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NOTAS SOBRE O CONCEITO DE ELITE PARA BRASIL DO OITOCENTOS

Luiz Adriano Gonçalves Borges


Doutorando – UFPR
hisguardian@hotmail.com

Em uma portaria da Câmara de São Paulo enviada para o presidente da


província, no dia 21 de Março de 1842, são indicados os “cinco maiores capitalistas ou
proprietários da província para formarem a 1ª reunião dos deputados, que tem de se
constituir a Assembléia do Banco Paulistano”. Para formação deste primeiro banco da
província foram designados Rafael Tobias de Aguiar, João da Silva Machado, Jose
Manoel de França, Joaquim Jose dos Santos Silva, Antonio da Silva Prado (AESP,
Ofícios diversos, 21/03/1842). Estes eram homens criados na província paulista e que
através de suas atuações nos negócios de gado e agrícola ascenderam politicamente,
atuando nos mais diversos cargos governativos. Na vida destes homens, “capitalistas ou
proprietários”, o viés econômico andava lado a lado ao viés político. Para se tornarem
deputados “bancais”, ocupando um cargo politicamente importante em São Paulo,
tiveram que antes se constituir homens de negócios.
O estudo que aqui apresento faz parte de uma pesquisa maior (BORGES, 2010),
na qual analiso a Revolta Liberal de São Paulo que ocorreu em 1842 sob a ótica de elite
Liberal. Aqui, a análise se focará em esboçar a teoria das elites que servirá de
embasamento metodológico para a tese. O enfoque estará voltado para a delimitação do
que compreendemos por elite política no contexto do Brasil na primeira metade do
século XIX, revisando os principais trabalhos que influenciaram a atual concepção do
termo, sem, é claro, esgotar o assunto. O que se pretende é um panorama histórico do
estudo das elites.

A circulação do conceito de elite nas Ciências Humanas.


O conceito de elite é antes de tudo uma categoria instrumental e, enquanto tal,
deve ser contextualizado para o objeto de estudo que se quer empreender. Em história e
em ciências sociais, elite é um termo polivalente que assume facetas diversas
dependendo do substantivo que o qualifica: política, econômica e militar, para ficar em
três exemplos. Mas mesmo qualificado, este termo ainda denota imprecisões. Em
sentido amplo, elite se refere às categorias ou grupos que ocupam o “topo” de

1
“estruturas de autoridade ou de distribuição de recursos”1, “o que há de mais valorizado
e de melhor qualidade; minoria que detém o prestígio e o domínio sobre o grupo social”
(HOUAISS, 2004, verbete “elite”)2
A teoria de elites, existente na Itália do século XIX, é formulada de maneira
sistemática pelos italianos Vilfredo Pareto e Gaetano Mosca no final do século XIX e
início XX. Seu argumento principal era o de que em qualquer sociedade, em qualquer
contexto, havia sempre uma minoria, uma elite que se destacava por seus dons, sua
competência e seus recursos, e detinha o poder, dirigindo a maioria (GRYNZPAN,
1999, p. 11). Deve-se atentar que a teoria das elites nasceu e se desenvolveu com uma
especial relação com o estudo das elites políticas.
Gaetano Mosca apresenta sua teria de elites em 1896, em seu livro Elementi di
scienza política, no qual destaca a dicotomia entre maioria e minoria, entre os que
mandavam e os que obedeciam, entre uma minoria organizada e composta por
indivíduos superiores que dominam, e a maioria desorganizada que acabam sendo
governadas (GRYNZPAN, 1999, cap. 4; BOBBIO, 2002, verbete “teoria das elites”, p.
385-391). Ele também chegou a formular que havia uma relação, não somente de
domínio, mas também de interação entre elites e massas, que possibilitava o surgimento
de novas elites representantes de novas forças sociais emergentes e de seus interesses
(CAROSA, 2007, p. 80). O problema na formulação de Mosca se refere a sua
interpretação um tanto quanto mecânica das forças sociais. Em sua concepção, “o
predomínio social da força levaria a um governo de guerreiros, de riqueza, a um
governo de plutocratas, da religião, a um governo de sacerdotes e assim por diante”.
Para José Murilo de Carvalho, falta na análise de Mosca uma percepção da influência
do estado e das estruturas políticas sobre a formação e manutenção da elite (2003, p.
26).
Vilfredo Pareto, influenciado pelas idéias de Mosca, avançou na discussão sobre
a teoria das elites usando o conceito da circulação das elites. Este conceito comporta a
1
O termo elite compõem a “minoria que dispõe, em uma sociedade determinada, em um dado momento,
de privilégios decorrentes de qualidades naturais valorizadas socialmente (por exemplo, a raça, o
sangue etc.) ou de qualidades adquiridas (cultura, méritos, aptidões, etc.). O termo pode designar tanto o
conjunto, o meio onde se origina a elite (por exemplo, a elite operária, a elite da nação), quanto os
indivíduos que a compõem, ou ainda a área na qual se manifesta sua preeminência. plural, a palavra
‘elites’ qualifica todos aqueles que compõem o grupo minoritário que ocupa a parte superior da
hierarquia social e que se arrogam, em virtude de sua origem, de seus méritos, de sua cultura ou de sua
riqueza, o direito de dirigir e negociar as questões de interesse da coletividade”. (BUSINO, APUD
HEINZ, 2006).
2
Segundo este dicionário, o termo aparece pela primeira vez impresso no Brasil na revista “Semana
Ilustrada”, no. 548, de 1871. Não tive acesso à essa revista, mas seria interessante a verificação do
contexto em que foi empregado o termo.

2
idéia de que as elites envelhecem e se estagnam quando se agarram ao poder, não se
mostrando flexíveis para facilitar o acesso dos membros mais capazes das massas.
Portanto, a interação das elites com as massas, notada por Mosca, não está presente em
Pareto. O que ocorreria, segundo este autor, era que a aristocratização da elite inicia a
formação de uma elite subalterna entre as massas, que acabará substituindo a elite
governante em função de sua maior capacidade ou valor. O problema nesta formulação
reside no fato de que ele não explica de maneira satisfatória a razão da substituição das
elites, seus processos de degradação e de emergência. E também não fica evidente neste
processo de substituição a inter-relação de mudanças econômicas e políticas (CAROSA,
2007, p. 79).
Nem Mosca nem Pareto analisaram como surgem as elites, fixando-se na
substituição de uma elite por outra. Mesmo assim, trouxeram importantes acréscimos e
popularizaram a teoria das elites, tornando referência fundamental neste campo. Os
processos de substituição das elites compõem-se de elementos fundamentais para se
compreender a posição de elites políticas e sua mudança ao longo de gerações. O passo
seguinte à teoria das elites seria dado pela sociologia americana, que teria Mosca e
Pareto como referenciais principais.
Wright Mills contrapõe os homens comuns, cujo poder de influência “é
circunscrito pelo mundo do dia-a-dia em que vivem, e mesmo nesses círculos de
emprego, família e vizinhança freqüentemente parecem impelidos por forças que não
podem compreender nem governar” e a Elite do poder “composta de homens cuja
posição lhes permite transcender o ambiente comum dos homens comuns, e tomar
decisões de grandes conseqüências” e também “ocupam os postos de comando
estratégico da estrutura social, no qual se centralizam atualmente os meios efetivos do
poder, riqueza e celebridade.” Mesclando análise sociológica e histórica Mills busca
demonstrar como a elite do poder nos Estados Unidos é composta por aqueles que
ocupam as posições-chave nos três setores: economia, exército e política. Para o autor, e
isto é o grande avanço em seu trabalho, as três “ordens” se interligam através de
questões sociais, familiares e econômicas, sustentando-se e reforçando-se uns aos outros
(1981).
O conceito de elite de Mills foi criticado, de um lado, por apresentar uma
unicidade muito grande entre os membros da elite no poder, e de outro lado, por
articular em três setores a elite no poder, já que, para os marxistas, a classe dominante é
uma só, a dos detentores do poder econômico. Assim, é de interesse levar em

3
consideração as duas visões, a da teoria elitista e a teoria marxista, procurando
confrontá-las, já que o debate em muito contribuiu para o avanço do estudo das elites
(BOBBIO, 2002, p. 388-389).
A teoria das elites basicamente contrapõe a elite e a massa, esta elemento
passivo da sociedade, e os conflitos que ocorrem acontecem no interior das elites. Já a
teoria marxista se fundamenta na contraposição entre duas classes antagônicas, os donos
dos instrumentos de produção e os proletários, considerando o conflito entre as duas
classes sociais o principal motor da história. Na visão elitista, a relação entre elite e
massa não é antagônica (BOBBIO, 2002, p. 390).
Também é divergente nas duas correntes teóricas a forma de conceber a coesão
deste grupo minoritário: se, para a teoria das elites se trata de um grupo coerente que
detém o poder e geralmente possui riqueza, o que não é indispensável, para a teoria
marxista, por outro lado, essa minoria possui os meios de produção e é justamente nessa
posse que reside seu poder. As duas teorias também se dividem na questão da
organização. Para a teoria das elites, esta está organizada e a massa desorganizada, e
para os marxistas ambas as classes estão organizadas 3. Enfim, os teóricos das elites
denunciaram o determinismo econômico como incapaz de explicar por si só a complexa
trama das relações sociais e da mudança histórica.
No Brasil a utilização direta da teoria das elites políticas nunca foi abundante
(CODATO; PERISSINOTTO, 2008). Enfatizo “utilização direta” porque, mesmo que
esta teoria não estivesse presente enquanto conceito, ela transparece direta ou
indiretamente na leitura de estudiosos do período imperial, considerados clássicos pela
historiografia brasileira. Como o objetivo nesta comunicação não é esgotar o assunto e
sim apresentar elementos do debate acerca do tema de elites, ressaltamos alguns desses
trabalhos clássicos. Destacam-se leituras marxistas (devendo-se atentar para as
discussões apresentadas até aqui neste trabalho) e weberianas. Dos marxistas, podemos
apontar Caio Prado Junior e Ilmar R. de Mattos, que abordam o estado como um
representante dos interesses de uma classe hegemônica. Na interpretação weberiana,

3
CAROSA, (2007, p. 82-85) apresenta um interessante quadro, contrapondo a teoria de Marx e a teoria
geral das elites. Para os termos da nossa pesquisa um ponto levantado na comparação por Carosa é
bastante pertinente: “las élites, al entrar em competición entre sí o ser relevadas por otras, generan una
circulación que pueda dar lugar a câmbios sociales o ‘revoluciones’. Pero esta teoria no se interesa por
(...) diferencias de riqueza de la sociedad si no es para explicar como pueden generarse élites nuevas o
circulaciones dentro dellas.” P. 84. Mais acerca do debate entre elitismo e marxismo pode ser visto em:
CODATO; PERISSINOTTO, 2009.

4
destacam-se Raymundo Faoro4 e Fernando Uricoechea, aplicando a noção de estado
patrimonial e estamentos.5
Para Caio Prado Junior, em “Evolução Política do Brasil”, de 1933, a classe
dominante no período imperial é proprietária de terras e escravos. É ela que triunfa na
“revolução” brasileira, a Independência, adentrando a partir daí na esfera política do
novo Estado*, transformando-o em instrumento de seus interesses. A idéia da não
organização das classes subalternas fica evidente pelo fato deste grupo não participar do
movimento (1961). Nesta mesma perspectiva de luta de classes, mais recentemente,
Ilmar Rohloff de Mattos distingue o Estado Imperial brasileiro como resultado da
hegemonia de uma classe, que se entende como classe senhorial. Em tese de doutorado
defendida em 1985, o autor centraliza sua análise no período de meados da década de
1830 até o início da década de 1860, demonstrando como um bloco de fazendeiros de
café da Região do Vale do Paraíba fluminense, recém enriquecidos, constituía um grupo
coeso em torno dos dirigentes saquaremas. Estes são políticos ativos saídos do bloco de
fazendeiros ou ligados a eles por laços de casamento, formando uma classe única.
Através do estado, utilizado como instrumento de orientação, essa classe constrói sua
unidade e expande seu poder. Mattos também empreende uma análise gramsciniana ao
compreender a supremacia da classe dominante obtida não somente pela coerção, mas
também por consentimento, construindo um consenso que leva à sua hegemonia no
estado (1990).6
Assim, ambos os autores apontam uma “elite” fundamentada na questão agrária,
o que por si só é incapaz de explicar a mudança que ocorre com a instituição da
monarquia no Brasil e do surgimento de uma elite política, baseada em outros e novos
aspectos do poder. No caso de Caio Prado Jr., não havia diferença alguma entre as elites
dos dois partidos imperiais, liberal e conservador. Embora admitisse o conflito entre a
burguesia reacionária, os proprietários rurais e escravistas, e a burguesia progressista,
entre os comerciantes e financistas, o autor diz que este conflito não transparecia nos
4
Apesar de Faoro diz não seguir a linha de pensamento de Weber, sua noção de patrimonialismo e
estamento possui parentesco (como o próprio autor afirma) com o pensador alemão. Ver FAORO, 2001,
prefácio à segunda edição.
5
Mesmo não focando a questão de elites, os seguintes textos trazem uma pertinente revisão da
historiografia brasileira: CARVALHO, 1997; CUNHA, 2006; GRAHAM, 2001; VARGAS, 2007.
*
Estado no presente texto comporta dois significados: quando aparece iniciado em letra minúscula,
significa o aparato institucional, ou generalização; quando iniciado em letra maiúscula representa o Brasil
enquanto monarquia soberana.
6
Referindo-se a elite, Mattos trabalha com o conceito de “boa sociedade”, que elaborou a partir das
recordações do jurista Francisco de Paula Ferreira de Rezende, utilizando-o para designar a elite
econômica, política e cultural do Império. Neste caso ver especificamente o capítulo 2 da obra citada. Em
trabalho futuro, ampliaremos esta discussão.

5
partidos. Ilmar Mattos, por sua vez, desenvolve sua análise no sentido de haver
semelhanças e diferenças, mas também diz existir uma hierarquia entre os partidos,
sendo o topo ocupado pelos conservadores, entendidos como dirigentes da política
imperial. Como veremos, a noção de hegemonia dos conservadores e o predomínio dos
senhores de terra sobre o Estado é controversa.
Com a teoria de Weber acerca do estado patrimonial e dos estamentos, Faoro,
em “Donos do Poder”, de 1979, faz uma comparação dos conceitos de classe política de
Mosca e de estamento. O autor constrói a tese da evolução do Brasil até deixar os
traços do feudalismo e passar para um capitalismo de estado de natureza patrimonial.
Nesse processo, forma-se um estamento burocrático, que paulatinamente torna-se
autônomo do rei. O estamento compõe, desta maneira, o quadro administrativo, o
domínio de uma minoria, que não se confunde, segundo o autor, com a elite ou classe
política ou dirigente. A única semelhança entre os termos seria o conteúdo minoritário,
pois do interior do estamento, algo descolado da sociedade, é que sairia a classe política,
a elite que governa e separa governo e povo. O estamento não se configuraria uma elite
nos termos de Mosca por não se tratar de uma camada heterogênea e aberta. No
conceito de Faoro, o estamento seria uma estrutura social autônoma e fechada, típica de
um estado patrimonial, em que não há circulação de elites. No caso brasileiro o Estado
Imperial teria sido concebido esmagando a força das elites provinciais e locais,
mantendo o poder dos estamentos burocráticos (FAORO, 2001, especialmente capítulo
3, ponto 3).
Na mesma linha de pensamento weberiana, Fernando Uricoechea analisa o
Brasil Imperial através do tipo ideal do burocrata patrimonial em sua obra “O minotauro
imperial”. Segundo o autor, burocracia esta ligada a racionalização e modernização da
máquina do Estado e a questão patrimonial se relaciona a uma forma de dominação
tradicional ligada à expansão do poder pessoal do monarca. Em aparente conflito, a
natureza política do Brasil desde a Colônia é um movimento de crescente
burocratização e de decrescente patrimonialização. Só que esse processo é realizado
através de uma relação de complementação e antagonismo, entre Estado e proprietários
rurais, já que nem um dos lados possuía recursos e capacidade suficiente para excluir o
outro. Esse compromisso, novidade nas interpretações weberianas, se manifesta na
formação, por exemplo, da Guarda Nacional, que foi uma milícia cujos cargos mais
altos eram ocupados por grandes proprietários rurais. A burocracia estatal em um

6
acordo tácito concede autoridade aos senhores de terras em troca de cooperação e
serviços (URICOECHEA, 1978).
Na historiografia que estuda especificamente o Brasil Imperial, José Murilo de
Carvalho é o autor que melhor problematizou a teoria das elites políticas, discutindo
desde a sua forma clássica em Mosca e Pareto até conceitos como estamento, presentes
na obra de Faoro. A sua obra, publicada originalmente em 1975, “A construção da
ordem” e “Teatro das Sombras” se destaca pela busca de uma comprovação empírica
dos princípios da teoria das elites. Neste sentido, dedica um capítulo sobre a burocracia
imperial, problematizando as idéias de Faoro. Sua conclusão é de que não se pode falar
em estamento burocrático se se olhar para as fontes documentais. O que Faoro chamava
estamento, “na verdade era uma elite política formada em processo bastante elaborado
de treinamento, a cujo seio se chegava por vários caminhos, os principais sendo alguns
setores da burocracia, como a magistratura” Mais a frente o autor continua: “o segredo
da duração dessa elite estava, em parte, exatamente no fato de não ter a estrutura rígida
do estamento, de dar a ilusão de acessibilidade, isto é, estava em sua capacidade de
cooptação de inimigos potenciais” (CARVALHO, 2003, p. 151). Carvalho vai além ao
dizer que o modelo de burocracia ideal de Weber é insuficiente para explicar a
administração imperial. O funcionalismo no Brasil monárquico, para além da
administração, também atuava em questões de natureza política e social. A burocracia,
entendida enquanto a elite política, provia ocupação para setores diversos da sociedade,
e também era poderosa para cooptar potenciais opositores, como grandes proprietários
rurais. Some-se a isto, o fato de o corpo de funcionários imperiais não possuir estilo de
vida próprio, não ter privilégios legais e não conseguiu desenvolver mecanismos de
proteção de sua homogeneidade e autonomia (CARVALHO, 2003, cap. 6). Estamos,
portanto, face à uma reconfiguração da teoria das elites, empreendida de maneira
empírica.
A principal contribuição de Carvalho para o estudo das elites política no Brasil
da primeira metade do século XIX, é demonstrar a homogeneidade ideológica da elite
política brasileira, através do treinamento em Coimbra, concentrada na formação
jurídica. Essa elite homogênea foi capaz de construir um estado com ideologia própria e
unificado, apesar de revoltas contestadoras que acabaram sendo contidas. Como a
burocracia se fundamentava como refúgio para alguns setores da sociedade que percebia
o poder concentrado nos cargos públicos, a elite política se confundia com a burocracia.

7
Aí reside, segundo Carvalho, a própria confusão acerca da interpretação da natureza das
elites imperiais.
A longa, porém pertinente discussão da noção de elite política presente na obra
de Carvalho se faz necessária tendo em vista a sua influência na historiografia brasileira
que estuda a cultura política do Brasil do oitocentos. 7 Questões caras à teoria das elites
foram apresentadas pelo autor de maneira problematizada para o contexto brasileiro.
Sua crítica à Mosca se refere a falta do elemento de influência do estado sobre a
maneira como a elite se formava e mantinha-se no poder. Já em Pareto, o problema é a
escassa explicação do processo de degradação e do surgimento da elite, enfim, da
substituição da elite.
Richard Graham, em “Clientelismo e política no Brasil do século XIX”,
publicado em 1990, empreende um estudo prosopográfico das elites políticas ao longo
do século XIX, se concentrando no processo eleitoral, local privilegiado para as relações
clientelísticas. No centro de seu estudo encontram-se considerações acerca de como o
governo central ligava-se aos proprietários de terra nas províncias por meio de uma
ampla rede clientelística (GRAHAM, 1990). Debatendo a noção de estado de Faoro,
Graham diz que o Estado imperial não era tão autônomo e livre do seu contexto social e
econômico, como apresenta este autor. E também se contrapõem à idéia de que
políticos, juizes, ou outros oficiais representavam somente os interesses de um estado
uma vez que entravam em um oficio governamental. Dialogando com Mattos, Graham
diz que o Estado Imperial não foi o domínio de “um grupo específico de fazendeiros de
café, dos arredores do Rio de Janeiro”. Para Graham, o poder vinha de “proprietários e
escravocratas espalhados por todo o Brasil, em fazendas e estâncias de gado, de onde
eles dominavam a política local, tomavam a iniciativa de construir um estado para
controlar a massa informe dos pobres e dos escravos” (GRAHAM, 2001, p. 35).
Jose Murilo de Carvalho concentra sua crítica ao trabalho de Graham na
utilização pouco consistente do conceito de clientelelismo. Para este autor, o
clientelismo político implica troca entre atores de poder desigual, no caso do Brasil, os
senhores rurais sendo clientela do Estado. Mas a visão de Graham indica o contrário, o
Estado como clientela dos proprietários de terras. Inclusive esta crítica também é
estendida a Mattos. No caso de Graham, Carvalho aponta que não há uma justificativa a
essa inversão do conceito (CARVALHO, 1997). Outra crítica se refere à generalização
das teses de Graham para todo o Brasil. Jonas Moreira Vargas, estudando as elites
7
Ver, por exemplo, SOIHET; BICALHO; GOUVÊA, 2005.

8
políticas do Rio Grande do Sul para a segunda metade do século XIX, chama a atenção
para o fato de as práticas clientelistas detectadas por Graham serem generalizadas para
todo o Brasil sem levar em conta peculiaridades regionais e os atributos diferenciados
dos lideres locais de cada província (VARGAS, 2007, p. 18).

As elites caso à caso.


Recentemente a teoria de elites tem avançado no sentido de entender que uma
condição básica das análises da elite é que esta possui um caráter basicamente
posicional, tanto de poder quanto de status. Além do mais, tem que se insistir que a elite
é um grupo; apesar de estar composta de indivíduos, ela se comporta como grupo. 8 Esta
condição de grupo faz com que a elite acabe agindo como um “status” (no sentido de
posição), e não como processo, no sentido de que não se é elite, e sim que se está elite.
Este ponto é fundamental nesta teoria, exposto no conceito de circulação da elite.
Este conceito é importante para se perceber a renovação de elites em um dado contexto.
Para minha pesquisa essa constatação é muito relevante, pois trato de uma elite
(configurada enquanto paulista), que ascende no século XIX, diferenciada de uma elite
colonial.
Trabalhos recentes, partindo de estudos regionais, procuram matizar o conceito
de elites políticas combinando uma análise empírica com estudo de caso, permitindo
uma maior compreensão do papel de elites a nível regional e nacional. Procurando
entender a formação do Estado Imperial brasileiro, Maria Fernanda Vieira Martins
empreende um estudo sobre o Conselho de Estado, uma instância privilegiada de
relacionamento entre o Estado e as elites. Sua abordagem leva em consideração o debate
atual acerca de elites políticas, através da lupa das redes e de sua prática institucional.
Com relação à historiografia brasileira que circunscrevi acima, Martins aponta a
desconsideração pela complexidade das relações e pelo caráter multifacetado de
categorias como burocratas e classe senhorial, autoridade central e provincial, Estado e
poderes locais, conservadores e liberais. Para a autora, a análise do processo de acesso
ao aparelho de estado,
“deve ter em vista não apenas as características intrínsecas do
grupo, ligadas à homogeneidade da formação educacional e ocupação
funcional, fundamentais para entender sua coesão interna, mas

8
CAROSA, 2007, p. 83, diz: “el término elite se refiere a una pluralidad de seres humanos, nunca solo a
uno o dos, es decir, la élite (…) es siempre un grupo de individuos, pero los individuos (en cuanto tal
individualidad) no son la élite, sino que forman parte de ella.”

9
também sua vinculação a um projeto nacional estatal, de caráter
público, em detrimento dos interesses das diferentes facções da elite,
às quais, de uma forma ou de outra, os membros da burocracia e
os políticos pertenciam originalmente” (MARTINS, 2007, p. 34)
Desta maneira, a identificação da atuação de uma elite à frente do Conselho de
Estado, permitiu a autora desdobrar sua percepção à ação desta na estrutura político-
administrativa e suas relações de poder com elites provinciais e locais que,
conjuntamente, colaboraram para fundamentar um modelo de estado específico, posto
em prática pela elite política imperial.
No contexto de Minas Gerais, Marcos Ferreira Andrade analisa Campanha da
Princesa e sua elite local no século XIX. Para perceber a formação, a inserção e as
articulações das elites locais no Estado Imperial, o autor lança mão do estudo de caso da
família Junqueira. A partir deste caso, Andrade percebe estratégias familiares,
econômicas e políticas que contribuíram para a consolidação desta família como elite no
Brasil Império. Seguindo-se a essa consolidação, foi possível acessar cargos políticos à
nível nacional. Assim, pode-se tecer hipóteses acerca do papel decisivo ocupado pelas
elites regionais na construção do Estado, principalmente ao se pensar nas relações entre
municipalidades, províncias e Estado Imperial (ANDRADE, 2008).
Nesta mesma linha trabalhou Miriam Dolhnikoff, apontando o papel decisivo
das elites provinciais na construção do novo Estado. Segundo a autora, foi a atividade
política, tanto no âmbito provincial, quanto no governo central, que constituiu as elites
provinciais em elites políticas. Uma das teses centrais em “O pacto imperial” é a de que
a consolidação da monarquia brasileira não abriu mão do poder e da autonomia das
elites provinciais, mas foi na negociação da elite política imperial com as elites
provinciais que a monarquia pôde firmar-se como modelo de governo da nação
independente.
Na construção de sua argumentação percebe-se que a coluna de sustentação de
suas idéias é a noção de uma elite paulista. A autora não chega a conceituar o que ela
entende por este termo, mas aponta uma série de elementos ao longo de sua obra para
caracterizá-lo. Os políticos paulistas, como demonstra a autora, ocupavam posições de
destaque na estrutura administrativa, como regentes, ministros, deputados e senadores.
Eram homogêneos ideologicamente e, apesar de diferenças pessoais, conseguiam
manter uma coerência no pensamento político, que tinha como base o liberalismo. A
composição desta elite liberal paulista era de grandes proprietários de terras que

10
cultivavam cana-de-açúcar ou criavam gado. Em discursos públicos desta elite vemos
muitas vezes a reiteração de um tipo paulista, quase simplório, buscando manter firme
os laços com a sua província (DOLHNIKOFF, 2005, p. 28-35).
A percepção da participação das elites provinciais na construção do Estado é
uma renovação na historiografia sobre elites no Brasil do século XIX. Uma percepção
ausente em autores como Faoro, Carvalho e Mattos, o que contribuiu para uma visão
parcial da construção do Estado brasileiro nestes autores. Sem entrar em discussões
teóricas acerca das elites, Dolhnikoff emprega um trabalho empírico 9, aliado à
interpretação do discurso e do que ocorria na prática, que a conduz a alguns dos
principais pontos criticados na teoria elitista. A questão da natureza, da coesão interna e
da negociação das elites locais paulistas com o centro do poder imperial, flexiona a
análise da teoria das elites e lança novos elementos para sua compreensão.
Até aqui, tem se tentado apontar as fraquezas e as possibilidades de se
empreender uma análise levando em consideração a teoria das elites. O que proponho,
avançando nas discussões de Dolhnikoff, é pensar essa elite como política e, ao mesmo
tempo, como elite econômica. Segundo a hipótese que se quer lançar nesta
comunicação, esta seria a especificidade da elite paulista. Para o contexto da Província
de São Paulo, na primeira metade do século XIX, a formação das elites que chegaram
ao poder político, como deputados provinciais e gerais, presidentes de províncias,
regentes e senadores, perpassava quase que necessariamente o acúmulo econômico.
É desta forma que podemos voltar ao caso citado no inicio desta comunicação. O
documento oficial, enviado à Câmara de São Paulo no ano de 1842, nos mostra a
posição de elite econômica que os indivíduos relatados ocupavam na província, ao
chamá-los de “maiores capitalistas”. Dolhnikoff indicou como a elite paulista possuía
raízes na agricultura ou no negócio de animais. Eram homens como João da Silva
Machado, Rafael Tobias de Aguiar, Diogo Antonio Feijó, Nicolau Pereira de Campos
Vergueiro e Francisco de Paula Souza e Melo que, a partir da conjugação de suas
atividades econômica e política, formavam a elite política paulista no Império. A
Revolução Liberal que ocorreu em São Paulo no ano de 1842 foi resultado de um
processo de circulação das elites paulistas que vinha ocorrendo na primeira metade do
século XIX. A utilização da teoria das elites para compreender este processo se mostra
profícuo, pois articula a percepção de uma elite específica: sua formação, sua

9
A autora utiliza fontes como: Anais da Assembléia Legislativa, da Câmara dos Deputados e do Senado.

11
manutenção no poder, sua substituição e, não menos importante, o seu caráter
multifacetado.

Fontes:
AESP. Ofícios diversos. São Paulo, 21/03/1842.

Bibliografia:

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