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O tigre da Índia

Cynthia Parker

Super Sabrina 39

Título original: "TIGER EYES"


Copyright: © by Cynthia Parker
Publicado originalmente em 1984 pela
Harlequin Books, Toronto, Canadá
Tradução: Maria Cecília Kinker Caliendo
Copyright para a língua portuguesa: 1985
Abril S.A. Cultural — São Paulo
Esta obra foi composta na Linoart Ltda. e impressa na Editora Parma Ltda.

Este livro faz parte de um projeto sem fins lucrativos, de fãs para fãs. Sua
distribuição é livre e sua comercialização estritamente proibida.
Cultura: um bem universal.

Digitalização:
Revisão: Gaby G
O príncipe Jai Mishra havia sido bem claro: nessa noite faria amor com ela
de qualquer maneira. Julie podia ouvir os passos dele, andando
ansiosamente no quarto ao lado, como se. fosse um tigre enjaulado. Logo
mais ele abriria a porta e então Não, não ficaria para esperá-lo. Julie saiu
do hotel, chamou um táxi e mandou que seguisse para Nova Delhi. Sabia
que era perigoso viajar à noite pelas estradas da Índia, sempre cheias de
assaltantes. Mas o príncipe Jai Mishra, com seus beijos ardentes e seu
charme irresistível, era bem mais assustador. Pelo menos era o que ela
imaginava, até o carro ser detido na estrada deserta e aquele terrível
pesadelo começar

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CAPÍTULO I

Uma rajada de ar quente surpreendeu Julie Connell assim que pôs


os pés para fora do imenso jato da Air Índia. Apoiando-se no corrimão,
respirou fundo e desceu a escada, correndo os olhos pela multidão que se
reunia no terminal. Entre todas as etapas do trabalho jornalístico, esta era
uma das que mais apreciava: chegar a um país novo. A sensação de estar
penetrando numa cultura diferente era palpável, mesmo numa cidade
cosmopolita como Nova Délhi. As abóbadas dos templos, a distância, e
aquelas vozes falando uma língua totalmente estranha compunham uma
primeira impressão que merecia ser devidamente saboreada.
Apesar da pressa e da confusão do desembarque, vários homens
pararam para observar Julie. Seus cabelos, de um loiro dourado, que caíam
sobre os ombros em ondas leves, sempre atraíam a atenção em países onde
predominavam cabelos negros. O tailleur de camurça que havia escolhido
para a viagem assentava-lhe muito bem, dando-lhe um ar chique e, ao
mesmo tempo, sério. Isto, aliado ao azul vibrante dos olhos e ao corpo esbelto e
bem proporcionado, explicava por que causava tanta inveja nas colegas do
jornal. Bastava um homem vê-la uma vez para desejá-la para sempre.
Julie atravessou toda a extensão da pista demonstrando segurança.
Nada, no modo como andava ou na expressão de seu rosto, dava
mostras da tensão que começava a dominá-la. Esforçava-se por aparentar o
que realmente era: uma profissional competente, enviada para cobrir um caso
importante, complicado e potencialmente perigoso.
Quando seu chefe, Wes Harding, falou pela primeira vez a respeito
daquela reportagem completa sobre terrorismo, Julie não se surpreendeu. Há
alguns anos o Courier, num esforço para superar os outros jornais dos Estados
Unidos, havia resolvido cobrir todos os acontecimentos internacionais. Desde
então se especializara em matérias abrangentes, reportagens sobre tendências
políticas de diversos países, que impressionavam os americanos. Devido a
esse tipo de abordagem, rapidamente o jornal alcançou reputação no
noticiário internacional, assim como o Wall Street Journal fizera seu nome
graças às notícias financeiras.
Uma série de artigos sobre terrorismo se ajustava perfeitamente à
política do Courier. Julie ainda era capaz de se recordar da sensação de

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formigamento no corpo quando recebera a notícia de sua indicação para uma
tarefa de tamanha responsabilidade. Aquele seria seu maior desafio
profissional.
— Harding! — exclamara ela. — Você não pode estar falando sério!
— Por que não? — Ele nem havia tirado os olhos da matéria que
tinha nas mãos.
— Mas eu?
— Você fez um bom trabalho sobre o abastecimento mundial de
alimentos. Este vai ser quase a mesma coisa.
— Este vai exigir ação. O outro era um trabalho mais estatístico.
— Era bastante amplo. Você o condensou muito bem, sem
generalizações. Agora deixe de se preocupar e volte ao trabalho.
Nos meses que se seguiram, Julie passou horas pesquisando o
submundo do terrorismo. Continuava com as tarefas de sempre, mas todo e
qualquer item sobre terrorismo era prerrogativa exclusiva dela. Assim, cobriu
um assassinato em Paris, um seqüestro na Inglaterra e, pior de todos, a
explosão de uma bomba numa estação ferroviária em Roma.
Pouco a pouco, um quadro terrível foi-se formando em sua mente.
"O propósito do terrorismo é dominar pelo terror", Lenin dissera
uma vez. E, a cada caso que ela cobria, sentia seu medo aumentar.
E agora a Índia. O contato que o jornal tinha em Bombaim havia ligado
um dia antes, contando que ouvira rumores de que uma reunião secreta de
terroristas internacionais estava para acontecer logo, em algum lugar da Ásia,
possivelmente no norte da Índia. Uma reunião de cúpula. Julie queria estar lá.
Não importava o pavor que sentisse, era preciso estar lá.
Sacudiu a cabeça. Teria de se esforçar para se manter fria. Como
repórter, deveria adotar uma postura bastante delicada: envolver-se com o
acontecimento evitando ser tendenciosa. Todavia, o que havia visto em Roma
— centenas de inocentes mortos ou mutilados — fora suficiente para
convencê-la de que os terroristas haviam passado do "matar por uma causa"
para a matança indiscriminada.
O vão de entrada do terminal surgiu à sua frente, transbordando
com tantas saudações, votos de felicidade e despedidas. Julie esperava que o
homem a quem tinha sido recomendada, o príncipe Jaiapradesh Mishra,
houvesse enviado alguém para recebê-la. Caso contrário, teria que lutar
sozinha contra aquela multidão no aeroporto.
Muitas coisas dependiam do príncipe Mishra, considerou.
Possuindo poucos contatos em Nova Délhi, precisaria muito da ajuda dele

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para levar adiante o seu trabalho, a começar por estabelecer suas próprias
fontes de informação; precisaria ainda de apresentações, contatos com
agentes governamentais, amigos. Segundo as informações que obtivera,
Mishra era uma pessoa imprevisível, de modo que não tinha certeza se ele a
auxiliaria.
Entrando no terminal, hesitou ao dar com aquele quadro exótico e
multicolorido. Pessoas de todas as raças, usando roupas dos mais variados
tipos, sorriam, conversavam, gritavam, discutiam, cumprimentavam, davam
adeus. As mais diferentes emoções do ser humano pareciam estar
concentradas exatamente ali, naquele local.
Mas até mesmo a excitação daquele momento era sombreada pelo
familiar aperto no coração. Julie compreendeu que, inconscientemente, estava
procurando um rosto conhecido entre aquelas pessoas estranhas. A saudade
bateu forte quando se lembrou do sorriso de Eddie a saudá-la alegremente,
sempre que a avistava em meio aos passageiros que desembarcavam.
A carreira dele como conhecido figurão da indústria
cinematográfica o obrigava a viagens constantes nos Estados Unidos.
Durante aquele relacionamento de mais de quatro anos, Julie se habituara a
viajar ao encontro de Eddie, sempre que seu trabalho permitia. Nem uma só
vez, por mais ocupado que estivesse, Eddie deixara de esperá-la nos
aeroportos. Aqueles momentos felizes de reencontro deixaram nela uma
marca tão forte que, instintivamente, continuava a procurar aquele rosto
querido, sempre que desembarcava em algum lugar.
O que era ridículo, pois não o veria nunca mais. Duas semanas após
ter concordado em se casar com Eddie, ele morrera num acidente. Fora uma
vida intensa, cheia de aventuras e de projetos para o futuro; uma vida de
amor ao trabalho e às pessoas, dentre as quais ela ocupava um lugar de
destaque. Por isso lhe era tão difícil aceitar aquela morte estúpida e
prematura.
Algumas vezes, sentia-se culpada, embora soubesse que não poderia
ter feito nada para impedir aquela tragédia. Mas se ao menos tivesse
concordado mais cedo com o casamento Quando aceitara o extravagante anel
de diamantes que ele lhe dera como presente de noivado, ao final de uma
noite romântica, se perguntara por que não havia sentido a felicidade
radiante que algumas de suas amigas descreviam. Afinal, acabava de ficar
noiva de um homem maravilhoso e apaixonado. Por que, então, não sentia
nada especial?
Não havia uma razão aparente para que fugisse tanto daquele

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noivado, mesmo porque Eddie era o maior incentivador de sua carreira,
qualidade rara nos homens. Entretanto, sabia que faltava algo naquele
relacionamento. Tinha sonhado a vida inteira com um homem que tocasse
fundo sua feminilidade. Eddie não era esse homem, apenas um amigo muito
querido. Só aceitara a proposta dele de casamento, por achar que estava
sendo exigente demais.
E então, duas semanas depois, Eddie morreu. Julie havia feito o
possível para se conformar, mas a lembrança dos tempos que tinham passado
juntos ainda lhe trazia lágrimas de saudade aos olhos. Mesmo que não fosse o
homem de seus sonhos, Eddie era o seu melhor amigo, um companheiro
constante. Sentiria saudades por muito tempo ainda.
Um par de olhos escuros que a observavam atentamente trouxeram
Julie de volta à realidade. Pertenciam a um homem alto, recostado à parede,
de algum modo à parte da multidão que se juntava no portão de saída. Ao
lado dele, um outro, bem mais baixo, usando terno marrom, falava
rapidamente, gesticulando sem parar.
O mais alto balançava a cabeça, como se concordasse sem estar
ouvindo, os olhos pregados em Julie. Ela, por, sua vez, observou que, por trás
daquela postura relaxada, o desconhecido tinha o corpo de um atleta: ombros
largos, quadris estreitos e braços fortes destacavam-no do resto das pessoas.
As feições aristocráticas combinavam com um certo ar de perspicácia que lhe
emoldurava o rosto. Ele parecia estar se entediando com aquela conversa,
preferindo se distrair examinando Julie. A inspeção inicial, entretanto,
tornou-se mais detalhada, e ela sentiu as faces arderem quando os olhos dele
deixaram seu rosto para estudar seu corpo com o maior cuidado.
Acostumada a enfrentar com despreocupação os olhares masculinos, nunca
havia, porém, se deparado com um homem tão autoconfiante. Ou tão bonito.
Parecia que, de algum modo, ele podia ver cada parte de seu corpo escondida
sob o tailleur. Sua pele começou a arder, como se aquele olhar penetrante
tivesse o poder de queimar-lhe a carne.
Uma chama se avivou nas profundezas daquelas pupilas negras que a
fitavam tão intensamente. A chama do prazer, do desejo. Estranhamente, um
anseio súbito nasceu no coração de Julie. Proporcionar prazer a um homem
daqueles Sentiu o corpo estremecer em resposta a esse pensamento. Algo nele
era diferente; não podia precisar exatamente o quê. Só sentia um magnetismo
sutil, que a atraía para aquele estranho de olhos negros. Inconscientemente,
deu um passo em direção a ele.
O homem se endireitou, surpreso com aquele movimento, um olhar

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apreciativo iluminando-lhe o rosto.
Julie acordou a tempo. Meu Deus, o que ia fazer? Cair nos braços
dele? Incrível como aqueles olhos a hipnotizavam, despertando nela uma
emoção até então desconhecida! Por um instante, sentiu-se a mais linda das
mulheres, tão sensual e exótica quanto a própria Índia.
Levantou os olhos para o homem que fora o responsável por aquela
estranha sensação e irritou-se ao notar que ele trazia um brilho de humor e
inteligência no olhar, como se houvesse compreendido o que se passara com
ela naquela fração de segundo.
Ergueu o queixo de modo voluntarioso e mediu o estranho de alto a
baixo. Inabalável, ele continuou a sustentar-lhe o olhar, até o ponto em que
ela se viu forçada a baixar os olhos, embaraçada. Numa cultura diferente
como aquela, seu gesto poderia ser erroneamente interpretado como um
convite. Estava para dar meia-volta quando o homem de terno marrom fez
uma pausa no monólogo e olhou casualmente em sua direção.
Joe Wolfe! Julie recordou-se imediatamente daquele rosto. Ela o
havia conhecido há um ano, numa recepção na embaixada de Washington, e
ficara sabendo que era consultor do Departamento de Estado norte-
americano. De uma coisa tinha certeza: sendo aquele homem um expert em
violência internacional, só poderia estar em Nova Délhi pelo mesmo motivo
que ela. O encontro fortuito convenceu-a de estar no caminho certo.
Alvoroçada, adiantou-se com a mão estendida e um sorriso estampado no
rosto.
— Sr. Wolfe, que bom encontrá-lo novamente! Sou Julie Connell.
Nós nos conhecemos em Washington, no ano passado.
— Srta. Connell? Ah, sim, claro! — O homem apertou a mão que lhe
era estendida.
Julie estava certa de que ele não se lembrava dela, mas o olhar
admirado com que a fitava demonstrava um desejo veemente de renovar o
conhecimento. Esta era a grande vantagem de ser uma mulher bonita.
— Não estou surpresa por encontrá-lo aqui, sr. Wolfe. Na sua
opinião, é séria a ameaça do terrorismo na Índia?
— Você sempre interrompe as conversas deste modo?
A pergunta repentina caiu-lhe como uma ducha gelada, e Julie se
voltou na direção daquela voz fria. Deparando com o olhar duro do estranho,
fez um esforço tremendo para reprimir uma resposta insolente. Na pressa e
determinação de cumprimentar Joe Wolfe, havia se esquecido da presença
perturbadora daquele homem. Surpreendeu-se diante da rispidez com que

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fora tratada. Em geral, os homens se portavam de maneira bem diferente
cada vez que ela se aproximava.
— Acho que não posso considerar de natureza privada uma
conversa no meio de um aeroporto — replicou, o mais friamente possível. Se
Wolfe estava de partida, era preciso falar com ele naquele momento.
— O sr. Wolfe está com pressa. Seu vôo sai daqui a poucos minutos
— confirmou o desconhecido, com um ligeiro sotaque britânico. Mas não
parecia inglês. E ainda possuía um intrigante ar cosmopolita.
— Ora vamos, Jai — interveio Wolfe diplomaticamente. — Nós
podemos dispor de alguns minutos para minha conterrânea.
— Obrigada. Se o senhor puder me conceder alguns instantes,
prometo não lhe tomar muito tempo.
Um anúncio ressoou dos alto-falantes. Enquanto era repetido em
três diferentes idiomas, o homem alto de cabelos muito negros puxou Wolfe
pelo braço em direção à área de segurança. O americano se voltou e acenou
para Julie.
— Sinto muito! Meu vôo! — desculpou-se.
Julie saiu correndo na direção dele, depois de alguns segundos de
perplexidade. Mesmo se ele lhe dissesse apenas uma ou duas coisas, já seria
um bom começo. Mas foi impedida de prosseguir, pois as costas largas do
estranho se colocaram à sua frente, barrando-lhe a passagem. Antes que
pudesse dar a volta por ele e seguir em frente, sentiu uma forte mão segurar-
lhe o braço com firmeza, obrigando-a a recuar.
— Todas as americanas são tão atrevidas assim? — ele perguntou,
sem soltá-la.
— Não tanto quanto você. Pode estar certo disso — respondeu,
furiosa. — Com licença! Preciso falar com o sr. Wolfe!
Soltando-se, começou a andar o mais depressa que conseguiu, mas
seu esforço foi inútil. Wolfe não estava mais ali. Desapontada, caminhou de
volta e notou, com um certo alívio, que o estranho não se encontrava mais no
lugar onde o deixara. Entretanto, a impressão daquela vitalidade quase
animal persistia em sua mente — uma emoção forte demais para um
encontro tão breve. E ela não gostou disso.
Um homem de barbas grisalhas, usando um turbante branco, se
aproximou logo que chegou ao setor de bagagens.
— Srta. Connell? — perguntou polidamente, após um segundo de
hesitação. Ante o aceno afirmativo de Julie, ele se apresentou: — Sou Gunam
Singh, chofer do príncipe Mishra. A marani pediu que lhe desse as boas-

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vindas em seu nome e a conduzisse ao palácio.
Julie se decepcionou quando compreendeu que a mulher do
príncipe é quem faria as honras da casa. Mas logo pensou que um dos
homens mais poderosos da Índia não iria se dar ao trabalho de recepcionar
uma simples jornalista, mesmo que representasse um dos jornais mais
importantes do Ocidente.
Estava ansiosa por conhecê-lo, pois, apesar de não ocupar posição
oficial dentro do governo, o príncipe era amigo íntimo do primeiro-ministro e
do presidente. Além disso, dizia-se que tinha uma fortuna imensa e que um
grande número de trabalhadores dependiam das indústrias que ele mantinha
no sul da Índia.
Seu título viera da época em que o país se dividia em principados,
sob o domínio inglês. Por vários séculos a família acumulara uma fortuna que
hoje era monstruosa. De acordo com as informações colhidas no banco de
dados do Courier, o príncipe gozava de grande popularidade entre as classes
mais pobres, e seu traço marcante era a grande paixão pelos esportes. Mas,
naturalmente, ele já devia estar muito velho para isso, concluiu Julie.
— Eu o conheci quando era repórter na Inglaterra, há alguns anos —
Harding lhe contara. — Ele é um homem extraordinário, mas não é uma
pessoa fácil de lidar. Dei um jeito de arrumar hospedagem para você na casa
dele. A marani é minha amiga e, quando falei com ela, ofereceu-se
prontamente para hospedá-la. Assim, você estará segura e ao mesmo tempo
confortavelmente instalada. E o principal: poderá obter com maior facilidade
todas as informações de que necessita, pois pessoas relacionadas ao governo
costumam freqüentar a casa do príncipe. Ele possui uma rede própria de
informações; entretanto, ter acesso a ela é uma coisa que só dependerá de
você.
— Será que vou conseguir?
— Bem, restrinja-se à matéria sobre terrorismo. Se quiser, escreva
artigos culturais e poderemos publicá-los nas edições de domingo. Mas
esqueça o resto, temos gente suficiente para cobrir o dia-a-dia.
— Está bem, Harding.
— Ah, e tente não se indispor com o príncipe. É uma pessoa difícil,
como já lhe disse, mas tenho certeza de que você saberá lidar com ele. Aliás,
foi por este motivo que a escolhi, Julie: se há uma coisa que ele respeita é a
coragem das pessoas.
Com esse final enigmático, o chefe a dispensara.
— Por aqui, senhorita, por favor — disse o motorista, num inglês

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carregado, trazendo-a de volta à realidade.
Julie apreciava os olhos bondosos e a maneira gentil daquele
homem. A julgar pelo turbante e pela barba cerrada, ele deveria ser um sikh,
seguidor de uma seita religiosa do Punjab, região que fica a noroeste da
Índia. A religião e a filosofia hindus sempre a haviam fascinado. Observar de
perto a rica vida cultural daquele país era um sonho que se tornava realidade.
— A senhorita tem o comprovante de bagagem? — perguntou o
motorista. — Um dos empregados poderá apanhá-la mais tarde; assim, não
precisará ficar esperando.
Já do lado de fora do aeroporto, Julie sentiu novamente o calor
abrasador. Gunam Singh conduziu-a apressadamente para um luxuoso
Mercedes e, uma vez dentro do automóvel e gozando as delícias do ar
condicionado, ela finalmente pôde relaxar. Fechou os olhos por alguns
instantes e, quando os abriu novamente, viu que Gunam, em vez de ter
entrado no carro, caminhava na direção de um homem alto que também
vinha ao encontro dele. Forçando a vista, Julie reconheceu imediatamente o
mesmo homem que acompanhara Joe Wolfe. Observou os dois conversarem
por alguns momentos e viu o desconhecido apontar com a cabeça em sua
direção. Em seguida, entrou num carro esporte vermelho, estacionado a
poucos metros dali. Quando Gunam dirigiu o Mercedes para fora do
estacionamento, o carro vermelho já não estava mais ao alcance da vista.
O panorama totalmente novo acabou por prender a atenção de Julie
durante o percurso. Fragmentos do cotidiano hindu corriam diante de seus
olhos, como cenas de um filme antigo. O lavrador maltrapilho conduzindo
um arado primitivo; a mulher muito idosa levando uma vaca magra para a
ordenha cenas tão diferentes daquelas que estava acostumada a encontrar nos
países industrializados da Europa Sentiu um desejo profundo de
compreender a riqueza dessa cultura, de um país a que os habitantes se
referiam como "Mãe Índia".
Uma coisa era evidente: aquele era um povo materialmente muito
pobre. Na verdade, não tanto, quanto ela esperava, embora soubesse que nos
estados do sul a miséria era grande. Por isso mesmo, acabava sendo um
terreno fértil para rebeliões, especialmente quando se comparava a situação
da maioria do povo à de uma minoria privilegiada, como era o caso de seu
anfitrião.
Mas não estava ali para escrever sobre a desigualdade da
distribuição de renda, mesmo porque não poderia analisar a realidade
daquele povo segundo padrões ocidentais. Sabia que um forte sistema de

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castas dividira a sociedade hindu durante séculos, tomando por base
princípios religiosos e filosóficos. Desse modo, o povo acreditava que cada
indivíduo nascia dentro do nível social mais adequado à sua evolução
espiritual.
Logo avistou a cidade e, após alguns minutos, o carro começou a
procurar passagem entre uma enorme variedade de veículos. Julie observava,
fascinada, os carros de boi, as carroças puxadas por cavalos, bicicletas e até
mesmo camelos levando feixes de palha, tudo isso em meio a caminhões,
táxis caindo aos pedaços, ônibus e, ocasionalmente, um automóvel.
Alguns minutos mais e o carro deixava a avenida principal,
deslizando sobre ruas silenciosas e com pouco movimento. Casas recuadas,
verdadeiras mansões tendo à frente jardins bem cuidados, compunham a
nova paisagem.
— A embaixada americana fica a alguns quarteirões daqui —
explicou Gunam, enquanto dobravam uma esquina e entravam numa via
pública ampla e arborizada.
Um muro muito alto acompanhava toda a extensão da calçada. O
Mercedes estacionou defronte a dois imensos portões. Atrás deles, Julie pôde
vislumbrar uma paisagem maravilhosa: cores exóticas espalhavam-se por
todo o lugar — flores em profusão revestiam as sebes e pareciam estar
incrustadas no próprio ar, misturando-se aos galhos das árvores frondosas.
Pressionando um botão que ficava ao seu lado, Julie baixou a janela
e respirou fundo, sentindo a deliciosa fragrância que se espalhava pelo ar.
— É maravilhoso — comentou, olhando em volta. — Todas estas
flores tudo tão verde e refrescante é aqui que mora o príncipe Mishra?
— Sim. A mansão poderá ser avistada logo que ultrapassarmos
aquela pequena colina.
O porteiro, também de turbante branco, apareceu para abrir os
portões de ferro. Julie notou que dois guardas, armados com rifles e
baionetas, postavam-se à entrada, lado a lado. Tanto os guardas quanto o
porteiro acenaram para o chofer assim que o carro passou por eles, e
lançaram olhares curiosos na direção daquela moça que vinha sentada no
banco traseiro.
— Que beleza de escultura! — Julie apontou para dois tigres de
bronze, sobre duas imensas colunas. As figuras transmitiam uma força
selvagem que contrastava com a leveza de sua postura.
— São o símbolo da linhagem Mishra — explicou Gunam Singh. —
Há outro par, dentro da casa. Dizem que os tigres corporificam a essência dos

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príncipes da dinastia — acrescentou, enquanto a mansão aparecia diante dos
olhos fascinados de Julie.

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CAPÍTULO II

O palácio reluzia ao sol brilhante da Índia. Gigantescas colunas de


mármore erguiam-se por toda a extensão do prédio, e um domo de mármore
lavrado decorava aquilo que deveria ser o hall de entrada. A severidade da
construção era quebrada pelo verdadeiro espetáculo de flores que se
espalhavam ao longo do terraço. Julie estudava com olhos apreciativos a
graça e a elegância da imponente fachada.
Chegaram defronte à escadaria de mármore; um empregado logo se
aproximou para abrir a porta do automóvel. Julie desceu, sentindo-se
transportada para um mundo mágico. O extenso gramado coberto de flores;
as colunas de mármore, muito mais altas do que pareciam ao longe; a
distinção do empregado, todo de branco Essas coisas pareciam pertencer a uma
era diferente.
Correu a mão sobre o dorso de um dos tigres de bronze, que jaziam
aos pés da escadaria que conduzia ao terraço. Eram réplicas idênticas dos que
avistara à entrada, só que maiores. Pareciam tão cheios de vida que ela não se
surpreenderia nem um pouco se começassem a se movimentar.
— Queira acompanhar-me, senhorita — disse o empregado, em tom
formal. — A marani está à sua espera.
Subindo os degraus de mármore, Julie seguiu o homem pelo terraço
até atravessar as enormes portas de bronze que davam entrada à mansão.
Impressionou-se com os carpetes ricamente coloridos, e tão espessos que
quase chegavam a lhe cobrir os sapatos; com as escadas e portas de mogno,
todas muito bem polidas; com a magnífica abóbada de mármore. Então foi
conduzida a uma sala espaçosa e aconchegante. Logo que foi anunciada, uma
senhora de meia-idade levantou-se e veio ao seu encontro, com um olhar de
boas-vindas.
— Você deve ser Julie Connell. Eu sou Bharati Mishra. Bem-vinda a
Nova Délhi!
— Obrigada — Julie respondeu, simpatizando de imediato com a
marani. Cabelos grisalhos e traços finos e delicados demonstravam que,
quando jovem, ela deveria ter sido uma bela mulher. Gostou da voz macia e
das maneiras afáveis de sua anfitriã.
— Que bom você ter vindo! Wes Harding é um bom amigo, e fico

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feliz por prestar-lhe um favor. Aliás, um favor muito bom, pois sei que vou
apreciar muito a sua companhia. — Aquelas palavras soaram sinceras aos
ouvidos de Julie.
— Já estou me sentindo em casa — ela respondeu, sorrindo,
enquanto se sentava na poltrona que lhe era oferecida.
— Traga-nos lassi, Ram, por favor — a mulher disse ao mordomo.
Assim que ele saiu, continuou: — Não tinha idéia de que você fosse tão
jovem!
— Tenho vinte e oito anos.
— Que beleza! Vinte e oito anos, muito bonita e uma profissional
competente. Sabe, é difícil me acostumar à idéia de uma mulher tão jovem
seguir uma carreira que não esteja ligada ao lar. Claro, aqui na Índia temos
mulheres assim, uma delas foi líder, inclusive, mas são minoria. Minha filha
estudou na Suíça por dois anos, de modo que tem uma mentalidade
diferente.
— Não sabia que a senhora tinha uma filha.
— Uma linda menina — respondeu a marani. — Espero que se
tornem amigas.
— Estou ansiosa por conhecê-la — retrucou Julie e acrescentou: — E a
seu marido também.
— Meu marido morreu há muitos anos. Você não sabia? — Ante o
olhar estarrecido de Julie, ela acrescentou: — Estou surpresa que Wes não lhe
tenha mencionado o fato.
Julie sentiu-se perdida e confusa. Se o príncipe estava morto, como
ela poderia levar adiante seu trabalho jornalístico sem a pessoa-chave para
quem havia sido enviada? Não conseguia compreender como falhara.
Deixando Nova York às pressas, na certa interpretara mal as instruções que
recebera.
— Sinto muito, marani. Eu não sabia. Não posso imaginar por que o
sr. Harding não me disse nada.
Por dentro, maldizia-se por não haver pesquisado direito os dados
sobre a vida do príncipe. Como qualquer outro grande jornal, o Courier tinha
sua própria biblioteca, além de um banco de dados sobre todos os fatos
recentes. A primeira coisa que um repórter deveria fazer antes de sair para
uma missão importante seria ir ao "morgue", como os jornalistas chamavam
os arquivos, e vasculhar todos os dados existentes. Era óbvio que a morte de
uma pessoa tão importante como o príncipe deveria constar do fichário.
— Não pense mais nisso. — A marani procurava confortá-la. —

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Aconteceu há tanto tempo que já não sofro mais. Nós, hindus, acreditamos na
reencarnação. O corpo é apenas a casa do espírito, de modo que, quando uma
pessoa morre, sua alma procura uma nova habitação. Cada novo nascimento
dá à alma a chance de adquirir a perfeição espiritual, que é o objetivo de
todos os hindus. Naturalmente, sentimos saudade daqueles que se foram,
mas procuramos não sofrer demais, o que seria um ato egoísta. Afinal, nossos
entes queridos partiram para outra etapa na evolução do espírito.
— Obrigada por suas palavras, marani — Julie respondeu, enquanto
pegava o copo que o mordomo trouxera numa bandeja de prata.
Experimentando a bebida, aprovou o gosto doce e refrescante. — Só não
posso compreender por que o sr. Harding me mandou procurar o príncipe.
— Porque, com certeza, ele estava se referindo a meu filho —
replicou a marani, com um indisfarçável ar de ansiedade. — Ele agora é o
príncipe Mishra. Ainda não tive oportunidade de falar com ele a seu respeito,
pois está em Bombaim, numa viagem de negócios. Aliás, deve estar chegando
hoje à noite. — Julie não entendia por que a simples menção do nome do filho
tivera a capacidade de desconcertar a mulher. — Priya e eu apreciaremos
muito a sua companhia. Jai também gostará de você, estou certa.
— Está certa de quê, mamãe?
A inesperada voz masculina apanhou as duas de surpresa. Julie
descansou o copo na mesinha ao lado, tentando controlar a sensação de mal-
estar que se apoderara dela naquele instante. Então voltou-se para olhar o
desconhecido do aeroporto, cuja presença ali era a última coisa que desejaria.
Como tudo o que dizia respeito a ele, também a voz era inesquecível.
Parado junto à porta, a figura realçada pela luminosidade que
entrava pelas janelas do corredor, ele lembrava os tigres da entrada: a mesma
graça lânguida e indolente mesclada a uma força selvagem e impetuosa. Julie
perguntou a si mesma como não o reconhecera pelo que aparentava ser: um
príncipe. Aquele homem só poderia mesmo ser um príncipe.
Ele continuava em pé, observando as duas, que não eram capazes de
articular uma só palavra. Então atravessou a sala com passadas largas e
macias, como as de um atleta. Julie admirava aquele corpo tão bem
proporcionado e tão viril. Até mesmo o modo como o príncipe andava
lembrava a beleza dos movimentos de um tigre. Só que com uma diferença:
ele parecia muito mais ameaçador do que qualquer animal selvagem. Notou
que vestia um uniforme de montaria e que segurava sob o braço um capacete e
um chicotinho, daqueles que os jogadores de pólo costumam usar.
O príncipe chegou mais perto, muito à vontade entre os objetos de

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luxo que o cercavam. Parecia tão seguro de si, tão senhor da situação, que
Julie se sentiu perturbada. Procurou reagir, levantando os ombros e
endireitando-se no encosto da poltrona. Forçou um meio sorriso, tentando
compor um ar de cortesia formal. Não iria permitir que ele a intimidasse com
sua fisionomia rude. Sabia muito bem que, se quisesse ser levada a sério na
profissão de jornalista, precisava demonstrar força e autoconfiança,
principalmente aos homens. Caso contrário, eles a veriam somente como uma
mulher bonita brincando de repórter.
— Jai! — saudou finalmente a marani. — Estou contente por vê-lo de
volta. Nós o estávamos esperando para logo mais à noite. Ah, sim, esta é a
srta. Julie Connell. Julie, este é meu filho, o príncipe Mishra.
Ele parou a alguns passos dela e, com um leve aceno, dirigiu-lhe um
cumprimento. Olhou para a mãe e, depois, novamente para Julie,
observando-a com desinteresse.
— Amiga de Priya? — Voltou-se para a mãe.
— Não exatamente — respondeu a marani. — Embora, é claro, eu
deseje que as duas se tornem amigas. Julie ficará algum tempo conosco, Jai. —
Ela se levantou e Julie fez o mesmo. — Meu amigo Wes Harding foi muito
amável ao enviá-la para me fazer uma visita.
Por que a marani fazia tanto suspense? Parecia ter receio em dizer
que ela estava lá como repórter.
— Julie — disse a mulher, após uma pausa —, por que não conta a
Jai sobre o interessante trabalho que a trouxe até aqui? Eu preciso tratar de
algumas coisas, se me der licença.
— Claro, marani — ela respondeu, sem entender o que estava se
passando.
Um silêncio pesado caiu sobre os dois quando a mulher deixou a
sala. Julie não olhava para o príncipe, mas ouvia o ruído das pedras de gelo
que caíam dentro de um copo.
— Quer uma bebida? — ouviu-o perguntar.
— Não, obrigada — respondeu, voltando-se para ele. O
antagonismo em sua própria voz surpreendeu-a. Esta não era a primeira vez
que a deixavam a sós com um desconhecido. Por que então não conseguia se
portar com naturalidade? Sentiu as têmporas latejarem.
Ele continuava a preparar a bebida, de costas para ela. Em pé, sem
saber o que dizer, Julie começou a ficar nervosa. O príncipe parecia não ter
pressa alguma em concluir aquela tarefa para fazer-lhe um pouco de sala. Por
que se comportava de maneira tão hostil? Afinal, nem sabia por que ela

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estava lá. O mais curioso era que os homens sempre a cercavam de atenções,
agindo de um modo totalmente diverso da frieza do príncipe. Sem saber o
que fazer diante de uma situação tão embaraçosa, tratou de se concentrar no
propósito de sua vinda: estava lá para obter informações, apenas isso. Ele que a
tratasse como bem entendesse, contanto que não lhe recusasse as
informações necessárias.
Como o silêncio persistisse, resolveu examiná-lo, aproveitando-se do
fato de ele estar de costas. Imaginou que tivesse uns trinta e poucos anos. Sua
virilidade exercia sobre ela um poder tão grande que, naquelas
circunstâncias, chegava a ser perigosa. Voltou-se para outra direção, a
pretexto de examinar alguns quadros, e então sentiu-se subitamente fraca.
Atordoada, apoiou-se no encosto da poltrona mais próxima, baixando a
cabeça.
— Está sentindo alguma coisa? — O tom impessoal daquela voz não
demonstrava a menor preocupação.
Julie não estava bem, de fato, mas não queria de modo algum dar
sinais de fraqueza na presença dele.
— Estou ótima. — Nem bem disse isso e uma nuvem cobriu-lhe a
visão. Ela se controlou para não cair ali mesmo.
Ele a observava intensamente, como se tivesse algo a dizer, a
perguntar. Os olhos negros, então, encontraram os dela, e Julie teve a
impressão de que ele iria se aproximar. Mas algo fez com que mudasse de
idéia, preferindo tomar outro gole da bebida, calmamente, sem sair do lugar
onde se encontrava.
— O que estava fazendo no aeroporto? — ele quis saber. — Está
surpresa por eu reconhecê-la? Ora, deve saber que tem uma beleza rara.
Um pouco da cor voltou às faces de Julie quando ela respondeu:
— Eu tinha acabado de chegar dos Estados Unidos. — Sua voz
ecoou no silêncio da sala. Apesar de estarem relativamente distantes, teve
medo de que ele notasse como seus seios arfavam sob a blusa. Como era
difícil lidar com aquele homem! — A marani me contou que você estava em
Bombaim. Joe Wolfe viajou com você?
O príncipe começou a responder algo sobre aeroporto, indagar o
porquê da sua vinda Julie sentia dificuldades em se concentrar Parecia que ele
lhe dizia palavras ásperas e estava zangado Por quê? Sua vista escureceu e ela
não ouviu mais nada.
Braços fortes a seguraram, impedindo que caísse, e continuaram a
sustentá-la até que, aos poucos, ela foi sentindo a tontura passar. Um aroma

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de almíscar encheu-lhe as narinas, um perfume forte e masculino.
— Está melhor agora? — ouviu-o perguntar. — Deve ser a fadiga
provocada pela longa viagem. Além, é claro, da mudança de temperatura.
Julie fez que sim, sentindo-se relaxar naqueles braços fortes.
— Daqui a alguns minutos você estará bem. Fique em casa e
descanse o resto do dia — ele aconselhou.
— Não sei o que houve. Nunca desmaiei — ela afirmou, como que
se desculpando.
A marani escolheu justamente aquele momento para entrar. Julie
desvencilhou-se dos braços do príncipe, embaraçada com o olhar sorridente
da mulher.
— Priya já sabe que você está aqui, Julie, e manda-lhe as boas-
vindas. — Parou um momento e encarou os dois. A seguir, voltou-se para o
filho: — Julie já lhe contou sobre o fascinante trabalho que a trouxe até aqui?
Deve ser fantástico trabalhar para um jornal tão importante quanto o Courier.
— Uma repórter? — perguntou ele com desdém, voltando os olhos
para Julie. — Não, a srta. Connell ainda não me disse nada sobre seu
fascinante trabalho. — Julie não era nenhuma idiota e percebeu claramente a
ênfase irônica que ele colocou nas duas últimas palavras.
— É por isso que ela está aqui, Jai. Wes Harding, editor do Courier, a
enviou para um trabalho especial. — A marani parecia cada vez mais agitada.
— Você se lembra de Wes, não?
— Acho que sim — respondeu ele, sem desviar o olhar de Julie. —
Não foi o jornalista que conheci quando estudei na Inglaterra? — Sem esperar
resposta, foi mudando de assunto, sempre com os olhos em cima dela. — Já
ouvi dizer que alguns repórteres fazem de tudo para conseguir uma boa
história, mas, sinceramente, nunca acreditei nisso. Isto é, até hoje.
Julie ergueu a cabeça, os olhos azuis soltando faíscas. Ele estava
insinuando que seu desmaio fora um subterfúgio para ela conseguir o que
queria! Ah, que vontade de esbofeteá-lo! Que homem horrível, esse tal de
príncipe, e que visão mais deturpada tinha das mulheres
— Julie veio fazer uma reportagem especial — ouviu a marani dizer.
— Wes me explicou rapidamente ao telefone, e pensei que ela já houvesse
contado tudo a você — acrescentou, ansiosa.
Será possível que aquela mulher tinha medo do filho?
— Não, não disse nada — ele respondeu, dirigindo-se ao sofá onde
deixara o capacete. — Mas, na verdade, ela já pôs mãos à obra.
— Oh, claro — disse a marani, aliviada. — Estou certa de que Julie é

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uma pessoa muito eficiente.
— Muito eficiente — repetiu ele, antes de aproximar-se da mãe e
beijar-lhe a testa. — Agora, você me dá licença, mataji? Tenho um jogo de
pólo logo mais.
— Vamos, querida — disse a marani, logo que o filho deixou a sala.
— Já mandei preparar seu quarto. — Julie engoliu a série de respostas
obscenas que gostaria de dirigir ao príncipe e a seguiu.
— Estou contente por ele estar reagindo tão bem — comentou,
inocente, a mulher. — Jai trata os jornalistas com muita reserva, e por isso tive
medo de lhe contar sobre sua profissão, Julie. — Ela riu. — Não sei por que
ele não deixa que eu e Priya tenhamos contato com repórteres. São todos tão
amáveis só querem uma ou outra notícia para publicar nas colunas
sociais. Mas Jai parece odiar a imprensa — arrematou, balançando a cabeça.
Julie não encontrou o que dizer diante da revelação inesperada.
Estava furiosa. Quer dizer que, além de tudo, o provocante príncipe
Jaiapradesh Mishra detestava a imprensa?

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CAPÍTULO III

Julie acompanhou a marani como que embriagada. Os corredores,


com as janelas em forma de arcos, pareciam intermináveis. Suas pernas
começavam a fraquejar, quando, finalmente, a anfitriã parou em frente a uma
linda porta de madeira entalhada.
— Estes serão seus aposentos — ela disse, enquanto abria a porta.
— Obrigada.
— Imagino que esteja muito cansada. Portanto, sinta-se à vontade.
Mandei lhe preparar um banho, e depois você poderá dormir quanto quiser.
— Agradeço muito. Foi uma longa viagem e me deixou exausta.
— Estou certa que sim. Bem, durma quanto achar necessário. Não se
preocupe com o horário das refeições. Assim que acordar, toque o sininho
que está ao lado da cama e a comida lhe será trazida.
— Obrigada, mais uma vez.
— Sabe, Julie — a marani continuou —, eu a admiro muito pelo que
está tentando fazer; Wes me pôs a par de tudo. Se houver algo em que eu
possa ajudá-la, é só dizer. Quando eu era mais jovem, adotei a doutrina de
Gandhi e seus ensinamentos contra a violência. Acredito numa solução
melhor para os problemas do mundo do que os métodos usados pelos
terroristas. Os ensinamentos de Gandhi não estão sendo levados em conta,
mas acredito que suas palavras e seu exemplo sobreviverão. Quem sabe
ainda veremos um mundo melhor?
— Quem sabe — respondeu Julie, emocionada, agradecendo a ajuda da
boa mulher.
— Eu agradeço por você ter vindo até nós.
Sozinha na suíte, Julie começou a fazer um retrospecto daquele dia.
Reconheceu que não obtivera sucesso no primeiro encontro com o príncipe.
Era preciso tentar novamente e explicar a ele o seu trabalho.
Apesar de se esforçar para pensar racionalmente, não conseguia
deixar de devanear sobre o momento em que o príncipe a segurara nos
braços. Ainda tinha presente a sensação de relaxamento que sentira naquele
breve instante.
— Estou cansada demais para pensar direito — gemeu, impaciente
consigo mesma. — Tudo isso é um absurdo!

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Estava ali para trabalhar e tivera um mau começo com a pessoa mais
importante de sua lista. Se continuasse assim, jamais conseguiria a sua
história. Balançou a cabeça e passou da saleta para o quarto.
O carpete, mesclando tons de azul e rosa, viera das montanhas de
Caxemira, e Julie sentiu prazer em afundar os pés descalços na maciez
daquela lã. As paredes do cômodo amplo estavam cobertas de seda cor-de-
rosa. As janelas, em estilo francês, davam vista para um pequeno terraço
cheio de flores. Caminhando até aquele recanto privativo, saboreou a sombra
generosa da árvore, cujos galhos pendiam, floridos, para dentro do terraço.
Aspirou o doce aroma e entrou novamente, notando que a mobília era de
extremo bom gosto como tudo, aliás, naquele palácio.
Enquanto se dirigia ao banheiro, pensava, fascinada, que aquele
quarto mais parecia ter saído de um conto das mil-e-uma-noites. Tirando a
roupa e mergulhando o corpo na banheira de mármore, mais uma vez
pensou no príncipe, a nota destoante de seu primeiro dia em Nova Délhi.
Quando ele começara a insinuar aquelas coisas desagradáveis, tinha até
sentido vontade de deixar o palácio e se hospedar num hotel qualquer.
Agora, entretanto, em meio ao luxo e ao conforto, o corpo imerso nas águas
perfumadas daquela banheira que mais parecia uma piscina, alegrou-se por
não ter seguido seu primeiro impulso. Ficaria lá, apesar da animosidade do
príncipe. Wes Harding estava certo: ainda que ele não a ajudasse
diretamente, só o fato de ser sua hóspede já lhe abriria muitas portas. Afinal, o
príncipe tinha status perante o governo e as pessoas importantes da Índia.
Os jornais que mantinham correspondentes naquele país
reclamavam que trabalhar ali era tarefa das mais difíceis. Os jornalistas, em
sua maioria, costumavam ficar no estrangeiro por um período de três anos;
na Índia, entretanto, não ficavam mais que dois. Uma das principais razões
era a extrema dificuldade que encontravam no trato com o governo. Num
ambiente como aquele, Julie sabia que não poderia se dar ao luxo de levar em
consideração seus próprios sentimentos. Se o príncipe era hostil, o que
importava? O essencial era que não pusesse empecilho à tarefa que precisava
cumprir.
Bateu de leve o pé na água e ficou observando as bolhas que vinham à
superfície. A atitude de Jai Mishra não tinha nada de excepcional, pois não era
raro que membros dos mais altos escalões tivessem um relacionamento
distante com a imprensa. Sabia que muitos dos seus colegas faziam de tudo
para invadir a privacidade de personalidades públicas somente à cata de
fofocas. Vez ou outra, um escândalo social surgia como um prato cheio para

21
alimentar o noticiário. Como então deixar de dar razão àquelas pessoas?
Todos têm em suas vidas um lado que preferem manter resguardado; às
personalidades importantes, esse direito era sempre negado.
Como aristocrata e herdeiro de uma imensa fortuna, Jai Mishra
obviamente deveria ter sido vítima dos repórteres desde a infância. Todavia,
tinha esperanças de mudar a opinião dele a respeito dos jornalistas. Afinal,
ela era uma repórter séria e responsável, com uma missão da maior
importância. Ou será que ele não consideraria importante os artigos que ela
escreveria, detalhando as operações de uma rede secreta de terroristas
internacionais? Como qualquer ser humano, o príncipe deveria querer que
tais assassinos fossem capturados.
Cansada demais para desfazer as malas, Julie resolveu deitar-se nua
sobre a enorme cama. Que delícia sentir os lençóis frios sob suas costas!
Relaxada, olhou para cima, observando o amplo dossel de seda que ornava o
leito. Com um suspiro preguiçoso, virou-se de bruços, sentindo os mamilos
roçarem nos lençóis de algodão, e afundou a cabeça nos travesseiros. Ainda
que o sol estivesse brilhando lá fora, convidando a um passeio pelos jardins
do palácio, só queria saber de dormir. Além do cansaço normal da longa
viagem, não se havia adaptado ainda à mudança dos fusos horários, já que,
em Nova York, era alta madrugada. Exausta, adormeceu num instante.

Muitas horas depois, abriu os olhos e deparou com a figura de uma


jovenzinha que a observava timidamente.
— Bom dia, srta. Connell. Meu nome é Sukundala — apresentou-se a
garota com um sorriso. Julie notou que era de baixa estatura e de pele
escura, típica hindu do sul do país. — Deseja tomar o café da manhã agora?
Antes de deixar os aposentos, a moça preparou-lhe o banho, e Julie,
revigorada pelo sono, entregou-se às delícias daquela água morna e
perfumada. Procurou entre suas roupas algo leve e optou por um vestido
branco de algodão. Quando se inclinou para fechar a mala, deparou com um
exemplar do Courier esquecido numa das divisões. Desdobrou-o e sentou-se
na cama, os olhos fixos na foto tirada há algumas semanas. O local era Roma e
Julie parecia estar vivendo aquela cena novamente. A estação ferroviária
havia sido bombardeada numa hora de grande movimento. Novamente, ela
sentiu o cheiro de queimado entrar-lhe pelas narinas e um gosto amargo na
boca. Por quanto tempo a lembrança daquele dia continuaria a atormentá-la?
Leu a notícia que ela própria escrevera e que ganhara a primeira
página do jornal:

22
"Horrorizando até mesmo os mais radicais opositores do governo,
terroristas explodiram hoje, simultaneamente, quatro bombas numa das mais
movimentadas estações ferroviárias de Roma. As explosões, que ocorreram
durante o período de maior fluxo de passageiros, mataram pelo menos
setenta e cinco pessoas e mutilaram outras cem. A organização terrorista mais
atuante da Itália; as Brigadas Vermelhas, assumiu a responsabilidade do
atentado".
Entretanto, ver seu trabalho publicado na primeira página não lhe
dava a menor satisfação. Só conseguia pensar no desespero das pessoas, nos
gritos de dor que ecoavam por toda a parte, nos corpos carbonizados que se
espalhavam entre os escombros da estação
Olhou mais uma vez para o jornal. Será que aquele mesmo grupo
poderia estar agindo na Índia? Sabia que as organizações terroristas faziam
um intercâmbio ao redor do mundo. Poderia ser que o mesmo grupo que
agira em Roma tivesse sido "convidado" a atuar na Ásia. Certamente agora,
em algum lugar da Índia, eles estariam planejando o próximo passo.
Como impedi-los? A única saída seria segui-los até o fim e
desmascarar seus planos antes que se concretizassem. Mas era preciso chegar
até as pessoas certas ou tudo estaria perdido. Claro que esse não era um
trabalho para ela; os serviços de informação estavam muito mais habilitados a
cumprir esse tipo de tarefa. Mesmo assim, quantas vezes a verdade não
viera à tona graças à investigação de algum repórter obstinado e inteligente?
Julie sorriu. Por que a grande maioria dos jornalistas políticos
apresentava uma faceta de detetive? Lembrou-se dos conselhos de muitos de
seus colegas, que a criticavam por envolver-se tanto em cada reportagem.
Fred Grason, correspondente do Courier no Oriente Médio, uma vez lhe
dissera:
— Julie, você pode fazer uma reportagem sem amar ou odiar os
participantes dela. Olhe para mim. Quanta coisa não tenho visto, e no entanto
não levo nada para minha vida particular!
Mas Julie não conseguia dividir sua vida em duas partes:
profissional e particular. As duas eram uma coisa só. E, além do mais, o
trabalho era sua própria vida. Principalmente depois da morte de Eddie.
Inquieta, levantou-se e caminhou até o terraço. Assim que pôs os pés
para fora, a brisa da manhã envolveu-a por inteiro. Respirou
profundamente. Seus olhos correram o extenso gramado, além das árvores
distantes, onde conseguiram avistar um brilho dourado. Os tigres de
bronze

23
Sua vida sentimental havia realmente terminado com a morte de
Eddie? Se ele tinha sido tão importante assim, por que hesitara tanto em
aceitar seu pedido de casamento? Na verdade, sempre sonhara em ter uma
família
Quando tinha doze anos, vira a mãe morrer de câncer. Órfã de pai
desde o primeiro ano de vida, não tinha mais ninguém a não ser uma tia,
irmã de sua mãe. Tia Agnes, zelosa de suas obrigações, acolheu a sobrinha em
sua casa mas dispensou os carinhos. Não que não fosse boa pessoa. Era
apenas uma mulher fria, que aprendera desde cedo a esconder as emoções.
Além do mais, tinha sua própria família para cuidar, uma família da qual
Julie nunca sentiu o calor, embora tivesse vivido em seu seio durante cinco
anos.
Julie evitou pensar naqueles anos da adolescência, tão cheios de
angústia. Sensível e meiga por natureza, nunca fora capaz de entender a
frieza aparente da tia. Só depois de adulta foi que reconheceu que tia Agnes a
tratava do mesmo modo que aos outros. Naquele tempo, todavia, só e
desamparada após a morte da mãe, interpretara aquela ausência de emoções
como rejeição.
Na escola, aprendeu a canalizar para si a atenção dos professores e,
quando ganhou uma bolsa de estudos, mudou-se para a universidade. Ainda
que o dormitório não fosse grande coisa, pelo menos era o seu cantinho; lá
sentia-se outra pessoa, mais livre e amada pelos colegas, que passaram a
constituir a sua família.
Foi no último ano da faculdade, no Colorado, que conheceu Eddie
Bryce, enquanto ele filmava uma cena no campus universitário. Julie o
entrevistara para o jornal da universidade e ele a convidou para sair. Aquele
foi o começo de sua nova vida. Durante os quatro anos que passaram juntos,
Eddie havia sido pai, mãe, amigo e namorado, preenchendo toda a carência
afetiva dela. Quando ele morreu, ela fechou o coração, decidida a não se
envolver com mais ninguém, temendo que a morte se insinuasse outra vez
em seu destino.
No pesadelo que se seguiu à perda de Eddie, mudou-se para Nova
York, empregando-se no Courier, e, desde então, concentrou todas as energias
no trabalho.
O ruído de um motor chamou-lhe a atenção. Avistou, a distância, o
carro vermelho do príncipe Jai, que entrava na propriedade, estacionando
segundos depois à frente do palácio. Mais um pouco e reconheceu a figura
alta e o porte atlético do homem que saía do automóvel. Como se algo o

24
atraísse, o príncipe parou nos primeiros degraus e olhou diretamente para o
terraço onde ela se encontrava. Não fez, entretanto, o menor sinal para
cumprimentá-la. Julie não esquecera o que se passara no dia anterior. Pelo
visto, nem ele.
Baixando o olhar, Julie notou que havia esmagado uma flor que
trazia nas mãos. Aquele homem era impossível. Afinal de contas, ela não
escrevia para a coluna de fofocas do jornal; ao contrário, tinha uma razão
legítima para estar ali. Ainda que o príncipe fosse um homem bonito,
atraente, não deveria passar de um tremendo convencido, se julgava que
todas as mulheres estavam dispostas a fingir um desmaio só para chamar-lhe a
atenção.
Nem bem terminou esse pensamento, recordou o que sentira no
aeroporto, ao vê-lo pela primeira vez. Não chegara a desmaiar, é certo, mas
estivera perto. Era como se um ímã invisível a atraísse para os braços dele.
"Ora, isso foi antes de conhecê-lo", pensou, tentando encontrar uma
desculpa. Deixou cair a flor e entrou no quarto.
Estava tomando café na saleta quando alguém bateu levemente à
porta. Assim que atendeu ao chamado, mandando que entrassem, uma jovem
esbelta e de cabelos negros apareceu e se encaminhou até onde ela estava.
Movia-se com graça e tinha um brilho de timidez nos olhos e no modo como
sorria.
— Bom dia, srta. Connell. Sou Priya, filha de marani. Pensei que
talvez gostasse de companhia, enquanto toma seu café da manhã.
— Quanta gentileza! — Julie agradeceu, oferecendo-lhe uma
cadeira, e, com um sorriso amigo, pediu: — Que tal deixarmos as
formalidades de lado e nos tratarmos simplesmente pelo primeiro nome?
— É uma ótima idéia — respondeu a garota, enquanto se sentava ao
lado dela. Os olhos grandes refletiam meiguice e, ao mesmo tempo,
esperteza. Uma beleza clássica, pensou Julie. A pele alva e os traços
aristocráticos eram, na certa, herança de seus ancestrais indo-arianos.
— Que lindo sari você está usando! — comentou, admirando o
tecido de seda bordado com fios de ouro. A princesa ficava muito bem
naquele traje.
— Você gosta? — Priya abriu um sorriso de contentamento. A voz
melodiosa lembrava a da mãe. — Pois então vou lhe dar um de presente!
— Oh, não, por favor, não se preocupe!
— Ora, por que não? Mamãe já disse que você ficará algum tempo
conosco, e por isso sairemos bastante. Você vai adorar o meu país, tenho

25
certeza. Não gostaria então de levar uma lembrança do que temos de mais
típico em matéria de vestimenta?
Julie afinal concordou, e começou a ouvir, interessada, os planos que
Priya tinha em mente para aquela estada na Índia. Era inacreditável que uma
menina tão delicada e atenciosa fosse irmã de um homem arrogante como o
príncipe Mishra. A única coisa que pareciam ter em comum era a beleza: ela,
feminina e delicada, ele, de uma presença máscula e dominante. Priya
deveria ter nascido quando a marani não era mais tão jovem, Julie calculou,
pois a princesa era muito mais nova que o irmão.
Como se estivesse lendo os pensamentos dela, a jovem perguntou:
— Você já conhece meu irmão Jai, não é?
— Conheço — confirmou, evitando demonstrar a ansiedade que a
dominara diante da simples menção daquele nome. Pelo jeito como a
princesa falava quando se referia a ele, era evidente que o adorava. Por isso,
Julie se surpreendeu com o que ouviu a seguir.
— Estou tão zangada com ele! — Priya exclamou em tom de desafio.
— Eu achava que Jai era o melhor irmão do mundo, mas agora não estou tão
certa disso.
— O que aconteceu, Priya? — Julie quis saber, mais por educação, ao
notar o olhar triste da princesa.
— Casamento — foi a resposta desanimada.
— Como? — ela perguntou, sem entender. — Quer dizer que ele é
casado? Eu não sabia, sua mãe não
— Não, ele não. Estou me referindo ao meu casamento.
— Ah! — Sem saber por quê, Julie suspirou, aliviada. Na verdade, o
que importava se ele fosse ou não casado? No que dizia respeito a ela, o
príncipe poderia ter quantas mulheres quisesse. Só então se deu conta de que
estivera calada por tempo demais. — Não sabia que você era casada, Priya. A
marani não comentou nada comigo.
— Você não está entendendo, Julie. Eu não sou casada. Sou isto é,
tenho um contrato de casamento.
— Acho que não estou entendendo, Priya — disse ela, pondo a
xícara no pires. — Um casamento por interesse, você quer dizer?
— Exatamente! Interesse de Jai, naturalmente, não meu. Ele acertou
tudo sem me consultar. Quanto a mim, só fiquei sabendo há poucos dias.
— Que coisa! Eu não sabia que casamentos arranjados ainda eram
costume na Índia!
— Oh, sim. Ainda existem, especialmente entre as famílias mais

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tradicionais. Normalmente, o casamento é tratado por um amigo comum às
duas famílias.
— É incrível! Mas diga-me uma coisa: o que acontece quando uma
pessoa não está apaixonada pela outra?
— O casamento aqui não significa tanto a união de duas pessoas, e
sim de duas linhagens. Isto é o mais importante. A mulher passa a viver com a
família do marido e por isso é muito importante que se dêem bem. — Priya
continuava a explicar tudo como se não tivesse dúvidas quanto à validade da
instituição. — Muitas vezes, os noivos só se conhecem no dia do casamento.
— Quer dizer que eles não têm escolha?
— É justamente aí que está o ponto. Veja bem: a noiva não tem o
direito de dizer nada, no caso de não possuir fortuna, pois os pais estão
somente pensando no seu bem-estar. Acho esse um procedimento louvável,
só que o meu caso é diferente. Eu não preciso me preocupar com dinheiro;
temos uma grande fortuna. Não entendo por que Jai fez isso comigo, sem
saber se eu tinha alguma preferência. — Julie notou que Priya estava ao mesmo
tempo furiosa e intrigada com a atitude do irmão.
— Nesse caso, por que você não fala com a marani sobre isso?
Certamente, como mulher, ela vai entendê-la. Afinal de contas, ela é sua mãe!
A jovem deu um sorriso amargo, sem tirar os olhos da colher de
prata que tinha entre os dedos.
— Na Índia, o homem mais velho da família é quem toma todas as
decisões. Com a morte de meu pai, Jai passou a ser o chefe da casa. É dever
dele cuidar de meu futuro. À mulher hindu só resta obedecer: primeiro ao
pai, depois ao marido e, finalmente, ao irmão. Minha mãe não poderia ir
contra a decisão de Jai, mesmo sabendo quanto infeliz eu possa estar. — Após
uma pausa, Priya acrescentou, voluntariosa: — Mas isso não vai acontecer
comigo. Ninguém pode dizer o que é melhor para mim, nem mesmo meu
irmão. Oh, por favor, desculpe-me! — E levantou-se de repente, saindo às
pressas do quarto.
Julgando que a jovem gostaria de ficar um pouco sozinha, Julie
respeitou seu desejo, resolvida a procurá-la logo mais e oferecer-lhe apoio.
Quanto mais pensava, menos entendia as emoções conflitantes de Priya. Ela
parecia aceitar a idéia de um casamento contratado como algo natural —
certamente crescera ouvindo aquilo. Entretanto, quando chegava a sua vez, se
revoltava.
A não ser que estivesse apaixonada por alguém Não, seria muito
difícil imaginar aquela jovem reclusa tendo oportunidade de conhecer outras

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pessoas. Mas, se realmente ela estava gostando de outro homem, por que não
mencionava o fato ao irmão? Ou será que poderia ser alguém que o príncipe
não aprovaria de modo algum? Nesse caso, pobre Priya!

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CAPÍTULO IV

Terminado o café, Julie começou a remexer na mala à procura do


que vestir. Com tantas coisas a fazer, não estava nem um pouco inclinada a
pendurar suas roupas. Tirou da mala um vestido azul-marinho e deu-lhe
uma sacudida.
— Exatamente como a vendedora disse: este tecido não amassa —
constatou, satisfeita.
O cinto branco dava um toque esportivo e jovial ao traje. Uma
rápida olhada no espelho e sorriu, segura de sua beleza.
Saiu do quarto levando o caderno de anotações. Estava justamente
imaginando onde poderia encontrar a marani quando Sukundala se
aproximou.
— Trago um recado do príncipe, srta. Connell. Ele deseja vê-la em
seu escritório agora, isto é, se não tiver nenhum compromisso para esta
manhã.
— Está bem, obrigada — respondeu, imaginando que aquele seria
um bom começo para o seu dia. Era ótimo que Jai Mishra quisesse vê-la,
considerando o mau humor com que tratava a imprensa.
— Nesse caso, queira seguir-me, senhorita. Eu a conduzirei à ala
onde fica o escritório do príncipe.
Cinco minutos mais tarde, Julie encontrou-se numa sala ampla com
janelas que iam do chão ao teto e que davam vista para o jardim. O tapete
castanho-avermelhado combinava em matéria de bom gosto com os móveis
em madeira de lei, talhada a mão. O fabuloso lustre que pendia no meio da
sala completava o luxo do ambiente.
Entretanto, por mais luxuosa que pudesse parecer, a sala tinha todas
as características de um escritório. Estantes repletas de livros se alinhavam
nas paredes. Vários mapas e um igual número de plantas de edifícios
cobriam um enorme quadro de avisos. Um homem, com certeza secretário do
príncipe, trabalhava sobre uma máquina de escrever na saleta contígua. Julie
reconheceu o barulho frenético de uma máquina de telex, vindo de outra sala.
No centro do escritório, atrás de uma escrivaninha, o príncipe a
observava.
— É tudo, Hari. — O secretário se levantou e saiu. — Sente-se, srta.

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Connell — disse ele, apontando uma cadeira em frente à escrivaninha.
Ela atravessou a sala, intimidada por aqueles olhos que não perdiam
seus movimentos, e sentou-se no lugar indicado.
— Conte-me sobre seu trabalho — continuou o príncipe assim que
Julie se acomodou.
— Pois não. Sou correspondente do Courier, jornal de Nova York.
Especializei-me na cobertura de fatos internacionais, principalmente aqueles
que transcendem as fronteiras de um único país; fatos que ocorrem
simultaneamente em várias nações e que estão, aparentemente, interligados.
Estou aqui em missão especial.
— Que missão? — O tom rude não indicava a menor disposição em
ajudá-la, nem mesmo interesse pelo que ela pudesse dizer. Julie ficou
amedrontada com o exame crítico a que estava sendo submetida.
— Terrorismo internacional — respondeu, esperando que, ouvindo
aquilo, o príncipe mudasse de tom. A expressão dele, entretanto, continuou a
mesma, embora ela detectasse um brilho diferente naquele olhar alerta.
— Mas o que sabe sobre os terroristas? Todos os movimentos deles
até agora têm sido extremamente cautelosos.
— Temos um contato em Bombaim. Foi ele quem nos enviou um
comunicado sobre os rumores de uma certa reunião
— Reunião?
— Uma reunião de cúpula entre terroristas internacionais, que
deverá acontecer em algum lugar ao norte da Índia, possivelmente Nova
Délhi. Meu editor considerou este fato da maior importância e me mandou
até aqui, pressentindo que não se trata de um simples boato.
— Seu editor pode estar certo. — Jai continuava a observá-la em
silêncio, sem o cinismo de antes. O interesse dele era evidente. — Por que
mandou você e não outra pessoa? — perguntou afinal.
— Era lógico e justo que eu fosse a escolhida, pois venho cobrindo
todos os atentados terroristas há muitos meses.
— Onde?
— Inglaterra. França. Três semanas atrás, Roma. Os
olhos dele se arregalaram, assombrados.
— Ah, sim! A estação de trens!
— Exato. — Julie sentiu a voz tremer. Era impossível pensar naquele
dia horrível sem Fechou os olhos por um momento.
— Aquela deve ter sido uma tarefa desagradável para você, posso
imaginar. — A voz de Jai havia perdido a frieza habitual. Era quase

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confortadora.
— De fato — Julie confirmou, abrindo os olhos e encontrando os
dele. — Não foi nada agradável.
O príncipe se levantou e caminhou até uma das janelas. Ela o seguiu
com o olhar e contemplou-o em silêncio. O príncipe ficou alguns instantes de
costas, aparentemente entretido em observar o jardim. O modo como
mudava de humor tão rapidamente a intrigava e, ao mesmo tempo, a deixava
fascinada. Num primeiro momento era frio e distante; no minuto seguinte,
parecia compreensivo e amigável. Que pena não poder escrever um artigo
sobre ele, pensou.
Jai Mishra afinal se voltou.
— Gostaria de beber alguma coisa? Limonada, talvez? É um ótimo
antídoto para o calor.
— Obrigada. — Era inevitável que a referência ao calor trouxesse a
lembrança do que acontecera no dia anterior: os braços dele amparando-a, o
perfume de almíscar Julie estremeceu.
Jai parecia ter adivinhado aqueles pensamentos, pelo modo como a
encarava.
— Por que não continuamos a conversa aqui, próximos à janela?
Sentada numa cadeira confortável, tendo às mãos um copo de
limonada, Julie admirava o cenário lá fora.
— As rosas se dão muito bem aqui — comentou. — Nunca vi
tamanha variedade.
— Elas gostam de sol — disse ele, recostando-se no espaldar. — E
isso temos em abundância.
Julie sorriu e levou o copo aos lábios. Ondas de calor oscilavam a
distância, além das árvores. O gramado ao redor do palácio, entretanto,
parecia fresco e úmido. Ela descansou o copo na mesinha.
— Presumo que tenha seu próprio serviço de informações, príncipe
Mishra. De que outro modo poderia estar tão a par das atividades terroristas?
— Você sabe do perigo que a rodeia nesta missão? — perguntou ele,
ignorando o comentário.
Ela sorriu.
— O jornalismo é uma profissão que tem seus riscos, não sabia?
Existe um perigo potencial por trás dos fatos, até mesmo daqueles
considerados rotineiros. Nunca se sabe, por exemplo, o que as pessoas
poderão fazer para evitar que certas informações se tornem públicas.
— Todavia, no caso do terrorismo, este perigo é ainda maior, não

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lhe parece?
— Concordo — Julie respondeu. — Mas, nesse caso, os veículos de
comunicação são essenciais para que as atividades terroristas cheguem ao
conhecimento do maior número possível de pessoas. Entrevistei alguns
especialistas do Departamento de Estado norte-americano. Segundo eles, o
objetivo principal das organizações terroristas é chamar a atenção do mundo.
Os esquadrões escolhem suas vítimas tendo em mente o impacto que
poderão causar na opinião pública. O seqüestro que cobri na Inglaterra, por
exemplo. Acho que os terroristas queriam desmoralizar os ingleses, cada vez
mais sobrecarregados por problemas econômicos. O que fizeram, então?
Seqüestraram e assassinaram um estadista querido pela população. Acredito
que a pessoa em si não tinha a menor importância. Para eles tanto fazia este
ou aquele político. O que contava, isto sim, era o efeito do seqüestro. E
alcançaram seu objetivo, pois uma onda de desamparo tomou conta da
maioria da população.
Julie respirou profundamente, tentando relaxar. Aquela ainda era
uma lembrança horrível. Como ficara angustiada! Como se sentira inútil e
impotente naquela ocasião!
— Se acha que os terroristas serão complacentes com você só porque é
da imprensa está sendo muito ingênua, srta. Connell.
— Eu tenho acompanhado o trabalho deles — Julie replicou com
frieza, sentindo-se atingida em seu orgulho profissional. — Não pense que os
estou subestimando. Sei muito bem da falta de humanidade que norteia todas
as ações terroristas, principalmente depois de tudo o que presenciei.
Uma fagulha brilhou nos olhos do príncipe. Homem orgulhoso, Jai
respeitava essa característica nas pessoas.
— No entanto, você é convidada de minha mãe. Não posso permitir
que se exponha a qualquer perigo enquanto estiver sob este teto.
Julie já ouvira coisa parecida da boca de outros homens. Por que
sempre consideravam a aventura e o perigo como domínio exclusivo deles?
— Eu sei tomar conta de mim — declarou. — Não me arrisco
facilmente. Além do mais, na maior parte do tempo meu trabalho é tédio,
com um ou outro lance emocionante
— Existem outras pessoas envolvidas além de você — ele
interrompeu com firmeza. — Ou pensa que tais organizações se satisfazem
com um único crime? Não percebe que, através de você, eles podem chegar
até minha mãe ou minha irmã? Acha que resistiriam a uma oportunidade
dessas?

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Um siiêncio pesado caiu entre eles. Jai Mishra recostou-se na
cadeira, ofegante. Para Julie era difícil pensar, tendo aqueles olhos sobre si.
Um olhar que parecia ler dentro dela, que a excitava. Jamais esqueceria a
atração que havia sentido por ele, tanto no aeroporto como no momento em
que a marani os apresentara. A lembrança daquela emoção súbita, que ela era
incapaz de definir, persistia em sua mente, embora soubesse que aquele
relacionamento deveria ser estritamente profissional.
— Não acha que está indo longe demais? — perguntou, desviando o
olhar para algumas roseiras que começavam a florescer. — Em primeiro
lugar, ainda não tenho qualquer informação precisa, a não ser a de que o
grupo pretende se reunir em algum lugar deste país. O que espero é que —
fez uma pausa e olhou para o príncipe — você me ajude. — Respirou fundo e
continuou: — Em segundo lugar, admito que os terroristas estejam cautelosos
quanto a minha presença aqui; sei que eles não perdem de vista os jornalistas
que escrevem sobre suas atividades. Mas não me acho tão perto de desvendar
os planos deles para que possa me sentir ameaçada. Combinei com meu
editor que, para todos os efeitos, estou aqui para escrever sobre o
estreitamento das relações da Índia com a União Soviética. Esse trabalho
envolveria o mesmo tipo de pesquisa: entrevistar pessoas do governo, buscar
informações nas embaixadas e assim por diante. Por enquanto acho que não
corro perigo algum. Mas, assim que você julgar que por minha causa sua
família corre perigo, eu me mudarei imediatamente para um hotel.
Jai Mishra pareceu se acalmar.
— Você deve compreender, Julie, que sua presença aqui não pode
pôr em risco a vida de minha família, que já se encontra bastante ameaçada.
Ela o encarou, admirada. Pela primeira vez o príncipe a tratava por
"Julie", num tom de voz quase afetuoso. Como ele a deixava insegura! Nunca
sabia se o que iria dizer a seguir o agradaria ou o deixaria irritado. "Ele
respeita a coragem", lembrou-se das palavras de Wes Harding e perguntou a si
mesma se Jai estava impressionado com o fato de ela enfrentar terroristas ou
de enfrentar a ele próprio. Nem Julie sabia qual das duas coisas exigiria maior
coragem! Mas o príncipe, apesar de tudo, acabava de lhe dar uma primeira
pista e era preciso aproveitá-la.
— Quer dizer que sua família corre perigo, príncipe Mishra?
— Pode me chamar de Jai. — Julie apreciou o sorriso que deixava a
mostra os dentes muito brancos. Isso era surpreendente para um homem que
todos sabiam ser reservado. — Minha família é o alvo natural de qualquer
ataque terrorista. Pense bem: em primeiro lugar, sou um membro da

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aristocracia. O plano revolucionário sempre tem por base substituir a velha
ordem. Ainda que agora meu título seja somente uma cortesia, já que não
possuo reinado algum, livrar-se de mim seria o primeiro passo para uma
revolução. Em segundo lugar, tenho poderes dentro do governo e uso de
minha influência para fazer oposição à interferência de outros países nos
assuntos que só dizem respeito à Índia. Sei que podemos ir adiante sem
depender das nações ditas desenvolvidas. Temos nossas reservas naturais.
Temos o povo. Temos a sabedoria de nossos ancestrais e podemos contribuir
cultural e espiritualmente para o bem-estar do mundo. Em vez de ver a Índia
na dependência dos Estados Unidos ou da União Soviética, gostaria de ver
meu país usar sua influência para equilibrar as duas superpotências,
ajudando a preservar a harmonia da humanidade.
Julie sentiu-se agradavelmente surpresa. Presumira desde o início
que Jai, assim como a maioria das pessoas, só se interessava pelos problemas
que o afetavam diretamente. Agora, entretanto, constatava que, sob aquela
máscara de cinismo, havia um homem que se preocupava com a defesa dos
ideais que não eram somente dele, mas de todo um povo.
— Desse modo — continuou ele —, esta é mais uma razão para que
os grupos terroristas se voltem contra mim, contra aquilo que represento. Sou
um entrave aos avanços desses grupos dentro do governo. Há, por exemplo,
aqueles que pensam que a Índia seria um satélite ideal de qualquer
superpotência. Ora, eu sou um dos maiores industriais do país e,
conseqüentemente, emprego um grande contingente de mão-de-obra.
Portanto, destruir a mim ou a minhas indústrias equivaleria a golpear o
capitalismo dentro deste país. As milhares de pessoas que ficariam sem
emprego estariam propensas a se voltar na direção de qualquer ideologia que
lhes assegurasse melhores condições de vida. É muito fácil para as forças
revolucionárias arrebanhar a massa insatisfeita, sem trabalho e sem
perspectiva.
— Qual é então seu interesse específico em relação aos terroristas?
— Sou inimigo deles.
Ela recuou instintivamente. A ameaça velada na voz do príncipe era
um alerta. Alegrou-se pelo fato de estarem do mesmo lado, pois ele seria um
adversário implacável.
O príncipe voltou a encará-la.
— Você pretende escrever um artigo sobre esta nossa conversa?
— Não propriamente. Estou cobrindo as atividades terroristas.
Quando os grupos entrarem em ação ou mesmo quando o governo tomar

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medidas concretas, farei minha reportagem. As informações que vierem por
seu intermédio, eu as usarei parcialmente, à medida que se fizer necessária
uma explicação mais detalhada sobre o terrorismo
— Você fala como uma verdadeira profissional.
Naquele momento, a porta se abriu e Priya entrou.
— Bom dia — cumprimentou o príncipe. — A que devo esta honra?
— O tom de voz dele era alegre e afetuoso.
Um olhar rápido, misto de dor e esperança, brilhou no rosto da
jovem. Então, deliberadamente, ela se voltou para Julie, ignorando o irmão.
— Mamãe e eu vamos às compras daqui a pouco, Julie. Gostaríamos
que viesse conosco. Depois, poderemos almoçar no Ashoka Hotel, se você
concordar.
— Um programa excelente, Priya — respondeu Julie, entusiasmada.
Aquela seria uma ótima oportunidade para conhecer alguns pontos da
cidade. — É muita gentileza de vocês me incluírem no passeio.
— Mamãe está no salão amarelo. Você poderá nos encontrar lá
assim que estiver pronta.
— Está bem, obrigada.
A princesa deixou a sala sem ao menos olhar para o irmão. Assim
que ela saiu, Julie se voltou para ele, que continuava impassível, sem
demonstrar a menor irritação diante do ocorrido. Julie parecia mais
embaraçada do que ele. Como se adivinhasse seus pensamentos, Jai acabou
por dizer:
— Guarde sua solidariedade para outra ocasião. As mudanças de
temperamento de uma adolescente mimada não me afetam em nada.
— Pois talvez devessem — ela disse impulsivamente.
Mal acabou de falar, se arrependeu. Antes que pudesse reagir, o
príncipe estava a seu lado, segurando-lhe o braço com firmeza. O aroma de
almíscar a atordoava, mas não conseguia pensar qualquer coisa com aqueles
dedos apertando sua carne a ponto de machucá-la.
Fez um movimento, tentando se soltar; foi impedida, pois Jai a
apertou com mais força ainda. Pior do que a dor era a sensação de
atordoamento que começava a invadir-lhe o corpo. Aquela proximidade a
desarmava.
— Não ouse me aconselhar sobre como agir dentro de minha
própria casa, Julie. — A voz dele era calma, mas os olhos soltavam faíscas de
ira. — Não admito interferências em assuntos de família. Você chegou há
menos de dois dias, o que ainda não lhe dá tempo para nos conhecer direito.

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— Estou aprendendo depressa.
Para sua admiração, o príncipe começou a rir, e, lá no fundo
daquelas pupilas negras, Julie detectou uma chama misteriosa. Afinal, ele
soltou-lhe o braço.
— Começo a pensar que há algumas coisas que gostaria de ensinar a
você — ele comentou.
Julie saiu do escritório sem dizer mais nada. Encontrou o salão
amarelo por acaso e entrou. De fato aquele era um nome apropriado: a sala
era clara e arejada, iluminada pelos raios de sol que entravam pelas janelas. A
decoração fora feita na base do amarelo e dourado, nos mais diversos tons.
Desse modo, as almofadas de veludo sobre os sofás se harmonizavam
perfeitamente com o carpete creme que cobria o assoalho. Vasos com rosas
amarelas ornamentavam a sala, espalhando uma fragrância suave.
A marani estava sentada à mesa de mármore, onde acabara de fazer
sua primeira refeição.
— Bom dia — cumprimentou com um sorriso assim que Julie
entrou. — Dormiu bem?
— Muito bem — respondeu, sentando-se ao lado de sua anfitriã. —
Obrigada por ter mandado servir o café em meu quarto. Priya foi um amor
em me fazer companhia. Sua filha é muito bonita.
A marani deu uma risada simpática.
— Bem, não poderia ser de outro modo. O nome dela quer dizer
"bonita" em nossa língua. Talvez, para fazer jus ao nome, ela tenha crescido
tão bela assim. Na Índia, acreditamos que o som exerce grande influência na
natureza. Por isso nossos sacerdotes entoam cânticos quando lêem as
escrituras védicas. O som dos hinos antigos já é suficiente para elevar as
mentes de todos aqueles que os ouvem sempre, ainda que não entendam o
significado das palavras.
— Em que língua são escritas as escrituras? — Julie perguntou,
intrigada. Lembrava-se de ter lido algo sobre plantas que se desenvolvem ao
som da música. Poderia ser possível, então, que certos sons fizessem o ser
humano crescer em saúde e espiritualidade. Certamente, o oposto deveria ser
verdadeiro: ruídos desagradáveis, como os existentes nas grandes cidades,
seriam responsáveis pelos stress e pelo esgotamento nervoso.
— Nossas escrituras são chamadas Vedas — explicou a marani — e
são escritas em sânscrito. Veda quer dizer conhecimento. Você se interessa
pela cultura hindu, Julie?
— Muito. Sempre gostei de ler a respeito, por ser tão diferente da

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cultura ocidental. Sabe, nunca sonhei que um dia estaria vendo tudo isso de
perto.
A marani sorriu.
— Você aprenderá que muito de nossa cultura não pode ser visto.
Os hindus quase não constroem templos ou monumentos. É portanto uma
cultura preservada nas tradições, na mente e no coração do povo. E, acima de
tudo, na recitação dos Vedas.
— A senhora parece muito versada nessas tradições.
— Mesmo? Bem, até as crianças são capazes de saber as histórias
narradas nos Vedas. Nos feriados e celebrações são comuns as representações
de episódios narrados pelas escrituras. E os homens aprendem desde cedo a
recitar os versos védicos.
— As mulheres não?
— Este é um privilégio masculino. A responsabilidade da mulher é
preservar o darma da família, os preceitos morais e religiosos que permitem o
florescimento das virtudes.
— Como ela faz isto? — Julie estava cada vez mais interessada.
— Através da pureza de sua vida e das luzes do espírito. Porque ela
é a mãe, a força de todos os outros será proveniente de sua força. Priya me
contou que, nas escolas da Europa, suas amigas consideram as mulheres da
Índia como cidadãs de segunda classe. Em alguns pontos, sou forçada a
concordar. Mas, por outro lado, a tarefa principal, que é promover o bem-
estar de nossa sociedade, é confiada a nós. Agora diga-me: você e Priya
conversaram?
Julie hesitou ao lembrar-se de como a conversa fora interrompida,
com a garota saindo em lágrimas do quarto.
— Achei ótimo conversar com ela — respondeu. Gostaria de tocar
no assunto do casamento e fazer com que a marani intercedesse em favor da
filha. Mas não quis ser precipitada. Entretanto, nem foi preciso qualquer
esforço de sua parte para introduzir o assunto na conversa.
— Priya lhe contou que está prestes a se casar? — Os olhos da boa
mulher brilhavam de felicidade. — Jai já arranjou tudo. O noivo vem de uma
das melhores famílias da Índia.
— E ela está contente com a escolha do irmão? — perguntou,
cautelosa.
A marani assumiu um ar grave.
— Ela deveria ser a mulher mais feliz do mundo. Prakash Das é um
ótimo partido. Seus ancestrais fazem parte da história da Índia. Ele foi

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educado nas melhores escolas e, ao que dizem, é um rapaz muito bonito.
— Priya já o conheceu?
— Não, mas isto não é tão raro entre nós. A família dele não vive em
Nova Délhi, o que dificultou o conhecimento entre eles. Priya está furiosa
com Jai, mas meu filho diz que ela logo se acostumará à idéia, pois ainda está
impressionada com os valores ocidentais. Por isso fiquei um pouco
apreensiva quando Wes Harding pediu que hospedasse uma jornalista. Tive
medo que Jai pensasse
— Que eu pudesse influenciar Priya? — Julie completou. Então era
por esse motivo que a marani parecera tão pouco à vontade no primeiro dia!
— Sim, mas agora está tudo bem. Assim que a vi, compreendi que
seria uma ótima companhia para minha filha. Você é uma pessoa terna, Julie, e
fico muito contente que esteja entre nós.
— Obrigada — ela respondeu, sensibilizada. Entretanto, estava certa
de que Jai não pensava do mesmo modo.
"Ele não só me considera uma repórter abelhuda, como também
uma péssima influência para a irmã", refletiu.
— De qualquer modo, Jai não poderá culpá-la pelas atitudes de
Priya, uma vez que ela já andava revoltada antes de você chegar.
— A senhora não acha que um casamento contra a vontade é um
bom motivo para andar revoltada?
— Você não está entendendo, Julie. Priya passou os últimos dois
anos implorando a Jai que lhe arranjasse casamento. Ele não quis,
naturalmente, por considerá-la jovem demais. Quando, há alguns dias, ele
veio com a notícia, todos pensamos que ela daria pulos de alegria. Em vez
disso, Priya empalideceu visivelmente e disse que não queria se casar. Não
agora. Então começou a chorar e disse que se recusava a aceitar aquilo. O que
mais me intriga é o fato de que ela sempre adorou o irmão e nunca fez nada
que pudesse desgostá-lo. Além do mais, a tristeza do primeiro dia não
passou, minha filha continua revoltada e amargurada.
— Talvez porque não tenha aprovado a escolha do irmão. — Julie
simpatizava com a jovem e faria tudo o que estivesse a seu alcance para
ajudá-la.
— Tenho certeza de que não é por este motivo — discordou a
marani. — Como já disse, o rapaz é um excelente partido. Qualquer mulher
gostaria de estar no lugar de Priya.
Julie hesitou antes de dizer:
— Quem sabe se ela não está interessada em outra pessoa?

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A marani arregalou os olhos. Endireitou-se na cadeira e meneou a
cabeça, admirada. Julie imaginou que acabara de quebrar a etiqueta,
insinuando uma coisa daquelas. O tom de voz da boa mulher, entretanto,
acabou por tranqüilizá-la.
— Acho que não, já que ela nunca demonstrou o menor interesse
pelos rapazes do nosso convívio. O colégio onde estudou na Suíça não era
misto, o que elimina qualquer hipótese nesse sentido. — Deu uma risadinha.
— Tenho certeza de que ela logo estará bem. Garotas nesta idade estão
sujeitas a mudanças de humor, principalmente diante da iminência do
casamento.
A conversa terminou assim que Priya entrou na sala. Toda sorrisos,
a jovem princesa parecia haver se esquecido dos problemas que a afligiam.
— Desculpem o atraso — murmurou, com um sorriso cativante. —
Mas agora podemos ir se quiserem. Julie adorou o sari que eu estava usando
esta manhã, mamãe. Por isso vamos começar nossas compras pelo Sari
Paradise.
Assim que Gunam Singh estacionou o automóvel em frente à loja
que Priya mencionara, o proprietário veio receber a marani e a princesa. Lá
dentro, Julie se divertia ao notar o alvoroço dos vendedores que corriam de
um lado para outro, evidentemente nervosos diante de uma presença tão
ilustre. Ao final, acabou escolhendo três saris, mas nem precisou tirar o
dinheiro da bolsa, pois Priya fez questão de presenteá-la.
Quando saíram, a luz do sol era intensa. Julie perguntou a si mesma
se algum dia suportaria o calor escaldante de Nova Délhi. As três mulheres
apressaram o passo, ansiosas pelo ar refrigerado do interior da limusine. Não
notaram o carro escuro que saiu logo atrás, assim que Gunam Singh deu a
partida.

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CAPÍTULO V

O Ashoka Hotel era um edifício gigantesco, todo de pedras cor-de-


rosa, e se orgulhava em possuir acomodações para mais de mil hóspedes.
Local favorito de diplomatas estrangeiros por situar-se próximo às
embaixadas, ainda proporcionava aos turistas e homens de negócios serviço
de padrão internacional, além da mais tradicional comida indiana.
O maitre conduziu as mulheres até uma mesa próxima às janelas.
Enquanto lia o cardápio, Julie teve sua atenção subitamente voltada para o
centro do vasto salão. Um homem alto de terno escuro acabara de entrar, e
sua presença irradiava carisma. Todos no restaurante interromperam suas
conversas e se voltaram para vê-lo passar. Até mesmo ela se sentiu
estimulada pela força que emanava dele. O maitre correu para cumprimentá-
lo e, após trocarem algumas palavras, indicou a mesa da marani.
— Jai! — exclamou ela, assim que viu o filho. — Que deliciosa
surpresa! Não sabia que você estaria livre para almoçar conosco, senão o teria
convidado!
— Presumi que seria bem-vindo, mamãe — ele respondeu, sorrindo,
inclinando-se para beijar-lhe a testa. Sentou-se entre a marani e Julie e
continuou, bem-humorado: — Na verdade, ouvi Priya mencionar algo sobre
um almoço aqui no hotel, mas, certamente por um lapso, esqueceu-se de me
convidar. — Sorriu intencionalmente para a irmã, e Julie notou que o tom de
voz era conciliatório.
Priya, que, num primeiro instante, abrira um sorriso de alegria ao
vê-lo, agora parecia tomada de total indiferença, na certa lembrando-se de
que estava magoada com o irmão. Seus olhos, entretanto, tinham um brilho
de curiosidade, levando Julie a supor que não era comum Jai participar de
programas como aquele.
— Fizeram muitas compras? — ele perguntou, fingindo ignorar a
atitude da irmã.
— Ótimas compras — respondeu a marani. — Ajudamos Julie a
escolher seus primeiros saris.
Jai se voltou para ela.
— Cuidado, Julie, para não deixar que elas tomem conta de você.
Desse jeito, não vai conseguir trabalhar. — O tom de voz era calmo e

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brincalhão, e Julie sentiu-se aliviada ao perceber que a animosidade entre eles
parecia esquecida. Discutir com aquele homem deixava seus nervos em
frangalhos.
— Ora, não fale assim, Jai — protestou a mãe. — Não pretendemos
atrapalhar o trabalho de Julie, mas apenas tornar agradáveis as horas que
tiver disponíveis. Você precisava ver como ela ficou encantadora nos saris que
experimentou.
Mais uma vez ele voltou a olhar para Julie, que parecia hipnotizada
pela pele bronzeada, o rosto bonito, os cabelos muito negros, os olhos cheios
de vida e com um toque de humor tudo nele a deixava encantada. Uma
excitação crescente começou a percorrer-lhe o corpo, como se ela fosse um
instrumento à espera dos toques do músico.
Com um sorriso provocante, ele se aproximou ainda mais e,
delicadamente, retirou o cardápio das mãos dela, que sentiu a manga do
paletó roçar seu braço nu. Uma onda de desejo correu-lhe o corpo.
— Concordo com você, mamãe, que escolher algo para uma pessoa
tão bonita como Julie seja tarefa das mais agradáveis. Eu também gostaria de
ter esse prazer Se você me permitir, Julie, escolherei os pratos, já que não está
familiarizada com a cozinha indiana.
Como estivesse realmente indecisa quanto ao que escolher, Julie
aceitou de bom grado as sugestões de Jai. Os pratos, todos à base de vegetais,
pareciam deliciosos.
— Sua família sempre viveu no norte da Índia? — ela perguntou
assim que os garçons, após servirem a refeição, se afastaram.
— Até onde sabemos, sim — respondeu ele. — Descendemos dos
arianos que chegaram aqui por volta de 1500 a.C. e se tornaram os senhores
da terra, expulsando para o sul os antigos habitantes.
— Mas isto foi há mais de três mil anos! — espantou-se Julie.
— E olhe que eles chegaram atrasados — retrucou o príncipe,
soltando uma risada. — Você já ouviu falar de Mohenjo-daro?
— Já. As ruínas de uma civilização muito adiantada, descobertas há
poucos anos.
— Isso mesmo. Pois então, aquela civilização floresceu aqui, na área
que agora é ocupada pelo Paquistão, lá pelo ano 2500 a.C. As ruínas mostram
que a qualidade de vida era muito mais elevada do que a que muitos hindus
possuem hoje.
— Meu Deus, que país antigo! Eu mal posso acreditar! Imagine que
nós, americanos, ficamos orgulhosos em celebrar nosso bicentenário!

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— Bem, a Índia que conhecemos hoje não é tão antiga assim. Ela
possui milhares de anos de uma história sangrenta. Houve várias invasões da
Ásia: Alexandre, "o Grande", os citas, os hunos, persas e afegãos. Muitos
grupos religiosos hinduístas, muçulmanos e budistas lutaram pelo poder. Os
melhores soberanos, naturalmente, demonstraram tolerância com outras
religiões, mas muitos tentaram impor suas próprias crenças à população.
Então, por último, veio o domínio inglês. A rainha Vitória incorporou o título
de imperatriz da Índia, na tentativa, dizem, de acabar com a corrupção que
reinava na Companhia das Índias Orientais, órgão que controlava o
comércio. Foi difícil vencer o jugo inglês, mas nós contávamos, como sempre
contamos, com a paciência, a fé na justiça e na nossa dignidade. Gandhi nos
ajudou muito nesse sentido, com suas teses de luta pela não- violência. E
atualmente, depois de menos de quarenta anos da nossa independência,
assistimos, preocupados, à invasão russa no Afeganistão. Temos razão em
ficar preocupados, porque os norte-americanos podem querer usar nosso
país para enfrentar os soviéticos. Ou talvez os próprios russos tenham planos
com relação à Índia.
— Quais são as chances de isso acontecer? — perguntou Julie.
— Uma invasão não é uma possibilidade remota, pelo menos para
nós. Vimos passando por isso há séculos. Se acontecer novamente, dependerá
em parte da eficiência dos grupos terroristas que você está tão ansiosa por
descobrir. O objetivo deles é minar a ordem para que os imperialistas
cheguem e tomem conta. Norte-americanos e soviéticos têm invadido ou
submetido diversos países estrangeiros desde a Segunda Guerra Mundial.
— Julie! Como pode permitir que Jai fale de política o tempo todo?
— queixou-se Priya. — Está estragando o nosso almoço.
— Francamente, minha filha, você não espera que seu irmão fale
sobre os assuntos que normalmente nos interessam — interpôs a marani. — Se
estivesse casada com um diplomata como seu pai, teria que aprender a
escutar pacientemente conversas como esta. Tenho certeza de que Prakash
ocupará algum cargo importante no mundo dos negócios, e você precisa
desde já se acostumar a não interferir em assuntos que não lhe dizem
respeito. Continue, Jai, por favor.
— Não pensei que estivesse aborrecendo vocês — comentou ele,
divertido.
Ao contrário do que acontecia com Priya e com a marani, a política
fascinava Julie. Mas não era só por isso que estava atenta às palavras de Jai.
Se, por um lado, aquelas informações eram realmente necessárias para que

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ela escrevesse seus artigos de uma perspectiva adequada, por outro gostava
da atenção que ele lhe dispensava. Sua sensação era de que somente os dois
existiam naquele restaurante. Estava admirada com a percepção que ele tinha
dos fatos. Um playboy milionário, como ela o julgara a princípio, não seria tão
bem informado e tão convicto nos seus ideais. Começou a encará-lo de modo
diferente, respeitando-o por seu envolvimento com os assuntos políticos que
diziam respeito ao seu país. Mas, o melhor mesmo era que, enquanto
admirava a inteligência dele, não precisava se preocupar em esconder a
atração que sentia por aquele homem tão fascinante.
Quando a marani mencionou o nome do noivo de Priya, o rosto da
princesa empalideceu de raiva e frustração. Para evitar que o assunto viesse à
baila num momento tão pouco propício, Julie perguntou:
— Quer dizer que há muito tempo sua família faz parte da realeza?
Jai sorriu, dando mostras de que compreendera o porquê daquela
pergunta um tanto fora de hora.
— Os principados existiram até 1947, quando a Índia se tornou
efetivamente uma nação — explicou ele. — Meus ancestrais, embora
predominantemente hinduístas, não hesitaram em se converter a outras
religiões através dos séculos, sempre que uma atitude como esta se fizesse
necessária para a continuação da dinastia. Como vê, demonstraram uma
capacidade muito grande de adaptação, em meio à inconstância religiosa que
relatei há pouco. Também adotaram uma política de tolerância para com
aqueles que estavam sob seu poder. Mantendo o principado sem utilizar
qualquer forma de opressão, ainda contavam com um exército bem treinado
para lutar contra os usurpadores. Mais de uma vez desposaram mulheres de
povos conquistados, obtendo, assim, imunidades através do parentesco. Meu
tataravó, por exemplo, casou com uma mulher da alta nobreza da Inglaterra.
"Se ele era parecido com você", Julie pensou, "a pobre mulher não
deve ter agüentado." Apesar disso, notou um quê de emoção na voz do
príncipe, à medida que relembrava os antepassados.
— Sabe — continuou ele —, os príncipes que aceitaram a "proteção"
inglesa puderam manter a soberania das terras e do povo. A Inglaterra
controlava os assuntos estrangeiros nos principados, que, entretanto, não
eram considerados territórios ingleses. Desse modo, as coisas continuaram
como antes. Geralmente, um principado era menos influenciado pela
civilização ocidental do que as colônias britânicas. Mas o que significava um
principado, quando a Índia como um todo queria a independência? Ao final,
ficava cada vez mais claro que somente unido este país sobreviveria. Muitos

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príncipes, meu pai inclusive, compreenderam que o futuro da nação estava
na democracia e não na monarquia. Assim, a nova nação acabou comprando
dos herdeiros os estados que lhes pertenciam. Meu pai mudou-se com a
família para Nova Délhi e tornou-se diplomata do novo governo.
— Você alguma vez se arrependeu dessa mudança? — Julie
perguntou. — Afinal, um passado glorioso tinha sido deixado para trás.
— Eu nunca me arrependo — foi a resposta segura. Ele pôs o
guardanapo de lado, encontrando os olhos de Julie. — De qualquer modo,
minha família manteve a tradição enquanto pôde e soube mudar com o
tempo, quando foi preciso. Terminou a refeição, mamãe?
— Já, meu filho, e estou contente por você ter almoçado conosco.
— O que pretende fazer o resto do dia? — perguntou o príncipe,
simulando interesse, e ouviu, condescendente, a marani contar sobre uma
visita que pretendia fazer à indústria de xales e sobre a proposta que faria ao
encarregado de jardinagem do palácio quanto à construção de um pequeno
lago de lótus. O tempo todo, Jai tentou introduzir a irmã na conversa, mas
Priya manteve-se firme em seu silêncio.
— Venha conosco até a livraria do hotel, querido — sugeriu a
marani, quando se levantaram para ir embora. — Quero sua opinião sobre a
nova tradução do Ramayana. Acho que Julie apreciará a leitura.
Jai afastou a cadeira para que Julie se levantasse. Repentinamente,
ela sentiu um desejo maluco de roçar nele como por acidente. Que coisa
incrível a atração que sentia por aquele homem! Como conseguiria se
concentrar no trabalho, sendo obrigada a vê-lo constantemente?
"Mantenha a mente na reportagem!", uma voz interior a
aconselhou. De fato, ela era uma profissional e não poderia perder a
objetividade. Mas não conseguiu evitar o arrepio quando Jai segurou seu
braço de leve, conduzindo-a para fora do restaurante.
Na livraria, Jai e a mãe discutiam em hindu sobre os méritos da
mencionada tradução inglesa, enquanto Julie e Priya davam uma olhadela
nos jornais e revistas expostos na banca.
— Você já esteve em Hollywood? — a princesa perguntou, ao pegar
uma revista que trazia na capa a foto de Clint Eastwood.
— Morei lá vários anos — Julie respondeu. — Em Los Angeles, o
que vem a ser a mesma coisa.
— Sério? Você já viu uma filmagem?
— Não — Julie respondeu, achando graça. — Mas meu noivo
participou de inúmeras. — Neste exato momento, sentiu que Jai voltava o

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rosto para ela, subitamente interessado pela conversa.
— Seu noivo? Quer dizer que vai se casar? — perguntou Priya.
— Agora chega, Priya — repreendeu Jai, sem que Julie entendesse o
motivo daquela irritação. — Por que não nos espera no carro?
— Ora, o que eu disse demais?
— Nada, Priya — Julie se apressou em responder. — Não vou me
casar porque bem meu noivo morreu.
— Oh, Julie, sinto muito!
— Ora, querida, não se preocupe com isso. Eu estou bem agora. —
Olhou para Jai, que tinha os olhos fixos nela. Sem saber por quê, lembrou do
olhar dos tigres de bronze.
Quando saíram da livraria, ela se desculpou por não poder ir à
indústria de xales. Despediu-se das duas e voltou ao saguão do hotel. Jai
também saíra, preocupado com o horário de uma reunião de negócios.
Sozinha, caminhou até a portaria e comprou os jornais do dia, todos
em língua inglesa, além de várias revistas locais. Atraída pelo som de uma
máquina de teletipo, percorreu o corredor de lojas até encontrar o que estava
procurando: informações que saíam continuamente de um computador. Mais
um serviço do hotel aos hóspedes.
Não leu nada que pudesse interessá-la. Voltando ao saguão, sentou-
se numa poltrona confortável para estudar os jornais e revistas que acabara
de comprar. Seu propósito era familiarizar-se com a realidade daquele país,
para poder reconhecer um fato importante quando este ocorresse.
Uma hora e meia mais tarde, levantou e jogou todo o material lido
no primeiro cesto de papéis que encontrou. O próximo passo seria uma visita
às embaixadas. Tomou um táxi em frente ao hotel e dirigiu-se para as
embaixadas do Canadá e da Suíça, optando por deixar a norte-americana
para um outro dia.
Uma sombra avermelhada cobria o horizonte quando, finalmente,
atravessou os portões do palácio. Os guardas não fizeram o menor sinal para
parar o veículo, obviamente instruídos para deixá-la entrar sem maiores
formalidades. Seu rosto se iluminou quando o táxi a deixou defronte à
escadaria. Após uma tarde estafante à cata das primeiras informações,
alegrava-se por voltar ao convívio agradável daquela casa. Compreendeu,
então, e não sem certa surpresa, que estava antes de mais nada ansiosa por
rever o príncipe.
Jai não apareceu para o jantar, entretanto. Sempre com um sorriso
amável, Julie passou a noite ouvindo Priya e a mãe discorrerem sobre a tarde

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que tiveram. Sua atenção, entretanto, estava voltada para o trabalho que a
esperava e as dificuldades que teria que enfrentar. Os oficiais das duas
embaixadas que visitara haviam demonstrado boa vontade em cooperar, mas
não tinham nenhuma informação relevante a oferecer sobre a reunião
terrorista. Não iria ser nada fácil sair à cata de informações confidenciais sem
possuir os contatos de que necessitava.
A maior dificuldade era ter que escrever sobre algo que ainda não
acontecera. Os incidentes na Inglaterra, na França e na Itália eram notícia. O
que ela estava fazendo agora, entretanto, era seguir um palpite. Na verdade,
um palpite de Wes Harding. Seu trabalho era estar na hora e no lugar exatos
quando a coisa estourasse, já contando com todas as informações de apoio
para interpretar corretamente o fato. Uma reunião de cúpula entre terroristas
internacionais seria uma história importante, pois ficaria provado que os
atentados, no mundo, obedeciam a etapas meticulosamente planejadas.
Entender a natureza do problema ajudaria as democracias a lidarem com a
ameaça terrorista.
Desejou que o príncipe estivesse presente ao jantar. Poderiam
discutir os problemas que envolviam a reportagem, ainda que ele não a
ajudasse. Ao menos, Jai parecera entender a situação e demonstrara um certo
interesse. O simples fato de ter um ouvinte atento já seria de grande valia
naquele momento.
— O príncipe não costuma jantar com vocês? — perguntou assim
que a marani fez uma pausa.
— Algumas vezes. Acho que hoje ele deve ter jantado no escritório,
como costuma fazer quando está sobrecarregado.
— Não vejo por que trabalhar tanto — aparteou Priya. — Já temos o
suficiente para viver até o final de nossos dias sem nos preocuparmos.
— Ora, filha, não fale sobre coisas que não entende. Seu irmão sabe o
que faz.
Terminado o jantar, as três se dirigiram para o salão amarelo. Cada
vez que ouvia passos, Julie sentia o coração disparar, para logo descobrir,
decepcionada, que não era quem esperava. A noite transcorreu sem que Jai
fizesse uma única aparição. Afinal, cansada, Julie se retirou.
O conforto e o luxo do quarto a envolveram tão logo atravessou a
soleira da porta. Tirou o vestido e, ao abrir a porta do armário, observou que
lá estavam todas as suas roupas, devidamente penduradas. Sukundala, com
certeza, desfizera as malas. Em poucos minutos Julie se encontrava imersa na
banheira de mármore, tentando relaxar a tensão que sentira durante quase

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todo o dia. Ao terminar o banho, sentiu-se cem por cento melhor, pronta para
uma noite de sono.
Que importava se Jai não quisera comparecer ao jantar? Tudo o que
queria era conversar com ele a respeito de trabalho, nada mais. E isto poderia
ser feito a qualquer hora. Mais uma vez, ao pensar naquele corpo atraente,
que quase chegara a tocar no restaurante, Julie estremeceu.
Olhou-se no enorme espelho que ficava do lado oposto à banheira.
Corpo esbelto, seios rígidos, coxas firmes Seus próprios olhos, de um azul
profundo e escuro como as águas do Mediterrâneo, a examinavam, críticos. O
que pensaria Jai Mishra se pudesse vê-la agora? Será que a consideraria
bonita? Enrolou a toalha em volta do corpo e disse, baixinho:
— Jornalismo, Julie, pense somente no jornalismo! O trabalho é a sua
vida. Não ponha tudo a perder por um homem que não liga a mínima para
você.
Acabou rindo daquela fantasia louca. Que absurdo pensar que ele
poderia se interessar por ela, quando nem ao menos estivera presente ao
jantar. Tinha certeza de que Jai não pensara nela um minuto sequer após o
almoço, no hotel. O engraçado é que ele jogara um certo charme, mas o que
isso tinha de mais? Sem dúvida, estava apenas mantendo-se em forma. Ela,
ao contrário, não deixara de pensar nele um só segundo desde que o vira.

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CAPÍTULO VI

Julie abriu e fechou três ou quatro gavetas e não conseguiu descobrir


onde Sukundala havia guardado sua camisola. Como estava bastante quente,
desistiu de continuar procurando. Apagou a luz e chegou até a janela. O luar
banhava a noite lá fora. Tudo era tão quieto, tão bonito Ficou um instante
contemplando o jardim e voltou para a cama. Nem bem pousou a cabeça no
travesseiro e adormeceu profundamente.
Quanto tempo permaneceu adormecida, não poderia dizer. Quando
acordou, o quarto estava escuro como breu, a não ser por um rastro de luz
que o luar deixava perto da janela. O frescor da madrugada invadira o
ambiente e ela se envolveu no lençol, serena e pensativa. Imaginou que seria
entardecer em Nova York.
De repente, percebeu que não estava sozinha. Sem pensar duas
vezes, sentou-se na cama.
— Não se mova — ordenou uma voz masculina.
Julie perdeu o fôlego, apavorada, e se encolheu na cabeceira da
cama. Seu coração parecia um pesado bloco dê gelo prestes a se partir dentro
do peito.
— E não grite — acrescentou a voz.
— Como ousa — ela ameaçou, recuperando a fala e procurando
não demonstrar medo. Era preciso manter-se calma num momento como
aquele.
— E também não fale — a mesma voz ordenou com frieza.
— Como ousa entrar no meu quarto? — Julie murmurou ao
reconhecer a voz de Jai. — Saia imediatamente — mandou, tentando localizá-
lo na escuridão.
Uma silhueta alta, envolta em sombras, apareceu na porta que
separava o quarto da saleta. Aquele único movimento transmitira uma
ameaça tão real que Julie se arrastou para o centro da enorme cama, com a
respiração presa. Há quanto tempo ele estaria lá? Talvez tivesse entrado pela
sala, cuja porta dava para o corredor. Agora entendia a razão de ter acordado
no meio da noite. Jai na certa fizera algum ruído ao entrar.
— Se você pensa — tentou dizer, as palavras saindo com dificuldade.

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— Fique quieta!
Jai se esgueirou pelas paredes do quarto, ignorando totalmente a
área próxima da cama. Julie compreendeu que ele estava se movendo na
direção da janela, evitando se expor ao clarão da lua. Trazia algo numa das
mãos, que se assemelhava a um pequeno aparelho transmissor.
Vendo-o mover-se com cautela, Julie comparou-o a um tigre que se
aproxima devagar de sua presa. Mais do que nunca ele parecia perigoso e
cheio de mistério. Esquecendo-se da fúria de instantes atrás, ela acabou
ficando curiosa.
— O que foi? — perguntou em voz baixa.
Em vez de responder, Jai levou o aparelho perto dos lábios e falou
em hindu. Sua voz não traía a menor emoção enquanto dava algumas
instruções.
O instinto jornalístico se aguçou em Julie, que procurou por perto
um robe ou qualquer coisa. Num segundo puxou o lençol para fora da cama,
querendo se enrolar nele.
— Não faça isso — Jai mandou. — O branco pode ser visto, lá fora.
— Ele estava em pé, junto à janela, tomando o maior cuidado, como se
houvesse alguém lá embaixo. E falava tão baixinho que Julie mal conseguia
distinguir as palavras.
— Dane-se — sussurrou. — Estou nua.
— Escolha. Se quiser se aproximar, pode vir. Só que sem o lençol.
— Isso não.
— A escolha é sua.
Julie olhou em volta. Onde estaria o seu robe? A escuridão era total
naquela parte do quarto. O luar que entrava pela janela não iluminava nada.
Resolveu, então, sair da cama como estava, e, ao pisar no chão, sentiu a
maciez do carpete sob seus pés nus. Aproximou-se com cuidado do local de
onde viera a voz de Jai e, quando chegou perto, não conseguiu nem ao menos
distinguir-lhe as feições do rosto. Isto lhe deu a segurança de que ele também
não poderia ver seu corpo.
— Eu enxergo muito bem no escuro — ouviu-o murmurar, em
resposta aos seus pensamentos. O tom divertido e levemente irônico daquela
voz imobilizou-a. Sentiu-se como um coelho apanhado pelos faróis de um
carro. Embaraçada, enroscou-se na cortina, amaldiçoando a calma absurda
que ele demonstrava e que lhe permitia brincar num momento daqueles.
Entretanto, o comentário do príncipe acendeu seu desejo, e ela
sentiu a respiração arfante.

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Quando sua respiração voltou ao normal, arriscou uma olhada
cautelosa pela janela. A princípio não pôde ver nada a não ser a beleza do
gramado, iluminado pelo luar. Então, uma sombra perto das árvores
chamou-lhe a atenção. Fixou o olhar, incapaz de distinguir o que quer que
fosse.
— O que é aquilo? — sussurrou. — Ali, embaixo daquela árvore
O príncipe não respondeu e murmurou algo inaudível no rádio
transmissor. Julie sentia o corpo vibrar, como que captando as radiações que
emanavam daquela presença tão máscula. Mais uma vez ele se assemelhava a
um tigre espreitando a vítima, com uma frieza calculada que contrastava com
as batidas aceleradas do coração dela. Ela gostaria de saber o que estava se
passando.
Seus olhos se voltaram novamente para o cenário lá fora. Por fim
conseguiu avistar um reflexo metálico que, logo em seguida, desapareceu.
— Rifles! Eles têm rifles! — avisou com um fio de voz, e inclinou-se
para tentar enxergar melhor.
— Volte! Eles vão ver você.
A ordem de Jai chegou um segundo atrasada. Julie viu uma
espingarda se erguer, apontando em sua direção. No exato momento em que
um grito chegou até sua garganta, o cano da arma baixou novamente, como
que puxado por mãos invisíveis. Julie engoliu o grito que ficara preso,
enquanto observava três figuras correrem desesperadamente pelo gramado,
sem ao menos procurar esconder-se da claridade da lua. Os intrusos deviam
ter desistido de agir naquela noite, já que não contavam mais com um fator
essencial: a surpresa. Preferiram então salvar as próprias peles.
O príncipe falou rapidamente ao rádio e, logo em seguida, sons
distantes, de uma perseguição talvez, chegaram aos ouvidos de Julie através
das janelas abertas. Um minuto mais tarde o silêncio voltava a dominar o
lugar. Tudo estaria normal se não fosse a presença daquelas duas pessoas
num mesmo quarto.
Enquanto Jai continuava a se comunicar com a voz que vinha do
aparelho, Julie encontrou finalmente o robe, dobrado sobre a banqueta da
penteadeira. Sukundala devia tê-lo colocado ali quando desfizera as malas.
Deu um suspiro de alívio quando, afinal, se vestiu. Voltou para perto do
príncipe no momento em que ele, terminadas as instruções, desligava o
aparelho.
— Sinto muito — gaguejou ela. — Acho que os afugentei.
Jai encarou-a com firmeza, sem dizer uma única palavra, e deu-lhe

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as costas, visivelmente irritado.
— Sinto muito realmente — insistiu, dando um passo na direção
dele. O príncipe parou e se voltou para ela.
— Verdade?
— O que quer dizer com isso? Claro que sinto bastante ter
atrapalhado! Você estava planejando apanhá-los e conseguiria, com certeza,
se eles não tivessem me visto.
— Nós os pegaremos de qualquer modo — respondeu o príncipe. —
Eu ficarei sabendo disso num minuto ou dois. Meus guardas são punjabis. —
Julie tinha conhecimento, através de leituras, de que os homens do Punjab,
província localizada ao norte do país, eram considerados soldados valentes.
— Tem alguma idéia de para onde eles foram? — perguntou.
— O que importa? — ele resmungou. — Não deixe que um pequeno
detalhe como este interfira na sua reportagem. Os repórteres que conheço
têm uma imaginação muito fértil. Por que não improvisa também?
— Não seja precipitado em suas conclusões. Quem sabe as razões
daquelas pessoas? Não posso escrever até conhecer os fatos. A Índia tem
tantos pobres É possível que eles apenas estivessem à procura de comida e não
desejassem fazer mal.
— Com rifles? — ele perguntou, cheio de sarcasmo.
Julie recordou-se do medo que havia experimentado quando vira o
cano da arma apontado para ela, sobressaindo-se na escuridão lá embaixo.
— Bem, de qualquer modo não foi sobre isso que vim escrever.
Estou aqui para fazer uma reportagem sobre terrorismo.
— Não seja tola! Quem acha que aqueles bandidos eram? Pessoas
famintas não saem por aí, invadindo casas com rifles nas mãos! — ele
respondeu, no auge da irritação. — Este foi um atentado frustrado à minha
família, talvez um seqüestro. Ou talvez quisessem arrombar meus escritórios
para obter alguma informação vital.
— Você quer dizer que aqueles homens podem ser terroristas? —
Julie arregalou os olhos. — Oh, meu Deus, por que deixei que eles me
vissem?
— É o que estou me perguntando. Por quê?
Alguma coisa no modo como ele falava, talvez a voz levemente
rouca ou mesmo a inflexão irônica nas palavras, fez Julie tremer por dentro.
O chiado vindo do transmissor interrompeu aquele diálogo tenso. O príncipe
ouviu um minuto, respondeu e então desligou, com um suspiro de desânimo.
Olhou para Julie em silêncio.

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— E então? — arriscou ela. — O que aconteceu?
— Eles escaparam.
— Oh, não!
— Alguns explosivos caseiros e um rifle foram encontrados sob uma
árvore, abandonados. Naturalmente — ele continuou, após um longo silêncio
—, se nós os tivéssemos apanhado, poderíamos descobrir quem são, o que
querem, para quem trabalham. Isto é, se eles não tivessem sido prevenidos a
tempo.
— Prevenidos? — Julie repetiu numa voz entrecortada, entendendo
perfeitamente aonde ele queria chegar. — Você está louco?
— Então me diga uma coisa: por que eles estavam se preparando
num local que só poderia ser avistado deste quarto?
— Este é um quarto de hóspedes, não é? Eles provavelmente
esperavam que estivesse vazio.
— Não sou tão ingênuo assim, Julie — retrucou ele, encostando-se
na parede, olhos fixos nela. — É o truque mais velho do mundo infiltrar uma
mulher bonita na fortaleza do inimigo.
— Eu estou aqui como correspondente estrangeira, nada mais! E não
gosto de ser chamada de espiã! Ouça uma coisa, Jai Mishra: é bom parar de
pensar em mim apenas como uma mulher e começar a me ver como uma
jornalista. E das mais competentes, posso lhe garantir!
— Então deixe que eu lhe diga, minha querida, que a única razão de
você estar aqui neste momento é justamente por ser uma mulher. Eu teria
mandado qualquer outro repórter embora imediatamente.
Julie cruzou os braços num gesto instintivo, apertando contra o
corpo trêmulo o insinuante robe de seda. Naquele momento, teve consciência
de que os dois estavam sozinhos no quarto e sentiu medo de sua própria
vulnerabilidade. Como poderia resistir àquela vitalidade tão máscula que
fazia seu corpo vibrar de desejo?
— Conte-me sobre os terroristas — pediu, tentando ignorar aqueles
sentimentos. — Eu preciso saber tudo o que está relacionado à reportagem
que vou escrever.
— Pois aí é que está o ponto: como repórter você deve observar os
acontecimentos para relatá-los aos seus leitores. E o que fez hoje foi interferir
diretamente nos fatos.
— Já pedi desculpas. Cometi um erro, eu sei, mas foi um erro
involuntário. Por que sempre desconfia de tudo e de todos?
— Nós vivemos mais tempo quando desconfiamos dos que nos

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rodeiam. Isto aqui não é os Estados Unidos, Julie. Estamos na Índia. Aqui as
regras são diferentes.
— Eu não gosto de suas regras!
— Nesse caso, os terroristas não deveriam ter enviado você para
fazer esse trabalho sujo — ele respondeu, e caminhou devagar na direção
dela, os olhos negros brilhando na escuridão.
Aquelas palavras soaram como uma chicotada.
— Você está enganado se pensa que tenho algo a ver com eles. Estou
aqui a trabalho, Jai, quantas vezes vou ter que repetir isto? — Recuou um
passo ao ver que ele se aproximava. — Agora saia, por favor. Este não é o
local apropriado para discutirmos.
— Você realmente acha que poderia haver um lugar melhor e uma
hora mais romântica que esta? — ele murmurou, chegando mais perto.
Aquelas palavras eram tão irônicas que Julie não tentou sequer
argumentar. Ele parou a milímetros de distância, e ela se rendeu ao toque de
seus dedos, como se fosse a coisa mais natural do mundo. As mãos fortes
deslizaram em suas costas e então ele a puxou de encontro ao peito.
Atraiçoada pelo próprio corpo, Julie sentiu um prazer terrível, enervante.
— Jai, por favor, saia imediatamente — implorou com um fio de
voz.
Mas os lábios dele calaram de vez seus protestos, e Julie entregou-se
aos beijos que se sucederam, doces e intensos. Abraçou-o com força, deixando
as mãos explorarem livremente os cabelos fartos enquanto suas bocas se
procuravam, ávidas. No auge da excitação, pressionou ainda mais o corpo
contra o dele, odiando as roupas que os separavam.
Devagar, as mãos de Jai começaram a acariciar-lhe os ombros,
tocando a pele macia. Com um movimento súbito, ele afastou de vez o robe,
deixando-a nua até a cintura. A mesma nudez que a deixara inibida minutos
atrás era agora recebida com um alívio intenso. Tudo o que Julie queria
naquele momento era que Jai não parasse.
Ele admirava com olhar cobiçoso os seios redondos e perfeitos, que
se arrepiavam ante o toque de seus dedos.
— Tão macios, tão bonitos — murmurou ele, com a voz
enrouquecida pelo desejo.
Chegou a se inclinar até eles, quando de súbito, sem que Julie
conseguisse entender por que, afastou-se de modo brusco, ríspido. Era como
se o ardor de segundos atrás houvesse se transformado instantaneamente em
gelo. Somente a respiração ainda ofegante dava mostras do esforço que ele

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empreendera para se afastar dela.
— Já estava me esquecendo da esperteza de meus inimigos — ele
disse com uma frieza que a deixou espantada. — Diga a eles que não caio no
mesmo truque duas vezes.
Deu um passo para trás, sem no entanto tirar as mãos dos ombros
de Julie. Só que as mãos que antes a acariciavam agora forçaram-na a se
ajoelhar.
— Pare com isso, está me machucando! — ela queixou-se, assustada.
— E diga-lhes também, minha linda e experiente Julie — Jai
continuou com desprezo, sem lhe dar ouvidos —, que você não está a salvo
aqui, porque eu a destruirei sem piedade, como faço com todos aqueles que
ousam ameaçar a mim ou minha família. Nem mesmo esta sua fragilidade
aparente me comoverá, pois sei que é totalmente falsa.
E então, sem dar a Julie tempo de abrir a boca, desapareceu na
escuridão, tão silenciosamente como havia chegado.
Amanheceu sem que Julie conseguisse mais dormir. A cabeça doía-
lhe terrivelmente. Ficou imaginando se tudo aquilo não teria sido um horrível
pesadelo. Não parecia possível que terroristas houvessem estado bem
embaixo de sua janela, e que ela, num gesto impensado, acabasse interferindo
na sua captura. Logo ela, que estava tão empenhada em mostrar ao mundo as
atividades terroristas Pensar que fora a responsável por uma pequena parte deles
continuar à solta deixava-a doente e furiosa consigo mesma.
Andando pelo quarto de um lado para outro, olhava a todo
momento para o telefone. Havia feito uma chamada para o Courier tão logo o
príncipe saíra, e até agora a ligação não fora completada. Soubera que
poderia levar de duas a doze horas, mas já estava ficando impaciente. Era
preciso divulgar o incidente da noite anterior o mais rápido possível. Depois
disso, sairia à procura de Jai.
A pesada acusação do príncipe lhe martelava o cérebro. Como ele
podia julgá-la um membro da liga terrorista? Isso doía tanto que, na verdade, a
única coisa a preocupá-la no momento era convencê-lo de que estava
enganado. Se não fizesse isso, ele jamais a ajudaria naquela tarefa
complicada. Além do mais não podia suportar a idéia de que alguém,
principalmente Jai, pensasse uma coisa tão horrível a seu respeito.
A princípio, ficara furiosa com a acusação, mas agora compreendia
que, para uma mente tão cheia de suspeitas como a dele, ela parecia de fato a
responsável pela fuga do grupo, ainda que involuntariamente.
— Involuntariamente! — disse em voz alta, como se Jai pudesse

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ouvi-la.
Quanto ao que acontecera entre eles Julie parou de andar e sua
mente se voltou para os instantes de paixão da noite anterior. Pena que tudo
houvesse acabado daquele modo. Fechou os olhos e passou as mãos pelo
corpo enquanto rememorava cada detalhe. Jai a enlouquecia Como isso
podia acontecer se nem ao menos gostava dele? Devia ser pura atração física,
na certa.
O toque do telefone trouxe-a de volta à realidade. Tirou o fone do
gancho e constatou, aliviada, que estava em conexão com o Courier. A ligação
estava péssima e ela precisou gritar o tempo todo em que ditava a
reportagem:
— Terroristas voltaram a agir na última madrugada. Desta vez o
atentado ocorreu em Nova Délhi, na mansão de um dos mais conhecidos
industriais e líderes políticos da Índia. Guardas particulares do príncipe
Jaiapradesh Mishra, cuja família manteve seu principado até a independência
do país, em 1947, surpreenderam três invasores nos jardins do palácio. Vários
explosivos e um rifle foram encontrados depois que o grupo fugiu.
Fracassada a tentativa, resta apurar sua autoria. Embora a Índia não possua
uma organização terrorista coesa, o atentado tem todas as características dos
incidentes que andam agitando o mundo.
Quando terminou de ditar a reportagem, Wes Harding apareceu na
linha.
— Julie! — gritou ele.
— Sim! — Ela mal conseguia ouvir a voz do chefe.
— Quero que se comunique com nosso contato em Bombaim. Ele
tem mais informações para você.
— Certo! — respondeu. Mas a ligação caiu antes que ela tivesse
chance de pedir maiores detalhes. Sentou-se um instante com o fone nas
mãos, olhando para o vazio. Fora ótimo ouvir a voz de Harding, pois isto lhe
trouxera um pouco do clima da redação. Sentiu-se novamente forte,
consciente de seu valor. Era uma profissional com uma história
importantíssima nas mãos e este deveria ser o seu único objetivo naquele
país. Era preciso lembrar-se disso, se algum dia tivesse de novo a tentação de
cair nos braços do príncipe.
Pediu uma ligação para Bombaim. Quando Anand Naoroji atendeu,
sua voz parecia mais distante do que a de Wes Harding. Anand contou que
um grupo de jovens de Bombaim havia sido recrutado para ir para um
campo de treinamento de guerrilha na Argélia. Ele só não sabia se já haviam

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ido ou não. Quando Julie perguntou como obtivera tal informação, Anand
caiu na risada.
— Se fosse mencionar a fonte, acho que seus leitores não iriam
gostar muito — brincou. — Agora, antes de desligar, quero que prometa vir
até Bombaim, Julie. Eu e minha esposa teremos prazer em hospedar você.
— Obrigada, irei assim que puder. Prometo — ela respondeu, antes
de se despedir.
A informação de Anand era boa, mas como poderia fazer uso dela
sem mencionar a fonte onde fora obtida? De qualquer modo, serviu para
elevar-lhe o espírito, certificando-a de que estava na pista certa. Os terroristas
deviam estar tentando organizar o movimento na Índia, antes de retornarem
aos seus países de origem. Aquela devia ser a aplicação para o treinamento na
Argélia.
Vestiu-se às pressas, combinando a blusa azul de algodão com a saia
branca e inclinou-se para calçar seu par favorito de sandálias de saltos altos.
A informação de Anand não lhe saía da cabeça. Já havia lido sobre os tais
campos de treinamento, onde guerrilheiros aprendiam tudo sobre luta
armada e outras coisas como falsificação de documentos, fabricação de
explosivos e assim por diante. Após semanas de intensa preparação, já
estavam aptos a agir. Julie estremeceu. Era duro reconhecer, mas tinha muito
medo. Precisava falar com Jai o mais depressa possível.

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CAPÍTULO VII

A porta do escritório estava aberta e Julie hesitou antes de entrar.


Priya estava em pé, de costas para ela, discutindo com o irmão. Ouviu as
últimas palavras da princesa:
— o direito de escolher com quem se casar.
Silêncio. A garota continuou insistindo:
— Você não pode negar que está sendo injusto, Jai. Eu penso que
— Ultimamente você não tem pensado o suficiente, Priya —
interrompeu o irmão. — Nunca a vi fazer tão pouco uso de seu cérebro
quanto nos últimos dias.
— Você você não dá a mínima importância para o que eu penso!
— Não diga isso. Estou apenas sugerindo que crie juízo e não se
deixe manipular por pessoas estranhas.
— Você está se referindo a Julie? Ela é minha amiga!
— Talvez. Mas realmente acha seguro fazer amizade com pessoas
que mal conhece? Saiba, minha querida, que na nossa posição social quase
nunca nos procuram por aquilo que somos, mas sim por aquilo que temos.
— Talvez alguém possa me oferecer amizade sincera. —
Claro que sim. Uma minoria. Priya começou a chorar.
— Oh, Jai, eu te odeio! Você faz tudo parecer tão sórdido! Se
estivesse apaixonado
— Por quê? Você está?
— Eu eu eu não vou me casar com Prakash! Por nada deste
mundo! — Deu meia-volta e saiu correndo, em lágrimas. Passou por Julie,
mas não parou.
— Bisbilbotando? — cumprimentou-a com uma voz irônica.
— Vim falar com você. — Julie entrou no escritório e fechou a porta.
Jai observava a segurança no modo como ela foi entrando e se sentando à
frente dele, sem ao menos pedir licença. — Jai — Ela levou o corpo para a
frente e pousou as duas mãos na escrivaninha. — Quero me desculpar pela
noite anterior.
— Por quê? Você esteve ótima. — Recostou-se na cadeira sem tirar
os olhos dela. O colarinho aberto dava-lhe um toque descuidado, que Julie

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considerou irresistível. Os homens impecáveis nunca lhe pareceram naturais.
— Tem um belo corpo, sabia? — ouviu-o comentar.
— Ora, pare com isso! — Sentiu o rosto em brasa. Somente sua
consciência culpada fez com que fosse adiante: — Você sabe a que estou me
referindo. Desculpe-me e acredite em mim, pelo amor de Deus. Tanto quanto
você, eu quero que eles sejam apanhados, seus líderes descobertos. Quero a
opinião pública esclarecida sobre tudo o que está acontecendo.
Jai a observava em silêncio.
— Talvez você esteja sendo sincera — ele ponderou, afinal. — Mas
prefiro acreditar que não.
Julie se endireitou na cadeira e o encarou, surpresa.
— Por quê?
— Digamos que eu me sinta mais seguro assim — ele respondeu,
com os olhos na caneta que tinha nas mãos. — Não posso me arriscar —
acrescentou, voltando a fixar o olhar em Julie.
— Você não pode é sair julgando as pessoas sem motivo, isto sim!
Está me condenando por antecipação, sem ter uma única prova!
— Meus ancestrais mandariam decapitá-la por muito menos —
retrucou ele com uma risada. Os cabelos negros de Jai, o maxilar firme e
aquele sorriso largo aproximavam-no mais de um herói de filmes de
espionagem do que de um homem de negócios. Julie sorriu, relutante.
— Imagino que sim. Só que estamos no final do século XX e os
costumes são outros. Por que esta determinação em não gostar de mim?
— Eu falei em desconfiança. Quanto a gostar de você, isto já é um
outro assunto.
Decidida a ignorar a última parte do comentário, ela insistiu,
olhando diretamente para ele:
— Está bem. Por que desconfia de mim, então?
— Não sei se vai entender. Fui educado de acordo com padrões
diferentes dos seus. Não lhe ensinaram a ter fé nas pessoas e tentar ver
somente o bem em cada um?
Julie fez que sim. Tia Agnes acreditava nas chamadas virtudes
cristãs.
— Pois bem — continuou ele. — A mim foi ensinado justamente o
contrário: nunca confiar em ninguém a não ser em mim mesmo. Fui
acostumado a ver o lado negativo, a deduzir sempre o pior; a encontrar
sempre uma segunda razão nas atitudes das pessoas Mas você parece
chocada com o que estou dizendo.

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— Eu eu simplesmente não consigo imaginar que sua mãe tenha
lhe ensinado tais coisas!
— Oh, não. Ela não tem nada a ver com isso. Para felicidade dela,
teve outra criança para educar. Todos os ensinamentos que recebi vieram do
meu pai. Ele não era um homem de meias medidas. Dizia sempre que ser um
príncipe nos dias de hoje é mais difícil do que nos séculos passados.
— Que infância horrível deve ter sido a sua — ela lamentou.
Gostaria de tocar o rosto de Jai, sentindo pena da criança que fora educada
sob padrões tão rígidos.
— Não foi tão ruim assim. — Ele sorriu amargamente. — Na
verdade, até que foi bem divertida em diversos aspectos. Aprendi a caçar
desde cedo; tive, e ainda tenho, os melhores cavalos de raça, que fazem a
inveja dos criadores da Ásia. Meu pai me levava, fazia com que eu
participasse de tudo. Não queria que seu filho fosse um playboy irresponsável,
desperdiçando o tempo em coisas fúteis. — Deu uma risada ao notar a
expressão condoída de Julie. — Ele era um homem muito severo, mas sei que
me amava. E isto é o que conta entre pais e filhos; o resto não é tão
importante assim. Além do mais, hoje compreendo que ele agiu certo.
— Como assim?
— As pessoas geralmente escondem suas verdadeiras razões. Não
talvez no curso diário de suas vidas, mas quando conhecem alguém que
possa servir aos seus propósitos No meu caso, por exemplo, existe sempre uma
razão específica por trás daqueles que me procuram: um emprego em minhas
indústrias, uma apresentação a alguém de influência, um
empréstimo, conselhos, informações
Julie apertou o caderno de anotações, embaraçada. Jai riu outra vez.
— Não estou reclamando — continuou. — A riqueza ainda traz
mais vantagens do que a pobreza. Mas, antes de mais nada, faz você
desconfiar das pessoas.
— E aqui estou eu, pedindo ajuda para minha pesquisa.
— No seu caso é diferente: considero um privilégio ajudá-la.
Ela deu um sorriso doce e retrucou:
— Só que eu não misturo os negócios com prazer. Ética profissional,
você entende.
— Não foi a impressão que tive na noite passada. — Ele se levantou e
deu a volta pela escrivaninha até chegar por trás da cadeira onde Julie se
sentava. Pousou as mãos nos ombros dela e, inclinando-se, beijou-lhe os
cabelos, a orelha.

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— A noite passada foi um erro — ela respondeu, fechando os
olhos. Não podia ceder, mas os lábios que roçavam sua nuca faziam de cada
beijo um fogo que se acendia dentro dela. — Além do mais, você suspeita que
tenho ligações com os terroristas.
— Você prefere então que eu finja? — ele murmurou, dando a
entender que não gostaria de ficar conversando num momento como aquele.
Julie se levantou, decidida a sair de lá, pois sabia que iria acabar se
dando mal novamente. Mas Jai a impediu.
— Não quero que finja, quero que sinta que está enganado — ela
respondeu com ênfase, dando graças a Deus por estar conseguindo manter o
controle.
Deu um passo e novamente Jai se colocou à sua frente, desta vez
segurando-a pelos ombros.
— Por que está fugindo de mim? Ah, claro, como pude me
esquecer? Você é quem escolhe o tempo e o lugar adequados para o amor.
Seus amantes sempre concordam com isso?
Ela se desvencilhou das mãos que a seguravam.
— Não entendo você, palavra. Num minuto é gentil; no outro, duro
e sarcástico. — Ficou a observá-lo, desejando ler seus pensamentos.
Os olhos de Jai não a abandonavam.
— Eu também não consigo me entender. Especialmente agora. — A
resposta foi enigmática e Julie não teve tempo de decifrar, pois sentiu-se
puxada ao encontro dele e não pensou em reagir.
Os lábios de Jai cobriam seus cabelos de beijos. Com a cabeça
pousada no peito dele, ela acariciava-lhe os braços vagarosamente. Como
negar a si mesma uma atração tão arrebatadora? Jai era o mais viril de todos
os homens que conhecera. Quando ele a tocava, não havia força de vontade
que resistisse. Como parecia fácil esquecer de tudo quando estava nos braços
dele! Trabalho? Que trabalho? Ofensas? Acusações? Tudo isso se perdia no
labirinto de emoções que cresciam dentro de seu peito.
Sentiu que o corpo dele procurava o seu com uma urgência
desesperada. Ela agora o beijava com intensa paixão, incapaz de controlar o
prazer que sentia por perceber que sua feminilidade atraía Jai, tanto quanto
ela se sentia atraída por ele.
Jai deslizou as mãos pelas costas dela, descendo até os quadris, num
gesto gostoso e sensual. Ela se deixou arrebatar. Nunca sentira algo parecido
com outro homem. Um gemido de prazer escapou-lhe dos lábios.
— Não quero saber de seus amantes — sussurrou ele ao seu ouvido.

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— Vamos esquecer tudo o mais. Este momento é nosso.
Ela sabia que estava sendo apenas um objeto de satisfação. Tinha
consciência de que ele a julgava uma espiã. Sabia ainda que deveria manter
um relacionamento unicamente profissional. Mas estes eram pensamentos
vagos, imprecisos, insignificantes Sentia romper-se seu último fio de
resistência
— Não! — gritou, a voz abafada contra o peito dele.
— Por que não? A melhor maneira de se livrar de um desejo que nos
incomoda é satisfazê-lo, Julie. Vamos satisfazer o desejo que sentimos. — A
voz de Jai era macia, persuasiva.
Ela não disse nada. Não havia resposta para aquilo. Como que em
sonho, sentiu que ele a puxava pela mão em direção à saleta contígua. Som de
passos no corredor. Jai parou antes de entrar na saleta.
— Jai, alguém está vindo para cá. Solte-me — ela pediu, nervosa.
Ele hesitou. Então soltou-lhe a mão, deixando que se afastasse um
pouco. O coração de Julie batia descompassado; o rosto afogueado era mostra
evidente de sua excitação.
Algum instinto fez com que parasse de ajeitar suas roupas e olhasse
para o rosto de Jai. Ela parecia estar travando uma luta íntima, e Julie
reconheceu um brilho de desespero naqueles olhos negros. Com o rosto duro
e impessoal, ele ordenou:
— Olhe bem para mim, Julie.
Os olhos de Jai capturaram os dela, forçando-a a ler a verdade. Julie
então percebeu claramente, mais claro do que se ele estivesse falando, que
aqueles beijos não significavam nada. O que havia interpretado como ternura e
paixão nada mais era do que uma simples satisfação de instintos. Jai
continuava julgando-a uma espiã, que agia fria e calculadamente, de acordo
com seus próprios interesses.
A volta à realidade foi brusca. Sentiu-se só, abandonada. Mesmo
assim, não conseguia desviar o olhar. Quando Jai teve certeza de que ela
havia entendido a mensagem, um brilho de satisfação iluminou-lhe o rosto.
— Jai! Julie! — disse a marani, que acabava de entrar. — Tive uma
idéia fantástica!
Os olhares se desviaram vagarosamente. Aturdida, tentando apagar
qualquer traço de emoção no semblante, Julie se voltou para sua anfitriã.
— Que idéia, mamãe? — Com um movimento fácil e casual, Jai
retornou à escrivaninha.
As pernas de Julie, entretanto, não permitiram que ela saísse do

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lugar.
— Ora, uma festa, Jai! Vou dar um grande baile, uma celebração
maravilhosa que vai ser o assunto da cidade. Exatamente como seu pai e eu
costumávamos fazer.
— Uma festa? Por quê?
— Por causa de Julie, que será a convidada de honra.
— Ela não tem honra — o príncipe falou em voz baixa, de modo que
só Julie conseguisse ouvi-lo.

As duas semanas seguintes voaram em meio aos preparativos. Priya e


a marani estavam empenhadas na organização do baile e quase não eram
vistas no palácio. Na verdade, aproveitavam também a excelente
oportunidade para comprar coisas novas para a casa e para elas mesmas.
Priya, especialmente, parecia no auge da animação.
Julie procurava ficar longe do palácio, principalmente durante o dia.
Seu único objetivo passou a ser o trabalho. Queria trabalhar o mais que
pudesse para não pensar em nada: nela mesma, no baile e, acima de tudo, em
Jai.
Passava a maior parte do tempo à procura de informações e de
pistas. Já visitara todas as embaixadas, inclusive a soviética, cultivando um
bom relacionamento com todas. Estudou minuciosamente todos os
documentos e discursos políticos. Entrevistas com intelectuais, universitários,
líderes e dissidentes dos partidos e com representantes de diversos governos
enchiam seu caderno de notas. Conversou com motoristas de táxis,
comerciantes e até mendigos.
Como fazem todos os correspondentes estrangeiros, visitou os
colegas de profissão: os representantes das agências de notícias e os
repórteres dos grandes jornais. Naturalmente, não revelou o tópico de suas
investigações. Com a ajuda de tradutores, fez até um levantamento das
inscrições pichadas nos muros da cidade, esperando encontrar alguma pista
de onde e quando a reunião seria efetuada.
Uma noite, voltando tarde ao palácio, desmoronou sobre o sofá do
salão amarelo. Fechou os olhos, exausta, e puxou uma almofada para apoiar a
cabeça.
— Como vai o trabalho?
Julie abriu os olhos. O príncipe estava em pé diante dela.
— Não sabia que estava aqui. — Até mesmo falar exigia um grande
esforço.

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— Claro que não. Se soubesse, é lógico que não entraria. Acertei?
— Acertou. — Julie sentou-se, e com um gesto muito feminino jogou
o cabelo para trás. — Você pode me culpar por isso?
Jai dirigiu-se ao bar e preparou um drinque que, a seguir, estendeu
para Julie.
— Acho que está precisando de um gole. Parece exausta. —
Obrigada.
Jai preparou outro drinque e sentou-se bem em frente a ela. Julie
recostou-se nas almofadas de veludo e tomou um gole de bourbon que ele
havia preparado.
— Como está indo o trabalho?
— Acho que estou no caminho certo.
— Alguma pista?
— Não sei. Um ou dois indícios, talvez.
— Quais são eles?
— Você está mesmo interessado? Ou está simplesmente fazendo
sala à hóspede de sua mãe?
— Não perguntaria se não estivesse interessado.
Julie começou então a descrever o que havia apurado em suas
investigações. A polícia de Nova Délhi, a princípio reticente, tinha acabado se
oferecendo para ajudá-la. Ela fora informada de uma batida policial ocorrida
há três semanas, poucos dias antes de sua chegada, visando a apreender
passaportes forjados. Um dos documentos confiscados, pertencente a um
conhecido terrorista árabe, tinha o visto falsificado. O visto era necessário
para todo estrangeiro que desejasse permanecer no país por mais de seis
meses.
O segundo indício digno de nota referia-se a uma conversa que
tivera com Krish Rai, repórter do Indian Express. Ele lhe contara um episódio
muito interessante que não fora publicado por imposição do governo. O fato
dizia respeito a um oficial da alfândega que, em troca de suborno, deixara
passar, ilegalmente, armas e equipamentos. O homem acabou sendo preso
um dia antes da chegada de diplomatas russos no país. Esta seria uma visita
de grande importância para as relações entre os dois países, tanto que o
próprio primeiro-ministro se encarregou de recepcioná-los pessoalmente. A
imprensa foi proibida de divulgar o caso da alfândega, pois o governo temia
que se criasse uma atmosfera desagradável em torno do incidente,
atrapalhando o clima das conversações. Nesse meio tempo, os rifles
desapareceram e nunca mais foram encontrados. Tudo isso havia acontecido

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no mês anterior.
— e eu fiquei pensando no rifle que seus guardas encontraram aquela
noite — concluiu ela.
O príncipe era um bom ouvinte; Julie gostava de conversar com ele.
Era um alívio poder discutir seu trabalho com alguém, após martelar aqueles
acontecimentos sozinha, dia e noite. Ajudava a clarear a mente.
— Você trabalhou muito — Jai comentou, quando ela terminou.
— É para isso que estou aqui, como já lhe disse diversas vezes.
Ele sorriu.
— Acho que minha mãe convidou metade da cidade para o seu baile
— comentou, mudando de assunto.
— Meu baile?
— Em sua honra, você sabe.
— De acordo com você, eu não tenho nenhuma. Ele
fez uma pausa e bebeu um gole do drinque.
— Você aceita desculpas? — perguntou afinal, olhando diretamente
para ela.
— Por quê? Você as pede?
— Bem, devo-lhe desculpas por ter dito aquilo — respondeu, sem
um mínimo de emoção na voz. Parecia estar tratando de negócios.
— Pode guardá-las. Não quero suas desculpas. — Julie levantou-se e
deixou o copo sobre a mesinha de centro. — Obrigada pela bebida.
Adoraria ouvir as opiniões dele sobre suas descobertas, mas estava
cansada demais para enfrentar uma nova torrente de acusações, o que
certamente aconteceria assim que lhe pedisse ajuda. Se ao menos conseguisse
controlar a atração que sentia por ele No entanto, já que não era assim, o melhor
seria vê-lo o menos possível.
Jai segurou de leve seu braço.
— Vamos brigar de novo, Julie? — A gentileza dele a pegou de
surpresa.
— Espero que não — respondeu, puxando o braço e sentindo a pele
arder no local em que fora tocada.
Caminhou até a porta, sentindo o olhar do príncipe às suas costas.
Quando saiu da sala, já fora do alcance daqueles olhos de tigre, respirou
aliviada. Por que sentia uma vontade louca de chorar?
Julie deu consigo mesma aguardando ansiosamente o baile da
marani. Talvez conseguisse obter alguma informação dos convidados. Além
disso, uma noite de divertimento lhe faria muito bem.

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Na manhã do baile, Priya apareceu no quarto dela.
— Você já viu como está o salão? Venha, vou lhe mostrar.
E conduziu-a para uma parte do palácio onde ela ainda não havia
estado.
— Feche os olhos — a princesa pediu, antes de entrarem. Pegou a
mão de Julie, guiando-a até cruzarem a soleira da porta. — Pronto! Pode
abrir!
Julie olhou em volta e viu-se num salão imenso, que resplandecia
em beleza. Do teto alto, abaulado, decorado com pinturas exóticas, pendia
um magnífico candelabro de cristal, daqueles que só vira em filmes antigos.
Cinco fontes jogavam suas águas num lago repleto de cravos vermelhos,
espalhando pelo ar um frescor de orvalho. Guirlandas de orquídeas, rosas e
lírios ornamentavam os pilares e as paredes espalhadas. Uma abertura em
forma de ogiva dava passagem à outra parte do salão, onde ficavam as mesas
cobertas por toalhas de linho, carregadas de porcelana, pratas e cristais.
— Priya! É um verdadeiro salão de bailes!
— Sim — respondeu a princesa com satisfação, olhando em volta. —
Não está maravilhoso? Meus pais o usavam com freqüência, mas, desde que
me tornei adulta, ele nunca mais foi aberto.
— Tudo é tão perfeito!
— Jai disse que tudo devia ser da melhor qualidade, já que a festa é
para você.
— Ele disse isso? Mal posso acreditar. — Julie ficou um segundo
atônita, até cair em si: ele devia estar sendo irônico. Priya, simples e ingênua
como era, não devia ter notado uma segunda intenção nas palavras do irmão.
— Espere para ver os convidados — disse a princesa. — Aí, sim, isto
aqui vai estar uma maravilha!
— Pois eu gosto assim como está: enorme e vazio — retrucou Julie.
— É quase uma pena encher esta sala com pessoas e barulho.
— O que você vai usar? — Priya quis saber. — Eu comprei um sari
novo, encantador.
— Ainda não havia pensado nisso. Tenho andado tão ocupada
— Você deve usar um sari, Julie. Vai ficar maravilhosa, garanto.
— De qualquer maneira, não teria mesmo outra opção, pois não
trouxe nada para festas. Não imaginei que iria precisar de um vestido de
gala. Você pode subir até meu quarto depois do jantar e me ajudar a vestir o
sari?

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— Claro, eu adoraria! — Mal disse isso, Priya pareceu lembrar-se de
algo. — Oh, que pena, acho que não vou poder. Tenho que ajudar minha mãe
com os detalhes de última hora. — Baixou o olhar, evitando o de Julie. —
Sukundala poderá ajudá-la. E se eu puder, irei também.
O jantar foi bem informal, servido na saleta íntima da marani. Priya
estava ansiosa demais para comer, e saiu antes que os outros houvessem
terminado. Logo depois Julie pediu licença e voltou ao seu quarto, onde
Sukundala a esperava.
— Agora vamos escolher que sari usar — disse à garota.
— Senhorita, olhe! — Sukundala apontava para uma caixa em cima
da cama, embrulhada em papel dourado com um enorme laço branco.
— De onde veio isso? — Julie perguntou.
— Não sei, senhorita. Já estava aqui quando cheguei. Não vai abri-
la? Talvez o cartão esteja dentro.
Mas não havia nenhum cartão ali. Julie quase caiu de costas quando
removeu o papel de seda que envolvia o mais lindo dos saris. O tecido de
chiffon, pintado a mão, era de um azul deslumbrante. Uma infinidade de
pequenas estrelas, bordadas uma a uma, espalhavam seu brilho prateado sob o
reflexo da luz. Era deslumbrante; não conseguia despregar os olhos dele.
Sukundala retirou do fundo da caixa um chóli — espécie de blusa de mangas
curtas —, que acompanhava o sari, e um par de sandálias prateadas, no
número exato de Julie.
Vestir aquela roupa era como estar entrando num sonho encantado.
Em êxtase, Julie se olhava no espelho enquanto Sukundala dava os últimos
retoques. Era preciso estar perfeita naquela noite. Os brincos de esmeralda
que pertenceram à sua mãe, e que ela sempre carregava, contribuíram para
torná-la ainda mais parecida com uma princesa. Parada à entrada do salão,
meia hora mais tarde, Julie se arrependeu por não ter pensado em entrar com a
marani ou mesmo com Priya. A sala estava lotada com centenas de pessoas em
trajes de gala. Para sua sorte, entretanto, a marani logo a avistou.
— Julie querida, venha! Não é maravilhoso? — exclamou ela, feliz.
— Tantas pessoas agradáveis Quero que conheça todas.
Antes que pudesse se dar conta, Julie estava rodeada por um grupo
de admiradores. Seu trabalho como jornalista havia lhe dado desembaraço no
trato com pessoas estranhas. Ela estava se divertindo muito, entrosada ao
espírito da festa.
De vez em quando corria os olhos pelo salão, e, numa dessas vezes,
viu o príncipe, que conversava com um grupo. Julie observava, encantada, os

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cabelos negros e o sorriso franco daquele homem tão atraente. Ele era o mais
alto e o mais elegante.
— Srta. Connell? — Julie desviou o olhar e deparou-se com um rosto
simpático. — Estava procurando a convidada de honra. Gostaria de dançar?
— Adoraria! — E saiu rodando nos braços de seu mais recente
admirador. Foi uma surpresa agradável constatar que ele dançava muito
bem.
— Você está ficando famosa por aqui, sabia? — ele comentou com
um sorriso.
— Verdade?
— Ora, não lê os jornais? Que tipo de repórter é esta que não
experimenta do próprio remédio?
Julie havia lido alguma coisa nas colunas sociais, sobre o baile da
marani em homenagem a uma jornalista americana. Por sorte não haviam se
detido nas razões de sua vinda. Era de fundamental importância que
ninguém voltasse a atenção para seu trabalho.
Naquele momento, em meio à dança, avistou Priya. Estranhou o fato
de vê-la entrar àquela hora; esperava que já estivesse com a mãe, recebendo
os convidados. O rosto da princesa denotava uma alegria fora do comum.
Antes de entrar no salão, ela ajeitou o sari e passou as mãos pelo cabelo, num
gesto característico de quem deseja se recompor. Deu uma olhadela rápida,
quase que furtiva, em torno, e só então seguiu adiante, misturando-se aos
convidados.
Julie continuou a ouvir a voz de seu parceiro de dança, mas, apesar
de demonstrar estar apreciando a conversa, sua atenção estava voltada para
Priya. Que estranho procedimento o da princesa! Era inacreditável que
tivesse estado fora da festa a noite toda, considerando o quanto se
empenhara, naqueles dias, para o sucesso do baile. E por que havia sido tão
evasiva quando lhe pedira auxílio para vestir o sari? A não ser que o motivo
fosse algum namorado secreto Não, seria difícil para ela manter uma situação
dessas, escondida do irmão.
— Obrigado, Julie — disse o rapaz, assim que a seleção de músicas
chegou ao final. — Espero que nos encontremos outras vezes, enquanto
estiver em Nova Délhi.
— Será um prazer — ela respondeu, amável.
Ele parecia relutante em deixá-la, mas Julie sorriu e deu um passo
para trás. Um movimento próximo fez com que se voltasse. Levantando os
olhos, deu com uma fisionomia sorridente, cativante.

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— Acho que agora é a minha vez — disse o príncipe.

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CAPÍTULO VIII

— Vamos fazer uma trégua esta noite? — ele propôs, assim que
começaram a dançar.
— Ora, não me diga que mudou de idéia a respeito dos jornalistas!
— Eu raramente mudo de opinião — ele replicou serenamente. —
Só que tudo na Índia é guiado pela tradição, e a tradição diz que nós dois não
devemos brigar esta noite.
— Que tradição?
— Sabe por que há tantos feriados no meu país? Por que
acreditamos que os eventos sociais relaxam a tensão existente entre as
pessoas. Pensamos que as diferenças podem ser resolvidas espontaneamente.
As celebrações, nesse sentido, funcionam como um contínuo recomeçar,
dando a todos a oportunidade de esquecerem as desavenças pessoais. — Ele
sorriu de um modo franco e, pela primeira vez, sem reservas. — Nós dois
poderíamos nos esforçar para fazer valer essa teoria, concorda?
— Plenamente — Julie respondeu, séria. — Isso só nos faria bem.
Conversarem como homem e mulher, sem ressentimentos, era a
única coisa que ela queria. Nada poderia torná-la mais feliz aquela noite.
— Posso dizer então que, pela primeira vez, estamos de acordo —
ele disse, satisfeito.
A orquestra começou a tocar uma valsa vienense. Jai passou o braço
pela cintura de Julie, o corpo alto e vigoroso levemente inclinado sobre ela.
Com a mão pousada no ombro dele, Julie se deixou conduzir, atenta aos
movimentos que faziam sua carne roçar na dele enquanto dançavam. Cerrou
os olhos e deixou o coração flutuar ao sabor da música. Eles se moviam em
perfeita sintonia, como se um fosse a extensão do outro: um só corpo, uma só
alma, um só pensamento.
O instinto fez com que Julie se aproximasse de Jai, e ele, no mesmo
instante, atraiu-a para bem perto.
— Bom — ele murmurou, ante o contato com os seios de Julie, que se
arrepiaram sob o chóli de seda. — Você está linda! Eu sabia que ficaria perfeita
neste sari.
— Então foi você? — perguntou, levantando os olhos para ele. —
Sukundala não sabia dizer de onde tinha vindo aquela caixa, e eu pensei que

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talvez a marani Oh, Jai, obrigada! É lindo!
— Não é mais do que a sua beleza merece. E a deixa muito sexy,
sabia? — ele falou com voz subitamente rouca. Baixou os olhos para os seios
de Julie, como se adivinhasse a sensualidade que o chóli insinuava. Após um
longo momento, transferiu o olhar para os lábios úmidos dela.
— Será que preciso mesmo dizer quanto você é linda? — perguntou,
seus olhares se encontrando novamente. — Que seus lábios são uma
tentação? Que eu gostaria de fazer amor com você aqui e agora, se
estivéssemos sozinhos? Sua pele macia me excita, Julie, seus seios, suas
pernas tão bem-feitas Estou louco por você!
Aquelas palavras incendiaram o corpo de Julie, e um gemido surdo
escapou de seus lábios. Chegou mais perto dele, como se isso fosse possível, e
sentiu a resposta imediata, máscula, que fez cada parte de seu corpo vibrar
com intensidade. Esqueceu tudo mais: o salão de baile, os convidados, os
pares que dançavam à sua volta. Nada existia a não ser aquele homem
magnífico que a mantinha nos braços. E longe, muito longe, havia o som de
uma música qualquer.
— Não pare. Diga mais — sussurrou, ofegante.
Jai continuou falando de seu desejo com a voz rouca pela paixão. A
excitação crescia dentro de Julie, como se sentisse as coisas que ele descrevia.
As palavras de Jai soavam como beijos devassadores, cada qual mais
delicioso e mais íntimo que o anterior. Ela quase podia sentir-lhe a língua
pincelar sua boca, traçando-lhe o contorno dos lábios. Seus pensamentos
vinham fragmentados e coloridos, como um caleidoscópio. No auge da
felicidade, compreendeu que, durante aquelas três semanas de uma
frustração silenciosa, ele também estivera pensando nela.
Pensando nela, desejando-a, sentindo sua falta Tudo isso ele lhe
contava agora, enquanto dançavam; em cada palavra havia uma expressão de
ternura, de amor, de paixão. Ser amada por um homem daqueles era muito
mais do que ela ousaria sonhar.
O tecido finíssimo do sari parecia não existir: Julie podia sentir na
pele o smoking que Jai vestia. A felicidade inundava seu coração, e ela sentia-
se perdida num mar de sensações até então desconhecidas. Compreendeu
vagamente que haviam se afastado do centro do salão e que Jai a conduzia
para uma sala, pequena e aconchegante. Na penumbra, ouvia-se o som
abafado e distante da música que continuava, animada, no salão de baile.
Mas eles não dançavam mais. Jai a tomou nos braços e a beijou
demoradamente. A sensibilidade de Julie estava tão aguçada que o mais leve

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toque provocava nela arrebatamentos de prazer.
— Jai — murmurou, olhando para ele, extasiada.
— Como gostaria de terminar o que começamos, Julie! — sussurrou
o príncipe, acariciando-lhe o rosto com as pontas dos dedos. Seu coração
batia acelerado quando ele se inclinou e levou os lábios até o ouvido de Julie:
— Os deuses terão inveja de nós dois esta noite.
Os dedos longos sustentavam o queixo de Julie, os olhos fixavam-se
na imagem convidativa dos lábios que se entreabriam para ele. Julie fechou os
olhos, antecipando o beijo que não aconteceu. Por algum motivo, Jai apenas
roçou-lhe de leve a boca, como se qualquer coisa o tivesse feito mudar de idéia.
Ela notou que ele estava atento a algo naquela sala. Devagar, sem entender
absolutamente nada, deixou que ele a conduzisse para o sofá.
— Fique aqui e não se mova em hipótese alguma — ele instruiu em
voz baixa.
Só então Julie ouviu o que ele já havia distinguido muito antes: sons
de passos no gramado lá fora. Prendeu a respiração, o coração batendo
descompassadamente.
Jai achou melhor levá-la para outro canto da sala. Era fácil demais
qualquer pessoa entrar por aquelas janelas que continuavam abertas. Julie viu
quando Jai abriu o paletó e tirou uma pistola automática. Até então, ela nem
havia notado que ele estava usando um coldre a tiracolo. Que vida estranha a
daquele homem, que precisava andar armado dentro de sua própria casa!
Ele se abaixou e tirou os sapatos. Só então atravessou a sala
cautelosamente, até chegar perto de uma das janelas. Encolheu-se o mais que
pôde junto à parede.
Passos se fizeram ouvir novamente, desta vez mais perto. Julie
abafou um grito quando mãos enluvadas apareceram subitamente na janela,
colocando um pequeno pacote a alguns centímetros de distância de Jai. As
mãos desapareceram e um ruído de passadas ligeiras chegou aos ouvidos de
Julie, para sumir segundos depois. Jai já estava ajoelhado sobre o pacote.
— Acenda as luzes, rápido — comandou com voz fria, tirando Julie
de seu estupor. Ela chegou até o interruptor com um movimento que lhe
pareceu vagaroso demais. — Pronto! — disse ele, um momento depois,
satisfeito de sua proeza. — Foi uma pena tê-lo deixado escapar, mas do modo
como ele saiu correndo, imaginei que isto aqui fosse explodir a qualquer
momento.
— É uma bomba? — Sua voz soou estranha aos próprios ouvidos.
— Uma bomba rudimentar, mas que faria as paredes do salão irem

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pelos ares — ele respondeu, pondo-se de pé e caminhando na direção de
Julie. — Mas agora estamos fora de perigo. Veja: foi fácil desmontá-la.
— Ela estava programada para explodir daqui a quanto tempo?
— Vamos ver — Ele voltou para o local onde estava o objeto
cilíndrico. — Permaneceu cinqüenta segundos funcionando, e isso quer dizer
que teríamos — abaixou-se e verificou o relógio — mais dez segundos. Esta foi por
pouco, hein? — disse com um sorriso que surpreendeu Julie. Como ele
conseguia ser tão frio numa situação daquelas?
— O baile teve muita publicidade tantos convidados
importantes — Sua voz parecia sumir à medida que se conscientizava do perigo
pelo qual haviam passado. Se o acaso não tivesse feito com que ela e Jai
estivessem naquela sala no momento em que a bomba foi posta na
janela
— Uma oportunidade ideal para nossos amigos terroristas —
concordou ele. — O que está me preocupando é o fato de aquele sujeito ter
conseguido burlar a vigilância dos guardas. — Meneou a cabeça e deu um
suspiro profundo. — Preciso reorganizar todo o esquema de segurança do
palácio.
— Será que ele vai voltar?
— Não. Pode ficar sossegada quanto a isso — Jai respondeu,
tentando acalmá-la. — Neste momento ele já está sabendo que o atentado
fracassou e imagina que meus guardas estejam à sua procura. Só que é tarde
demais para apanhá-lo. Eu mesmo poderia ter executado esta tarefa, mas não
queria correr o risco de deixar a bomba explodir. E você, está bem agora?
Ela fez que sim. Jai sorriu e abriu a porta, sempre tendo o cuidado
de ampará-la. Entraram numa sala ampla, onde era servido o buffet. As mesas
estavam cobertas das mais finas iguarias e centenas de velas em castiçais de
prata iluminavam a sala. Aberturas em forma de arco davam passagem para o
salão de baile, ainda repleto de convidados.
— Fique aqui enquanto trago alguma coisa para reanimá-la. — E
sorriu amavelmente, cheio de cuidados. Como estava diferente! Nem parecia o
homem autoritário com quem ela havia, sem sucesso, tentado trabalhar. Esses
pensamentos acudiam-lhe à mente enquanto observava o príncipe, alto e
elegante, se misturar à multidão. Retraiu-se de encontro à parede,
esperando passar despercebida. Não queria ser incomodada por ninguém.
Jai voltou pouco depois, acompanhado de um homem mais velho.
Julie o reconheceu imediatamente: P. K. Dhawan, assistente do primeiro-
ministro da Índia.

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— Srta. Connell, quero apresentá-la ao sr. Dhawan. Sr. Dhawan,
srta. Connell.
— Muito prazer — Julie cumprimentou, estendendo-lhe a mão.
Simpatizou à primeira vista com o diplomata, um senhor alto e magro,
cabelos grisalhos e rosto aristocrático.
Ele se inclinou para beijar-lhe a mão, num gesto cavalheiresco. Se os
olhos do príncipe algumas vezes lembravam os de um tigre, os deste homem
poderiam ser comparados aos de uma águia.
— Você pode ficar à vontade para fazer sala aos convidados — disse
ele a Jai, e acrescentou, maliciosamente: — É muita esperteza de sua parte
deixar esta beleza radiante na companhia de um velho como eu. Não me
subestime, entretanto. Eu precisaria ter, no mínimo, vinte anos mais para
você ter certeza de que eu não lhe roubaria Julie. — E sorriu de modo
afetuoso, quase paterno.
— Não tenho a menor intenção de confiar Julie a ninguém —
respondeu Jai, estendendo a ela um pequeno prato.
— Dê-me isso — exclamou o diplomata, pegando o prato. — Eu
mesmo servirei a ela estes deliciosos hors-d'oeuvre. Até logo, príncipe Mishra.
— Como quiser. Preciso falar com o capitão da guarda.
O príncipe sorriu para o amigo e então inclinou a cabeça, num aceno
para Julie. Seus olhos a fitavam de um modo tão significativo que ela foi
capaz de distinguir neles humor, aprovação e desejo. Sim, um desejo tão
cristalino que a deixou embaraçada, como se houvesse acabado de se
desnudar na frente de todos. Aquelas pupilas tão negras lhe diziam da
maneira mais óbvia possível que o que se passara entre eles, antes do
incidente da bomba, era algo que deveria ser completado urgentemente.
Só então Jai se voltou e caminhou para o salão de baile,
cumprimentando os convidados que encontrava pelo caminho. Julie
observava, fascinada, o corpo atlético que se distanciava, admirando a
autoconfiança e o carisma no modo como ele conversava com as pessoas.
Depois, consciente de que estivera muito tempo a observá-lo, dirigiu o olhar
para o homem ao seu lado e sorriu, embaraçada, diante da maneira
compreensiva como ele a encarava.
— Estou feliz com a oportunidade de conhecê-lo, sr. Dhawan. Sou
correspondente do Courier de Nova York e esperava pela chance de conversar
com o senhor sobre terrorismo internacional.
— Pois é, o príncipe Mishra já me falou a respeito.
— Ah, é? — Instintivamente, ela colocou-se na defensiva.

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— Sim, ele já comentou alguma coisa comigo e pediu que eu
estivesse aqui esta noite especialmente para conhecer você. Talvez eu possa
ajudá-la.
— Espero que sim — respondeu, mais animada. Havia tentado, sem
sucesso, conseguir uma entrevista com alguém da importância de P. K.
Dhawan desde que chegara a Nova Délhi. — O senhor está familiarizado com
os esforços recentes para organizar o terrorismo na Índia?
O homem fez um aceno afirmativo e sorriu para ela.
— O príncipe me contou sobre os resultados de sua investigação. A
informação de que disponho aponta para a mesma direção. Um assunto nada
agradável o nosso, ainda mais numa noite tão especial, não é? — Meneou a
cabeça e deu um suspiro. — Desagradável mas necessário. É melhor
conversarmos em outro lugar.
Dhawan a conduziu para o corredor principal e convidou-a a sentar-
se num dos sofás estrategicamente espalhados para servirem àqueles que
quisessem descansar um pouco da dança e do movimento. Convidados
passavam de um lado a outro mas ninguém estava perto o suficiente para
acompanhar a conversa dos dois.
— Estaremos melhor aqui — comentou Dhawan. — Olhe só, aquele
rapaz em pé, ali na entrada do salão. Não tira os olhos de você.
Apontou com o olhar, e Julie se voltou sutilmente na direção
indicada. De fato, aquele homem loiro, até um tanto charmoso, a fitava com
visível interesse.
— Vê como são as coisas? — disse, sorridente, o seu acompanhante.
— Os rapazes desta festa estão interessados em você e talvez não entendam
como pode estar aqui, perdendo tempo com um velho como eu. Mas já que é
uma jornalista à cata de informações Bem — acrescentou, encolhendo os
ombros —, acho que o rapazinho loiro terá que esperar.
— Que tipo de informação o senhor possui?
Dhawan mudou o tom de voz, dando-lhe uma inflexão bastante
séria.
— Segundo você, terroristas internacionais estão se reunindo aqui
por perto para discutir a possibilidade de formar um grupo coeso na Índia,
certo? É isso mesmo o que pensa?
— Bem, é o que estou procurando descobrir.
— Só que não é esta a resposta que vai encontrar.
— O que o senhor acha, então?
Talvez Dhawan estivesse de posse de informações mais atualizadas

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sobre a reunião de cúpula, se é que algum membro do governo poderia ter
acesso a este tipo de informação.
— Será uma reunião de terroristas internacionais — respondeu ele
—, mas por uma razão diferente da que você espera. Uma reunião para
organizar e desenvolver uma ofensiva terrorista de âmbito internacional, que
deverá prosseguir, simultaneamente, em vários países. Uma aliança
terrorista, se preferir.
— Acredita que tal aliança seja viável?
Ouvira falar de alguns grupos terroristas que mantinham contatos
com outros. Apesar das diferenças ideológicas, eles se uniam no mesmo
propósito: destruir a ordem política e econômica existente. Os especialistas
que entrevistara no Departamento de Estado enfatizaram o fato de que o
terrorismo internacional não se definia como uma série de acontecimentos
casuais, mas sim como uma tentativa metódica e elaborada para minar a já
instável estabilidade do mundo. A reunião de cúpula que estava para ocorrer,
se é que já não havia ocorrido, poderia ser, inclusive, uma sessão para
organizar a nova onda de atentados.
— Vamos esperar que eles não consigam entrar num acordo —
acrescentou Dhawan.
— Como pode ter certeza de que esta reunião não é simples boato?
— Eu tenho certeza — ele respondeu simplesmente. — Meu
governo teve a sorte de falar diretamente com um dos líderes terroristas.
— Continue, por favor — ela pediu, cada vez mais entusiasmada.
— Esta manhã, um dos líderes das Brigadas Vermelhas foi
identificado por agentes de segurança no aeroporto de Nova Délhi. Nós o
persuadimos de que seria bom responder a algumas perguntas, e, ao final do
interrogatório, essa pessoa acabou revelando que tinha vindo exatamente
com o propósito que acabei de relatar a você. Infelizmente para nós, o
governo italiano, assim que soube da notícia da captura de um terrorista de
seu país, requisitou a custódia imediata do prisioneiro e não tivemos
oportunidade de interrogá-lo mais. Ao que parece, os italianos estavam
ansiosos para interrogá-lo sobre o ataque terrorista acontecido em Roma,
semanas atrás.
A estação de trens! Uma onda de emoção varreu o coração de Julie, e
ela sentiu uma náusea muito forte. Aquele dia horrível os corpos um dos
assassinos aqui, agora! Forçou a mente para se concentrar nas palavras de
Dhawan.
— Naturalmente — ele estava dizendo, com um olhar tão

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penetrante que se assemelhava ao do príncipe —, se você decidir que isso é
importante para ser publicado, por favor refira-se a mim com aqueles
chavões dos quais os jornalistas fazem uso constantemente.
— O senhor quer dizer "uma fonte de informações do governo", ou,
quem sabe, "um diplomata que não quis se identificar"? — perguntou ela,
sorridente.
— Qualquer uma das duas formas — ele respondeu, devolvendo o
sorriso. — O príncipe Mishra e eu concordamos que seria bom deixar os
terroristas saberem que suas ações não são tão secretas quanto desejariam. No
mínimo, isso fará com que duvidem um pouco da própria força. Bem, agora
acho que já posso liberá-la. Os jovens cavalheiros da festa devem estar
reclamando a presença da convidada de honra.
Ele sorriu e então se levantou para dizer com extrema cordialidade:
— Ah, sr. Brunnen, que prazer encontrá-lo. Srta. Connell, tenho o
prazer de apresentá-la ao sr. Hans Brunnen, secretário da embaixada alemã.
Agora, se me dão licença, estou vendo um velho amigo com quem preciso
falar.
— Obrigada, sr. Dhawan — disse Julie, meio atarantada com a
rapidez com que o diplomata se despedira.
— Foi um prazer, Julie — ele respondeu. — E quando precisar de
meus serviços, é só me procurar.
— O sr. Dhawan ocupa um cargo muito importante no governo —
Hans Brunnen observou, depois que o homem se afastou. — Mas
naturalmente a senhorita não se interessa por estes assuntos, não é? Não
gostaria de experimentar um doce?
— Para falar a verdade, preferiria dançar. A orquestra está
começando a tocar uma valsa.
— Com muito prazer — respondeu o alemão, deixando o prato de
lado e oferecendo o braço a Julie.
Para sua sorte, ele estava mais interessado em dançar do que
propriamente conversar. A informação que Dhawan havia lhe passado era o
maior indício que ela tivera até então sobre a realização da conferência
terrorista. A captura do líder das Brigadas Vermelhas na Índia indicava que a
rede terrorista ultrapassava fronteiras.
Naturalmente, teria que checar a história de Dhawan: algumas vezes
os governos costumavam fornecer informações falsas aos correspondentes, de
acordo com aquilo que gostariam de ver publicado. Mas seria fácil verificar a
veracidade do que lhe fora contado.

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Ouviu seu parceiro pigarrear e só então percebeu que ele havia dito
alguma coisa.
— Oh, desculpe-me, estava entretida com a música — mentiu. — O
que estava mesmo dizendo?
— Perguntei se não gostaria de conhecer o embaixador da Noruega.
Ele está acenando para nós.
— Certamente.
Julie passou o resto da noite dançando. Os parceiros se sucediam,
um após outro, não lhe dando descanso, mas, cada vez que ela avistava o
príncipe em meio aos outros convidados, admitia que dançar com ele fora
uma experiência inesquecível. Não importava quão interessante e charmosos
pudessem ser os outros; sentia falta do abraço possessivo e dominador de Jai.

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CAPÍTULO IX

Eram três da madrugada quando as primeiras pessoas começaram a


deixar a festa, e às cinco a orquestra parou de tocar. Julie permaneceu
dançando até o final e, então, ajudou a marani a se despedir dos últimos
convidados. Tentou ver se encontrava Priya, esperando trocar algumas
palavras com a princesa antes que esta se recolhesse. Queria saber o que
havia acontecido para ela ter desaparecido da festa durante tanto tempo.
— Priya já subiu — informou a marani. — E eu vou fazer o mesmo.
Acho que nenhuma de nós estará de pé antes do meio-dia — acrescentou com
um sorriso cansado.
— Foi uma festa maravilhosa, marani — Julie comentou, notando
que, apesar de exausta, a boa mulher parecia satisfeita e realizada com o
sucesso do baile.
— Sim, minha querida, foi muito agradável, não é mesmo? É tão
bom ver a casa repleta de convidados! Talvez possamos repetir a dose e usar
novamente o salão de festas enquanto você ainda estiver aqui.
— Fico contente por vê-la tão animada. A senhora fez realmente um
ótimo trabalho.
— Obrigada. De fato, foi um ótimo entretenimento ocupar-me dos
preparativos. Há muito que não me divertia tanto. Bem, boa noite, minha
querida — despediu-se, dando um abraço em Julie. — Boa noite, e bom
descanso.
Quando se viu a sós, Julie voltou ao salão. Apesar da hora, não se
sentia cansada ou com sono. Vagueou um pouco, apreciando o silêncio que
descera sobre o local após tantas horas de confusão e das centenas de pessoas
que haviam agitado uma das maiores festas a que ela comparecera nos
últimos tempos. Tirou as sandálias e pisou sobre os confetes multicoloridos
que cobriam a pista de dança.
— Nenhuma festa na Índia pode ser completa sem o uso de
confetes.
Julie levantou os olhos e viu que o príncipe a observava, de braços
cruzados, encostado a um dos pilares. Ele já não usava o paletó e seus ombros
pareciam ainda mais largos sob a camisa branca.
— Eles acrescentam alegria e animação às comemorações —

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concordou ela, abaixando-se para pegar um punhado de confetes do chão. —
Você não me parece cansado — comentou, olhando para ele, que caminhava
devagar em sua direção. Pouco a pouco foi deixando os pedacinhos de papel
escaparem-lhe da mão.
— Nem você, considerando-se a enorme fila de admiradores que
precisou atender.
— Sempre utilizei o "dançar a noite toda" como força de expressão.
Só que hoje posso dizer pela primeira vez, literalmente: dancei a noite toda.
— Olhava para ele, contente, sentindo um enorme bem-estar por estarem ali,
juntos, no amanhecer de um novo dia. — Por sorte as sandálias não são altas,
caso contrário não sei se agüentaria.
Estavam de pé, no meio do enorme salão, olhando um para o outro.
Julie tentou encontrar no rosto de Jai algum sinal da antiga rusga, mas, para
seu conforto, os olhos negros estavam límpidos.
— Por que não vamos até o terraço? — sugeriu o príncipe,
quebrando o silêncio. — A aurora está rompendo.
Pegou-a pela mão e percorreram as alas desertas do palácio, que
estiveram apinhadas durante a festa.
— Gostei muito do baile — Julie comentou, pousando o olhar nele.
Por que lhe parecia tão natural estar caminhando de mãos dadas com aquele
homem misterioso? E por que sua mão começara a formigar no momento em
que os dedos dele a apertaram?
— Fico contente por você ter gostado. Afinal de contas, era a
convidada de honra.
— Você é um felizardo por possuir tantos amigos. Jai
olhou para ela.
— Amigos? Como você é bobinha, Julie! — observou, um sorriso
nos lábios.
— E não eram?
— Conhecidos, talvez. Políticos. Industriais. Um ou outro parvenu.
Mas amigos? Não estou tão certo disso.
— Nem mesmo o sr. Dhawan?
— Você está certa. — Jai sorriu. — Dhawan é meu amigo. Alguns
outros também. São velhos conhecidos de família com quem fazemos questão
de manter relações. — Fez uma pausa. — Agora me ocorreu, falando em
família, que você nunca mencionou nada sobre seus pais.
Ela o encarou, tomada de surpresa com a pergunta. Era a primeira
vez que ele manifestava interesse por algo que dizia respeito à sua vida

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particular.
— Meu pai morreu num acidente quando eu ainda era um bebê —
respondeu, sem sentimentalismos. — Quanto à minha mãe, morreu quando
eu tinha doze anos. Eu era filha única e uma tia se encarregou de minha
educação.
— Sinto muito pelas duas coisas: por você ter perdido seus pais tão
cedo e por ter ficado sozinha, sem irmãos.
Ela deu de ombros.
— Não é tão terrível assim. Viver sozinha é um desafio. Saber que
não posso contar com ninguém a não ser comigo mesma me dá força interior.
Claro que sinto falta de meus pais, mas Meu Deus, mal posso acreditar que
esteja lhe contando essas coisas!
— Fico contente por estar confiando em mim.
Chegaram ao terraço. Jai passou o braço pela cintura dela e assim
ficaram, lado a lado, observando o despertar da natureza. Então um pássaro
começou a cantar e outro logo respondeu.
— Eu sempre quis saber quando eles começavam a cantoria — disse o
príncipe. — Olhe! — Ele apontava para o horizonte, onde um pedaço do céu
começava a se tingir de vermelho.
— É lindo!
— Você também é linda.
Ele se voltou para ela e atraiu-a junto ao peito. Ela enrijeceu o corpo,
não porque estivesse resistindo àquele contato, mas para controlar o tremor
súbito que tomara conta de todo seu ser.
— Você já se esqueceu dos momentos maravilhosos que passamos
juntos enquanto estivemos dançando? — ele sussurrou, abraçando-a com
força. Não havia hesitação alguma naquele movimento, nenhuma dúvida. As
mãos dele massageavam-lhe as costas enquanto o corpo masculino se
enroscava no seu.
Não, ela não havia esquecido. O arrepio de excitação que lhe
percorria a espinha a teria lembrado, de qualquer modo. Ergueu as mãos e
pousou-as no peito de Jai, e, naquela posição, seus braços acabaram criando
uma barreira natural entre os dois.
— Julie — ele perguntou com cuidado, afastando-se um pouco —,
por que resiste tanto a uma coisa que, é óbvio, deseja com a mesma
intensidade que eu?
Os dedos se crisparam sobre o peito dele. Ela queria explicar que
não podia se envolver com alguém com quem deveria estar trabalhando. Isso

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criaria um conflito: poderia perder sua objetividade como jornalista,
deixando-se influenciar pelas idéias dele, ainda que este processo fosse
inconsciente. Só que não conseguiu achar as palavras certas para explicar
tudo isso. Sua voz soaria artificial e contraditória em relação ao que sentia
naquele momento. E, naquele momento, o que realmente queria era ser
novamente beijada por Jai. Seus dedos acariciavam o peito dele enquanto
emoções conflitantes cruzavam-lhe o cérebro.
De repente deu-se conta de que a respiração de Jai se acelerava. Este
pequeno detalhe a fez vibrar: ela o havia excitado! A forte atração que desde o
início sentira por ele era recíproca! Aquele homem tão seguro de si,
aparentemente invencível, tremia a um simples toque de mulher. Um
impulso, selvagem e incontrolável, cresceu dentro dela.
Suas mãos, que a princípio tinham sido usadas para afastá-lo, agora
enlaçavam-no com desejo. Ela sentiu-o tomar fôlego; em seguida, Jai trouxe-a
com violência ao seu encontro num abraço apertado, amoldando o corpo
esbelto de Julie ao seu. Uma sensação deliciosa a invadiu e ela teve vontade
de gritar de prazer.
O toque gostoso dos dedos de Jai excitavam-na e a excitação crescia à
medida que ele lhe explorava os quadris, a cintura, os ombros. Julie prendeu
a cabeça dele entre as mãos e obrigou-o a inclinar-se. Jai ficou um segundo
imóvel, os olhos negros se deliciando com a imagem dos lábios que se
entreabriam para ele. Então a beijou com uma paixão e uma ternura que ela
desconhecia. Um frêmito de prazer sacudiu-lhe o corpo, à medida que os
beijos tornavam-se mais ousados, mais sugestivos.
— Oh, Jai Eu quero você!
— Eu sei, meu amor. Eu também te quero. Muito.
Eles então se separaram, num acordo mudo, e Jai, passando o braço
à volta dela, a guiou para fora dali. Atravessaram o terraço, sempre
abraçados, até chegarem a uma espaçosa varanda. No canto, meio escondida
atrás dos arbustos, havia uma escada estreita em forma de caracol. Ao pé dos
degraus, uma grande pedra bloqueava a passagem. Jai olhou para Julie com
um sorriso um tanto maroto nos lábios.
— Agora vou lhe mostrar um segredo de infância — disse ele,
beijando-lhe a testa.
— Um segredo?
— Quer dizer, não é bem um segredo, mas eu gosto de fingir que é.
Enquanto falava, ele movia a pedra, tomando cuidado para não
tocar nos arbustos. Julie era capaz de ouvir nitidamente a respiração dele.

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Sentia a estranha impressão de ter, finalmente, chegado ao lar, a um lugar de
onde não pretendia mais sair.
— Aqui está — disse ele, e Julie viu uma pesada porta com um par
de tigres, o emblema da dinastia Mishra, cravado no metal. — Há anos que
não venho aqui — ele murmurou enquanto abria as portas "secretas".
— Afinal, o que pretende fazer?
— Mostrar a você o meu esconderijo. Um jardim secreto. — Aberta a
porta, Julie vislumbrou um paraíso de plantas exóticas, árvores e flores das
mais variadas espécies. — Pelo jeito, não fui o único a esquecer este recanto
— ele observou com um riso divertido enquanto passeava os olhos em volta.
— Deve fazer, no mínimo, um ano que nenhum jardineiro põe os pés aqui
dentro.
— Pois eu gosto assim como está — ela sussurrou, embevecida com a
beleza do lugar.
— De qualquer modo, este jardim sempre foi o menos cuidado de
todos. Eu gostava de passar horas aqui, fingindo que ninguém mais sabia da
existência deste lugar. Era só aferrolhar a porta pelo lado de dentro e pronto:
ninguém podia me incomodar. Assim! — E passou a tranca na porta. — Vê?
Agora estamos isolados do resto do mundo — brincou, demonstrando uma
alegria quase infantil. Então, tomou-a pela mão e conduziu-a a uma bancada
de mármore cercada de rosas. Sentou-se sobre as almofadas e puxou Julie.
— Jai — murmurou ela, subitamente em pânico por sentir que aquela
situação era agora irreversível. — É melhor nós — Mas a tentativa de dizer
qualquer coisa desapareceu em meio ao beijo que ele lhe deu.
— Julie — a voz rouca fazia cócegas em seu ouvido —, você quer
isso tanto quanto eu. Portanto não fuja, não procure desculpas para impedir
que nos amemos. — E beijou-a novamente, dessa vez com violência,
impedindo-a de fazer novas objeções.
Julie afundou nas almofadas sob o peso do corpo de Jai, num
crescendo de excitação que a fazia esquecer qualquer medo.
— Jai, o que está fazendo comigo? — murmurou, cega de paixão.
— Quero que você sinta prazer, Julie. — Seus lábios se moviam,
ávidos, sobre os dela. — Meu Deus, como você é linda!
Com um movimento preciso, ele desfez as pregas em que
Sukundala tanto se esmerara. Livre, a seda flutuou como uma nuvem, caindo
sobre as almofadas. No momento seguinte, as mãos do príncipe alcançavam
os seios de Julie numa carícia envolvente. Com os olhos brilhando de desejo,
ele viu os mamilos se enrijecerem, tornando-se visíveis sob o finíssimo chóli.

82
— Eu não sabia que viria a desejar tanto uma mulher como desejo
você, Julie. Quero-a por inteiro, não apenas seu corpo.
Ela o envolveu num abraço apertado enquanto suas bocas
novamente se encontravam. Perdeu o fôlego e começou a tremer
incontrolavelmente quando sentiu as mãos fortes de Jai percorrerem-lhe o
corpo numa investigação minuciosa.
Sempre devagar, ele tirou o chóli, deixando à mostra os seios
entumescidos, e, por um instante, deixou que suas mãos sentissem o volume
daquela carne macia. Julie gostaria de implorar que ele continuasse. Mas Jai
parecia não ter pressa. Vagarosamente lhe acariciava os mamilos, até que o
corpo de Julie se consumisse em fogo. E quando finalmente desceu os lábios
para seus seios, ela se arqueou instintivamente para acelerar aquele contato.
As pequenas mordidas que ele lhe dava e a massagem que fazia em seguida
com a língua despertavam nela sensações até então desconhecidas. Num
impulso incontrolável, prendeu a cabeça dele entre as mãos, mantendo-a de
encontro aos seios, numa tentativa de prolongar indefinidamente o erotismo
daquele momento.
— Tão macios, tão perfeitos — ouviu-o murmurar.
— Jai Jai — Como era maravilhoso o som daquele nome! Agora
tinha certeza de que queria pertencer a ele para sempre, sem reservas, sem
inibições. Beijou-o então, sofregamente, num apelo mudo.
Mudo mas eloqüente, pois logo a seguir Jai levou as mãos até sua
cintura delgada e começou a tirar-lhe o sari. Julie levantou um pouco o corpo,
somente o suficiente para deixar passar o tecido, e então, com as pontas dos
pés, atirou-o longe, não perdendo de vista o olhar cobiçoso de Jai sobre seu
corpo quase nu. Ele lhe acariciava as pernas, a parte interna das coxas, até
chegar à delicada calcinha de renda, que tirou com movimentos tão
vagarosos e tão rigidamente controlados que Julie só pôde imaginar quanto
aquilo estaria lhe custando.
Sem tirar os olhos dela um segundo sequer, ele arrancou a própria
roupa, desta vez com uma urgência que beirava o desespero. Ainda que
tentasse, ela não conseguiria esperar mais e foi com um gemido de prazer que
recebeu aquele corpo nu sobre o seu. Ficaram assim, imóveis, um instante,
saboreando o gozo de estarem livres, um nos braços do outro, sentindo seus
corações baterem acelerados ante a maravilhosa expectativa. Quando aquela
tranqüilidade se tornou intolerável para ambos, Jai começou uma nova
exploração, utilizando as mãos e a boca em carícias íntimas e sensuais que a
levaram ao auge da excitação.

83
— Jai!
O grito apaixonado saiu incontrolável da garganta de Julie, e ele
então não conseguiu mais se reprimir. Deitou-se sobre ela, pressionando-lhe o
corpo contra as almofadas. Uma chama de prazer se acendeu naquelas
pupilas negras, que testemunhavam o extraordinário arrebatamento de Julie.
Seus olhares se encontraram no momento da penetração e não mais se
libertaram até o clímax, quando então, exaustos, seus corpos se entregaram a
uma doce sensação de abandono.
Quanto tempo permaneceram unidos, saboreando aqueles
momentos que se seguiram ao amor, ela não pôde precisar. Ficaria feliz em
passar a eternidade ali, ao lado daquele homem que, em meio a uma paixão
tão ardente, tinha tornado sua vida, pela primeira vez, completa.
Jai virou-se para ela e, apoiando-se sobre o cotovelo, ficou a observá-
la com um sorriso de prazer.
— Está na hora de irmos — disse com suavidade. — Já é dia e daqui a
pouco começará o movimento na casa.
— Não, por favor Vamos ficar mais um pouco.
— Haverá outras oportunidades. — As palavras vinham carregadas
de promessas.
Jai levantou a cabeça e ficou um instante contemplando o rosto
bonito de Julie, acariciando-a com as pontas dos dedos.
— Bem-vinda ao mundo dos mortais — disse, bem-humorado. —
Você está parecendo uma viajante que acabou de voltar para casa após uma
longa jornada.
— E é exatamente como me sinto!
— Nós viajaremos novamente — ele retrucou, fitando-a firmemente
nos olhos. — Mas agora vamos. — Sentou-se e começou a se vestir, pegando a
camisa, amarrotada, do chão.
— Oh, Jai! — Julie exclamou, alarmada, assim que se levantou. — Eu
não sei como vestir o sári!
Ele deu uma risada gostosa.
— O melhor que tem a fazer é embrulhar-se nele. Não se preocupe,
ninguém verá você. Basta seguir pela esquerda, evitando o terraço.
Ele se pôs em pé e observou demoradamente a bela mulher à sua
frente, atarefada em se cobrir da melhor maneira possível.
— Ah, Julie — murmurou, sentindo o desejo reacender —, que pena
não podermos ficar aqui para sempre!
Ela o encarou, incapaz de responder. Seria verdade que se

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apaixonara por aquele homem? Que se entregara sem reservas a uma pessoa
que desconfiava de seu caráter? Não, não o amava. Não podia amá-lo.
— Venha cá, Julie — disse ele, puxando-a de encontro a si.
— O que é?
— Diga-me o que está havendo.
— Como?
— Seu rosto está mudado. Você parece preocupada, um tanto triste.
Por quê?
Ela tentou sorrir, mas suas palavras soaram sérias demais.
— Não devemos repetir isso, Jai. Nunca mais. Não é justo para
comigo, meu trabalho, ou mesmo para você.
— O que não é justo?
— Você confia em mim agora? Ou ainda acha que sou uma espiã?
Ele não respondeu, e um brilho de desespero passou por seu olhar
quando percebeu o dilema em que estavam envolvidos. Aquele silêncio foi
uma resposta mais do que eloqüente para Julie, que juntou as outras peças do
sari e saiu correndo pelo jardim. Pouco depois, já em seu quarto, ela ensopava
de lágrimas a fronha que cobria o travesseiro.

85
CAPÍTULO X

Quando entrou na Netaji Subash Marg, o táxi diminuiu a velocidade


para que Julie pudesse apreciar a imponente estrutura de pedra à sua
esquerda. O Forte Vermelho, famoso ponto de referência indiano, fora
construído pelo imperador mongol Shah Jahan no século XVII, ao mesmo
tempo que seus homens completavam o Taj Mahal em Agra. A estupefação
diante da grandeza de tais empreendimentos, que não contaram com
equipamentos de construção modernos, acabou por distrair a atenção de Julie e
de seus próprios problemas. Aquela era a tarde seguinte ao baile. O telefone
tocara ao meio-dia, tirando-a de um sono profundo para atender à chamada
do Courier. Após obter a confirmação da prisão do líder terrorista, ela ditou a
reportagem sobre o caso, utilizando as informações de Dhawan, e depois
falou rapidamente com Wes Harding.
Incapaz de voltar a dormir, decidiu tirar a tarde de folga e fazer uma
exploração pela Chandni Chowk, a mais antiga feira de Nova Délhi. Queria
estar fora do palácio antes que a marani e Priya acordassem. Acima de tudo,
não desejava ver Jai, não antes de refletir muito sobre seu caso com ele.
Mas aquela era uma tarefa difícil. Racionalizar as emoções de uma
parte para outra estava se revelando um exercício impossível. Normalmente
calma e observadora, havia descoberto que a lógica através da qual sempre se
baseara não funcionava mais. Na verdade, não conseguia tirar o pensamento
da beleza quase mística dos momentos que compartilhara com Jai.
Sentada no banco traseiro do táxi, olhos semicerrados, ainda sentia
os lábios de Jai sobre sua pele, sua boca, seus seios. Era difícil aceitar o fato de
que havia sucumbido sabendo de antemão tudo o que ele pensava a seu
respeito. Entretanto, a lembrança do desejo e do prazer que tomaram conta de
seu corpo naquele jardim paradisíaco fez com que ela entendesse e aceitasse
o fato de que aquele fora um acontecimento inevitável. Era preciso ser
honesta e não culpar o príncipe. Desejara intensamente aqueles momentos
tanto quanto ele.
O táxi entrou na Chandni Chowk, a maior e mais rica via pública da
antiga Délhi. A marani havia lhe contado que a movimentada rua fora
apelidada de "rua da prata" por causa das jóias lá vendidas. O enorme fluxo
de pedestres impedia o táxi de prosseguir. Julie saltou, decidida a dar umas

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voltas e conhecer de perto o local. Quase caiu de costas ao avistar Priya, que,
encostada num pilar de granito poucos metros adiante, conversava com um
desconhecido. Ela parecia radiante de felicidade.
Julie sabia que Jai não permitiria à irmã sair sozinha com um
homem. Aquilo era um absurdo do ponto de vista da cultura indiana,
principalmente em se tratando de uma jovem com status de princesa. O rapaz
era, sem sombra de dúvida, muito bonito. Alto e magro, não tirava os olhos
da princesa. Um pretendente, sem dúvida. E visivelmente apaixonado.
Após um momento de hesitação, Julie caminhou na direção deles,
abrindo caminho entre os passantes. O rosto da garota empalideceu tão logo a
avistou, e seus olhos se arregalaram em pânico quando Julie chegou perto e a
cumprimentou. Era evidente que estava desorientada. Lançou um olhar
desesperado ao rapaz, que continuava imperturbável.
Sem outra escolha, acabou apresentando-o. Lal Delal cumprimentou
Julie de um modo galante. Na verdade, o olhar de inconfundível apreciação
com que ele, rapidamente, a mediu dos pés à cabeça, fez com que ela
reavaliasse sua primeira impressão quanto ao verdadeiro interesse do rapaz
em Priya— Contudo, nenhum homem em sã consciência se arriscaria a um
encontro clandestino com a irmã do príncipe Jaiapradesh Mishra se não
estivesse irremediavelmente apaixonado.
Embora houvesse provocado aquela situação, Julie não tinha o que
dizer. Trocou algumas palavras com Delal durante alguns minutos e acabou
se despedindo. Priya, que torcia as mãos num gesto nervoso, não disse
absolutamente nada.
Julie voltou ao palácio, mergulhada em seus pensamentos. Quando o
táxi a deixou defronte à escadaria de mármore, ela se surpreendeu por não ter
sentido o trajeto, preocupada que estivera em avaliar a atitude de Priya. Claro
que a vida particular da princesa não era da sua conta; todavia, não podia
deixar de sentir em relação à jovem uma certa inquietação. Tinha medo de que
ela viesse a se machucar, o que não era de todo impossível já que estava
afrontando certas convenções que a sociedade indiana impunha a uma mulher
em sua condição social.
Lal Delal parecia uma pessoa fina e amável. Não havia nenhuma
razão aparente para ela supor que não daria um marido adequado para a
princesa. Só que o considerara insinuante demais para seu gosto. Mais ainda: o
fato de ele ignorar o perigo a que esses encontros expunham Priya dava um
traço negativo ao seu caráter. Mas, para ser justa, precisava admitir que a
grande beleza da jovem podia fazer com que qualquer homem pusesse de

87
lado todas as considerações, especialmente se julgasse que cortejá-la em
segredo fosse a única opção possível.
Gostaria de saber por que Lal não fizera nenhuma tentativa de
chegar até a princesa pelos meios convencionais. Mas lembrou-se a tempo de
que, se ele pertencesse a uma posição social ou a uma casta diferente da de
Priya, não teria chance de conhecer a princesa pelas vias tradicionais.
Parou no hall de entrada. Embora estivesse preocupada com Priya,
seus pensamentos se voltaram para o dono da casa. Apesar das restrições que
ela fazia sobre um relacionamento íntimo com Jai, não podia negar o
contentamento que sentira a tarde inteira. O homem mais extraordinário que
conhecera em sua vida a considerava atraente e desejável, e isso lhe
proporcionava um prazer imenso.
Impelida por tais pensamentos, tomou o caminho do longo corredor
que levava ao escritório do príncipe. Jai havia lhe dito uma vez que não
interferisse nos problemas de sua família, mas sentia que Priya corria um
risco muito grande e por isso seu irmão precisava ser alertado.
A porta do escritório estava aberta e Julie parou para dar passagem a
um homem de vestes simples que acabava de ter uma conversa com Jai.
Vendo-a, o homem hesitou um instante e baixou o olhar timidamente ao
passar. Talvez fosse um empregado de uma das indústrias do príncipe, ela
pensou enquanto entrava no escritório.
Jai a observava com indisfarçável desprezo. Um só olhar na direção
daquele rosto bastou para fazer Julie mudar de idéia: não diria nada sobre
Priya. Não era possível que este fosse o mesmo homem que horas atrás a
segurara nos braços com uma paixão avassaladora.
Ela tentou descobrir algum traço de emoção ou ternura naquele
olhar, mas só encontrou indiferença. Pior ainda: desdém. Os cantos dos lábios
se curvavam num sorriso cínico, mais eloqüente do que um milhão de
palavras.
Sem dizer nada, Julie girou nos calcanhares e saiu pelo corredor.
Lágrimas de revolta e humilhação queimavam-lhe os olhos. Não tinha a
mínima idéia do motivo de uma atitude como aquela, justamente quando
mais precisava do carinho e da compreensão dele. Como era horrível sentir-
se um simples objeto de prazer!
Não se surpreendeu quando, tarde da noite, ouviu uma leve batida à
porta de seu quarto. Priya entrou em seguida, olhos banhados em lágrimas,
expressão tensa.
— Eu não contei nada a Jai, Priya — Julie falou, procurando

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sossegar a jovem. Era bem capaz de entender o medo da princesa. Se tivesse
um irmão como aquele, agiria da mesma forma.
Priya se ajoelhou ao lado da cama e agarrou-lhe as mãos.
— E não vai contar, não é? Por favor, não diga nada sobre Lal! Jai
não entenderia e não me deixaria vê-lo nunca mais. E sem Lal eu prefiro
morrer!
Aquelas palavras poderiam parecer melodramáticas na boca de
qualquer outra mulher, mas na de Priya elas tinham um tom de ameaça.
— O que é isso, Priya? Levante-se, pelo amor de Deus! Prometo não
dizer nada a Jai sobre seu namorado. Agora sente-se aqui ao meu lado e
acalme-se. Por que não me conta tudo?
Priya enxugou as lágrimas e, com a voz entrecortada, passou a
narrar a história de seu romance secreto. Conhecera Lal Delal por acaso,
numa das ocasiões em que saíra às compras. Abarrotada de pacotes, não
conseguiu evitar que um deles lhe escapasse das mãos na saída da loja. Lal,
que estava do lado de fora admirando a vitrine, prontamente a auxiliou. Uma
simpatia espontânea nasceu entre os dois, fazendo com que marcassem um
encontro para o dia seguinte. Isso acontecera há um mês. Desde então Priya
continuara a vê-lo assiduamente. E acabou admitindo que usara a festa que a
mãe promovera para camuflar mais um daqueles encontros clandestinos.
Como toda mulher, ela queria que Lal a admirasse no seu vestido novo, que
fora escolhido pensando nele. Por isso chegara tão tarde ao baile e por isso
também havia despistado Julie quando esta lhe pedira ajuda para vestir o sari.
Algum tempo depois, já sozinha, Julie continuava intrigada com a
história de Priya. Havia muitos pontos que continuavam obscuros. O modo
como se sucedera o primeiro encontro, por exemplo. Ela sabia que encontros
casuais eram praticamente impossíveis num país como a Índia. Todas as
apresentações entre jovens em idade de se casar eram feitas através de
familiares ou de amigos chegados. O fato de Priya ter concordado em vê-lo
em circunstâncias tão incomuns seria considerado um absurdo numa
sociedade fechada como a indiana. Delal devia ter sido persuasivo ao
extremo para conseguir que aquela jovem rigidamente educada passasse por
cima das convenções.
— Julie, sua boba, você está fazendo uma tempestade em copo
d'água. Até parece que a convivência com Jai ensinou-a a ser desconfiada —
disse em voz alta e, decidida a não pensar mais naquilo, pegou alguns jornais
espalhados pelo chão. Mas aquela história ainda ficou martelando em algum

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canto de sua mente. Havia qualquer coisa em Delal que não apreciava.
Tentou se concentrar na leitura quando então o telefone tocou.
Rápida, alcançou o fone. Quem seria? Não estava esperando nenhuma
chamada de Nova York.
— Alô?
— Venha ao meu escritório — disse o príncipe com voz grave.
Jai levantou-se e saiu de trás da escrivaninha assim que ela entrou.
A camisa aberta nos primeiros botões revelava uma parte do tórax
bronzeado. O relógio sobre o consolo indicava uma e trinta da manhã.
— Leia isto — disse ele, apontando para um calhamaço de folhas
preenchidas com tipos de computador.
Julie caminhou até a mesa e começou a ler o telex. Parecia uma série
de informes vindos de várias cidades da Índia.
— Informações do serviço de inteligência? Ele
confirmou com um gesto.
— Fontes do governo?
— Não — respondeu ele. — Meus homens.
Ela sentou-se numa poltrona ao lado da escrivaninha e leu, atenta,
uma a uma das folhas. Podia sentir sobre si o peso do olhar de Jai. Leu até o
fim, em silêncio, quando então exclamou:
— Não é possível! Não o sr. Dhawan!
O olhar do príncipe se suavizou um pouco quando comentou:
— Ele vai sobreviver. Seu estado, embora sério, não é crítico.
Os informantes do príncipe haviam enviado telex de várias
localidades noticiando uma série de atentados ocorridos simultaneamente
nos mais diversos pontos do país, nas duas últimas horas. A leitura daqueles
acontecimentos reavivou em Julie a repulsa que sentira por ocasião dos
atentados que cobrira para o Courier. Levantou-se e, com a cabeça baixa,
depositou a massa de papéis sobre a mesa. Até quando, meu Deus? Até
quando pessoas inocentes seriam mortas?
— O que você sabe sobre isso tudo? — ouviu Jai interrogar,
autoritário, acusador, aproximando-se dela.
— Jai, por favor, não faça com que eu o odeie — suplicou,
desanimada demais para iniciar uma discussão. — Não tenho nada a ver com
os atentados. Só soube agora, lendo essas notícias. — Um tremor sacudiu-lhe o
corpo, terminando com um soluço estrangulado na garganta. Virou o rosto
para que ele não pudesse ver as lágrimas que corriam, abundantes. Fechou os
olhos tentando controlar o choro.

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Sentiu os braços de Jai à sua volta. Aconchegada ao peito forte,
chorou livremente, os soluços sacudindo-lhe o corpo. Agarrou-se a ele em
desespero, como que a lamentar todas as dores da humanidade, todas as
injustiças que corriam pelo mundo. Pensava nas vítimas dos atentados,
muitas das quais conhecera no baile: pessoas sérias, dignas, como Dhawan.
Jai abraçava-a carinhosamente, acariciando-lhe os cabelos com ternura. Aos
poucos ela foi se acalmando. O príncipe voltou ao seu lugar atrás da
escrivaninha e ela puxou uma cadeira, sentando-se ao lado dele.
— Desculpe, não consegui me controlar. Onde estávamos? —
perguntou ela. — Por que você me mostrou essas informações?
— Qual é a sua opinião sobre estes fatos? — perguntou ele. Seu
rosto era uma máscara de gelo, como se o consolo que dera a ela minutos
atrás não tivesse existido. Talvez ele esteja se considerando fraco por ter
sentido vontade de me consolar, pensou ela. Mas aquele pensamento,
comparado à violência dos acontecimentos recentes, parecia não ter o menor
sentido.
— Alguém, ou algum grupo, já se responsabilizou pelos ataques?
— Ainda não. Talvez amanhã de manhã já tenhamos notícias.
— Você acha que os assassinatos poderiam ser um modo de
anunciar a formação de uma organização terrorista na Índia?
— Eu penso que sim.
— Isto significa, então, que eles já devem ter se reunido, ou seja,
perdemos a oportunidade de desmascarar a tal reunião de cúpula —
acrescentou ela, falando agora como profissional e esquecendo o
sentimentalismo.
— Não necessariamente. É provável que este ataque já estivesse nos
planos deles. Os terroristas não agem impensadamente. Cada ação é
cuidadosamente pesquisada, planejada e então levada a cabo. Atacar em
larga escala, como fizeram, requer meses de preparação. O que esses malditos
terroristas querem é um efeito teatral, dramático. É o único modo de
conseguir que suas atividades apareçam diferenciadas de crimes comuns.
— Isso quer dizer que você não considera que os ataques desta noite
representam uma aliança de grupos subversivos, como quer o sr. Dhawan.
— O líder das Brigadas Vermelhas chegou ontem de manhã. Nada
poderia ter acontecido tão rápido, em apenas um dia. Na minha opinião,
esses assassinatos são uma demonstração de força de algum grupo recém-
formado na Índia, que deve estar anunciando ao mundo sua existência e,
quem sabe, tentando impressionar os líderes terroristas que estão vindo para

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a reunião. Espero estar lá quando ela acontecer.
— Eu também — retrucou Julie.
Trabalhou o resto da noite checando informações e colhendo dados.
Usou a máquina de telex do príncipe para enviar a reportagem para Nova
York em vez de esperar, como de costume, a demorada ligação para o jornal.
Jai se oferecera para acordar o secretário, mas Julie dispensou a oferta uma
vez que poderia operar a máquina.
Finalmente, tarefa cumprida, voltou ao escritório. Ouvindo-a entrar,
Jai levantou os olhos do gráfico que estivera estudando. Uma mecha de
cabelo caía-lhe sobre a testa. Sua camisa estava enrugada e as mangas
arregaçadas. Ele era a própria imagem do cansaço.
— Perdoe-me por mantê-lo acordado até esta hora.
— Tudo bem. Tive muitas coisas com que me manter ocupado
enquanto você trabalhava na sala de telex.
Julie atravessou o escritório na direção de Jai e parou a alguns
metros dele, como que temendo entrar num campo magnético. O trabalho das
últimas horas a enfraquecera, e talvez por isso uma atração irresistível a
arrastasse para perto dele.
— Por que me mostrou aqueles relatórios?
— O que importa isso agora? — replicou ele, seus olhos percorrendo
as formas sensuais que o vestido justo revelava.
— A mim importa bastante. Finalmente decidiu colaborar comigo
ou está simplesmente querendo demonstrar que sabe do meu suposto
envolvimento com os terroristas?
— Vamos dizer que decidi jogar das duas maneiras — respondeu
ele, olhando distraidamente para as mãos. — Eu a ajudarei de qualquer
modo. Se você estiver sendo sincera, então o seu trabalho de expor ao mundo a
hipocrisia dos métodos terroristas realmente será de grande valia. Se, ao
contrário, for uma espiã, pretendo virar o jogo e usá-la para me levar até eles.
— Olhou-a com ar de superioridade. — Como vê, dificilmente sairei
perdendo.
Julie mordeu os lábios e engoliu um palavrão. O fato de Jai
concordar em ajudá-la era ótimo, mas o modo como ele o fazia não a
agradava nem um pouco. Mas ainda teria o prazer de vê-lo se desculpar por
ter pensado tão mal a seu respeito.
— Nós nos entendemos muito bem — disse ele, observando-a com o
mais cínico dos sorrisos.
— Está enganado, você não me conhece nem um pouco. —

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Atravessou a sala e saiu, desprezando a si mesma por desejar tanto um
homem que ousava duvidar da sua integridade.

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CAPÍTULO XI

Julie estudou-se no espelho com olhos críticos. Queria uma


aparência bem profissional. O conjunto cinza, de um tecido leve, apropriado
para o verão, era o seu traje habitual para entrevistas importantes. Talvez o
problema estivesse na blusa rosa, sua favorita, mas não havia tempo de trocá-
la pela branca. Prendeu os cabelos e aplicou uma sombra leve nos olhos. Um
perfume discreto e já estava pronta para o trabalho.
A preocupação com a aparência viera do fato de estar trabalhando
constantemente com o príncipe. Descobrira que nada passava despercebido
àqueles olhos de tigre e não queria nem por um momento que ele pensasse
que ela estava tentando agradá-lo. Como ele preferia vê-la com roupas
femininas e insinuantes, adotara um estilo severo, escolhendo sempre o que
havia de mais sério no seu guarda-roupa. A blusa cor-de-rosa estava
realmente fora daquele padrão discreto, pensou enquanto se dirigia
apressada ao escritório do príncipe. Fizera a si mesma a promessa de jamais
chegar atrasada aos compromissos diários que vinha mantendo há uma
semana com Jai.
Ele levantou os olhos assim que a viu entrar. Estava vestido de
maneira informal, calça branca e camisa esporte azul-marinho, o que levou
Julie a deduzir que não sairiam do palácio.
— É tudo, Hari, obrigado. — O secretário se levantou e, após
cumprimentá-la discretamente, deixou a sala.
— Você está exagerando, Julie — disse ele, examinando-a
rapidamente para em seguida voltar a atenção para o gráfico estendido sobre
a escrivaninha. — Até quando vai brincar de imitar uma velha?
— Estou certa de que você não marcou esta reunião para discutir
meu guarda-roupa — respondeu ela, sem esconder a irritação por perceber
que seu jogo fora desmascarado.
— Não? Como você me conhece pouco! — retrucou ele com um tom
de voz divertido.
— O que está fazendo? — Julie perguntou rapidamente, apontando
para o mapa. Aquela nota de humor na voz do príncipe a embaraçava,
porque sabia que ele não tinha intenção alguma de deixá-la à vontade. Existia
uma barreira entre eles que não permitia qualquer laço de camaradagem,

94
ainda que se dessem bem no trabalho.
Considerava-o um ótimo parceiro, atuando de forma brilhante nas
investigações. Normalmente, passava cerca de uma hora por dia no escritório
dele, discutindo as notícias do dia ou trocando informações. O resto do
tempo empregava na sua própria pesquisa. Pouco a pouco sentia que o
quebra-cabeça começava a ser montado; o quadro sobre terrorismo
internacional tomava forma. Descobrir a peça-chave era somente uma
questão de tempo: uma pista que indicasse a data e o local da conferência dos
líderes.
— Este mapa mostra os lugares onde ocorreram os atentados — Jai
estava dizendo, pensativo. — O que observa nele?
Julie se aproximou e estudou rapidamente a posição dos marcadores
vermelhos sobre o mapa da Índia.
— Os ataques se concentraram na metade sul do país — concluiu.
— Certo. De fato, com exceção do atentado a Dhawan, aqui em
Nova Délhi, quase todos os outros aconteceram no sul. Por falar nisso,
Dhawan voltou hoje para casa.
— Que bom! Fico contente em saber que ele já saiu do hospital —
comentou, voltando para o seu lugar, uma poltrona que ficava do lado oposto
da escrivaninha.
— Ele gostou muito de você. Sabia disso? —
E é tão difícil para você aceitar o fato?
— Meus cumprimentos. Dhawan não é homem de se deixar levar.
Julie se levantou, apoiando-se na ponta da escrivaninha. Aquela
poderia ser a sua chance de fazê-lo compreender que não tinha nada a ver
com os subversivos.
— Se reconhece que o sr. Dhawan não se engana em relação às
pessoas, por que então não
— Sente-se e fique quieta, Julie. Nós dois jamais chegaremos a um
acordo quanto a este ponto. Acredite-me, de nada adiantaria você tentar me
convencer. — A voz dele era indiferente e traía um certo tédio. — Voltemos
ao trabalho, por favor.
Ela afundou na cadeira e fechou os olhos enquanto contava até dez.
Afinal de contas, que importância tinha o que Jai pensava ou deixava de
pensar a seu respeito? Ele a estava ajudando e pronto. Wes Harding não a
enviara para vencer um concurso de Miss Simpatia. O que era uma sorte, pois
seus índices andavam espantosamente baixos.
— Eu acho que, se estivesse planejando uma conferência terrorista

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— o príncipe disse devagar, olhando novamente para o mapa —, gostaria de
ter a certeza de que todos os esquadrões policiais estariam procurando por
mim e meus companheiros em outro local que não o marcado.
— Você quer dizer que nós deveríamos procurar uma área onde eles
ainda não atuaram? — ela retrucou, interessada, a fúria subitamente
esquecida. — Isso faz sentido.
— Maharashtra, Tamil Nadu, Andhra Pradesh — continuou ele,
enumerando alguns estados do sul do país. — Nada no norte, como Punjab
ou Himachal Pradesh. O que acha?
— Parece bastante simples. Eles estão tentando levar os policiais a
uma pista falsa. Mas será que os terroristas realmente cometem tantos
assassinatos só para esconder seus verdadeiros propósitos?
— Os motivos para esses atentados devem ter sido múltiplos. Mais
uma tentativa de forçar uma mudança política. Uma armadilha para o
governo, que poderá se desgastar perante a opinião pública se não conseguir
resolver o problema. Uma tentativa de fortalecer posições entre outros grupos
terroristas.
— Enquanto isso, eles preparam uma conferência no norte do país
— completou Julie. — Aliás, Nova Délhi poderia ser um local propício.
— Bem, Délhi é a capital da nação e fica na região norte. Além disso,
os terroristas tendem a agir nas cidades mais desenvolvidas. Seria mais fácil
para eles se manterem clandestinos e teriam um grupo maior simpatizando
com seus interesses. Só que existem outras grandes cidades ao norte:
Chandigash, Simla, Srinagar.
— Os estados do norte estão mais próximos do Afeganistão —
sugeriu Julie. — Se alguns dos terroristas são acobertados pela Rússia,
poderiam entrar no país por lá. Mas, se a organização for norte-americana,
então isso não faz sentido.
— Tem razão. Eu tenho pensado nessas hipóteses. Os aeroportos
estão sendo vigiados. A maioria dos terroristas poderá tentar entrar no país
por trem, navios cargueiros ou a pé. Atravessar o Paquistão ou o Nepal seria
uma solução viável também.
— Caxemira é um grande ponto turístico, não é?
— Caxemira é considerada um dos grandes pontos turísticos em
todo o mundo. — Ele a olhou, intrigado. — Onde você quer chegar?
Julie encarou-o com a segurança de uma profissional competente.
— Eu estava pensando que, se a maioria dos terroristas não for da
Índia, precisará se misturar às outras pessoas. A conferência poderia ser feita

96
numa cidade onde os estrangeiros não chamassem muito a atenção. Por que
não Caxemira?
— Muito bem, Julie! — Ele levou uma das mãos ao queixo e ficou
observando-a em silêncio, um brilho de aprovação no olhar.
Então, pegou o fone e conversou em hindu por três ou quatro
minutos. Quando desligou, disse:
— Nós não queremos diminuir o ritmo das investigações que
apontam para outra direção, mas acabo de ordenar que um grupo de meus
melhores homens vá até Caxemira para as primeiras averiguações. Também
mandei que checassem todos os eventos esportivos, culturais ou religiosos
que acontecerão durante a temporada. A população de Caxemira é
predominantemente muçulmana — ele acrescentou com um brilho de
inteligência no olhar. — Não consigo imaginar um disfarce melhor do que
cobrir a pessoa dos pés à cabeça com um purdah.
— As mulheres ainda usam esses horríveis véus negros?
— Mas claro! Imagine o que é passar a vida toda olhando o mundo
por uma fresta de malha! Dê graças ao seu deus por eu ser hindu e não
muçulmano, pois seria meu dever sagrado cobri-la com um purdah.
— Eu preferiria estar morta do que viver numa jaula ambulante!
Ele riu, divertido.
— Bem, até que no seu caso seria aconselhável o uso do véu.
Evitaria complicações para o marido ciumento.
— Não entendi.
— Você menospreza demais a sua beleza, Julie. E também a força da
paixão do homem asiático. — De repente, ele ficou extremamente sério. —
Nunca se case com um Mishra. Se ele a possuísse uma vez, preferiria matá-la a
perdê-la para outro.
Ela o desafiou com o olhar.
— Bem, já que você é o único descendente Mishra que eu conheço,
acho que poderíamos seguramente dispensar o último comentário, não
concorda?

Na manhã seguinte, Sukundala trouxe uma mensagem de Priya.


Julie imediatamente se lembrou de que aquele era o dia marcado para a
princesa conhecer seu noivo. Imaginou o estado de espírito da jovem,
provavelmente em pânico diante daquela visita que iria selar de vez o
compromisso.
Vestiu-se com esmero, pois precisava visitar algumas embaixadas e

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checar possíveis informações. Mas antes falaria com Priya.
Entrando no quarto da princesa, logo avistou a marani, que ajudava a
filha a se preparar para a entrevista com o futuro marido. Priya se voltou
assim que ouviu o ruído da porta se abrir. Estava usando um sari de um
maravilhoso tom de lilás, bordado com fios de ouro.
— Priya! — exclamou Julie. — Nunca a vi tão bonita! Você está
parecendo uma princesa saída de um conto de fadas!
— Que importa? — disse ela, com mau humor. — Gostaria de estar
horrível para que nenhum homem quisesse se casar comigo.
— Francamente, minha filha! — interpôs a marani. — Julie não tem
culpa se você está irritada. Concordo com você, Julie: é o mais lindo sari que já
vi.
— Julie — interrompeu Priya num tom de voz suplicante —,
converse com Jai, interceda a meu favor. Ele fará qualquer coisa por você.
Ainda há tempo. Quando Prakash chegar, Jai poderá desfazer tudo, dizer que
foi um engano
A marani balançou a cabeça, com o olhar preocupado e triste. E
também pediu, para surpresa de Julie:
— Por que não tenta falar com ele, Julie? Ele vai ouvi-la, tenho
certeza. — Caminhou até a janela e continuou, devagar, imersa em reflexões:
— Priya está certa. Eu deveria ter pensado nisso antes. Tenho muito medo de
que ela adoeça. Por que a pressa, afinal? Ela ainda é muito jovem para se
casar, principalmente contra a vontade. Por que não deixá-la esperar pelo
menos um ano, se deseja tanto? Até lá terá tempo de compreender que o
casamento poderá torná-la muito feliz. Naturalmente, Prakash não haverá de
querer esperar tanto, mas suponho que isso não tenha tanta importância. Jai
saberá encontrar outro bom rapaz para a irmã quando chegar a hora.
— Claro! Deixemos passar um ano — Priya falou, entusiasmada,
recuperando um pouco da vivacidade. Para ela um ano era tão bom quanto a
eternidade.
— Mas Jai não vai me ouvir — protestou Julie, olhando para as duas.
— Lógico que vai! — assegurou Priya, esperançosa. — Eu tenho
observado meu irmão quando você está por perto. Ele respeita suas opiniões.
— O comportamento de Jai em relação a você é diferente —
concordou a marani. — Será que não percebeu? Penso que é porque você se
interessa pelas mesmas coisas que ele: política, o futuro da Índia e assim por
diante. Ele gosta de conversar com você, Julie. E ri bastante, também.

98
— Quando conversamos sobre negócios, tudo bem. Mas, se o
assunto é pessoal, discutimos muito.
— Ah, bem. Os homens desta família gostam de discutir. Acredite
em mim, Julie, sei o que estou dizendo. Por favor, fale com ele enquanto
acabo de ajudar Priya.
Julie já estava batendo à porta da biblioteca antes mesmo que
pudesse se recuperar da surpresa. Era um absurdo que Priya e a marani
pensassem que ela tinha o poder de dissuadir o príncipe. Mas como negar um
pedido àqueles rostos tão ansiosos? Claro que nada adiantaria falar com ele,
ainda que se esforçasse ao máximo, pois sabia que seus conselhos seriam
prontamente repelidos.
— Entre! — uma voz familiar convidou.
Jai estava em pé, ao lado de uma estante muito alta, segurando um
volume. O aroma da madeira e livros deliciou Julie. O príncipe levantou o
olhar para ver quem entrara. Suas sobrancelhas se arquearam quando viu que
era Julie. Ela pousou os olhos sobre o peito seminu que a camisa quase aberta
deixava entrever. Notou ainda, de relance, que ele estava descalço. Uma nova
sensação tomou conta de seu ser. Algo inexplicável. Jamais sentira um poder
tão primitivo, tão másculo, emanar de qualquer outro homem.
Superficialmente, pelo menos, Jai parecia calmo e sereno.
— Hari esqueceu de lhe dizer que eu não estaria disponível? —
perguntou ele. — Tive a impressão de que você havia planejado visitar as
embaixadas hoje; por isso fiz outros planos para esta manhã.
— Não se preocupe, ele me avisou, sim. Mas não é por isso que
estou aqui. — A atração que sentia por aquele homem era palpável, evidente
demais.
O príncipe deixou o livro de lado.
— Se não veio a trabalho, devo deduzir que veio por prazer?
— Vim por causa de Priya.
— Ah! Uma emissária da vítima!
— Jai, tudo isso é muito cruel para ela. Você sabe que Priya não quer
se casar, pelo menos por enquanto. Sua mãe acha que se você desse um
prazo digamos, um ano ela acabaria aceitando a idéia.
— Agora diga-me o que você acha, Julie — ele falou enfatizando o
"você". A inflexão era de puro desdém.
Ela baixou o olhar. Como poderia responder àquela pergunta com
sinceridade sem mencionar a existência de Lal? Talvez a marani estivesse
certa. Afinal de contas, muitas coisas poderiam acontecer em um ano. Priya

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poderia até perder o interesse por aquele rapaz.
— Que diferença pode fazer um ano? Acho que sua mãe tem razão.
— Quanto mais cedo Priya se casar, melhor para ela. Não tenho
intenção de dar à minha irmã a liberdade que têm as mulheres do Ocidente.
— De escolherem seus próprios maridos?
— De escolherem seus amantes — corrigiu ele.
— Priya? Oh, não creio que ela faça tal coisa, Jai.
— Não estava pensando nela, neste exato momento. Estava me
referindo a você.
— Está me condenando pelo que aconteceu entre nós no jardim?
Será que teria essa coragem?
Ele tocou-lhe o queixo, forçando-a gentilmente a encará-lo. Ah,
aquela deliciosa fragrância de almíscar, que seria para sempre a marca
registrada de Jai
— Eu nunca poderia censurá-la pelo que aconteceu. Jamais pense
isso, Julie. O que nós compartilhamos naquele jardim foi uma coisa
maravilhosa que ninguém poderá nos tirar, não importa o que venha a
acontecer.
O coração de Julie batia descompassado. Ela quase havia perdido a
esperança de voltar a ouvir aqueles murmúrios de ternura. Era capaz de
sentir agora que, apesar da reserva, ele gostaria de alcançá-la, conversar com
ela, compartilhar em palavras o que seus corações haviam dividido no jardim
secreto. Uma cálida corrente de desejo atravessou seu corpo. Talvez, pela
primeira vez, ela o estivesse vendo não como homem somente, mas também
como amigo, um ser humano lutando para viver de acordo com seu próprio
código de honra, do mesmo modo que ela tentava viver de acordo com o
dela.
— O que o preocupa, Jai? — perguntou, levando uma das mãos ao
peito dele, num gesto afetuoso. — O que o futuro pode trazer para preocupá-
lo tanto assim?
Os olhos do príncipe procuravam-lhe o rosto, como se tentassem ver
sinceridade naquela pergunta.
— Já lhe contei uma vez que os príncipes indianos vivem mais
tempo se desconfiam das pessoas à sua volta. Fui educado de modo a não
confiar em ninguém. — Ele fez uma pausa. — Descobri que quero confiar em
você.
— Pois então faça isso.
— Ah, se fosse tão simples Se eu pudesse — Sua respiração

100
estava presa. Uma fagulha se acendeu no fundo daqueles olhos negros. —
Algumas vezes eu sinto que meu destino está em suas mãos, Julie. É uma
certeza que me diz que o que houve antes entre nós poderá ser melhor ainda.
Por mais prazer que eu tenha lhe dado, posso lhe proporcionar muito mais.
Acredite-me, Julie, um milhão de vezes mais!
Ele a trouxe de encontro ao peito e ela não teve a menor intenção de
rejeitar aquele abraço. As palavras de Jai, sua proximidade, o brilho de seus
olhos tudo isso acabou com sua cautela, como se ela soubesse, no fundo do
coração, que o que ele acabara de dizer era a mais pura verdade. Também
sentia que o encontro dos dois fora predestinado, que somente Jai poderia
completar seu corpo e seu espírito, poderia satisfazer os desejos profundos
que clamavam dentro dela desde aquela noite do baile. Só com ele se sentia
plena, realizada. Seus olhares se encontraram, num entendimento perfeito
que transcendia as barreiras do tempo e do espaço.
Um sorriso brilhante, surpreendentemente franco, iluminou o rosto
de Jai. Seus braços fortes soltaram Julie e ele começou a desabotoar a camisa,
jogando-a de lado. Ela parou para observar, sempre extasiada, os músculos
rijos que apareceram diante de seus olhos. Como era bom vê-lo novamente
assim, poder sentir a maciez da pele, os ombros largos, o físico de atleta
Ansiava pelo momento de acariciar cada parte daquele corpo até que suas
mãos decorassem cada contorno, cada ponto de prazer.
Rapidamente, os dedos de Jai começaram a desabotoar-lhe o
vestido. Julie estremecia a cada toque, antecipando o prazer de estar nua nos
braços dele. Ensaiou uma carícia, pousando timidamente as mãos espalmadas
sobre o peito arfante de Jai.
— Que gesto mais casto, Julie — disse ele, provocando-a com
ternura. — Não pretendo me refrear tanto. — Mal disse aquela frase e sua
mão já escorregava pela abertura do vestido, alcançando o seio esquerdo
dela.
Uma onda de prazer varreu o corpo de Julie. O tom de voz de Jai,
chegando como música aos seus ouvidos, apresentava, todavia, uma nota
destoante. Ele ainda desconfiaria dela? Não, certamente não. O modo como a
puxava agora, num misto de desejo e carinho, era prova de que não trataria
assim uma espiã. Não pensou em mais nada quando sentiu que ele descia-lhe o
vestido, expondo primeiro os ombros, em seguida os seios Viu-se
deliciosamente abraçada no peito musculoso de Jai.
A pele macia excitava-lhe os mamilos e Julie ouviu os próprios
gemidos soarem como um apelo. Sentiu o corpo de Jai se enrijecer contra o

101
seu. Ele se inclinava para beijá-la com ardor enquanto, com uma das mãos,
procurava as coxas firmes e bem torneadas que se escondiam sob o vestido.
Com um movimento carregado de sensualidade, ele a apertou ainda
mais, levantando-a um pouco para que Julie pudesse sentir por si mesma a
resposta ao desejo que explodia dentro deles. Um gemido de profundo prazer
escapou-lhe da garganta sem que ela conseguisse refreá-lo.
— Não posso esperar mais — disse ele com a voz enrouquecida.
Deitou-a então sobre o carpete e, antes de beijá-la, murmurou: — E pensar
que devo isso à minha irmã!
— Priya! — exclamou ela, recuperando a consciência. — Eu eu me
esqueci dela!
— Esqueça de novo — sugeriu ele num sussurro, beijando-lhe o
pescoço.
Mas a visão do rosto entristecido da princesa bloqueou todo o
desejo de Julie. Seus olhos agora estudavam o homem que, deitado ao seu
lado, acariciava-lhe os seios. Será que ela precisava de um sinal mais evidente
quanto à habilidade que ele possuía de manejar as pessoas de acordo com os
próprios interesses? Ora, Jai estava prestes a sacrificar a felicidade da própria
irmã para preservar a posição da família! E quanto a ela mesma? Se ele era
tão sórdido com Priya, o que dizer então de seu comportamento em relação a
uma estranha? Estava tudo muito claro: ela não significava nada para Jai, que a
usava unicamente para satisfazer seus instintos. Como uma mulher tão
esperta quanto ela pudera se deixar enganar?
Este pensamento a encheu de repulsa e, antes que pudesse perceber,
já o havia empurrado com violência. Desvencilhou-se dele rapidamente e
pôs-se em pé, começando a abotoar o vestido. Jai continuava deitado,
examinando-a calmamente, apoiado no cotovelo. Não escapou a Julie,
entretanto, o brilho mortal que sustentava no olhar. Pronta para sair, ela não
resistiu à acusação:
— Você usa as pessoas! Que não pense em mim, ainda vá lá. Mas
sua própria irmã? Como pode ser tão egoísta, tão insensível? — Sua voz
tremia. Nunca sentira ao mesmo tempo ódio, humilhação e frustração.
— Você tem a coragem de dizer que eu uso as pessoas? — disse ele
com uma risada sarcástica. Levantou-se com a maior calma, mas Julie sabia
que, por trás daquela tranqüilidade aparente, ele se revolvia num mar de
fúria. — Por que você parou? Certamente seus camaradas esperam que faça
tudo o que for necessário para dissipar minhas suspeitas. Por isso não estou
entendendo por que não foi até o fim.

102
— Seu seu — Cega de raiva, ela pegou a primeira coisa que
encontrou: um pesado vaso azul e canela que estava sobre uma mesinha ao
seu lado. Agarrando-o com ambas as mãos, levantou a preciosa antigüidade e
atirou-a na direção de Jai. Com um movimento preciso, ele se desviou do
objeto, que se espatifou com estrondo no chão. Fragmentos coloridos se
espalharam, formando um extenso semi-círculo no carpete.
Julie olhou, aterrada, para a porcelana que acabara de destruir.
A acusação de Jai fizera-a sair do sério. Por que tudo o que ele dizia
a afetava tanto? Por que nunca conseguia manter o equilíbrio na presença
daquele homem? Por que tinha sempre que estar dividida entre o amor e o
ódio? Olhou mais uma vez para os cacos no chão e enxergou-se no meio
deles. Jai conseguira despedaçá-la, do mesmo modo como ela fizera com o
vaso.
— O que você fez comigo? — gritou, fora de si, como se ele pudesse
entender a referência. Então saiu correndo sem esperar pela resposta.

103
CAPÍTULO XII

Os ouvidos de Julie captaram o som distante de um automóvel que


se aproximava pela via arborizada em direção à entrada principal. Após ter
informado à marani o fracasso de sua missão, ela escapara da atmosfera
depressiva do quarto da princesa para tomar um pouco de ar no jardim.
Agora, sentada num banco sob a sombra de uma árvore frondosa, com a
cabeça entre as mãos, sentia-se totalmente incapaz de trabalhar e até de
pensar com clareza. Experimentava uma sensação de derrota, não tanto em
relação ao príncipe, mas em relação a si mesma.
Pela primeira vez desde que chegara à Índia, duvidava da sua
capacidade de levar a termo um trabalho no qual, em outras ocasiões, sempre
fora bem-sucedida. Cada vez mais seus pensamentos gravitavam em torno de
Jai Mishra, impedindo que sua mente se concentrasse na história que
precisava escrever. Acostumada a se deixar absorver inteiramente pelo
trabalho, agora se percebia dividida. Parte dela lutava por manter a eficiência
profissional enquanto a outra metade se entregava ao desejo irresistível de
estar a maior parte do tempo em companhia daquele homem tão atraente.
Apesar de seus esforços, não conseguia mais definir a linha divisória entre a
objetividade no trabalho e o seu envolvimento com o príncipe.
Como se tudo não bastasse, ainda havia Priya. Enternecia-se diante
do problema da princesa. Havia visto como ela empalidecera assim que
ouvira o relato da frustrada tentativa de falar com o príncipe. Estava mais do
que evidente que a garota não se submeteria aos desejos do irmão. Havia nela
uma determinação fora do comum, que a fazia uma digna representante dos
Mishra.
Levantou-se e caminhou em direção à entrada do palácio. Precisava
trabalhar, uma vez que não teria mais tempo de visitar as embaixadas na
parte da manhã, como planejara a princípio. Quando chegou ao último
degrau da escada de mármore, parou e voltou-se para então deparar com um
belíssimo carro esporte que acabava de estacionar lá embaixo. Logo
adivinhou quem era aquele que saía do carro e se encaminhava para a
entrada.
O homem, que agora começava a escalar os degraus rapidamente,
parecia mais novo do que o príncipe e não tão alto como ele. E também não

104
possuía, como Jai, aquela desenvoltura no andar, que Julie tantas vezes
associara à leveza das passadas de um tigre. Mas, à medida que ele se
aproximava, ela percebeu que não poderia descrevê-lo simplesmente como
um rapaz bonito, sob pena de cometer uma das maiores injustiças de sua
vida. Prakash era o homem mais incrivelmente belo que já vira. Se estivessem
no Olimpo, ela seria capaz de jurar que era o próprio Apolo que se
encaminhava na sua direção. A visão de Priya ao lado daquele rapaz veio
como um flash à sua mente, e ela compreendeu imediatamente por que Jai
achava que aquele, seria o par ideal para sua irmã. Além de uma beleza de
chamar a atenção, ele ainda contava com um semblante extremamente
simpático e afável, muito distante do cinismo que caracterizava a expressão
do príncipe.
— Oi — Julie cumprimentou com um sorriso, tão logo ele se
aproximou. — Eu sou Julie Connell, hóspede dos Mishra.
— Muito prazer — disse ele, estendendo o braço na sua direção. —
Sou Prakash Das. — O aperto de mão vigoroso e o sorriso cativante
agradaram Julie.
— Logo imaginei, você está sendo esperado. Mas, por favor, entre.
Não se prenda por mim.
— Então com licença, foi um prazer conhecê-la.
Observando-o pelas costas, Julie teve a certeza de que Priya iria se
surpreender. Prakash irradiava uma paz e uma tranqüilidade que
complementavam o romantismo da princesa. Pensou com ternura em Jai, ao
imaginar que ele certamente havia feito o melhor pela irmã e que não contara
com a hipótese de sua escolha suscitar tamanha revolta.
Voltou para o seu quarto e, em meio ao trabalho, preparou-se para
ser interrompida a qualquer momento pela entrada de Priya. Estava curiosa
para saber as impressões da jovem. Algum tempo depois, ouviu o motor de
um carro dar partida e em seguida distanciar-se cada vez mais até sumir
completamente. Prakash já devia ter se retirado. Para sua surpresa,
entretanto, Priya não apareceu nem esteve presente no almoço. A marani
contou que a jovem havia ido diretamente para o quarto tão logo seu
pretendente se retirara. Não queria falar com ninguém. Após o almoço, Julie
saiu para cumprir seus compromissos nas embaixadas sem ter visto a
princesa.
Um envelope branco sobre a mesinha de centro chamou a atenção
de Julie logo que ela entrou em sua suíte, horas mais tarde. Deixando de lado o
caderno de notas, abriu ansiosamente o envelope. Mas a nota não era de

105
Priya, como pensara. O príncipe pedia-lhe que o acompanhasse a um jantar
em casa de um conhecido industrial de Nova Délhi.
Ficou surpresa ao ler o bilhete e correu mais uma vez os olhos sobre
ele para se certificar se não havia alguma coisa por trás daquele tom cortês.
Ele não especificava se o convite vinha a propósito do trabalho que estavam
desenvolvendo juntos, embora, depois do acontecido na biblioteca, ela não
devesse ter dúvidas quanto a isso. Não seria o caso de se sentir honrada por
aparecer em público na companhia do príncipe Jaiapradesh Mishra, pensou
com amarga ironia.
Qualquer que fosse a razão para aquele convite, achou conveniente
vestir-se com um cuidado esmerado. Uma olhadela para o relógio garantiu
que ainda havia tempo suficiente para se aprontar. Como jornalista, estava
habituada a certos imprevistos, mas ainda assim gostaria de saber por que Jai
não mencionara antes aquele compromisso.

Quarenta minutos mais tarde, enquanto se examinava no espelho,


não conseguia controlar a ansiedade pelo que a estaria esperando aquela
noite. A expectativa, que fizera as maçãs do seu rosto se avermelharem sem o
uso do blush, não tinha nada a ver com a possibilidade de obter mais dados
para o seu acervo de informações. Fora pensando em Jai e não na festa que
escolhera o insinuante vestido de seda preta. De corte extremamente simples,
ele realçava a elegância do seu corpo, quer pelo profundo decote em V, quer
pela abertura lateral que deixava entrever as pernas longas e perfeitas. Com a
sandália preta de saltos altíssimos, o traje de noite estava completo. O colar
de pérolas miúdas foi a solução encontrada para compensar sua absoluta
falta de jóias. No último minuto, decidiu que os cabelos soltos iam melhor
com o estilo do vestido. Pintou-se com o cuidado necessário, sem
espalhafatos, procurando valorizar os olhos azuis, e não se esqueceu de
algumas gotas do seu perfume preferido atrás das orelhas e nos pulsos.
— Vejo que recebeu meu bilhete — disse Jai, elegantíssimo no
smoking, assim que ela entrou no hall onde era esperada. — Peço desculpas
por não tê-la avisado antes, mas havia me esquecido completamente deste
compromisso. Se não fosse por Hari eu ainda não teria lembrado. Fico
contente por você ter aceitado o convite, — Enquanto falava, seus olhos
percorriam cada detalhe do corpo de Julie.
— Eu agradeço a lembrança.
— Você está linda — ele comentou, capturando-lhe o olhar. —
Tenho certeza de que serei alvo de inveja esta noite.

106
— Você provavelmente já é — Julie replicou com um sorriso.
— Se eles soubessem a metade dos problemas que um príncipe
enfrenta, pensariam de modo diferente — assegurou ele, devolvendo-lhe o
sorriso.
— Como, por exemplo, ter que lidar com repórteres insistentes? —
provocou Julie, divertida, procurando esquecer o contratempo daquela
manhã. Jai obviamente tentava fazer o mesmo. Se continuassem assim, a
noite prometia ser agradável. Era bom conversar sobre aquelas pequenas
coisas para fugir um pouco dos assuntos desgastantes dos últimos dias. Jai
chegou perto e disse em tom suave, quase inaudível:
— Qualquer homem desejaria estar em tão boa companhia, sendo
você repórter ou não. — Com uma das mãos alcançou o colar de Julie. — Por
que isto?
— Você não gosta?
— Eu penso que somente diamantes fariam jus ao vestido que está
usando.
— Sabe que eu também penso assim? Qual a mulher que não adora
jóias? Infelizmente, com o que ganho, este luxo é dispensável. É uma pena
que meu editor não compreenda meu real valor. Toda vez que escrevo uma
boa história, fico imaginando que mereceria ganhar muito mais.
— Seu trabalho lhe dá tanto prazer assim? —
Muito, você nem imagina quanto.
— Você é uma afortunada, sabia? —
Sim, sei.
Jai segurou-lhe o braço e, sorrindo, conduziu-a para fora. O carro
esporte estava à espera deles com o motor em funcionamento. Ele abriu-lhe a
porta e então deu a volta para sentar-se à direção. Julie achou ótimo o fato de o
motorista ter sido dispensado.
A festa já estava animada quando eles chegaram. O anfitrião, um
inglês chamado Leon Calvert, cumprimentou Jai com entusiasmo e então se
voltou para Julie com um olhar admirado, óbvio demais para passar
despercebido. Jai fez as apresentações.
— Então quer dizer que hoje Jaiapradesh fará algo mais do que falar
sobre negócios, hein? Finalmente! Devo agradecer-lhe por isso, Julie.
Ela sorriu, sentindo-se à vontade. Em geral, todos os amigos de Jai,
que aos poucos ia conhecendo, lhe pareciam simpáticos e agradáveis.
Com uma indisfarçável sensação de orgulho, entrou na sala, de
braços dados com o príncipe. Um tremor de excitação percorreu-lhe o corpo.

107
Sentia-se viva. Feliz.
— O que vai querer beber? — perguntou Jai. Ele parecia sereno, à
vontade entre os amigos.
— Fica à sua escolha. Mas gostaria de provar um daqueles hors
d'oeuvpes.
— Vou buscar alguns para você.
Enquanto o acompanhava com o olhar, Julie pressentiu a presença
de alguém a seu lado.
— Que homem o nosso Jaiapradesh Michra! — Era Leon Calvert que
havia se aproximado sem que ela se desse conta.
— Você o trata sempre assim, pelo nome completo? — Julie
perguntou com um sorriso. Calvert era a imagem típica do inglês. Por que
teria optado por viver na Índia?
— Pelo amor de Deus, não! — exclamou ele, achando graça. —
Levaria pelo menos meia hora para dizer o nome completo, inclusive os
títulos!
— Títulos? Eu pensei que o de príncipe fosse o único.
— Atualmente, sim. Mas estou me referindo aos que ele
tradicionalmente teria se as coisas não tivessem mudado. Protetor do Povo,
Mensageiro dos Deuses, Concessor de Dádivas, Opressor do Inimigo. O que
acha?
— Que você está inventando — acusou Julie, com uma risada
divertida.
— Pode ser. Mas leia um pouco sobre literatura antiga e vai
entender a que estou me referindo. Além do mais, esses títulos se ajustam a
Jaiapradesh.
Julie concordou. Jai possuía uma dignidade única, inata, que se
adequava muito bem àquelas expressões de respeito e admiração.
— O mais espantoso — continuou Calvert — é que ele nunca precisa
recorrer ao título para conseguir o que quer. Já fez, inclusive, sua própria
fortuna, embora seja tão jovem. Eu sei disso porque estou no mesmo ramo:
indústria têxtil. Além disso, ele possui uma indústria siderúrgica.
— Quer dizer que não herdou essa fortuna toda?
— Não, minha querida. É verdade que o governo comprou as
propriedades que pertenciam aos príncipes. Mas a maior parte da aristocracia
indiana vive hoje em condições deploráveis. Jai e seu pai foram dos poucos a
evoluir e adaptar-se às novas estruturas. É sempre o mesmo, Julie. Algumas
pessoas são capazes de fazer frutificar uma herança. Outras continuam a

108
viver fora do tempo e para sobreviver desfazem-se aos poucos de terras, jóias,
antigüidades. Assim acontece em todas as culturas. Jai pertence ao primeiro
tipo. Poderia viver numa tribo primitiva na África e ainda assim obter
sucesso em suas atividades. Ele nasceu para ser líder!
— Sabe — Julie replicou, rindo da idéia de Jai numa sociedade tribal
—, acho que você está certo.
— Claro que estou! É um hábito que mantenho há muito tempo —
Calvert brincou. — Bem, preciso atender aos outros convidados. Bonito
vestido, minha querida — acrescentou antes de deixá-la.
— Que mentiras Leon estava pregando desta vez? — perguntou Jai,
voltando com dois drinques. Um mordomo o acompanhava, trazendo um
prato de hors d'oeuvres que colocou sobre a mesinha lateral.
— Para falar a verdade, estávamos conversando sobre você —
respondeu ela, aceitando o copo que ele lhe estendia.
— Ah é? — Jai estava próximo, muito mais do que seria necessário
ou mesmo aconselhável. — Então, com certeza, deve ter lhe falado sobre o
meu desejo de conhecê-la melhor.
— Não. Acho que ele se esqueceu disso. —
Pois agora você já sabe.
— Bem, temos a noite toda para isso
— A desvantagem é que estamos cercados de pessoas. Eu me
esqueci deste detalhe quando a convidei.
— Então por que não tiramos proveito desta desvantagem e
conversamos um pouco?
Ele deu uma risada gostosa e logo respondeu:
— Está bem, mas antes gostaria de apresentá-la a alguns conhecidos.
Teremos a noite toda para conversar. — Pegando-a pela mão, encaminhou-se
na direção de um grupo animado.
Julie se entregou à animação daquela noite, sempre consciente de
que ela e Jai eram o par mais observado da festa. Gostou muito das pessoas
que conheceu por intermédio dele, e as horas transcorreram rápidas e
agradáveis. Era um alívio esquecer o trabalho por uma noite e relaxar um
pouco na companhia de pessoas comuns, que não estavam ligadas ao
jornalismo nem representavam fontes de informações. Jai era o mais popular
da reunião e o mais querido também, pelo que pôde notar. Admitiu que a
reputação do príncipe era justificada: sua presença se impunha não pelo
título honorífico, mas pela simpatia e pela confiança que desfrutava entre os
amigos. A seu lado ela também sentia-se especial. A ponto de chegar a pensar

109
que formavam um belo par.
Já era tarde quando Jai pediu ao porteiro que lhe trouxesse o carro.
— Como é, divertiu-se? — perguntou quando o carro esporte já
cruzava as ruas desertas da cidade.
— Foi uma noite incrível! — Julie respondeu, sentindo com imenso
prazer o vento que entrava pela janela. Gostaria de saber se algum dia se
acostumaria ao calor de Nova Délhi: a brisa noturna era sempre recebida
como uma bênção após um dia ensolarado e sufocante.
— Fico contente. — Ele não falou mais nada durante o trajeto. Julie
aproveitava aqueles instantes de relaxamento reclinada no banco e olhando,
de vez em quando, para o rosto sereno atento à direção. Quando o carro
parou em frente aos portões de ferro, Jai voltou-se para ela e sugeriu: —
Gostaria de caminhar um pouco? Poderíamos deixar o carro aqui e fazer o
resto do caminho a pé.
Julie levantou o olhar, surpresa. Várias vezes durante a noite
contivera a sensação de felicidade que a inundava, ciente de que aquele
convite tivera simplesmente um motivo social. Jai precisava de uma
acompanhante e lá estava ela. Agora, no entanto, suas esperanças se
reacendiam: ele não tinha pressa alguma em voltar, queria estar a sós com ela,
aproveitar um pouco mais sua companhia. Aquele seria um ótimo final para
uma noite memorável.
— Então, já que temos que caminhar pelo gramado, vou aproveitar
para tirar as sandálias. Meus pés estão me matando.
Jai baixou os olhos para as sandálias e comentou:
— Eu sempre me espanto ao observar os calçados femininos: eles
parecem feitos de modo a inibir os movimentos. Como é possível alguém se
equilibrar em saltos tão altos e finos?
— Tem razão. Acho que os homens deveriam desenhá-los —
concordou ela. — Aposto como o conforto viria em primeiro lugar.
Jai saiu do carro e abriu a porta para Julie. Trocou algumas palavras
em hindu com o porteiro e entregou-lhe as chaves.
Afinal estavam sozinhos, caminhando sobre a relva macia, úmida
com o sereno da madrugada. O cenário era ainda mais deslumbrante quando
emoldurado pelo céu estrelado. A lua cheia iluminava o caminho, fazendo
com que as árvores não parecessem ameaçadoras àquela hora da noite. Julie
levava as sandálias numa das mãos. A outra era envolvida pelos dedos
longos de Jai. Havia ainda um bom caminho a percorrer, mas quem tinha
pressa de chegar ao palácio?

110
— Fale-me sobre o seu noivo, o homem com quem você quase
chegou a se casar.
Julie respirou fundo. Há muito tempo, desde aquele dia na livraria,
vinha se preparando para o momento em que Jai lhe perguntasse sobre
Eddie. Só que agora não sabia o que dizer.
— Ainda dói quando você fala nele?
Sorriu ao sentir que ele lhe apertava a mão, como que tentando
encorajá-la.
— Ele ele morreu num acidente
E começou a contar toda a história do seu relacionamento com
Eddie. O constrangimento inicial havia desaparecido. Jai era um ouvinte
atento e, assim, as palavras começaram a jorrar com facilidade. Pela primeira
vez ela se abria com alguém sobre Eddie. Seus colegas em Nova York não o
haviam conhecido, e talvez por isso nunca se interessaram em lhe fazer
perguntas sobre o noivo.
No desenrolar da conversa, Julie compreendeu que queria falar
sobre Eddie, que podia falar nele e lembrar momentos felizes sem qualquer
sensação de dor ou de vazio. Fazia-lhe bem desabafar com Jai, descrever-lhe
que pessoa maravilhosa fora Eddie. E, toda vez que procurava o rosto do
príncipe, sentia-se encorajada a continuar, impulsionada pelo silêncio amigo e
pela expressão de simpatia e solidariedade que ele sustentou até o final do
relato.
— Eddie foi uma coisa boa que aconteceu na sua vida, Julie — ele
comentou, quando viu que ela não tinha mais nada a dizer. — Na verdade, ao
que parece, ninguém lhe deu tanto apoio quanto esse rapaz. — Então,
pensativo, fez uma pausa. Julie podia sentir os dedos dele pressionarem sua
mão com mais força. — Mas eu serei eternamente grato ao destino —
continuou — por não ter permitido que você se casasse com ele.
Prosseguiram o caminho em silêncio, cada qual imerso em suas
próprias reflexões. Julie sentia-se leve não só pelo desabafo, mas
principalmente por perceber quanto Jai se importava com ela. E mais: com o
fato de ela ser solteira! O mundo girava à sua volta, mas Julie só tinha
consciência da presença daquele homem maravilhoso ao seu lado.
Dois empregados esperavam para lhes abrir as portas do palácio.
— Eles nunca dormem? — Julie perguntou, parando ao pé da escada
para calçar as sandálias.
— Eles trabalham em turnos — Jai explicou, rindo da idéia maluca
dela. — Ou você acha que eu mantenho meus empregados acordados vinte e

111
quatro horas por dia?
— Eles são guardas, então?
— Bem, vamos dizer que são porteiros equipados para guardar a
entrada.
Entraram no hall e ficaram um instante imóveis, como se não
quisessem se separar. Pousando as mãos nos ombros de Julie, Jai tomou a
iniciativa.
— Obrigado pela noite maravilhosa, minha querida. — Julie fechou
os olhos para receber o beijo que ele depositou de leve em seus lábios. —
Vejo-a pela manhã. — E, com um olhar terno, ele se despediu.
Quando ficou só, ela sentiu-se um pouco amargurada. Tivera, como
desejara, a chance de apreciar a companhia do príncipe num clima ameno,
sem as discussões de costume e sem a paixão dos últimos encontros, que
sempre a deixava desnorteada. Certamente nada poderia ter sido mais ameno
do que aquele beijo de boa-noite. Então, por que o desapontamento?
No quarto, entre os lençóis, finalmente compreendeu tudo. Jai se
despedira sem fazer qualquer tentativa de se aproximar e ela remoía a
frustração por ele não ter pedido mais, muito mais do que aquele casto beijo
de boa-noite.

Na manhã seguinte, despertou com o ruído da porta que se abria.


— Oh, senhorita — desculpou-se Sukundala —, pensei que já
estivesse acordada!
— Bom dia, Sukundala. Foi ótimo você ter me acordado, porque eu
realmente iria perder a hora. Quer abrir as cortinas para mim?
— Trouxe uma encomenda para a senhorita. — Só então ela reparou
que a moça trazia nas mãos um estojo de veludo preto.
— O que é isso?
— Acho que é um presente — respondeu Sukundala, entregando-
lhe a caixa e dirigindo-se até as cortinas.
— Quando chegou? — quis saber Julie, fechando os olhos com a
claridade que entrava pelas janelas.
— Um carro deixou a encomenda no palácio há meia hora, mais ou
menos.
— Diga-me uma coisa: a marani já tomou o café? —
Ainda não, senhorita.
— Ótimo. Diga-lhe então que já estou descendo. É tudo, Sukundala,
obrigada.

112
A moça fez uma mesura e saiu. Ansiosa, Julie mal conseguiu esperar
até que a porta fosse fechada. Abriu o estojo e prendeu a respiração.
Descansando sobre um fundo vermelho de cetim, três fileiras de diamantes
compunham o mais deslumbrante colar que já vira. Cada pedra, pelo
tamanho e pela qualidade, faria jus a um anel solitário. Com cuidado, pegou a
jóia e levantou-a diante do rosto. O reflexo do sol nas gemas partia-se em um
milhão de partículas luminosas. No fundo do estojo, um pequeno cartão: "Para
Julie, que nasceu para usar diamantes".

113
CAPÍTULO XIII

A marani estava se levantando da mesa quando Julie entrou na sala,


meia hora mais tarde. Ela havia custado a se recuperar da surpresa, o que era
perfeitamente justificável. Afinal, não era todo dia que se recebia um presente
tão valioso como aquele. Mas a situação a deixava confusa: sabia que deveria
devolver a jóia e, ao mesmo tempo, não iria suportar separar-se daquele
objeto maravilhoso.
— Bom dia, Julie — exclamou a marani.
— Bom dia. Que pena eu ter chegado atrasada para o café
— Não se preocupe, eu me levantei mais cedo. Mas você pode fazer
companhia a Priya e que bom, Jai acaba de chegar! — disse com um sorriso de
satisfação.
Julie se voltou ante a menção daquele nome para deparar com o
sorriso alegre que ele trazia estampado no rosto. Cabelos ainda molhados do
banho matinal e usando jeans, Jai parecia mais charmoso do que nunca.
Antes que ela pudesse falar, ele levantou as sobrancelhas em sinal de
surpresa.
— Você se levantou cedo. Conseguiu dormir o suficiente?
— Oh, sim. Jai
— Meu cartão disse tudo, Julie — interrompeu ele. — Nada mais,
nada menos. Não se preocupe e também não me agradeça. Só tentei remediar
uma imprecisão no seu conjunto. Bom dia, mamãe. Priya. — Ele acenou para as
duas e então tomou o braço de Julie, com quem caminhou até a mesa. Puxou a
cadeira para que ela se acomodasse e em seguida tomou o seu lugar junto à
cabeceira.
— Que bom vê-lo, meu filho! Você não pretende trabalhar hoje?
— Acho que não, mamãe.
— Sério? Tem algum plano para esta manhã? Quem sabe possamos
fazer um programa juntos — sugeriu a boa mulher com um sorriso que incluía
Julie.
— Não tenho planos, mamãe. Deixo à sua escolha o que fazer. —
Olhou na direção de Julie. — Algo especial — acrescentou.
A mãe concordou, satisfeita, e saiu da sala.
Julie sentia o rosto em chamas. O olhar de Jai havia sido uma carícia.

114
Para esconder a perturbação, ela se voltou para a princesa.
— Bom dia, Priya — cumprimentou, notando a palidez da jovem. Só
então se lembrou de que não haviam ainda falado sobre Prakash Das. Tanta
coisa acontecera nas últimas doze horas que ela não tivera tempo de dedicar
um só pensamento para Priya.
Que a princesa estava com problemas era óbvio. Após murmurar
um cumprimento para Julie, voltara a ficar em silêncio, recusando-se a olhar
para qualquer outra coisa que não fosse a xícara de chá. Estava com um
aspecto horrível. Por uma ou duas vezes, Julie tentou fazê-la participar da
conversa, sem sucesso. Até que, em certo momento, sem conseguir mais se
conter, Priya rompeu num choro convulso. Pôs a xícara de lado e,
murmurando uma desculpa qualquer, saiu correndo da sala.
O coração de Julie acompanhou a jovem. Era impossível que Jai
continuasse impassível diante do sofrimento da irmã. Mas, encontrando os
olhos negros, ela viu neles um brilho de remorso.
— Jai, você não acha que
— Não, Julie, não acho — interrompeu ele com voz firme. — Aceita
uma torrada?
Julie tirou uma e, enquanto espalhava um pouco de geléia sobre a
fatia, esteve quase a ponto de contar sobre Lal, mas seus pensamentos foram
interrompidos pela entrada da marani.
— Acabo de pensar num programa perfeito para nós! — ela
exclamou. — Nem posso imaginar por que não o fizemos antes! Jai, vamos
levar Julie para conhecer o Taj Mahal, em Agra!
Os olhos de Jai pousaram em Julie.
— Um monumento aos apaixonados — murmurou
significativamente. — Ótima idéia, mamãe. Sairemos logo mais.
— Meu trabalho — Julie começou a dizer, mas a marani protestou: —
Ora, minha querida, você não pode tirar uns dois dias de folga?
Amanhã à noite já estaremos de volta.
— Quem sabe se a reunião dos terroristas não está marcada para
acontecer em Agra? — disse Jai, procurando convencê-la. — Todos os turistas
visitando o Taj Mahal certamente forneceriam uma excelente cobertura para a
conferência.
— Eu poderia fazer umas investigações — assentiu Julie. Mesmo
sabendo que Jai estava caçoando, até que não achou a idéia impossível. Agra
ficava próxima o bastante de Nova Délhi e a confluência de pessoas poderia
ser uma proteção para os líderes. Por que não?

115
Uma hora mais tarde, o Mercedes rodava pela estrada que os levaria
até Agra. Julie acomodou-se em seu lugar, confortável e refrescada pelo ar
condicionado, enquanto corria os olhos pelas planícies muito verdes que
tomavam conta do cenário. Era maravilhoso poder apreciar aqueles espaços
abertos ao infinito num país tão populoso como a Índia.
— Esta paisagem me lembra um pouco as planícies do oeste dos
Estados Unidos — observou à marani, que estava sentada ao seu lado, no
banco traseiro do carro. Priya havia se recusado a sair de casa por motivos
óbvios. — Aqueles arbustos azulados parecem as artemísias do meu país.
— Estou pensando em pararmos em Vrindaban; fica no caminho. O
que acha, Julie? — perguntou a marani. — É uma pequena vila, bastante
diferente de Nova Délhi. Dizem que foi lá que nasceu Krishna, o maior de
todos os deuses hindus. Muitas das nossas tradições estão ligadas a
Vrindaban, e você, que gosta tanto do assunto, não pode perder essa
oportunidade.
Julie já estava desejosa de esticar um pouco as pernas quando
chegaram a Vrindaban. Apesar do automóvel luxuoso e confortável, a
viagem estava se tornando cansativa. Gunam Singh dirigia devagar pela
rodovia, pois era difícil passar por tantos carros de boi e outros veículos
puxados por cavalos e camelos numa estrada tão estreita.
— Por que não melhoram uma rodovia tão importante entre Délhi e
Agra? — perguntou ao motorista quando este abriu-lhe a porta. — Deveria
ser uma medida de urgência, pois ela não comporta este afluxo de veículos.
Afinal, quantas pessoas não viajam por aqui para conhecer o Taj Mahal?
— Para os padrões da Índia, esta até que é uma boa estrada,
senhorita — assegurou Gunam Singh, um grande sorriso estampado no rosto
bonachão. Com aquela barba cheia, muito branca, e o olhar meigo, ele
lembrava um Papai Noel moreno. — Além do mais, os dacoits roubariam todo o
equipamento de construção durante a noite.
— Quem?
— Os dacoits — interveio a marani, chegando até ela. — Eles são
muitos ao longo desta estrada. Ninguém dirige por aqui à noite, se puder
evitar.
— A senhora quer dizer salteadores de estrada? — Julie procurou se
certificar, um tanto incrédula.
— Exatamente. Eles são tão perversos! — disse ela, apoiando-se em
Julie quando começaram a andar.

116
— Não é possível que ainda existam salteadores como nos tempos
da Idade Média!
— Você se esquece de que, em certos lugares, a Índia está alguns
séculos atrasada — advertiu Jai, que, após ter dado algumas instruções a
Gunam, já as alcançava. — Espere só até conhecer Vrindaban e vai concordar
comigo.
Jai havia trocado o jeans por uma vestimenta toda branca antes de
sair de Nova Délhi. O cabelo negro e a pele bronzeada contrastavam com a
cor do traje e com o brilho esbranquiçado do cenário, causado pelo reflexo do
sol forte nas paredes das casas. Caminhando pelas ruazinhas sonolentas da
vila, um pouco à frente dela e da marani, ele parecia excepcionalmente forte e
viril.
Julie achou conveniente abrir sua sombrinha. Ainda não conseguia
tolerar o calor seco da Índia e hoje os termômetros deveriam subir ainda
mais. Antes de sair do palácio, ela havia prendido os cabelos e escolhera o
vestido mais leve e decotado que trouxera.
Jai conduzia as duas por um labirinto de ruas estreitas de
calçamento de pedras. Construções de barro, freqüentemente em ruínas,
dominavam o cenário. O caminho se tornava cada vez mais estreito e sinuoso
até que, afinal, eles acabaram dando num beco.
Quando Jai parou, Julie ainda deu mais dois passos para chegar até
onde ele estava e então sentiu que o ar se tornara úmido naquele pedaço.
Respirou fundo, exalando um suspiro de prazer, O beco terminava no topo
de uma escada de pedra, muito antiga. Um rio largo e cheio de curvas se
estendia lá embaixo, fluindo com uma beleza calma e serena, que lembrava os
cânticos védicos. De fato, o delicado ritmo da música pândita chegou aos
ouvidos de Julie, vindo de muito longe, flutuando pelo ar.
— O rio Yamuna — Jai explicou ao seu lado, olhando lá para baixo.
— Os hindus consideram-no um rio sagrado. Vários peregrinos costumam vir
até aqui para se purificar nas suas águas.
— Este é o mesmo rio que vai dar em Agra. Você poderá vê-lo do Taj
Mahal — completou a marani.
— E aquela árvore lá embaixo? — perguntou Julie, apontando para
uma gigantesca bania, cujos galhos eram mais grossos que o tronco de um
homem. Retalhos de panos coloridos decoravam os ramos mais baixos.
— Venha, eu lhe mostro — disse Jai. — Havia me esquecido
completamente daquela árvore! Há anos que não venho a Vrindaban.
— Vão vocês, meus filhos — interrompeu a marani. A voz agradável

117
e melodiosa da mãe de Jai parecia ajustar-se perfeitamente à harmonia do
lugar. — Eu os esperarei aqui mesmo. Já estou velha demais para enfrentar
estes degraus.
— Tem certeza, mamãe? Nós poderemos dar a volta, se preferir.
— Não, querido, vá você com Julie. Eu não preciso do rio. Já estou
sentindo uma paz muito grande só em vê-lo.
— Sua mãe é muito religiosa, não? — comentou ela, seguindo Jai
degraus abaixo.
— Depois da minha felicidade e da de Priya, as prioridades de
minha mãe são espirituais. — E, olhando para trás, perguntou: — Está sendo
muito difícil para você descer estes degraus?
Ela fez que não, olhando bem por onde andava. Para sua sorte, as
sandálias eram confortáveis e de saltos baixos.
— Por que Krishna é considerado o maior dos deuses? — perguntou
ao parar um instante para tomar fôlego. Jai parará também, escalando de
volta dois degraus sem o menor esforço. Chegou perto dela, e, lado a lado,
ficaram observando o rio, que brilhava sob o sol da tarde.
— Krishna representa a consciência absoluta, a "substância" infinita
e eterna em que se apóia a existência. A meta de todos os hindus é alcançar
este estado de consciência pura, mesmo quando engajados nas atividades do
dia-a-dia. É o que eles chamam de consciência cósmica ou moksha, que quer
dizer liberação. Os pânditas dizem que nesse estado de luz um homem não
pode fazer mal aos outros. Ele estaria então em perfeita harmonia com as leis
naturais. Mas as escrituras contam muitas histórias sobre o próprio Krishna
— continuou ele, tomando-a pela mão e ajudando-a a descer o último lance
de degraus. — Esta árvore faz parte de uma delas. Quando criança, segundo
diz a tradição, Krishna era muito travesso. Um dia, quando as gopis, suas
criadas celestiais, tomavam banho aqui no Yamuna, Krishna lhes roubou os
saris e pendurou um a um nos galhos desta árvore, fora do alcance delas.
Hoje as pessoas vêm até ela e, ao fazerem seus pedidos, penduram um
pedaço de tecido, numa imitação do gesto do próprio deus.
— Posso fazer isso também?
— Depende do que você deseja pedir — respondeu ele, o corpo forte
repentinamente muito próximo do dela.
Sorriu ao ver que Julie ficara corada com o calor do olhar que lhe
dirigira. O simples fato de estar perto dele aguçava seus sentidos além do
limite suportável. E o que dizer então quando tocada? Uma série de
lembranças sensuais e eróticas vieram-lhe à mente. Pela primeira vez ela

118
admitiu a verdade com honestidade: não abandonara o trabalho e se
submetera àquela longa viagem só para conhecer o Taj Mahal, havia feito isso
para passar o dia com Jai, livre de responsabilidades e de restrições.
Jai acenou para um vendedor ambulante, que estava justamente
oferecendo pedaços de pano pelo preço de uma rúpia. Julie ficou nas pontas
dos pés e pendurou o retalho colorido no galho mais baixo que conseguiu
alcançar. Com a mente em Jai, se esqueceu completamente de fazer o pedido.
Então caminharam juntos até a margem do rio. Jai arregaçou a calça e
entrou na corrente enquanto Julie, com medo de molhar o vestido, preferiu
sentar-se sobre uma pedra e observar alguns adolescentes brincarem com
uma bola. Seus gritos enchiam o ar e sua alegria contagiava quando se
atiravam à água numa ansiosa perseguição à bola que seguia correnteza
abaixo.
— Talvez agora pudéssemos levar Julie até o jardim de Krishna —
Jai disse quando voltaram para junto da tnarani. — Contam que Krishna
vinha a esse jardim toda noite para brincar com as gopis — explicou,
voltando-se para Julie. — O povo de Vrindaban diz que qualquer um poderia
enlouquecer caso visse Krishna, e por isso o portão é trancado quando cai o
crepúsculo. Mas ainda dá tempo de chegarmos lá, se você quiser.
— Acho melhor não — respondeu ela. Não podia recordar alguma
outra vez em que houvesse sentido uma paz tão grande. — Do modo como
estou me sentido agora, acredito que já tenha enlouquecido.
— Neste caso, vamos seguir para Agra — disse a marani, rindo. —
Hoje é lua cheia, quando o Taj Mahal está mais belo do que nunca.
Como qualquer outro americano, Julie conhecia o Taj Mahal através
de inúmeros cartões-postais. De fato, todas as representações que vira do
monumento sob o pôr-do-sol, à luz do dia e nos seus mais diversos ângulos,
davam-lhe a sensação de que não se surpreenderia quando estivesse frente a
frente com a famosa estrutura de mármore. Nada do que havia visto,
entretanto, chegava perto da realidade.
Conhecer o Taj Mahal era experimentar a beleza absoluta: a beleza
pura e serena que transcendia os limites da existência humana e que deixava
vislumbrar a eternidade. Julie atravessou o pórtico gigantesco da entrada
com o interesse costumeiro dos turistas. Mas parou no topo dos degraus que
levavam ao jardim, com os olhos arregalados e a respiração suspensa diante
de tamanho esplendor.
A distância, além do parque repleto de arbustos e de vários lagos e
fontes, erguia-se o monumento de mármore branco em meio a uma névoa

119
transparente. A cúpula resplandecia ao luar; torres delgadas subiam de cada
canto da base, em espiral, até as nuvens. Mesmo de longe, causava impacto a
imponência do mausoléu que, contrastada com a delicadeza das linhas
arquitetônicas, espalhava um toque de magia.
— Você está muito quieta — comentou Jai, observando-a com
interesse.
A marani havia encontrado velhos amigos em Agra e resolvera não
ir com eles até o Taj Mahal, sentindo-se cansada demais com a viagem.
Julie voltou-se para aquele homem alto e forte e surpreendeu-se por
achá-lo ainda mais bonito.
— Como pode ser assim tão belo? — murmurou, perdendo-se nos
olhos negros do príncipe. — É tão maravilhoso — continuou, percorrendo
devagar cada traço daquele rosto à sua frente — que toca fundo a
sensibilidade.
— É um monumento ao amor — respondeu ele em voz baixa, os
olhos fixos em Julie.
Sem que se desfizesse a magia daquele instante, desceram em
silêncio os degraus que levavam ao jardim central. Uma comunicação perfeita
se estabelecera entre eles, dispensando o uso de palavras. Por que falar se
seus pensamentos eram tão cristalinos? Jai pegou a mão de Julie e galgaram
os degraus de arenito que levavam à plataforma onde se erguia o mausoléu.
Caminharam pelo lado de fora, admirando as flores e os detalhes da
arquitetura. Pararam defronte a uma inscrição.
— O que diz aí? — quis saber Julie, abaixando-se para estudar as
letras gravadas na pedra.
— Não sei. — Ele continuava em pé atrás dela, as mãos descansando
em seus ombros. O calor daqueles dedos se propagou por todo o corpo de
Julie, alertando seus sentidos. — Esta é uma sepultura muçulmana, você sabe.
Acredito que estas inscrições sejam passagens tiradas do Corão.
— O homem que construiu o mausoléu era indiano, não? —
perguntou, pondo-se novamente de pé e sentindo o braço do príncipe
envolver sua cintura. Continuaram a exploração do monumento, os corpos
roçando levemente à medida que caminhavam.
— O nome do imperador era Shah Jahan. Construiu este
monumento em memória à sua esposa-predileta, Mumtazi-Mahal, que quer
dizer algo como "a favorita do palácio". Como você poder perceber, Taj
Mahal é uma corruptela desta expressão.
— Posso imaginar como seria essa mulher

120
— Eu também: parecida com você.
Ela achou graça.
— Fico lisonjeada com a comparação.
— Ela é quem deveria ficar — respondeu ele com voz gutural. Seus
lábios se curvaram num sorriso surpreendentemente terno quando olhou
para Julie.
— Vamos entrar — disse ela, rompendo o encantamento.
Jai registrou a perturbação, mas não entendeu o motivo da pressa.
Deu de ombros.
— Como quiser.
Ela não o olhou mais. De algum modo sentia que, se mantivesse a
atenção voltada para as relíquias do monumento, estaria temporariamente a
salvo. Agarrou-se aos preciosos minutos que passavam entre os outros
turistas como seu último estágio de segurança. A intensidade de sua atração
por Jai aumentava passo a passo, mesmo estando os dois rodeados de
pessoas. O que dizer então quando estivessem sozinhos na longa noite que os
esperava?
Dentro do sepulcro, dois ataúdes de mármore incrustados de pedras
preciosas estavam expostos no andar principal. Quando já haviam admirado o
suficiente, Jai mostrou a ela uma escada que conduzia a uma câmara
mortuária no andar de baixo. Ali jaziam dois esquifes muito mais simples,
que continham os corpos do imperador e de sua esposa.
A tumba verdadeira não atraía tanto a atenção quanto as outras
partes do mausoléu, e os dois logo saíram para o ar livre, caminhando de
volta para o jardim central. O braço de Jai se estreitou ainda mais ao redor da
cintura de Julie, que sentiu seu corpo se amoldar contra o dele. Encurtando o
passo para que ela conseguisse acompanhá-lo, ele foi deslocando o braço da
cintura para os ombros de Julie, com movimentos lentos em forma de carícia.
Ela podia sentir-lhe a respiração macia, a mão quente sobre sua pele. Seu
coração parecia estar batendo na garganta.
Quando alcançaram uma curva, Jai parou e virou-se para ela.
Sempre com movimentos lentos, como se fosse personagem de um sonho,
abraçou-a. Parecia tão natural tomá-la nos braços que ela se aconchegou sem
hesitação. Seus lábios se procuraram, ansiosos, e os beijos se sucederam,
doces e intensos como um desfecho inevitável para aquela noite. Uma paz
imensa invadira Julie, como se naquele lugar fantástico e irreal houvesse
encontrado o seu verdadeiro eu. O Taj Mahal, iluminado pela luz da lua,
dominava o cenário. Quando Jai finalmente a soltou, ela descobriu que

121
tremia, enquanto lutava para controlar a paixão que a invadia.
— Vamos passar a noite juntos, meu amor — ele disse com uma
segurança que não admitia réplicas. Julie, por outro lado, nem pensou em
argumentar. Levantou o olhar para ele, perdendo-se no mistério daquelas
pupilas negras que ardiam em chamas. Sim, sabia que naquela noite estariam
juntos, dividindo a mesma cama.
Vozes os alcançaram. Um grupo de turistas chegava para apreciar o
Taj Mahal. Jai tocou o braço de Julie com as pontas dos dedos. Após uma
troca significativa de olhares, se encaminharam para a saída.

Já em seu quarto no hotel, Julie sentou-se na beira da cama e deixou-


se ficar com a cabeça entre as mãos. Por que ficara passiva quando Jai
declarou sua intenção de passarem juntos aquela noite? Naturalmente, ele
havia interpretado seu silêncio como um gesto de assentimento. Agora,
entretanto, tudo ficava mais difícil; no quarto ao lado, ele estava somente à
espera de um sinal para entrar. Como poderia lhe dizer que não, quando seu
corpo pedia o contrário? Como poderia manter-se firme quando ele
começasse a beijá-la?
Levantou-se e começou a andar pelo quarto. O abajur projetava na
parede uma sombra gigantesca de seus movimentos tensos. Deprimida,
caminhou até a pequena sacada que dava vista para a piscina do hotel. Seus
olhos mergulharam na água mansa e lá ficaram sem que se desse conta. O
pensamento voava num turbilhão de imagens confusas: o jardim secreto as
discussões sobre terrorismo os momentos de ternura após o jantar em casa de
Calvert as suspeitas o passeio no Taj Mahal as acusações o colar
de diamantes as suspeitas as acusações
Cinco minutos mais tarde, passava apressadamente pelo sonolento
porteiro com uma valise nas mãos. Sabia que não conseguiria resistir aos
avanços de Jai naquela noite. Mas podia evitá-los e assim faria até voltar a
Nova York.
Mas pegar um táxi para Nova Délhi no meio da noite se revelou
uma tarefa mais complicada do que ela supunha. Só uns poucos carros
permaneciam num ponto não muito distante da entrada do hotel. Julie se
aproximou do primeiro deles.
— Madame — o chofer disse, quando finalmente entendeu o que ela
queria —, levo amanhã. Onde está? Ah, hotel? Levo oito horas da manhã.
— Mas eu preciso ir agora, meu senhor. Eu sei que é tarde, mas
pagarei muito bem.

122
O motorista entrou no velho carro preto e cortou a conversa:
— Amanhã. Madame paga amanhã.
— Eu não posso esperar até amanhã — retrucou, desanimada,
olhando em seguida para os outros carros. — Será que algum dos senhores
pode me levar até Nova Délhi agora? Pagarei o dobro do preço normal.
— Não é seguro ir agora — avisou um deles. — Perigo. Dacoits.
— Dacoits? Oh! O senhor quer dizer os ladrões de estrada? —
perguntou, lembrando-se das palavras da marani.
— Dacoits — insistiu o homem, acenando com a cabeça em sinal
afirmativo. Os outros acenavam também, concordando.
Julie hesitou. Tinha duas opções: arranjar um quarto em outro hotel
ou voltar a Nova Délhi. Só que seria ridículo encontrar Jai pela manhã e
confessar que dormira em outro lugar. Pior ainda seria enfrentar uma longa
viagem de volta na companhia dele. Era melhor voltar para Délhi agora.
Poderia dizer a ele que fora chamada para averiguar uma pista sobre a
reunião.
— Pago o triplo! — declarou em voz mais alta, evitando pensar nos
riscos daquela viagem.
— Eu vou.
A voz viera de um homem muito magro, de cabelos grisalhos, o
mais esfarrapado de todos. Não havia maldade naquele rosto miúdo, mas sua
aparência não inspirava confiança. Se fossem assaltados no meio do caminho,
era bem capaz que ele a abandonasse. E, caso resolvesse enfrentar os ladrões,
de que adiantaria? Com um físico franzino daqueles, o pobre coitado não
seria páreo para ninguém.
Os outros motoristas argumentavam, na certa procurando fazer com
que o companheiro desistisse. Mas o velho disse algumas palavras naquela
língua estranha e eles acabaram se calando. Julie sentiu que o pobre precisava
muito daquele dinheiro, mais do que os outros talvez, e isso justificava o
risco. O veículo que ele dirigia era o que estava em pior estado, o que só fez
aumentar o desespero da situação. Tentando ignorar o medo que crescia
dentro dela, abriu a porta e entrou no carro.

123
CAPÍTULO XIV

Chacoalhando pela estrada duas horas mais tarde, uma forte


corrente de ar esfriando-lhe os pés, Julie mudou pela milésima vez de posição
no desconfortável banco traseiro. Olhou para o relógio: duas da manhã. Pelos
seus cálculos, estavam na metade do caminho, embora, com aquele carro
avançando aos trancos, não pudesse ter certeza.
Pensou mais uma vez em Jai. Ainda que fizesse força para evitar, a
imagem dele sempre voltava-lhe à cabeça. Que ele ficaria zangado com sua
fuga, era certo. Mas será que se sentiria magoado? Não podia imaginar.
Dependeria do quanto se importasse com ela. Jai não iria ao seu encalço.
Primeiro porque tinha que cuidar da mãe. Segundo porque seu orgulho não
permitiria que saísse atrás da mulher que o rejeitara. Passaria pela cabeça dele
que ela fugira justamente porque não conseguiria rejeitá-lo aquela noite?
Julie tirou o casaquinho que usava sobre o vestido e envolveu-o nas
pernas. Sentia-se desconfortável demais para dormir. Um meio sorriso
apareceu em seus lábios: havia se acostumado depressa ao luxo dos
automóveis de Jai.
Numa tentativa de manter o pensamento ocupado com outra coisa
que não fosse o príncipe, começou a imaginar as desculpas que daria à
marani. Uma chamada urgente de seu contato em Bombaim? Um boato
ouvido entre os motoristas de táxi sobre um novo atentado em Nova Délhi?
Qualquer coisa que dissesse à sua anfitriã já deveria servir como desculpa
para deixar o palácio quanto antes. Não tinha dúvida de que trabalharia
muito melhor estando num hotel.
O relacionamento com Jai havia alcançado um estágio perigoso. Até
ali, naquele carro barulhento, não conseguia pensar duas coisas sem que Jai
fosse uma delas. Imaginava-o agora entrando no quarto, cobrindo-a de beijos,
despindo-a devagar Tão imersa estava nesses pensamentos, que quase não
prestava atenção aos monossílabos inquietos do motorista. Por isso, o grito
agudo e inesperado que ele deu trouxe-a bruscamente de volta à realidade.
O carros se desgovernou enquanto ele tentava desesperadamente
controlá-lo. A freada brusca jogou Julie de encontro ao banco da frente.
Impensadamente, ela baixou o vidro e pôs a cabeça para fora. Na escuridão,
avistou uma barreira composta por vários homens, que logo correram em

124
direção ao automóvel.
Fechou depressa o vidro e encolheu-se no meio do banco. Apesar do
coração batendo aos saltos, surpreendeu-se por não estar sentindo medo. De
fato, sua mente parecia inusitadamente clara a ponto de ela ser capaz de
compreender e pesar cada detalhe da situação com uma frieza surpreendente.
Estes preciosos segundos de reflexão permitiram que mantivesse o
autocontrole. Mas logo a porta ao seu lado se escancarou e mãos violentas a
arrastaram para fora do táxi.
Julie encarou os bandidos com uma calma estudada e encostou-se de
costas no carro. Quatro homens de aparência selvagem haviam formado um
semicírculo à sua frente; estavam mais imundos e maltrapilhos do que
qualquer mendigo que vira nas ruas de Nova Délhi. Traziam alguns trapos
em volta das cabeças, e ela ainda teve tempo de analisar como era estranha a
necessidade que os indianos tinham de usar turbantes, ou, como naquele
caso, um arremedo de turbante. Apesar de eles não usarem máscaras, era
difícil enxergar-lhes as feições naquela escuridão. Com o canto do olho, ela
percebeu que outros dois dacoits haviam forçado o motorista a sair do carro e
agora revistavam os bolsos do seu casaco roto.
— Rúpias — Julie disse, tentando fazer com que sua voz saísse
firme. Levantou a bolsa para os homens, dando graças a Deus por haver
deixado o passaporte no palácio.
O bandido mais próximo a ela agarrou a bolsa com um gesto
violento e abriu imediatamente. Retirou de dentro a carteira e soltou uma
exclamação ao ver o grosso maço de notas que Julie levava. Ela trouxera
muito dinheiro para o caso de querer comprar algumas lembranças em Agra.
E, afinal, o dinheiro lhe fora muito útil, pois salvara sua vida. Tremeu ao
pensar o que aqueles ladrões poderiam fazer se não encontrassem o que
queriam. Esperava poder convencer o motorista a continuar a viagem para
Nova Délhi tão logo os bandidos os deixassem em paz. Ainda tinha dinheiro
suficiente no palácio para pagar a corrida e reembolsá-lo pelo roubo.
Os dacoits, tendo contado o dinheiro e vasculhado toda a bolsa,
agora discutiam acaloradamente. Pelo modo como olhavam a todo momento
para a estrada, Julie entendeu que temiam a aproximação de outros veículos.
Por que estariam demorando para deixar que ela e o motorista seguissem seu
caminho? Achava que eles não lhes fariam mal algum, uma vez que já tinham
bastante dinheiro. Naquele instante, a discussão cessou.
— Madame — disse um deles, dando um passo na sua direção —,
você vem. — E segurou-lhe o braço.

125
Julie desvencilhou-se com um safanão.
— O que é isto? — exclamou, sentindo um arrepio de medo diante
do inesperado daquela situação. — Vocês já estão com o meu dinheiro. Agora
vão embora.
Os outros se acercaram dela. Os dois que cuidavam do motorista
acabaram soltando-o. O pobre diabo correu em pânico para o carro e colocou o
motor para funcionar. Após algumas tentativas, conseguiu fazer com que ele
pegasse.
— Espere! — Julie gritou, apavorada.
Os dacoits gritaram algo em tom de ameaça para o motorista, e o taxi
finalmente arrancou com um solavanco, sem que ela conseguisse se mover.
No momento seguinte, se viu no meio de uma estrada deserta, rodeada de
inimigos e sem a menor possibilidade de escapar.
Não tentou reagir quando mãos imundas agarraram-na pelos dois
braços. Estava amedrontada demais para protestar. Além disso, a lógica lhe
dizia que era inútil lutar se não tinha condições de vencer. Sentia que o
recurso mais seguro seria manter a todo custo uma frieza calculada, como se
não tivesse nada a temer. Por isso, obedeceu quando os homens a
empurraram, indicando que deveria sair da estrada junto com eles.
Marchou entre seus raptores olhando para o chão, com medo de
tropeçar. Os homens a empurravam, forçando-a a acelerar o passo,
obviamente querendo afastar-se o mais rápido possível da estrada. Ela não
sabia o que eles iriam fazer, mas imaginava que a estivessem levando para
algum esconderijo.
Logo descobriu que estava completamente perdida. Ao olhar para
trás não conseguiu avistar a estrada, e sentiu uma pontada no estômago ao
compreender que não conseguiria voltar, ainda que eles a soltassem. Pensou,
com um fio de esperança, que o motorista do táxi poderia chamar a polícia.
Mas logo concluiu que aquilo era muito difícil. Por que ele haveria de se
preocupar com uma turista? Havia percebido claramente os dacoits
ameaçando o velho para não abrir a boca, e ele não seria idiota de traí-los e
ficar sujeito à vingança do grupo.
Ninguém no mundo poderia ter idéia de onde ela se encontrava
naquele momento. Imaginou o que Jai estaria pensando: que ela saíra do país
sem ao menos dizer adeus, que era uma impostora, uma traidora.
A dor no estômago se tornou insuportável. Sua boca estava seca. As
pernas tremiam. Justamente quando sentiu que não agüentaria mais, avistou
um clarão, que possivelmente indicava o fim da linha.

126
Os homens a conduziram através de um matagal espesso para o
topo de uma pequena colina. Desceram uma ribanceira e então a
luminosidade que ela avistara minutos antes apareceu aos seus olhos como
uma fogueira. Aquilo era um acampamento. Várias pessoas se
movimentavam de um lado para outro e paravam para observá-la.
Exclamações de surpresa saudavam a chegada de uma prisioneira. Muitos
homens se aproximaram para examiná-la, curiosos. Seus raptores, todavia,
conduziram-na diretamente para o centro do acampamento, onde estava a
fogueira.
Sentado em frente ao fogo e com um rifle desmantelado sobre o
colo, estava um homem de feições morenas, com os ombros mais largos que
Julie já vira. Seus músculos eram os de um campeão de pugilismo. Com uma
faixa azul enrolada na cabeça, à moda indiana, ele, de maneira primitiva,
poderia ser considerado um homem bonito. Os olhos grandes a examinaram
dos pés à cabeça e então se dirigiram interrogativamente para o homem que a
segurava pelo braço.
Julie compreendeu que os outros estavam esperando que o homem
falasse. E ele começou por interrogá-los. Não parecia gostar do que ouvia,
mas manteve-se em silêncio até que os raptores de Julie concluíssem o relato.
Então depositou calmamente as partes do rifle sobre um cobertor estendido
ao lado e se levantou. A uma palavra sua, uma almofada foi colocada aos pés
de Julie. Ele era obviamente o líder do bando.
— Por favor, madame, sente-se — disse ele, sorrindo e mostrando os
dentes amarelados.
Aliviada, Julie sentou-se sobre a almofada. Se ficasse mais um
minuto em pé, acabaria desmaiando. O homem sentou-se ao seu lado
enquanto os outros se ajeitavam perto da fogueira. Uma rápida olhadela em
volta mostrou a Julie que o pessoal todo estava reunido em volta do fogo.
Trouxeram-lhe água, que ela bebeu avidamente.
— Qual é o seu nome? — O inglês dele era perfeito, embora bastante
carregado.
— Julie Connell.
— Americana? —
Sim.
— Onde está seu marido? — Ele a estudava, intrigado.
Julie hesitou. Seria melhor fingir que era casada para que ele
pensasse que tinha alguém para protegê-la?
— Não sou casada. — Decidiu que a mentira poderia ser uma faca

127
de dois gumes. Talvez fosse mais seguro dizer a verdade.
Um murmúrio correu entre as pessoas do acampamento.
— Não tem marido?
— Não — repetiu com firmeza. — Americana — acrescentou como
se aquilo explicasse tudo.
Ele abriu um sorriso.
— Na Índia você já estaria casada e com muitos filhos. — Ele
possuía um charme libertino que Julie apreciaria se não estivesse tão tensa.
Ela o observava, atenta. O líder dos dacoits não parecia tão admirado quanto
os outros em relação ao seu estado civil.
— Onde você mora?
Julie compreendeu, afinal, aonde levaria aquele interrogatório. Ele
queria descobrir a quem poderia pedir o resgate por sua vida. Era preciso ter
cuidado com a resposta. Aquele homem parecia muito hábil.
— Estou hospedada na casa de uma velha amiga.
— Que amiga?
Julie manteve um silêncio prudente, a testa porejando gotas de suor
gelado. O rosto de Jai apareceu-lhe diante dos olhos. Como ele ficaria
zangado quando descobrisse sua fuga! Ou quem sabe ficasse feliz por ter se
livrado dela Uma coisa era certa: Jai nunca a perdoaria por aquele insulto à sua
masculinidade.
Uma mão de ferro agarrou-lhe o pulso. Cheia de horror, ela não
pôde lutar quando viu o bandido levar seu braço até alguns centímetros do
fogo. A pele delicada se avermelhou com o calor dos carvões incandescentes.
— Qual é o nome da mulher?
Julie encontrou aquele olhar sádico. Charme? Qual o quê! Aquele
homem era um animal!
— Ela é muito velha, não tem dinheiro. — Mordeu os lábios quando o
dacoit levou seu braço para mais perto do fogo.
— Como não tem dinheiro? Ela não está hospedando uma
americana? A não ser que more num barraco. — E soltou uma risada
sarcástica, no que foi acompanhado pelo resto do bando. Mas logo voltou a
ficar sério e impôs silêncio. — Está pensando que sou algum idiota?
Aquele olhar era terrivelmente ameaçador.
— É é que ela é sustentada pelo filho! — exclamou, lançando um
olhar desesperado para o fogo tão próximo. Sua pele começava a arder.
— Quem é o filho dela? — berrou o dacoit, impaciente, fazendo um
gesto que indicava estar disposto a enterrar-lhe o braço nos carvões.

128
— Jai! — gritou ela mais do que depressa. — O príncipe Jaiapradesh
Mishra!
Instantaneamente ele a soltou. Julie levou o braço de encontro ao
peito, lançando um olhar de ódio para o seu torturador. Os olhos dele
brilhavam, satisfeitos. Num instante, suas maneiras voltaram a ser
civilizadas.
— Príncipe Mishra! — murmurou a meia voz. — Ele é um homem
muito rico.
Disse algumas palavras num dialeto estranho e um homem se
levantou, logo retornando com um pote de vidro, cheio de uma substância
gordurosa. Com um gesto, indicou a Julie que deveria untar o braço com
aquilo. O bálsamo gelado aliviou imediatamente o ardor na pele.
— Onde posso encontrar o príncipe neste momento? — perguntou o
líder, logo que ela acabou de se medicar.
Que enrascada! Jai pensaria que ela estava mancomunada com eles
se dissesse aos bandidos onde encontrá-lo. Mas, olhando para a fogueira
— Agra — revelou, e deu o nome do hotel. — Mas você não vai
conseguir nada dele. O príncipe me detesta. Ele pensa que eu ele não gosta de
jornalistas e eu sou repórter. Jamais pagará um resgate por mim, pois
prefere me ver morta!
— Existem coisas piores do que a morte, moça — disse ele,
enigmático.
— Quer falar com o príncipe Mishra? — Uma voz penetrante fez-se
ouvir mais além do grupo. — Pois bem, ele está aqui.
Os olhos de Julie se haviam fixados, apreensivos, sobre o homem
parado do outro lado da fogueira. Numa fração de segundo, antes que
pudesse reconhecer a silhueta ou mesmo atinar com o conteúdo daquelas
frases, ela viu o líder dos dacoits levantar-se de um salto. Só então se deu
conta do milagre: aquele era Jai em pessoa, que vinha vindo para salvá-la!
O príncipe estava ladeado por quatro homens armados. Sua figura
alta e forte era iluminada pelo clarão do fogo, e o sorriso cruel no canto dos
lábios dava-lhe uma aparência mais ameaçadora do que todos aqueles dacoits
reunidos.
O espanto era geral. Todos se haviam posto de pé, de olho nas
armas apontadas em suas direções. Um nome, sussurrado com respeito,
corria de boca em boca. Mais tarde, Julie viria a saber que o povo conhecia Jai
como Príncipe Tigre.
Incapaz de dizer uma só palavra, ela tinha a atenção voltada para o

129
rosto do homem com quem deveria estar, naquele exato instante, dividindo a
mesma cama. Isto é, se não tivesse sido tão idiota a ponto de fugir e de meter
os dois naquela embrulhada. Os olhos de Jai sustentaram os seus e então,
para sua surpresa, as linhas do rosto dele se suavizaram. Ele sorriu tão
ternamente, que Julie ousou imaginar que estaria aliviado por encontrá-la sã e
salva. Não havia naqueles olhos nenhuma sombra de condenação pelo que ela
havia feito.
Ele caminhou diretamente para o local onde ela se achava. À
medida que avançava, os dacoits iam abrindo caminho, sem ousar detê-lo.
Quando chegou até ela, Tai estreitou-a nos braços.
— Você está bem? —
Estou.
Julie abraçou-o com força, enterrando o rosto no peito dele. A calma
que mantivera dissolveu-se completamente e ela precisou lutar contra a
vontade de chorar.
— Você está salva agora — disse ele, procurando confortá-la. —
Sente-se um pouco. — Puxou a almofada e ajudou-a a sentar-se. — Você se
saiu muito bem. Perdoe-me por não ter estado pronto dois minutos antes. —
Jai se ajoelhou ao lado dela e pegou delicadamente o braço machucado. Ficou
um instante a examiná-lo e depois se levantou, encarando o líder do bando:
— Sorte sua que o braço dela não esteja seriamente machucado. — A voz do
príncipe tinha uma nota sinistra que Julie nunca ouvira antes.
O dacoit fez uma leve reverência.
— Concordo inteiramente, príncipe. Não gostaria de sentar-se ao pé
do fogo?
Jai assentiu e logo lhe trouxeram uma almofada. Julie não estava
nem um pouco surpresa com o fato de o homem se dirigir ao príncipe em
inglês. A Índia era um país com mais de 180 línguas e 700 dialetos.
Ironicamente, entretanto, a única língua comum a todos os indianos era
aquela que fora imposta pelos ingleses durante a ocupação que durara
duzentos anos.
— Posso perguntar como o senhor nos encontrou tão facilmente? — o
chefe dos bandidos perguntou.
— Meus guardas me alertaram no momento em que ela saiu de
Agra. Ou você imaginava que eu iria permitir que uma mulher como essa
andasse por aí sem proteção?
Julie perdeu o fôlego. Jai pusera guardas para vigiar seus passos!
Sentiu uma estranha mistura de fúria por aquela interferência e prazer por

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perceber que ele se preocupava com sua vida.
O homem sorriu maliciosamente. E então, de maneira casual, passou a
falar sobre a situação geral da Índia. Julie, recuperada do choque,
acompanhava os dois com grande interesse. Sentia uma certa tensão no ar: os
guardas permaneciam atentos com suas armas de fogo. E sentia também que o
líder dacoit tentava fazer uma barganha. Ele falava de modo genérico,
fazendo referências vagas aos "inimigos do Estado".
Julie endireitou o corpo. Aquela conversa ficava interessante. Sentiu
pena por não estar com o seu gravador ou mesmo com o seu inseparável
caderno de anotações. Mas, já que era assim, passou a ouvir atentamente,
tentando guardar na memória cada detalhe do que diziam.
— O senhor deve saber, príncipe Mishra, que é conhecido como
protetor dos pobres — dizia o homem. — Sendo assim, está consciente dos
problemas que eles enfrentam e de sua vulnerabilidade. O senhor paga os mais
altos salários aos seus empregados. Paga ainda escola para os filhos deles. As
condições de trabalho em suas indústrias são apontadas como exemplo pelo
governo, quando dignitários estrangeiros vêm até este país. — Ele parou um
instante, soltando uma risada, enquanto Jai mantinha o rosto impassível. —
Talvez esteja se perguntando o que um insignificante dacoit tem a ver com
tudo isso.
— Imagino que tenha as suas razões — respondeu Jai, sempre
calmo. — Continue.
Julie sentiu um peso sair de seus ombros quando ouviu o homem
enumerar as qualidades de Jai. Depois de passar todo aquele tempo na Índia,
havia notado o grande contraste entre as condições de vida dos pobres e dos
ricos. E agora sentia-se feliz por saber que o príncipe, uma das maiores
fortunas do país, fazia tudo o que estava ao seu alcance para remediar a
situação. Quanto mais sabia sobre ele, mais o admirava. Jai jamais se
aproveitaria das pessoas mais fracas ou menos afortunadas.
Ficou contemplando aquele rosto aristocrático. Sua mente se voltou
Para o momento em que ele aparecera no refúgio dacoit, como um anjo no
meio da noite. Ou, talvez mais apropriadamente, como um demônio. Ao vê-
lo, seu coração disparara sentindo algo mais forte do que o alívio por ter sido
encontrada. De algum modo se sentira segura, feliz.
Lutava para definir seus sentimentos em relação a Jai, ainda que
temesse fazer tal coisa. Apesar dos conflitos e das acusações que ouvia
freqüentemente, havia algo que a impedia de odiá-lo, algo maior que a
atração física que sentia. Ela o respeitava, contava com sua ajuda. Tinha

131
descoberto que só junto daquele homem sentia-se completamente mulher. Lá
no fundo do coração, apesar de saber que Jai ficaria furioso com sua fuga,
sempre mantivera a esperança de que ele viria salvá-la. E mais uma vez Jai
não a desapontara.
Meu Deus, o que significaria tudo isso? Nunca se apaixonara por
ninguém estaria começando agora? Estremeceu diante da idéia, porque sabia que
não seria capaz de se entregar de corpo e alma a um homem que duvidava de
sua honestidade. Mas aquele sentimento era tão forte E Eddie? Há quanto
tempo não pensava nele? Estava usando o passional Jai Mishra para substituir
o doce e afetivo Eddie Bryce? Se não tomasse cuidado, correria o risco de se
sentir ainda mais miserável do que a pobre Priya, pois pelo menos o amor da
princesa era correspondido.
— Meu tempo é limitado — disse Jai bruscamente. — Diga logo o
que tem a dizer e eu decidirei se devo ou não negociar com você. — Os
guardas chegaram mais perto, rifles apontados, como a enfatizar a fala do
príncipe.
— Eu vou lhe contar o que sei — replicou o dacoit. Sua voz assumiu o
tom adulador de um político se preparando para empolgar a platéia com seu
discurso. — Certas facções gostariam de ver o partido popular derrotado e por
isso fomentam o descontentamento entre as classes populares, sem a intenção
real de fazê-las lutar por melhores condições de vida, de exigir seus direitos.
Não é no bem-estar da classe trabalhadora que tais grupos estão pensando. O
que desejam, na verdade, é estimular a desordem e o caos social. Eu mesmo já
tive contato com eles. — E espalmou a mão sobre o peito. — Sou um humilde
dacoit que não faz mal a ninguém. Estou contente com o que tenho e não
desejo mais nada na vida. Por isso não caio nessa conversa dos agitadores.
Além do mais, é uma coisa muito perigosa lidar com eles: a gente nunca sabe
em quem confiar.
— Que tipo de contato manteve com eles? — Jai perguntou com um
ar entediado. Julie poderia apostar que o líder dacoit não se arriscaria a
mentir.
— O suficiente para saber que esses terroristas se encontrarão num
futuro muito próximo para planejar uma ofensiva a outros países.
— Onde e quando?
— Se eu lhe der o serviço, o senhor deixa a mim e meus homens em
paz?
— Não tente fazer barganhas comigo — replicou Jai friamente. —
Diga-me o que sabe.

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O homem encolheu os ombros. Julie reconhecia que ele, pelo menos,
tinha uma grande coragem.
— Em Caxemira. Daqui a cinco dias.
— Em que lugar de Caxemira?
— Não sei ao certo. — O bandido hesitava. — Meu palpite é que a
reunião acontecerá em Srinagar, mas não tenho certeza.
Jai inclinou-se para trás, sobre a almofada. Parecia satisfeito.
— Ótimo. É o suficiente. Nós os encontraremos. — Pôs-se de pé e
estendeu-lhe a mão.
O dacoit também se levantou. A surpresa pelo gesto de Jai estava
estampada em seu rosto, mas ele apertou a mão do príncipe.
— Eu não teria roubado a moça se soubesse que ela era sua. Sei que o
senhor é amigo do povo.
— Não duvido disso. Você também sabe que sou um inimigo
perigoso — Jai retrucou com um humor cáustico.
— Sim. O Príncipe Tigre — disse o dacoit, fazendo uma reverência.
— Nenhuma palavra chegará aos terroristas sobre nossa conversa, fique
certo.
— É bom mesmo que eles não saibam que estou a par de tudo, se
você tem amor à vida. — Dando-lhe as costas, o príncipe caminhou na
direção de Julie.
— Desculpe-me fazê-la esperar, Julie, quando você devia estar
ansiosa para deixar este local. Mas acho que concorda comigo que valeu a
pena — disse em voz baixa, estendendo-lhe a mão para ajudá-la a se levantar.
— Está chateada por eu não ter punido seus raptores? — perguntou enquanto
saíam do acampamento. — Já que você está bem, eu não acho que seja minha
responsabilidade castigá-los. Deixemos que a polícia faça este trabalho. Mas,
se quiser, posso voltar atrás.
— Oh, não! — Julie sorria para ele. — Pode parecer absurdo, mas até
que simpatizei com os dacoits.
Jai apertou-lhe o braço e continuaram a caminhar. Ela começou a rir.
— O que foi? — ele perguntou com um sorriso.
— Nada, é que eu estava pensando no rosto daquele homem
quando disse a você que não costumava fazer mal a ninguém. Ele parecia tão
inocente que eu quase acreditei na sua sinceridade.
Jai também riu. Atrás deles, o acampamento dos dacoits parecia
ferver de agitação. Algumas vozes se elevavam a ponto de chegar até eles,
mas Julie não conseguiu entender uma palavra. Os guardas os seguiam um

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pouco mais atrás.
— Deveria haver um helicóptero à nossa espera em algum lugar por
aqui — Jai disse quando chegaram a um planalto deserto. — Assim que meus
guardas disseram que você havia saído, liguei para Nova Délhi e avisei que
ficassem a postos. Mandei trazer o helicóptero para nos pegar.
— Mas como vão saber em que ponto estamos?
— Meus guardas deram a direção exata pelo rádio.
— Que maravilha! Não vejo a hora de voltar para o palácio.
— Deve estar exausta, não é? A estrada não fica longe do
acampamento. Os dacoits deram inúmeras voltas para confundi-la e despistar
quem porventura os estivesse seguindo.
— E você não se confundiu?
— Não. Por sorte, um de meus guardas é um excelente rastreador.
— E apontou para um dos homens. — Munshi sempre viaja comigo na
temporada de caça. Ou melhor, viajava, pois há tempos que não caço mais.
Pouco depois o barulho de um helicóptero se ouviu a distância. Um
dos guardas disparou um sinal luminoso e logo o aparelho aterrissou no local
onde eles se encontravam.
Os dois subiram e os guardas percorreram a pé a curta distância que
os separava do carro na estrada.
— Como você conseguiu descobrir em que ponto eles haviam me
assaltado? — Julie perguntou quando Jai sentou-se ao seu lado, logo em
seguida ordenando ao piloto que levantasse vôo.
— Nós não estávamos muito longe de você — respondeu ele. —
Quando vimos um táxi vindo em sentido contrário, nós o paramos e fizemos
com que o motorista nos mostrasse o ponto exato onde a havia deixado.
— Pobre homem! Que susto deve ter levado por ter sido obrigado a
parar duas vezes numa estrada como esta. Além de tudo, os dacoits roubaram
todo o dinheiro dele.
— Ele foi regiamente recompensado por ter cooperado conosco —
Jai assegurou. — Não pense mais nisso.
— Oh, Jai, muito obrigada. Eu o reembolsarei assim que chegarmos.
Afinal, tudo aconteceu por minha culpa.
— Ao contrário, a culpa foi minha. É que — O príncipe
interrompeu um instante o que pretendia dizer, e Julie notou o sorriso com
que ele zombava de si próprio. — É que eu não sabia que você se opunha
tanto à minha sugestão. Tive certeza, lá no Taj Mahal, de que seria bem recebido
na sua cama. — Sua voz tinha um tom interrogativo. Pelo jeito ele

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deveria estar se perguntando por que ela o recusara.
Lutando para encontrar as palavras adequadas, Julie dava graças a
Deus por estarem no escuro. Jai estava certo. Ela o queria com uma
intensidade de enlouquecer. Por isso mesmo havia fugido dele.
— Tudo bem, Julie. — Sua mão cobriu a dela. — Vamos falar em
outra coisa.
— Oh, acabo de me lembrar da marani! Quando ela acordar,
descobrirá que não estamos mais em Agra!
— Eu deixei um bilhete explicando tudo, e logo telefonarei para ela.
Talvez nem seja preciso mandar buscá-la, pois é bem capaz de ela querer
voltar com os amigos que encontrou em Agra.
— Você você ficou muito zangado quando descobriu que eu havia
ido embora? — perguntou, vacilante, levantando o olhar para ele.
— A princípio, sim.
— Por que então veio em meu socorro? Considerando nossas
diferenças, não pensei realmente que viesse.
Jai se voltou para observá-la com uma expressão enigmática.
— Por que pensou isso? Eu disse a você uma vez que protegerei
sempre os que estiverem sob o meu teto.
Nenhum dos dois voltou a falar. Julie ponderava as últimas palavras
de Jai, tentando captar-lhes o sentido. A aurora estava rompendo quando
chegaram ao palácio.

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CAPÍTULO XV

Julie dormiu até duas horas da tarde. Quando acordou, o palácio


estava quieto e em paz. Aparentemente, Sukundala recebera ordem para não
acordá-la a não ser quando ela chamasse. Em vez de tocar a sineta para que a
moça lhe trouxesse algo para comer, Julie preferiu servir-se de algumas frutas
que sempre ficavam dispostas numa fruteira de cristal sobre sua mesa.
Descascou uma manga com a faca de prata e ficou pensando no que
poderia fazer a seguir. Imaginou que Harding acharia melhor e mais barato
se ela enviasse a reportagem sobre sua experiência com os dacoits por via
aérea. Não havia nada urgente a dizer, mesmo porque a matéria poderia sair
na edição especial de domingo. O único fato que poderia ser considerado um
furo não podia divulgar ainda: a data e o local da reunião dos terroristas.
As três horas seguintes foram gastas em escrever a história. Julie
evitou fazer sensacionalismo sobre o modo de vida dos bandidos. Mesmo
assim a reportagem saiu vibrante e dramática. Ela preferiu adotar um estilo
simples e sem rodeios que combinava com a impressão que tivera do
acampamento dacoit. Várias vezes interrompeu o trabalho, procurando as
palavras exatas que pudessem transmitir a rude camaradagem dos
salteadores. Gostou também da descrição perfeita que fez sobre o esconderijo,
buscando na memória todos os detalhes que guardara. Quando finalmente
acabou, juntou todas as folhas datilografadas, sentindo a familiar alegria de
quem havia feito um ótimo trabalho.
Mais tarde pediria a Gunam Singh que despachasse o envelope. Na
Índia era comum uma pessoa esperar horas em várias filas e preencher
questionários intermináveis só para enviar uma encomenda por via aérea. Se
Gunam estivesse ocupado, ele poderia mandar qualquer outro empregado ao
aeroporto. Quanto a ela, não queria mais se preocupar com isso.
O que realmente queria era conversar com Jai e discutir a revelação
do líder dacoit sobre os planos dos terroristas. Enquanto tirava do armário o
vestido bege de algodão, ficou imaginando se o príncipe a acompanharia até
Caxemira. Pretendia seguir para lá o mais rápido possível.
Cinco minutos mais tarde, dobrava, apressada, o corredor que
levava ao escritório. Repentinamente, Priya surgiu à sua frente, vindo na
direção contrária, e as duas quase colidiram. Mesmo assim, vários papéis

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caíram ao chão.
— Priya! Parece que não nos vemos há anos! — exclamou ela. —
Tenho pensado muito em você. Está acontecendo algo errado? — E, antes de
esperar resposta, abaixou-se para ajudar a recolher aquela papelada. Qual não
foi sua surpresa, entretanto, ao deparar com uma pasta trazendo gravado
o brasão dos Mishra e, escrita em letras vermelhas, a palavra "confidencial".
Levantou os olhos para Priya que, confusa, abaixou-se também para
ajuntar precipitadamente as folhas e guardá-las dentro da pasta. Uma
pergunta ficou pairando no ar. Priya então começou a chorar, escondendo o
rosto nas mãos.
— Priya! O que você
— Oh, Julie! — A princesa se atirou nos braços dela, completamente
transtornada. — Eu sou tão infeliz!
— Não chore — murmurou Julie, tentando confortá-la. Suas mãos
acariciavam os cabelos negros da jovem. — Conte-me o que está havendo.
— Minha vida está arruinada! Arruinada! — Priya repetiu e desatou
no choro novamente.
— Calma, não pode ser tão horrível assim. Venha cá, vamos nos
sentar e você vai me contar tudo. — Julie conduziu a princesa para o sofá de
couro que estava no hall. Havia recolhido os papéis do chão e bastou uma
olhadela para que aquilo que temia se confirmasse.
— Esta pasta pertence ao seu irmão? — perguntou com delicadeza,
enquanto se sentava ao lado de Priya. A jovem não parava de soluçar. —
Vamos, Priya. Você precisa me contar tudo. Só assim poderei ajudá-la.
— Será que pode mesmo? — Priya levantou os olhos para ela com
um ar de esperança. — Mas eu sei que você vai me odiar quando souber.
— Não vou, não. Mesmo que quisesse não conseguiria odiar você.
Diga-me só uma coisa: Lal está metido nisso?
— Lal! — Priya repetiu com uma careta de nojo. — Eu o odeio! Ele
ele mentiu para mim! Julie, você não vai acreditar nisso, mas ele nunca me
amou. — Seu olhar de criança ferida encontrou o de Julie.
— O que ele fez? — perguntou ela, ansiosa. Aquela primeira parte
da revelação não a surpreendera nem um pouco.
Prya contou então o que a atormentava tanto. Tudo começara na
manhã em que Prakash chegara ao palácio. Assim que ela pousara os olhos
no noivo que seu irmão havia escolhido, descobrira que aquele era o homem
dos seus sonhos. À medida que conversava com ele, a boa impressão
aumentava e ela se recriminava por ter encorajado a aproximação de alguém

137
tão superficial quanto Lal. Aquela viagem dos três até Agra fora uma ótima
oportunidade para que ela marcasse um encontro destinado a romper tudo
com ele. Foi então que, pela reação de Lal, compreendera que o romance
entre os dois jamais existira.
— Ele ameaçou procurar Prakash e lhe contar tudo, a menos que
— A menos que
— eu concordasse em levar a ele estes papéis. — E com voz
entrecortada, Prya concluiu: — Estou traindo meu próprio irmão, Julie, e isto é
horrível! Mas, se eu não fizer o que Lal mandar, minha reputação estará
arruinada! Prakash vem de uma família muito tradicional. Ele não se casaria
comigo. Aliás, ninguém aceitaria casar comigo se esta história vier a público.
Lal não teria escrúpulos em inventar fatos que não aconteceram, e, até que as
coisas fossem esclarecidas, o escândalo já estaria formado. Vê? Estou sem
saída.
— Antes disso você já havia passado a ele alguma outra informação
sobre os negócios de Jai?
— Oh, não! — Priya segurou o braço da amiga. — Jai estava certo,
não é? Eu não deveria confiar tanto nas pessoas. Pensei, entretanto, que Lal
fosse diferente, que me amasse. Será possível que eu tenha que desconfiar de
todos aqueles que se aproximam de mim?
— Não, Priya, o que aconteceu com você poderia ter acontecido com
qualquer outra mulher — Julie explicou com um sorriso condescendente. —
Não fique tão desapontada por ter sido usada. Lal não presta, mas isto não
significa que todos sejam iguais a ele. Existem muitas pessoas que gostam de
você sinceramente, sem se preocupar com sua posição social.
— Como fazer para acabar com esta chantagem, Julie? —
Precisamos estudar um modo.
— Mas Lal é tão diabólico! Pena eu ter percebido isso tão tarde. Se
eu não lhe entregar os papéis de Jai — E ela recomeçou a chorar
incontrolavelmente.
— Nós vamos dar um jeito, querida, tenho certeza — Julie, disse,
fazendo o possível para confortar a princesa. Já estava há tempo suficiente na
Índia para saber da pressão social sobre uma moça em idade de se casar. Uma
mulher solteira era considerada uma pessoa inútil. Sem filhos para educar e
transmitir todos os ensinamentos religiosos e morais, a vida não teria sentido.
Sabendo quão terrível uma situação dessas aparecia aos olhos de
Priya, não disse uma só palavra que pudesse fazer a garota se sentir culpada.
Mas era preciso saber por que Lal queria tanto aqueles papéis. Espionagem

138
industrial? Talvez, mas, qualquer que fosse o motivo, estava fora de questão
que esse homem mantinha alguma atividade ilegal.
— Priya, acalme-se. Isto não é o fim do mundo. Agora diga-me: Lal
instruiu você quanto ao tipo de documento que queria? Ele lhe deu alguma
ordem específica?
— Ele disse ele disse para eu descobrir onde ficavam os documentos
secretos — respondeu a garota, em meio aos soluços. — Depois de revirar
tudo, achei esta pasta numa gaveta. Nem sei o que contêm estes papéis.
Assim que encontrei o que queria, saí do escritório de Jai. Estava voltando ao
meu quarto quando encontrei você.
— Gostaria de saber por que Jai não guardou tudo isto num local
seguro — Julie murmurou, intrigada. — Mas isso não vem ao caso agora.
Temos que pôr os papéis no local onde estavam guardados.
— Por favor, Julie, estou tão assustada! Não me obrigue a voltar lá
— implorou Priya. — E se alguém aparecer? Eu não sei onde Hari está e
ainda não vi Jai hoje.
— Se o escritório está vazio é porque ninguém vai trabalhar hoje. Já
estamos quase no final da tarde. — Mas a princesa olhava para ela tão
desolada, que Julie cedeu: — Está bem. Volte ao seu quarto. Eu farei isso por
você.
— Julie, minha querida amiga, obrigada, muito obrigada! Não sei o
que faria sem você. — Priya olhava para ela com adoração.
— Eu recolocarei os papéis no lugar. Você só precisa me explicar
direitinho onde eles estavam. E não se preocupe; depois pensaremos o que
fazer com Lal.
Poucos minutos mais tarde, Julie entrou no escritório e fechou a
porta. O barulho do trinco na fechadura mais pareceu um estrondo, em meio
ao silêncio em que a sala estava mergulhada. Mas Jai, com certeza, não viria
mais trabalhar, de modo que ela não precisava se preocupar. Atravessou a
sala apressadamente, o grosso carpete abafando o som de seus passos.
Gostaria de examinar cuidadosamente aqueles papéis para ter uma idéia
mais concreta dos objetivos de Lal. Mas não havia tempo para isso. Deveria
agir com a maior urgência. Mesmo sabendo que não havia perigo de alguém
entrar, estava mais nervosa do que supunha.
Já estava de joelhos diante da gaveta aberta, preparando-se para
guardar a pasta, quando um frio intenso percorreu-lhe a espinha. Ficou um
instante imóvel, relutante em se voltar, pressentindo algo de terrível.
— Você deve ter olhos nas costas, Julie, pois tenho certeza de que

139
não fiz barulho algum para entrar.
Ela rodou nos calcanhares. Os olhos de Jai refletiam a mesma fúria
que sua voz denunciava.
— Por que entrou tão silenciosamente assim? — ela perguntou,
assustada.
— Estava na sala ao lado quando ouvi a porta do escritório se
fechar. Como não havia programado nada com ninguém, vim até aqui
investigar. Satisfeita?
— Oh! — Julie se levantou. — Acredite ou não, Jai — disse
estendendo a mão para ele num gesto inconsciente de súplica —, não é o que
você está pensando.
Ele se aproximou e puxou a pasta que ela trazia na outra mão.
Rapidamente folheou os papéis, detendo-se para examinar melhor uma ou
outra página. Então guardou-os novamente e, com um movimento certeiro,
atirou a pasta em cima da mesa.
— Não há saída para você, Julie. — Seu rosto era uma máscara de
gelo. — Poupe-me de suas desculpas ridículas. Estes papéis contêm
exatamente as informações que seriam úteis para os terroristas. Preciso dizer
mais?
Julie encarou-o, atônita.
— Os terroristas? Então então — E parou, a mente rodopiando.
Quer dizer que Lal Que coisa, bem embaixo do seu nariz estava a pista-
chave para as averiguações!
— Não se preocupe em parecer surpresa, — Os olhos de Jai
continuavam a massacrá-la. — Nomes e endereços. Identidade do meu
pessoal de segurança. Plantas de minhas indústrias. Informações pessoais
sobre empregados de confiança.
Julie não podia se defender, a não ser que envolvesse Priya. Mas
uma coisa seria contar a Jai que sua irmã se encontrara em segredo com um
homem. Outra bem diferente seria revelar que Priya ajudava os terroristas,
ainda que inconscientemente. Não, não podia trair a princesa. Nem conseguia
imaginar a atitude de Jai quando ouvisse a verdade.
— Claro que fui um idiota por não ter guardado estes documentos a
chave, ainda mais sabendo desde o início que você estava aqui justamente
para roubá-los. Mas quanto mais eu a conhecia, mais — Ele parou de
repente e deu as costas a Julie.
Ela observava aquele caminhar tenso. Era uma situação
desesperadora, ainda mais que não queria que Jai a julgasse tão mal assim.

140
Agora compreendia que uma parte de sua vida se tornara preciosa por causa
dele.
— Mas foi melhor assim — declarou Jai, virando-se novamente para
ela. Não havia a menor emoção naquele rosto de feições rígidas. A voz era
cortante. Somente os olhos negros revelavam seus verdadeiros sentimentos.
— Você sabe, Julie, que, apesar de minhas suspeitas, eu me senti atraído por
você desde o início. A sua coragem sempre foi um traço irresistível. E quanto à
sua beleza Bem, não devo ter sido o único a sucumbir diante dela. Como você
deve ser útil aos seus camaradas! De qualquer modo, sou um sujeito de sorte
por ter descoberto tudo a tempo. Sem esta prova de hoje, eu ainda estaria
correndo o risco de me apaixonar por você.
— Apaixonar-se por mim? — Julie disse estas palavras num
sussurro.
— Isso lhe agrada? — Ele estava sorrindo. Um sorriso de escárnio
que revelava o ódio que tomava conta do seu coração.
Julie olhava para ele como se o estivesse vendo pela primeira vez.
Sentia a boca seca. Subitamente algo lhe ocorreu.
— Seus guardas, Jai, ontem à noite em Agra. Eles estavam me
espionando ou me protegendo?
Jai a olhou de modo penetrante.
— Protegendo! Vê como sou idiota? Você sempre teve meus guardas
por perto, desde o dia em que chegou a esta casa. Assim como minha mãe e
minha irmã, que nem suspeitam de que alguém as segue, por onde quer que
vão. Eu disse a você que me preocupo com aqueles que estão sob meu teto —
acrescentou, cheio de ironia. — Oh, Julie, Julie, por que fez isto? —
perguntou, de repente, sem esconder a angústia que o atormentava. —
Mesmo agora, depois de ter a prova do que sempre desconfiei — e apontava
para os papéis sobre a escrivaninha —, eu ainda gostaria de apagar tudo e
pensar que você é minha!
Julie sentiu o coração bater forte. Apesar da acusação e do mal-
entendido, só conseguia pensar que Jai se importava com ela, que a protegera e
que estava lutando contra um sentimento forte.
E então compreendeu tudo. Desde o princípio ela soubera, mas só
agora a venda caía-lhe dos olhos. Amava aquele homem. Talvez desde a
primeira vez que o vira no aeroporto. Adorava aquele príncipe fascinante,
aristocrático e inteligente. Não conseguia imaginar sua vida a não ser do lado
dele. Amava-o com uma intensidade nunca antes experimentada.
— Não olhe para mim desse modo, Julie! — A voz dele tremia de

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cólera. — Poupe-me de suas encenações!
— Eu não estou representando, Jai. — Ela sorriu. — Não estava
roubando estes papéis, acredite em mim. E acredite em outra coisa, também:
jamais poderia traí-lo porque eu te amo, Jai. Eu te amo!
— Ora, cale-se. Nunca mais repita isso. Não subestime tanto a
minha inteligência.
— Jai, por favor
— Pois bem, você me ama? Pois então dane-se, Julie, porque eu não
quero saber de você. — Deu uma risada sarcástica e ao mesmo tempo
maliciosa, que soou horrível aos ouvidos dela. — O que eu queria de você eu já
tive. Agora vá dizer aos seus camaradas que o plano fracassou.
— Ouça, Jai
— Nem mais uma palavra sobre isso. Não estou interessado. —
Dando-lhe as costas, ele se dirigiu para a escrivaninha e ordenou: — Feche a
porta quando sair. Quero ficar sozinho. Sua presença me faz mal.
Julie mordeu os lábios e deu meia-volta em silêncio. Ela o amava,
sim. Mas por que fora descobrir isso? Por que não continuara a se enganar
como vinha fazendo desde o início? De que lhe adiantaria este amor se Jai
não a queria e não acreditava nela?
Antes de fechar a porta, arriscou uma última olhadela para ele; Jai
folheava os papéis secretos e, à medida que virava cada página seu rosto se
endurecia. Ele jamais acreditaria no seu amor, constatou, e só então fechou a
porta.

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CAPÍTULO XVI

Recostada nos travesseiros altos e macios que colocara sobre o sofá,


Julie ficou observando a noite. Das janelas do seu quarto podia ver o vigia
noturno na sua primeira ronda pelos jardins. Mudou de posição, sentando-se
sobre as pernas e puxando a ponta do robe para cobrir os pés descalços.
Era hora de fazer planos. Puxou os cabelos para trás e ficou
massageando o couro cabeludo. Não conseguia pensar. Sua mente estava tão
apática quanto o corpo. Acomodou-se melhor entre os travesseiros. Gostaria
de poder dormir ali mesmo no sofá e não acordar senão dali a cem anos. Ou,
de preferência, nunca. Só dormir e dormir. Não queria pensar, não queria
fazer planos, não queria encarar a realidade.
Iria embora na manhã seguinte. Não podia ficar nem mais um
instante respirando o mesmo ar que Jai, não depois de tudo o que acontecera
naquela tarde.
Naturalmente perderia seu emprego. Seria duro ter que enfrentar
Wes Harding e dizer-lhe que fracassara. Ele estava contando com ela,
confiando em que fizesse um bom trabalho
— E daí? — disse em voz alta, querendo se convencer de que não
dava importância àquilo que sempre fora sua razão de viver: o trabalho. Mas
nem mesmo isso contava tanto quanto o desejo de sair daquele país e nunca
mais pensar em Jai.
Uma fadiga imensa tomou conta de seus membros, tirando-lhe até a
força para respirar. Ficou imaginando se conseguiria um vôo para Nova York
sem ter feito reserva. Muitas vezes a Air Índia tinha vôos lotados para os
Estados-Unidos com um mês de antecedência. Mas, quem sabe, ficando na
lista de espera
Sabia que precisava ser racional. Uma vozinha lá dentro a
aconselhava a não ser precipitada. Só que, com aquele peso enorme sobre a
cabeça e um cansaço fora do comum, quem é que conseguia raciocinar
direito? A solução seria largar emprego, reportagem, tudo enfim, e ir embora.
Começar vida nova. Que todo o resto fosse para o diabo, juntamente com Jai!
Uma batida à porta a sobressaltou. Seu coração foi parar na
garganta. Seria ele? Quem sabe não viera se desculpar? Correu para abrir a
porta do quarto.

143
— Julie, querida! — exclamou a marani. — Você está ocupada? Priya
acabou de sair e estou me sentindo tão só Se importaria em receber uma
visita?
— Mas claro, marani. Entre — respondeu, procurando disfarçar a
decepção. Que tola imaginar que pudesse ser Jai. — Estou contente que tenha
vindo. Eu eu preciso mesmo falar com a senhora. — Ali estava mais um
problema: dizer àquela boa mulher que partiria amanhã mesmo. Precisava
arrumar uma desculpa convincente para não magoá-la. — Vamos para a
saleta — sugeriu. — A senhora gostaria que eu pedisse um chá a Sukundala?
— Não, querida. Não gosto de tomar chá à noite. Tira-me o sono.
Mas você já estava se preparando para dormir? — perguntou ao notar que
Julie usava robe.
— Oh, não. É que eu pensei em jantar aqui mesmo.
— Está se sentindo bem, Julie? — perguntou a marani, notando que
sua hóspede estava muito pálida. O tom meigo daquela voz atingiu em cheio a
sensibilidade ferida de Julie.
— Estou bem, marani — respondeu, virando o rosto. — Muito bem,
não se preocupe.
Não convencida, a mulher chegou até ela e pousou a mão na testa
quente de Julie.
— Você tem trabalhado demais, minha querida. E o calor não está
de brincadeira. Era lógico que mais cedo ou mais tarde você não resistisse.
— Tem estado muito quente mesmo — concordou Julie. Para sua
consternação, as palavras terminaram num soluço que precedeu um choro
sem fim. A preocupação quase maternal da marani não poderia ter sido mais
fora de hora; sentia-se vulnerável ante a tensão das últimas horas.
— Minha querida — disse a mulher —, não importa o que você
diga, acho que está mesmo doente. Venha, vou ajudá-la a se deitar.
Julie obedeceu. Poucos minutos depois, entre os lençóis frescos, ela
fechava os olhos, aliviada. O choro funcionara como um desabafo, seu
coração estava mais leve e em paz. A marani estava sentada ao seu lado, na
cama, massagendo-lhe a nuca.
— Faz muito calor aqui nesta época do ano — dizia a mulher, em
voz baixa, procurando desfazer com os dedos os nós tensos da nuca e dos
ombros de Julie. — Estive pensando Nós poderíamos viajar para Caxemira.
Seria bom para você sair de Nova Délhi.
— Não quero incomodar — murmurou ela, sentindo-se relaxar com a
massagem.

144
— Oh, não é incômodo nenhum. Eu e Priya sempre vamos para lá,
passar o verão. Jai nunca nos acompanha, pois não pode largar os negócios.
— Caxemira, a senhora disse? — Julie perguntou, abrindo os olhos,
começando a se ligar no assunto.
— Isso mesmo. É um lugar maravilhoso que fica nas encostas do
Himalaia. Nosso palácio fica na cidade de Srinagar, junto ao lago Dal. Você
vai adorar, Julie, pois além das belezas naturais o clima é muito mais ameno.
— A marani, percebendo o interesse da jovem, continuou, entusiasmada: —
Você poderia continuar o seu trabalho lá mesmo, o que acha? E, no caso de
precisar voltar algumas vezes para cá, não há o menor problema, pois
existem vôos diários para Nova Délhi.
Apesar do desânimo, Julie sorriu. Ali estava a solução para os seus
problemas. Há alguns instantes, estava resolvida a sair do país e jogar tudo
para o alto. Mas seu senso profissional e o amor ao trabalho ainda persistiam.
Uma viagem a Caxemira vinha bem a propósito, já que o líder dacoit dissera
que a reunião aconteceria dali a quatro dias, provavelmente em Srinagar.
Ela fora até o escritório de Jai naquela tarde justamente para discutir
o assunto. Estava disposta a partir para Caxemira naquela mesma noite, com
ou sem ele. Bem, não era tarde demais. Se saísse na manhã seguinte, teria
muito tempo para as averiguações iniciais. Poderia encontrar os terroristas
sem a ajuda do príncipe, estava certa disso. Poderia escrever finalmente a sua
história, voltar para casa e viver a vida normalmente. A Índia, aquele país
maravilhoso que aprendera a amar, seria apenas uma recordação a mais. Sem
perceber, sua mente fervia com aqueles planos. Ganhara alma nova ante a
perspectiva de levar a cabo, e possivelmente com êxito, o seu trabalho. Sentia-
se pronta para partir para Srinagar.
— Quer dizer que Jai não costuma ir com vocês para o palácio de
verão? — perguntou, tentando fazer sua voz soar o mais casual possível.
— Nunca — respondeu a marani. — Ele não tem tempo, seus
negócios não permitem.
Julie respirou, aliviada. Se Jai não costumava ir até Srinagar, não
abriria uma exceção agora, nem mesmo por causa dos terroristas. Caso
contrário, por que manteria tantos homens em seu serviço de informações?
Os agentes eram pagos justamente para fazer este tipo de serviço. Há
algumas semanas, inclusive, ele enviara uma grande parte de seu pessoal
para prosseguir as investigações em Caxemira. Jai não perderia tempo em
cuidar de um assunto que agora passava a ser da competência da polícia, que, a
essa altura, já devia estar de posse das informações passadas pelo líder

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dacoit. Sim, ela poderia ir sossegada.
— Fiquei contente por ver que Priya aceitou viajar com o irmão — a
marani estava dizendo. — Ela anda tão infeliz ultimamente
— Eles viajaram? — Julie perguntou, surpresa.
— Jai precisou fazer algumas vistorias em suas fábricas. Ele gosta de
fazer tudo pessoalmente quando se trata de negócios. Só estarão de volta
daqui a três ou quatro dias.
Aquilo era perfeito, raciocinou Julie, positivamente segura de que Jai
não arrastaria a irmã numa aventura perigosa. Partiria então com a marani e,
com sorte, voltaria a Nova York sem precisar se despedir dele.
A marani, ansiosa pela recuperação de sua hóspede, concordou em
viajar na manhã seguinte. Assim que a boa mulher saiu do quarto para cuidar
dos preparativos, Julie pediu uma ligação para o jornal. Já estava dormindo
quando o telefone tocou.
— Julie! Pode me ouvir? — Era Wes Harding quem gritava do outro
lado da linha. Como sempre, a ligação estava péssima. Quase aos berros, Julie o
colocou a par dos últimos acontecimentos, acrescentando, então, que partiria
para Caxemira.
— O príncipe vai com você?
— Não, ele está fora, numa viagem de negócios — respondeu,
esforçando-se para mostrar indiferença.
Harding ficou em silêncio, como se estranhasse o que acabara de
ouvir.
— Não corra riscos inutilmente, Julie — completou afinal. — Muito
cuidado! Entre sua vida e uma reportagem sensacional, fico com a primeira
opção. Lembre-se disso!

— Julie, você já está com outra aparência! — exclamou a marani,


após deixarem o pequeno aeroporto de Srinagar.
Montanhas imensas, as mais altas do mundo, formavam uma
muralha gigantesca em torno da cidade. Os picos cobertos de neve se
elevavam a uma altura tal que Julie precisava se inclinar quase toda para trás
se quisesse alcançá-los com a vista. Aquele era o ar mais puro que já havia
respirado. Cada vez que enchia seus pulmões, sentia-se revigorada e cheia de
vida. Pena que seu coração ainda estivesse tão machucado.
Uma limusine esperava por elas na saída do aeroporto. A caminho
do palácio, Julie não conseguia despregar os olhos da paisagem que corria na
janela. As montanhas davam aos habitantes daquela cidade uma aparência

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saudável, típica de quem vive ao ar livre. Havia poucos carros. Ao longo da
estrada, enormes campos de cultivo de arroz, uma das maiores riquezas do
país, dominavam a paisagem.
— Existem muitos fazendeiros por aqui? — Julie perguntou à
marani.
— Nesta área, sim. Srinagar é o coração do vale de Caxemira. Por
causa das montanhas que cortam a província em diagonal, somente uma
pequena parte da terra pode ser cultivada.
Julie pensava que a beleza selvagem daquele lugar assentava muito
bem em Jai. Uma pena que ela não chegasse a vê-lo naquele cenário glorioso.
— Olhe! — A voz da marani interrompeu seus pensamentos. — Lá
está o palácio!
O carro se dirigia a um cais de pedra. Olhando na direção que lhe
fora indicada, Julie viu uma maravilhosa construção em mármore que
resplandecia à luz do sol. O incrível era que o palácio parecia suspenso nas
águas azuis do lago.
— Estou vendo coisas? — perguntou sorrindo, voltando-se para a
marani. — Ou ele está mesmo flutuando na água?
— É a impressão que se tem — comentou a mulher, e explicou: — O
palácio foi construído sobre uma ilha muito pequena. É maravilhoso, não? Eu
adoro passar os verões aqui. Vamos, querida. O shikara está à nossa espera.
Vários homens pararam para admirar a lustrosa limusine. Quando
Julie saiu do carro, sentiu-se alvo de olhares de aprovação e, entre murmúrios
discretos, foi capaz de distinguir o nome de Jai. Na certa, eles estavam
pensando que era a mulher dele e, pelo modo como a observavam, achou que
aprovavam a escolha. Sem saber por quê, foi acometida de uma grande
tristeza, algo como um sentimento de perda.
— Como vai, Abdul? — a marani saudou um deles. — Que bom vê-
lo novamente!
O homem saiu do grupo e veio se juntar a elas, com um sorriso
tímido no rosto. Tirou a lona que cobria um pequeno barco a remo e o levou
bem próximo aos degraus de pedra. Julie aceitou a ajuda dele para entrar no
bote, onde a marani já se havia instalado, e logo depois a pequena embarcação
deslizava nas águas calmas do lago.
— Isto é um shikara, Julie — falou a marani. — Você pode dizer que
são táxis aquáticos. Todos os que moram ao longo do lago costumam usá-los
para se locomover.
— Quer dizer que, além de vocês, outras pessoas também vivem

147
aqui?
Em resposta, a marani apontou para a direita. Julie avistou uma fila
de barcos com capota, mais parecendo casinhas ancoradas lado a lado no
istmo.
— Este é o lago Dal — explicou sua anfitriã. — As pessoas vivem em
barcos como aqueles. Algumas dessas embarcações são hotéis flutuantes,
onde os turistas se alojam por algumas semanas. Não é interessante?
Como se os remos fossem a extensão de seu próprio braço, Abdul
conduziu suavemente a embarcação até os degraus que levavam à varanda
do palácio.
Julie desembarcou e olhou em volta, apreciando a beleza de contos
de fadas do lugar. Um ar de grandiosidade pairava sobre aquela mansão
construída nas encostas do Himalaia, cujos picos enevados se refletiam nas
águas azuis e transparentes.
— Vamos entrar — convidou a marani. — Esta é a mulher de Abdul.
Ela lhe mostrará seus aposentos.
Pouco mais tarde, sozinha, Julie começou a explorar o palácio.
Descobriu recantos maravilhosos e jardins secretos onde pavões passeavam,
exibindo suas caudas pesadas com orgulhoso desdém. Fontes e estátuas
douradas dos deuses hindus espalhavam-se no enorme pátio, levando-a a um
mundo diferente e carregado do sutil mistério oriental. Então era nesse lugar
que os ancestrais de Jai costumavam passar suas horas de descanso, quando
não estavam ocupados em defender suas terras das hordas inimigas? Nunca
vira nada igual àquele paraíso. Apesar de estar sentida e magoada com Jai e
de saber que ele não merecia um pensamento seu, precisava admitir,
entretanto, que o palácio de verão era o lugar perfeito para um homem da
natureza dele. Continuou a vagar por entre os pilares de mármore do terraço,
revezando o olhar entre o lago e as montanhas majestosas. Mas o que seus
olhos viam na verdade era o rosto querido daquele que a desprezara.
Suspirou, resignada. Cedo ou tarde haveria de esquecê-lo. Era só uma
questão de tempo.
— Ei, madame! Alô!
A visão do príncipe desapareceu subitamente. Julie inclinou o corpo,
pondo a cabeça para fora do terraço, e avistou um bote lá embaixo. Um
menino lindíssimo acenava para ela alegremente. Tinha cabelos negros e
olhos amendoados como os dos habitantes de Caxemira. O que mais
ressaltava à vista, contudo, era o brilho de inteligência e franqueza que
transparecia no seu semblante jovem.

148
— Quem é você? — Dominada pela magia do cenário, Julie chegou a
acreditar que aquele fosse o próprio Krishna quando jovem.
— Sou Gulzar — respondeu o garoto, considerando que tal
apresentação dispensava maiores comentários. Ele indicou algumas roupas
que trazia em seu pequeno barco. — Quer comprar alguma coisa?
— São lindas, Gulzar! — exclamou ela, descendo os degraus e
aproximando-se para ver melhor.
— Meu pai é caçador — o menino explicou, com orgulho. — Ele traz a
caça e minha mãe, depois de tirar a pele dos animais, confecciona roupas e
casacos, como estes que está vendo.
Julie acabou comprando uma peça, notando que Gulzar era muito
desembaraçado, como convém a um comerciante. Uma idéia repentina
passou-lhe pela mente.
— Escute, Gulzar, eu estou precisando de alguém que me leve para
conhecer os lugares freqüentados por turistas e também os locais onde
moram pessoas como você. Estive pensando: você aceita ser meu guia?
Pagarei muito bem.
O menino respondeu que sim, animado. Quando foi embora, já
estava tudo acertado: os dois se encontrariam naquele mesmo lugar, no dia
seguinte, às oito horas.
Mais tarde, Julie ficou refletindo sobre se teria feito a escolha certa.
Não deveria ter pedido à marani que lhe recomendasse alguém de confiança?
Contudo, Gulzar parecia alerta e inteligente. Sua curiosidade de menino e
uma energia inesgotável poderiam se adequar melhor às necessidades dela
do que um guia profissional. Além de tudo, ele possuía um domínio perfeito
do inglês, o que facilitaria bastante as coisas.
Até onde podia saber, ela era a única jornalista a estar seguindo a
pista da conferência terrorista. Se o líder dacoit estivesse certo, ainda faltavam
três dias para que o caso estourasse. Uma vez Jai tendo passado a informação à
polícia, seria preciso agir com cautela para que outros correspondentes não
ficassem a par de tudo. Não que estivesse pensando apenas no furo da
reportagem, mas é que seria preciso manter as investigações dentro do mais
absoluto sigilo para não alertar os terroristas. Sorriu amargamente ao pensar
nas horas de trabalho com Jai. Haviam se dedicado arduamente àquele caso
que agora ela completaria sozinha. Sentiu-se orgulhosa por precisar enfrentar a
pior parte sem a ajuda dele. Os cantos de seus lábios se curvaram num
sorriso voluntarioso: concluiria a reportagem, ainda que fosse a última
realização da sua vida.

149
Estava sentada num dos jardins, uma hora mais tarde, estudando o
mapa de Srinagar, quando um murmúrio de vozes chegou aos seus ouvidos.
Não teve tempo sequer para pensar quem poderia ser e já avistava Priya
correndo ao seu encontro.
— Priya! — exclamou, surpresa e feliz, estendendo os braços para a
amiga. — Quando você chegou? Nem posso acreditar que esteja aqui!
— Mamãe está surpresa também — replicou a jovem, sorrindo. —
Oh, Julie, você nem vai acreditar! Tudo está bem agora!
— Conte-me, então!
— Bem, você soube que Jai me convidou para acompanhá-lo numa
viagem de negócios?
Julie fez que sim. A simples menção daquele nome a fizera
estremecer, mas fez força para que Priya não notasse sua perturbação.
— Julie, ele foi maravilhoso! — Os olhos da princesa brilhavam de
contentamento. — De algum modo, ele sabia o que estava se passando
comigo e eu acabei lhe contando tudo.
— Você quer dizer tudo sobre Lal?
— Sim. Tudo! Jai foi tão bondoso, Julie! Ele estava tão simpático, tão
solícito, que eu resolvi lhe contar toda a verdade, imaginando que sendo tão
poderoso, ele pudesse me ajudar. Você não vai acreditar, mas meu irmão já
sabia tudo sobre Lal! Ele é um terrorista, exatamente como essas pessoas
sobre quem você está escrevendo. Foi ele quem colocou uma bomba em nossa
casa lá em Nova Délhi, logo que eu o deixei no jardim na noite do baile.
— Você você contou a ele sobre os papéis?
— Claro! Contei a respeito da chantagem de Lal, de como ele me
obrigou a entrar no escritório e procurar a pasta de documentos secretos. Jai
ficou sabendo que você me ajudou e recolocou tudo no lugar, depois de ter
me aconselhado a não ceder diante da pressão de Lal.
O coração de Julie parecia querer saltar-lhe pela boca. Então Jai sabia
de tudo! E nem assim fora capaz de lhe enviar uma só palavra por intermédio
da irmã? Ora, mas o que ela esperava? Um pedido de desculpas? Só estando
louca para imaginar que ele um dia lhe pediria perdão por havê-la julgado
uma espiã.
A verdade surgia muito clara na sua mente. Jai havia mentido ao
confessar que estivera a ponto de se apaixonar por ela. Os momentos de amor
haviam sido uma encenação destinada a levá-la para a cama. Ela cedera uma
vez, tola e romântica que era, mas aprendera a lição a duras penas. Odiaria
para sempre aquele homem que fizera dela um mero objeto sexual e que a

150
humilhara no momento em que declarara seu amor.
— Ele ainda disse para eu não me preocupar mais — Priya contou
— e que está feliz por eu ter aprovado o noivo que ele escolheu para mim. Jai
perdoou tudo, Julie! — exclamou a princesa, no auge da felicidade. — Disse
que não foi minha culpa, que eu fui usada. Agora poderei me casar com
Prakash. Tudo se resolveu, não é maravilhoso?
— Fico feliz por você, Priya — Julie conseguiu dizer, mas seu rosto
era uma máscara de tristeza.

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CAPÍTULO XVII

Uma rajada de ar frio vindo das montanhas apanhou Julie de


surpresa tão logo ela pôs os pés fora do palácio, na manhã seguinte.
Tremendo, voltou ao quarto e trocou o vestido por uma calça comprida e
uma blusa mais grossa, completando o traje com um bonito cinto de couro
cru. Numa das mãos trazia, enrolado, o mapa de Srinagar.
Encarar aquele dia seria uma tarefa das mais árduas. Durante toda a
madrugada não pregara os olhos, revirando-se na cama e tentando afugentar
Jai do pensamento. A revelação de Priya fora um verdadeiro baque na parte
que lhe dizia respeito. Que Jai a tivesse rejeitado por julgá-la uma espiã, não
deixava de ser um fato compreensível, ainda que profundamente injusto. Mas
que ele a rejeitasse agora, depois de saber que era inocente, era algo que seu
coração não conseguia suportar.
O que permanecia dentro dela era uma terrível sensação de
abandono. Na noite anterior, enquanto procurava o sono, em vão,
amaldiçoava a fatalidade que sempre acompanhara a sua vida. O amor para
ela sempre implicava perda. Acontecera assim com sua mãe, com Eddie e
agora com Jai, que amara muito mais do que aos outros. Era difícil acreditar
que ele a abandonara mesmo sabendo da verdade. Isso era mais duro de
aceitar do que a própria morte.
Mas a vida continuava e ela sobreviveria ao golpe, como tantas
outras vezes. Ainda que fosse só para mostrar a ele que era uma pessoa
corajosa. Não se entregaria. Amara sem medo, sem reservas. Agora usaria a
mesma coragem para encarar a vida sem o amor de Jai.
Gulzar estava à sua espera no barco. Julie entrou na pequena
embarcação e sentou-se no banco de madeira que ficava em frente ao do seu
guia.
— Qual a extensão do lago Dal, você sabe? — perguntou ela. —
Quanto tempo levaríamos para percorrê-lo todo?
Gulzar encolheu os ombros.
— Duas horas, talvez mais. Quer tentar?
— Não, seria muito demorado. Vamos até as casas flutuantes.
Gulzar começou a remar com movimentos ágeis e seguros. O barco
deslizava suavemente em direção às casas de madeira que flutuavam sobre a

152
água.
— Você não freqüenta a escola, Gulzar?
— Oh, sim! É que hoje é feriado e amanhã também. Por isso estou
podendo trabalhar para você.
Julie permaneceu em silêncio, absorvida em seus pensamentos.
Queria sentir como era a vida no lago para poder reconhecer algo incomum
quando acontecesse. Que esconderijo melhor para um terrorista do que uma
casa flutuante em Caxemira? Em plena temporada de turismo, a chegada de
estrangeiros não despertaria a curiosidade de ninguém.
Já havia estudado o mapa. A maior parte das atrações turísticas
estavam concentradas no vale de Caxemira. Nas outras partes do estado, elas
se limitavam apenas ao alpinismo e às excursões de um dia. Srinagar era a
cidade mais importante do vale e por isso mesmo parecia um esconderijo
perfeito. Se o líder dacoit mencionara Srinagar como o local provável, ele
deveria saber do que estava falando. Considerando ainda que não havia
muito tempo, achou melhor limitar suas buscas a Srinagar. Aquela era a
melhor indicação e também sua única esperança. De resto, era só torcer.
Visitara o distrito policial na tarde anterior. Os policiais haviam sido
gentilíssimos, tanto quanto permitia seu inglês limitado, mas usaram de
todos os argumentos para convencê-la de que não sabiam nada sobre a tal
reunião subversiva. Caxemira era um local turístico, garantiam, sem que Julie
conseguisse descobrir se sabiam mais do que estavam querendo deixar
transparecer.
— Diga-me uma coisa, Gulzar — perguntou ao observar as casas
flutuantes —, você conhece a maioria dos proprietários que alugam suas
casas para turistas?
— Oh, sim. Eu conheço todo mundo por causa das peles que vendo.
— E a maioria das pessoas que alugam as casas são casadas?
— Espere um pouco — disse ele, parecendo refletir. — Acho que
sim, isto é, pelo menos os indianos.
— Ouça, Gulzar, eu sou jornalista, uma repórter, entende?
— Repórter? Ah, sim. Trabalha em jornal, não é?
— Isto mesmo. Eu vou precisar muito da sua ajuda, Gulzar. Deixe o
barco flutuar por alguns instantes e ouça com atenção o que tenho a dizer.
Julie explicou sua missão, numa linguagem bem acessível. Ao final
da conversa, Gulzar concordou em fazer discretamente algumas perguntas
aos donos das casas sobre os turistas que as estavam ocupando. Além disso,
seu trabalho de vendedor era um disfarce perfeito para obter as informações

153
necessárias, sem despertar suspeitas.
Julie recomendou-lhe que prestasse atenção especial aos grupos de
diversas nacionalidades, compostos mais por homens do que por mulheres.
Explicou que os terroristas poderiam permanecer dentro das casas mais
tempo que o normal; Gulzar que ficasse de olhos bem abertos. Um ir e vir
constante de barcos durante a noite também poderia ser considerado
suspeito.
Acrescentou que pagaria muito bem por qualquer informação que
ele trouxesse, ressaltando porém que era imprescindível que agisse com
discrição.
Uma hora mais tarde, ela estava muito acima do lago, na entrada do
templo Shankracharya. Situado no ponto mais alto de uma rocha imensa, o
templo dava vista para toda a cidade e também para o lago Dal, que, àquela
distância, parecia uma poça d'água. A arquitetura simples do local descartava
qualquer possibilidade de os terroristas usarem-no como esconderijo.
Julie escalou os degraus de pedra daquela construção circular e
entrou numa sala íntima. Um pândita envolto em tecidos coloridos sentava-
se, imóvel, diante de uma grande representação metálica dos órgãos genitais
masculinos, símbolo tradicional do deus Xiva. Ela havia lido que o templo
fora fundado pelo grande hindu Shankara há dois mil anos. Uma sensação de
eternidade arrebatou seu espírito e ela voltou a olhar o sacerdote, que
entoava hinos védicos. Será que ele também estaria sentindo a presença do
grande mestre do passado?
Aproveitou o resto do dia para percorrer as ruas de Srinagar, mais
especificamente o setor comercial, sempre acompanhada de seu pequeno
cicerone. Não viu mulheres, com exceção de uma ou duas, sempre cobertas
pelo tradicional purdah. As entrevistas com os donos de lojas não foram nada
animadoras. Ninguém notara algo anormal, muito menos rumores sobre uma
possível reunião terrorista.
Resolveu, então, visitar o jornal local. Nova decepção. Apesar dos
esforços de Gulzar, que se esmerara na sua função de intérprete, não
conseguiu adicionar uma linha ao seu caderno de anotações. Ninguém sabia
informar nada.

No dia seguinte, reiniciou cedo sua romaria. Resolveu que deveria


começar pelo distrito policial. Quem sabe não teriam novidades? Mas a
viagem se revelou infrutífera. Sem saber mais o que fazer, lançou mão de um
conhecido estratagema. Chamou um policial e conversou longamente com

154
ele, longe dos oficiais superiores. Explicou todo o caso e pediu que ele a
avisasse, logo que soubesse de algo. E para ter certeza da boa vontade dele,
enfiou uma nota novinha de cem rúpias no bolso de seu uniforme, com a
promessa de dobrar a quantia assim que tivesse uma pista concreta.
Entrevistou, em seguida, alguns vendedores ambulantes, mas teve
cuidado de dar um tom casual às suas perguntas, como se fosse uma turista
interessada no modo de vida da região. O que eles vendiam? Quem
comprova: homens ou mulheres? Costumavam vender para turistas que se
hospedavam nas casas flutuantes? Realmente? Ah, e não havia homens
sozinhos? Quer dizer que sempre havia uma mulher em cada casa daquelas?
Que interessante, não? Na América é tão diferente
Mais tarde, já em casa, pensou que dois dias haviam se passado sem
que ela conseguisse algo promissor. Mas um detalhe havia chamado sua
atenção. Aqueles vendedores ambulantes costumavam ir com seus botes até
onde se hospedavam os turistas. E, pelo modo como riram ao responder que
sempre havia uma mulher em cada casa, aquela deveria ser a coisa mais
óbvia do mundo. Era preciso guardar este detalhe: seu faro de repórter dizia
que estava diante de algo importante.
Naquela noite, desabou na cama, morta de fadiga. Havia passado o
dia inteiro entrevistando moradores dos botes, sem recolher uma pista
sequer. Fechou os olhos, sabendo de antemão que não conseguiria dormir. A
reunião aconteceria amanhã, com ou sem ela Tanto tempo perdido Todo
o seu trabalho por água abaixo Onde estaria Jai
O chamado de Gulzar despertou Julie de um sono agitado e, ainda
meio sonâmbula, ela se viu à janela do quarto, olhando na direção do terraço.
O amanhecer naquele lago rodeado por montanhas era um
fenômeno inesquecível. A aurora ainda deixava sua marca avermelhada num
canto do céu e o sol se refletia nas águas espelhadas, dando ao lago uma
maravilhosa tonalidade metálica. Sombreando aquela parte das montanhas
em frente ao palácio, os pinheiros espalhavam pelo ar da manhã uma
essência refrescante. Gulzar estava no seu pequeno barco a remo, junto aos
degraus que conduziam ao terraço, e olhava ansiosamente para as janelas.
— O que foi, Gulzar? — perguntou ela, levando os cabelos para trás e
prendendo-os com as mãos. Sentia-se como se não houvesse pregado os olhos
a noite inteira.
— Julie! — o menino sorriu com alívio. — Que bom encontrar você!
Venha rápido. Acho que a polícia veio para o lago Dal prender os homens
que você está procurando!

155
— Espere aí — exclamou ela, completamente desperta. — Já estou
descendo.
Poucos minutos depois descia a escada de pedra apressadamente.
Usava jeans e uma túnica branca, ajustada na cintura por um cinto azul. Não
tivera tempo de se preparar e pegara a primeira roupa que lhe aparecera
diante dos olhos. Cabelos soltos e uma máquina fotográfica a tiracolo,
trazendo em cada uma das mãos o gravador e o caderno de notas, não
demonstrava o menor traço da fadiga da noite anterior.
— Conte-me tudo, Gulzar! Você viu os terroristas?
— Não, Julie. Eu vi o chefe de polícia. Eu estava remando para a
parte mais larga do lago. Esta hora do dia é ótima para pescar. Não há
como dizer barcos a motor tão cedo. Eles espantam os peixes. Pois bem, foi então
que eu estranhei ao ver um barco desse tipo, e não pertencia a nenhum turista.
Era do chefe de polícia. Eu o conheço muito bem porque ele é amigo do meu
tio.
— O chefe de polícia estava no barco?
— Pois é o que estou lhe dizendo. Ele e mais dois homens. Pareciam
estar pescando, mas eu sei que não estavam. Por que usariam um barco a
motor quando um bote como o meu é muito melhor? Além disso, todo
mundo sabe que não é aquele o local adequado para se pegar peixes porque
fica muito perto da estrada.
— E então você veio me procurar? — Julie olhava com respeito para
aquele verdadeiro detetive mirim. Ele daria um excelente jornalista, no
futuro.
— Isso mesmo. Imediatamente. Remei como nunca em minha vida.
— Ele parecia orgulhoso de sua atuação. — Logo vi que a polícia não estava
ali para pescar. E, quando vinha remando para cá, vi dois outros barcos. Lá
está um deles! — Apontou em direção ao sul, justamente no ponto em que o
rio Jhelum fluía para o lago.
Pelo que Gulzar acabara de contar, a polícia devia estar bloqueando
as saídas para o cabo, onde estavam ancoradas as casas flutuantes
normalmente alugadas para turistas.
— Acho que os policiais estão cercando as casas, Gulzar. Os
terroristas devem ter alugado uma delas, como pensamos — disse Julie,
sentindo sua pulsação se acelerar.
— Vamos até lá — disse o menino, pegando no remo.
— Não, espere. Vamos no barco de Abdul, que é um shikara de
verdade. Assim poderemos passar por turistas e ficar de olho em tudo.

156
Os dois caminharam até o shikara do palácio, que Abdul usava para
levar Priya e a marani de um lado para outro.
— Será que você agüenta remar este barco? — ela perguntou a
Gulzar, enquanto subiam a bordo.
— Claro, sou muito forte — Gulzar garantiu com um largo sorriso.
Logo deixavam a pequena ilha para trás.
Julie recostou-se nas almofadas. O lago não tinha o menor
movimento, a não ser pelo barco da polícia e por alguns shikaras ancorados
junto ao cais. Aquela seria a hora apropriada para surpreender os terroristas,
antes que os moradores das redondezas retomassem suas atividades diárias.
Afastou um pouco a cortina, o suficiente para que pudesse acompanhar tudo
sem ser vista, mesmo sabendo que dificilmente algum terrorista a
reconheceria. Mas Lal Delal sabia que ela era jornalista. Era provável que a
tivesse descrito para os outros, já que ela possuía a distinção de ser hóspede
do príncipe Mishra.
Preparou a câmera fotográfica, notando que suas mãos estavam
molhadas de suor. Pendurou-a no pescoço à maneira dos turistas e adaptou
as lentes para que pudesse fotografar a distância. Para ela, aquela era uma
tarefa tão fácil quanto escrever um artigo. Manejava a máquina de escrever e a
de tirar fotos com a mesma habilidade.
— Olhe, Julie, lá está o outro barco da polícia!
Ela comprovou o que Gulzar dissera. De fato, um barco a motor
esperava junto ao cais.
— A casa que estamos procurando talvez esteja bem perto de nós —
confirmou Julie, enquanto Gulzar remava vigorosamente, o rosto vermelho
pelo esforço e pela ansiedade.
Ela continuava a estudar cada uma daquelas casas flutuantes à
medida que passavam. Constatou que as do final daquela enorme fila eram
mais elaboradas e maiores; por isso mesmo perfeitas para a tal reunião. Do
interior da de aparência mais luxuosa saiu um homem, provavelmente o
proprietário. Logo em seguida outro veio se juntar a ele, mas, quando viu o
shikara de Julie, franziu o cenho, mal-humorado. Abriu a boca para falar
qualquer coisa, mas desistiu e acabou entrando novamente. Intrigada, ela
inclinou o corpo para a frente para ver se havia mais alguém naquela casa,
quando as remadas de Gulzar levaram o barco para a casa seguinte.
O choque e a surpresa quase a puseram a nocaute, quando ouviu o
grito abafado de Gulzar. Não importava quanto havia-se preparado para
aquele momento; a compreensão súbita do que estava por acontecer deixou-a

157
apavorada. Suas pernas amoleceram e a boca ficou completamente seca.
Instintivamente, arremessou o corpo para a frente, tentando formar um
escudo protetor sobre o menino. Eles estavam muito perto da ação. Perto
demais!
Um homem de poncho marrom apareceu no teto de uma das casas e
saltou para as pranchas que conduziam à casa vizinha. Logo em seguida
outro homem fez o mesmo. E mais outro. Um a um vários deles foram se
movendo silenciosamente, carregando rifles automáticos. Esgueirando-se
pelas paredes de madeira, cercaram toda a casa.
Julie disse a Gulzar que se abaixasse e ele não esperou uma segunda
ordem. Abandonando os remos, o menino se encolheu no fundo do shikara.
Ao mesmo tempo que um dos homens corria para a janela dos fundos, os
outros se colocavam em posição estratégica. Julie logo reconheceu a formação
de combate da polícia militar, dispondo o pessoal da maneira mais adequada
para cobrir todos os lados da casa, sem correr o risco de ver atingido um dos
seus homens em caso de tiroteio.
Preparou a máquina, sentindo que seus movimentos eram tensos e
vagarosos. Não havia dúvidas: a reunião estava ocorrendo ali, bem debaixo
do seu nariz. Com o coração aos saltos, tirou diversas fotografias e então
aguardou a movimentação dos guardas.
Eles continuavam imóveis, mas, ao sinal daquele que usava o
poncho, e que, na certa, era o comandante da ação, todos irromperam para o
interior da casa com uma sincronia e uma precisão espantosas.
Uma explosão de tiros cortou o silêncio da manhã. Julie encolheu-se
toda, apavorada, sentindo dificuldade até de engolir. De súbito, desviando-se
das balas, um homem saiu correndo em direção ao lago, preparando-se para
fugir. Mas, antes que desse o mergulho, seus olhos se depararam com o
shikara. No segundo seguinte, ele pulava para a embarcação. Julie gritou para
que Gulzar saltasse, ao mesmo tempo em que via aquele homem horrível
avançar para ela, braço levantado, empunhando uma faca. Já estava se
considerando morta quando um tiro soou no ar. Com um grito horrível, o
atacante parou segurando a lâmina bem acima do rosto de Julie. Incapaz de
se mover, ela se voltou para o homem que havia atirado e que, com um salto
preciso, avançava para o agressor.
Jai! Lá estava ele, usando aquele esquisito poncho marrom,
segurando o pulso do terrorista, que, mesmo baleado, resistia bravamente. A
faca continuava a ameaçá-la, a poucos centímetros de seu rosto. O medo a
paralisava, deixando-a sem ação, completamente à mercê daquele homem

158
desesperado.
— Solte-me ou ela morre — gritou ele, ensangüentado e prestes a
cair.
Ela olhou para Jai, desesperada. Sua vida estava nas mãos dele!
Como resposta, o príncipe esperou. O único sinal visível de tensão eram os
músculos enrijecidos de seu rosto. Gradativamente, Julie viu a distância entre a
arma e seu corpo diminuir. O homem soltou a faca, mas, num último gesto de
resistência, agarrou-se a ela, sabendo que só teria alguma chance se a
mantivesse como refém. Foi então que Jai investiu contra ele, agarrando-o
pelo pescoço e imobilizando-o totalmente. Mas o peso e a movimentação,
forçando um só lado do barco, fizeram que este se virasse e os três acabaram
caindo nas águas do lago.

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CAPÍTULO XVIII

Julie emergiu das águas geladas do lago, engasgada e tossindo


muito, para logo em seguida descobrir que tudo acabara tão rapidamente
quanto havia iniciado. Uma lancha da polícia militar havia se aproximado e
ela viu Jai erguendo o corpo do terrorista para os oficiais. Estaria morto?,
pensou, observando as profundas marcas vermelhas no pescoço do homem e
suas vestes ensangüentadas. O perigo passara, mas a sensação do medo e da
ameaça ainda persistia, fazendo com que ela não parasse de tremer.
— Julie! Julie! Você está bem? — A voz de Gulzar chegou aos seus
ouvidos. O menino estava de pé sobre um pequeno barco, remando como um
louco na direção dela. A expressão angustiada transformou-se em alívio
quando ele viu que Julie sorria.
— Estou bem, Gulzar, e graças a Deus você está salvo. Desculpe por
tudo o que fiz você passar. Eu não sabia que nós estávamos tão perto deles.
Jamais me perdoaria se você tivesse sido ferido! Ei, onde conseguiu esse
barco?
— Você se recupera tão rapidamente assim das situações perigosas?
— perguntou uma voz interessada ao seu lado.
Julie deu uma braçada para trás para poder encarar Jai. Os olhos
dele brilhavam de alegria. Aqueles maravilhosos olhos negros Ele estava
tão perto que Julie sentiu os mamilos se enrijecerem sob a túnica molhada.
— Obrigada por sua ajuda — disse com voz equilibrada. Estava
pensando quanto um olhar como aquele, cheio de ternura e amor, a teria
afetado semanas atrás. Porque, neste exato momento, era incapaz de sentir
qualquer coisa, a menor emoção. Deu algumas braçadas para alcançar os
degraus que a levariam à varanda da casa flutuante.
— Espere! — Um par de braçadas foi o suficiente para que Jai
chegasse a seu lado, segurando-a de modo que ela se viu impedida de
prosseguir.
Voltou os olhos para o príncipe, que dava algumas ordens em voz
áspera. Ela queria escapar dali, ficar longe daquela proximidade, daquela
vitalidade intensa. Havia se esquecido de como era vulnerável àquele
magnetismo.
Mas um minuto mais tarde, ela se alegrou por haver esperado. Um

160
homem, na casa ao lado, acenava para Jai com um poncho na mão.
— Vamos — disse ele, ajudando-a a escalar os degraus. Só então,
quando o homem estendia o poncho, foi que Julie se deu conta de que sua
túnica estava completamente transparente. Jai ajudou-a a se cobrir, mas seus
dedos nem de leve roçaram nela. Era por isso, então, que ele lhe dissera para
esperar.
Depois que os terroristas foram embarcados na lancha da polícia e
levados embora, dois corpos passaram carregados diante dos olhos de Julie.
O primeiro estava irreconhecível, cravado de balas. Ela voltou o rosto
rapidamente, pensando em pedir mais tarde a identidade daquele homem
aos policiais. Sentia-se feliz por nada de mal ter acontecido a pessoas
inocentes. A prisão daqueles líderes internacionais retardaria muito a
organização do movimento. Sim, porque não tinha ilusões de que o
terrorismo fosse desaparecer da face da Terra.
O segundo cadáver parecia familiar, apesar do rosto inchado e
retorcido. Olhou novamente. Lal Delal! Ele devia ter sido morto em meio ao
tiroteio. Triste fim para um rapaz tão jovem ainda
Naquele momento o chefe da polícia de Caxemira entrou na casa,
acompanhado por seus oficiais. Julie se adiantou e apresentou sua
identificação de jornalista. O homem examinou as credenciais e concordou,
solícito, em responder a todas as perguntas que ela quisesse fazer. Jai
apareceu na varanda.
— A senhorita conhece o príncipe Mishra? — perguntou o chefe de
polícia. — Nós devemos muito a ele pela captura do grupo.
Julie fez que sim e começou com as perguntas. Pouco a pouco foi se
inteirando de como o príncipe havia auxiliado os policiais. Um de seus
homens tinha conseguido se infiltrar na organização e, há duas semanas,
recebera uma ordem para alugar uma casa capaz de acomodar várias
pessoas.
Ouvindo aquilo, Julie levantou os olhos para o príncipe. Quer dizer
que ele tinha aquela indicação e não dissera nada a ela! E ainda tinha o
desplante de ficar ali, sorrindo, como se não houvesse feito nada de mais!
Irritada, voltou a encarar o seu interlocutor. Após mais algumas perguntas e
outros esclarecimentos, o chefe deu a entrevista por encerrada. De posse de
todos os detalhes, o que ela pretendia fazer era passar toda a reportagem para
Nova York. Dirigiu-se para a varanda, deixando os homens discutirem o
incidente. Com o canto do olho viu quando Jai se levantou para segui-la, mas
foi interceptado por um dos guardas. Sentiu-se aliviada. Não queria

161
conversar com Jai, nem discutir seu trabalho. Iria embora para sempre e
tentaria esquecê-lo.
Gulzar precisou ir para a escola, e pegou carona na lancha dos
policiais. Uma hora e meia mais tarde Julie saía do telex do palácio, tendo
cumprido sua missão de enviar a reportagem completa para o jornal. Sentou-
se numa cadeira e deixou a mente divagar. Todas aquelas semanas de
trabalho intenso haviam sido válidas. O mundo saberia tudo sobre as
atividades terroristas daquele grupo poderoso, que acabava de ser
desmantelado. Sentiu-se satisfeita com o bom trabalho que realizara, mas,
ainda assim, desapontada. O que fazer dali para a frente? Voltar para os
Estados Unidos, ao trabalho na redação e ao que mais? Aquilo era muito
pouco diante das perspectivas que tivera em relação ao futuro. Um futuro
que sonhara em partilhar com Jai. Mas tudo fora obra de sua imaginação
romântica
De volta ao seu quarto, pediu à mulher de Abdul que lhe trouxesse
uma refeição quente. Estava louca para tomar um banho e livrar-se daquelas
roupas molhadas e sujas da lama do lago. O tempo estava quente e ela optou
pelo vestido azul de linho.
Após ter feito rapidamente sua refeição, resolveu espairecer um
pouco. Embora estivesse exausta devido à grande tensão daquela manhã, não
queria dormir. Preferiu caminhar pelos jardins e, chegando a um pequeno
pátio, sentou-se à sombra de uma árvore. Cerrou os olhos, ouvindo o
burburinho de uma fonte próxima.
— Estou atrapalhando?
Tantas vezes sonhara com aquela voz, que levou alguns segundos
para se certificar de que ela era de fato real.
— Você está zangada comigo. — Jai atravessou o pequeno pátio e se
encostou na árvore, bem ao lado dela. Havia trocado suas roupas por jeans e
camisa esporte. Os cabelos negros ainda pareciam úmidos. Julie notou
algumas marcas naquele rosto que sorria.
— Estou zangada, sim. Por que não me informou sobre o local da
reunião, mesmo depois de saber que eu era inocente? Priya lhe contou tudo.
Você sabia que eu não havia roubado os papéis. Dividi todas as minhas
informações com você. Por que não fez o mesmo comigo, sabendo quanto era
importante para o meu trabalho?
— Para falar a verdade, eu não queria que você soubesse.
Julie o encarou como se não o reconhecesse. Apesar de tudo o que
acontecera, jamais imaginaria que ele se ressentiria do sucesso de sua missão.

162
Sentia-se surpresa. Pior: traída. Embora ciente de que Jai tinha dúvidas
quanto ao seu caráter, pensava que ele a respeitava ao menos como jornalista e
pesquisadora.
— Não me olhe assim, Julie. Você não está compreendendo. Acho
que é hora de conversarmos.
— Não. Não temos nada para conversar. — Levantou-se e
acrescentou: — Vou partir amanhã para os Estados Unidos.
As mãos dele seguraram seus ombros.
— Julie, quer me escutar?
O toque gentil daquelas mãos e o tom de súplica na voz de Jai
bastaram para que ela sentisse que estava prestes a desmoronar. Enquanto
mantinha a atenção voltada para o trabalho, não tivera tempo de pensar na
própria agonia. Mas, agora, o sentimento de rejeição a esmagava, acabando
com todas as suas defesas. Seus olhos se encheram de lágrimas. A angústia
que sentira no dia em que fora surpreendida por ele voltava com toda a força.
Olhou para o príncipe, já chorando.
— Oh, Jai! Como pôde me dizer aquelas coisas horríveis quando
sabia que eu o amava tanto?
O rosto dele se anuviou.
— Desculpe, Julie. — As mãos se crisparam nos ombros dela. — Por
favor, você precisa me perdoar. — E abraçou-a, deixando que chorasse à
vontade.
Gentilmente, conduziu-a para um compartimento amplo e
ricamente mobiliado. Fez com que Julie se sentasse sobre o sofá e ficou ao
lado dela, acariciando-a, confortando-a silenciosamente até que a crise de
choro cessasse.
— Você está melhor? — perguntou suavemente. — Tem andado sob
grande tensão. Agora, relaxe! Este quarto sempre me acalma quando estou
nervoso,
— É o seu quarto, não é?
— Você gosta?
— É bonito. Mas por que me trouxe até aqui? —
Para falar com você.
— Não quero ouvir nada! — respondeu, nervosa. Sabia que ele
acabaria por influenciá-la e não queria se iludir mais uma vez. Não suportaria
ser abandonada de novo.
— Espere. — Os dedos dele calaram suavemente os lábios de Julie.
Um sorriso iluminou-lhe o rosto quando acrescentou: — Estou pedindo que

163
ouça, antes de me julgar. — Os olhos dele a fixaram tão intensamente que ela
acabou cedendo.
— Está bem. Estou ouvindo.
Ele então relaxou sobre as almofadas e olhou para a frente.
— Sua chegada a Nova Délhi, Julie, coincidiu com o começo das
operações terroristas na cidade. Você deve saber que muitos espiões
acobertam suas atividades sob o manto do jornalismo. É desse modo que eles
conseguem se infiltrar sem causar suspeitas. É desse modo também que têm
acesso a muitas fontes que não estão abertas a pessoas comuns. Quando você
chegou, eu não sabia que o Courier era um jornal especializado na cobertura
da violência internacional. Até mesmo o modo como você se entrosou com
minha mãe e minha irmã aumentou as suspeitas que eu já tinha. Você se
tornou praticamente um membro da família, e isto me preocupou bastante.
— Exatamente como Lal Delal, que usou a afeição de Priya, você
quer dizer? — interrompeu ela. — Você pensou que eu fosse capaz disso?
— A princípio, sim — reconheceu Jai. — Mas quando meu coração
insistia em dizer o contrário Bem, foi então que minha agonia começou. Eu
passei a duvidar de mim mesmo, da minha capacidade de julgar friamente as
pessoas. E tive medo de que você estivesse me usando.
Como ela não retrucasse, ele continuou:
— Eu estava lutando contra você. Infelizmente vários argumentos
demonstravam o que eu temia. A noite em que os terroristas viram você na
janela. Um de meus guardas relatando que a vira conversar com Lal Delal,
junto com Priya.
— Oh, eu havia me esquecido disso! Uma vez você me disse, em
Agra, que mantinha guardas de segurança ao redor das duas
— E de você, meu amor
— E de mim — concordou ela, sentindo aquelas últimas palavras
vibrarem em seus ouvidos. — Então eu deveria saber que você estava
protegendo Priya e que também sabia tudo sobre Lal. Oh, entrei naquele
escritório à toa
— É verdade. Aquele dia no escritório Os papéis que os terroristas
necessitavam. Vê, Julie, como tudo estava contra você? Ainda que sentisse
estar cada vez mais apaixonado, era como se estivesse entregando minha
alma ao diabo. Por isso disse todas aquelas coisas, ainda que meu coração se
despedaçasse a cada palavra.
Num gesto espontâneo, Julie acariciou aquele rosto amado com a
pontas dos dedos.

164
— Mas por que você não me falou nada a respeito da casa que os
terroristas haviam alugado? Já sabia que podia confiar em mim.
Jai se afastou das almofadas e seu semblante se iluminou, como se
finalmente houvesse chegado a chance de ele comunicar todo o seu ardor por
Julie.
— Porque eu te amo, Julie. Não queria que se envolvesse na captura.
Se eu a perdesse, minha vida estaria aniquilada. Queria você segura para
mais tarde para agora.
Aquelas palavras fizeram o coração de Julie pulsar de alegria. No
entanto, ela protestou docemente:
— Mas eu sou uma jornalista, Jai! Eu precisava estar lá! É o meu
trabalho!
— Eu sei, meu amor. Fiquei orgulhoso por você. — Sorriu e puxou-a
de encontro ao peito. — Sabe, Julie, você poderia ficar aqui e continuar
escrevendo. A Índia tem muitas histórias que ainda não foram escritas. Ou
então poderíamos viajar. Tenho muitas casas ao redor do mundo.
Poderíamos passar uma parte do tempo nos Estados Unidos; eu já estava
pensando mesmo em expandir meus negócios para o Ocidente. — A
descrição daqueles planos futuros terminou com uma nota interrogativa.
Uma sensação de segurança invadiu o coração de Julie. Ela entendeu
então, com uma clareza absoluta, que o ódio que tentara sentir por Jai não
havia sido real. Era apenas uma forma de autopreservação, de evitar o
sofrimento que o desprezo dele lhe causara.
Ela o amava. Nunca havia deixado de amá-lo. Agora tinha certeza
disso.
— Eu te amo, Julie. Você está me ouvindo? —
Estou, querido.
— Você vai se casar comigo?
— Humm — ela brincou, fazendo suspense. — Vou — respondeu
sorrindo, transbordando de felicidade.
Jai a envolveu nos braços, procurando-lhe os lábios com um ardor
que a fez estremecer. Radiante, Julie entregou-se aos beijos, dos quais sentira
tanta falta, sentindo o amor vibrar em cada parte de seu corpo. Que enorme
boa ação fizera para receber um presente daqueles? Ser amada por Jai era
muito mais do que ousaria sonhar.
— Não tem mais dúvidas? — ela murmurou ao ouvido dele. —
Você me ensinou a ter fé, Julie. Você me devolveu a vida.
Ela fechou os olhos, tremendo de desejo, enquanto as mãos de Jai

165
percorriam agilmente seu corpo à procura do zíper do vestido. Com
movimentos suaves e ternos, ele a despiu por inteiro. Julie ansiava por se
entregar, por iniciar uma nova etapa em sua vida, rica de amor e de prazer.
— Você é ainda mais bonita do que eu me lembrava — murmurou
ele, tocando os cabelos loiros dela quase que com reverência.
— Mesmo depois de tudo o que você pensava a meu respeito, eu
ainda aparecia assim em sua imaginação? — ela perguntou em voz baixa, rouca de
paixão.
— Todas as noites, meu amor. A cada momento, desde que
estivemos juntos no jardim secreto. — Começou então a acariciá-la,
conduzindo as mãos aos pontos sensíveis do corpo de Julie. Um fogo
queimava-lhe as entranhas, como se cada toque daqueles dedos experientes
tivesse o poder de inflamar-lhe o desejo.
Os lábios de Jai agora exploravam seu corpo, descobrindo zona de
prazer que nem mesmo ela suspeitara existir, levando-a ao êxtase e aguçando
todos os seus sentidos. Ele se despiu também e Julie vibrou de paixão ao
sentir aquele corpo másculo pressionar-se junto ao seu Acariciou-lhe os
cabelos enquanto sentia o toque suave e erótico da língua em seus mamilos.
As carícias ardentes que se seguiram a mergulharam de vez num mar de
sensações intensas.
— Vamos fazer amor, Jai — ela murmurou, os lábios tocando
ouvidos dele.
— É tudo o que eu quero. — Ele traçou a curva de seu seio com a
palma da mão. — Mas antes preciso ouvir você dizer que me ama.
— Eu te amo, te amo, te amo
As palavras ficaram suspensas no ar como o mais doce dos incensos.
Então, delicadamente, ele desceu o corpo sobre o dela. Exultando em seu
amor, eles libertaram o desejo há tanto tempo reprimido. Dois corações se
uniam pela eternidade, elevando-se para experimentar a glória do amor.

— Eu estou me sentindo muito querida, Jai. Pela primeira vez posso


dizer que conheci a plenitude desse sentimento — Julie murmurou, muito
tempo depois.
— Eu amo você, Julie. Com todas as forças da minha alma, com cada
centímetro do meu corpo. Perdê-la significaria perder a vida no que ela tem
de mais belo e puro.
— Jai, meu querido — ela sussurrou, atraindo-o novamente de
encontro a seu corpo.

166
E eles se entregaram a mais um momento de amor, tão intenso
quanto os muitos que teriam pela frente.

Fim

167

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