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I

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (Cl P)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Cunha, Luiz Antônio.


Educação, Estado e democracia no Brasil / Luiz Antônio Cunha.
- 6. ed. - São Paulo : Cortez; Niterói, RJ : Editora da Universidade
Federal Fluminense ; Brasília, DF : FLACSO do Brasil, 2009.
(Biblioteca da educação. Série 1. Escola; v. 17)

Bibliografia.
ISBN 978-85-249-0447-9 (Cortez)
ISBN 978-85-228-0 111-4 (FLACSO do Brasil)

1 . Autodeterminação (Educação) - Brasil 2. Educação e Estado


- Brasil —
3. Educação - Leis e legislação Brasil I. Título.

91-1895

índices para catálogo sistemático:


í
1. Brasil : Constituição de 1988 e educação 342.4(81) “1988”:37
(CDU)
2. Brasil : Educação e democracia 370.1 150981
3. Brasil : Educação e Estado 379.81 .
4. Brasil : Leis : Educação 370.26861
Para Maria da Penha,
sempre mestra.

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Caoitulo 9
TABELA 8-5
DESPESA GERAL (RECURSOS DO TESOURO) DO
GOVERNO FEDERAL E NA FUNÇÃO
EDUCAÇÃO E CULTURA, POR PROGRAMAS.
1985 (em Cz$ 1.000).
ESPECIFICAÇÃO DESPESA

DESPESA GERAL (TESOURO) 130.425.844 (


DESPESA NA FUNÇÃO EDUCAÇÃO E CULTURA
DESPESA NESSA FUNÇÃO (MEC)
16.771.238
12.444.955
rb *ÉS»
ismo bconomco
PROGRAMAS
administração 836.138 w"u
administração financeira 267.118
assistência 8.159 m
,.u,.

assistência a educandos 38.065 I


ciência e tecnologia
cultura
educação especial
educação física e desporto
ensino de lc grau
ensino de 2C grau
8.306
335.633
29.299
39.086
7.360.399
1.154.586
6.495.370
-
li
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V.

t deo oqico
3
ensino superior
ensino supletivo 27.392
planejamento governamental 156.206
política exterior 5.430
saúde 171
serviço de informações 1.155
telecomunicações 8.725

l onle: Anuário Estatístico do Brasil — 1986. Rio de Janeiro, FIBGE, 1987: 195 e 469.

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318
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Para a realização de seus projetos, os governos militares promoveram


um grande crescimento do poder estatal voltado para favorecer a economia
de mercado oligopolístico. A despeito disso, os grupos empresariais que se
beneficiaram dos projetos não deixaram de desenvolver intensa e sistemática
propaganda, via meios de comunicação de massa, alardeando a ineficiência
e a insuficiência da administração pública (a não ser nas áreas, de “segu¬
rança”, é claro), em contraste com as excelências da iniciativa privada:
agilidade na tomada de decisões, racionalidade no uso dos recursos, justeza
na remuneração dos “fatores de produção” (capital, terra, trabalho e gerên¬
cia).
I
Essa ideologia privatista ganhou força com o esgotamento do regime
militar e se somou a ideias e práticas arraigadas em nosso país. Os grupos
económicos (privados) passaram a acusar o Estado pela crise dos anos 80,
desde a retomada do processo inflacionário até a manutenção de uma grande,
onerosa e desnecessária burocracia, passando pela crescente dívida interna
— atribuída à necessidade de empréstimos a juros cada vez mais altos,
alimentando uma especulação financeira sem precedentes. Omitiam, é claro,
que o déficit público resultava do favorecimento ao setor privado mediante
a inoperância da máquina fiscal, das isenções tributárias, das transferências
diretas e indiretas (como as bolsas de estudo para as escolas privadas), dos
empréstimos a juros negativos e dos subsídios a fundo perdido.
Nessa luta ideológica, o privatismo brasileiro teve importantes modelos
externos: o crescente movimento pela privatização de funções públicas em
países do centro capitalista (EUA, Inglaterra, França, Espanha, Itália) e até
mesmo na reinterpretação da “perestroika” soviética, como se esta nada
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mais fosse do que uma face diferente do mesmo processo, isto é, a incor¬ ensino pré-escolar, no 1° e no 2o graus, focalizando a situação dos estados
poração da economia de mercado capitalista e o abandono da planificação nos quais concentrei minha atenção nos Capítulos 4 a 7. Depois tratarei
estatal. Nos países do centro capitalista, ao se venderem empresas estatais das medidas governamentais de sustentação dos lucros e da compensação
aos grupos privados, passava-se ao grande público a justificativa de tal das perdas das escolas privadas, passando em seguida aos empreendimentos
processo como um imperativo na busca da eficiência, da diminuição do escolares do capital financeiro. A partir daí, trato das iniciativas privadas
déficit governamental e, finalmente, da consolidação da democracia. Na que se pretendem públicas, tanto do ensino religioso nas escolas municipais,
Inglaterra, onde essa política de privatização foi praticada por toda uma estaduais e federais, quanto o das escolas e universidades confessionais que
década de governo do Partido Conservador, sob a liderança de Margareth se apresentam como “comunitárias” ou “públicas mas não estatais”, reivin¬
Tatcher, procedeu-se à desmontagem do sistema socializado de saúde, or¬ dicando a legitimidade da transferência de recursos governamentais para
ganizado pelo Partido Trabalhista após a 2a guerra mundial —e, todavia
este modelo era celebrado em todo o mundo pela abrangência, qualidade
sua própria manutenção e expansão.
no atendimento e eficiência.
Assim, reforçada interna e extemamente, a ideologia neo-liberal foi
hegemónica na campanha eleitoral para a Presidência da República de 1989,
na qual vários candidatos (até mesmo social-democratas de mais de um
1. A sustentação dos lucros
partido) elaboraram suas plataformas sobre pontos como a diminuição da O regime militar favoreceu enormemente a iniciativa privada no campo
amplitude da administração pública e a eliminação dos privilégios de seus educacional. Os agentes e colaboradores do golpe de Estado de 1964 fizeram
funcionários, a passagem para o controle privado (brasileiro e não) das parte ou tinham afinidades político-ideológicas com os grupos que defen¬
empresas estatais, inclusive das que prestam serviço público, como saúde, deram um projeto de lei de diretrizes e bases da educação nacional-LDB,
previdência social, energia, transporte, abastecimento de água, coleta e pro¬ de orientação privatista, que deu origem à lei 4.024, de dezembro de 1961.
cessamento de lixo. Mais importante ainda, a retirada dos controles gover¬ A estruturação dos sistemas de ensino previstos pela primeira LDB favorecia
namentais sobre a vida económica. A educação pública não escapou dos os interesses privatistas, por transferir para os conselhos de educação (o
ataques dos privatistas, que clamavam contra sua ineficiência, suposto re¬ federal e os estaduais) importantes competências antes concentradas nos
sultado da incapacidade do Estado em administrar o ensino. Neste caso, os detentores dos cargos executivos. Os membros desses conselhos, nomeados
privatistas manifestavam sua intenção de receber subsídios governamentais livremente pelo Presidente da República e pelos governadores dos estados,
para seus empreendimentos. não só podiam recair em pessoas escolhidas mediante pressão e articulação
Para efeito deste texto, o privatismo é definido como a prática de pôr privada, menos visíveis para as forças políticas partidárias, como também
</ administração pública a serviço de grupos particulares, sejam económicos, esses conselheiros ficavam expostos a pressões e atrativos de diversas espé¬
trligiosos ou político-partidários. cies. Além disso, divididos os centros de tomada de decisões, tomava-sé
mais difícil a resistência às pressões e aos atrativos das instituições privadas
Vários têm sido os mecanismos pelos quais os empresários do ensino de ensino.
conseguiram o apoio governamental para seus empreendimentos: imunidade
I iscai, garantia de pagamento das mensalidades pelos alunos, mediante bolsas Mais de um ano antes da aprovação da primeira LDB, quando ainda
de estudo distribuídas pelo Poder Público, e até mesmo a inibição de ini¬ tramitava na Câmara dos Deputados um projeto substitutivo, Anísio Teixeira
ciativas governamentais de criação e/ou ampliação de escolas, para disporem advertia:
de uma espécie de reserva de mercado educacional. Mais do que isso, o “O aspecto mais característico do novo substitutivo à lei de diretrizes
capital, em especial o capital financeiro, tem se valido dos incentivos fiscais e bases da educação, em processo de votação na Câmara Federal, é o de
para financiar diretamente empreendimentos escolares com objetivos ideo¬
conceder categoria pública ao ensino privado. Realmente, parece que algo
lógicos bem explícitos. No ensino religioso nas escolas públicas, por exem¬
de incoercível compele o país a fazer do público o privado, ou seja, dar
plo, é possível constatar a penetração de ideologias de setores sociais e ao privado as regalias e privilégios do público. Já observei, certa vez, que
políticos particulares, em nome do interesse geral e da “educação integral
da criança e do adolescente”.
as origens dessa tendência mergulham em nosso passado colonial. Os pri¬
meiros donatários deste país já eram exemplos desse público que se faz
Neste capítulo, vou abordar as dimensões do problema, iniciando com privado. Os donatários tinham o poder público, mas para gozo e uso privado.
uma breve apresentação a respeito da diversidade do segmento público no (...) À primeira vista, parece que a tendência é de o particular se fazer

322 323
3
público. Mas, se aprofundarmos a análise, vemos que o particular não é vagas no ensino de 1Q grau deixaram de ser criadas devido a esse tipo de
I convocado a agir como público, mas, muito pelo contrário, 6 convocado a
participar dos órgãos públicos, no caráter de privado, e para representar,
sonegação.
Inicialmente os recursos resultantes das contribuições das empresas ao
dentro do público, o privado. Ora, isto é exatamente dar ao privado as
regalias do público” (Teixeira, 1960:29-30). salário-educação eram divididos em duas partes iguais entre o Ministério
da Educação e as secretarias de educação dos estados onde eram recolhidos.
Obtido o controle dessas instâncias do Estado, a expansão do ensino
privado foi muito intensa após o golpe de Estado de 1964, processando-se
A primeira parcela — quota federal
— era aplicada em sua maior parte
nos estados mais pobres, predominantemente, mas não exclusivamente, no
a velocidade tão mais alta quanto maior a taxa de lucratividade média em
cada grau de ensino: mais intensa no 2Q do que no 1Q; mais no superior do
ensino público. A outra parcela — quota estadual— também era aplicada
no ensino público, embora parte dela se destinasse a bolsas de estudo nas
que no 2S grau. escolas privadas. As empresas que não optavam por recolher o salário-edu¬
cação transferiam o equivalente aos recursos devidos a escolas que elas
Para tanto, concorreram não só a contenção diferenciada do crescimento próprias mantinham, ou os destinavam a bolsas de estudo nas escolas pri¬
das instituições públicas de ensino, como também dois outros fatores que vadas de terceiros, por elas escolhidas.
são da maior importância para se compreender a “crise da escola particular”
dez anos depois do golpe de Estado que tanto a havia apoiado. Dez anos depois de criado, o montante e a distribuição das verbas
resultantes do salário-educação vieram a sofrer importantes mudanças. Com
Antes de tudo, é preciso mencionar a regulamentação, no mesmo ano a promulgação da lei 5.692/71, que estendeu a escolaridade obrigatória de
3

tio golpe militar, da lei do salário-educação, mecanismo de financiamento 4 para 8 anos, fez-se necessário dotar o novo ensino de 1Q grau de mais
do ensino de 1Q grau. Vou fazer uma pequena digressão para avaliar as recursos. O decreto-lei 1.422/75 elevou a alíquota de 1,4% para 2,5% sobre
Inmsformações por que passou essa fonte de recursos para o ensino e sua a folha de pagamento, ao mesmo tempo em que reduziu para 1/3 a quota
( Ir.s ti nação1.
federal e aumentou a quota estadual para 2/3. Como compensação ao pa¬
A Constituição de 1946 determinava que as empresas com mais de tronato, a regulamentação (decreto 79.624/75) ampliou ainda mais as pos¬
cem empregados estavam obrigadas a manter ensino primário para os em¬ sibilidades de isenção do recolhimento do salário-educação: as escolas man¬
pregados e seus filhos. Mas a vigência efetiva desse dispositivo constitucional tidas pelas empresas e/ou as bolsas de estudo que elas custeassem já não
só ocorreu com a promulgação da lei 4.440, de outubro de 1964. Essa lei precisavam ser destinadas apenas aos “seus” empregados e aos filhos destes,
instituía o salário-educação. Determinava que todas as empresas sujeitas à mas a indenizar as despesas de “quaisquer adultos ou crianças”, no ensino
regular ou no ensino supletivo de 1Q grau. Esses recursos transferidos di¬
contribuição para os institutos de previdência social recolhessem a contri¬
retamente das empresas para as escolas privadas constituíam o chamado
buição de 1,4% da folha de pagamento. Caso uma empresa tivesse mais de
“sistema de manutenção do ensino”, denominação eufemística do apoio go¬
100 empregados, poderia deixar de recolher a contribuição se mantivesse vernamental aos interesses empresariais:
ensino primário próprio ou distribuísse bolsas de estudo aos empregados e
seus filhos, mediante convénios firmados com escolas privadas. “A nova sistemática de isenções instituindo então as indenizações e
ampliando as bolsas, aproximava mais ainda o salário-educação dos inte¬
Mesmo com a exigência de que os convénios entre as empresas e as resses do capital. Se antes as bolsas serviam de veículo de amortecimento
escolas devessem ser aprovados pelos conselhos estaduais de educação, as das tensões e conflitos entre trabalhadores e patrões, agora esse papel seria
I mudes se multiplicavam, pois em decorrência das políticas privatistas dos desempenhado com mais vigor pela nova sistemática. Numa sociedade com
governos militares, eles passaram a ser ocupados por proporção crescente elevados índices de analfabetismo, de gigantescos déficits escolares e de
de empresários do ensino. Houve conselhos nos quais todos os membros precários serviços públicos educacionais, é de relevo o papel das bolsas e
eram proprietários de escola ou seus prepostos. Essa situação favorecia a das indenizações no amortecimento de conflitos e contradições entre capital
sonegação da contribuição devida e prejudicava o ensino público, quanto e trabalho, ainda que de pouca visibilidade. A obtenção de uma vaga na
mais não fosse pela diminuição dos recursos disponíveis para sua manutenção escola (privada) para o filho do empregado, mediante bolsa de estudo, ou
e expansão. Estudos realizados em fins dos anos 60 estimaram que 500 mil a cobertura dos gastos do próprio empregado com sua preparação para exa¬
mes supletivos (frequentemente cm cursinhos particulares), tem valor equi¬
valente a um aumento real de salário para a maioria dos trabalhadores.
I. Para isso, vou me basear em Velloso (1987a). Quando a fonte for outra, será indicada. Como esses benefícios não são contratuais, sua concessão a critério do
324 325
empregador consiste em poderoso instrumento para que a atuação do tra¬ que reassegurava que seus beneficiados não se restringiam aos empregados
balhador dentro da empresa ou no sindicato se coadune com os interesses e seus filhos, podendo ser “quaisquer adultos e crianças”.
do capital” (Velloso, 1987a:7).
Mas as bolsas de estudo e as isenções de gastos com o ensino, que Em 1983, com o aumento da recessão económica que levou a um
propiciavam a dispensa do recolhimento do salário-educação, não eram a decréscimo do PIB de 3,2%, caiu a contribuição do salário-educação, assim
como a receita do “sistema de manutenção do ensino” (privado). Os novos
» única via pela qual os recursos destinados ao financiamento do ensino de
Io grau fluíam para o setor privado. Vários órgãos do Ministério da Educação, governadores logo passaram a pressionar o governo federal pela descentra¬
além dos estados e dos municípios, também tinham suas fontes de subsídio, lização da massa tributária em proveito dos estados, inclusive para o reforço
frequentemente duplicadas e superpostas. Um estudo por amostragem mos¬ dos recursos destinados à educação. Em resposta, mais uma vez foi modi¬
trou que em 1985, de 1.581 bolsas da Fundação de Assistência ao Educan- ficada a legislação do salário-educação; agora com a municipalização de
do-FAE, do MEC, pagas a três escolas do Rio de Janeiro, apenas 110 per¬ parte da quota federal. Pelo decreto 88.374/83, pelo menos 25% dos recursos
tenciam a alunos regularmente matriculados. As demais eram fraudadas do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (constituído, entre
(Neves, 1987:104). outras fontes, pela quota federal), deveriam ser destinados a programas mu¬
nicipais ou intermunicipais de desenvolvimento do ensino de 1° grau. Assim,
Em 1981, as bolsas e as indenizações de gastos propiciadas por recursos o governo federal transferia recursos aos municípios sem a intermediação
do salário-educação correspondiam a 70% das vagas das escolas privadas dos governos estaduais. Por outro lado, atendia a uma reivindicação das
de Io grau do país. Como havia outras fontes de bolsas para o setor privado secretarias estaduais de educação, a de fazê-las intermediárias na distribuição
do ensino, Velloso (1987a) estimou que o número total igualasse ao número de bolsas pelo “sistema de manutenção do ensino” (privado). Por outro
de matrículas. Em pelo menos três estados (Rio Grande do Sul, Santa Ca¬ lado, ficou limitada a inclusão de novos “alunos da comunidade” no sistema
tarina e Rio de Janeiro), o número de bolsas ultrapassava o de alunos das e restringidas as indenizações de gastos educacionais aos filhos dos empre¬
escolas privadas. Como os alunos das famílias de renda mais elevada não gados para a faixa 7-14 anos, sobre a qual incidia a obrigatoriedade do
se beneficiam dessas bolsas, a dupla ou tripla contagem responde pelo “de¬ ensino regular de 1Q grau.
sacerto” entre o número de bolsas e o de bolsistas (tabela 9-1).
Como resultado dessas mudanças, a conexão municipal do MEC no

:
A conjuntura recessiva dos anos 80, aliada à expansão do “sistema de ensino de lô grau aumentou de 325% em termos reais, de 1982 a 1984,
manutenção do ensino” (privado), fez baixar paulatinamente a contribuição atingindo especialmente os estados da região centro-sul, controlados pelas
das empresas que, em 1984, representava pouco mais da metade do valor oposições ao governo militar, e os da região nordeste, reduto do partido de
de 1980. Por outro lado, a ação dos empresários do ensino na captação dos apoio a esse governo.
recursos, somada à ação privatizante do Estado, fez com que os recursos
desse sistema quase quadruplicassem naquele período. Assim, enquanto di¬ No entanto, diante da grande campanha na imprensa, onde os empre¬
minuíam os recursos que seriam destinados majoritariamente ao ensino pú¬ sários do ensino denunciavam a “estatização iminente do ensino”, justa¬
mente no período de abertura política, o Ministério da Educação adiou a
» blico de lc grau, aumentavam em muito os destinados diretamente ao ensino
privado (tabela 9-2). entrada em vigor daquela limitação, continuando os “alunos da comunidade”
-

a ingressarem como beneficiários das bolsas. Levantamentos preliminares


Isto ocorreu porque o número de empresas que preferiam transferir indicam que a razão do grande interesse demonstrado pelos empresários do
recursos ao setor privado de ensino, em busca da isenção do salário-educação, ensino não residia na ampliação da oferta de oportunidades de escolarização
cresceu de 15.200 em 1981 para 57.100 em 1984, resultado da eficiência para as populações carentes, mas sim em impedir a evasão dos alunos pa¬
dos empresários do ensino na captação desses recursos, que atingiam também gantes já matriculados em seus estabelecimentos de ensino: as bolsas de
as grandes empresas estatais: em 1982, cerca de 2/3 das 50 maiores empresas estudo compensariam os descontos concedidos no valor das taxas escolares,
estatais fizeram aquela opção. sem comprometer os lucros reais (Neves, 1987:103-4).
Esse ímpeto empresarial foi fortalecido por mudança na legislação que
regulava o salário-educação, a qual buscava, também, reforçar os meios de
intervenção do Ministério da Educação num ano eleitoral. Neste sentido, o Contraditoriamente, desde os anos do “milagre económico”, a amplia¬
decreto 87.043/82 determinava que as bolsas destinadas pelas empresas fos¬ ção da classe média — pelo menos em número de pessoas de rendimentos
* sem pagas às escolas pela intermediação do MEC, ao mesmo tempo em médios
— propiciou uma clientela ávida de escola privada. Esta era não

327
326
só símbolo de status prestigioso, mas também uma alternativa para o ensino Sua finalidade era reunir recursos financeiros e canalizá-los para o
público que se deteriorava a cada ano, por força das políticas elaboradas e financiamento de projetos de ensino e pesquisa, inclusive alimentação escolar
implementadas pelos empresários do ensino e seus prepostos, que ocupavam e bolsas de estudo para alunos carentes na rede privada. Os projetos seriam
o Ministério da Educação, as secretarias estaduais e municipais, bem como apresentados pelo governo federal e pelos governos estaduais e municipais,
os conselhos federal e estaduais de educação. bem como por estabelecimentos privados.
O FNDE seria administrado por um conselho deliberativo presidido
Não bastassem todos aqueles recursos transferidos às escolas privadas pelo ministro da educação e integrado por mais dez membros de várias
sob a forma de bolsas de estudos para os alunos, e o crescimento da demanda, instâncias do governo federal e representantes “do magistério, dos estudantes
a acumulação de capital no campo educacional foi acintosamente favorecida e do empresariado nacional”. Desde sua criação em 1968, até 1985, não
pela reforma tributária do primeiro governo militar. houve representação legítima do magistério nem dos estudantes, mas sempre
Em 1965, o Ato Institucional nQ 2 cassou o mandato de numerosos do empresariado, diretamente interessado na sua orientação enquanto bene¬
pari am en tares e aposentou compulsoriamente dezenas de militares que não ficiário. Em dezembro de 1985, o decreto 92.248 modificou a composição
apoiavam o aprofundamento da intervenção castrense no campo político; do Conselho Deliberativo do FNDE, que passou a ser integrado apenas por
determinou as eleições indiretas para Presidente da República e governadores titulares de funções de confiança do Ministério da Educação.
ílos estados e extinguiu os partidos políticos existentes, impondo limitações Os recursos centralizados no FNDE provinham de diversas fontes, den¬
para sua reorganização. Um mês após esse ato de força, o já mutilado, tre as quais as mais importantes eram o orçamento da União, os recursos
( 'ongresso Nacional, foi chamado a aprovar emenda à Constituição (de 1946) das Loterias Federal e Esportiva, além da quota federal do salário-educação.
»|UC reformulava profundamente o sistema tributário nacional. O novo texto, Os projetos dos estabelecimentos privados de ensino de todos os graus
que passou a fazer parte da Constituição, vedava à União, aos estados e não tinham restrição de objetivo, sendo que a construção de edifícios obteve
aos municípios cobrarem impostos sobre o património, a renda ou os serviços a preferência dos empresários da educação. Obtidos os recursos pretendidos,
das instituições de educação. Por essa emenda, a isenção fiscal das escolas eles não seriam reembolsados pelas escolas privadas, que dariam uma “com¬
privadas instituída pela Constituição de 1946 foi ampliada. Mas, enquanto pensação” pelo financiamento recebido mediante a reserva de vagas para
esta previa a isenção dos bens e dos serviços, a emenda de 1965 estendeu bolsas de estudo, bolsas de manutenção ou de estágio, distribuídas pelo
a isenção à sua renda. próprio FNDE.
A Constituição de 1967 e a emenda de 1969 mantiveram esse dispo¬ E havia mais.
sitivo, somente o alterando em aspectos secundários

por exemplo, ve¬
dando a criação (em vez da cobrança) de impostos sobre o património, a
O Programa de Bolsas de Estudo no Ensino Médio (posteriormente
para as quatro últimas séries do Io grau e todo o 2° grau) revelou-se desde
renda ou os serviços das instituições de educação. Assim, as escolas privadas sua criação, em 1956, uma fonte de recursos públicos para o setor privado
continuaram a gozar de verdadeira imunidade fiscal , o que ampliou suas que se somou à do salário-educação, exclusiva para o 1Q grau. A razão
possibilidades de lucros. alegada para a ativação dessa fonte adicional de recursos não apresentava
novidade, ou seja, a necessidade de se criarem condições para os alunos
Em complementação à isenção tributária, o governo federal estendeu
carentes frequentarem escola privada no caso de não existência de vagas
seu apoio mediante a criação de um mecanismo de aporte de recursos fi¬ em escolas públicas que lhes fossem fisicamente acessíveis.
nanceiros aos estabelecimentos privados de ensino.
Desde 1983 esse programa tem sido administrado pela Fundação de
Em 21 de novembro de 1968 (menos de um mês antes da promulgação Assistência ao Educando-FAE, mas quem distribui as bolsas de estudo é o
do Ato Institucional nQ 5) foi promulgada a lei 5.537, que criou o Fundo gabinete do ministro da educação. A peculiaridade desse programa é que
Nacional de Desenvolvimento da Educação-FNDE2. os formulários de candidatura às bolsas são distribuídos pelos senadores e
deputados federais, que recebem por ano cem formulários cada um para
indicação de alunos bolsistas para o l2 grau, e cem para o 2Q. Esse processo
2. Já com o Congresso Nacional posto em recesso por ato de força do governo militar, esta
lei foi logo alterada pelo decreto-lei 878, de 15 de dezembro de 1969, que promoveu
mudanças no sentido de agilizar as operações do fundo na direção de maior privatização.
foi iniciado em 1970, no auge do regime militar
— uma nítida ilustração
de como os governos que se instituíram proclamando o combate ao popu-

328 329
I
& pré-escolar e o 2Q grau como áreas abertas às escolas privadas. No entanto,
lismo incorporou e até inovou em termos de clientelismo, um de seus mais
importantes componentes3. dois fatores têm levado à mudança desse quadro. Primeiro, as condições
de vida das classes trabalhadoras têm exigido a incorporação das mulheres
Ao início do governo Sarney o número desses bolsistas era de 84,5 no mercado extra-doméstico, fazendo com que as creches e as pré-escolas
mil no segundo segmento do 1Q grau (63 mil no nordeste) e 62,3 mil no passem a fazer parte das demandas dessas classes. Em reforço a essa de¬
2° grau (36 mil no nordeste), beneficiando 4.122 estabelecimentos (1.836 manda, os próprios educadores têm defendido a generalização da educação
no nordeste). A partir de 1986 o número de bolsas caiu muito, chegando do pré-escolar, seja enquanto “educação compensatória” das desvantagens
a representar nos dois últimos anos do governo Sarney, 60% do distribuído familiares, seja enquanto um tipo de educação que dispõe de objetivos e
no primeiro ano. Para isso concorreu a diminuição do número de bolsas padrões próprios, que as camadas médias vêm utilizando há muitos anos.
para o 2Q grau, que não foram distribuídas em 1989 (tabela 8-1). Esses Segundo, a ampliação das oportunidades de escolarização no 1Q grau passa
números expressam uma desigual distribuição das bolsas em relação à po¬ a gerar, por parte dos seus concluintes, a demanda endógena de continuação
pulação, resultado da prática comum, entre os parlamentares, de troca de dos estudos. Com o reduzido ritmo de crescimento das ofertas de escola¬
lavores, de modo que os formulários de bolsas de estudo da FAE são uti¬ rização no 2° grau, nos anos 70, foram as escolas privadas de baixa qualidade
lizados pelos deputados e senadores mais envolvidos com as relações clien- que atenderam a essa demanda; tal demanda, pressionada pelos aumentos
telísticas frente a “seus” eleitores4. das mensalidades, desde o início da década de 80 passou a exigir a expansão
do ensino público, num movimento de amplas proporções, de que trato no
Embora não me fosse possível analisar os efeitos quantitativos dos
Capítulo 8.
mecanismos de apoio governamental para o setor privado, devido à diver- Assim, vemos que houve, de 1983 a 1987, uma tendência a aumentar,
Mtlade com que ocorre, alguns dados podem dar uma idéia do panorama ainda que ligeiramente, a participação das escolas públicas na oferta de
nos quatro estados especialmente focalizados neste texto: Rio de Janeiro, vagas no ensino pré-escolar (63,1% para 66%), tendência essa um pouco
Minas Gerais, São Paulo e Paraná, aos quais foram dedicados os Capítulos mais sensível no 2Q grau (58,4% para 64,9%).
4 a 7. No entanto, observada para o conjunto do país, essa tendência, não se
A tabela 9-3 apresenta a percentagem dos alunos matriculados em esco¬ reproduz em todos os estados em termos de sentido e intensidade. Vejamos
las públicas e privadas nesses quatro estados e no total do país, na pré-escola, as peculiaridades dos quatro estados estudados neste texto.
no ensino de 1Q e no de 2Q graus. Vamos examiná-la. No que diz respeito ao ensino de 1Q grau, a média nacional de 86,8%
A primeira coisa que chama a atenção é a relativamente pequena par- das matriculas atendidas pelas escolas públicas em 1987 foi superada por
três estados, sendo que o Estado do Rio de Janeiro estava longe de atingi-la
licipação do setor privado no ensino de 1Q grau no país como um todo: (69,7%), tendo apresentado um crescimento modesto desde 1983. Mesmo
1 3,2% das matrículas. Essa participação já é bem maior no pré-escolar (34%
cm 1987) e ainda mais no 2° grau (35,1% em 1987). Com efeito, éo P o Estado de Minas Gerais, onde o privatismo é ideologicamente hegemónico,
grau que é obrigatório, pelo menos desde que a Constituição de 1967 referiu o Io grau público cobria 92,1% das matriculas nesse ano.
esse dever à população de 7 a 14 anos e a lei 5.692/71 fundiu os antigos Passando ao pré-escolar, vemos que em 1983 a média brasileira de
ensinos primário e ginasial. Concentrando sua atuação na faixa do ensino cobertura das matrículas pelo setor público não era atingida no Paraná e
obrigatório, os governos estaduais e as prefeituras municipais deixaram o no Rio de Janeiro. No entanto, o Paraná mostrou um crescimento no aten¬
dimento pela rede pública (de 55% para 57,7%), enquanto o Rio de Janeiro
apresentou um decréscimo (de 47,7% para 38,1%).
3. Esse procedimento ganhou contornos de escândalo, em fevereiro de 1988, quando um O ensino de 2Q grau tinha, em 1983, grandes disparidades entre os
contínuo que trabalhava no gabinete de um deputado de esquerda furtou alguns desses estados. Enquanto no Paraná 76,4% dos estudantes frequentavam escolas
formulários e anunciou a venda de bolsas em jornal de Brasília. Embora ele tivesse sido
descoberto e demitido o procedimento não foi alterado. • públicas, em Minas Gerais só 42,8% o faziam, e, no Rio de Janeiro, 44,1%.
4. Os parlamentares são também intermediários na distribuição da “subvenção social”, que No entanto, em 1987, as redes públicas mineiras mostraram ter aumentado
o governo federal prevê transferir para entidades educacionais, assistenciais, culturais e significativamente sua participação para 63,5% das matriculas, enquanto as
de saúde cadastradas no Conselho Nacional de Serviço Social. Uma parcela desconhecida fluminenses (apesar do fenômeno ocorrido na rede estadual, comentado no
dessa subvenção (Cz$ 100 milhões em 1986) é transformada em bolsas de estudo que
podem se superpor às distribuídas pela FAE e pelo sistema de manutenção do ensino
Capítulo 4), mostraram um crescimento inferior, incorporando praticamente
(salário-educação). Vale lembrar que a quota federal do salário-educação pagou bolsas de apenas a metade dos alunos. Vale registrar que as redes públicas dos estados
estudos para um milhão de alunos nas escolas privadas de Io grau, em 1986. de São Paulo e do Paraná tiveram um ligeiro decréscimo na participação

330 331
das matrículas, devido ao ritmo de crescimento ter sido menor do que o camadas médias, que passaram a abandonar as faculdades privadas, justa¬
das escolas privadas (conforme os dados das tabelas 6*3 e 7-3). mente onde era mais alta a lucratividade do capital investido no setor edu¬
Em resumo, é possível dizer que, além da tendência geral de crescimento cacional.
das redes públicas de ensino, sua velocidade foi maior do que o das escolas Acresce a esses fatores a própria lei 5.692/71, cuja implantação repre¬
privadas, fazendo assim aumentar a participação do setor público no total sentou uma elevação dos gastos dos estabelecimentos privados de ensino,
das matrículas. Apesar disso, existem estados onde o setor privado tem mais \ nem sempre transferíveis aos pais dos alunos. No ensino de 1Q grau, a
espaço do que em outros. O Rio de Janeiro é um caso extremo dentre os I extensão de 4 para 8 anos da escolaridade obrigatória levou as escolas a
estados focalizados, por reservar ao setor privado, em 1987, quase 2/3 das completarem a seriação, acrescentando o amigo ginásio ao antigo primário,
matrículas no pré-escolar, quase 1/3 no Is grau e a metade no 2° grau, ou no sentido contrário, de modo a se apresentarem como abrangendo todo
valores muito mais altos do que a média nacional. Por outro lado, o Estado
de Minas Gerais — onde os grupos privatistas tutelaram o ensino público
- mostrou que a conjuntura política favorável pode ser inteligentemente
esse grau
— medida que acirrou a concorrência entre as escolas privadas
pela clientela pagante. No 2Q grau, a profissionalização universal e com¬
pulsória, ainda que não visasse uma habilitação técnica efetiva, pela utili¬
aproveitada para reverter o quadro existente: foram as redes públicas mineiras zação de currículos pseudo-profissionalizantes, acarretava despesas adicio¬
as que mais tiveram aumentada a participação nas matrículas da pré-escola nais, igualmente de difícil transferência para os pais dos alunos.
e do 2Q grau, justamente as que, estando fora da faixa da escolaridade obri¬ Com isso, os lucros dos estabelecimentos ficaram ameaçados, bem como
gatória, têm sido mais frequentemente deixadas como “reserva de mercado” sua própria sobrevivência, a exemplo das faculdades que se abriram nas
para as escolas privadas. periferias das grandes cidades.
Diante da situação, o setor privado do ensino desencadeou uma série
de mecanismos de compensação para essa conjuntura desvantajosa.
2. A compensação das perdas No ensino de 1Q grau, o controle que os empresários do ensino detinham
das secretarias e dos conselhos estaduais de educação, bem como das se¬
Com os caminhos abertos pela primeira LDB (1961) e pelo golpe de cretarias municipais, propiciou-lhes a contenção da implantação da reforma
Estado, o período 1964/73 foi de grande prosperidade para o setor privado de 1971 no que dizia respeito à extensão “para cima” e “para baixo” da
no campo educacional. Numas escolas havia estudantes de classe média seriação das escolas primárias e dos ginásios das redes estaduais e muni¬
dispondo de recursos para pagar as mensalidades; em outras, crianças pro¬ cipais. Com isso, escolas privadas continuavam a não sofrer a concorrência
letárias e lúmpen-proletárias recebendo bolsas de estudo. Assim, estabele¬ das escolas públicas na escolarização das populações de baixa renda das
cimentos de ensino precariamente instalados em prédios residenciais pude¬ periferias urbanas, apresentando-se, assim, como destinatárias das bolsas de
ram acumular capital suficiente para a organização de redes e a construção estudo, que visavam compensar a “insuficiência quantitativa da rede públi¬
de grandes edifícios. Escolas primáriàs estenderam seus cursos até o superior, ca”.
cursinhos preparatórios aos exames vestibulares transformaram-se em esco¬ Em 1973, dois anos após a promulgação da reforma do ensino de Io
las secundárias e faculdades; escolas superiores abriram cursos de 1° e 2° e 2Q graus, foi baixado o decreto 72.495, de 19 de julho de 1973, que
graus, e outras, ainda, transformaram-se em universidades, num processo estabelecia “normas para a concessão de amparo técnico e financeiro às
dc integração vertical típica da concentração do capital. entidades particulares de ensino”, mediante recursos do FNDE, com os se¬
Essa prosperidade foi ameaçada pela própria crise do “milagre brasi¬ guintes objetivos:
leiro”. O recrudescimento da inflação desde o segundo semestre de 1973 “a. suprir deficiências locais da rede oficial de ensino de Io e 2° graus,
levou a significativas mudanças nesse quadro. através da utilização da capacidade ociosa dos estabelecimentos particulares
Para começar, o valor das bolsas de estudo para o 1Q grau deixou de de ensino ou quando, em relação ao aluno, o acesso à escola particular se
ser tão compensador. Já em fevereiro de 1974, os colégios privados do tomar mais fácil e conveniente, a juízo da administração do ensino e con¬
antigo Estado da Guanabara se movimentaram para uma recusa coletiva siderando, dentre outros, os fatores de distância e dificuldade de transporte;
dos alunos bolsistas da Secretaria de Educação, devido ao baixo valor por “b. adotar a intercomplementaridade entre estabelecimentos oficiais e
ela estipulado. particulares de ensino, através do aproveitamento e reunião de serviços afins;
Por outro lado, o governo viu-se obrigado a conter os reajustes das “c. equipar, reequipar e instalar unidades escolares, inclusive por in¬
mensalidades escolares devido à perda do poder aquisitivo dos salários das termédio de financiamento à conta de empréstimos garantidos pela União;

* 332 333
I

“d. ampliar e recuperar imóveis, destinados exclusivamente a atividades 1975, o Conselho Estadual de Educação aprovou a resolução 215, que baixou
escolares” (art. 3a). normas para a criação e reorganização de estabelecimentos de ensino regular
O item b refere-se a um dispositivo da lei 5.692/71
mentaridade
— — a intercomple-
que previa, no final das contas, a utilização das instalações
de Ia e 2a graus, bem como para autorização de funcionamento e reconhe¬
cimento. A resolução tratava dos estabelecimentos oficiais em igualdade de
condições com os privados: todos deveriam obter autorização do conselho
das escolas técnicas públicas para que os alunos das escolas privadas tivessem para que pudessem iniciar suas atividades. No caso das redes municipal e
a parte especial (propriamente profissionalizante) do currículo, o que signi¬ estadual, dependia-se de autorização daquele órgão colegiado para a criação
ficava uma compensação aos empresários do ensino pela virtual elevação de uma nova escola de Ia ou de 2a graus; para a criação de um novo grau
dos custos determinada pela reforma do ensino. de ensino em escola já existente; para a criação de uma nova habilitação
Como se previa na lei de criação do FNDE, os auxílios conferidos às profissional de 2a grau em escola que já oferecesse esse grau de ensino;
escolas privadas não seriam reembolsados. Elas “compensariam” o governo para a instalação de anexo ou filial de uma escola já existente; e até mesmo
concedendo gratuidade total ou parcial de seu ensino, no valor do custo para a mudança de local de uma escola em funcionamento.
real, a ser estabelecido na época do recebimento dos recursos.
Se a Secretaria Estadual de Educação ou uma prefeitura municipal
Mas o dispositivo desse decreto mais acintosamente privatista é o que quisesse fazer uma dessas operações para qualquer escola que fosse, deveria
vai transcrito abaixo: enviar ao conselho um projeto contendo, entre outros documentos, “a relação
“Os estados, o Distrito Federal e os territórios, ao elaborarem os seus das escolas já existentes, mais próximas do local previsto no projeto, com
planos de educação, visando a eliminar a duplicação de esforços, levarão indicação das respectivas distâncias e vias de acesso, com especificação,
em conta a existência de instituições particulares de ensino, evitando a relativamente a cada uma delas, da entidade mantenedora, dos graus de
criação de estabelecimentos públicos onde o atendimento da escola parti¬ ensino ministrados, das habilitações profissionais oferecidas e da capacidade
cular for considerado suficiente para absorver a demanda efetiva ou sus¬ de matrícula instalada e da utilizada, por turno, e levantamento estatístico
cetível de expandir a oferta para atender à demanda contida. No cumpri¬ da população escolarizável do município, por distrito, separadamente para
mento do que dispõe este artigo, o Poder Público poderá oferecer bolsas o Ia e o 2a graus e percentagem dessa população que já se encontre ma¬
de estudo a alunos comprovadamente carentes de meios, a critério da res- triculada”.
pectiva administração de ensino” (art. 12. Grifos meus). De posse dessa verdadeira pesquisa de mercado, o conselho decidiria
Os conselhos estaduais de educação receberam do decreto a incum¬ a respeito da autorização para a escola pública funcionar, atendendo ao
bência de baixar normas complementares para o cumprimento dessas de¬ princípio da não duplicação de meios para fins idênticos ou equivalentes.
terminações, o que facilitava sobremaneira o atendimento dos interesses dos Para isso, considerava os fins de escolas públicas e privadas como equiva¬
empresários do ensino, que tinham nesses órgãos colegiados representação lentes, senão idênticos. Portanto, se já houvesse uma escola privada numa
majoritária. certa localidade, seria necessário provar a existência de “mercado” não aten¬
O critério de se evitar a duplicação de esforços partia do princípio de dido para que se pudesse instalar aí uma escola pública de Ia ou 2a grau.
que ensino público e ensino privado são equivalentes. Assim, seria “racional” O decreto (MG) 19.142, de 19 de abril de 1978, reafirmou aqueles
que não se criassem escolas públicas onde as escolas privadas tivessem procedimentos, concentrando-se na criação de escola ou curso de 2a grau
capacidade ociosa, ou pudessem expandir-se (com os recursos do FNDE) pela rede estadual. Isto só poderia acontecer, entre outras exigências, se a
para atender à demanda contida. Então, além de fornecer recursos para demanda de ensino de Ia grau tivesse sido toda atendida e se não houvesse
financiar a expansão da rede privada, o Estado era ainda instado a oferecer outro curso de 2a grau no município, em uma escola privada, confessional
bolsas de estudo para que ela tivesse alunos, contendo o crescimento de ou não. Assim, reafirmava-se a “reserva de mercado” para os estabeleci¬
sua própria rede escolar. mentos privados de 2a grau, já que sempre seria possível apontar a existência
Tudo isso, em nome dos princípios abstratos (mas visando resultados i de pelo menos um aluno sem escola de Ia grau, em algum lugar do município,
bem concretos) de “orientar o planejamento escolar e práticas administrativas o suficiente para bloquear a criação de escola ou curso estadual naquele
e pedagógicas, objetivando maior eficiência e rentabilidade dos recursos nível. Além disso, o decreto determinava que o govemo estadual não en¬
materiais e humanos da escola” e “o aprimoramento do ensino e seu menor campasse escola ou curso privado de 2a grau, “a não ser em caso excep-
custo”. cional”. Mesmo assim, medida desse tipo passava a depender de complicados
No Estado de Minas Gerais, esse tipo de procedimento chegou a ser procedimentos burocráticos, como a destinação prévia de verba específica
determinado pela legislação, num caso raro de privatismo explícito. Em no orçamento estadual, além do cumprimento das demais exigências do

334 335
decreto, inclusive as mencionadas mais acima e as exigências (não especi¬ Medidas desse tipo, mais ou menos ostensivas, impediram que o ensino
ficadas) do Conselho Estadual de Educação, onde os interesses privatistas privado acabasse ou perdesse “mercado” rapidamente, em especial no lfi
estavam bem defendidos pela maioria de seus membros. grau, conforme a tendência observada desde os anos 40. Em nome da li¬
berdade de iniciativa e do mercado, e da racionalidade no uso dos recursos,
Não satisfeitos com essa “reserva de mercado” no 2Q grau, os empre¬ o Poder Público foi levado a intervir para sustentar artificialmente os em¬
sários mineiros do ensino voltaram-se para reassegurá-la no 1° grau. preendimentos privados no campo educacional, inclusive na inibição de
Como a lei 5.692/71 determinava que as escolas primárias estendessem suas redes de ensino. i)
ii seriação até alcançarem as oito séries, poderia haver uma oferta de ensino Um outro exemplo dramático desse tipo de procedimento foi o que
público gratuito correspondente ao antigo ginásio que poderia atrair parte aconteceu no Estado do Rio de Janeiro, onde a rede pública de Is grau foi
dos alunos que frequentavam as escolas privadas desse nível. Essa extensão reduzida, de 1975 a 1980, com a diminuição do efetivo discente da ordem
da seriação era determinada por lei, portanto não poderia depender de licença
do Conselho Estadual de Educação. No entanto, os empresários do ensino
de 98 mil alunos nesse período —
uma perda relativa de 14%. Enquanto
isso, as matrículas nas escolas particulares cresceram 26%. Situação ainda
que controlavam esse órgão colegiado em Minas Gerais foram capazes de mais grave ocorreu nos municípios da área metropolitana do Rio de Janeiro
estabelecer, de forma acintosa, uma condição para isso. Assim, o decreto que formam a Baixada Fluminense: Duque de Caxias, Nova Iguaçu, Nilópolis
(MG) 20.382, de 9 de janeiro de 1980, determinou que a extensão de cada e São João de Meriti, nos quais houve escolas que tiveram desativadas as
uma das séries finais do 1° grau das escolas públicas somente seria autorizada, quatro séries que formam o segundo segmento do ensino do 1Q grau (58 à
• utre outras condições, se houvesse “aquiescência do representante legal da 8a), sendo os alunos transferidos para escolas particulares situadas nas pro¬
«MU idade mantenedora de escolas particulares mais próximas, existentes na ximidades, mediante bolsas de estudo conferidas pela Secretaria Estadual
U K -ALIDADE, com ociosidade em turnos diurnos”. Este é um requisito de ex¬ de Educação. Nessa franja da área metropolitana, se as matrículas da rede
pansão do ensino público sem precedentes no Brasil: depender de autorização pública diminuíram 2,5%, apesar do crescimento explosivo da população,
dn escola privada. as das escolas privadas, induzidas pelas bolsas de estudo, aumentaram 44%
(Cunha e Góes, 1985:45).
Em 1983, o Conselho Estadual de Educação de Minas Gerais voltou
(\ carga, baixando a resolução 306 que modificou os termos da de 1975. No ensino de 2Q grau, os empresários do ensino procuraram, sem sucesso
Mas no que dizia respeito à autorização de funcionamento das escolas mu¬ (a não ser em Minas Gerais), consolidar a reserva de mercado para seus
nicipais e estaduais nada mudou: elas foram tratadas como tendo objetivos empreeendimentos mediante a institucionalização de um critério de ampla
equivalentes, se não idênticos, aos das escolas privadas. Também mantido aceitação na sociedade brasileira: gratuidade só para os pobres.
l icou o princípio geral de se assegurar a utilização plena de recursos ma¬ O ensino de 2Q grau, assim como o superior, tinha sua gratuidade ga¬
teriais e humanos, sem dispersão prejudicial ou duplicação de meios para rantida pela Constituição vigente apenas para os alunos que comprovassem
fins idênticos ou equivalentes, assim como a exigência de que os projetos falta de recursos. Depois do golpe de Estado, em algumas unidades da
de criação, ampliação ou mudança de local de escola pública demonstrassem, federação foi tentada, sem sucesso, a cobrança de taxas escolares5. Não
com os dados de “pesquisa de mercado”, que ela não estaria tirando a conseguindo cobrá-las, o que eliminaria uma importante vantagem compa¬
“clientela” de escola privada existente nas proximidades. Para impedir que rativa da escola pública diante da privada, os dirigentes dos sistemas esta¬
» se driblasse o controle do conselho, a resolução proibia que fosse criada duais, defensores dos seus interesses, procuraram restringir o ingresso nas
-
• escola, implantado novo grau de ensino, ou oferecida habilitação profissional
em “anexo” ou “filial” de escola oficial, a não ser na zona rural. Na zona
urbana, só se admitia esse expediente para as escolas estaduais ou municipais
escolas públicas dos estudantes cujos pais pudessem pagar escola, com o
fim de forçarem os demais a se dirigirem para seus estabelecimentos.
No Estado de São Paulo, em 1973, a Secretaria Estadual de Educação
que não comportassem os alunos nelas já matriculados. Mesmo assim, seria incluiu no processo de seleção dos alunos que procuravam vagas nas escolas
preciso comprovar “a inexistência, em local próximo e de fácil acesso, de
escola capaz de atender à demanda”. Cumprindo todas essas exigências, o
Secretário de Educação de Minas Gerais só poderia assinar a autorização 5. Estou chamando de taxas escolares as mensalidades, taxas de matrículas e outros paga¬
de funcionamento de uma escola da rede estadual, ou modificar as condições mentos específicos. Cumpre mencionar que as contribuições voluntárias dos pais às ‘‘caixas
de funcionamento se os empresários do ensino presentes ou representados escolares” das escolas públicas assumiram o caráter compulsório em certas redes publicai.
Ademais, alunos bolsistas de escolas privadas eram frequentemente instados a pagarem
no conselho não considerassem essa providência prejudicial aos seus inte¬
* resses.
taxas para complementar o baixo valor das bolsas.

337
336
*
sidades públicas, esperava-se que uma parcela dos estudantes que as pro¬
públicas de 2Q grau o “critério sócio-econômico”: o aluno (ou seu respon¬
sável) que estivesse isento do pagamento do imposto de renda, por tê-la curavam em função da gratuidade, mas com recursos para pagarem, dei¬
baixa, ou então que o pagasse até a alíquota de 8%, recebia nota 10; a xassem de ter essa motivação, passando a buscar as universidades ou fa¬
partir daí, as notas desciam até 4, de acordo com o aumento da alíquota culdades privadas. Estas passariam, então, a ter sua “clientela” com renda
incidente sobre a renda tributada. Em processo aberto por mandado de se¬ mais elevada do que a atual, que era constituída dos estudantes que não
gurança de pai de aluno que, em 1973, havia obtido nota média 7,1 pelo conseguiam ingressar nas universidades públicas, gratuitas ou quase.
“critério pedagógico”, reduzida para 6,2 pela aplicação do “critério sócio- Essa campanha levou o ministro da educação a pedir ao Conselho
econômico”, o Supremo Tribunal Federal declarou esse procedimento in¬ Federal de Educação que se pronunciasse a respeito das “vantagens e des¬
constitucional, por ferir o “princípio da igualdade perante a lei”. vantagens da institucionalização do ensino superior pago no país”. O CFE
No Estado do Rio de Janeiro, o grande e prestigioso Colégio Pedro encarregou um de seus membros, a ex-reitora da Universidade Mackenzie
11, mantido pelo governo federal, não estendeu a seriação do ginásio “para (privada), futura ministra da educação no governo do General Figueiredo,
baixo”, de modo a completar as oito séries do ensino de 1Q grau, conforme de apresentar seu parecer. Em cumprimento a essa tarefa, ela resumiu e
a reforma de 1971. Seu diretor, também empresário do ensino superior, desenvolveu os argumentos já longamente debatidos, para concluir pela van¬
assinou convénio com a Secretaria Municipal de Educação, determinando tagem de acabar com a “gratuidade indiscriminada”, substituindo-a pelo
o encaminhamento para a 5- série do Io grau, naquele colégio, dos alunos regime de bolsas de estudo restituíveis (Dias, 1982; Costa s.d.). Apesar da
que concluíssem a 43 série em escola da rede municipal com as melhores aprovação do CFE, o MEC não teve condições políticas de executar as
notas. Assim, alunos de renda mais baixa (considerando as quatro primeiras recomendações propostas, devido à antiga resistência do movimento estu¬
séries do 1Q grau de todas as escolas) vieram a constituir a clientela exclusiva dantil e à nova e forte oposição do movimento docente ao fim da gratuidade
das cinco unidades do Colégio Pedro II, até então avidamente disputado no ensino superior6.
pela classe média carioca. Esta foi, portanto, canalizada para escolas par¬
ticulares, sem que isso resultasse em aumento efetivo de oportunidades de
escolarização de alto nível para crianças e adolescentes de baixa renda: o
Colégio Pedro II teve seu efetivo reduzido a um terço de sua capacidade,
cedendo-se as instalações “ociosas” a um estabelecimento privado de ensino
3. O capital faz escola
superior (de propriedade do próprio diretor do estabelecimento) ao mesmo Um fato novo ocorreu no campo educacional, para o qual não se en¬
tempo em que a qualidade do ensino decaía, devido à rotinização adminis¬ contra precedentes em nossa história: a rearticulação privatista com a entrada
trativa e à perseguição político-ideológica movida aos professores. do capita] financeiro no campo educacional.
Paralelamente a esse conjunto de medidas de sustentação da prosperi¬ i O programa do crédito educativo representou um importante mecanismo
dade económico-financeira de seus empreendimentos, ameaçada pela crise de sustentação da lucratividade do capital investido no ensino superior, ao
económica, os empresários do ensino desenvolveram uma intensa luta ideo¬
lógica contra as supostas “ameaças de estatização”: ao submeter as escolas
privadas ao controle de preços, o Estado estaria impedindo-as de oferecer 6. Foram várias as tentativas do Ministério da Educação, após o golpe de Estado de 1964,
uma educação de alta qualidade, condenando-as a se equipararem às escolas de cobrar pelo ensino ministrado nas universidades e faculdades isoladas federais. As que
publicas, julgadas como oferecedoras de ensino necessariamente de má qua¬ foram criadas após o golpe tiveram condições políticas mais propícias para fazê-lo. As
lidade. Sem a vantagem comparativa da qualidade (o que, supostamente, mais antigas, no entanto, juslamcnle as de maior porte, situadas nas grandes cidades,
opunham forte resistência à cobrança do ensino, pelo menos a preços de mercado. Em
seria uma característica geral das escolas particulares), o setor privado ficaria geral, introduziram-se nos cursos de graduação taxas quase simbólicas, esperando-se por
inviabilizado, restando às crianças e aos jovens apenas as escolas públicas. reajustes posteriores. Nos cursos de pós-graduação, ao contrário, foi mais comum a cobrança
Essa estatização por via indireta estaria contrariando a “índole democrática j a preços de mercado logo que foram criados. O Relatório do Grupo de Trabalho da
da sociedade brasileira”, que rejeitaria a educação única, enfeixada em mãos Reforma Universitária, de julho de 1968, propôs um sofisticado mecanismo que incluía
o pagamento a preços de mercado, redução de taxas e gratuidade com bolsas restituíveis,
do Estado (“Ensino estatizado”, Jornal do Brasil , Rio de Janeiro, 7/7/74, conforme a renda familiar do estudante. Todavia, este mecanismo acabou por não ser
Io caderno, pág. 6) incorporado na lei 5.540/68. Mas estava previsto na lei 5.537/68, que criou o Fundo
Nacional de Desenvolvimento da Educação. Todavia, tal mecanismo só veio mesmo a
No que concerne ao ensino superior, abriu-se uma campanha longa e operar no financiamento do setor privado do ensino superior, ao contrário do projeto
sistemática pela cobrança de taxas nas universidades públicas que ainda inicial, que abrangia também o ensino médio (depois, 2Q grau).
não o faziam, a “preços de mercado”. Se o ensino fosse pago nas univer-
339
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mesmo tempo em que o capital financeiro procurava tirar partido dessa Em resposta à iniciativa do MEC, o Congresso Nacional aprovou a lei
conjuntura de crise. 6.297, de 15 de novembro de 1975, que concedeu incentivos fiscais a em¬
Em 12 de novembro de 1975, a resolução nQ 356 do Banco Central, presas que tinham gastos em projetos de qualificação de sua força de trabalho.
primeira de uma série sobre a matéria, normatizou o Programa de Crédito PânFfins de imposto de renda, cada empresa poderia deduzir o dobro das
I ducativo, mencionando exposição de motivos aprovada pelo Presidente da despesas com projetos que objetivavam “a preparação imediata para o tra¬
República, então o general Ernesto Geisel. Por este programa, parte do balho de indivíduos, menores ou maiores, através da aprendizagem metódica,
dinheiro que os bancos deveriam recolher compulsoriamente ao Banco Cen- da qualificação profissional e do aperfeiçoamento e especialização técnica
iral passou a ser emprestado aos estudantes para pagarem as taxas escolares, em todos os níveis”8. Mesmo com o abatimento limitado ao total de 10%
prevendo-se sua restituição com juros e correção monetária, depois de for¬ do lucro tributado, passou a valer a pena para as empresas, principalmente
mados, com um ano de carência, em prazo igual ao do empréstimo recebido. para as de grande porte (justamente as que empregam técnicas do tipo ca¬
Previam-se duas formas de bolsas: uma para pagar a faculdade, a mais alta; pital-intensivo), comprar serviços de qualificação profissional, nem que fosse
e outra, muito reduzida, para a manutenção do próprio estudante. Todo o apenas para efeito de reduzir o imposto de renda. Para responder à procura
sistema era subsidiado em 90% com recursos do MEC, repassados para a gerada por comprovantes de gastos desse tipo, surgiram empresas de trei¬
Caixa Económica Federal.
namento profissional ligadas aos grandes grupos económicos, assim como
O setor privado esperava ganhar duplamente com o Programa do Crédito outras que se dedicavam à mera corretagem de cursos, quando não de com¬
* I 'ducativo: os bancos, por obterem renda de um dinheiro que antes não provantes, tão-somente (Romero, 1981).
-

poderiam emprestar; os proprietários dos estabelecimentos de ensino supe¬


rior, por terem mantida sua receita com a diminuição do número de alunos Mas a expressão mais forte dessa rearticulação do capital no campo
que abandonavam os cursos por não terem como pagá-los. educacional foi, certamente, a empreendida pela Fundação BRADESCO,
Embora fosse uma operação deficitária para seu principal agente fi¬ instituída pelo Banco Brasileiro de Descontos, a maior instituição financeira
nanceiro, a Caixa Económica Federal, o crédito educativo era escandalosa- privada do país e de toda a América Latina. Com incentivos fiscais, de um
mente lucrativo para a faculdade. Isto porque a CEF estimava o valor total
* lado, e com objetivos ético-religiosos bem definidos, de outro, um novo

-• das mensalidades a serem pagas no semestre aplicando uma “correção mo¬


netária futura”. Em vez de descontar por pagamento à vista, a correção era
para mais. Assim, uma faculdade que cobrasse mensalidade equivalente a
6,90 OTN (ou 41 OTN semestrais), acabava recebendo 78 OTN da Caixa
tipo de empresário do ensino surgiu no campo educacional do Brasil: o do
banqueiro puritano.
No BRADESCO, há uma íntima articulação entre a estrutura de pessoal
I conômica Federal7. e a rede de escolas que mantém: as escolas destinam-se a formar trabalha¬
Já para os estudantes, os resultados foram duvidosos. No início de dores para as organizações desse conglomerado económico-financeiro. O
1983, dos 250 mil concluintes de curso beneficiados com o crédito educativo, objetivo é que, no futuro, somente sejam admitidos funcionários que tenham
200 mil eram inadimplentes, por terem deixado de pagar as prestações ou sido alunos das escolas mantidas e geridas pela Fundação BRADESCO. É
por não terem pago uma sequer. Mesmo assim, o Programa de Crédito o que se chama carreira fechada. Os candidatos que trabalharam em outra
I .ducativo continuou em operação, agora sem a participação, do Banco do organização bancária não são aceitos, da mesma maneira que os que saíram
Brasil nem dos bancos comerciais, permanecendo a Caixa Económica Fe¬ do BRADESCO, por qualquer que tenha sido a razão, não voltam. Esse
deral como único agente financeiro. tipo de carreira é predominante nas organizações que exigem dos seus mem¬
bros estrita obediência às normas e vaJores oficiais, como as organizações
•t Passemos agora do âmbito dos cursos superiores para o das empresas
militares e eclesiásticas.
comerciais, industriais e agrícolas. As escolas estão situadas em áreas de moradia de populações carentes
em termos económicos e desprovidas dos mais elementares serviços de as¬
sistência do Estado.
7. OTN: valor das Obrigações do Tesouro Nacional, um dos papéis vendidos pelo governo
federal no mercado aberto, que fornecia um dos índices de referência financeira. O cálculo
apresentado acima apareceu como o mais rentável dentre os lucros obtidos cm diferentes
** aplicações: na bolsa de valores, na caderneta de poupança e na compra e venda de ouro
e dólar, publicado por Isto É/Senhort n° 995, 12*10-88, pág. 75.
8. A medida provisória nQ 161, convertida em lei em abril de 1990, suspendeu por tempo
indeterminado os incentivos fiscais para a formação de mão-de-obra. entre outros.

9 340 341
'«r

“Em todas as unidades escolares é estabelecido alto grau de dependência “ Declaração de Princípios
das famílias da região em relação ao processo educacional desenvolvido Eu (fulano de tal), prometo, solene e fielmente, com otimismo e en¬
pela Fundação BRADESCO. Não aceitar ou questionar o processo disciplinar tusiasmo, que seguirei e defenderei os princípios que a seguir declaro.
a que estão submetidos seus filhos pode significar o rompimento da única
oportunidade que teriam de alfabetização» alimentação, atendimento médi¬ 1. Amar o Brasil, dedicando-me integralmente a ele e trabalhando sempre
co-dentário e, possivelmente, um emprego no futuro” (Segnini, 1988:49). mais e melhor, até onde minhas forças permitirem;
Como disse em entrevista um funcionário do setor pedagógico da instituição: 2. colocar os interesses públicos, os do Banco e demais organizações BRA¬
“Nossa função aqui é torná-los gratos! Precisam entender que sem a assis¬ DESCO acima dos meus próprios interesses;
tência da Fundação estariam abandonados, na miséria” (Idem, ibidem). 3. dentro da convicção de que ‘só o trabalho pode produzir riquezas’, agir
Com efeito, os alunos são eliminados da escola quando não se com¬ com plena dedicação ao mesmo, com todo meu amor, minha disciplina e
portam de acordo com sua filosofia. No entanto, isso raramente acontece, justa humildade;
porque as privações das suas famílias é tamanha que as crianças e adoles¬
centes acabam por se enquadrar nos padrões que lhes são impostos. Assim, 4. respeitar e manter o princípio da hierarquia, condição essencial, quer no
as famílias dos pobres acabam por ser importantes aliadas do capital no Estado, na Família e na Sociedade, para o aprimoramento do homem;
disciplinamento de seus filhos, futuros trabalhadores dóceis e obedientes da 5. com o mais sincero sentimento de amor à Pátria e inspirado sempre nos
hierarquia. princípios cristãos, colaborar para a formação de um Brasil melhor, através
Também a religião desempenha importante papel nesse disciplinamento. das Fundações mantidas pelo banco e associados, educando, alimentando,
Hm bora o grupo financeiro não tenha oficialmente uma religião, valoriza curando, vestindo, formando melhores técnicos e, dentro das possibilidades
muito qualquer uma , desde que seja cristã, ao mesmo tempo em que proíbe permitidas, promovendo oportunidades aos brasileiros desafortunados que,
o proselitismo dentro das escolas e nos locais de trabalho. através dos terppos, pela inconsciência de alguns e pela indiferença e cri¬
minosa omissão de outros, ainda não puderam sair da miséria do analfabe¬
“Ao declarar que ‘basta acreditar em um ser superior, senão vira ba¬ tismo;
gunça’ [funcionário do Departamento de Pessoal], a organização indica que
não entende a existência de uma única religião como revelação de Deus. 6. dedicar-me a atividades construtivas e de bem coletivo, entrosadas com
Ao contrário, permite que todos acreditem viver a sua crença como men¬ as que o BRADESCO vem mantendo ou a outras, com a aprovação do
sagem divina. Só desta forma, esta mesma crença poderá eliminar os riscos Conselho de Administração do BRADESCO;
impostos pela dúvida jocosa sobre a religião do outro, entendida como ‘in¬ 7. responder, moral e materialmente, pelos eventuais e involuntários erros
venção dos homens’ [Karl Marx]” (Segnini, 1988:65). que venha a cometer,
Os rendimentos dessa preocupação ético-religiosa são no entanto bem 8. tratar a todos com urbanidade e respeito, principalmente os mais humildes
t materiais: e necessitados;
“A crença religiosa, enquanto critério de seleção, toma o exercício do 9. integração total à filosofia de vida e do trabalho do Banco, respeitando
poder politicamente menos custoso, posto que as desigualdades e misérias e fazendo respeitar seus estatutos e Regulamento Interno, bem como os de
* sociais podem ser explicadas através da vontade divina e ‘resgatadas’ na
vida eterna. No limite, a religião pode se transformar no olhar disciplinador,
seus associados”.
A Fundação BRADESCO mantém escolas de 1Q grau situadas nas mais
inscrito na consciência de cada trabalhador, capaz de suprir as eventuais
> ausências da vigilância hierárquica” (Segnini, 1988:141). diversas regiões: em capitais de estado do nordeste, no pantanal mato-gros-
sense e no planalto paulista. Nelas se oferece um ensino gratuito e de boa
Agindo assim, o Grupo BRADESCO evita incorporar candidatos aos qualidade, em termos técnico-pedagógicos, revestido de um código de con¬
seus quadros que não tenham origem “humilde”, em termos económicos e duta extremamente rígido. Os professores são selecionados do ponto de
educacionais, tão valorizada por seus dirigentes. Evitam os candidatos que, vista de sua conduta pessoal, e os estudantes são obrigados a assinar uma

sem as privações dos demais, possuidores de renda mais alta e de aspirações declaração de princípios que sintetiza os valores que todo patrão gostaria
mais amplas, aprenderam a tomar decisões. A Declaração de Princípios, que os empregados respeitassem: amor ao trabalho, disciplina, respeito à
-1 que todo funcionário é obrigado a assinar, mostra os valores e práticas I hierarquia. Além disso, os alunos devem prometer não beber, não fumar e
valorizados na instituição, exemplo notável do ideário totalitário: não praticar nenhum ato “contra a moral e os bons costumes”, sob pena de

l 342 343
■ *

I 1
É

serem excluídos da escola. A eficácia desse controle tem rendido bons di¬ já que esta é uma questão da esfera privada. A educação religiosa é, por
videndos políticos. As escolas da Fundação BRADESCO foram apresentadas sua vez, objetivo das instituições criadas para esse fim (inclusive de escolas
* pelo ministro da educação, em entrevista à Rede Nacional de Televisão privadas, procuradas pelas famílias interessadas) ou dos meios de comuni¬
Educativa (24/8/87), como modelos de ordem e disciplina, em contraste i cação social de recepção voluntária, como o rádio e a TV, que reservam
com a “desordem’’ das escolas públicas de lQ grau. horários especiais para a divulgação de temática confessional.
* Em 1984, a Fundação BRADESCO gastou 20 bilhões de cruzeiros na
Embora existam grupos crescentes de religiosos que estão sinceramente
manutenção de 23 escolas situadas em ll estados, que receberam 26 mil
alunos. Esses recursos provieram de doações das empresas do grupo capi¬ empenhados na quebra das relações de dominação económica e na construção
% taneado pelo banco. Como parte dessas escolas ministrava o aprendizado de uma sociedade democrática (por motivações religiosas), não é possível
da agricultura e da pecuária, as empresas do grupo económico lançavam
i esconder o fato de que eles não se têm manifestado sobre as questões das
mão dos incentivos fiscais da lei 6.297/75: deduziam do imposto de renda políticas privatistas para o ensino, que tanto têm vitimado a escola pública.
* devido o dobro dos gastos realizados com o “custeio do ensino de l° grau
para fins de aprendizagem profissional”. Esses recursos se juntavam aos do
Parece haver uma solidariedade entre a defesa dos interesses privatistas, em
matéria de educação, e a manutenção da hegemonia religiosa em nosso
9 país.
salário-educação, que vão diretamente para tais escolas, sem a intermediação j
9 do Estado. Em 1986, a Fundação BRADESCO gastou 502 milhões de cru¬ Depois do panorama aqui apresentado, será difícil que persista o cô¬
zados em projetos educacionais, quase cinco vezes o montante gasto no modo silêncio dos religiosos progressistas e democratas sobre essa questão,
ano anterior. Em 1985, os recursos dessa Fundação superavam as despesas expressão eloquente das alianças tácitas com seus confrades que conseguiram
de seis estados brasileiros com o ensino de Is grau. Em 1988, a rede de utilizar a escola pública para ensino confessional (em formas coativas e
escolas da Fundação BRADESCO tinha 33 unidades de ensino em todos discriminatórias).

j
os estados da federação, atendendo a 44 mil alunos — a metade deles no
Io grau, para o que destinou Cz$ 8,7 bilhões (em valores de dezembro de O exame do ensino da religião, enquanto disciplina do currículo das
1988). Para 1989, a fundação previa a inauguração de mais quatro escolas, escolas públicas, exige uma pequena digressão histórica, pois, para a maioria
a elevação do número de alunos para 53 mil e o orçamento para Cz$ 2l,l dos professores e dos pais de alunos parece que ela sempre existiu. O mesmo
bilhões (Bradesco, 1989). para a educação moral e cívica, a ela tão vinculada.
O ensino da religião católica, nas escolas públicas brasileiras, no período
imperial, era uma consequência da união entre Igreja e Estado. Essa herança
9 4. Religião, moral e civismo i
dos tempos coloniais chegava a tal ponto que houve quem dissesse que a
Igreja Católica, no Brasil nada mais era do que um apêndice da administração
9 civil.
O ensino religioso não é uma matéria (disciplina?) qualquer do currículo
m da escola pública de 1Q e 2Q graus. Sua discussão sofre restrições ocultas O imperador tinha amplos poderes sobre a Igreja, pois podia censurar
que não se levantam para qualquer outro conteúdo ou prática educativa. É as bulas do Papa, endossar a nomeação dos bispos e até determinar os
9 um verdadeiro tabu, para o qual numerosos colegas não se cansaram de me currículos dos seminários. Em compensação, cobria as despesas de todo o
9 advertir dos “perigos” de tratar dele, devido aos grandes interesses envolvidos clero e garantia que não seriam difundidas outras doutrinas religiosas além
na manutenção dessa disciplina no currículo (com cobertura constitucional), da católica.
* ainda que as instituições interessadas não tenham condições de tirar do Nas três últimas décadas do século XIX, essa simbiose Igreja-Estado
ensino religioso todos os benefícios políticos e ideológicos que pretendem. começou a incomodar aos dois lados da parceria. De um lado, o Vaticano
I Não atendendo às advertências, segui adiante na abordagem dessa ma- pretendia aumentar o controle sobre o clero brasileiro, de modo a desenvolver
téria. « uma atividade religiosa sem as limitações existentes. De outro lado, as forças
Mas antes de qualquer outra coisa quero deixar claro que não busco políticas emergentes (os liberais e os positivistas) pretendiam que o Estado
> travar aqui alguma “guerra santa” contra o ensino da religião, menos ainda brasileiro fosse sintonizado com os seus contemporâneos e adotasse uma
completa neutralidade em matéria de crença religiosa. A contradição entre
contra a liberdade de culto, princípios esses que fazem parte do ideário
i democrático. O que não faz parte desse ideário é a existência de práticas essas novas orientações e as antigas práticas produziu conflitos que contri¬
religiosas na escola pública, nem o ensino da religião (qualquer religião), buíram para a queda do regime monárquico.

9 344 345
Com a proclamação da República em 1889, e a promulgação da Cons¬ j dicados eram tais que, na prática, somente a religião católica poderia ser
tituição de 1891, a Igreja Católica foi declarada separada do Estado
passou, assim, da esfera pública para a esfera privada. O Estado foi proibido
— ensinada a todos os aiunos, como, aliás, se esperava9.
Era a “colaboração recíproca” entre Estado e Igreja que se iniciava.
de financiar qualquer tipo de atividade religiosa, assim como nenhum tipo O Estado buscava o apoio político e ideológico do clero católico na ma¬
de ensino religioso podia ser ministrado nas escolas públicas. Os professores, nutenção da ordem, ameaçada primeiro pelos movimentos anarco-sindica-
por sua vez, não precisavam mais fazer juramento de fidelidade religiosa. listas, depois pelos movimentos insurreicionais dos militares. A Igreja Ca¬
* Podiam adotar, para si próprios, qualquer crença e até mesmo não ter crença
alguma. Para os alunos, nenhum ensino religioso, nem a crítica das religiões
tólica, por sua vez, buscava o reconhecimento oficial de seus atos (como
a validade civil do casamento religioso) e a possibilidade de exercer seu
que professassem. ministério nos hospitais, nas prisões e nas escolas mantidas pelo Estado.
No entanto, no lugar da religião foi introduzida a disciplina “moral”, Pretendia ela, também, receber subsídios governamentais para a manutenção
que os positivistas mais radicais gostariam que fosse a “religião da huma¬ de seus empreendimentos.
nidade”, conforme a proposta de Augusto Comte.
A justificativa do presidente/governador de Minas Gerais era a de que
Mas, se os liberais e positivistas mantiveram-se laicos durante a Primeira a religião impediria a rebeldia e levaria à obediência às leis e à hierarquia.
República, aliando-se nesta questão aos movimentos populares de orientação Foi essa a mesma justificativa do governo ditatorial de Getúlio Vargas para
socialista, libertária e sindicalista, a Igreja Católica não aceitou o Estado o decreto que instituiu o ensino religioso em todo o país, em 1931, conforme
laico. Ao contrário das Igrejas Evangélicas, que cresceram bastante após o o modelo mineiro. Por esse decreto, o ensino religioso passou a integrar o
fim do oficialismo religioso, surgiu nos anos 20 um forte movimento de currículo das escolas primárias, secundárias e normais mantidas pela União,
bispos (como o Cardeal Lemme) e de leigos (como o filósofo Jackson de pelos estados e pelos municípios. Desde que houvesse vinte ou mais alunos
Figueiredo) em prol da retomada da influência direta da Igreja Católica de um determinado credo, seriam-lhes ministradas aulas de sua religião.
sobre o Estado, movimento esse conhecido como neo-cristandade. Além dessa razão quantitativa, os alunos ficariam dispensados de frequentar
Justamente nesta época a sociedade brasileira estava sendo sacudida aulas de religião se os seus pais ou responsáveis assim o requeressem.
por fortes lutas sociais e políticas. Durante as duas primeiras décadas deste
Os educadores progressistas não aceitaram esse decreto da ditadura
século, houve uma série de movimentos operários pela conquista dos mais
varguista. Ele foi condenado pelo “manifesto dos pioneiros da educação
elementares direitos trabalhistas, seguidos de violentas medidas repressivas. nova”, de 1932, que foi assinado tanto por liberais como Anísio Teixeira
Não se pode esquecer que um Presidente da República (Washington Luís)
chegou a afirmar que “a questão social é uma questão de polícia”! Logo
e Femando de Azevedo, quanto por socialistas como Paschoal Lemme e
Hermes Lima. Mas a mobilização eleitoral da Igreja Católica foi mais forte,
depois dos movimentos operários, vieram os pronunciamentos militares que
de modo que a Constituição de 1934 incorporou os termos dos decretos de
tinham sua base nas camadas médias. Nos anos 20, os dois tipos de movi¬ Antônio Carlos e Getúlio Vargas. Todas as Constituições, desde então, de¬
mentos chegaram a ter alguns objetivos comuns, como a reforma agrária. terminaram a obrigatoriedade do ensino religioso para as escolas públicas
Não é exagerado dizer-se que foi o medo da reforma agrária que abriu as (primárias ou de Io e 2° graus), mas facultativo para o aluno, dispositivo
portas das escolas públicas mineiras para o ensino religioso.
reforçado pela LDB (1961) e pela lei 5.692 (1971).
O presidente de Minas Gerais (como então se chamavam os governa¬
dores) Antônio Carlos de Andrada, alertava as demais autoridades do país Toda essa escalada jurídico-política culminou com a lei 6.802, de
para os movimentos políticos, por ver neles ameaças à propriedade e à 30/6/80. Apesar da reiterada declaração do caráter laico do Estado, esta
ordem social que a garantia. Foi dele a famosa frase: “façamos a revolução curta lei (apenas um artigo) declarou o dia 12 de outubro feriado nacional
antes que o povo a faça”, como justificativa da Revolução de 1930. Mas
para o culto público e oficial à Nossa Senhora da Aparecida, intitulada de
antes disso Antônio Carlos de Andrada descartou a Constituição e baixou Padroeira do Brasil. Tal declaração não visou facilitar o culto dos católicos,
decreto, em 1928, autorizando o ensino do catecismo nas escolas primárias
do seu estado, à semelhança da reforma educacional do regime fascista na 9. Antes disso e na mesma direção, em 1920, a reforma do ensino primário em Minas Gerais
Itália, em 1923 (Reforma Gentile). No ano seguinte, a Assembléia Legislativa decretada pelo presidente do estado Artur Bemardes permitia o ensino da religião “da
mineira aprovou lei determinando o ensino da religião nas escolas estaduais maioria dos habitantes da localidade” nas escolas públicas, em caráter facultativo, fora
primárias, secundárias e normais. A frequência às aulas seria facultativa, e do horário de aulas. A reforma Olcgário Maciel, de 1924, confirmou essa permissão
(Horta: 1989).
não se mencionava nenhuma religião específica. Mas os procedimentos in-

346 347

.A
» mas, sim, a participação oficial no mesmo, a despeito do caráter laico do rede nacional, especialmente convocada para isso. Teve, pois, absoluta razão
Estado. Indo além dessa lei, secretarias de educação de Estados e Municípios, a Rádio Evangélica Maranata, ao recusar-se a entrar em cadeia, alegando
que a lei assegura a liberdade de culto. Cabe-lhe, agora, recorrer à Justiça
bem como universidades públicas, cuidam da suspensão das aulas em dias |
santos do culto católico. Isso revela a hegemonia da instituição religiosa contra as ameaças do DENTEL, que não pode revogar burocraticamente a
que patrocina esse culto — —
a Igreja Católica , apesar da decadência do
catolicismo enquanto religião, que vem perdendo terreno rapidamente para
liberdade de culto e a laicidade do Estado” (“Privilégio confessional”, Folha
de S. Paulo, 15/2/91, pág. A-2).
Encontramos mais uma demonstração da contradição entre o caráter
o protestantismo pentecostal e para o umbandismo. Vale registrar que não
houve protesto dos setores conhecidos como “igreja progressista” diante do laico do Estado e a institucionalização do ensino religioso na própria legis¬
culto oficial da santa. I lação educacional. Se, de um lado, o Congresso Nacional elabora as diretrizes
e bases da educação nacional, deixa uma lacuna no que diz respeito ao
Na mesma linha de oficialização da Igreja Católica, a rede das televisões
educativas, vinculadas ao Ministério da Educação, transmite todas as manhãs
| ensino religioso. Mais do que uma lacuna, gera uma contradição nas dire¬
trizes e bases concretas, quando o Estado decide (como no parecer 540/77
de domingo um programa do arcebispo do Rio de Janeiro, seguido de ce¬
rimónia religiosa (missa), num caro e ostensivo subsídio. do Conselho Federal de Educação) que: “Não cabe aos conselhos de edu¬
cação, nem às escolas, estabelecer os objetivos do ensino religioso nem
Não bastasse esse uso indevido das emissoras oficiais, o governo federal seus conteúdos. Isto é atribuição específica das diversas autoridades reli¬
forçou as emissoras privadas a fazerem o mesmo. Em 13/2/91 todas as giosas”.
emissoras de rádio e TV do país foram convocadas a entrarem em rede
para a transmissão de um pronunciamento do papa na abertura da “Campanha Em consequência, o ensino religioso toma-se um “corpo estranho” na
da Fraternidade” da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, como escola pública, nas palavras de um seu defensor entusiasta (Santos, 1986).
vinha sendo feito nos últimos 15 anos. A Rádio Evangélica Maranata, de Isso decorre da dissimulação do caráter facultativo, tornando o ensino re¬
Jaboatão (PE), recusou-se a entrar na rede, alegando que no Brasil a Cons¬ ligioso de fato obrigatório:
tituição garante a liberdade religiosa, não cabendo ao Estado subvencionar “A lei, quanto ao ensino religioso, toma-se estranha à escola por ser
cultos religiosos. No entanto, os órgãos fiscalizadores do Ministério das inexequível. Tendo-o como objeto, ele próprio se toma inviável. Se a gran¬
Comunicações abriram um processo de infração contra a emissora, visando deza da lei está em prescrevê-lo ‘facultativo ao aluno’ por respeitar o que
puni-la com suspensão. é da própria essência da religião, ou seja, a liberdade de escolha, a estreiteza
9 Diante da geral conivência com tal oficialismo religioso, a posição do da escola está em tomá-lo, dissimuladamente, obrigatório para todos os
jornalista Newton Rodrigues foi um caso isolado: alunos. Mesmo que use como argumento a máxima ‘os fins justificam os
9 meios’, quer dizer, o ensino religioso pelo que propõe é bom para todos.
“Nada há a argiiir, em princípio, contra as campanhas de fraternidade Ao assumir tal comportamento, todos os pressupostos que justificam sua
9 <m de apoio aos trabalhadores que queiram fazer os dirigentes de qualquer presença na lei e na própria ação educativa da escola são negados, e con-
confissão religiosa. Há tudo, porém, contra abusos oficiais que favorecem seqiientemente, a própria lei também” (Santos, 1986:173).
qualquer credo, em flagrante violação dos direitos individuais e do caráter i
laico do Estado, consagrado na atual Constituição e em todas as Leis Fun¬ Os esforços ecuménicos das autoridades das confissões religiosas da
*
9
damentais que a antecederam, desde a instituição da República. tradição judaico-cristã têm levado à reiteração da idéia de que é possível
uma “religião não-confessional”, o que é um contra-senso. Não se pode
A exibição na última quarta-feira, em cadeia nacional requisitada pelo esquecer que existem questões polêmicas importantes para as diversas rim
-9 DENTEL, para que João Paulo II apresentasse sua Campanha da Fraternidade fissões, a respeito da figura de Jesus, da interpretação dos textos sagrados,
foi um abuso. Nada autoriza a requisição de rádios e televisões para que da função dos ministros etc. A interconfessionalidade, ainda mais quando
-9
-9
.9
neles fale algum chefe de Estado estrangeiro, ou sumo-sacerdote de qualquer
credo. Se o Dalai-Lama pedisse tempo, que faria o govemo? E se a Federação
Umbandista ou a Igreja Evangélica solicitarem o que foi concedido também
à CNBB — —
que navegou na esteira do papa , como reagiria o Planalto?
travestida de “orientação para a vida”, é mais uma forma de escamotear o
caráter facultativo do ensino religioso, o que denota a existência de uma
oposição a ele, ainda que difusa (cf. Santos, 1986:176).

-9 É vedado à União estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencio-


Apresentado o quadro histórico e institucional da garantia do ensino
ná-los, manter com eles relações de dependência ou aliança, determina a
Constituição (art. 19). Mas o governo não só privilegiou (em aliança) a religioso nas escolas públicas, vejamos como ele se apresenta em certos
Igreja Católica como a subvencionou, garantindo-lhe difusão gratuita em sistemas estaduais de ensino.
9
9 348 349
9
*7=

a
o
a As normas que regem o ensino religioso no Estado do Rio de Janeiro do Brasil, a Confederação Evangélica do Brasil e o Rabinado do Rio de
a podem ilustrar bastante bem o caráter coativo dessa disciplina. Janeiro. Nada de espiritismo nem de umbandismo.
a A resolução (RJ) 229, de 7 de maio de 1980, ainda em vigor ao fim Aquelas autoridades religiosas tinham, por sua vez, o poder de cre¬
da década, baixava as normas que deveriam regular o ensino religioso nas
a escolas de 1° e 2Q graus, regulares e supletivas, da rede estadual do Rio de
denciar os professores dos quadros do magistério público estadual que esta¬
riam habilitados a ministrar o ensino religioso nas respectivas confissões.
> a Janeiro. As aulas dessa disciplina deveriam ser ministradas no mínimo uma Mas admitia-se que “excepcionalmente, e em caráter emergencial”, poderiam
vez por semana, cabendo ao diretor do estabelecimento providenciar outra
a atividade escolar para os alunos que não desejassem receber formação re¬
ser indicados estagiários para o ensino religioso, pelas mesmas instituições.
De um modo ou de outro, o pagamento dos docentes dessa disciplina recaía
a ligiosa. Os diretores deveriam evitar, tanto quanto possível, que as mesmas sobre o governo estadual.
fossem ministradas no último tempo do horário escolar. Não é descabido
a pensar que tal providência visasse reter os alunos na escola, contra sua Vale mencionar ainda que a resolução estabelecia não depender de
a vontade, apesar de terem, por si ou por seus pais, declarado dispostos a
não frequentar as aulas de educação religiosa. O secretário da educação
número de alunos a constituição das turmas de ensino religioso de cada
confissão, ao contrário do que previa o decreto federal 19.941, de 30 de

\sa deve ter sido informado de que os alunos deixariam a escola mais cedo se
essa fosse a última aula.
De todo o modo, a resolução de 1980 já resultou de um abrandamento
desse tipo de coação indireta, pois o decreto (GB) “N” 742, de 19 de de¬
abril de 1931, que estabelecia o número mínimo de vinte alunos para que
fosse oferecido o ensino de uma dada religião.
Se o caráter coativo do ensino religioso transparecia nos vários dispo¬
sitivos mencionados acima, é preciso chamar a atenção para outro, destinado
3 zembro de 1966, que baixou regulamento para o ensino religioso, no antigo a assegurar a fidelidade a apenas uma religião: “Não será permitida a fre¬
Estado da Guanabara, mais do que recomendar, determinava que o diretor quência do aluno, no mesmo período letivo, a cursos de credos diferentes”.
a não colocasse também essas aulas no princípio do horário escolar. Assim, No Estado do Rio Grande do Sul, o decreto (RS) 4.898, de 13 de
a desestimulados a “matarem” as aulas de religião, porque inseridas no meio
de outras, a clientela do ensino religioso tomava-se cativa. Tratava-se da
março de 1954, ainda em vigor ao fim de 1989, determinava que as auto¬
a declaração implícita de que essa disciplina deveria tomar-se compulsória,
ridades religiosas reconhecidas para efeito de orientar o ensino religioso
nas escolas públicas gaúchas seriam os bispados diocesanos da Igreja Ca¬
nem que fosse pelo lugar ocupado no horário de aulas. tólica Romana “e as organizações equivalentes das outras religiões que,
Voltando à resolução fluminense de 1980, a organização das turmas pelo seu credo e disciplina, não se mostrem contrários à moral ou aos bons
9 de ensino religioso dependia, no texto da resolução, da “declaração de con¬ costumes, nem constituam mera exploração da credulidade pública”. O de¬
> 9 fissão religiosa” e do “credenciamento das autoridades competentes para o creto ia mais além em seu preconceito religioso ao determinar: “será per¬
ensino religioso”. No ato da matrícula, seria “inquirido” dos pais ou res¬ mitido colocar, no recinto escolar, crucifixos e imagens de motivos religio¬
9 ponsáveis qual a confissão religiosa a que pertenciam e, caso ela fosse sos”. Nessa mesma linha, o Plano de Ação do Ensino Religioso, de março
9 credenciada, se desejavam que seus filhos (ou tutelados) frequentassem aulas de 1989, nem mesmo procurou dissimular o caráter orientado para o cris¬
de religião, sendo informado que essas aulas seriam ministradas em “linha tianismo dessa disciplina. Tratando do “perfil do professor” do ensino re¬
9 confessional”. ligioso, o plano diz que “os educadores cristãos [como se todos o devessem
ser, LAC] têm uma missão e estão comprometidos com o Evangelho e com
A autoridade competente de qualquer religião legalmente constituída
a VIDA dos alunos”. A despeito da declaração de objetivos sedutores, como
a poderia requerer ao secretário da educação permissão para ministrar esse
ensino nas escolas da rede estadual, atendendo às seguintes condições: (I)
o de “desencadear o processo de libertação dos alunos” da rede estadual,
o plano apresentava, como uma das razões para a dinamização do ensino
possuir um credo definido, pelo qual respondesse uma autoridade definida,
religioso nas escolas públicas a seguinte:
com personalidade jurídica; (II) ter um “culto dirigido a Deus, de modo
que procurassem aproximar da Divindade os seus adeptos, não só em caráter “O homem, criado para realizar em si a perfeição divina, jogado no
pessoal e particular, como também cm âmbito social e comunitário. Com vazio existencial, na repressão dos sentimentos e emoções, na necessidade
esses critérios, apenas as religiões da tradição judaico-cristã seriam creden¬ de negar como norma de sobrevivência, na frustrante alienação, torna-se
ciadas, condição que, aliás, não precisavam requerer, pois a própria resolução cada vez mais uma CARICATURA DE DEUS, necessitando, por isso, do
9 já reconhecia o Regional Leste Um da Conferência Nacional dos Bispos ENSINO RELIGIOSO NAS ESCOLAS, como indispensável meio capaz
9 350 351
t
*
d
-ÿ> de modificar seu comportamento, em busca da verdadeira auto-realização ponto a destacar é sobre o ensino religioso nas quatro primeiras séries, para
<•* e felicidade” (Estado do Rio Grande do Sul, 1989:7). o que a Secretaria Estadual de Educação supôs serem religiosas todas as
Em 1979, uma decisão da Secretaria Estadual de Educação do Rio professoras, já que aquela resolução determinou que as atividades dessa
3 matéria (disciplina) fossem “ministradas pelo professor da própria classe,
Grande do Sul estabeleceu uma lista de exigências burocráticas para que
3 uma sociedade religiosa pudesse ser reconhecida como legítima para minis¬ podendo a direção da escola promover remanejamento ou rodízio de pro¬
trar essa disciplina nas escolas públicas gaúchas. Entre vários documentos fessores e reorganização de turmas, quando o caso o exigir, podendo as
3 exigidos, estava a “prova de personalidade jurídica, expressa através de comunidades religiosas colaborarem para que todos os alunos sejam devi¬
cópia do registro civil das pessoas jurídicas, inclusive de qualquer alteração damente atendidos”.
havida, com no mínimo 20 anos de integridade e tradição em nosso meio O peso das autoridades religiosas era tamanho, em Minas Gerais, que
e registro em cartório brasileiro", e a aceitação das normas da secretaria, o Conselho Estadual de Educação aprovou parecer (n° 145, de 12 de março
» isto é, as do cristianismo. de 1980) determinando que o licenciado em Filosofia só poderia ministrar
Assim, em fins de 1989, estavam inscritas na Secretaria de Educação o ensino religioso se fosse credenciado por aquelas instâncias extra-escolares,
i as seguintes sociedades religiosas: Igreja Católica, Igreja Episcopal, Igreja ao contrário do que vinha acontecendo em outros estados, de modo mais
Metodista, Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil, Igreja Evan¬ ou menos consensual. Ademais, é preciso frisar que a expressão “autoridades
gélica Luterana do Brasil, Igreja Batista e Igreja Evangélica Congregacional religiosas” deve ser entendida como sinónima de “autoridades diocesanas”
i do Brasil (todas cristãs) e a Igreja Israelita. (bispados), já que em Minas Gerais o catolicismo, além de hegemónico,
i A garantia de que o ensino religioso estaria protegido de qualquer tem o monopólio do ensino religioso nas escolas públicas. Tanto assim que,
argumentação contrária aparecia no artigo final do decreto, que dizia: “São em 1989, nem na área metropolitana de Belo Horizonte havia ensino de
» outra religião nas escolas da rede estadual.
vedadas a diretores e professores quaisquer críticas que desrespeitem os
sentimentos religiosos dos alunos de outro credo, ou quaisquer medidas que Na Bahia, a hegemonia da religião católica foi conseguida à custa das
os embaracem na sua liberdade confessional”. Deste modo, a religião ficava artimanhas do sincretismo e da repressão às nações afro-brasileiras, mais
protegida da argumentação laica, científica e até mesmo atéia. Entretanto, do que em outros lugares, com a força da polícia, devido à resistência. Nos
3 não garantia aos alunos de uns credos manifestações contrárias à hegemonia últimos anos, quando a cultura afro-brasileira cresceu na identidade dos
de outras confissões, inclusive as expostas com sanção oficial, como no negros e no reconhecimento da intelectualidade, os movimentos de valori¬
caso dos símbolos e imagens de exibição permitida. zação dessa cultura não se expressaram em militância revanchista, que pro¬
No Estado de Minas Gerais, a resolução (MG) 757, de 24 de maio de curasse ensinar a religião da resistência na escola pública. Os “terreiros”
m 1974, do secretário da educação, determinou que o diretor de cada escola
pública de 1Q e 2o graus deveria “incentivar a participação do corpo técnico,
continuaram a ser o espaço próprio para a prática e a difusão de sua religião.
No entanto, esses movimentos empreenderam uma luta para que o Estado
m docente e administrativo do estabelecimento, visando à integração do ensino
religioso no currículo da escola”. Constituídas as turmas e fixados os horários
(através de suas entidades de promoção do turismo) e a escola pública
deixassem de tratar o candomblé como folclore.
* do ensino religioso, os representantes locais dos diversos credos seriam
comunicados disso, de modo que pudessem se credenciar para ministrar Sem pretender, então, penetrar na disciplina Ensino Religioso, o mo¬
essa disciplina e apresentar candidatos à docência, a serem autorizados pela vimento negro conseguiu que se criasse uma disciplina optativa no currículo
delegacia regional de ensino, de acordo com critérios especiais. do ensino público de 1Q e 2Q graus denominada Estudos Africanos, na qual
a religião aparece como uma dimensão da cultura, sem nenhum objetivo
A portaria (MG) 117, de 13 de janeiro de 1976, regulamentou aquela
* resolução, de cujos itens destaco dois. O primeiro é o que esclarece que os
de proselitismo. No entanto, faltam professores na rede pública para se
encarregarem da nova disciplina, o que impede uma avaliação sobre sua
i candidatos à docência do ensino religioso apresentados pelas autoridades
religiosas não precisariam pertencer aos quadros do magistério estadual, prática ainda incipiente. Além disso, os promotores do movimento negro
3 se aperceberam de que pouco adianta a inclusão dos Estudos Africanos
devendo eles atender à única condição de possuírem “escolarização mínima
3 correspondente ao nível de ensino que o professor deverá atuar”. Posterior- como disciplina optativa, se o conjunto do currículo continua a ser desen¬
mente, as leis (MG) 7.109/77 c 7.737/80 efetivaram um número não deter¬ volvido por um magistério formado sob a hegemonia do catolicismo, que
3 minado desses indicados, enquanto “regentes do ensino religioso”, os quais, propicia e se beneficia da disciplina Ensino Religioso, conforme apresentado
3 sem concurso, passaram a ser remunerados pelo governo estadual. O segundo mais acima.
3 352 353
3
tf
!\ *
fl Quanto mais miserável a população, maior a fatalidade do ensino re¬
1 Vou focalizar, em seguida, a prática do ensino da religião nas escolas ligioso, ao contrário das camadas médias, que têm condições de escolher
públicas, com elementos colhidos de entrevistas com informantes qualifi¬ se e qual ensino religioso querem para seus filhos nas escolas públicas.
cados nos Estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia e Rio Grande Neste aspecto, a Igreja Católica acaba levando vantagem sobre as concor¬
1 do Sul. Embora não fosse possível realizar um levantamento tão amplo rentes, por causa de sua rede nacional e centralizada. Além do mais, há
quanto gostaria, percebi que há diferenças na ênfase que se dá ao ensino escolas públicas que mantêm capelas, mesmo quando há falta crónica de
religioso nas escolas públicas, conforme o próprio papel da religião no local salas de aulas. O crucifixo é um componente comum da decoração das
onde estão localizadas. Assim, a religião é militante nas zonas de colonização salas das diretoras, como um amuleto que atrai a força do poder para a
curopéia recente no Rio Grande do Sul; inercial em Minas Gerais e con¬ chefia. Não bastasse isso, as condições práticas das escolas acabam fazendo
flituosa no Recôncavo Baiano. O catolicismo é hegemónico em matéria de com que pais de alunos (e até eles próprios) evitem manifestar sua recusa
ensino religioso nas escolas públicas de quase todo o país, embora haja
*
1
disputa acirrada com o luteranismo em certas áreas de colonização alemã
do Rio Grande do Sul e já comece a disputa nas áreas metropolitanas com
ao ensino religioso católico. A propósito, uma pesquisa realizada em Minas
Gerais em 1982, pela Secretaria Estadual de Educação, nas escolas estaduais
e municipais de 1Q e 2° graus, mostrou que 96% das três mil escolas que
o crescimento do pentecostalismo, esta ainda dificultada pela fragmentação responderam ao questionário ofereciam regularmente o ensino religioso. Des¬
1 institucional, ao contrário do que ocorre com o protestantismo histórico. sas, 99% indicaram ser o catolicismo a crença religiosa predominante, en¬
O Além disso, a questão do ensino religioso difere da grande para a pequena quanto 80% declararam não oferecer qualquer atendimento aos alunos se¬
cidade, da capital para o interior, da rede estadual para a rede municipal. guidores das “religiões minoritárias” (parecer 648/83 do Conselho Estadual
> de Educação).
I O que mais chamou a atenção foi a constatação de que o ensino do
catolicismo continua praticamente obrigatório, como no tempo do império, Segundo os procedimentos formais nos estados que visitei, no ato da
<1 em que essa era a religião oficial do país. Aliás, todas as datas relevantes matrícula, os pais são indagados se desejam ensino religioso para os filhos
do calendário escolar são comemoradas com cerimónias religiosas, não bas¬ e, se a resposta é afirmativa, qual é a sua religião. Em certos lugares, o
> tassem os livros didáticos e discursos das professoras: o cívico se mistura que se pergunta é a religião, deduzindo-se daí que o ensino religioso só
com o religioso. Os pais de alunos e até mesmo grande parte dos professores não será ministrado aos que se declararem ateus. Ora, quem faz a matrícula
desconhecem que o ensino da religião é facultativo para os estudantes e das crianças é, na imensa maioria dos casos, a mãe. Aí reside um elemento
'
que, para os que o desejem, é possível escolher o credo a ser ensinado. Ao essencial para a reprodução do ensino religioso nas escolas públicas. Em
I lado desse desconhecimento, existe também a exploração da ignorância para nossa cultura tradicional, a religião é um freio para os impulsos afetivos e
efeito de impingir uma crença específica por parte de certos diretores de sexuais das mulheres. A crença no poder da religião para esse fim é tamanho,
escola, em conluio com os setores confessionalistas das secretarias de edu¬ que uma mulher que declarar não ter religião, principalmente se for jovem,
9 cação. O poder que os professores têm de escolher os livros didáticos per¬ será considerada disponível para qualquer aventura. As próprias professoras
mite-lhes até mesmo selecionarem livros escritos com base na “teoria cria- reproduzem esse modelo exigindo das meninas maior envolvimento com
m cionista”, que rejeitam a evolução como um fato cientificamente compro¬ as práticas próprias do ensino religioso, como os cânticos e as orações, e
com os modelos de comportamento considerados apropriados. Como disse
> vado. O pior é que esse tipo de escolha é endossada pela Fundação de
Assistência ao Educando-FAE, do Ministério da Educação, que se encarrega uma professora gaúcha, é uma verdadeira síndrome formada pelas figuras
> de receber os pedidos dos professores e efetuar as compras nas editoras da “mãe de casa”, a “mãe do céu” e a “tia da escola”, cuja quarta posição
é ocupada virtualmentc pela “filha da escola”, isto é, a aluna.
a privadas, para posterior distribuição às escolas10. t
E interessante notar que, no segundo segmento do ensino de 1Q grau
(5? à 8? série), a mulher é o agente preferencial do ensino religioso, como
10. A revista da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, SBPC, Ciência e Cultura o foi exclusivo no primeiro segmento. Para elas, nem mesmo se faz muita
(vol. 39, n°s 5-6, 1987) trouxe um editorial (“De volta a um velho tema: ciência X
fundamentalismo”) e uma resenha assinada por professor do Instituto de Biologia da Uni¬ questão do credcnciamento da instituição confessional. Para o homem, no
> versidade de São Paulo, onde fica evidenciado o caráter mítico-religioso de um livro de entanto, é preciso que esse credcnciamento seja explícito, ou então que o
“ciências e programa de saúde” para a 5* série do 1Q grau, que constava da lista de livros candidato a ministrar esse ensino disponha de algum elemento comprovador
da FAE/MEC passível de ser escolhido pelos professores das escolas públicas. E mais de sua qualificação, como antecedentes escolares em seminário, por exemplo.
um exemplo do apoio jurídico-político, económico c pedagógico do Estado a uma corrente
tf religiosa, até mesmo na parte do currículo que deveria estar reservada à ciência.
i A esse respeito, vale mencionar que o aggiornamento da Igreja Católica
tf 355
354
©
o liberou uma grande quantidade de padres, freiras e irmãos que foram in¬ tianismo. Os livros didáticos estão recheados de interpretações simpáticas
I °o corporados aos quadros do magistério público, por concurso ou pelo processo à religião, a começar com a imagem de Deus criando o homem, os jesuítas

. ** clientelista. Essas pessoas reforçam a disposição favorável para com o ensino


religioso, ampliando a disposição difusa no âmbito do professorado e da
população.
Ainda assim, mesmo se a mãe não é religiosa, foi possível constatar
a valorização do efeito frenador da religião, em especial na questão do uso
vindo ao Brasil para converter os índios à “religião verdadeira” etc. Para
isso, concorrem as editoras confessionais e não, mas que desejam vender
num mercado onde os grupos confessionais são hegemónicos. A oração é
um procedimento rotineiro nas quatro primeiras séries da escola pública,
facilitado pelo fato de que a professora é única, ao contrário das quatro
a dos tóxicos, para o que a crença religiosa pretende-se que seja um preventivo. últimas séries. Além do mais, a maioria das professoras das escolas públicas
são formadas pelas escolas privadas de 2Q grau, dentre as quais avultam as
Mas se, apesar de tudo isso, a mãe declarar que não deseja que seu escolas confessionais, estrategicamente situadas para apoiar um projeto he¬
filho ou filha assista às aulas de religião, ela frequentemente desiste diante gemónico no campo da educação11. Foi surpreendente encontrar depoimento
das perguntas da professora a respeito das razões para essa atitude “diferente” de professora de que os alunos de escolas públicas (até mesmo na capital
i= a a respeito da educação das filhas. Ainda assim, se a mãe persiste, será a
criança que vivenciará um sentimento de exclusão difícil de suportar, ren¬
do país) rezam para agradecer a Deus a merenda que vão comer, produ-
zindo-se o desconhecimento de que a existência da alimentação na escola
» dendo-se e pedindo para assistir às aulas de religião com os colegas. Isso depende da produção e da utilização dessa produção —
de condições bem
I*a porque, quando chega a hora dessa aula, a professora ordena aos poucos materiais, portanto.

- alunos dela dispensados (senão ao único), que saíam da sala, pois suas mães
não querem que eles assistam aula com os outros. Eles são enviados para
alguma sala vaga, se houver, sem atividade alguma que lhes interessam, já
que as escolas não têm condições de providenciar o que manda a legislação
O padrão imaginado como ideal para o ensino religioso é a existência
de uma sala para cada credo, o que raramente acontece, pela inexistência
de professores interessados e até de alunos. Quando isso ocorre, o professor
N» numa situação como esta, preferindo que as mães “não criem caso”. É católico fica com a turma maior e o professor evangélico com a menor,
comum as crianças serem enviadas para a secretaria ou para o corredor, agrupando não só seus confrades de várias igrejas, mas também os de outras
O nos mesmos lugares para onde vão quando estão de castigo. confissões, como os espiritas. Esse tipo de solução é tremendamente discri¬
minatório para com os alunos provenientes de famílias que praticam cultos
Há casos em que os pais só tomam conhecimento de que seus filhos animistas, que são apresentados com a curiosidade de “religiosidade popu¬
assistem aulas de religião através do caderno que têm de comprar para essa

! disciplina, que em tudo aparece como obrigatória: frequência, trabalhos de


casa, notas. Há quem constate orientação do ensino da religião na escola
contrária à religião professada pela família. Quando isso acontece e a mãe
tem condições de reclamar, há dispensa a posteriori, o que configura uma
lar”, algo primitivo, quando não como a encarnação do próprio diabo. Isso
é reforçado pelas práticas religiosas ecuménicas que, no movimento agre-
gativo das igrejas, exclui o espiritismo e as religiões afro-brasileiras. Ou
seja: o modelo europeu de ecumenismo acaba por servir, no Brasil, para o
reforço da hegemonia das religiões da tradição judaico-cristã e o consequente
quase obrigatoriedade. Foi relatado o caso de um pai de aluno da 5? série posicionamento das demais em posição subalterna.
de escola pública que conseguiu dispensa depois de redigir uma petição à
direção, na qual contestava a informação de obrigatoriedade prestada pela Uma solução que certos professores estão encontrando é a aula de
o secretaria. Para isso, o pai citava a Constituição em vigor (a de 1967, no
caso), a LDB (1961), a lei 5.692/71 e dois pareceres do Conselho Federal
“religião não confessional”, isto é, que trata da história das religiões e da
comparação entre elas, além de questões morais e éticas da vida atual. Esta
Q de Educação. A solução foi favorável à dispensa, criando precedente que orientação encontra apoio até mesmo em professores progressistas, que a
O favoreceu a outros alunos. É claro que a maioria dos pais não tem condição consideram uma maneira de tratar cientificamente da religião, sem que con¬
social nem informações suficientes para procedimento semelhante, nem con¬ sigam explicar por que destacar da História essa temática, enquanto outras
O dições de contestação às decisões da direção das escolas como esse pai, permanecem tratadas em bloco. De todo o modo, esse tipo de ensino religioso
que era professor universitário.
Os procedimentos utilizados pela escola pública para com o ensino
■o religioso são muito variados. Em primeiro lugar, os ritos escolares estão
11. Neste caso, o processo de formação da professora para as quatro primeiras séries do lc
grau é especialmente danoso, pois as noimalistas aprendem apenas aquilo que vão ensinar,
cheios de religiosidade, não havendo quase comemoração que não se acom¬ pouca coisa mais do que isso. Nos cursos de licenciatura, onde se formam os professores
panhe de celebração religiosa, sendo que apenas nas cidades maiores há para as quatro últimas séries, ao contrário, o horizonte é bem mais aberto
— havendo,

2 alguma preocupação com o ecumenismo, cm geral apenas dentro do cris¬ no entanto, quem gostaria de eslreilá-lo à imagem do curso normal, agora em grau superior.

*» 356 357
J tem sido empregado como desculpa para a obrigatoriedade, não se aceitando se se dissesse: “é melhor não criticá-los para que não nos venham criticar
) dispensa por não se tratar de uma opção confessional. também”.
i Os professores de ensino religioso são pagos pelo Estado. São profes¬ Por tudo isso, os educadores críticos dizem que a disciplina ensino
sores comuns da rede, que prestaram concurso (ou entraram por outro meio, religioso não é facultativa para o aluno, como prevê a legislação federal,
o mais comum) para lecionar alguma matéria (58 à 8a série) ou para o mas “facultatória”, isto é, disciplina obrigatória sob a aparência de facul¬
ensino por atividades (l8 à 48). Parte deles apresentou-se voluntariamente tativa.
para essa disciplina por razões de militância, parte foi transferida para ela
o por razões de incompetência didática para a disciplina que lecionavam, ou,
então, de desinteresse diante de um projeto pedagógico mais exigente.
Desfrutando de tal situação, não é de se estranhar que a proposta de
ensino laico nas escolas públicas, que se pretendia fosse incorporada à Cons¬
tituição de 1988 (ver Capítulo 11), encontrou resistências da massa de do¬
Foi possível perceber que o ensino religioso é aceito, com entusiasmo centes presente nos congressos da Confederação dos Professores do Brasil,
ou relutância, pelos alunos e seus pais, ao lado dos professores crentes. enquanto propostas das mesmas correntes ideológicas foram aceitas mais
» Encontrei também professores não crentes que o aceitam sem questiona- facilmente, como a destinação de recursos públicos exclusivamente para o
mento, inclusive ateus. Parece que o ensino religioso, dogmático por natu¬ ensino público. A laicidade só foi aprovada no congresso da CPB de 1988,
o reza, pode fornecer um reforço de legitimação às demais disciplinas do
currículo, mesmo tratando-se de arte ou de ciência, quando o ensino é mi¬
mesmo assim por acordo das forças políticas nele atuantes, interessadas em
O definir seus pontos de divergência em disputa de plenário. É interessante
nistrado de forma a reunir uma série de verdades absolutas e irrefutáveis, notar que a IV Conferência Brasileira de Educação, realizada em 1986, já
como se fossem questões de fé. Ou seja, embora antagónicos do ponto de havia aprovado a bandeira da laicidade, o que se explica pela presença
vista epistemológico, há uma verdadeira solidariedade prática entre o ensino nesse âmbito de professores mais envolvidos com o ambiente universitário,
a religioso e o da arte e da ciência: o autoritarismo, mais ou menos velado. onde o ensino religioso não é uma questão presente na prática educacional
o Mesmo se o discurso é liberal, a postura diante da religião facilita o cpntrole
da sala de aula e da escola inteira pelo dogmatismo subjacente. Houve
cotidiana.
o professores que disseram ser o ensino religioso bom para “colocar um pouco
de limite no aluno” e para “diminuir sua agressividade”. Vale mencionar Com base na hegemonia adquirida, o ensino religioso tem se infiltrado
que o ensino da religião, mesmo justificado pelos discursos modernizados, por outras disciplinas do currículo do ensino de Io e 2o graus. Foi o caso
> acaba sendo de grande utilidade conservadora, já que trata de questões atuais, da Educação Moral e Cívica, durante o regime militar e depois dele, sobre
do cotidiano da juventude (como drogas, aborto, homossexualismo), de ma¬ o que vale a pena centrarmos atenção.
neira repressora, isto é, como desvios do homem em relação ao “plano de Baixado o Ato Institucional nc 5 em dezembro de 1968, e deposto o
O Deus”. Da mesma forma, a guerra, a fome e a miséria são apresentados vice-presidente Pedro Aleixo, em setembro do ano seguinte, a Junta Militar
como erros dos homens. Embora haja correntes religiosas cristãs que dão
o prioridade a outras questões, elas não estão interessadas no ensino religioso
que ocupou a Presidência da República estabeleceu um decreto-lei (nc 869)
resultante de um grupo de trabalho da Associação dos Diplomados da Escola
o nas escolas públicas, pois se encontram engajadas nas lutas sociais, deixando
o ensino propriamente dito aos conservadores e reacionários, que estão em¬
Superior de Guerra, determinando que a disciplina Educação Moral e Cívica,
integrasse obrigatoriamente os currículos escolares de todos os graus e mo¬
o penhados no projeto de exercer uma verdadeira tutela sobre a moral coletiva, dalidades do sistema de ensino do país.
especialmente em matéria sexual, familiar e procriativa.
9 Apoiando-se nas “tradições nacionais”, essa disciplina teria por fina¬
lidade: a) a defesa do princípio democrático, através da preservação do
A crítica ao ensino religioso na escola pública é dificultado não só espírito religioso, da dignidade da pessoa humana e do amor à liberdade
»6 pela forte presença da religião na cultura brasileira, mas também pela própria com responsabilidade, sob a inspiração de Deus; b) a preservação, o for¬
situação do currículo e do corporativismo do magistério. Se o currículo da talecimento e a projeção dos valores espirituais e éticos da nacionalidade;
escola de 1Q grau é formado pela inserção de disciplinas, sem obedecer a c) o fortalecimento da unidade nacional e do sentimento de solidariedade
Q um plano, conforme os interesses de grupos (direitos humanos, ecologia, humana; d) o culto à Pátria, aos seus símbolos, tradições, instituições e
segurança no trânsito, programas de saúde etc.), por que criticar mais essa grandes vultos de sua história; e) o aprimoramento do caráter, com apoio
disciplina do que outras? Por outro lado, para que criticar uma disciplina na moral, na dedicação à família e à comunidade; f) a compreensão dos
© que serve para “encostar” colegas, que têm seus direitos adquiridos? Como direitos e deveres dos brasileiros e o conhecimento da organização sócio-
a 358 359

*
->
>
a político-económica do País; g) o preparo do cidadão para -o exercício das ela aprovou para uso nas escolas. O parecer proclamava que a base da
atividades cívicas, com fundamento na moral, no patriotismo e na ação moral a ser ensinada era a religião. Para escapar do paradoxo, o arcebispo
o construtiva visando ao bem comum; h) o culto da obediência à lei, da
fidelidade ao trabalho e da integração na comunidade (grifos meus).
Luciano lançava mão do conceito de “religião natural”, isto é, aquela que
leva ao conhecimento de Deus pela luz da razão. Assim, ficavam afastadas
Essa disciplina seria ministrada do curso primário ao superior, inclusive todas as religiões afro-brasileiras, apesar de efetivamente praticadas por de¬
na pós-graduação, sendo que no ensino superior ela se apresentaria masca¬ zenas de milhões de pessoas, relegadas pelos moralistas e civilistas à con¬
rada de Estudos de Problemas Brasileiros. Os programas seriam elaborados dição de resíduos de ignorância ou de curiosidades folclóricas. O mesmo
pelo Conselho Federal de Educação, com a colaboração da Comissão Na¬ acontecia com as crenças indígenas, a despeito da cínica celebração dos
cional de Moral e Civismo, com seis membros nomeados pelo Presidente índios como os primeiros brasileiros12.
da República, “dentre pessoas dedicadas à causa”. O ministro da educação Além das diretrizes gerais para a educação moral e cívica (e sua versão
passava a poder conferir a Cruz (a simbologia é significativa) do Mérito mascarada Estudo de Problemas Brasileiros), o parecer apresentava progra¬
) da Educação Moral e Cívica às pessoas que se destacassem na “dedicação mas detalhados da disciplina para o curso primário, o curso médio e o curso
I à causa”. A Comissão Nacional de Moral e Civismo reunia, entre seus superior.
ro
3
membros, zelosos generais, que se articulavam com a Censura Federal, e
civis militantes de direita, além de sacerdotes. A primeira composição da No curso primário, o conteúdo do ensino deveria estar centrado na
í tf comissão foi a seguinte: general Moacyr de Araújo Lopes, presidente; al¬ “comunidade”, esta categoria mitológica na qual a direita celebra a coesão
í mirante Ary dos Santos Rangel; padre Francisco Leme Lopes; e os profes¬
sores Elyvaldo Chagas de Oliveira, Álvaro Moutinho Neiva, Hélio de Al¬
social e condena os diferentes e os desviantes
tem sido, também, prisioneira (ver Capítulo 10).

mito do qual a esquerda
» cântara Avelar, Guido Ivan de Carvalho c Humberto Grande. No curso médio (ginásio e colégio) o conteúdo da disciplina já era
tj As finalidades da educação moral e cívica representavam uma sólida mais explicitamente ideológico: o trabalho como um direito do homem é
fusão do pensamento reacionário, do catolicismo conservador e da doutrina um dever social (pelo qual cada um dá a contribuição do que é capaz para
de segurança nacional, conforme era concebida pela Escola Superior de fazer funcionar o conjunto da sociedade, sendo a exploração apenas um
1 Guerra. Não foi por acaso que a Comissão Especial do Conselho Federal caso lamentável e excepcional); as principais características do sistema do
de Educação encarregada de dar as diretrizes para os programas dessa dis¬ governo brasileiro (apresentado como democrático, posto a salvo dos “so¬
'3 ciplina teve como relator o arcebispo de Aracaju, Luciano José Cabral Duarte cialistas e dos comunistas” pela “revolução redentora”); a defesa das insti¬
(parecer 94/71). tuições, da propriedade privada e das tradições cristãs (com a rejeição das
1 idéias exóticas que os agentes da subversão internacional estariam tentando
Membro do Conselho Federal de Educação, o arcebispo Luciano já inocular em nosso “povo simples e ingénuo” para dividi-lo por lutas fra¬
> era o mais destacado intelectual da corrente integrista da Igreja Católica, tricidas); a responsabilidade do cidadão para com a segurança nacional (isto
que tem resistido às mudanças produzidas pelo Concílio Vaticano II e seus é, para com a segurança do Estado, aceitando o governo dos militares, que
desdobramentos teológicos e pastorais. Como parte do acordo entre o setor deteriam o monopólio do patriotismo e da clarividência das aspirações do
reacionário da hierarquia da Igreja Católica e os governos militares, o ar¬ povo brasileiro e dos “objetivos nacionais permanentes”).
Cl cebispo Luciano assumiu a presidência do Movimento de Educação de Base,
demitindo toda a equipe técnica, na mesma época do parecer moral e cívico. O parecer relatado pelo arcebispo Luciano, com todos seus programas,
Em seguida, atrelou o MEB ao Departamento de Ensino Supletivo do Mi¬ foi aprovado pela Comissão Especial de Moral e Civismo do Conselho
O nistério da Educação, transformando o mais importante sistema de educação Federal de Educação, que tinha a seguinte composição: Raymundo Moniz
de base jamais organizado no Brasil em mera linha auxiliar do MOBRÁL, de Aragão, que, enquanto ministro da educação, promoveu o decreto-lei
o justamente quando este despontava como a grande solução para conquistar 228, restringindo a atuação das entidades estudantis, e assinou os convénios
apoio das massas ao regime militar. MEC-USAID; Esther de Figueiredo Ferraz, defensora do pagamento do
i
Apesar de o parecer do arcebispo-conselheiro proclamar que a educação
moral e cívica devesse ser aconfessional, isto é, não vinculada a nenhuma 12. Enquanto os índios estavam sendo mortos pelos grileiros e pelos policiais a serviço dos
O religião e a nenhuma igreja, a incorporação das doutrinas tradicionais do latifundiários, o Hino Nacional Brasileiro era cantado em tupi-guarani por professores e
catolicismo e de seus quadros não era sequer disfarçada nos textos e diretrizes alunos do Curso de Educação Moral e Cívica realizado pela Sociedade Educativa e Literária
Q da Comissão Nacional de Moral e Civismo, nem nos livros didáticos que Brasileira no Rio de Janeiro, em julho de 1970.
a 360 361
e
I
1
ensino superior nas universidades públicas, ministra da educação do governo universidades públicas declararam extinta a obrigatoriedade de Estudos de
do general Figueiredo; Therezinha Saraiva, importante quadro da política Problemas Brasileiros, antecipando-se sua inevitável mas tardia extinção.
governamental, tendo presidido o MOBRAL; José de Vasconcelos, padre No entanto, no 1° e 2° graus a Educação Moral e Cívica permaneceu no
salcsiano co-responsável pela política de profissionalização universal e com¬ currículo em todo o país pelo menos até o fim de 1990. O máximo que o
* pulsória no ensino de 2Q grau; Tarcísio Padilha, dirigente da Associação
Brasileira de Filósofos Católicos, destacado propagandista do tradicionalis-
governo Sarney fez foi extinguir a Comissão Nacional de Moral e Civismo,
assim mesmo disfarçada numa medida de reforma administrativa para eco¬
9 nomizar recursos (decreto 93.613, de 21 de novembro de 1986).
mo religioso, defensor da introdução do ensino da Filosofia no 2Q grau
% como forma de absorver a Educação Moral e Cívica, quando esta disciplina
passou a ser ameaçada pelas lutas em prol da democratização do ensino.'
Com essa composição, a comissão só poderia mesmo fazer o ensino
do moral e do civismo ter por lema Deus, Pátria e Família, como a doutrina
5. Escolas (universidades)
* do integralismo, o fascismo brasileiro explícito dos anos 30. Por isso não públicas não estatais?
foi surpreendente que o ministro da educação Jarbas Passarinho homolo¬ \
9 gasse, em 1973, o parecer da Comissão Nacional de Moral e Civismo, A crise do “milagre brasileiro” aliada à crescente organização dos se¬
i favorável ao Compêndio de instrução moral e cívica de autoria de Plínio tores que reivindicavam a destinação dos recursos públicos exclusivamente
Salgado. Também não foi surpreendente que, antes mesmo do decreto-lei para o ensino público, levaram os setores privatistas a retomarem os antigos
9 da Junta Militar sobre essa matéria, o prefeito de São Paulo Paulo Maluf argumentos que orientaram suas lutas desde os anos 30 e a elaborarem
tivesse determinado o ensino de moral e civismo em todas as escolas pri- outros novos.
>9 rnárias da capital paulista, já no ano letivo de 1969.
*9 Vamos acompanhar tal elaboração ideológica.
Na prática, a disciplina Educação Moral e Cívica foi lugar de emprego
*9 preferencial para padres, freiras e militares, estes nos cursos superiores. No Para alguns observadores parecia que, em 1980/81, setores da Igreja
entanto, alguns professores conseguiam, à custa de artimanhas, contornar Católica viriam a se posicionar a favor dos que lutavam pelo ensino público.
9 OS programas oficiais e desenvolver com os alunos atividades produtivas Num congresso, em março de 1981, da Associação de Educação Católica
dc resistência a esta ideologia, desenvolvendo uma atitude crítica. Infeliz- do Brasil-AEC, entidade que congrega estabelecimentos de ensino dessa
mente, seu número foi pequeno, não só por causa das perseguições que confissão religiosa, seu presidente chegou a afirmar que a defesa da escola
lhes eram movidas, como também pelo grande número de candidatos dis¬ católica não podia se contrapor à da escola pública e gratuita, como aconteceu
postos a veicular todo aquele conteúdo de “amoral e cinismo”, como a nos anos 30 e 50:
sadia resistência dos alunos batizou a nova disciplina. “A luta pela defesa da escola particular, pela defesa da liberdade de
ensino, pela defesa do direito que a família tem de escolher a educação
m Com o esgotamento do regime militar e o ascenso dos movimentos
que ela quer dar para seus filhos não pode traduzir-se hoje num confronto
entre a escola particular-paga e a escola pública-gratuita. Eu diria mais: a
9 que criticavam suas políticas educacionais, surgiu uma manobra dos ideó¬ luta por uma escola católica significativa e forte não pode ser identificada
logos confessionalistas, que acabava sendo apoiada por seus colegas críticos, com uma simples defesa da aplicação de capital nas áreas de educação
bem intencionados ou impelidos por razões de mercado de trabalho. Era a como fonte de lucros ou como uma visão meramente empresarial da escola.
introdução da Filosofia como disciplina no 2Q grau. Já que os estudantes A luta da escola católica pela sua identidade e sobrevivência passa, no meu
resistiam ao ensino religioso no 2Q grau e previa-se o breve fim da Educação modo de entender, pela defesa de uma escola pública, significativa e gratuita
Moral e Cívica, a Filosofia poderia vir a ser a herdeira do conteúdo que para todos. A escola católica, na busca de sua sobrevivência, não pode
essas disciplinas veiculavam. i
transformar-se numa espécie de testa-de-ferro do empresariado que investe
J No entanto, a Educação Moral e Cívica resistiu tempo demais, se com¬ em educação particular (...). Mas creio que, neste contexto, é importante
parada com sua aparição anterior no Estado Novo, já que ela foi extinta fazer constar que a escola pública, com todos os defeitos que ela possa ter,
imediatamente após a deposição de Vargas. O processo longo, tortuoso e e com todas as injunções políticas e ideológicas que ela leva em si, ainda
contraditório da transição política para a democracia, desde o início da é a forma natural de educação do povo; e que a sua reabilitação e revigo-
década de 80, permitiu essa surpreendente sobrevida. Em 1989, algumas ramento deveria ser uma das principais reivindicações de quem se preocupa

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com a educação popular e de quem quer aliar-se e articular-se com a educação suas instituições, nas quais estão matriculados cerca de 200 mil estudantes
no nível superior e cerca de um milhão no lc e no 2o graus.
das classes populares” (Castejón, 1981:18). !
Além das escolas confessionais, as escolas “comunitárias” têm se apre¬
O posicionamento dos setores católicos progressistas a favor da escola sentado como “as verdadeiras escolas públicas”, ou como “escolas públicas
pública seria de especial importância devido à “Campanha da Fraternidade” não estatais”. Devido à importância que elas assumiram nas últimas décadas,
da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil-CNBB, de 1981, cujo tema resolvi estudá-las em separado no Capítulo 10.
% previamente escolhido era: “educação e fraternidade”.
Antes disso, cumpre mencionar a surpreendente difusão dessa concep¬
Em versão preliminar do documento desta campanha buscava-se uma ção, mesmo no âmbito de antigos e sinceros defensores do ensino público,
composição entre a antiga reivindicação da hierarquia da Igreja Católica de no sentido próprio do termo.
receber subsídios governamentais para suas escolas e universidades, a título
de assegurar o direito dos pais na escolha do tipo de educação para os
Durante as lutas contra as políticas educacionais dos governos militares,
filhos, com novas demandas do movimento democrático que reivindicavam
o nome de Guiomar Namo de Mello destacou-se sempre como uma das
mais ardorosas defensoras da escola pública, contra as manobras dos em-
escola gratuita para todos. Assim, afirmava-se que os subsídios somente presários do ensino para se beneficiarem dos subsídios governamentais. No
deveriam ser destinados a escolas particulares que oferecessem ensino gra¬
entanto, em publicação recente, onde discute teses social-democratas em
tuito para seus alunos.
relação à educação, ela já parece rever algumas de suas posições, passando
No entanto, o documento oficial da “Campanha da Fraternidade” de a apoiar as instituições “públicas mas não estatais”, sem a gestão direta do
1981 retirava a referência à gratuidade e reivindicava, no item “escola para Estado, se a eficiência e a equidade fossem contempladas. A autora propõe
todos”, que o direito de escolha da educação se tomaria efetivo “através que se faça “algum tipo de colaboração com a iniciativa privada, com as¬
de subsídios públicos para as diversas formas de educação”. sociações e entidades civis e religiosas, com grupos de pais e professores,
A partir dessa definição da cúpula da Igreja Católica, os fiéis progres¬
com cooperativas escolares e escolas comunitárias, que já estão surgindo
espontaneamente”.
sistas limitaram-se a pronunciar-se em termos distintos daquele apenas em
ambientes restritos, deixando livre o caminho para que a alta hierarquia e Nesse sentido, ela chega a levantar a hipótese de ser cada escola pública
os intelectuais leigos conservadores desenvolvessem uma campanha ampla (estatal) encarada como uma unidade autónoma, que teria dotação específica
c sistemática de defesa do “ensino livre”. Nessa campanha, eles retomaram de recursos e seria recompensada pelo seu desempenho. Como, aliás, se
os mesmos argumentos dos anos 30 e 50, vindo a constituir exatamente o fez no Chile de Pinochet, com o apoio do Banco Mundial, onde se foi mais
que temia o presidente da AEC em 1981: de que a escola católica viesse longe, ao considerar as escolas oficiais e privadas equivalentes em termos
a se tomar “testa-de-ferro” dos empresários do ensino. de destinatárias dos recursos públicos. A propósito, o exemplo chileno foi
até mesmo evocado pela autora em apoio a essa tese. Para justificar sua
Também neste aspecto, a acuidade de análise de Anísio Teixeira vale nova posição, ela convida o leitor a abandonar a “hesitação em nome de
ser lembrada, por sua atualidade, mesmo vinte anos depois de publicada: bandeiras ideológicas”, a “fugir dos modelos uniformes e padronizados” c
“Veja-se bem que não identifico educação privada ou particular com a abandonar a “sacralização de tudo o que é estatal” (Mello, 1990:47-8).
educação livre. Livre, pela Constituição, é a iniciativa privada de oferecer
educação. Mas tal educação privada está, entre nós, mais do que a pública,
No caso do ensino superior, a diversidade da situação merece uma
sujeita a imposições alheias à própria educação. De modo geral, entretanto,
análise especial.
as suas escravidões mais visíveis são, exatamente, ao preconceito e ao di¬
nheiro. Quanto a este, a educação privada é, por excelência, uma educação í
Um ponto da maior importância na rearticulação privatista, novo em
barata. Precisa e tem de ser barata. Faz-se por isso mesmo rotineira, con¬ relação ao discurso dos anos 50, é a situação das universidades confessionais
servadora e hostil a inovações e experiências. Quanto ao preconceito, a no país. Se, naquela época, o espaço principal de formação das lideranças
escola privada faz-se escrava de sua clientela. Ela está aí para satisfazê-la, católicas estava no ginásio e no colégio, o problema se deslocou, então,
para atendê-la, para obedecer-lhe” (Teixeira, 1960:30). para o ensino superior. Não que os estabelecimentos religiosos de ensino
tenham sido desmobilizados, o que aconteceu com parcela reduzida deles.
Prevaleceu nos anos 50-60, como nos 80, o temor de a Igreja Católica Mas o fato novo foi a multiplicação desde então das universidades e facul¬
vir a perder o grande potencial de exercer influência política e ideológica dades católicas, já que a fração privada do ensino confessional não ficou
se os subsídios não garantissem, direla ou indiretamente, a manutenção de
364 365
o imune ao processo mais geral do setor privado: o deslocamento dos capitais remanescente do regime militar passou a ser contrabalançada por docen¬
na direção da maior lucratividade, ainda que encoberta. Assim, faculdades tes/pesquisadores universitários, enquanto assessores e avaliadores, embora
O católicas se transformaram em universidades depois de diversificarem seus não exclusivamente. Acirrando ainda mais essas disputas, os recursos das
cursos, enquanto escolas de 25 grau utilizaram seus prédios para abrigarem
o faculdades no período noturno, as quais logo passaram a ocupá-los por
inteiro. Ao lado disso, nos anos 80, as universidades católicas do Rio de
agências de fomento sofreram cortes frequentes, e, quando eles não ocor¬
reram, suas atividades se ampliaram muito, o que resultou no mesmo efeito
o Janeiro e de São Paulo já haviam atingido porte considerável, almejando o
conflitivo pela diminuição de recursos para cada finalidade específica.
o lugar de paradigmas do “ensino superior livre” de boa qualidade. Diante das ameaças de insolvência financeira, os professores, funcio¬
nários e estudantes da PUC/SP elaboraram, em 1986/88, o projeto da “esta-
o Com efeito, a PUC/RJ foi a primeira universidade privada do país,
tendo sido criada em 1946, a partir de faculdades existentes havia cinco
dualização” da universidade, isto é, de sua transferência do âmbito priva¬
o anos. Desde o início dos anos 60, a PUC/RJ desenvolveu uma bem sucedida
do-confessional para o âmbito do govemo estadual, isto é, para o âmbito
público-laico. Em reação a esse movimento, a reitoria desenvolveu um esfor¬
articulação com órgãos governamentais de fomento, de modo que pôde ço de se contrapor a esse projeto, defendendo a “publicização” da univer¬
alcançar padrões acadêmicos bastante elevados na área técnico-científica, sidade, ou seja, sua permanência na situação presente com recursos gover¬

o
comparável, em termos qualitativos, à da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Para tanto, aquela universidade recebeu subsídios que chegaram a
namentais, administrados segundo critérios públicos

ou seja, transparentes
e expostos ao controle de órgãos colegiados, nos quais teria lugar um repre¬
cobrir metade dos gastos totais da instituição, a despeito de cobrar anuidades sentante das agências de fomento. Isto estaria de acordo, aliás, com a posição
dos estudantes. que a ANDES defendia até 1986. A PUC/SP seria assim uma “universidade
Situação diferente ocorreu com a PUC/SP. Criada também em 1946, pública não estatal”, de acordo com uma certa linha de pensamento divulgada
■o encontrou como referência comparativa a Universidade de São Paulo, man¬ na I Conferência Brasileira de Educação (1980), a qual ocorreu, por sinal,
tida pelo governo estadual. Nesta instituição, concentravam-se todos os re¬ nessa mesma instituição.
o cursos destinados ao ensino superior público na área metropolitana, o con¬
trário do que fazia o governo federal que, no Rio de Janeiro, dispersava
A PUC/RJ não precisou desses artifícios ideológicos. Poucos foram os
professores, funcionários e estudantes que pensaram em sua “estadualização”
seus recursos em quatro universidades e em diversas instituições isoladas ou “federalização”13. A maioria, ao contrário, fez coro com a reitoria na
de ensino e de pesquisa. reivindicação de recursos públicos para a manutenção da instituição, a fundo
Vo Assim, se a PUC/RJ tem sido posta, há décadas, em situação compa¬ perdido. O apoio da grande imprensa carioca encontrou nos órgãos públicos
o rativa à da UFRJ, pelo menos na área técnico-científica (com exceção da resposta positiva às suas pretensões, a ponto de levar o governador do estado
a enviar projeto de lei à Assembléia Legislativa, alterando os estatutos da
biomédica, praticamente ausente naquela), a PUC/SP jamais pôde pretender
bO situação análoga à da USP em qualquer área que fosse. Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro-FAPERJ, de
modo a possibilitar sua mediação na transferência de recursos públicos a
•?
J
Essa diversidade de situações levou a reações também diversas de seus
corpos docente, discente e de funcionários quando a situação financeira das
instituições privadas, visando, em particular, a PUC/RJ.
universidades foi se agravando com o avanço da crise económica e com o Com efeito, uma das finalidades da FAPERJ, que era “ incentivar e
-o afrouxamento dos mecanismos de controle herdados do regime autoritário. amparar programas de ensino e pesquisa a cargo de instituições públicas
Premidos pela inflação, os professores e funcionários de ambas as univer¬ e privadas", passou a ser a de “ promover e financiar" essas atividades,
sidades católicas reivindicavam, como os das demais instituições privadas,
o reposição das perdas de seus salários, ao passo que os estudantes, e pelos
13. Um grupo de docenles/pesquisadores do Cenlro Técnico-Científico da PUC/RJ chegou a
O mesmos motivos, resistiam aos reajustes proporcionais das mensalidades. propor a incorporação dessa unidade à Universidade do Estado do Rio de Janeiro, que se
Os subsídios governamentais, saída habitual para esse tipo de impasse, já ressentia de qualidade docente e de pesquisa justamente nessa área. Em contrapartida, a
não eram conseguidos com a mesma facilidade, à medida que a transição área biomédica, praticamente inexistente naquela universidade, é forte na UERJ. Espera¬
para um regime democrático seguia seu curso. Não porque o governo Samey va-se que da fusão resultasse uma universidade mais homogénea e de alta qualidade, além
O fosse defensor do ensino público, mas, sim, porque o número de parceiros de se manter os expressivos recursos provenientes da FINEP, da CAPES, do CNPq e da
FAPERJ no âmbito do setor público. No entanto, essa proposta não prosperou, tanto pelo
aumentava a disputa pelos recursos passíveis de transferência ao setor pri¬ desinteresse da maioria do corpo docente do CTC da PUC/RJ, quanto da totalidade dos
vado. Contrariamente, aumentava também o acesso das universidades pú¬ demais, já que é essa unidade que serve de ariete para a abertura de fontes de recursos
o blicas às agências de fomento, principalmente depois que a tecnoburocracia para os Centros de Ciências Sociais e de Teologia e Ciências Humanas.
a 366 367
a
&
i
)
)
empenho acrescido pela finalidade de “ colaborar , inclusive financeiramente , aos quadros do magistério público, podiam deixar o trabalho agrícola e as
•1 incertezas das contribuições de sua “clientela” pela previsão dos vencimentos

"
no reforço, modernização e criação da infra-estrutura necessária ao desen¬
1 de funcionários.
volvimento de projetos de pesquisa em instituições públicas e privadas do
Estado do Rio de Janeiro” (lei RJ 1.175/87, grifos meus). Desde então, o Especificidades à parte, o adjetivo “comunitário” foi empregado por
1 governo fluminense teve cobertura legal para transferir recursos para a um grupo de universidades privadas para diferenciá-las tanto das universi¬
) PUC/RJ. dades públicas propriamente ditas quanto das universidades “empresariais
) No Rio Grande do Sul, a Universidade de Ijuí é a que tem feito mais ou pertencentes a grupos ou famílias”, visando credenciá-las como desti-
alarde de seu caráter público não estatal, por sua atuação “comunitária”. natárias legítimas dos recursos governamentais.
1 Num estudo realizado no Instituto de Planejamento Económico e So-
*

Originária da diferenciação de uma faculdade de filosofia confessional*.


1 a UNIJUÍ incorporou a prática de extensão que vinha desenvolvendo desde cial-IPEA, do Ministério do Planejamento, onde essas universidades foram
os anos 60 de “cursos populares”, de promoção do cooperativismo e da qualificadas e defendidas em seus pedidos dc recursos governamentais, ve¬
)
educação de base, segundo os interesses idealizados da “comunidade” l4, mos que elas foram objeto de uma definição ad hoc. Das vinte “universidades
1 entendida como “ambiente próprio do homem, onde as pessoas em convívio comunitárias” listadas, dezessete eram confessionais (dezesseis católicas e
fraternal e solidário construiriam a consciência de sua dignidade, de seu uma metodista), sendo que as outras três resultaram de iniciativas religiosas
I valor e capacidade de iniciativa, para buscarem juntas as soluções para os (Tramontin e Braga, 1988).
) problemas comuns” (Marques, 1984:76). A estreita ligação da faculdade Ora, como justificar o apoio a instituições confessionais, pelo simples
originária com uma importante cooperativa de triticultores reforçou em seus fato de serem religiosas, já que o Estado é laico (ou, pelo menos é isto o
I administradores a idéia de que se trata de uma instituição pública não oficial, que dizem as leis)? O estudo do IPEA teve mais cuidado do que os parla¬
J
situação essa que se acredita materializada na estrutura de seus conselhos, mentares defensores, na Assembléia Nacional Constituinte de 1986/88, da
nos quais existe a “presença simbólica dos diversos setores da vida pública” transferência de recursos públicos para instituições de ensino comunitárias,
I (idcm:178). confessionais ou filantrópicas. Assim, mesmo apoiando abertamente o subsí¬
) A UNIJUÍ pretende encontrar a base de seu caráter “comunitário” na dio governamental às universidades confessionais, o IPEA elaborou o con¬
própria história da educação na região sul, em especial nas áreas de imigração ceito de “universidade comunitária”, que abrangia também algumas insti¬
)
alemã e italiana. Nas palavras de um de seus mais importantes ideólogos: tuições não explicitamente confessionais, estas legitimando as demais.
1 “A Universidade Comunitária se enraíza numa tradição de escola man¬ Apesar de reconhecidas como instituições privadas devido à iniciativa
tida pelas comunidades rurais no sul do país, brotando de uma prática social de sua criação e sua entidade “mantenedora”, esse tipo de universidade foi
1 visto como tendo “uma especial dimensão pública”. Daí seu caráter “co¬
sedimentada no decorrer de mais de um século: desde as pequenas escolas
1 rurais desamparadas dc qualquer apoio do poder governamental, até o sur¬ munitário” (Tramontin e Braga, 1988:17-18). Sua “dimensão pública” re¬
gimento de uma camada de intelectuais oriundos daquelas comunidades e sultaria das seguintes características: (I) a entidade mantenedora não estaria
1 escolas, e de uma forte demanda de educação superior por parte de con¬ subordinada a nenhum interesse empresarial, mas “unicamente a um objetivo
tingentes crescentes de jovens também procedentes daquelas comunidades social”; (II) seus bens não seriam de propriedade particular; (III) a instituição
ou das pequenas cidades que no meio delas se formaram” (Marques, 1985:1). não teria dono; (IV) o controle e a participação no poder da universidade
1 estaria com amplos segmentos da sociedade civil, “através de suas organi¬
No entanto, a celebração do passado não deve obscurecer o fato de zações mais representativas”, confessionais ou não.
<)
que há muitos anos já não existem as condições económicas e culturais
sustentadoras das “escolas comunitárias” das colónias alemãs e italianas do No entanto, essa definição de “universidade comunitária” não resiste
Q à crítica. O fato de uma instituição não “ter dono” individual ou explícito,
Rio Grande do Sul, como já foi demonstrado por pesquisas sobre esse tema
) (Massarolo, 1977 e Kreutz, 1985). As “comunidades” de pequenos agricul¬ nem ter uma ligação ostensiva com grupos familiares ou empresariais, não
tores sentiram-se aliviadas com a transferência dos encargos educacionais
a faz “comunitária”. Nem mesmo o fato de os cargos de direção serem
’!
rotativos. Características semelhantes podem ser encontradas em empresas
para o Estado, sentimento compartilhado pelos professores que, incorporados organizadas segundo o regime jurídico das sociedades anónimas. Por outro
)
lado, o controle dessas universidades não pode ser visto como sendo feito
1 14. No Capítulo 10 focalizo com mais detalhes a questão do “comunitarismo pedagógico”. por “amplos segmentos da sociedade civil”. Quem as controla é a burocracia
1 369
368
religiosa, no caso da Igreja Católica, com direção monárquica, absolutista tero-referência e a adesão voluntária, independentemente de crença, etnia,
e vitalícia. convicção político-ideológica ou local de moradia, elementos estes impor¬
tantes para cimentar as relações comunitárias propriamente ditas.

¥
? Embora viesado por esse equívoco conceituai15 e seu propósito político
principal, o estudo do IPEA teve o mérito de mostrar as grandes fontes de
1 Por outro lado, chamar uma universidade de comunitária pelo seu em¬
penho em atividades de extensão (o tão valorizado, em certos meios, “serviço
recursos dessas instituições.
à comunidade”) pode ser um artifício para dissimular a incapacidade de
As “universidades comunitárias”, especialmente as confessionais ex¬ certas instituições na produção de ciência, de cultura e de tecnologia, bem
o plícitas, recebiam até fins da década de 60 recursos do govemo federal
garantidos caso a caso, pois elas estavam presentes nominalmente no orça¬
como na transmissão, aos estudantes, de modo sistemático, do saber acu¬
mulado em escala universal nas diversas áreas do conhecimento humano,
mento da União. Segundo o estudo do IPEA, mais da metade de suas despesas sem o que o título de universidade é um mero enfeite, senão uma caricatura.
eram cobertas por essa fonte. Depois que elas deixaram de ser incluídas
nominalmente no orçamento, as transferências de recursos governamentais
foram caindo, até chegar a valores simbólicos cm algumas universidades,
com exceção da PUC/RJ, onde não desceu abaixo dos 50% da receita.
Considerando o conjunto das 20 “universidades comunitárias” estuda¬
das, verificou-se que o pagamento dos estudantes cobria, em 1985, cerca
dc 50 a 60% das despesas. O restante resultaria tanto de subsídios gover¬
namentais quanto de lucros obtidos no mercado financeiro, que não puderam
ser separados devido à diversidade de critérios contábeis utilizados pelas
instituições.
Para se ter uma idéia da importância dos subsídios governamentais e
das receitas financeiras, vale mencionar que as receitas provenientes do
pagamento dos alunos responderam apenas por 22% nas despesas da
PUC/RS, 24% da PUC/RJ, 43% da Universidade Católica de Petrópolis, e
47% da Universidade de Caxias do Sul. Em 12 das 20 “universidades co¬
munitárias”, a participação do pagamento dos alunos nas despesas era inferior
a 75%, apesar de ser o ensino sua atividade principal, senão exclusiva.
A Constituição de 1988 garantiu às instituições educacionais confes¬
sionais o recebimento de recursos públicos, cumpridas algumas condições
(ver Capítulo 11). Para as que não são explicitamente confessionais, restaria
mostrar que não têm fins lucrativos (o que todas dizem não ter) ou, ainda,
reivindicar para si a qualidade de “comunitárias”.
Ora, chamar uma universidade de comunitária é um contra-senso. Di¬
ferentemente da comunidade, que busca o particular, a auto-referência e a
pertinência discriminada, a universidade só pode buscar o universal, a he-
i
15. Os próprios autores reconheceram não ter se aprofundado na questão da distinção entre
a “universidade confessional”, isto é, pertencente a uma ordem ou congregação religiosa,
e a “universidade comunitária”, que não possuiria vinculação a grupos. Sua preferência
por chamá-las todas de “universidades comunitárias” deveu-se “muito mais pelo caráter
de seus serviços do que pelo comando da universidade e pelo seu sistema de poder”.
(Tramontin e Braga, 1988: 40). Como os serviços dessas instituições não são examinados
no livro, nossa crítica quanto ao pré-julgamento das instituições confessionais fica reforçada.

370 371
TABELA 9-1 TABELA 9-3
VAGAS ADQUIRIDAS NAS ESCOLAS PRIVADAS PROPORÇÃO DE ALUNOS MATRICULADOS EM
COM RECURSOS DO “SISTEMA DE MANUTENÇÃO ESCOLAS PÚBLICAS E PRIVADAS SOBRE O
O DO ENSINO” (PRIVADO) E MATRÍCULA TOTAL TOTAL DO ALUNADO.
NO ENSINO PRIVADO (EM MILHARES DE ALUNOS). BRASIL E ESTADOS SELECIONADOS,
1980/84. SEGUNDO O NÍVEL ESCOLAR.
n 1983 E 1987 (EM %).
o ANO VAGAS ADQUIRIDAS
MATRÍCULA TOTAL
ENSINO PRIVADO (*) Relação
DISCRIMINAÇÃO
1983 1987
o na (a) ÍNDICE n5 (b) ÍNDICE a/b Esc.Públicas Esc.Privadas Esc.Públicas Esc.Privadas
' > 1980 1.227,7 1,00 2.670,6 1,00 0,46 PRÉ-ESCOLA
Rio de Janeiro 47,7 52,3 38,1 61,9
1981 1.858,6 1,51 2.801,0 1,05 0,70
Minas Gerais 63,7 36,3 76,3 23,7
1982 1.523,9 1,24 2.888,3 1,08 0,53 São Paulo 72,7 27,3 72,7 27,3
> 1983 1.504,2 1,23 2.784,3 1,04 0,54 Paraná 55,0 45,0 57,7 42,3
1.159,1 0,94 2.733,3 1,07 0,42 BRASIL 63,1 36,9 66,0 34,0
1984
Fonte; MEC/SEEC e MEC/FNDE, apud Vclloso (1987a:9).
Is GRAU
Rio de Janeiro 65,7 34,3 69,7 30,3
o Nota: (*) Matrícula no fim do ano.
Minas Gerais
São Paulo
92,1
90,0
7,9
10,0
93,6
88,2
6,4
11,8
Paraná 90,2 9,8 90,1 9,9
BRASIL 86,8 13,2 86,8 13,2

2° GRAU
Rio de Janeiro 44,1 55,9 50,6 49,4
Minas Gerais 42,8 57,2 63,5 36,5
TABELA 9-2 São Paulo 66,7 33,3 64,8 35,2
hO RECURSOS DO SALÁRIO-EDUCAÇÃO: RECOLHIMENTO
Paraná 76,4 23,6 75,6 24,4
BRASIL 58,4 41,6
O DA CONTRIBUIÇÃO E RECEITA DO “SISTEMA DE 1
64,9 35,1

O MANUTENÇÃO DO ENSINO” (PRIVADO). Fonte: Tabelas 4-1, 4-2, 4-3, 5-1, 5-2, 5-3, 6-1, 6-2, 6-3, 7-1, 7-2, 7-3 e MEC/SEEC, Sinopses
1980/84 (Cr$ bilhões de 1984). Estatísticas da Educação Pré-escolar, do Ensino de 1° Grau e do Ensino de 2° Grau,
O Recolhimento da Sistema de Manutenção
1983 e 1987.
TOTAIS
< ) Contribuição do Ensino
ANO
índice Valor % índice Valor % índice
O Valor %

1980 1.025,6 86,5 1,00 160,6 13,5 1,00 1.186,2 100,0 1,00
1981 1.104,0 84,1 1,08 208,5 15,9 1,30 1.312,5 100,0 1,11
1982 1.059,3 63,7 1.03 604,3 36,3 3.76 1.663,6 100,0 1,40 >
1983 803,1 63,0 0,78 471,1 37,0 2,93 1.274,2 100,0 1,07
1984 515,9 52,6 0,50 465,6 47,4 2,90 981,5 100,0 0,93

Fonte: MEC/FNDE. apud Velloso (1987a:8).


Nota: Ajustamento pelo índice Geral de Preços.

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