Você está na página 1de 17

Trono de Sangue

01
As ondas açoitavam a madeira do barco. Na parte superior, no convés, gritos
de ordens e gemidos, junto do chiado do chicote ao ar, preenchiam os
ouvidos das 13 crianças que estavam acorrentada a grilhões e maltrapilhas.
O compartimento de carga cheirava a mofo e urina. Carga. Eram isso o que
tinham se tornado. Uma simples e descartável carga. As escotilhas antes
abertas para a entrada de ar, agora jogavam água gelada nas crianças, que
se encolhiam umas nas outras para buscar um pouco de calor. Mais ao fundo
do compartimento, com a cabeça abaixada, tremendo raivosamente contra a
madeira gelada, se encontrava um menino, os olhos outrora brilhantes de cor
avelã agora estavam opacos e fundos devido as três noites mal dormidas.
Não tinha nome, pois nunca alguém chegou mesmo a lhe dar um, não tinha
pai nem mãe e muito menos um lar. Fora vendido assim como os outros 12
que ele conhecia. Mais uma vez uma grande quantidade de água entrou
pelas escotilhas sendo jogada em seu rosto. O convés ainda era uma bagunça
e as crianças, todas entre 5 e 8 anos, se mantiveram devidamente quietas.
Mesmo tremendo, mesmo com sono e com fome... todas estavam
terrivelmente quietas como que se já soubessem o que lhes era aguardado no
outro lado do oceano. O garoto levantou a cabeça olhando ao redor. Já
decorará aquele lugar assim como o turno de cada escravo responsável por
levar-lhes comida e água, a “refeição”, se pão duro com água encardida
possa ser chamado assim, já foram entregues e agora não restava nada a se
fazer a não ser se aninhar com os outros para dormir. Ele se impressionaria se
metade não morresse até os Deuses sabem onde estivessem indo. Conforme
o frio foi se fazendo mais intenso, as crianças decidiram se agrupar mais
ainda. Todas em busca de calor, com esse pensamento e com a noite subindo
cada vez mais adormeceram.

~~~~~

Mais três dias no mar, foram o que ele contou. Duas crianças morreram e
foram jogadas à água para alguns dos monstros que moram lá pudessem
tem o que comer. Na quarta noite ele sentiu uma forte pressão no corpo,
como se estivessem passando por um tipo de barreira invisível e foi aí que
entendeu para onde estavam indo. Para além do mar existia uma terra onde
monstros de 200 anos residiam e controlavam tudo e todos, capazes de fazer
magia e de matar um humano com um pequeno pensamento. Pelo visto as
histórias não eram bem histórias. Ele junto do restante da carga foi retirado
do compartimento. Carga, novamente essa palavra para se referirem aos
pequenos seres humanos.

-Como estão? – uma voz grave perguntou, ele levantou os olhos e tentou
esticar um pouco o pescoço para ver quem era, mas esse pequeno gesto
resultou no estalar do chicote em suas costas, o garoto sentiu o sangue lhe
sujar as costas e o ardor se espalhar pela pele, o sangue grudando a blusa
suja na mesma. Todos os outros se encolheram e trouxeram os pulsos com os
pesados grilhões para perto do peito. O menino segurou as lágrimas não
deixariam que eles vissem sua dor, mesmo que tivesse apenas 8 anos.

-Duas morrem a duas noites. Devido à pressão da barreira, mas isso significa
que não estavam aptas para o trabalho. – Um dos homens que apareceu
naquela manhã dentro do compartimento se mantinha a frente, usava uma
roupa estranha como se fosse um pirata e possuía uma espada longa e fina
na cintura.

-Mas alguma perto da morte? Se sim, podemos resolver isso agora. – O


homem com a espada se virou para as crianças, sujas e maltrapilhas,
avaliando seu estado. Ele viu o homem se aproximando cada vez mais, e
fechou os olhos quando viu a longa espada fora da bainha, esperando pelo
golpe. Mas ele não veio. O menino sentiu um liquido quente em seu rosto e
em seu peito e abrindo os olhos devagar viu a imagem que para sempre
estaria em sua memória, mesmo que envelhecesse. A menina na sua frente,
Lotte como os outros a chamavam e pediam para que parece que chorar ou
que chorasse em silêncio, teve sua cabeça decepada e o líquido que ele sentiu
fora o sangue da garota. Levantou a cabeça com os olhos vítreos que se
arregalaram ao olhar para o outro homem da voz grave. Ele era verde e
possuía orelhas meio pontudas e possuía os dois caninos inferiores para fora
da linha da boca. Os olhos eram de uma negritude que poderia se assemelhar
ao piche. Aquilo não era um homem e o garoto não fazia ideia do que ele
seria. O homem com a espada, já guardada, fez sinal para outros dois virem e
retirarem o corpo de Lotte dos grilhões.

-Jogue-a por ai! Os ratos se encarreguem do serviço. – O homem verde disse


com desdém e se voltou ao cara da espada. – Somente esses então?! Eu
assumo daqui agora.

O pirata apenas passou a corrente para a mão do outro e assentiu fazendo


uma leve reverencia quando um saco gordo e pesado caiu em seus braços.
Virou as costas e voltou para dentro da cabine que o menino pensou ser a do
capitão. O homem verde puxou as correntes e todos os restantes foram
obrigados a se mexerem com o tranco. Assim saíram do barco e foram para o
porto. Todos estavam em silêncio, com medo demais de terem o mesmo
destino de Lotte, mas o garoto estava era com medo do que viria a seguir e
mesmo que estivesse atordoado e estático com a morte fria em sua frente ele
só conseguia pensar em como Lotte e as outras duas crianças tiveram sorte
de se livrar de um futuro pior.
02

-Vamos Iori! Levante-se!

Iori estava es tirado ao chão, após Paco, vulgo seu braço direito e melhor
amigo, lhe dar uma rasteira e o deixar ali. O jovem humano grunhiu de raiva
e se pós de pé com um único impulso. Paco riu e ergueu o escudo novamente
se preparando para o golpe da espada de madeira.

-Se isso fosse realmente uma batalha você já estaria morto em cinco
segundos, irmão! - O meio Orc lhe disse sorrindo maliciosamente girando a
espada lentamente na mão. Iori reparou nesse detalhe, Paco queria que o
amigo caísse em sua armadilha, o humano repetiu o gesto.

-E você estaria morto em três irmão! – disse e se lançou encima do outro, o


baque oco de madeira contra madeira se foi ao ar e logo os dois estavam
novamente reproduzindo a série de movimentos que lhes foram ensinados.

Golpear. Bloquear. E golpear novamente.

O suor escorria pelas testas e pelos peitos, ambos no ringue apenas de calças,
evitavam ao máximo o roxo que ficaria se fossem acertados. Iori tentava ao
máximo manter sua mente no duelo amigável, mas tudo parecia voltar à tona
nessa última semana, balançou a cabeça um pouco após se afastar de Paco
que estava avançando novamente. Bloqueou o golpe e tentou acertar a mão
do outro com o cabo da espada, Paco desviou o pulso e empurrou o peito do
amigo com o escudo. Iori caiu ao chão com um baque. O humano gemeu e
largou os equipamentos abrindo os braços e as pernas no chão do ringue de
luta. Paco largou os equipamentos também e apoiou as mãos na cintura
levantando o rosto ao sol e tentando normalizar a respiração.

-Okay... o que está te atrapalhando? – perguntou o meio orc depois de


estender a mão para o amigo, o levantando do chão. – Já tem uma semana
que você está assim, será que devo avisar a senhora Gashin que o filho
precioso precisa de um tónico de besouro preto?

-O que? Não! – Iori exclamou depois de agradecer pela ajuda. Levou a mão
aos cabelos suados e olhou para o céu. – Não tem nada que está me
atrapalhando, apenas estou cansado.

-A qual é Iori. Te conheço desde os meus onze anos. Sei que tem algo errado.
– Iori olhou para o amigo, os olhos avelã se escureceram, mas logo a
escuridão foi embora substituída por um brilho brincalhão. Paco entendeu na
mesma hora. – é por causa da convocação ao palácio?

O humano suspirou e se agachou para pegar o equipamento afim de guarda-


lo. E sem a mínima pressa se aproximou da pequena edícula onde ficavam os
equipamentos. Paco o ficou observando, mais precisamente a cicatriz um
pouco acima da omoplata, uma linha lateral que quando feita fora funda para
deixar aquela marca. Iori sabia para onde o amigo estava olhando, ele não
possuía vergonha da cicatriz, apesar de ser a única em seu corpo, ele apenas
podia agradecer de aquela ser o único lembrete de um futuro -agora
impossível- de dor e sofrimento

-Devo minha vida a Manoj e Jedrek- ele disse baixinho com a cabeça baixa
segundando um dos arcos da edícula. – E fim de papo. – Iori continuou
realocando as espadas de madeira e observando as outras lâminas, se
aproximou de uma espada longa que reluzia ao sol da tarde, refletindo um
pouco de seu rosto respirou fundo. E saco duas espadas longas se virando
para Paco, que tinha acabado de dar um passo em sua direção. – Vamos jogar
como adultos agora, chega de madeira.

Paco endireitou a coluna e sorriu maliciosamente para o rapaz, fez uma curta
reverência. Iori o fitou com um ar de superioridade, e ambos caíram na
risada. O humano jogou a espada para o meio orc, que a pegou com
facilidade.

-Como quiser vossa graça! – assumindo posição e os dois voltaram a se


encontrar face a face com as lâminas se atravessando. Iori preferia assim, e
era muito melhor do que falar sobre o que estava se passando dentro de sua
mente.

~~~~~

Os rapazes pararam por volta do final do dia. Ambos muito cansados e


famintos, mas sempre se provocando sobre quem derrubara quem e quem
tinha se machucado. Naquela noite Iori voltada com um corte superficial na
bochecha e um roxo nas costelas. Já Paco, ostentava o olho roxo, pois foi a
única coisa que Iori conseguiu fazer contra ele. Ambos entraram na cozinha
da mansão ainda se provocando. O cheiro de ensopado e pão os atingiu
fazendo os estômagos doerem.

-Se você falara novamente sobre como se esquivou do meu chute, vou deixar
seu outro olho roxo! – o humano revelou revirando os olhos e dando uma
curta risada.

-Desculpe-me por lhe causar incomodo vossa graça! – Iori olhou para o amigo
que exibia um sorriso provocativo, Iori agitou a mão que segurava sua camisa
e acertou o pano soado no rosto do meio orc. – Ora seu...

-Meninos já deu! – uma fêmea feérica surgiu no portal ao lado da porta que
levava a sala de jantar particular, a pele branca reluzia no vestido azul de
seda e chiffon, a transformando em um anjo. Os cabelos negros estavam
trançados e os olhos dourados brilhavam como ouro recém derretido, uma
única linha de expressão se encontrava no rosto imortal, bem no meio da
testa que se franziu quando viu o corte na bochecha do filho. – Deixem para
resolver isso amanhã. Está ferido Iori?

-Desculpe-me senhora Gashin. – Paco se endireitou e levou a mão virada a


testa, junto de uma reverência.

-Deixe disso Paco! Sabe que pode me chamar pelo nome, você é da família –
A fêmea o olhou docemente. – Aposto que vocês devem estar famintos, vão
para a sala, os outros já estão lá.

-Pode deixar mãe! – Iori sorriu para ela, que se aproximou e afagou o rosto
soado de forma carinhosa e aproveitou para averiguar o ferimento superficial
do rosto, mas logo se virou para perguntar a uma das cozinheiras quanto
tempo levaria para o cozido de porco selvagem ficasse pronto.
Paco tocou levemente o braço do amigo e ambos vestiram novamente suas
camisas, já que agora estariam na frente de duas damas não era certo ficar
seminu. Caminhando um pouco atrás de Iori, paco tentava regularizar a
respiração que tinha se tornado um pouco irregular.

-Se eu não soubesse o motivo para esse seu pequeno colapso de ansiedade,
diria que você meu amigo, estaria morrendo. – Iori provocou olhando por
cima do ombro. Paco fechou a cara e fez uma pequena careta.

-Cale a boca. – Foi a única coisa que disse antes de ambos entrarem na sala
de jantar particular da família Gashin. – Vossa graça! – paco levou a mão a
testa e estava próximo a se curvar quando Jedrek Gashin fez que não com a
cabeça. O macho feérico estava relaxado em sua cadeira, na espera dos dois
rapazes, a túnica branca com as mangas verdes esbarrava levemente no
prato, ainda intocado. Os cabelos dourados, se possível até um pouco maior
do que o da esposa, estavam presos para trás.

-Paco! Já dissemos que é da família e que não precisa de formalidade. – Disse


o duque. E apontou para a segunda cadeira vazia a seu lado, de frente a sua
filha mais velha Etta, que já se encontrava com as bochechas rosadas. –
Vamos sente-se Orlandra foi perguntar sobre o cozido de porco selvagem.
Seu favorito se não me engano.
O meio orc sorriu abertamente e logo abaixou a mão. Olhou para Iori que o
observava também com um grande sorriso no rosto. Paco considerava os
Gashin mais como sua família do que sua família de verdade. Iori seguiu o
amigo e se aproximou do pai.

-Pai – disse o humano se ajoelhando em um joelho ao lado da cadeira do


duque, pegou a mão branca como papel e a levou para o peito.

-Filho – Jedrek nunca questionou o gesto e deixa o garoto fazer porque sabia
que ele se sentiria melhor assim. – Posso perguntar como foi o treino hoje?
Ou devo presumir que paco levou o pior?

Ambos riram. Iori se levantou e se sentou na cadeira ao lado de Paco, perto


do duque. A mesa já estava posta. Pães, cozidos, tortas de carne, ensopados
e uma grande e magnifica torta de canela com banana decorava o centro da
grande mesa da sala de jantar particular. Iori pegou a taça de cristal e se
serviu com suco de amoras, colhidas por ele e por Etta naquela manhã.

-Gostaria de dizer que ganhei. Mas fora um empate – Iori disse e se virou
para Paco com a jarra de suco ainda em mãos, um gesto mudo para o amigo
estender-lhe a taça. – Se bem que Paco está gostando bastante do olho roxo.

-Fêmeas acham mais atraentes! – o amigo disse após Iori preencher seu
cálice, o levando a boca e piscando para o duque, e disfarçadamente para a
mulher em sua frente. O duque gargalhou, o rosto imortal banhado em
felicidade. Felicidade essa que emanava a todos do recinto.

-Só acho que vocês deveriam diminuir um pouco a força com que treinam. –
Orlandra Gashin retornou ao cômodo com uma travessa flutuante atrás de si.
– Sei que vocês jovem são doidos por cicatrizes de batalhas. Mas que tal fazer
em uma de verdade?

-Relaxe querida! São apenas garotos querendo extravasar. Nunca iriam bater
para se ferir de verdade. – Jedrek pegou na mão da esposa assim que ela
assumiu seu lugar ao lado da filha, no outro lado do duque. – Como sei que
devem estar famintos podemos deixar as conversas para depois.

Todos assentiram e curvaram suas cabeças em um breve agradecimento aos


deuses pela comida e pela reunião de todos naquele dia. Paco atacou o
vasilhame com ensopado de porco selvagem assim que a senhora Gashin o
pousou na mesa. Iori se serviu de torta de carne com legumes, estava mais
ansioso para a torta de canela e banana. Depois de um tempo comendo em
silêncio, Iori queria apenas chutar o amigo para que parasse de dar investidas
nem um pouco disfarçadas em sua irmã mais velha. Após a refeição, e os
pratos sumirem com o estalar de dedos do mestre cozinheiro da mansão, a
torta fora enfim fatiada e servida.

-Ok. O que precisamos saber? – Etta perguntou levando o garfo com torta a
boca. O duque piscou com um ar de inocência.

-Concordo com Etta – Iori disse e Paco balançou a cabeça apoiando o amigo.
A duquesa riu e apoiou a mão novamente encima da do marido.

-Está tão na cara que temos algo a dizer? – Jedrek perguntou divertido, olhou
para o rosto da esposa que sorria calma.

-Muito. – Etta riu – O jantar com nossos pratos preferidos já eram um


indicativo. Mas o que denunciou foi a torta. Sempre que tem notícias, sejam
boas ou ruins, fazem a torta. “uma forma de adocicar uma mudança” – Ela
deu para tomar um gole do cálice de água. – Foi a senhora que me ensinou
mãe.

-Eu sei querida. – A fêmea riu, assim como todos. – Bom já que entenderam
isso como deveria ser entendido. Passo a palavra a você querido.

-Hmm... – o duque grunhiu terminando de engolir o pedaço de torta, logo


depois respirou fundo. – Recebi outra mensagem do rei. – Os três mais
jovens pararam de comer e focaram sua atenção no patriarca. – Ele explicou
o porque da convocação ao palácio, não será nada demais apenas uma
comemoração e todos devemos ir. Seu pai já está lá Paco, fazendo a vigília.
-Ah sim. Era de se esperar. – O meio orc disse. – Se não for incomodo Du...
Jedrek, comemoração a que?

-Ah sim. – Disse colocando o cálice de água a mesa. – A princesa Nissía


regressou ao lar.

~~~~~

Princesa Nissía regressou ao lar.

Iori repetia a frase de seu pai já tinha muitas horas. Quando a notícia veio a
tona Orlandra e Etta ficaram tão felizes que já estavam conversando entre si
sobre qual tecido deveriam comprar para fazer um novo vestido, afinal
teriam ainda uma semana para prepararem a ida ao castelo. Paco apenas
enfiou mais torta na boca e soltou um “faz tempo que não vejo a princesa”.
Iori apenas continuou calado. Nissía nunca foi um problema para o humano,
apesar de a mesma nunca reparar na existência dele. Ambos nem tiveram
uma verdadeira convivência quando ele estava no castelo quando criança. Ela
apenas o viu duas vezes e falou que nada de ruim iria acontecer a ele, e
depois de uma semana de viajem o duque apareceu e o levou. Então não
entendia o porquê dela ter ido embora por tanto tempo, e não entendia mais
ainda o porquê de uma comemoração de retorno tão grande para a princesa
herdeira.
Naquela noite Iori foi dormir pensando na ida ao castelo e em pouco tempo
já estava perdido no mundo dos sonhos.

~~~~~

O homem verde puxava as correntes com muita mais força que o cara da
espada. A pele ao redor do pulso do menino já estava esfolada. Andaram por
uma rua meio movimentada, que se enchia de barracas com pessoas
estranhas. O cheiro de tempero impregnou o ar, noz moscada, curry, pimenta
e canela. Se ele não estivesse preso a grilhões teria aproveitado o cheiro
delicioso que vinha de uma das barracas de comida, o estomago roncando
concordava ainda mais seu pensamento.
-Vamos! – o homem verde gritou puxando a corrente com mais força,
fazendo a primeira da fila tropeçar e cair de joelhos. Ninguém ao redor se
preocupou em olhar, alheios ao redor e cuidando de seu próprio umbigo. –
Levante sua estupida! – O som carne contra carne foi ouvido. O homem verde
acertou o rosto da garota, que agora possuía um corte no lábio inferior, e
voltou a puxar as correntes. Fazendo as outras crianças tropeçarem e
voltarem a andar.

Ele os levou para uma espécie de pousada, onde foram todos despidos e
limpos com água gelada e uma bucha de palha áspera, que assim que entrou
em contato com a pele machucada das costas do menino fez com que
sangrasse mais. A mulher que o limpava apenas esfregou o corte mais forte.
Cada porta e janela do quarto da “pousada” possuía um ser estranhado
armado até os dentes, impossibilitando qualquer tentativa de fuga, essas que
já estavam escassas devido a corrente e aos grilhões nos pulsos e tornozelos.
Após o banho gelado, todos foram vestidos com uma espécie de camisola
bege surrada e novamente o homem verde os puxava.

Foram levados para uma espécie de palco, e por onde o homem verde os
puxavam a multidão abria caminho, sussurrando preços e tratamentos para
a “mercadoria” que o barco grande trouxe ao cais naquela manhã.
Mercadoria. O garoto se lembrou novamente que aquele sim era um péssimo
destino. O homem verde os posicionou de frente para a multidão, no meio de
uma praça lotada. Todos em uma linha reta onde poderiam ser avaliados.
Mais a frente uma mesinha com um martelo. Aquilo era um leilão.

A menina da ponta foi puxada a frente. E girada de um lado ao outro para ser
avaliada. A boca cortada estava inchada e os olhos arregalados diante
daquele povo estranho, com chifres, assas e alguns com olhos demais.

-Fêmea de 7 anos. Pele clara, cabelos lisos. Quando crescer um pouco mais
pode ser reprodutora. Mãos pequenas para trabalho doméstico leve. – Uma
mulher com pernas finas e escuras anotava em um papel os olhos eram
inteiramente enegrecidos, sem globo ocular aparente. E nas costas uma
grande asa em frangalhos. – Começaremos com 20 moedas de ouro.
Uma coisa que parecia um homem velho e gordo, que possuía dois chifres na
cabeça e caninos sobressalentes como o homem verde, levantou a mão.

-20 dou-lhe uma... 20 dou – A mulher da asa quebrada começou a falar, mas
foi interrompida por outra mão levantada.

-40 moedas de ouro. – A menina que estava um passo a frente do grupo de


crianças começou a tremer, os olhos se arregalando mais que o normal, a
pele empalidecendo.

-40 dou-lhe u – novamente uma interrupção. E assim persistiu até a


garotinha atingir o preço de 100 moedas de ouro. O homem verde se
aproximou com um machado, a garota começou a chorar e implorar pela
vida, mas ele ignorou e apenas desceu o machado na corrente que a
interligava com os outros, logo depois foi arrastada pelos braços até o sátiro
com cara de pervertido que a tinha comprado. Ela se debateu o caminho
inteirou, mas isso só resultou em um puxar de cabelos do homem que a
comprou e uma risada maliciosa do mesmo. O garoto estagnou no chão, uma
tremedeira sem fim percorreu até o seu último fio de cabelo.

E assim aconteceu com mais duas crianças, até chegar na vez dele. O
homem verde se aproximou o machado em uma mão e a outra grudada em
seu braço fino. Ele foi arrastado até o meio, apenas alguns passos iguais aos
outros. Girado de um lado ao outro.

-Macho de oito anos. Pele marrom claro, cabelos meio enrolados, ágil pelo
tamanho e quando crescer pode ser útil no trabalho braçal. E pelo corte nas
costas aguenta a chibatadas. – A mulher inseto, como ele a tinha apelidado o
olhou de esguelha e voltou a escrever no papel. – 80 moedas de ouro.

Ele respirou fundo, o corpo tremendo tanto que fazia com que os dentes
batessem uns nos outros. Mas sempre quieto. E quieto ele esperou pelo
primeiro lance, mas o que recebeu foram gritos e mais gritos.
-A GUARDA DE AMMIEL ESTÁ COM O REI! – um homem com um chifre no
meio da testa começou a gritar. -CORRAM.

Mais gritos foram ouvidos e o homem verde começou a puxa-lo novamente a


fila, a multidão começou a correr e se dispersar entre as várias barracas e
comerciantes.

-Vamos criança imprestável! – o homem verde gritou para ele e tentou


novamente puxar suas correntes, mas o garoto se afastou de suas mãos. – Eu
vou te matar se você se afastar novamente.

O garoto arregalou os olhos e ficou parado novamente, ao fundo ele


conseguia ouvir mais gritos e cascos de cavalos se aproximando. O homem
verde o pegou pelo braço e o puxou consigo fazendo as outras crianças
tropeçarem e caíram de joelhos. O garoto olhou para cima e o viu olhando a
cada segundo para os lados. Os cabelos cor de palha antes arrumados para
trás agora despontavam na testa verde e se grudavam ali mesmo devido ao
suor, os lábios dele tremiam e era bem visível a raiva e o medo em seus olhos.

-Vamos inúteis, levantem ou morreram aqui e agora! – o machado pesado na


outra mão fez os joelhos de todas as crianças tremerem e duas ou três
começaram a chorar. Ele inflou o peito e os olhos cor de piche se arregalaram
um pouco mais com a outra mão apertou ainda mais o braço do menino,
levantou o machado e estava perto de cortar a cabeça da garota que chorava
na parte de trás da fila, mas uma flecha lhe atravessou o ante braço fazendo-
o soltar o machado no chão.

-Aklidion! Solte-os e se entregue. – O garoto tirou os olhos da flecha


atravessada, o sangue do homem verde lhe manchou os cabelos e a testa. Ao
redor da praça vários cavalos, com cavaleiros de armaduras brilhantes
armados de arcos e espadas, outros soldados vinham a pé e na frente um
homem dos cabelos ruivos como fogo, branco como neve e com orelhas
pontudas segurava uma espada dourada que reluzia a luz do sol. Em sua
cabeça uma coroa dourada desbotada repousava. – Você é inimigo da coroa
de Ammiel, entregue as crianças humanas e receba sua condenação.
O homem verde grunhiu de raiva, soltou o braço do garoto e puxou a flecha
do ante braço, para logo em seguida a levou ao pescoço do menino. Ele ainda
petrificado no lugar sentiu a ponta molhada de metal na pele, o homem
verde o segurava com um braço ao redor do tórax o mantendo como um
escudo, pronto para receber as flechadas em seu lugar. O pequeno coração
começou a bombear mais rápido. Aquele seria seu fim e ele não sabia se
estava grato ou se implorava por mais um pouco de vida.

~~~~~

-Você está com uma cara horrível!

-Obrigado por me falar o obvio Etta! – a manhã seguinte tinha chegado, o


senhor e a senhora Gashin tinham saído antes mesmo dos três jovens
acordarem. Iori estava já cozinha junto de Etta, ambos dividiam um enorme
pedaço de torta de amoras que tinha sobrado do jantar. Paco já tinha
acordado a um tempo considerável e estava no estabulo cuidando de Neruk,
seu cavalo.

-Não tem dormido bem? – Etta sempre fora reservada. E desde que Iori
chegou à mansão Gashin ela foi a primeira que o menino correu, com medo
dos moradores e dos criados da propriedade. Etta o acolheu com um abraço
e lhe disse que ficaria tudo bem que ele não teria que ter medo e que
ninguém o iria machucar.

-Nem um pouco. Minha cabeça anda muito cheia ultimamente. – Iori


repousou o garfo ao lado do prato perdendo a vontade de continuar
comendo, Etta imitou seu gesto e apoiou a mão na lateral do rosto do irmão.

-Aquilo já passou Iori. Está no passado. – Ele levantou os olhos avelã para
encarar os olhos verdes da irmã. Iori sorriu levou a mão ao rosto da irmã
onde deixou uma caricia leve, a mulher sorriu e o puxou para um abraço. –
Agora está tudo bem. Nada irá te machucar meu irmão.

-Eu sei. Obrigado por me confortar. – Ambos se afastaram e se encararam


sorrindo.
-É... estou atrapalhando?! – Paco surgiu na entrada de serviço segurando
uma caixa de madeira cheia de maçãs, estava sem camisa e a pele marrom
estava molhada, provavelmente estava dando banho em Neruk e alguém
pediu sua ajuda. Iori olhou para o amigo e quase revirou os olhos, Etta por
outro lado apenas virou a cabeça e corou para o meio orc, que deu um
grande sorriso quando percebeu essa ação.

-Não. Estávamos apenas conversando. Ainda está trabalhando nos estábulos?


– o meio orc entrou na cozinha e deixou a caixa de madeira encima de uma
das mesas. Pegou a camisa que estava pendurada na cintura e a jogou no
ombro.

-Sim. Estou terminando de lavar Aléia. Quero levar ela e Neruk para o pasto
ao norte, lá está batendo mais sol e ventando mais. Iram secar rapidinho. –
Ele disse se aproximando mais dos dois irmãos. Pegou uma das mãos de Etta
e deixou um leve selar no topo da mesma. -Está muito bonita essa manhã
Etta!

A mulher corou e sorriu ainda mais para o meio orc. Iori fez um gesto de que
ia vomitar. E recebeu um soco no ombro de Paco.

-Bem, já que vai para o pasto norte irei com você. Estava mesmo querendo
cavalgar hoje. – o humano disse se colocando no meio dos dois.

-Cavalgar? – Paco riu. – Vamos andando com eles. Estão molhados. A não ser
que queria molhar a bunda.

-Vamos logo cabeça de squonk! – Paco o olhou mortalmente e se virou para


Etta depositando um beijo casto em sua bochecha, mas logo saiu correndo
atrás de Iori que lhe deu um tapa na nuca e saiu correndo também pela saída
da cozinha.

~~~~~
O calor do sol fez com que a grama se tornasse um grande cobertor verde,
Aléia e Neruk estavam deitados perto do lago hidra.

Você também pode gostar