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A QUESTÃO AGRÁRIA, O BRASIL E A NOVA DINÂMICA DA

AGRICULTURA BRASILEIRA
Crítica das teses de José Graziano da Silva

Daniel Nunes Leal1

Introdução: sondando a questão


Este ensaio trata da relação entre a questão agrária e mudanças do agrário no Brasil a
partir do livro A nova dinâmica da agricultura brasileira, do economista José Graziano da Silva
([1996] 1998). A obra, que reúne textos publicados pelo autor entre 1987 e 1993, está longe de
esgotar o tema, mas contém uma apreciação rigorosa da modernização da agricultura no país,
servindo de base para a discussão de um problema mais amplo: aquele que põe o agrário como
questão. A propósito disso, questionar a própria questão nos traz um ponto de partida pertinente.
No artigo intitulado “Trabalho, Estado e migração: questionando a questão migratória”,
Carlos Vainer explicita o elo mantido entre a identificação de um objeto da política – no caso,
as migrações internas no Brasil – e sua formulação e execução pelo planejamento urbano-
regional (Vainer, 1984). O procedimento que ele denuncia consiste, precisamente, em delimitar
um objeto de intervenção, relacionar as políticas já aplicadas e avaliar a eficácia destas, a fim
de propor políticas alternativas consideradas mais adequadas à resolução de um problema (ibid.:
3). Nesses termos, aproximar questão migratória e questão agrária não acarreta prejuízos quanto
aos aspectos que serão aqui assinalados, conformes à crítica ao planejamento, até porque ambos
os campos podem por vezes, como será visto, se confundirem.
Observamos que opera como pressuposto dessas políticas um juízo de neutralidade que
toma o processo social externamente, para empregar, por assim dizer, diagnoses preconcebidas
sobre um território esvaziado de relações de produção. Àquilo que constitui objeto de políticas
públicas se atribui uma existência objetiva, empírica, real, enquanto cada política particular fica
restringida ao campo da subjetividade (ibid.: 4). Como postularia F. de Oliveira (1981: 24), tal
neutralidade não é nada mais que a racionalização da reposição dos pressupostos da reprodução
capitalista; o planejamento não pode solucionar as contradições do capital, senão, apenas, repor
os fundamentos do mesmo. Em consequência, voltando a Vainer (1984), questionar a questão
agrária implica problematizar até que ponto tal questão é objeto e também, sobretudo, produto

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Doutorando em Geografia Humana pelo PPGH-FFLCH-USP; e-mail: daniel.leal@usp.br; n. USP: 7621767.
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de políticas. Ou seja, questionar implica problematizar o processo que produz a questão agrária
como sendo o próprio real (ibid.: 4). Aí são suscitados os discursos que a política produz sobre
si, “as evidências que [ela] aciona, as ciências que mobiliza, as legitimidades que invoca, as
eficácias que propõe” (ibid.: 5).
A partir disso, é possível registrar porque o agrário se levanta como campo possível de
formulação de políticas. Com efeito, interessa reter dessa cartografia discursiva menos o que
cada matriz expõe abertamente do que como a produção da questão agrária tem uma origem
histórica, ao mesmo tempo que mobiliza práticas. Segundo Marx, o processo social de produção
de mercadorias é reproduzido por agentes que, como personificações das categorias reais do
capital, não sabem, mas repõem criticamente essas condições de produção2 (Marx, 1985). Dessa
maneira, os discursos não pertencem meramente a um terreno superestrutural autônomo e/ou
reflexivo em relação à base econômica da sociedade, como seria possível extrair da obra de
juventude do autor – particularmente n’A ideologia alemã3 (Marx e Engels, 2007).
Diversos discursos partem do agrário como problema, mas a formulação de um conceito
para tal varia sensivelmente segundo os modelos teóricos aos quais a questão agrária se refere.
Para Vainer (1984: 10), a unidade implícita nos discursos, que sempre têm de manifestar uma
clara definição, repousa menos no que se diz do que no que é omitido. Como captar esse não
dito consensual é a incógnita, pois é nele que se inscrevem as condições que tornam possível a
delimitação da questão agrária como alvo e produto de políticas públicas. Nesse aspecto, resta
reconhecer a parcialidade da minha abordagem, que busca retomar as conjunturas nas quais a
questão agrária, como um todo, é produzida.
Por esse motivo, a presente exposição deve seguir um percurso que situa historicamente
a definição da questão agrária como problema central ao planejamento. Tais políticas exprimem
determinadas necessidades da reprodução capitalista, que foram se redefinindo desde o período
em que se impuseram como questão até hoje. Aqui, as tensões presentes na obra de Graziano
da Silva (1998) representam um meio importante de diálogo com outros aportes teóricos que
abordam a questão agrária e suas transformações discursivas. Posto isso, o leitor irá reparar que
o texto a seguir está dividido em três partes, que consiste em duas entradas alternativas ao
problema e uma última, que exibe algumas tendências mais recentes da produção do agrário no

2
Para uma discussão da agência desses sujeitos sujeitados à reprodução capitalista em Marx, cf. Grespan (2018).
Uma noção que ficou de fora do corpo do texto, mas à qual é indispensável se chamar atenção, é aquela sobre
o capital como “sujeito automático”. Afinal, é ele que se repõe tautologicamente como fundamento e resultado
do processo social enquanto valorização do valor (Marx, 1985: 130).
3
Deixo em suspenso a validade do corte entre a obra do jovem Marx e a de um Marx maduro, como aquela
presente em Althusser, pois isso escaparia ao foco do ensaio.
2
Brasil. A primeira parte versa sobre as possíveis formas com que a questão agrária aparece em
Graziano, e é desenrolada pela análise do autor da formatação dos complexos agroindustriais
(CAIs) no contexto das políticas de industrialização da agricultura nacional. A segunda parte
propõe uma reinterpretação das teses da obra, comparando-as com sua conjuntura histórica e
aos impactos dos CAIs nas relações de trabalho no campo. Por fim, essas diferentes leituras são
comparadas com transformações da totalidade capitalista na produção de uma questão agrária,
contemporânea e posteriormente à época de publicação do livro de Graziano.

As abordagens da questão agrária em José Graziano da Silva e a formação dos complexos


agroindustriais no Brasil
Salvo engano, a obra de Graziano da Silva é conhecida sobretudo por conta de um livreto
de caráter introdutório, nomeado O que é questão agrária?, que engloba tanto a concepção de
políticas públicas como as condições de produção dos chamados trabalhadores rurais (Graziano
da Silva, 1980). O volume inicia com o reconhecimento de certa retomada da questão agrária
no Brasil desde 1978, ou seja, com a anistia política, depois de ter sido esquecida pela imprensa
e silenciada pela repressão da ditadura (ibid.: 7).
A questão agrária é situada no contexto geral das crises capitalistas e, por isso, atrelada
à industrialização e a transformações nas relações de produção, consistindo na forma com que
os bens agrícolas são produzidos. Ela marca uma diferença em relação à questão agrícola, mais
restrita às mudanças propriamente ditas sobre o que se produz, o quanto e onde. Ocorre que no
desdobramento da modernização conservadora do país a questão agrícola, estritamente ligada
ao aumento da produtividade, pode agravar a situação de miséria vinculada à questão agrária e
ao estado dos trabalhadores rurais. Contraditória, a industrialização da agricultura exprime, em
simultâneo, uma crise agrária gerada pela liberação excessiva da população rural, nem sempre
reincorporada como força de trabalho seja no campo seja na cidade (ibid.: 9). Por esses termos,
a questão agrária corresponde ao problema da inserção do trabalho no processo produtivo e às
reparações políticas relativas às desigualdades sociais engendradas nesse processo.
Se o trabalho é a essência do desenrolar da modernização, é porque ele é fonte da riqueza
social. Para ser mais exato, de acordo com Marx (1985), a riqueza nas sociedades capitalistas é
fundada em uma produção abstrata de mercadorias, de modo que objetos úteis sensivelmente
diferentes realizam seus valores quando igualados no mercado. Confere tal equiparação a
abstração da materialidade das mercadorias, isto é, sua redução a uma substância comum de
valor, de tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção. Logo, a mercadoria encerra

3
em si um trabalho concreto privadamente constituído e, ao mesmo tempo, um processo social
de dispêndio abstrato de trabalho humano geral (ibid., cap. I).
A formação do trabalho, como única mercadoria capaz de produzir outras mercadorias
e de recorrer por si mesma ao mercado (ibid., cap. IV), depende de circunstâncias históricas
globais que se realizam segundo particularidades geográficas distintas. Dito de outro modo, a
reprodução das condições de produção capitalistas, isto é, a produção de massas de força de
trabalho e de capital, implica uma gênese, assim chamada de acumulação primitiva de capital
(Marx, 1986a). A formação da classe trabalhadora consiste no emprego da violência direta, pelo
Estado absolutista in fieri, para arrancar os produtores de suas antigas relações de dependência.
“Livres como pássaros”, não lhes resta mais nada se não venderem suas forças de trabalho no
mercado, apesar dessa dupla liberdade também demandar a ativação duma série de dispositivos
de disciplinamento que tornam aqueles expropriados aptos ao trabalho4 (cf. ibid., cap. XXIV).
Visto que a acumulação em países de origem colonial não passa pela produção de uma
superpopulação relativa, excedente, pronta para ser explorada, é preciso criar artificialmente a
classe de trabalhadores livres requerida à valorização. Ao identificar tal exigência, o economista
E. Wakefield formula um programa de “colonização sistemática” posteriormente criticado por
Marx. Nele é proposto a criação de um mercado nacional de terras, com preços altos o bastante
para submeter o produtor, que de outro modo seria dono de seus próprios meios de produção,
ao assalariamento – pelo menos até o ponto de ser substituído por outro. Dessa forma, “a colônia
revela o segredo da metrópole”, isto é, a expropriação revela ser o segredo da acumulação de
capital (Marx, 1986a, cap. XXV).
Indo além, a afirmação revela outros segredos. Alternativamente, a acumulação presume
a autonomização, ou a formação da aparência de autonomia, entre terra, trabalho e capital, como
categorias reproduzidas por suas distintas personificações e reguladas em mercados prima facie
independentes por um Estado outrossim autonomizado5 (Marx, 1986b). Posto isso, a decretação

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Essa leitura, por assim dizer, foucaultiana da acumulação primitiva ressalta que não basta expropriar o
produtor; é preciso também produzi-lo num corpo dócil de trabalhador, como explicita semelhantemente Vainer
(1984). Detendo-se aos termos de Marx, com a reprodução ampliada do capital, ou seja, finalizada a formação
dos pressupostos da acumulação, a violência extraeconômica monopolizada pelo Estado é só excepcionalmente
empregada, dado que o proletário já internalizou a necessidade de trabalhar; este já se confiou à “dependência
do capital que se origina das próprias condições de trabalho” (Marx, 1986a: 277).
5
A respeito do processo de autonomização, Marx, quando trata da “gênese da renda fundiária”, apresenta a
acumulação primitiva de capital, alternativamente, como formação da aparência de autonomia entre fatores
antes indiscerníveis no produto do trabalho camponês: renda fundiária, salário e lucro/juro capitalista (Marx,
1986b, cap. XLVII). Com a transição da tributação dessa produção na forma de renda em trabalho para renda em
produto e, enfim, renda em dinheiro, terra, trabalho e capital passam a operar de forma autonomizada. Como
resultado, tais fatores ostentam a aparência de fontes de rendimento independentes na consciência das
personas sociais. Esse processo é explicado pelo autor segundo uma “fórmula trinitária” da produção capitalista,
4
de uma Lei de Terras no Brasil em 1850 visa à autonomização de um mercado fundiário interno,
ainda que não tenha surtido as consequências esperadas, pois a incorporação extensiva da terra
pela posse se conservou como padrão do desenvolvimento agrícola. Esse esforço se inserta no
contexto de crise do escravismo, dado desde ao menos a proibição do tráfico transatlântico, que,
por conseguinte, suscita o impasse sobre o emprego e reprodução de força de trabalho no país.
Impasse que deriva nos primeiros ensaios de subvenção à imigração de europeus expropriados
em suas áreas de origem.
O mesmo percurso é discutido por Graziano da Silva (1998), com seus termos, n’A nova
dinâmica da agricultura brasileira. Sua interpretação remonta ao andamento acima, situado em
meados do século XIX, a partir da gradual substituição dos vários complexos rurais do país pela
instalação dos complexos agroindustriais – CAIs (ibid.: 1). As atividades agrícolas são, então,
entrementes qualificadas por sua conexão com a indústria, pela intensificação da divisão do
trabalho e das trocas intersetoriais, pela especialização da produção agrícola e pela substituição
das exportações pelo consumo produtivo interno. A agricultura, como qualquer ramo industrial,
se converte em produção de mercadorias (ibid.: 3). Uma tal substituição demanda a instituição
do Estado como agente formulador de políticas tanto para repor uma regulação geral, definindo
padrões de rentabilidade para os capitais empregados no setor, como para arbitrar as condições
do mercado – basicamente, para regular políticas de preço e fiscalizar a competição (ibid.: 6).
Segundo o autor, a dissolução dos complexos rurais forçosamente passa pela transição
do escravismo para o trabalho livre na lavoura de café, principal bem de exportação do país na
época. O complexo rural dispensava um mercado interno, visto que as condições de produção
estariam internalizadas na fazenda, ao mesmo tempo em que respondiam às oscilações de preço
decorrentes das demandas do mercado externo (ibid.: 7). Nessa configuração, em que pese suas
particularidades geográficas, a constituição do trabalho livre não culminou necessariamente no
assalariamento.
Que caráter possui tal regime de trabalho na economia agrária brasileira é cerne de um
amplo debate, do qual é possível pinçar ao menos três abordagens. A primeira delas corresponde
à presença de “resquícios feudais” no interior da fazenda autossuficiente, que são eliminados
no processo de modernização. Guimarães (1964), como notável representante dessa postura,
defende que a colônia repete as estruturas mais atrasadas da metrópole para assim perpetuar os
domínios desta. Por isso, a fidalguia portuguesa procurou reviver o feudalismo na América por

na qual a terra aparece para seu proprietário como fonte de renda fundiária, trabalho como fonte de salário e
capital como fonte de juros, sendo obnubilada nessas formas de distribuição da mais-valia a exploração do
trabalho como seu pressuposto (ibid., cap. XLVIII).
5
meio da propriedade da terra, embora sem os mesmos componentes – sobretudo os referentes à
servidão –, e a despeito da produção mercantil e manufatureira da plantation.
A segunda abordagem diz respeito a “benefícios equivalentes do salário” nas formas de
remuneração do trabalhador rural, como sustentado por Prado Jr. (1979). Aqui, uma vez que as
relações de trabalho repousam num mercado livre, e não em estatutos pessoais, falar de “restos
feudais” significa reduzir o problema a seus aspectos puramente formais (ibid.: 65-6). Se no
autor o assalariamento é a “norma fundamental” da agropecuária brasileira, outras modalidades
de relação – como a parceria e o colonato nos cafezais paulistas, bem como a meação, a moradia
e o pagamento de foro no Nordeste – funcionam somente como “substitutos eventuais ditados
por circunstâncias de ocasião, e particularmente pelas vicissitudes financeiras da grande
exploração” (ibid.: 63-4).
Nesse sentido, posso dizer que a visão de Prado Jr. se resume à da grande propriedade
fundiária, com o risco de engessar particularidades num único modelo explicativo. Por sua vez,
se a terceira abordagem também recai na questão da remuneração no regime de colonato, ela
privilegia o acesso parcial do produtor aos meios de produção como “produção capitalista de
relações não capitalistas de produção”, tal qual postulado por Martins6 (1979). Ele afirma que:
Esse elenco de vínculos monetários, não monetários e gratuitos e o caráter
familiar do trabalho do colono não permitem que se defina as relações de
produção do regime de colonato como relações capitalistas [...] Ao produzir
uma parte significativa dos seus meios de vida, em regime de trabalho familiar,
o colono subtraía o seu trabalho às leis de mercado e de certo modo
impossibilitava que esses meios de vida fossem definidos de conformidade com
os requisitos de multiplicação do capital (Martins, 1979: 85).

Não é questão de optar por uma perspectiva em detrimento de outra, pois nenhuma delas
é falsa ou suficiente em si mesma. Cabe lembrar que, buscando captar um não dito comum aos
discursos, trato de visadas parciais e contraditórias do mesmo processo. Para o que interessa,
explicitando uma visão tributária a Cano (2007), Graziano parece admitir que, embora o colono
seja um trabalhador assalariado, a condição dessa remuneração ser temporária é base de uma
produção de subsistência, com a venda dos excedentes no mercado:
O colono, que era um trabalhador assalariado temporário (na época da colheita),
produzia parte de sua própria subsistência na roça familiar ao mesmo tempo em
que gerava excedentes de produtos alimentícios comercializáveis na própria
região (Graziano da Silva, 1998: 8).

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Convém destacar a similaridade desse problema que apresentei como formação do trabalho no Brasil com o
debate sintetizado por Oliveira (2007: 9-12) sobre as linhas teóricas em torno da supressão – pela modernização
das relações de trabalho no campo e do latifúndio ou como resquício feudal – ou reposição do campesinato –
como classe gestada contraditoriamente no interior do modo capitalista de produção.
6
Importaria menos encerrar a visão do autor num esquema do que enfatizar que posição
ele reserva ao colonato no desenvolvimento do complexo rural cafeeiro e na industrialização
da agricultura brasileira – um problema, aliás, atinente a todas as abordagens supracitadas. Em
compensação, pode persistir na formulação dos complexos agroindustriais o postulado sobre
um agricultor de subsistência, que produz excedentes, como exemplar de um estágio fatalmente
suplantado, no futuro, pelo pequeno produtor ou pelo trabalhador rural.
De toda forma, continua Graziano, é a produção do café que gera uma miríade de novas
necessidades comerciais e financeiras, associadas a ele e em parte custeada por seus excedentes
(ibid.: 8). Quando ela oportuniza a industrialização, do começo do século XX até os anos 1930,
o desenrolar do processo de unificação do mercado interno impede que outros complexos rurais
possam competir com o do café, em tal medida que as demais regiões, de produção guiada para
o mercado externo, vão sendo submetidas ao status de periferias do polo dinâmico paulista.
Nesse primeiro momento, a industrialização não consegue romper com o capital comercial que
domina o padrão de acumulação das diversas “células de exportação regionais” (ibid.: 9). Para
o autor, “a expulsão do capital mercantil para sua órbita específica”, ou seja, sua subsunção à
produção industrial, só se torna possível a partir da década de 1950, com a internalização de um
setor de bens de produção ou de capital (Departamento I) na agricultura brasileira:
A lenta decomposição do complexo rural iniciada em 1850, com a lei de terras
e a proibição do tráfico, termina um século depois, com a implantação do D1
em bases industriais modernas. Ao longo do processo vão se separando,
gradativamente, novas atividades que constituíram novos setores a partir do
complexo rural (ibid.: 11).

Entre a era Vargas e o pós-II Guerra, o café permitiu o financiamento da integração do


mercado por artifícios de diferenciação cambial que protegiam as indústrias nascentes, à custa
do confisco do preço da saca exportada. O impacto da crise de 1929 foi indispensável na busca
da industrialização e na diversificação da produção agrícola, que aos poucos, se bem que só em
alguns setores, se alterava. Aqui, além de extensivamente, integrando novas áreas pela expansão
da fronteira, a modernização da agricultura transcorre intensivamente, com a adoção de novos
meios técnicos, insumos, maquinário e relações de trabalho7 (ibid.: 12-7).
Essa expansão é possibilitada, por um lado, pela melhoria das estradas e pela oferta mais
frequente de veículos motorizados entre as décadas de 1950 e 1960; por outro, transformações

7
É conhecido como, da maneira que explicita Furtado (1984), o repasse dos prejuízos originados com a não venda
do café à população, por meio de impostos, possibilitou a conversão de excedentes para a industrialização, no
que ele denominou de “socialização das perdas”. Martins (1979, cap. 4), por sua vez, apresenta brilhantemente
as linhas de continuidade de um processo de industrialização segundo fatores internos, se desprendendo das
interpretações que situam o Brasil como mero apêndice do mercado mundial.
7
na intensificação da produção são mais lentas. Inicialmente, segundo Graziano, a internalização
do Departamento I ainda esbarra na dependência externa para importar insumos e maquinário
(ibid.: 19). Contudo, “o processo de produzir se torna cada vez mais complexo, mais dependente
da produção de outros setores da economia, mais intensivo no uso de capital fixo e circulante”
(ibid.: 22). Significa que a unificação do mercado interno evidencia que, também a agricultura,
passa a depender de instâncias externas e integradas a ela na produção de mercadorias agrícolas,
embora persistam políticas cambiais de proteção tarifária, com sobrevalorização e transferência
de reservas especialmente para a nascente indústria de bens de produção (ibid.: 48-9).
Importa reter dessa linha argumentativa, para falar em outros termos, um elo intrínseco
entre a organização de um mercado interno de trabalho no território e uma divisão regional do
trabalho capturada pelo Estado nacional. Mais precisamente, sugiro que o agrário emerge como
questão na medida em que ele suscita a necessidade de homogeneizar, no território do Estado
nacional, as variadas formas particulares de reprodução do agrário segundo os parâmetros de
produtividade determinados no mercado global. Não à toa, é quando a questão regional assume
uma preponderância vultosa na política, de modo que as diferenças surgidas da divisão regional
do trabalho figuram como desequilíbrios (Oliveira, 1981: 31). Tudo se passa como se relações
reificadas em “regiões atrasadas” validassem a ação governamental com vistas à “integração
nacional”. Nesse contexto é que questão agrária e planejamento estão imbricados.
No diálogo com outros autores, Graziano também assinala a relevância basilar do Estado
na definição dum novo padrão agrícola no Brasil desde a década de 1960, orientado à integração
vertical e ao incremento da produtividade. Não obstante o antigo padrão de expansão extensiva
da agricultura permaneça, a produção tradicional adquire novo caráter; em outras palavras, não
obstante prossiga o avanço da fronteira, ela entrementes se integra ao complexo agroindustrial8
(Graziano da Silva, 1998: 24).
O arranque desses complexos se consumaria nos anos 1970, seguindo as tendências do
chamado “milagre econômico” brasileiro e do alargamento da dívida externa. Por sinal, o autor
não deixa de notar a necessidade de um sistema financeiro que promova os CAIs em vistas da
acumulação (ibid.: 26). Aqui é fulcral, além do estabelecimento de políticas de fomento por
fundos de financiamento, a fundação, em 1965, do Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR),
na operacionalização dum setor financeiro em direção à integração intersetorial dos complexos

8
Tal assertiva não é muito diferente daquela defendida pelo autor numa oportunidade passada. No ensaio A
porteira está se fechando?, dedicado à polêmica sobre o fechamento da fronteira, ele decreta um encerramento
não porque seja impossível ao “pequeno produtor de subsistência” se apropriar de “terras livres”, mas devido à
precificação e consequente definição jurídica da terra como propriedade (Graziano da Silva, 1982, cap. 6).
8
agroindustriais (ibid.: 29). É diante disso que deixa de existir uma dinâmica geral autônoma da
agricultura, dada em grande parte pela perda de peso do setor primário no conjunto da produção
interna, e assumem seu lugar dinâmicas peculiares a cada complexo agroindustrial específico
(ibid.: 29-33). Em resumo:
A constituição dos CAIs pode ser localizada na década de 1970, a partir da
integração técnica intersetorial entre as indústrias que produzem para a
agricultura, a agricultura propriamente dita e as agroindústrias processadoras,
integração que só se torna possível a partir da internalização da produção de
máquinas e insumos para a agricultura. Sua consolidação se dá pelo capital
financeiro, basicamente através do SNCR e das políticas de
agroindustrialização específicas instituídas a partir dos fundos de
financiamento. O ponto fundamental que qualifica a existência de um complexo
é o elevado grau das relações interindustriais dos ramos ou setores que o
compõem (ibid.: 31).

Sem dúvida, do processo de financeirização da economia emergem novas formas de


regulação política, que designam variações no planejamento, e em consequência, nas medidas
reunidas no rótulo da questão agrária. É indicativo disso que postura assume o Estado, durante
a ditadura, quanto à reforma agrária e ao aprofundamento das diferenças sociais. Conforme o
autor, foi necessário efetivar uma via capitalista de desenvolvimento sem esbarrar na estrutura
da propriedade fundiária, traço distintivo da modernização conservadora brasileira (ibid.: 49).
Por sua vez, retomar o ponto de como a integração intersetorial, resultante da instalação
dos CAIs, provoca a perda da regulação específica da agricultura inclui desdizer qualquer juízo
de ausência de Estado, que ignoraria políticas destinadas a cada complexo em particular (ibid.:
46). Historicamente, com a internalização do D1 na economia nacional, o esforço de
industrialização da agricultura não é mais articulado em torno das antigas políticas cambiais
seletivas (ibid.: 50). Já depois do golpe de 1964, o cerne do mecanismo protecionista se
transfere para políticas de crédito rural subsidiado, com prazos de quitação relativamente longos
e garantidos pelo SNCR. A execução dum sistema de crédito rural deu condições para canalizar
compulsoriamente parte dos depósitos à vista dos bancos para a agroindústria, com seus
excedentes repassados ao fundo nacional de fomento do setor – o Fundo Geral para Agricultura
e Indústria (Funagri) (ibid.: 51).
Na interpretação de Oliveira (2013) do período, o “milagre econômico” promovido pela
ditadura passa por políticas de combate à inflação que vetam o repasse dos custos de reprodução
da força de trabalho para a indústria. Ao contrário, os prejuízos são transferidos para as classes
baixas e ajustados por políticas de correção monetária, enquanto subsídios a grandes empresas
– através das superintendências de desenvolvimento regional e dos bancos de investimento –
permitem, além da proteção dos mercados, a homogeneização de setores ainda não comandados
9
pelo capital monopolizado. O excedente produzido por famílias e empresas é transmitido ao
mercado financeiro, que passa a competir com a “aplicação produtiva” do capital (ibid.: 102).
Portanto, se a financeirização era um meio acionado para retomar a acumulação, ela doravante
disputa o uso do excedente social pela especulação com a produção de capital. Como destaca o
sociólogo, é a dívida o que vai sustentar a política nacional de incentivos fiscais, no ciclo de
arrocho salarial e concentração de renda que retoma continuamente as exportações e o apelo ao
crédito externo (ibid.: 103).
Daí ser presumível que, após os crashes do petróleo, em 1973 e 1979, a política agrária
tenha sofrido profundas alterações oriundas de uma crise fiscal. Conforme Graziano da Silva
(1998: 51), desde o fim dos anos 1970 o crédito rural subsidiado perde sua sustentação política.
Isso porque a inflação fez inchar os aportes implícitos nas taxas nominais prefixadas pelo SNCR
e reduziu sensivelmente os depósitos à vista nos bancos comerciais, fontes do crédito rural. Os
programas recessivos de ajuste impostos pelo FMI e pelo Banco Mundial barraram a capacidade
do governo de bancar volumes iguais ou crescentes de subsídios, assim rebaixados e regulados
por taxas pós-fixadas de acordo com os índices inflacionários (ibid.: 51). O resultado é que o
crédito rural é submetido ao crédito em geral, de maneira que também o capital produtivo da
agricultura passa a integrar o circuito financeiro:
Resumindo, no final dos anos 70, ao lado das restrições do crédito, o significado
maior da crise do padrão de financiamento para a agricultura foi a perda do
tratamento diferencial em suas relações com o setor financeiro. Isso significa
que o capital produtivo aplicado na agricultura passou a enfrentar as mesmas
dificuldades do capital produtivo em geral, cuja valorização passou
crescentemente para o circuito financeiro, em função das condições oferecidas
pelo mercado e pelas ORTNs [Obrigação Reajustável do Tesouro Nacional]
(ibid.: 52).

No argumento de Graziano, a regulação estatal é ainda o fator de aglutinação entre os


complexos agroindustriais na virada para os anos 1980, instigada pelo crédito, se bem que com
nova ênfase, em torno de políticas de preços mínimos (ibid.: 53). A sistematização de preços,
em contraste com as medidas cambiais e de controle da taxa de juros antes em vigor, agiria no
intuito de fixar margens de lucro para os produtos agrícolas e brechas de rentabilidade aos
capitais investidos (ibid.: 54-5). Daí, fica visível o duplo caráter da ação empresarial junto ao
Estado na época: de um lado, ao passo que defende políticas de controle de preços oligopólicos
para assegurar suas margens de rentabilidade, ela pauperiza os pequenos produtores; de outro,
ela pressiona pela redução da carga fiscal enquanto reivindica incentivos específicos para os
complexos agroindustriais (ibid.: 55). Como as políticas de preço são implementadas em torno
de um produto específico, os variados segmentos do setor são induzidos a competirem entre si
10
mas mediados pelo Estado, que atua fixando cotas de produção, manipulando alíquotas fiscais,
liberando crédito, etc. Tais medidas tendem a acirrar conflitos entre grupos de produtores – em
geral, organizados em função de um mesmo produto – e a beneficiar alguns deles em detrimento
dos demais (ibid.: 56-7).
Em miúdos, a promoção da competição remete a modificações relevantes na reprodução
social, que presumem restringir o Estado à função de agente do direito privado. Dardot e Laval
(2016), em ensaio sobre o neoliberalismo, realçam exatamente tal naturalização da concorrência
como a matriz da racionalidade de nossa época. Ela responderia a certas mutações políticas, a
partir da conquista do poder pelo neoliberalismo; econômicas, em virtude da generalização do
capital financeiro globalizado; sociais, de individualização das forças coletivas e do crescente
abismo entre ricos e pobres; e subjetivas, com o desenvolvimento de novas patologias psíquicas.
Então, o neoliberalismo emergente desde fins dos anos 1970 – mas cujas origens datam da crise
do “liberalismo clássico” na esteira de 1929 – comporta, como “traço principal, a generalização
da concorrência como norma e da empresa como modelo de subjetivação” (ibid.: 16-7).
Essa normatização forçosa da racionalidade e da política nos anos 1980, no Brasil, é
detalhada por Graziano da Silva (1998) desde a recessão do começo da década até a política
agrária vigente nos primeiros anos Collor, passando pelos impactos do Plano Cruzado e da
inflação galopante do período. É de consenso das vertentes críticas que os efeitos da crise fiscal
ricochetearam no recrudescimento da exploração do trabalho, com um expressivo arrocho
salarial que se arrastou por toda a década. O economista enfatiza, em especial, como tais abusos
visavam se converterem na liberação de excedentes de mercadorias agrícolas para exportação,
redundando na queda do consumo de alimentos básicos pelos trabalhadores (ibid., cap. 5).
Inicialmente, com o objetivo de determinar políticas de preço mínimo para os produtos
agrícolas, o governo buscou reatar iniciativas de cessão de crédito de custeio a juros negativos,
mas restringindo seu volume e elevando as taxas nominais de juros do crédito para investimento
(ibid.: 110-1). Acontece que mesmo com a ligeira queda dos juros internacionais na metade da
década, o aumento da inflação interna desencadeou um descontrole no reajuste de preços. O
Plano Cruzado, em 1986, não reverteu essa tendência, pois para manter os preços congelados o
Estado teve que importar em grande quantidade. Assim, sua política fiscal, ao instituir subsídios
e reduzir alíquotas, se reduzia a um apêndice do controle de preços. O fim do regelo acabou por
levar à especulação com o preço da terra, enquanto os preços agrícolas se desestabilizavam e
as políticas de preço mínimo e crédito inclinavam-se para uma derrocada (ibid.: 112-6).

11
Nessa medida, em linhas gerais, a transformação da base técnica na agricultura continua
a crescer nos anos 1980, mas num ritmo menor do que na década anterior (ibid.: 121). Conforme
o autor, quatro motivos explicam esse arrefecimento no ritmo de modernização, a começar pela
recessão em curso desde o fim dos anos 1970. Em segundo lugar, ele levanta a evidente retração
dos incentivos de crédito por conta da crise, e em terceiro, o caráter desigual e excludente da
agricultura brasileira. Por fim, temos a mudança no padrão de modernização da agricultura,
corolário da revolução microeletrônica e biotecnológica, que cada vez mais dispensa força de
trabalho do processo produtivo (ibid.: 121-3).
Do mesmo modo, os anos 1990 demonstrariam a limitação desse modelo de crescimento
da produtividade, que nunca logrou dispensar políticas setoriais (ibid.: 143). A necessidade de
adequação ao novo padrão produtivo esbarra na própria capacidade de financiamento estatal, a
despeito de importantes inovações nos processos agronômicos e gerenciais em curso desde a
década de 1970 – principalmente por ação da Embrapa. Daí a dificuldade de prescindir do setor
público na promoção da acumulação (ibid.: 144). No mercado mundial, a agricultura brasileira
enfrenta a queda de preço de seus principais bens de exportação, devido às políticas de subsídio
agrícola e comércio interno da então Comunidade Europeia e devido à internacionalização de
certos complexos agroindustriais (ibid.: 146-8).
Tendo em conta as oscilações de preço dependentes da vinculação ao mercado externo,
o autor termina por questionar qual a viabilidade do crescimento agrícola voltado “para fora”,
visto que este tem aumentado drasticamente a exclusão no campo e na cidade. Uma proposição
de contorno ao problema, não de solução, passaria por uma reforma agrária que assegurasse ao
menos “casa e comida à população, que não tem mais possibilidades de ser absorvida
produtivamente no novo padrão tecnológico que se avizinha” (ibid.: 149).
É claro que a difusão dessas inovações características da revolução microeletrônica se
restringia a certos segmentos da agricultura, mas sua relação com a totalidade capitalista sugere
um deslocamento nos objetivos inscritos na questão agrária, e que permanecem em mutação até
hoje. Até segunda ordem, parece que a reforma agrária era reivindicada, no campo da questão
agrária, como inclusão de produtores nos padrões exigidos pela modernização, sobretudo por
meio da produção interna de alimentos. Frente à crise financeira e à dispensabilidade crescente
de trabalho, ela, pelas lentes de Graziano, é abreviada à garantia de sobrevivência para uma
população tornada supérflua da perspectiva da valorização de capital. Falta problematizar mais
detalhadamente a conjectura em que tais mudanças, do discurso e da prática, são produzidas.

12
Complexos agroindustriais, reforma agrária e relações de trabalho no campo
O leitor pôde notar que a exposição da obra de Graziano, até agora cotejada, desdobra
o tema da constituição dos complexos agroindustriais (CAIs) como a forma da industrialização
da agricultura no Brasil. O período aqui em pauta atravessa dos incentivos à internalização do
departamento de bens de produção no país, nos anos 1950, até a constituição dos CAIs durante
a década de 1970 e, na década seguinte, o esmorecimento no ritmo de modernização do setor.
A concepção de uma modernização conservadora não é à toa, à medida que exprime mudanças
nas relações de produção, forçadas pelo desenvolvimento das forças produtivas, que guardaram
uma estrutura fundiária tipicamente concentradora. No entanto, cabe indagar se tal conceituação
não é reduzida à certa filiação dualista, de conservação de estruturas sociais como uma espécie
de anomalia exclusiva do atraso brasileiro. O que nos leva à segunda pergunta: em que medida
a instituição dos complexos agroindustriais compreende uma contradição com a reprodução
camponesa e com a dinâmica de crise do capital?
No divulgado ensaio da Crítica à razão dualista, F. de Oliveira (2013) já havia indicado
os limites desta perspectiva, voltada a avaliações de performance do sistema em vista do bem-
estar da população e cara ao desenvolvimentismo, ou a índices de crescimento econômico caros
aos reacionários9. A ruptura com o dualismo recusa aquelas acepções em torno de uma periferia
subdesenvolvida e apartada do centro do sistema como acepções que negligenciam a crítica da
produção como finalidade em si mesma do capital:
No plano teórico, o conceito do subdesenvolvimento como uma formação
histórico-económica singular, constituída polarmente em torno da oposição
formal de um setor “atrasado” e um setor “moderno”, não se sustenta como
singularidade: esse tipo de dualidade é encontrável não apenas em quase todos
os sistemas, como em quase todos os períodos. Por outro lado, a oposição na
maioria dos casos é tão-somente formal: de fato, o processo real mostra uma
simbiose e uma organicidade, uma unidade de contrários, em que o chamado
“moderno” cresce e se alimenta da existência do “atrasado”, se se quer manter
a terminologia (Oliveira, 2013: 32).

9
Assim, F. de Oliveira se contrapunha às principais correntes de sua época (1972). O desenvolvimentismo da
Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) teve como expoentes no Brasil ninguém menos
que Celso Furtado e Ignácio Rangel. Qualquer leitura atenta da principal obra de Furtado (1984 [1959]) percebe
o desenvolvimento nacional como questão que se origina da procura de soluções para o chamado “problema da
falta de braços”, originado com a crise do escravismo e que exigiria uma burguesia industrial capaz de modernizar
o país e trabalhadores aptos ao assalariamento. De cunho divergente, Rangel (2005) falava de uma coexistência
entre relações feudais, do agrário no interior brasileiro, e um litoral moderno e em franca industrialização. Nada
mais dualista. Por sua vez, a ideologia do crescimento econômico é representada pelos teóricos alinhados ao
regime militar, que balizavam suas políticas em índices de produção com a justificativa de apenas posteriormente
ser necessário formular meios mais amplos de distribuir os dividendos. Ficou famoso o adágio do então ministro
da fazenda, Delfim Netto, de primeiro fazer o bolo crescer para depois dividi-lo.
13
Por extensão, a acumulação capitalista global na periferia, segundo a tese dualista, não
aparece exatamente como reposição duma contradição imanente, senão, mais, pela justaposição
de laços de exterioridade. Como reconhece Arantes (1992: 47-8), o dualismo é o ideal que serve
como “inspirador de políticas conservadoras de modernização”, pelas quais a metrópole é que
produz as relações socioeconômicas e à colônia resta repercuti-las equivocadamente, em sua
idiossincrasia. É daí que o planejamento mobiliza expectativas de correção de disparidades e
comporta a tentativa de, digamos, encaixar o chamado atraso numa escala linear de progresso.
Graziano não deixa de admitir que a modernização da agricultura, ao produzir a questão
agrária, também engendra desigualdades. A incógnita é se ele a toma como desajuste, tendo no
horizonte o “modelo” dos países centrais, ou a encara na unidade contraditória da reprodução
crítica do capital como forma social. Já apontei como o autor compreende que a industrialização
submeteu a questão agrária, aí inclusa tanto políticas corretivas como desigualdades que afetam
os que ele nomeia de trabalhadores rurais, à questão agrícola, aplicada a resoluções de aumento
da produtividade. E embora não fique explícito no argumento, tais políticas não são pensadas
como brotando de um Estado isolado dos interesses contraditórios, mais ou menos claros, de
distintos grupos e facções de classe10.
Em certo sentido, a noção de conservação na modernização foi formulada por Martins
(1994) mediante a imposição recorrente de bloqueios ao desenvolvimento. Nessa configuração,
o crescimento econômico promovido pela ditadura capturou possíveis modificações estruturais
na sociedade brasileira. Como denota o próprio título da conferência aqui discutida (cap. II), a
aliança entre propriedade da terra e capital é, digamos, a causa do atraso nacional. A hipótese é
que “as mesmas elites responsáveis pelo patamar de atraso em que situavam, numa situação
histórica anterior, protagonizaram as transformações sociais” (ibid.: 58). Logo, as políticas de
modernização só puderam se legitimar por meio de pactos com as oligarquias regionais. Só que
enquanto agentes estatais – personificando intenções conflitantes entre si – e oligarquias locais
produziam uma questão agrária efetivada no planejamento, visível nos anos anteriores ao golpe,
os trabalhadores rurais começavam a se organizar mais detidamente em instituições (ibid.: 60).

10
Para problematizar um pouco mais demoradamente esse tópico, seria preciso esboçar o que o autor considera
como Estado. No encerramento do capítulo 2 d’A nova dinâmica..., ele rejeita tanto concepções instrumentais
como estruturalistas que, respectivamente, assumem o Estado como instrumento da classe dominante, supondo
nesta uma unidade inexistente; e que atribuem ao Estado a função de agente externo à sociedade, reduzido a
resolver as contradições derivadas do processo de acumulação (Graziano da Silva, 1998: 60). Em seguida, porém,
Graziano alega uma “feudalização do Estado” proveniente da pressão exercida pelos grupos oligopólicos dos
CAIs, e reclama uma volta da distinção entre público e privado no seio do Estado (ibid.: 59-60). É uma defesa que
me faz supor que todas as ressalvas acima são desde logo suspensas – parcialmente em razão de um dualismo
que positiva uma burocracia neutra, do tipo-ideal weberiano, em desprezo à suposta anormalidade das relações
pessoais.
14
Nesse sentido, quase ao mesmo tempo em que a Constituição de 1946 era a primeira, na
história do país, a conter a reforma agrária como lei, as Ligas Camponesas surgiam no Nordeste,
nos anos 195011. Com sua expansão, as Ligas se tornaram, como salienta Oliveira (2007: 108),
o primeiro movimento social de luta pela reforma agrária a ensaiar uma organização em nível
nacional. Essa pretensão claramente suscitava o contexto de crise da política regional, pois não
bastariam mais ações paternalistas emergenciais para, por exemplo, mitigar os efeitos da seca.
Ao contrário, era doravante necessária “uma política efetiva de desenvolvimento econômico”
(Martins, 1981, cap. I.4). Dito noutras palavras, o Nordeste estava sendo localizado como área-
alvo de resolução de “disparidades regionais” a nível nacional, sendo a partir de tal consciência
que a Sudene é fundada em 1959 (cf. Oliveira, 1981).
Segundo Martins (1994: 68), a ditadura civil-militar impôs à questão agrária o impasse
de como resolver a pressão social no campo e simultaneamente vetar a revolução; assim, o
problema envolvia quem faria as reformas. Convenhamos que se tal revolução ao menos estava
na ordem do dia – o que, com efeito, era muito mais uma luta em torno da reforma agrária e de
outras reformas de base para deslanchar a industrialização do país –, ela acabou representando
menos uma ameaça profunda do que um pretexto para a repressão. Àquela altura, prossegue o
autor, embora a reforma agrária se levantasse como pauta candente de discussão na sociedade
brasileira, haviam intensas desavenças na forma como ela deveria ser executada, inclusive no
interior das classes dominantes (ibid.: 73). Estas, contudo, apoiando o golpe, contribuíram para
bloquear qualquer “possibilidade de reformulação da legislação fundiária” e de “estabelecer
limites para o tamanho e uso da propriedade da terra” (ibid.: 69). Historicamente, portanto, as
grandes reformas sociais no Brasil podem até ter sido propostas por grupos progressistas, mas
foram implantadas pelos conservadores. O ponto nunca foi a aprovação de leis reformistas; foi,
para ser exato, como aplicá-las segundo os interesses daqueles que as aprovaram (ibid.: 70).
Para garantir sua posição, o regime “produziu uma legislação suficientemente ambígua
para dividir os proprietários de terra e assegurar ao mesmo tempo o apoio do grande capital”
(ibid.: 78). O Estatuto da Terra, de 1964, estabeleceu um duplo conceito de latifúndio em torno

11
As Ligas Camponesas nasceram com a fundação de uma cooperativa funerária de foreiros do Engenho Galileia
(PE) – que pagavam renda em trabalho ao proprietário fundiário –, a fim de atenuar gastos com o enterro dos
mortos. A ação também respondia a mudanças nas relações locais, já que, com a relativa recuperação do
mercado de açúcar na época, a área de roçado dos moradores estava sendo reduzida, e a exploração do trabalho,
acentuada. Face à crescente pobreza advinda da situação, a cooperativa serviu como instrumento de mobilização
por vias legalistas, a partir da procura dos camponeses pela orientação de Francisco Julião, advogado e político
pelo PSB. A organização era legalista porque o deputado sugeriu aos moradores, na falta de legislação trabalhista
para o campo na época (aprovada somente em 1963), recorrerem à lei do inquilinato para garantirem o direito
às terras que vinham sendo tolhidas pelos fazendeiros (Martins, 1994:60-3).
15
da extensão e da produtividade do lote, o que podia, no fim das contas, englobar minifúndios
no rol de indenizações do Estado. Em compensação, a definição de empresa rural era flexível
o bastante para escapar do risco de desapropriações, indicando o intuito modernizador presente
no estatuto (ibid.: 79). Fazia parte das metas de governo as medidas de concessão de incentivos
fiscais como aquelas da Sudam, com vistas a atrair os conglomerados empresariais do Centro-
Sul do país e estrangeiros. Tanto que, a princípio, os capitais fomentados foram revertidos na
pecuária. Dessa maneira, encerra Martins, a ditadura modernizou a agricultura, mas mantendo
a propriedade da terra, sem recorrer à reforma agrária:
O regime militar, por esses meios, procurou modernizar, mantendo-a, a
propriedade da terra, afastando, portanto, a alternativa de uma reforma agrária
radical que levasse à expropriação dos grandes proprietários de terra com a sua
consequente substituição por uma classe de pequenos proprietários e pela
agricultura familiar, como sucedera em outras sociedades. Ao mesmo tempo,
comprometeu os grandes capitalistas com a propriedade fundiária e suas
implicações políticas (Martins, 1994: 80).

Figura, nesse trecho, uma conexão necessária entre reforma agrária e formação de uma
classe de pequenos proprietários baseada na agricultura familiar, que no Brasil foi substituída
pela aliança entre os grandes capitalistas e a propriedade fundiária. Se é possível, nesses termos,
igualar tal inexistência dos pequenos proprietários, como classe, ao campesinato, a reflexão de
Martins parece um tanto inconsistente. Primeiro porque ela pode ter dado a impressão de que o
investimento na pecuária implicou a estruturação dum setor de produção intensiva, confirmada
no compromisso terra-capital, que pouco medita sobre suas contradições12.
Em segundo lugar, Oliveira (2007) assinala como próprio da reforma agrária encampada
pela ditadura sua inversão em contrarreforma – termo emprestado de Ianni (1979). Camponeses
em contenda por terras sobretudo no Nordeste do país deveriam, portanto, ser deslocados para
as áreas demarcadas das encostas das rodovias planejadas na Amazônia, a fim de comporem
projetos de colonização oficiais e privados. Em simultâneo, proprietários absenteístas no resto
do país podiam receber indenizações em dinheiro, do governo, por terras ociosas; via de regra,
aquelas de pior localização e fertilidade (Oliveira, 2007: 122-6). Quer dizer que, na prática, tal

12
Claro que, em outras ocasiões, o sociólogo se atém mais ao campesinato e à reforma agrária em consequência
da “Operação Amazônia” e da Sudam, ambos de 1966, e da construção de estradas e dos projetos de colonização
em vigor desde 1970 – com o Programa de Integração Nacional (PIN) e o I Plano Nacional de Desenvolvimento (I
PND, de 1972). Ignorando esses elementos, o texto deixa de refletir pontos importantes ao debate; assim, cf.
Martins (1981, cap. III). Quanto a outros autores, cf. esp. Oliveira (1988), sobre as políticas territoriais planejadas
pelo regime militar em relação à Amazônia, e Oliveira (1990), sobre a ligação desses planos com os conflitos
fundiários e com a reprodução do campesinato. Por último, além de uma análise profícua dos incentivos fiscais
da Sudam, Costa (2000a) avalia, quantitativamente, um baixo nível de tecnologia e de empregos e taxas de lucro
médio negativas nas empresas subsidiadas pela superintendência (ibid.: cap. I.2).
16
colonização serviu, digamos, de complemento dos projetos agropecuários, à medida que ocorria
a usurpação dos lotes dos colonos e uma significativa estratificação fundiária. Esse processo,
pois, desencadeou um duplo expediente: de um lado, o uso da força de trabalho assim liberada
em obras públicas e nos grandes empreendimentos privados; de outro, a posse coetânea de áreas
cada vez mais distantes das principais rodovias, para retomar continuamente a pressão pela terra
em vistas de sua concentração, designando um movimento de avanço da fronteira13.
Resgatemos que essa querela sobre a relação entre exploração do trabalho, acumulação
e campesinato, na questão agrária, é vista, por Graziano da Silva (1998: 33), pela perda de uma
dinâmica geral e autônoma da agricultura em sua sujeição a dinâmicas próprias a cada complexo
agroindustrial. Agora, convém realçar que o fruto mais nítido dessa nova dinâmica é a mudança
no processo de trabalho agrícola, que, em comparação com a mera alteração da base técnica, é
irreversível. O processo implica, pelo lado da reorganização do trabalho, a divisão técnica e a
especialização da unidade produtiva, tal como a criação de um proletariado rural desqualificado.
Já pelo lado da base técnica, implica a impossibilidade do produtor de manter uma escala viável
de produção sem precisar recorrer a insumos industriais (ibid.: 34).
Então, antes de mais nada, o assalariamento qualifica a ruptura com as antigas relações
de produção no campo, ainda que se resuma a certas porções do território e setores do processo
produtivo14. Por assim dizer, o que está em pauta é uma alteração na dinâmica geral do trabalho:
Do ponto de vista do processo de trabalho, isto se mostra de maneira clara na
agricultura brasileira a partir da metade da década de 60: a mudança mais
significativa que se observou desde então na mão de obra ocupada no campo
foi a formação de um setor de assalariados rurais em substituição às formas
antigas de relações familiares e dependência pessoal. Esse setor de assalariados,
além do aspecto formal da relação assalariada, está inserido no processo
produtivo de forma distinta dos antigos colonos, parceiros, etc. Os assalariados
estão em geral vinculados a somente algumas fases específicas do processo de
produção (especialização) e destinados ou a manejar máquinas ou a colher
produtos manualmente. O ritmo é imposto, neste último caso, por um sistema
de pagamento que exige um trabalho intenso para alcançar a diária mínima
(desqualificação). É o caráter social e irreversível da industrialização da
agricultura que permite a criação de um verdadeiro proletariado rural,
estreitando-se a possibilidade de reprodução de formas independentes da
pequena produção ou de formas em que o trabalhador mantém o controle do
processo de trabalho (ibid.: 34).

13
Cf. nota anterior. Sobre uma interpretação desse processo e de suas sequelas na margem esquerda do Baixo
Amazonas, particularmente no município de Monte Alegre/PA, cf. nossa dissertação de mestrado (Leal, 2018).
14
O autor fala da passagem de uma “subordinação indireta” a uma “subordinação direta” ao capital. Com efeito,
essa terminologia remete à discussão da passagem da subsunção formal à subsunção real presente no capítulo
inédito d’O capital (Marx, 1974). Em resumo, o capital passa da apropriação do produto do trabalho na circulação
para uma apropriação integral da própria força de trabalho, expropriando o produtor de seus meios de produção
e se embasando em revolucionamentos constantes da base produtiva.
17
Em suma, retomando a primeira parte do ensaio, nos complexos rurais, em especial no
complexo cafeeiro, práticas como a venda dos excedentes repõem aquelas “relações familiares
e de dependência pessoal” que identificam, no caso, o colonato. Entrementes, a industrialização
da agricultura e a constituição dos CAIs engendram a especialização da produção em setores
com grandes montantes de capital e com níveis intensos de exploração do trabalho. O que, por
extensão, define a desqualificação, a sazonalidade e a alta rotatividade da força de trabalho.
A respeito da subordinação da base técnica do produtor, que não exclui a proletarização,
o autor descreve como a indústria fixa contratos para o fornecimento de insumos, mas não de
capital variável (ibid.: 37). É até óbvio, à medida que a força de trabalho é consumida no seio
da própria família e – algo que Graziano esquece de enumerar – no recrutamento de diaristas.
Ademais, em geral “os pequenos produtores não têm poder de pressão suficiente para barganhar
melhores preços, prazos de pagamento e sistemas de classificação impostos pela indústria”.
Daí, “o contrato de fornecimento se converte num mecanismo velado de transferência de renda
da agricultura para a indústria”. Uma vez que a oferta de matéria-prima é garantida, somente os
produtores que atendem às padronizações de produção e de tecnologia exigidas pelo mercado
são selecionados pela empresa (ibid.: 37), ao passo que os demais, presumo, são compelidos à
procura de outras estratégias para garantir sua reprodução. Noutra obra, o economista sintetiza
o duplo processo de submissão até agora discorrido:
Para fazer frente à dupla compressão na sua renda tanto pelo lado da compra de
insumos como pelo da venda de suas mercadorias, o pequeno produtor e os
membros de sua família têm que se assalariar temporariamente nas grandes
propriedades vizinhas, o que se torna compatível com os momentos de pico de
demanda de mão-de-obra acentuados pela modernização parcial da agricultura,
especialmente no Centro-Sul. Esse é um dos mecanismos responsáveis pelo
aumento da rotatividade da população rural em todo o país (Graziano da Silva,
1980: 24).

Aqui, a pressão sobre o pequeno produtor é exercida em duas direções, à montante e à


jusante de sua produção, algo que parece denunciar um fator subjacente ainda mais relevante.
Trata-se daquilo que Marx descreve como coerção dos distintos produtores privados, enredados
na divisão social do trabalho, a um “sistema de dependência reificada universal” representado
no dinheiro (Marx, 1985: 92). Em segundo lugar, o excerto retoma a relação entre a necessidade
de assalariamento e seu caráter intermitente num território do Estado nacional constituído, onde
a força de trabalho circula conforme as exigências do processo de valorização. Existe então um
exército industrial de reserva prontamente disponível para ser explorado (id., 1986a, cap. XXIII,
item 4), intensiva e sazonalmente, num mercado interno unificado.

18
O leitor pode lembrar do caso dos boias-frias mineiros e nordestinos, que desde a década
de 1970 trabalham na colheita de cana-de-açúcar no interior de São Paulo, e de outras situações
similares em torno da migração temporária15. As condições que permitem a superexploração do
trabalho, contudo, também se originam da própria especificidade da agricultura, da terra como
um meio de produção não produzido e da renda fundiária. Aqui, Baumfeld (1984) justifica que
se uma eventual restrição de acesso aos meios de produção, por parte do produtor, rebateria no
aumento do preço da terra, o dispêndio de capital pela indústria é compensado pela exploração
mais acentuada do trabalho por intervalos mais curtos. Além disso, os tempos de não trabalho
típicos da agricultura – por exemplo, o tempo de maturação de um cultivo – criam uma “base
objetiva para formas diversificadas de mobilidade da força de trabalho agrícola” (ibid.: 34-5).
Em contraste, os variados tipos de migração temporária, nada obstante os artifícios de
superexploração do trabalho amiúde acionados, são entendidos por Martins (1986) como meios
possíveis de ratificação da unidade familiar. Ou seja, o migrante se assalaria durante certa época
do ano justamente para repor o espaço da produção camponesa fora do circuito capitalista, ainda
que tal reposição nem sempre esteja garantida16. A objeção, no caso, é a de que a proletarização
não é um fim necessário, como se se tratasse de um ranço a ser suplantado pela modernização.
Até porque, segundo Martins (1979), o capital subsiste da produção de relações não capitalistas
de produção, de forma que, por extensão, o campesinato é produto contraditório do capitalismo
(cf. Oliveira, 2007: 9/11). A. de Oliveira (1991) partilha da mesma premissa, ao escrever que o
assalariamento temporário consiste na transformação apenas periódica e acessória do trabalho
camponês. Logo, meios diversificados de remuneração do trabalho, como a diária e a empreita,
funcionam como “fontes de renda monetária que suplementam o rendimento” da unidade
familiar, tal como garantem “a complexidade das relações na produção camponesa” (ibid.: 56-
7). Os fatores que levam à venda de força de trabalho, geralmente limitada à colheita, teriam
que ser analisados caso a caso, pois nem sempre quem contrata é capitalista e quem se assalaria

15
Deve-se, igualmente, ter em mente que impactos a mecanização da produção teve nas formas de reprodução
desses boias-frias. Na margem esquerda do Baixo Amazonas, observei como nessa época os posseiros, ao mesmo
tempo que mantinham suas terras, em muitos casos procuraram trabalhar em obras públicas – notadamente,
na construção de estradas e na hidrelétrica de Tucuruí – e em grandes projetos agroindustriais – principalmente
no Projeto Jari (Leal, 2018, cap. 3).
16
O autor prevê o fim dessa possibilidade de reprodução através da cultura, por uma via que exprime a imposição
do tempo abstrato, que substancia o trabalho, à festa religiosa. Quando o camponês deixa de retornar de sua
viagem para participar da festa anual do santo padroeiro e esta última entra no ciclo linear do descanso semanal
– isto é, eu completaria, na esfera do lazer como complemento do trabalho – a migração se tornou definitiva
(Martins, 1986: 60-1). Sendo assim, a reprodução camponesa familiar não se desprende da dimensão do sagrado
que se realiza, aqui, por meio da festa (cf. Martins, 1989, cap. IV.2).
19
se encontra absolutamente expropriado. Caso a relação venha a opor proletários a capitalistas,
porém, a posse da terra ainda seria viável alhures:
o camponês expropriado, que pela lógica do capital, deveria proletarizar-se,
reconquista a autonomia do trabalho, ocupando novos espaços em terras sem
ocupação. É nessa luta pela manutenção da condição de lavrador autônomo,
pela conquista da posse que os posseiros, na luta contra o capital, vão
construindo o seu próprio regime de propriedade anticapitalista: a posse, a terra
de trabalho (ibid.: 71).

A contradição do ponto de vista do trabalho também consiste em contradições no que


se refere à propriedade fundiária. Com a possibilidade aberta de retomada da posse na fronteira,
a terra, a princípio, não é monopolizada por uma classe de proprietários. Ao mesmo tempo, se
as políticas de modernização agem no sentido de instituir um mercado nacional de terras, quer
dizer que a produção social de mais-valia pode se autonomizar em sobrelucros permanentes e,
por isso, conferir renda a seu proprietário – tal qual a definição de Marx (1986b, seção VI). A
renda da terra, pois, supõe a incorporação dum excedente produzido no processo de exploração
do trabalho, mas que está apagado de sua origem a ponto de a propriedade parecer por si só a
fonte de tal rendimento17 (ibid.: 125; cap. XLVIII). Igualmente, o preço da terra é regulado pelo
próprio aumento da renda, caso abstraída a pequena propriedade camponesa ou as flutuações
da concorrência e a especulação. Se a renda não sobe, o preço é determinado em função da taxa
de juros no mercado ou porque crescem os juros do capital incorporado ao solo (ibid.: 240). Em
contrapartida, portanto, parece que o mercado de terras e a aferição de renda simultaneamente
repõem, por assim dizer, a autonomia da terra camponesa.
Segundo Graziano, por sua vez, a partir do momento que o mercado fundiário serve à
aplicação de capital, o agrário se articula ao setor industrial e financeiro e incorpora a renda de
monopólio de todas as terras ao preço dos produtos agrícolas. O processo de formação de preços
no interior do complexo agroindustrial permite repassar, para frente ou para trás (no caso de
não haver mercado) a renda fundiária, enquanto a própria terra se converte em alternativa de
investimento (Graziano da Silva, 1998: 44-5).

17
A partir disso, a renda fundiária é determinada sobre duas ou mais quantidades iguais de capital e de trabalho
sobre a mesma área, mas com resultados desiguais, devido à fertilidade do solo e sua distância do mercado
(renda diferencial I) ou devido a níveis diferentes de investimento de capital na forma de insumos, maquinário,
etc. (renda diferencial II). Nesses casos, o pior solo do conjunto não confere renda a seu proprietário. Porém,
diga-se de passagem, se a fertilidade da terra pode ser alterada de acordo com o desenvolvimento social das
forças produtivas, o mesmo cabe à localização, que sofre influência de modificações nos meios de transporte e
de comunicações. Igualmente, a renda é estipulada pela monopolização da terra por uma classe de proprietários,
que embolsam como um todo, mas desigualmente, a renda fundiária absoluta (Marx, 1986b, seção VI).
20
A premissa acima, da incorporação da “renda de monopólio de todas as terras” ao preço
dos produtos agrícolas, pode parecer, no entanto, algo generalista. Talvez à noção de “todas as
terras” tenha que acompanhar a ressalva: “aquelas terras constitutivas do mercado fundiário”.
Mais ainda, porém, pode subsistir certa incongruência conceitual. Em Marx, é a renda absoluta,
e não a de monopólio, a obtida pelo monopólio de classe dos proprietários, inclusive pelos que
detém o pior tipo de solo no mercado. Tal não ocorre com a renda definida pela diferença obtida
em função da exclusão do pior solo, por questão de localização e fertilidade ou de investimento
de capital, da contabilidade dos rendimentos – a renda diferencial (Marx, 1986b, seção VI). O
monopólio de classe por si mesmo, em compensação, permite ao proprietário elevar o preço de
produção das mercadorias agrícolas acima do preço de produção em geral. A classe como um
todo embolsa esta forma de renda, malgrado a concorrência desigual entre os proprietários pelo
excedente social (ibid., cap. XLV).
Já a renda de monopólio resulta dos preços de monopólio dos produtos agrícolas, não
exatamente pela capacidade de classe de estipular esses preços, mas pela natureza excepcional
de determinada mercadoria na realização do sobrelucro (ibid.: 239); por exemplo, o vinho do
porto, exclusivo do Douro português. Ao contrário disso, porém, a renda pode gerar o preço de
monopólio caso um produto seja vendido não só acima de seu preço de produção, senão de seu
próprio valor (ibid.: 239). A contradição da situação, de resto o mistério de toda mercadoria, é
de como mensurar o valor de um produto que representa a cristalização de um processo social,
metamorfoseante, de dispêndio abstrato de trabalho. Nesse sentido, a possível imprecisão de
Graziano parece surgir de sua confusão entre valor e preço.
A propósito, a política de preços agrícolas vai ser um dos pilares das medidas de Estado,
de acordo com o autor, em substituição ao crédito subsidiado que respaldava a consolidação do
complexo agroindustrial nos anos 1970. Até então, para suportar seu programa de exportações
agrícolas, o governo havia recorrido à dívida externa e à transferência dos déficits inflacionários
aos trabalhadores, ampliando a concentração de renda e de terras, como apontado anteriormente
(§29-33). Agora, resta retomar as transformações da estrutura produtiva brasileira, por meio de
seus efeitos integrados ao processo global de produção capitalista, na subordinação dos variados
setores da economia nacional ao capital monopolista.
Decerto, a realização do departamento I no Brasil do pós-guerra corresponde à expansão
do fordismo como forma da acumulação capitalista. Convenientemente, Kurz (2014) vê nesse
período a manutenção de um mecanismo histórico de compensação da crise fundamental do
valor. Na imposição não-linear do capital como forma social, a diminuição do quantum de força

21
de trabalho objetivado numa mercadoria, decorrente do incremento da produção de mais-valia
relativa, quer dizer, do desenvolvimento das forças produtivas, ainda é suprida pelo crescimento
do efetivo de trabalhadores propiciada pela expansão externa do modo de produção (ibid.: 259).
Já a expansão interna do sistema, sobre suas próprias bases, é definida pela incorporação de
ramos produtivos modificando-os também internamente, ao reverter a fabricação de bens de
uso na produção abstrata de valor (ibid.: 261). Ela consiste não apenas na inovação técnica
propriamente dita, pois inclui novas formas de organização para além do recurso a máquinas
mais produtivas. Durante o fordismo, uma racionalização geral impulsiona surtos inéditos de
produtividade: a redução do trabalho contido na mercadoria individual torna-a mais barata,
remediando a possível queda da massa de mais-valia global com inserção de mais trabalhadores
no processo produtivo e promoção do consumo de massas. E tal expediente ocorre ainda que a
expansão externa, como contrapeso da crise, estivesse atingindo seu limite (ibid.: 263).
Acordos de classe em torno dos salários e da ampliação de direitos trabalhistas operam
em conjunto com o investimento em equipamentos públicos coletivos até certo ponto (Harvey,
2012, caps. 8-9), embora o modelo fordista se realizasse desigualmente. Botelho (2019) adverte
que o Brasil logra internalizar, nos anos 1950, a fabricação dos principais bens de capital
necessários à sua ordenação econômica, mas duas décadas depois parte considerável dessa
produção já é efetuada por empresas transnacionais. A formação do D1 interno deveras depende
do excesso de capacidade produtiva de outros mercados, que então fluem para o país, como de
resto acontece com a abertura do mercado nacional ao capital financeiro global (ibid.: 193-5).
Assim, o “milagre econômico” só pode ser explicado
pelo excesso de capital internacional que, não encontrando mais os mecanismos
de valorização nos países centrais, inundou os novos países industrializados,
principalmente a América Latina. A crise do petróleo, em 1973, deu um golpe
nessa abundância de liquidez e demonstrou que o efeito divergente [do Brasil
face à economia global] era meramente temporário (ibid.: 196).

Contudo, o regime prosseguiu com sua postura de endividamento, à revelia do aumento


dos custos de financiamento internacional, e transferiu parte de seus projetos, notadamente os
de colonização, para a esfera privada. As taxas de crescimento foram inferiores às do ciclo
anterior, e com o segundo choque do petróleo, em 1979, a dívida externa atingiu cifras inauditas
– entre 1974 e 1980, ela subiu mais de 600% (ibid.: 196).
Em vistas disso, a dinâmica da crise desdiz o destacamento de uma economia nacional
da conjuntura global do capital. Do modo como o problema é colocado por Graziano, repetindo,
o Estado digere a crise fiscal promovendo a desregulamentação dos mercados com políticas de
fixação de preços mínimos setoriais e com a restrição do crédito de investimento. Além do mais,
22
com a integração intersetorial e a sujeição ao circuito financeiro, o complexo agroindustrial
passa a ter que disputar fundos com os demais setores da economia. Desde a década de 1980, a
generalização dos padrões de produtividade exigidos pela revolução microeletrônica esbarra na
capacidade de financiamento do Estado. A consequência é que os índices de crescimento do
PIB, na agricultura brasileira, crescem em ritmo bem menos acelerado que durante o “milagre
econômico”, e se arrastam anos 1990 adentro. Com um endividamento externo grande a ponto
de o país declarar sua moratória em 1986, as políticas agrícolas precisaram se ajustar à agenda
econômica ditada pelo FMI e pelo Banco Mundial. Grande parte das repercussões dessas novas
diretrizes de gestão não puderam ser discorridas com tanta profundidade pelo livro que embasa
este ensaio. Os indícios apontados, porém, permitem prosseguir nossa exposição segundo certos
efeitos deletérios da revolução microeletrônica sobre a questão agrária.

De pequeno produtor à agricultor familiar: mundialização da agricultura e gestão da crise


Num livro recente que se propõe a um balanço das ações do Partido dos Trabalhadores
(PT), Martins (2016) sumarizou o que é tomado historicamente por questão agrária no Brasil:
No caso brasileiro, o que é concebido como questão agrária é a questão social
gerada pela concentração fundiária. Ela atingiria o capital de outro modo,
através dos desenraizamentos dos trabalhadores da roça, da pobreza e do
consequente não crescimento do mercado interno. Portanto, uma variante da
questão agrária clássica. Aqui não houve o maciço desenraizamento, houve e
está havendo a concorrência entre a agricultura empresarial e a agricultura
artesanal. Os êxitos do agronegócio de certo modo ocupam espaços da
agricultura familiar e acabam complicando-a, tolhendo-lhe a possibilidade de
se propor como agricultura alternativa, que seria ao mesmo tempo a alternativa
para solucionar a questão social da massa de desenraizados do campo. Enquanto
houver pressão social por reforma agrária, estaremos, sem dúvida, em face de
uma questão agrária a ser resolvida. O dilema no Brasil tem sido quanto ao
modo de resolvê-la: através de uma reforma agrária ou através de subsídios
sociais aos pobres? (Martins, 2016: 23).

A declaração não é tão distante do conjunto de sua obra e das acepções de Graziano; a
diferença é que ela suscita variações recentes, na questão agrária, que demandam problematizar
um não dito relativo à contextualização de tais variações.
Numa recapitulação histórica, o mesmo autor ressalvava, duas décadas antes (Martins,
1994: 80-1), que o regime militar não teve uma conduta uniforme quanto à questão agrária e às
lutas camponesas, embora mantivesse sua premissa de aniquilação das dissidências. Sob a ótica
da política interna, após derrotar a guerrilha no Araguaia em 1972, o Estado pôde ignorar a
contrarreforma agrária em favor de projetos de colonização privados18 e se ater à desarticulação

18
Explicitei as causas econômicas dessa transferência dois parágrafos acima deste.
23
da doutrina social da Igreja, parecendo autorizar o repasse do uso da violência de suas mãos
para a dos grileiros (ibid.: 82-3). Tal processo o autor intitula “militarização da questão agrária”
(ibid.; 1984), que, uma vez efetuada, justifica o discurso de caserna para a redemocratização do
país. É que com a implementação de seu projeto, certos militares estavam reconhecendo que os
movimentos em torno da questão agrária passavam da Igreja para os círculos partidários. Nada,
porém, que escapasse à reorganização das oligarquias na composição dos partidos e cargos
públicos da nova república (ibid.: 87).
A Constituição de 1988 também exprime tal arranjo institucional e de classes no que se
refere à reforma agrária. Segundo Martins, a nova ambiguidade na separação entre propriedade
produtiva e improdutiva levantou grandes empecilhos na definição dos latifúndios sujeitos à
desapropriação (ibid.: 90). Não só por atuação interna de deputados ligados à bancada ruralista,
de feitio paramilitar e representada pela recém-fundada União Democrática Ruralista (UDR),
mas porque tal alteração legislativa respaldava a interpretação de tribunais do interior em favor
dos grandes latifundiários (ibid.: 91). Se de um lado a reabertura acompanha o fortalecimento
de movimentos sociais rurais e a elaboração do I Plano Nacional de Reforma Agrária (I PNRA),
de 1985, de outro dificilmente a violência no campo teve índices tão expressivos19.
A mais notória das dissidências no campo, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST), se desenhou à parte do concerto partidário, contestando o não-cumprimento da
lei da reforma agrária e com orientação e métodos de organização até então inéditos no país:
Essa luta camponesa revela, a todos interessados na questão agrária, um lado
novo e moderno. Não se está diante de um processo de luta para não deixar a
terra, mas, sim, diante um processo de luta para entrar na terra. [...] Trata-se,
pois, de uma luta de expropriados que, na maioria das vezes, experimentaram a
proletarização urbana ou rural (Oliveira, 2007: 139).

A novidade presente na luta para entrar na terra, nessa perspectiva, parece exprimir o
engajamento na possibilidade de reinserir o camponês como fruto contraditório do capitalismo
– e que pode ir além dele. Com o ambiente político gestado durante a reabertura, Costa (2000b)
indica que a crise fiscal deflagra a falência do modelo ancorado na grande empresa agropecuária
enquanto o Estado começa a atender algumas pautas dos movimentos sociais, fortalecidos. A
unidade camponesa pôde inclusive revelar-se mais produtiva que o latifúndio, indicando que os
recursos deveriam deslocar seu foco de empresas de fora para áreas de ocupação antiga, aí
contemplando uma maior gama de atividades (ibid.: 90-7). É claro, no entanto, que há inúmeras
descontinuidades entre projetos com diferentes fins e em relação à sua execução, mas não erros.

19
Cf. os gráficos de assassinatos e conflitos no campo em Oliveira (2007: 136; 155-6).
24
Abramovay (2007) também admite a indispensabilidade da ação estatal na moldagem e
determinação das modalidades de organização do trabalho do pequeno agricultor, que a seu ver
mais depende do que consegue pressionar as políticas de preços agrícolas. Seria a ligação entre
Estado e agricultor o âmago da modernização da produção agrária para o autor, que toma por
referência o desenvolvimento capitalista dos países centrais empreendido durante o fordismo:
É este o paradoxo que permitiu ao Estado levar adiante uma política simultânea
de rendas e de preços que foi uma das condições importantes para a própria
implantação do modelo de consumo de bens duráveis de massa, característica
fundamental do período expansionista que conheceu o capitalismo entre a
Segunda Guerra Mundial e o início dos anos 1970. Vale dizer, o que mudou na
agricultura dos países capitalistas centrais não foi apenas sua base técnica, ou
sua integração a conjuntos econômicos que extrapolam o setor: a característica
central da agricultura moderna está exatamente na capacidade que ela oferece
ao Estado de exercer um controle rigoroso sobre seu próprio processo de
desenvolvimento (ibid.: 265-6).

Se a agricultura capitalista dos países centrais é um modelo, o caso brasileiro é falho e


deve ser corrigido? Abramovay alega que o “encontro entre desenvolvimento e equidade ainda
não se deu na América Latina” (ibid.: 268). Sua revisão das teses de economistas dos anos 1970
aponta que o desenvolvimento do capitalismo no campo resolveu a questão agrícola no Brasil,
mas não a questão agrária, alusiva à estrutura fundiária e à justiça social. Na década seguinte,
parte da teoria concluiu que os complexos agroindustriais alcançaram maturidade o suficiente
para sepultar, em definitivo, “os problemas agrícolas que eventualmente pudessem ligar-se ao
desenvolvimento capitalista brasileiro” (ibid.: 269-70).
O autor busca extrair desse método comparativo uma definição de pequena agricultura
que ultrapasse o fornecimento de excedentes aos grandes grupos econômicos (ibid.: 270). Por
isso, “por mais que a agricultura esteja integrada aos complexos agroindustriais, existe um
longo e difícil caminho a percorrer antes que se possa falar em resolução da ‘questão agrícola’
brasileira” (ibid.: 271). A premissa da maturidade é questionada assim que se verifica como, na
agricultura brasileira recente, a produção de lucros dispensa sua contrapartida num consumo de
massas relevante. Inversamente, o Brasil é atrasado exatamente por causa de seu setor mais
moderno, que assalaria e é incapaz de reduzir duravelmente o preço dos alimentos, em oposição
ao capitalismo avançado, assentado na agricultura familiar (ibid.: 271-2).
Se nem a questão agrária nem a agrícola foram resolvidas, ao menos algo mudou na
maneira de interpretá-las. Enquanto Graziano da Silva (1998: 149) propõe uma reforma agrária
que garanta casa e comida à população tornada supérflua com a revolução da microeletrônica,
essa discussão é ausente em Abramovay, que deseja a realização de uma sociedade de consumo

25
de massas na agricultura familiar brasileira20. Está subentendida aí a substituição da ênfase na
reforma agrária por uma espécie de integração social cimentada no consumo, cuja base é o que
o autor chama de “lucros” gerados no próprio setor agrícola – leia-se, gerados pelo agronegócio.
Isso não significa a ausência do debate sobre a reforma agrária nos movimentos sociais, se bem
que seu foco também tenha sofrido mutações, que fogem ao escopo deste ensaio. De todo modo,
malgrado a ação decisiva do MST, os dados sobre reforma agrária, desde o fim dos anos 1980,
revelam quocientes de assentamento bem aquém das metas designadas pelos distintos mandatos
assumidos nesse país, que moveram, cada qual, suas estratégias de desmobilização. Não fossem
os movimentos sociais, de fato esses números seriam ainda menores21.
Relativo ao contexto global, destaco como tais mudanças no tema da questão agrária só
podem exprimir o esgotamento do mesmo padrão fordista que Abramovay tenta ressuscitar. Por
sinal, Chesnais (1996) vê no novo padrão, vigente a partir dos anos 1990, uma “fase específica
do processo de internacionalização do capital e de sua valorização”, chamada de mundialização
(ibid.: 32) e realizada por intermédio da agenda político-discursiva neoliberal. Se globalização
é o termo que recompõe essas modificações para a mídia e parte da teoria social, ele, por outro
lado, soa neutro e vago, e por isso mesmo moldável ao léxico de uma época entusiasmada com
um alegado rompimento de obstáculos à expansão das grandes empresas. É essa imprecisão que
lhe dá a força de uma necessidade, insuspeita, de adaptação à desregulamentação dos mercados:
Com efeito, a globalização é a expressão das “forças de mercado”, por fim
liberadas (pelo menos parcialmente, pois a grande tarefa da liberalização está
longe de concluída) dos entraves nefastos [sic] erguidos durante meio século.
De resto, para os turiferários da globalização, a necessária pressupõe que a
liberalização e a desregulamentação sejam levadas a cabo, que as empresas
tenham absoluta liberdade de movimentos e que todos os campos da vida social,
sem exceção, sejam submetidos à valorização do capital privado (ibid.: 25).

Mas, continua o economista francês, a mundialização não concerne apenas às atividades


de grupos empresariais e aos fluxos comerciais que provocam; ela também inclui a globalização
financeira e a especulação instigada com a liberalização dos mercados de capitais. A alta
concentração de capital na forma monetária favorece a exacerbação dos “aspectos financeiros
dos grupos industriais” e imprime uma “lógica financeira ao capital investido no setor de

20
Ambos os textos foram originalmente publicados em 1992: o primeiro como projeto para o Instituto Cajamar,
e o segundo como tese defendida na Unicamp.
21
Para verificação de dados sobre o número de ocupações e de assentamentos entre os governos Sarney e Lula,
cf. Oliveira (2007: 142-43). Sobre os subterfúgios de desmobilização dos sem-terra, salta aos olhos, além da ação
da UDR e da submissão dos tribunais na segunda metade dos anos 80, já mencionadas, o acionamento da polícia
pelo próprio Estado para dispersar acampamentos no governo FHC – que inclusive redundou em dois massacres
nos anos 1990 (cf. ibid.: 142-6). Cf. os dados sobre o número de assentamentos de 1995 a 2006 em ibid.: 172.
26
manufaturas e serviços” (ibid.: 33). A financeirização opera crescentemente desde o pós-guerra,
e mais ou menos autonomamente em relação ao capital produtivo, comportando a transferência
de riqueza para a esfera financeira e, sobretudo, criando ativos fictícios sobre a retração da
rentabilidade de capitais investidos na indústria (ibid., cap. 10). Seriam as finanças, ou o capital
monopolista mundializado, e ainda mais o capital financeiro como forma do seu funcionamento,
a causa subjacente às crises manifestas desde então, encerrando o modelo de regulação fordista
e estabelecendo um novo padrão de acumulação (ibid., cap. 12).
Leitor de Chesnais, Oliveira (2017) sublinha na mundialização do capital a efetivação
da mundialização da agricultura, integrada aos circuitos produtivos e financeiros do mercado e
às ações governamentais a nível global. Tais condições são, nos dois autores, determinadas pelo
movimento internacional do capital, pela mundialização da produção empresarial e, assim, da
força de trabalho, e pela política econômica de projetos de cooperação internacional, ajustada
aos conglomerados transnacionais monopolistas. A agricultura de base camponesa teria passado
por uma profunda mudança em razão do estímulo à exportação de commodities, com produção
controlada por monopólios e com preços regulados em mercados de ativos (ibid., cap. 3).
A mundialização da agricultura é tomada segundo o duplo processo de territorialização
do monopólio e monopolização do território. No primeiro caso, as empresas detêm tanto a
propriedade privada da terra como do processo produtivo no campo e do processo industrial da
produção agropecuária e florestal. Dessa forma, o proprietário fundiário e do capital agrícola e
industrial estão fundidos na mesma persona física ou jurídica. Esse artifício deriva, em primeiro
lugar, da especificidade dos setores sucroenergético e silvicultor devido aos elevados custos
envolvidos no transporte de matéria-prima. Em segundo lugar, deriva da conexão entre o capital
nacional e o estrangeiro, dadas as relevantes fusões e associações de monopólios empresariais,
indicadas em detalhes pelo autor (ibid., cap. 4.1).
Por sua vez, a monopolização do território é desenvolvida
pelas empresas de comercialização e/ou processamento industrial da produção
agropecuária, que, sem produzirem no campo, controlam através de
mecanismos de subordinação camponeses e capitalistas produtores do campo.
As empresas monopolistas atuam como players no mercado futuro das bolsas
de mercadorias do mundo e, às vezes, controlam a produção dos agrotóxicos e
fertilizantes (ibid.: 233).

Assim, empresas monopolizam a circulação de mercadorias sem necessariamente territorializar


o monopólio, permitindo alianças entre produtores internos e grupos transnacionais que fazem
circular globalmente mercadorias agropecuárias, com destaque, no Brasil, para o setor de grãos.
Aqui, os produtores são financiados desde as sementes geneticamente modificadas aos insumos

27
patenteados por grandes grupos monopolistas, que pagam conforme as cotações dos mercados
de ações e são responsáveis pelo escoamento do produto e sua exportação (cf. ibid., cap. 4.2).
Face os constrangimentos prima facie irresistíveis da globalização, acima mencionados,
a distinção estipulada entre uma agricultura camponesa, voltada à produção de alimentos, e
outra alinhada à exportação de commodities encontrou no agronegócio uma fórmula a ser
religiosamente prescrita. Oliveira subscreve algumas das críticas que definem o conceito como
típico de sistemas integrados de produção agropecuária, em todas as suas etapas e inserindo o
conjunto dos agentes aí envolvidos, do beneficiamento genético ao produto final. Proposto pela
primeira vez em livro em 1957, o agrobusiness compreende a incorporação da ciência à
agricultura, com participação de empresas em cada um dos elos da corrente de armazenamento,
processamento e distribuição da produção. Logo, não seria mais possível isolar a agricultura da
produção geral, de modo que os problemas de produção de alimentos e fibras seriam de
competência, agora, do agrobusiness, e demandariam políticas centradas nesse ramo agrícola-
empresarial em particular22 (ibid.: 105-6).
O incentivo irrestrito ao agronegócio passa a impactar a própria produção de alimentos
básicos, e tem determinado a retração da área cultivada destes. É sintomático que o preço dos
alimentos esteja em ascensão constante desde 200623, antecipando a debacle de políticas

22
O agrobusiness, formulado primeiramente nos círculos de Harvard, será pensado em seus diferentes contextos
nacionais. Oliveira reproduz as pesquisas de Maria Luísa Mendonça sobre a origem do conceito, mostrando como
ele deriva, na França, na noção de cadeias agroindustriais ou filières, preocupada com uma contextualização
atinente ao período de industrialização da agricultura. No Brasil, é importante frisar como a perspectiva de cadeia
produtiva funda a concepção de “PIB do agronegócio”, elaborada na FEA-USP e que “soma os dados da indústria
e dos serviços àqueles da agropecuária, passando para a sociedade uma ideia de grandeza que a agropecuária
brasileira não tem”. Assim, enquanto o PIB do agronegócio para 2011, calculado pelo Centro de Estudos
Avançados em Economia Aplicada da ESALQ-USP, acusa um montante de R$ 917,654 bilhões de reais, os dados
apurados pelo IBGE somam 4,7 vezes menos, R$ 192,653 bilhões (Oliveira, 2017: 104-8). Da mesma forma, por
exemplo, o Anuário do Agronegócio, da revista Globo Rural, inclui em seus dados sobre exportação empresas de
fora do agronegócio, como a Ambev e o Grupo Pão de Açúcar (ibid.: 111-3). Que as maquiagens estatísticas
tratem da defesa cínica do sistema não resta a menor dúvida, mas eu completaria a crítica efetuada pela gênese
conceitual indicando certas práticas teóricas levantadas por Dardot e Laval (2016) na análise do neoliberalismo.
Essa dupla de sociólogos descreve o papel significante desempenhado pelos think tanks ligados à Escola de
Chicago na fabricação de consensos contra o Estado social e na promoção de toda uma normatividade subjetiva
profundamente reacionária, que preparou terreno e legitimou as políticas de Reagan nos EUA (cf. ibid., cap. 6).
Os efeitos obscurantistas dessa estratégia de engajamento se mostram com grande nitidez no Brasil desde 2013,
com o fortalecimento de grupos como o Movimento Brasil Livre (MBL), o Instituto Mises Brasil, o Instituto
Millenium, o Instituto Liberal, etc. Essas organizações, de um modo ou outro, contribuíram para a escalada de
uma figura como Bolsonaro à presidência justamente quando, vejam só, o setor de commodities no país entrou
em franca dissolução. Falarei sobre o ciclo das commodities logo a seguir. Sobre o papel da Atlas Network, think
tank norte-americano que patrocinou movimentos conservadores decisivos para a queda recente de governos
na América Latina, cf.: <https://theintercept.com/2017/08/11/esfera-de-influencia-como-os-libertarios-ameri
canos-estao-reinventando-a-politica-latino-americana/>. Acesso em: 28 de novembro de 2020.
23
Em 2020, o Brasil atinge a cifra de 10 milhões de famintos enquanto permanece o terceiro maior produtor de
alimentos do planeta. O governo incentiva que os grandes produtores exportem o monocultivo e é negligente
28
agrícolas deflagrado com a crise de 2008. Em paralelo, a subida do preço das commodities
estimulou a exportação da soja brasileira para a China e a monocultura de cana-de-açúcar para
a fabricação do biocombustível demandado pelo mercado estadunidense (ibid.: 118-22).
A rigor, porém, a separação entre agronegócio e produção camponesa de alimentos pode
ser encarada, alternativamente, como tentativa de reduzir ambos os polos a um fator comum:
Esta distinção abriu caminho para que vários intelectuais do estudo do mundo
agrário voltassem suas produções acadêmicas para forjarem um novo conceito
de agricultura de pequeno porte voltada, parcial ou totalmente, para os mercados
mundiais e/ou nacional, e integrada nas cadeias produtivas das empresas de
processamento e/ou de exportação (Oliveira, 2007: 147).

Nesses termos, continua o geógrafo, o conceito de agricultura familiar é modelado no


rescaldo da repressão dos movimentos sociais – notadamente, no regime FHC – e na promoção
do agronegócio, que visa ditar um programa de sujeição do camponês à figura de empreendedor
de seu “agronegocinho” (ibid.: 149).
Significa que, no limite, a distinção entre agricultura familiar e agronegócio repousa tão
somente numa questão quantitativa de montante de capital investido. Não obstante as teses de
Buainain et. alli (2013), sugestivas dessa polêmica, reivindiquem para si tal diferenciação, elas
fazem tabula rasa das relações de produção peculiares à agricultura camponesa. A perspectiva
não poderia ser outra senão a do próprio agronegócio, em tom celebratório. Os autores situam
as condições de consumação desse modelo nos anos 1960 e em seu desenvolvimento assentado
no crédito rural subsidiado e na pesquisa agrícola pública, ainda que este fosse limitado a certas
áreas, grupos e produtos (ibid.: 108). Sua catalisação viria apenas três décadas mais tarde, com
mudanças institucionais que “corrigiram parte dos bloqueios então existentes” mediante
estabilização da moeda e reorganização das políticas agrícolas. Estão inscritos aí novos critérios
de financiamento, com adição de recursos privados, e uma nova política cambial, que tornaram
“os produtos de exportação mais competitivos” (ibid.: 109). Então, “conhecimento tecnológico,
produtores preparados e nova ordem político-institucional” redundaram na universalização da
racionalidade gerencial, na fixação dos novos padrões em regiões que antes possuíam dinâmicas
agrícolas diferenciadas e na conformação financeira das cadeias produtivas (ibid.: 110).
Com isso, os autores deslocam o problema, que consideram binário, entre agronegócio
ou agricultura familiar para uma questão de qualificação da força de trabalho e capacidade de
inovação (ibid.: 113). Para tanto, a fonte da riqueza agrícola nos anos 1990 teve que se transferir

com a produção de alimentos básicos. Uma produção voltada para fora ora ou outra repercute no aumento sem
estribeiras dos preços, sendo o arroz nosso exemplo mais recente. Cf.: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil
-54288952>. Acesso em: 28 de novembro de 2020.
29
da terra para a inversão de capitais, que compele à difusão dos novos parâmetros de produção
numa conjectura de concorrência crescente. Os riscos, vinculados a novas práticas empresariais
como o arrendamento em lugar da propriedade da terra, possibilitam flexibilizar investimentos
para preservar sua liquidez, mas exigiriam a gestão de “profissionais do capital” (ibid.: 110-1).
A efetivação desse novo modelo não deixaria de opor interesses contrários e aprofundar
diferenciações sociais, visto que os pequenos estabelecimentos nunca estiveram tão próximos
da marginalização (ibid.: 118). Todavia, a agricultura aperfeiçoada com a Revolução Verde e a
sua consequente intensificação da produção tiveram um “impacto positivo para a humanidade”
tal que, com o incremento da demanda global, seria absurdo estimular “tecnologias alternativas
de uso local e baixa produtividade” (ibid.: 113). A evolução agrícola do último meio século
teria até mesmo sepultado a questão agrária no Brasil, pelo menos em seus antigos termos, e
desmentido suas hipóteses de crescimento da luta e da concentração de terras e de persistência
do campesinato. Logo, a reforma agrária não se vincularia mais à oferta de alimentos e matérias-
primas (ibid.: 115), pois o dinamismo da agricultura procederia, desde então, justamente do
investimento e da intensificação tecnológica. A discussão a respeito do campesinato como via
de desenvolvimento seria, aí, tão estapafúrdia que sequer mereceria comentário (ibid.: 116).
Nessa linha, o que os autores chamam de “ativação de uma relação perversa” é passível
de correção na mesma lógica de inovação e de reparação das políticas, na maior parte das vezes
fragmentadas e improvisadas, que ainda são executadas no país (cf. ibid.: 117). Grosso modo,
a mutação das relações exclusivas do agronegócio em axioma se exprime em todas as teses
reunidas no artigo: no elogio da produção de commodities e dos lucros aí embolsados; na
positivação da conduta empresarial, individual e estatal, como de agentes dotados de
racionalidade econômica e orientados à maximização dos rendimentos; no isolamento da
concorrência, que leva à generalização das inovações, de suas determinações sociais; na
abstração de relações de trabalho particulares e/ou geograficamente distintas; na privatização
do Estado como gestor do capital, por meio de seus profissionais tecnocratas; na naturalização
do crescimento econômico e, por isso, na liquidação de qualquer alternativa ou objeção
levantada ao modelo exposto.
A despeito do fetiche do crescimento econômico, a interdição de qualquer imaginação
alternativa – ou seja, algo que projeta uma aposta de futuro – no argumento dos autores parece
definir um presentismo letárgico, tal qual o conceito de “realismo capitalista” de Mark Fisher24

24
Para apoiar essa premissa, Fisher evoca dois outros truísmos significativos de nossos tempos: respectivamente,
a conhecida máxima de Thatcher de que “não há alternativa”, e o segundo, mais recente, atribuído a Jameson,
mas muito divulgado por Zizek, de que hoje “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”.
30
(2009). Não é à toa a que a origem dessa nova ontologia do capital, centrada nos negócios, parta
dos anos 1990 e das variações concretas seguidas ao colapso do capitalismo de Estado. Assim,
a normatividade do texto reflete elementos da sociedade neoliberal, estudada por Dardot e Laval
(2016), no que toca à subjetivação segundo práticas de engajamento do indivíduo como empresa
de si, como, aliás, também caberia ao Estado na atualização de suas políticas agrícolas.
Comparada à proposta de Abramovay, de uma distribuição da riqueza produzida no
setor de commodities e com aumento do consumo na agricultura familiar, replicando o modelo
dos países avançados, a sugestão de fundo de Buainain et. alli parece, primordialmente, cogitar
a política de difusão de inovações como resolvida em si mesma. Quer dizer, no limite, que todo
o restante depende da iniciativa dos próprios sujeitos em sua adesão ao mercado concorrencial.
Diga-se de passagem, não seria inusitado extrair semelhante positivação na concepção do “novo
rural” de Graziano da Silva (1999), em que a economia agrícola estaria cada vez mais marcada
pela pluriatividade, ou seja, pela combinação de atividades agropecuárias com não-agrícolas.
Por outro lado, essas formas de engajamento do agricultor podem configurar menos a
liberação de força de trabalho para produção de valor do que sua descartabilidade. A concreção
de uma sociedade de consumo brasileira até tentou ser empreendida, ao menos minimamente,
já nos anos 2000 com o petismo, mas como opina Martins (2016: 130),
É significativo que se diga que há hoje no país [2013] 150 mil pessoas carentes
dos benefícios da reforma, mais que o dobro do que as indicadas antes de o PT
assumir o poder. O petismo fez uma indiscutível opção preferencial pelo
agronegócio, reiteradamente proclamada pelo próprio Lula.

Como no fim do excerto que abre esta seção, sugiro que a frouxidão do governo referida
à reforma agrária25 está amarrada ao lançamento de programas destinados à agricultura familiar,
através do crédito, sobretudo via Pronaf, e do estímulo ao consumo, principalmente pela Bolsa
Família. Os fundos desse amplo projeto de distribuição são obtidos pelo setor de exportação de
commodities, que contudo esteve fundado num capital que só se realiza como promessa sempre
adiada de exploração do trabalho. Ou seja, esteve fundado no que Marx classifica como “capital

25
Segundo Oliveira (2007: 163-8), a implantação do II Plano Nacional Reforma Agrária (II PNRA) do ano em que
Lula assumiu seu mandato até 2007 continuou, como ocorrido com FHC, disfarçando dados, de maneira a igualar
as diferentes categorias da relação de beneficiários da reforma agrária ao número de novas famílias assentadas.
Em texto divulgado posteriormente, o autor acusa persistir desde 2008, na ausência de um III PNRA no Brasil, a
substituição da política de reforma agrária pela regularização fundiária, inclusive com atenção maior às áreas
onde seus beneficiários pudessem servir como força de trabalho para o agronegócio (Oliveira, 2011). Os dados
do Incra demonstram que, após um pico (maquiado) em 2006, o número de famílias assentadas vem em déficit
ininterrupto, atravessando a crise de 2008 e todo o governo Dilma até praticamente zerar desde 2016. Cf. a aula
ministrada em 20 de novembro de 2020 por Oliveira.
31
fictício” (1988, cap. XXV), em sua época um expediente ocasional, que todavia se generaliza
após a revolução microeletrônica.
Conforme Kurz (2014), a revolução microeletrônica finaliza a fase fordista alterando a
qualidade da valorização e detendo sua expansão interna, não obstante a abrangência dos novos
potenciais de racionalização produtiva. De início, ela parece repetir o desenvolvimento anterior
em novo patamar, incrementando a produtividade e massificando o consumo. Contudo, para a
queda no dispêndio de trabalho objetivado em dada mercadoria ser compensado pelo aumento
do número de mercadorias, seriam necessários acréscimos de força de trabalho altos o bastante
para contrabalançar o trabalho por mercadoria tornado supérfluo26 (ibid.: 265-6). Mecanismo
que não é mais compensado suficientemente:
a “racionalização” que torna supérfluo o dispêndio de trabalho humano anda,
pela primeira vez na história capitalista, mais depressa e assume uma dimensão
maior do que o embaratecimento a ela associado e o correspondente
alargamento dos mercados. Os mercados das mercadorias alargam de modo
drástico, os mercados de trabalho encolhem de igual modo. É precisamente o
contrário da expansão interna do fordismo (ibid.: 267).

Manifestamente, o caráter histórico da desvalorização do valor no plano da produção de


mercadorias, que dispensa força de trabalho, implica também desvalorização do dinheiro como
representante de tempo de trabalho abstrato. Esses processos de desvalorização do capital social
global não são lineares, pois a crise só se desdobra através do movimento empírico dos capitais
individuais, em graus diversos de concreção e universalização e em níveis sempre mais agudos.
Kurz sequencia uma escala iniciada no plano da produção, com a redução necessária de
salários e aumento do desemprego, que acabam por aos poucos desvalorizar o capital constante.
Em sequência, a massa de mercadorias produzidas já não pode mais realizar seu valor em níveis
satisfatórios globalmente, daí retraindo sua capacidade de ser reconvertida em dinheiro. O
capital monetário acumulado não é mais tão investido na produção, mas rolado para mercados
financeiros a fim de, à primeira vista sem recurso a processos produtivos reais, continuar a se
valorizar. O capital assim emprestado pelo sistema bancário, a troco de juros cada vez mais
elevados, tem sua insolvência adiada e é aplicado em títulos de propriedade que elevam preços
no mercado, também sem base no processo produtivo. Essas bolhas financeiras e de dívidas não

26
Segundo Marx (1988, seção III), o aumento da razão de capital constante (meios de produção) em relação ao
capital variável (força de trabalho), isto é, o aumento da composição orgânica do capital, determina que igual ou
crescente taxa de mais-valia gerada por uma força de trabalho individual exprime uma taxa decrescente de lucro,
enquanto cresce, ainda que não na mesma medida, o volume de valor do capital constante. A mesma massa de
força de trabalho processa um volume sempre crescente de capital constante, barateando a produção que
contém, porém, um quantum menor de trabalho para cada soma de capital. O aumento da produtividade, pois,
contraditoriamente corresponde à exploração cada vez menor de trabalho, a ponto mesmo de dispensá-lo.
32
pagas mais cedo ou mais tarde estouram, com desvalorizações do capital financeiro sob a forma
de crises de dívidas e de crash das bolsas. Por conseguinte, sua repercussão nos mercados de
trabalho e de produção de mercadorias é deveras desastrosa (ibid.: 290-1).
Nesse sentido, com a passagem da disponibilização do crédito como recurso esporádico
para a condição de pressuposto da produção, a exploração do trabalho é lançada para o futuro.
A produção de mercadorias e lucros individuais até prossegue, mas não remunera o empréstimo
contraído e inclusive induz à busca reiterada por novos créditos. Noutros termos, a ampliação
da discrepância entre a extração de mais-valia e o que é previsto ocasiona um risco sistêmico
de quebra da cadeia de pagamentos. Esse artifício de especulação pode ser replicado porque o
dinheiro, com o fim do acordo de Bretton Woods em 1971, perde seu lastro no ouro, quer dizer,
num processo real de valorização, alimentando as bolhas de dívidas (ibid.: 296-304).
No fordismo, apesar do crescimento da massa de mais-valia, a expansão do crédito foi
contínua, como alertou, acima, Chesnais. Já segundo Kurz, nesse momento os bancos emissores
ainda não criavam dinheiro do nada, senão indiretamente, através do controle do crédito. Mas
quando esse mecanismo é desativado nos anos 1980, são provocadas hiperinflações em diversas
economias nacionais, em especial na América Latina (ibid.: 304). A desregulação dos mercados
mobiliza endividamentos sem precedentes e com base na retroalimentação de um dinheiro já
sem substância no processo material de valorização. Com isso, o contraste que interessa reter
entre a mundialização do capital chesnaisiana e a revolução microeletrônica, criticada por Kurz,
está na acentuação de uma crise fundamental de desvalorização, e não em uma nova fase de
acumulação. O que não invalida as descrições fenomênicas da mundialização das empresas e
das finanças aqui desenroladas.
Nesse contexto, Pitta (2020) situa o crescimento do agronegócio brasileiro, divulgado
pelos acréscimos no PIB ocorridos do começo do século até 2012, como inflação dos títulos de
propriedade que ensejam o ciclo de formação e estouro de uma bolha das commodities:
a partir de 2002, com o início da bolha das commodities nos mercados de
capitais internacionais, inicia-se uma retomada de alta do PIB brasileiro, mas
que se vincula com a determinação categorial do capital fictício e com a crise
fundamental do capital. Desta forma, não houve valorização do valor, no Brasil,
a partir de 2003/2004, mas inflação dos títulos de propriedade nos mercados
financeiros internacionais como bolha financeira, a qual moveu um processo de
crescimento econômico como simulação por meio da determinação do capital
fictício da acumulação de capital e da valorização do valor, inclusive com
aumento da produtividade do trabalho (aumento da composição orgânica do
capital) e da produção de mercadorias, concomitante à expulsão do trabalho
vivo do processo produtivo (em números absolutos, ou seja, continuidade da
dessubstancialização do capital na particularidade brasileira), sendo a crise
econômica a partir de 2012 fenômeno de estouro desta bolha (Pitta, 2020: 106).

33
Igualmente,
Este processo de simulação fictícia de acumulação só podia perdurar enquanto
os balanços das empresas parecessem passíveis de lidar com tais dívidas, ou
seja, enquanto durava a alta dos preços de futuros de commodities. Após isso,
as falências passaram a se generalizar, o que apareceu na economia brasileira
como recessão, desemprego, alto endividamento e inflação [...] Processos de
expulsão do trabalho do processo produtivo se aprofundaram conforme a
inflação dos títulos de propriedade permitiu que a simulação fictícia de
acumulação de capital fomentasse a produção de mais mercadorias, a qual
apareceu (sem o ser) como real acumulação de capital aos sujeitos sujeitados
neste processo e que voltam seus pontos de vista apenas ao capital individual
ou ao aumento da exploração do trabalho, para logo defenderem a continuidade
de uma valorização infinita do valor (ibid.: 110/113-4).

Portanto, a estrutura de bolha ainda explora trabalho e produz mercadorias, parecendo


fazer girar a economia. Igualmente, o enquadramento de uma agricultura familiar nos preceitos
do empreendedorismo tem, por fundamento, um capital fictício distribuído na forma de políticas
que, embora fomentando a produção, integraram por meio do consumo e perduraram até 2008.
Para Pitta, a crise logrou ser adiada no Brasil até 2012, por efeito de medidas anticíclicas
de investimento em infraestrutura, com intenção de “produzir” terras pela incitação do mercado
imobiliário. Ao mesmo tempo e em oposição, o Estado implementou políticas de redução dos
juros, desvalorização do câmbio, desoneração fiscal e fomento de crédito para o consumo, que
presumiram a chamada “eutanásia do rentista” em nome do capital produtivo. Sua repercussão
compreendeu depreciação cambial da moeda, inflação e endividamento geral de empresas, da
sociedade e do Estado, rebatendo em falências e recuperações judiciais e na notável escalada
do desemprego. A detonação da bolha, contudo, não refletiu no preço da terra, que continua a
subir devido ao investimento das grandes empresas monopolistas. Nesse sentido, os preços das
commodities vêm desacoplados do preço da terra, que passa a operar como ativo financeiro, de
modo que a renda fundiária fica também assentada num processo de ficcionalização (ibid.: 127).
Com a difusão de políticas calcadas no consumo, resta perguntar se a questão agrária
tende a se reduzir, ou se atualizar, em uma questão de assistencialismo. Afinal, chama a atenção
como, em grande medida, a luta pela reforma agrária tem sido substituída, no debate, pela luta
por distribuição de renda. Alguns movimentos sociais nunca deixaram de levantar a bandeira
da reforma agrária, mas a retração no total de ocupações e na regularização dos assentamentos
tem sido expressiva, enquanto o índice de violência no campo cresce exponencialmente27. Além
do mais, as políticas de assistência, obviamente, sempre foram bastante seletivas, e, por

27
Oliveira exibiu estatísticas, elaboradas pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), sobre conflitos por terra e cifras
de ocupações e novos acampamentos na aula ministrada em 20 de novembro de 2020, no curso de Agricultura
e capitalismo no Brasil. Os conflitos têm se amplificado incessantemente desde 2008.
34
exemplo, sempre foi típico da concessão do pequeno crédito de custeio o endividamento dos
lavradores – como, aliás, também foi observado em campo (Leal, 2018). Mas nada de ruim que
não possa piorar. O corte de verbas para tais políticas é uma constante desde o impeachment de
Dilma Rousseff em 2016, seja com o pretexto eufemístico de atenuar a crise seja para legitimar
descaradamente o aprofundamento da exclusão social28.
Nesse cenário, reivindicar o retorno da regulação fordista e sua consumação no Brasil,
se bem que desta vez de forma supostamente correta, abstrai a sociabilidade capitalista recente
como crise do trabalho, e portanto, a crise financeira e capitalista em geral. A questão é que o
impedimento de realização de uma agricultura nacional como a dos países de capitalismo
avançado não revela nossa incongruência. Ao contrário, revela a própria crise como fundamento
da forma social.

Considerações finais
Neste ensaio, busquei apresentar um esboço da questão agrária e das modificações do
mundo agrário no Brasil a partir da leitura de uma obra de Graziano da Silva (1998), dedicada
ao traços que configuram uma nova dinâmica da agricultura desde a década de 1980. Como em
Vainer (1984), a intenção não foi delimitar o que é a questão agrária, mas mapeá-la segundo os
discursos que a produzem como um problema submetido a políticas corretivas. O planejamento
produz um território do Estado nacional pela instituição de mercados de terra, trabalho e capital,
aparentemente autônomos entre si, para viabilizar seu processo de exploração de mais-valia
como acumulação capitalista interna. Aqui, o livro de Graziano é nossa primeira e privilegiada
fonte para o questionamento da questão agrária, a partir do qual é possível, agora, entrelaçar as
distintas perspectivas reunidas no decorrer do texto em um esforço de interpretação conjugada.
A tese inscrita n’ A nova dinâmica da agricultura brasileira é aquela de industrialização
da agricultura, como parte do projeto de modernização conservadora que caracteriza o país.
Por trás dessa explicação, o processo remete à origem colonial e à produção de um território no
qual o desenvolvimento da agricultura se deu extensivamente, incorporando novas terras. Para
sustentar a colônia como tal, a produção de mercadorias tropicais para consumo metropolitano

28
Ilustrando esse cenário com um caso recente, o governo Bolsonaro aprovou para 2021 um aumento de 4% no
orçamento do Incra, mas, desse montante, 66% é destinado ao pagamento de precatórios, enquanto prevalecem
cortes de mais de 90% para assistência técnica e extensão rural, reforma agrária e regularização fundiária,
reconhecimento de territórios quilombolas, concessão de crédito para famílias assentadas e aquisição de terras.
Se o leitor pesquisar outros temas referentes ao agrário, poderá concluir que a clivagem em função do latifúndio
é evidente, enquanto é divulgado que o Incra está com seus cofres vazios. Cf.: <https://www1.folha.uol.com.br/
poder/2020/09/bolsonaro-incrementa-verba-para-ruralistas-e-reduz-quase-a-zero-a-reforma-agraria.shtml>.
Acesso em: 07 de dezembro de 2020.
35
manteve a força de trabalho cativa, integrou uma rede transatlântica do tráfico escravista e
reproduziu relações pessoais de favor, neste caso firmando laços entre grandes proprietários e
homens livres pobres.
A Independência diante da metrópole consiste, igualmente, na execução dos primeiros
esforços de interiorização das formas de reprodução social fundadas na exploração do trabalho,
produtor de mais-valia, como efetivação de um programa de modernização. Faz parte desse
empenho, frente à proibição do tráfico negreiro intercontinental, o intuito de impedir o produtor
de ser dono de seus próprios meios de produção, para torná-lo disponível ao assalariamento. A
expropriação em áreas recém-industrializadas da Europa vai permitir a subvenção à imigração
para o Brasil, com necessidade de incorporação crescente de força de trabalho para expandir a
fronteira29. Porém, tal interiorização não generalizou o assalariamento. Ela produziu relações
diferenciadas de produção capitalista pelo território que Martins (1979), por sua vez, concebeu
como produção de relações não capitalistas de produção.
Nessa passagem é que Graziano enxerga a constituição de diversos complexos rurais no
país, com suas condições de produção reproduzidas internamente mas orientadas à exportação.
Desde o começo do século passado, o complexo cafeeiro, com suas relações particulares vai,
progressivamente, produzindo excedentes que serão decisivos para a industrialização, num
processo de submissão dos demais complexos rurais à sua dinâmica. Trata-se da formação
contraditória do mercado interno, que culmina, na década de 1950, na internalização do
departamento de bens de capital na agricultura e na expansão dos meios de transporte e linhas
de comunicação. A participação do Estado foi, assim, crucial na construção dessa infraestrutura
e na decretação de políticas protecionistas e de câmbio, que mais tarde, nos anos 1970, abririam
caminho para a constituição do complexo agroindustrial.
A produção do Departamento I foi obra de políticas que funcionaram com a intenção de
homogeneizar as diferentes formas de reprodução do capital no território, através do discurso
de solução das “disparidades regionais”. Foi quando a questão agrária emergiu como problema
de conformar as relações de produção no campo aos parâmetros de produtividade determinados
pela concorrência global. O intento de modernização se mostra, portanto, em medidas como o
Estatuto do Trabalhador Rural (1963) e na fundação das superintendências de desenvolvimento
regional. Contextualizam, também, a formação do primeiro movimento social rural de alcance
intencionalmente nacional e a ampliação do debate da reforma agrária, à primeira vista inscrito

29
O que revela que a incorporação contraditória do ex-escravo ao processo produtivo é de cunho marcadamente
racista, mas não exclui que a necessidade de força de trabalho em níveis sempre maiores, e imediatamente,
tivesse de recorrer a estrangeiros.
36
na correção de desigualdades sociais e na produção de alimentos. Era entendido que as relações
estabelecidas no latifúndio travavam tanto a modernização das relações de produção quanto a
intensificação da produtividade. Por fim, é aqui que se situa a tese de Abramovay (2007) sobre
o barateamento de alimentos liberar trabalhadores, devido à redução dos custos necessários à
sua reprodução, para o consumo de massas.
A meu ver, o que está em pauta é uma querela a respeito da resolução da questão agrícola
como precondição ou consequência da questão agrária, opondo, por um lado, os que defendem
o crescimento econômico como antecipação necessária da distribuição, como Delfim Netto. Do
outro lado, figura a matriz desenvolvimentista de avaliação da performance do sistema, segundo
sua capacidade de oferecer bem-estar à população. Ambas as perspectivas, como visto a partir
de F. de Oliveira (2013), ignoraram a crítica da produção como fim em si mesmo do capital e
se retiveram apenas a binarismos formais.
A ditadura civil-militar subordinaria a questão agrária aos ditames da aliança tanto com
oligarquias regionais como com o grande capital nacional e estrangeiro. Em suma, suas medidas
de concessão de crédito, abatimento fiscal e pesquisa agrícola gestaram, segundo Graziano, um
complexo agroindustrial centrado na integração vertical e no incremento da produtividade, às
expensas e se aproveitando da continuidade da expansão da fronteira. O CAI se converteria no
principal vetor das políticas agrícolas, ao mesmo tempo que confirmava uma estrutura fundiária
altamente concentrada. Isso porque os camponeses eram deslocados, sobretudo do Nordeste do
país, para projetos de colonização na Amazônia, o que induziu à dilatação da fronteira a partir
de um sequenciamento entre posse da terra e/ou colonização e circulação de força de trabalho
no território. Aqui, o campesinato tanto constituiu força de trabalho ocasional e intensivamente
empregada como pôde reiterar sua condição, pela posse da terra, de dono de seus próprios meios
de produção e radicado no trabalho familiar. Por isso, prevalece relativo consenso entre os
autores apresentados, entre eles Graziano, de que a agricultura brasileira logrou se modernizar
sem recorrer à reforma agrária. É a tese de uma modernização que conservou ou até ampliou
suas estruturas sociais de desigualdade, que podem ser vistas como um desvio de trajetória ou
como particularidade de uma forma social crítica.
A função do crédito, através do Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR), de cimentar
o complexo agroindustrial exprimia a financeirização que balizou o “milagre econômico” da
ditadura, enquanto capitais ociosos podiam ser investidos produtivamente no país. Portanto, os
choques do petróleo rebateriam, invariavelmente, no endividamento externo e no esfriamento
do ritmo de desenvolvimento da agricultura brasileira desde o desfecho da década de 1970. O

37
déficit orçamentário levou à aceitação das novas políticas de austeridade do FMI e do Banco
Mundial, que impeliram à retração do crédito rural subsidiado sujeitando-o ao crédito em geral.
Por conseguinte, os fundos antes destinados ao complexo agroindustrial são agora disputados
por todos os setores da economia, assim como as políticas precisaram ser reorientadas em torno
de cada complexo em específico. A diretriz empregada foi a de controle de preços mínimos dos
produtos agrícolas, que estimulou a concorrência geral entre empresas e produtores reunidos
em torno de um mesmo produto, e tendeu à exclusão, dessa dinâmica, dos produtores menores.
Esse impulso à competição, junto à defesa do Estado como agente privado, expressam
a própria imposição do programa neoliberal dos órgãos financeiros internacionais, que, por sua
vez, está situado na conjectura de crise capitalista manifestada com a falência da fase fordista
de acumulação. A revolução microeletrônica, instalada nos anos 1980, pode mesmo determinar
em alguns momentos a incorporação de força de trabalho na valorização de capitais individuais,
embora, como sublinha Kurz (2014), ela seja insuficiente para a reprodução ampliada de capital.
A partir daí, a indução à expulsão generalizada de trabalhadores do processo produtivo apenas
é compensada ficticiamente, com a expectativa sempre adiada de exploração do trabalho, que
induz a bolhas especulativas e à escalada da hiperinflação em diversas economias nacionais.
Nesse contexto emerge no Brasil, desde o começo dos anos 1990, o agronegócio como
discurso pretensamente inescapável de adaptação do produtor, bem como de subordinação do
campesinato ao programa de empreendedorismo presente na concepção de agricultura familiar.
A diferença entre esses dois sistemas, pois, se abreviaria a uma questão de montante de capital
envolvido, naturalizando a competição, a subjetividade da empresa de si e o crescimento
econômico. Nessa década, a produção de commodities se beneficiou da reformatação de
políticas de financiamento, com participação do setor privado, e cambiais, pela estabilização da
moeda. Mais do que isso, a ampliação das exportações foi possível pela regulação dos preços
desses produtos nos mercados de ativos e pelo controle da produção e circulação das
mercadorias agrícolas por grandes empresas monopolistas.
Por isso, o agronegócio é ancorado na expectativa de uma exploração de trabalho que
não se efetiva satisfatoriamente, isto é, que só pode valorizar o valor adiando sua realização.
Não resta dúvida de que o aumento do PIB no Brasil, no começo dos anos 2000, gerou empregos
e diversificou o consumo, mas tal crescimento foi fundamentalmente fictício. Ele foi erigido
sobre a economia de bolha dos preços das commodities, sendo seus rendimentos parcialmente
distribuídos por políticas de incentivo ao consumo e pela liberação de crédito para a agricultura

38
familiar. Daí que quando do estouro da bolha, em 2008, os impactos sobre os empregos e sobre
a capacidade de financiamento do Estado tenham sido tão agudos.
Frente à crise, a questão agrária também passou por modificações em sua concepção e
na maneira como é executada, sobre o que encerro sugerindo a existência de um duplo aspecto
do discurso. A questão agrária, hoje, parece estar sintonizada com os preceitos do planejamento
mais recente, que, a partir da leitura de Harvey (2012), atravessou de uma qualidade integrativa
e territorial para um caráter fragmentário e flexível, ou, por assim dizer, cirúrgico. É também
por isso que, provavelmente, a reforma agrária, de grandes dimensões, tem sido negligenciada.
Essa variação discursiva é presente, de um lado, no realismo capitalista, que suspende a
imaginação alternativa com a ontologia da normatividade neoliberal (Fisher, 2009). As políticas
deixam a alçada da integração, que visa explorar trabalho, e entram numa defesa da coesão dada
pela concorrência, em que a centralidade não é mais o trabalhador, mas o empresário de si. De
outro lado, o mesmo presentismo parece finalmente admitir sua redução à gestão da crise, como
se os problemas demandassem apenas reparos de urgência para adiar o quanto puder uma
debacle geral (cf. Arantes, 2014).
O cinismo aí contido revela, com efeito, seu contrário, ou o segundo aspecto a ser
suscitado: a política de Estado, na produção da questão agrária, jamais solucionará nada em
definitivo, independentemente do que se entenda por solução. Na literatura de Graziano, de
Abramovay e de Buainain com seus colegas, por exemplo, a solução é a reprodução, ainda que
“adaptada” ao contexto brasileiro, dos padrões de produção agrícola do capitalismo avançado.
Assim, a modernização aparece como projeto inacabado e/ou caracterizado pela falta ou pela
deformidade, que exige correções, agora fragmentárias. Sendo aspectos que denunciam sua
extração dualista, a conclusão de Francisco de Oliveira (2013: 60) sobre tal pensamento e sobre
o planejamento permanece, ainda, consistente: “as próprias medidas de intenção corretiva ou
redistributiva – como querem alguns – transformaram-se no pesadelo prometeico da recriação
ampliada das tendências que se queria corrigir”. Acontece que esse “pesadelo prometeico” não
seria produto, senão o próprio pressuposto da modernização.

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