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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS - UNISINOS

UNIDADE ACADÊMICA DE GRADUAÇÃO CURSO DE PSICOLOGIA

ROBERTA ALVES

PSICOLOGIA DO ADOLESCENTE

SÃO LEOPOLDO
2020
Ônibus 174: uma análise reflexiva
“ Playboyzinho deitado lá em cima, em cima de uma cama, a gente deitado aqui em
baixo no chão.. Amanhã de manhã levanta, às vezes não tem um café pra tomar, a
gente vai pra porta da padaria pedir um café, às vezes mesmo roubar porque não tem
o que comer… quando cresce, já cresce revoltado.” Essa fala, presente no
documentário Ônibus 174, representa a realidade de milhares de brasileiros em
situação de rua, incluindo, consequentemente, a de Sandro. Órfão dos pais e filho da
indiferença da sociedade, Sandro mesmo morando com a tia percebeu-se sozinho
dentro de casa, encontrando nas ruas uma maneira de sobreviver, juntamente de seus
companheiros de rua, com quem teve o primeiro contato com a criminalidade. Ele é a
personificação do jovem pobre e negro que vive pelas esquinas em condições
precárias e que é invisível socialmente, transitando nas cidades como um fantasma,
invisível aos olhos de quem prefere não vê-lo (NOVAES; VANNUCHI, 2004). Essas
circunstâncias frágeis cuja vivem tantos brasileiros em situação de rua são
proporcionadas pela necropolítica, que oferece a condição de mortos-vivos a uns e
facilita a morte de outros, alimentada por estereótipos racistas que incentivam a
constante invisibilização social desses indivíduos (FOUCAULT, 1999) Considerando
que a busca pela identidade somente se concretiza quando reconhecida socialmente (o
que é evidentemente o oposto da maioria das vivências de Sandro) em um longo
processo que envolve interações sociais em um determinado período socio-historico
(NOVAES; VANNUCHI, 2004), podemos considerar a criminalidade e a violência praticada
pelo jovem ao longo de sua história como um pedido exasperado por um olhar atento
sobre si, para ser reconhecido como indivíduo (mesmo que de um modo negativo) e
não apenas como um obstáculo das calçadas por aqueles que transitam pelas mesmas
sem dar-lhe a mínima importância (OLIVEIRA, 2001).
A fome, a violência, o preconceito e a violação de ordenamentos do Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA) - que se realmente executado garantiria os direitos
das crianças adolescentes, garantindo uma vida digna a jovens em situação de
vulnerabilidade (HERCULANO; MACEDO, 2016) - não concederam a Sandro (e aos tantos
outros Sandros espalhados pelo Brasil) o período de moratória social supostamente
presente na fase da adolescência defendido por Calligaris em A Adolescência.
Conforme dito no documentário, “vira adulto rápido”: a necessidade urgente de adquirir
meios de sobrevivência e ser independente financeiramente foram alguns dos fatores
que o levou à criminalidade. Portanto, podemos aqui observar uma adolescência que -
desviando da sua construção social ideal - não foi permitida ser vivida de forma
despreocupada e infantilizada (CALLIGARIS, 2000). A mídia e o marketing
transformaram o adolescente em um modelo de consumo e vendem a adolescência
como uma fase a ser seguida por toda a massa, um ideário social (OLIVEIRA, 2001).
Mas que adolescência é essa que está sendo comercializada e imposta? Certamente
não é a vivida por Sandro. Ela tem raça e classe social específicas, aspectos que
claramente não condizem com os possuídos pelo jovem. Logo, essa idealização é
violenta, leva à segregação, exclusão e à baixa autoestima dos que não correspondem
a esses padrões.
O despreparo dos policiais é enfatizado no documentário, mostrando que apesar de
ser uma obra do início dos anos 2000, ainda é algo que não sofreu mudanças e precisa
- e muito - ser discutido. Os jornalistas que estavam no local e inclusive os próprios
profissionais da área comentam sobre a falta de equipamentos necessários para a
operação, além da ausência de treinamento há um bom tempo, que resultou na morte
de Sandro e da jovem professora Geísa, que estava grávida (BARREIRA, 2020). Todo
esse despreparo em conjunto com a constante produção de estigmas contra o jovem
negro resulta no verdadeiro genocídio que estamos vivendo, sendo a seletividade penal
e os números altos de homicídio contra os homens negros efeitos desses eventos
(OLIVEIRA, 2001). Essa população é morta e enclausurada nas prisões em massa,
sem preocupação por parte da sociedade, que cada vez mais tem seu sentimento ódio
e indiferença intensificados. Assim como um cidadão comum, o policial também nutre
esses sentimentos, a diferença é que com armas nas mãos (às vezes até mesmo sem
elas) têm o poder de descontar essa raiva internalizada e alimentada e juntamente da
mídia, justificam a reprodução desses atos serem em nome da segurança de seu povo,
que eventualmente acaba sendo persuadido da melhor forma a acreditar e incentivar
essas técnicas de extermínio massivo. Ou seja, a força policial faz o trabalho que a
sociedade deseja: anular e invisibilizar os jovens negros em situação de pobreza.
Como citado no documentário, o que ocorre é uma produção policial de invisibilidade.
O massacre de Candelária, no qual Sandro também estava presente, é um exemplo
dessa naturalização do genocídio. Jovens sem teto foram cruelmente assassinados por
policiais e mesmo com toda a brutalidade de tal ação, diversas pessoas concordaram
com a chacina, acreditando ser um ato de violência necessário contra essa população,
como um ato de limpeza social (LEMOS, 2017). Sandro viu seus “ irmãozinhos” sendo
mortos, o que foi mais um evento traumático em sua vida a colecionar. Observando seu
o background, é possível compreender os fatores que o levaram a delinquência, o que
reforça um olhar mais dinâmico sobre o problema da criminalidade na adolescência,
não levando em conta somente o ato delitivo em si, mas a história por trás do
adolescente: sua infância, escolaridade, rede de apoio. Entender os porquês das ações
delinquentes é de extrema relevância para que estratégias efetivas de intervenção
sejam criadas e exercidas. É necessário, portanto, um olhar menos padronizado e
rígido, focado somente no diagnóstico (OLIVEIRA, 2001). Antes alvo do massacre
ocorrido nos anos 90 e posteriormente autor do sequestro que chocou o país sete anos
depois, o percurso percorrido por Sandro reforça a urgência de um maior entendimento
acerca da juventude brasileira e a pluralidade de fatores e possíveis razões que os
levam à criminalidade para a criação de políticas públicas de prevenção (NOVAES;
VANNUCHI, 2004).

Mais do que um sequestro decorrente de um assalto interrompido, o evento foi


decisivo para uma inversão de papéis na narrativa do menino que sempre fora
invisibilizado pela sociedade. Agora, era protagonista de uma história, produzindo uma
visibilidade forçada sobre si e provocando algum tipo de sentimento (mesmo que
negativo) nas pessoas que o rodeiam, através do medo e da violência. Os veículos de
mídia, presentes aos montes ao redor da cena do crime, tiveram papel crucial no
desenrolar dos acontecimentos. As diversas câmeras espalhadas pelo local certamente
intensificaram a proporção do evento. Os câmeras e os repórteres - sempre
procurando os melhores ângulos e a máxima proximidade do ônibus - ajudaram Sandro
a criar o espetáculo que, comandado pelo último, teve cenas marcantes como uma das
reféns escrevendo nos vidros do transporte com um batom frases que o jovem a
ordenou registrar. Durante o sequestro, Sandro exigia que suas reféns intensificassem
seus gritos a fim de demonstrarem mais pavor e aterrorizar ainda mais os espectadores
do lado de fora do veículo. Com o mesmo objetivo, em dado momento o sequestrador
em uma atuação em conjunto com as sequestradas, finge balear uma das mulheres,
atraindo ainda mais as dezenas de pares de olhos para si. Por vezes mudava o roteiro
e ameaçava atirar nelas, pois independente de matá-las ou não seria morto de
qualquer jeito, não tinha nada a perder. A mídia deu o poder que o menino não teve em
seus 21 anos de vida e alongou a duração de um crime que certamente seria menos
duradouro se não houvesse a presença das câmeras. Na ausência dos holofotes,
provavelmente conseguiriam uma negociação mais rápida ou de fato o executariam na
primeira vez em que Sandro colocou a cabeça para fora da janela, o que fez várias e
várias vezes. Quantos Sandros são mortos diariamente na falta de plateia e das
filmadoras?
As instituições de medidas sócio-educativas exibidas no documentário são uma
amostra da ineficácia desse sistema no nosso país. Os locais de internação para
jovens e os presídios têm a funcionalidade de depósito de seres humanos e os trata
com medidas punitivas, não exercendo seus papéis designados com o objetivo de
reabilitar e reintegrar essas pessoas na sociedade. Alimentos estragados, violência
policial, abuso de poder, superlotação, descaso com a saúde e bem-estar: como não
sair mais revoltado e com menos expectativas do que antes de ingressar na
instituição? A lógica do encarceramento como punição apoiada por grande parte da
população, acaba voltando contra si eventualmente.
A família (tia e mãe adotiva), amigos e outras pessoas que conviveram com Sandro
por um considerável período de tempo o descreve de maneira oposta as pessoas que o
reconheceram através de seus crimes. O descreviam como um menino introvertido e
que apesar de estar envolvido na criminalidade nunca seria capaz de matar outro ser
humano. Todos afirmaram que ele não agiria dessa forma, mesmo que estivesse
ameaçando matá-las a todo momento durante aquelas horas de sequestro. Sua mãe
adotiva, tia biológica e a ativista Yvonne Bezerra (uma das poucas pessoas com quem
Sandro se abria) revelaram que ele tinha expectativas de viver uma vida melhor,
estudar, trabalhar e ser alguém prestigiado. Yvonne conta que ele pediu oportunidades
de emprego a ela duas vezes antes do ocorrido. Apesar de todas essas metas, era
ciente da falta de oportunidades que sofria, já que era analfabeto e nunca trabalhou
antes. “Eu queria trabalhar, mas quem vai me dar emprego? Olha pra mim e vê se
alguém vai me dar emprego [...] eu vou fazer o que da minha vida?”, disse Sandro a
ela.
Dos 10 milhões de jovens que se ausentaram da escola sem sequer completar a
educação básica, mais da metade (71,7%) são pretos e pardos, e a maioria relata ter
feito isso pela necessidade de trabalhar e assim complementar a renda familiar (os
homens foram os que mais relataram esse motivo). Cerca de dez a cada cem
adolescentes negros maiores de 15 anos são analfabetos, enquanto essa taxa é quase
três vezes menor entre os brancos (PALHARES, 2020). O resultado da evasão escolar
proveniente da desigualdade social e do racismo social reflete no mercado de trabalho,
onde mulheres e homens negros são mal pagos, mesmo que com uma boa formação
profissional (HERCULANO; MACEDO, 2016).
‘Você vai procurar um serviço: ‘ você
tem primeiro grau?’ ‘não, não tenho’...
Vai em outro: ‘você tem segundo grau?’
‘não, não tenho’. E o outro exige mais
inglês e espanhol. Pô, eu não tenho
nada disso, não estou nem aos pés
disso.’ É, assim, que um jovem infrator
de São Paulo comenta acerca de suas
frustradas tentativas de mobilidade
social, que se confirmam na vida de
milhões de outros adolescentes
brasileiros.’ (OLIVEIRA, 2001, p. 48)

Nas aulas de capoeira que praticou junto de seus companheiros de rua, não foi
relatado nenhum furto. Naquele espaço, não era tido como um mais um trombadinha,
com comportamentos violentos previsíveis, era apenas um adolescente tendo seu
momento de lazer e fuga da realidade que o assolava (NOVAES; VANNUCHI, 2004). A
relação de “amizade” de Sandro com uma das reféns proporcionou alguns momentos
de tranquilidade para as mulheres dentro daquele ônibus e vale ser ressaltada como
um outro momento em que o jovem teve um olhar positivo e reconhecimento de alguém
sobre si. A menina conversou com ele sobre sua família e por vezes se comportou
aparentando se preocupar genuinamente com o menino e suas vivências, se
importando com ele - conforme a mesma relatou - como um ser humano.
É preciso derrubar a ideia de que o delinquente assim é devido a uma essência, uma
predisposição a ser bandido. Faz-se necessário observar a trajetória singular de cada
indivíduo e considerar todo o contexto que o envolve, não com o objetivo de encontrar
a raiz que gerou determinado delito ou justificar os seus atos criminosos, mas a fim de
compreender a situação como um todo analisando diversas perspectivas, através de
uma escuta envolvendo profissionais de diferentes áreas. Assim, com uma equipe
multidisciplinar, ter a possibilidade de formular estratégias mais eficientes de
intervenção para então, processualmente modificar o cenário do crime e do
preconceito. Para que mudanças ocorram, é urgente entender a criminalidade como
um sintoma da nossa sociedade racista e violenta e não como um fator inato
(OLIVEIRA, 2001).
Sandro assim como outros tantos adolescentes negros e pobres, foi vítima de uma
série de violências nesses 21 anos idade: violência por parte do Estado,
vulnerabilidade social, negligência e preconceito. A população, que virou-se de costas
para ele por todos esses anos ignorando sua existência nas ruas, virou-se em sua
direção nos seus últimos minutos de vida - antes de ser asfixiado pelos policiais dentro
da viatura - mas para o linchar e levar um pedacinho de Sandro consigo, afinal,
“bandido bom, é bandido morto”.
REFERÊNCIAS:

A (exacerbada) busca de reconhecimento”. In: Oliveira, Carmen. Sobrevivendo no inferno: a violência


juvenil na contemporaneidade. Porto Alegre: Sulina, 2001

BARREIRA, Gabriel. 'Existem mil novos Sandros por aí', diz Yvonne Bezerra sobre 15 anos do 174.
G1, Rio de Janeiro, 12 de jul. 2015. Disponível em: http://g1.globo.com/rio-de-
janeiro/noticia/2015/06/existem-mil-novos-sandros-por-ai-diz-yvonne-bezerra-sobre-15-anos-do-174.html.
Acesso em: 27 de nov. 2020.

CALLIGARIS, Contardo. A Adolescência. São Paulo, Publifolha, 2000.

FOUCAULT, Michel. “Aula de 17 de março de 1976 (P. 285 – 315)”. In: Em defesa da sociedade, São
Paulo, Martins Fontes, 1999.

LEMOS, Flávia Cristina Silveira et al . O extermínio de jovens negros pobres no Brasil: práticas
biopolíticas em questão. Pesqui. prát. psicossociais, São João del-Rei , v. 12, n. 1, p. 164-176, abr.
2017

MACEDO, Aldenora; FELIPE, Herculano. O perigo de ser jovem e negro no Brasil: um olhar sobre a
adolescência numa perspectiva racial. Norus - Novos Rumos Sociológicos. Dossiê: A dinâmica das
relações raciais: dados, abordagens e interseccções. V.4, n.5, jan-jul 2016.

O conceito de adolescência exacerbada” In: Oliveira, Carmen. Sobrevivendo no inferno: a violência


juvenil na contemporaneidade. Porto Alegre: Sulina, 2001.

PALHARES, Isabela. Negros são 71,7% dos jovens que abandonam a escola no Brasil. Folha de S.
Paulo, São Paulo, 15 de jul. 2020. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2020/06/negros-sao-717-dos-jovens-que-abandonam-a-escola-
no-brasil.shtml. Acesso em: 27 de nov. 2020.

SOARES, Luiz Eduardo. "Juventude e violência no Brasil Contemporâneo". in: NOVAES, Regina;
VANNUCHI, Paulo (orgs.). Juventude e Sociedade: Trabalho, educação, cultura e participação. São
Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2004.

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