. Mas, não. Sob o ponto de vista da grande mídia, só ouvimos sobre isso. Então a mídia não está noticiando alguma coisa que está acontecendo. É importante não ficarmos limitados. Dentro da mídia, há muitas pessoas lúcidas. [...] Nesse momento, eu não consigo ver um acordar que não seja sentar em roda, se reunir localmente e começar a assumir a visão do que precisa ser feito. Esse é um processo convergente: a gente se entende uns aos outros. Quando começamos a andar assim, nós temos casa em todos os lugares, tem uma riqueza que se abre."
Autoorganização com energia e alegria
"Nós precisamos de visão. E eu acho que a visão, em primeiro lugar, não é no aspecto grosseiro, é no aspecto sutil. Ela vai se sustentar no aspecto sutil. E no aspecto sutil ela é essencialmente auto-organização e reencantamento. Eu acho que o reencantamento é crucial porque, por exemplo, o sistema econômico como um todo e a burocracia se desenvolvem junto com isso, tiram a alma das pessoas, entristecem e adoecem as pessoas. O reencantamento é um aspecto, poderíamos dizer, revolucionário. Ou seja, o nosso coração retorna. O mundo econômico entristece as pessoas que vencem dentro do processo dele. Vocês vão ver as pessoas adoecendo, entrando em depressão, suicidando... Não importa a classe de renda que tenham. E, por outro lado, as pessoas que não penetram nisso também ficam raivosas, passam mal, ficam violentas, têm uma série de problemas. O sistema econômico tira a alma das pessoas, desconecta da natureza, remove o aspecto estético, remove a beleza. Então, esse é um ponto super importante: como nós podemos nos engajar nas coisas com a alegria e a energia presentes?"
(Junho de 2018, Viamão, RS)
Compre sua vida de volta
"Esse conceito de perder a vida ou vender a vida dentro do processo econômico, acho ele muito interessante. Às vezes desafio às pessoas dizendo assim: se você é rico, se você sente realmente que tem recursos, você compre a sua vida de volta. Você não precisa vender o resto da sua vida, você compre a sua vida pra usar."
(No evento “Educação para o futuro”, SESC Vila Mariana, São Paulo - SP, em março de 2014, vídeo completo)
Não temos inimigos
"O ponto central é nós não termos inimigos. Nós todos estamos amassados, oprimidos e opressores, num processo de dor e dificuldades. A questão não é eleger inimigos e imaginar que vamos a algum lugar. Nós estamos, aqui, liberando todo mundo de seus papéis e dificuldades em meio ao mundo. Estamos todos atropelados.
Quando nós falamos das minorias, parece que em algum lugar tem alguém culpado de alguma coisa. Esse é um ponto que a gente deveria evitar. [...] Na visão budista, se temos um problema, estamos presos no samsara. Esse que é o nosso problema. A gente precisa superar isso. Não importa qual seja o ser que está em sofrimento no samsara. Se a gente eleger os outros seres do samsara como o nosso problema, nós não estamos indo numa boa direção. O problema é o samsara como um todo.
Eu sugiro essa direção, mas nem sempre isso é possível. As pessoas precisam falar sobre as dores das várias dificuldades. E está bem. Nesse caso, é melhor uma coisa como psicodrama, um círculo de composição de cura com as várias etnias, sentando em roda e cada um vestindo a sua roupa, confessando as suas dificuldades e a suas opressões e as suas fraquezas também. Esse é um ponto.
Na perspectiva budista, ninguém leva nada de lugar nenhum. Quem pensa que leva está com problemas. Opressores e oprimidos, estamos no mesmo barco, sendo moídos por um tipo de visão que não está levando a lugar nenhum. [...] Mas que isso não nos limite também de ver a nossa capacidade de indignação, ver o que está acontecendo e melhorar especialmente. Se eleger inimigos, é como se a gente não estivesse fazendo uma conversa apreciativa. Nós estaríamos fazendo uma conversa de crítica. No momento em que a gente aponta inimigos, as pessoas se defendem e não temos mais a possibilidade de convergir em direção a alguma coisa mais elevada. A gente vai ficar se olhando como grupos opostos. Isso é um processo que vai nos enfraquecer.
Então, a gente está numa coisa ampla. Dentro dessa visão ampla, acho super importante olhar todos esses aspectos [...]. Quando a gente vê o processo econômico devastando tudo, é melhor não eleger inimigos. É melhor tentar fazer outra coisa. E, com isso, a gente tenta ajudar as próprias pessoas que estão presas dentro desse processo [...]. Como é possível olhar para os opressores sem ter raiva? Não tem raiva porque os opressores estão oprimidos pelo próprio processo que eles estão sustentando. Eles não são nem ideologicamente aquilo, estão empurrados para dentro daquilo. Quando a gente se divide e aponta o outro como inimigo, dentro do samsara, a gente deixa escapar a questão central. Quando a gente elege inimigos, simplifica a questão. O verdadeiro problema escapa e termina surgindo num outro lugar com outras pessoas.
Hoje, isso está acontecendo na nossa cara. A gente continua dizendo: isso é o Trump! Mas isso não é o Trump, isso é um software. Esse software é o inimigo, que vai apertar as várias etnias e abusar das várias pessoas, dos vários grupos, nos vários lugares, incluindo as pessoas que estão gerindo o próprio processo. Elas vão perdendo a juventude, vão morrendo nas guerras e não têm solução nem para os filhos deles.
Isso é o samsara. Que a gente não se perca nisso. Que a gente não se olhe como inimigos uns dos outros, nós não somos. Se somos, estamos com problemas. Esses problemas de relações surgem também, mas o problema de relação é o software. [...] Nós, como seres humanos, podemos gerir tudo de um outro jeito. A gente não precisa desse software. [...] Esse é um ponto super importante. Nós temos um problema que é o samsara: a ignorância, as emoções perturbadoras que brotam pela Roda da Vida. Elas nos aprisionam, nos sustentam, nós sentimos que somos aquilo, nos tornamos monstros... Mas não somos monstros. A nossa natureza ultrapassa isso.
Se a gente pegar as pessoas e olhar, julgar, provar, condenar e executar, isso é insuficiente. Porque a coisa é maior do que isso, é um software. Se nos tornamos inimigos uns dos outros, vamos enfraquecendo. Não vamos a lugar nenhum. Nós precisamos de uma abordagem positiva, precisamos nos aliar, precisamos nos perdoar, precisamos dos ciclos de cura. Isso é essencialmente a visão budista."
—Lama Padma Samten (janeiro de 2018 em Timbauba, PE, áudios)
Como operar em rede
"A gente faz um primeiro movimento prático, sem uma decisão de que aquilo vá até o fim, e espera para ver como o entorno reage. Eu considero isso de grande importância porque nós não estamos separados. Quando a gente se movimenta, a gente movimenta tudo em volta. Então é melhor ver como o movimento em volta reage ao nosso movimento. Quando a repercussão é favorável e benéfica, nós seguimos andando."
(Novembro de 2016, Viamão - RS, vídeo completo)
Liberdade além da reação causal
"Se a gente está dentro de uma bolha mental onde essas coisas todas acontecem, a gente encontra uma causalidade para isso, a gente considera que isso é verdadeiro. A gente está imerso na linguagem da causalidade. A causalidade é um perigo verdadeiro. Vai passar o tempo que a gente vai olhar a linguagem da causalidade como uma época obscura semelhante a da Inquisição. Aquilo era uma coisa densa. Tem uma obviedade do aspecto não-causal, mas a gente não vê isso. A gente vê tudo causal. A gente vai convertendo tudo. Do mesmo modo que nesse tempo a gente vai convertendo tudo para economia, a gente converte assim, “desenvolvimento é crescimento econômico”. A gente não consegue raciocinar … Todo mundo raciocina desse modo. Isso é uma nuvem de obscuridade.
Do mesmo modo, a gente fica olhando processos de transformação a partir de causalidade; a gente esquece o fato de que a gente pode simplesmente mudar. A gente acredita em diagnóstico, fixa, prende o outro em diagnóstico, depois usa um método causal para mudar, e não tem resultado. Por exemplo, nós não estamos num tempo em que a luminosidade é o nosso recurso. Nós temos a liberdade de fazer as transformações, a gente não trabalha nenhum método desse tipo. A gente trabalha em métodos causais, e acredita que nós somos fixados, e a gente justifica a nossa fixação por eventos que aconteceram… a fixação não vem dos eventos, a fixação vem da fixação! A solução para a fixação não é um outro evento, é a não-fixação. A não-fixação está sempre disponível para nós. A gente não vê isso. A gente vê a necessidade de um outro evento, de um outro treinamento, de uma outra coisa, de um outro condicionamento. Isso complica as coisas, assim, isso complica, atrapalha.
Com respeito à saúde também, é uma coisa curiosa. A gente poderia, por exemplo, estimular todo o processo óbvio, que é o processo natural de sustentação da saúde do corpo. Mas a gente tem uma tendência a acreditar que eu tenho que fazer alguma coisa heróica e diferente para contrabalançar um efeito. Então a gente trabalha menos com a nossa capacidade de cura, de estimular a própria capacidade de cura. A gente fica localizando desequilíbrios para introduzir métodos artificiais para reequilibrar. Mas a gente não se dá conta que nós temos os processos naturais para nos reequilibrar, senão nós ja estaríamos mortos há muito tempo. Aí a gente introduz os fatores artificiais, eventualmente os fatores artificiais prejudicam a saúde, trazem outros problemas, problemas colaterais."
(Outubro de 2015 em Viamão, RS - vídeo completo)
Criticar o inverno não cria a primavera
"Quando o olho muda pra primavera, como diz o mestre Dogen, tudo se torna primavera: em todas as direções que eles olhem, mesmo que ainda tenha neve, eles sabem que é a neve que tá derretendo, mesmo que as plantas não estejam todas brotadas, eles sabem que têm os brotinhos que vão eclodir. Eles adivinham a primavera, então a primavera é vista.
O olhar é que é o determinante. Todo movimento de Chenrezig [da compaixão] é um movimento de criar primavera. Esse ponto eu não vou analisar profundamente porque a gente já olhou muitas vezes, ou seja, o inverno, esse tempo de obscuridade mental, ele não é necessariamente uma imposição. Esse tempo de aflição é algo superável, ele não tem uma base que o sustente que não seja a própria incapacidade nossa de ver a primavera. Esse é o ponto.
A gente privilegia a conversa apreciativa, porque é uma conversa que já se dá num âmbito de primavera: nós estamos criando a primavera! A linguagem crítica é uma linguagem que critica o inverno, mas se eu fico criticando o inverno isso não quer dizer que eu consiga criar a primavera, entende? Na verdade, enquanto eu critico o inverno, eu me consolido no inverno, eu dou muita densidade, dou solidez para o inverno. Então, não é que a gente não seja capaz de criticar o inverno, a gente pode criticar longamente o inverno... A questão é que o processo crítico do inverno só ocorre dentro da bolha correspondente àquele universo, então se nós criticamos duramente aquilo, nós ficamos presos aos referenciais que embasam o próprio processo crítico. Então essa é que é a questão.
Então, se nós formos com sucesso até o final do processo crítico, ele se esgota, aí nós paramos e pensamos enfim: "E aí, fazemos o quê?" Pelo processo da primavera, surge um atalho direto: "O que nós queremos construir?" Porque o engano não é de alguém, a gente não precisa criticar alguém, nem condenar, nem prender, nem qualquer outra coisa. O que gente precisa é ajudar, seja quem for, a se mover na primavera, se mover dentro de uma visão mais ampla. Esse que é o ponto, esse que é o desafio."
(Setembro de 2018, Viamão - RS, vídeo completo)
Um resumo do que podemos fazer agora
“Sua Santidade o Dalai Lama afirma que a compaixão é a base da sociedade, não a economia, e lembra que todos desde nossa infância fomos e somos apoiados a fundo perdido por uma rede compassiva. Hoje está claro que essa rede inclui a multiplicidade de seres da biosfera e ela mesma constitui a vida desde sempre.
Quando sentados em roda, nos olhamos diretamente e pensamos sobre o que está andando bem e como melhorar nossas vidas, brilha a inteligência compassiva fundadora das redes que dão sentido a nossas vidas. Somos então capazes de entender e acolher as visões e os mundos dos outros, e surge a auto-organização como a capacidade coletiva de criar soluções práticas e ações em meio ao mundo.
Nosso desafio presente é acionar a inteligência da rede compassiva e definir nossas prioridades e visões de futuro, assim uma nação é fundada. Precisamos ultrapassar o estreitamento da visão herdada do passado colonial que nos coloca na posição inferior de criar e sustentar uma elite e dela demandar as soluções que nunca vêm.
Quando olhamos os países que tiveram êxito dentro da visão econômica mas enfraqueceram as redes de inteligência compassiva, vemos que atualmente se defrontam com epidemias como depressão, mortes por overdose, suicídios, violência nas escolas, TDAH, expansão da população carcerária, endividamento dos governos e da população, violência urbana, concentração de poder e renda, sectarismo, radicalismo – as pessoas perderam o sentido de suas existências. Não é isso que precisamos.
A agenda das eleições finda com a divulgação dos resultados. A agenda das redes de inteligência compassiva é permanente, a transformação é silenciosa, mas visível. No tempo imediato a prioridade brasileira não é reprimir e manter as pessoas em prisões, mas assegurarmos que as visões de mundo e as estruturas que levaram a tantos sofrimentos sejam transformadas. Precisamos de pacificação e reordenamento institucional. O culpado é a estreiteza da visão. Não temos inimigos. Isso se aplica a todos os âmbitos e não apenas ao mundo político.”
(No Zero Hora, durante as eleições no fim de 2018)
Para quem tiver mais de tempo, sugerimos assistir a apenas um desses vídeos:
● Autoorganização, reencantamento e redes compassivas (17/maio/2018) ● Reencantamento do mundo: outros mundos são possíveis (30/set/2018) ● Palestra de início de ano (1/jan/2019) ● Autoorganização e sonho coletivo: como operar em rede (6/nov/2016)