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01
As ondas açoitavam a madeira do barco. Na parte superior, no convés, gritos
de ordens e gemidos, junto do chiado do chicote ao ar, preenchiam os
ouvidos das 13 crianças que estavam acorrentada a grilhões e maltrapilhas.
O compartimento de carga cheirava a mofo e urina. Carga. Eram isso o que
tinham se tornado. Uma simples e descartável carga. As escotilhas antes
abertas para a entrada de ar, agora jogavam água gelada nas crianças, que
se encolhiam umas nas outras para buscar um pouco de calor. Mais ao fundo
do compartimento, com a cabeça abaixada, tremendo raivosamente contra a
madeira gelada, se encontrava um menino, os olhos outrora brilhantes de cor
avelã agora estavam opacos e fundos devido as três noites mal dormidas.
Não tinha nome, pois nunca alguém chegou mesmo a lhe dar um, não tinha
pai nem mãe e muito menos um lar. Fora vendido assim como os outros 12
que ele conhecia. Mais uma vez uma grande quantidade de água entrou
pelas escotilhas sendo jogada em seu rosto. O convés ainda era uma bagunça
e as crianças, todas entre 5 e 8 anos, se mantiveram devidamente quietas.
Mesmo tremendo, mesmo com sono e com fome... todas estavam
terrivelmente quietas como que se já soubessem o que lhes era aguardado no
outro lado do oceano. O garoto levantou a cabeça olhando ao redor. Já
decorará aquele lugar assim como o turno de cada escravo responsável por
levar-lhes comida e água, a “refeição”, se pão duro com água encardida
possa ser chamado assim, já foram entregues e agora não restava nada a se
fazer a não ser se aninhar com os outros para dormir. Ele se impressionaria se
metade não morresse até os Deuses sabem onde estivessem indo. Conforme
o frio foi se fazendo mais intenso, as crianças decidiram se agrupar mais
ainda. Todas em busca de calor, com esse pensamento e com a noite subindo
cada vez mais adormeceram.
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Mais três dias no mar, foram o que ele contou. Duas crianças morreram e
foram jogadas à água para alguns dos monstros que moram lá pudessem
tem o que comer. Na quarta noite ele sentiu uma forte pressão no corpo,
como se estivessem passando por um tipo de barreira invisível e foi aí que
entendeu para onde estavam indo. Para além do mar existia uma terra onde
monstros de 200 anos residiam e controlavam tudo e todos, capazes de fazer
magia e de matar um humano com um pequeno pensamento. Pelo visto as
histórias não eram bem histórias. Ele junto do restante da carga foi retirado
do compartimento. Carga, novamente essa palavra para se referirem aos
pequenos seres humanos.
-Como estão? – uma voz grave perguntou, ele levantou os olhos e tentou
esticar um pouco o pescoço para ver quem era, mas esse pequeno gesto
resultou no estalar do chicote em suas costas, o garoto sentiu o sangue lhe
sujar as costas e o ardor se espalhar pela pele, o sangue grudando a blusa
suja na mesma. Todos os outros se encolheram e trouxeram os pulsos com os
pesados grilhões para perto do peito. O menino segurou as lágrimas não
deixariam que eles vissem sua dor, mesmo que tivesse apenas 8 anos.
-Duas morrem a duas noites. Devido à pressão da barreira, mas isso significa
que não estavam aptas para o trabalho. – Um dos homens que apareceu
naquela manhã dentro do compartimento se mantinha a frente, usava uma
roupa estranha como se fosse um pirata e possuía uma espada longa e fina
na cintura.
Iori estava es tirado ao chão, após Paco, vulgo seu braço direito e melhor
amigo, lhe dar uma rasteira e o deixar ali. O jovem humano grunhiu de raiva
e se pós de pé com um único impulso. Paco riu e ergueu o escudo novamente
se preparando para o golpe da espada de madeira.
-Se isso fosse realmente uma batalha você já estaria morto em cinco
segundos, irmão! - O meio Orc lhe disse sorrindo maliciosamente girando a
espada lentamente na mão. Iori reparou nesse detalhe, Paco queria que o
amigo caísse em sua armadilha, o humano repetiu o gesto.
O suor escorria pelas testas e pelos peitos, ambos no ringue apenas de calças,
evitavam ao máximo o roxo que ficaria se fossem acertados. Iori tentava ao
máximo manter sua mente no duelo amigável, mas tudo parecia voltar à tona
nessa última semana, balançou a cabeça um pouco após se afastar de Paco
que estava avançando novamente. Bloqueou o golpe e tentou acertar a mão
do outro com o cabo da espada, Paco desviou o pulso e empurrou o peito do
amigo com o escudo. Iori caiu ao chão com um baque. O humano gemeu e
largou os equipamentos abrindo os braços e as pernas no chão do ringue de
luta. Paco largou os equipamentos também e apoiou as mãos na cintura
levantando o rosto ao sol e tentando normalizar a respiração.
-O que? Não! – Iori exclamou depois de agradecer pela ajuda. Levou a mão
aos cabelos suados e olhou para o céu. – Não tem nada que está me
atrapalhando, apenas estou cansado.
-A qual é Iori. Te conheço desde os meus onze anos. Sei que tem algo errado.
– Iori olhou para o amigo, os olhos avelã se escureceram, mas logo a
escuridão foi embora substituída por um brilho brincalhão. Paco entendeu na
mesma hora. – é por causa da convocação ao palácio?
-Devo minha vida a Manoj e Jedrek- ele disse baixinho com a cabeça baixa
segundando um dos arcos da edícula. – E fim de papo. – Iori continuou
realocando as espadas de madeira e observando as outras lâminas, se
aproximou de uma espada longa que reluzia ao sol da tarde, refletindo um
pouco de seu rosto respirou fundo. E saco duas espadas longas se virando
para Paco, que tinha acabado de dar um passo em sua direção. – Vamos jogar
como adultos agora, chega de madeira.
Paco endireitou a coluna e sorriu maliciosamente para o rapaz, fez uma curta
reverência. Iori o fitou com um ar de superioridade, e ambos caíram na
risada. O humano jogou a espada para o meio orc, que a pegou com
facilidade.
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-Se você falara novamente sobre como se esquivou do meu chute, vou deixar
seu outro olho roxo! – o humano revelou revirando os olhos e dando uma
curta risada.
-Desculpe-me por lhe causar incomodo vossa graça! – Iori olhou para o amigo
que exibia um sorriso provocativo, Iori agitou a mão que segurava sua camisa
e acertou o pano soado no rosto do meio orc. – Ora seu...
-Meninos já deu! – uma fêmea feérica surgiu no portal ao lado da porta que
levava a sala de jantar particular, a pele branca reluzia no vestido azul de
seda e chiffon, a transformando em um anjo. Os cabelos negros estavam
trançados e os olhos dourados brilhavam como ouro recém derretido, uma
única linha de expressão se encontrava no rosto imortal, bem no meio da
testa que se franziu quando viu o corte na bochecha do filho. – Deixem para
resolver isso amanhã. Está ferido Iori?
-Deixe disso Paco! Sabe que pode me chamar pelo nome, você é da família –
A fêmea o olhou docemente. – Aposto que vocês devem estar famintos, vão
para a sala, os outros já estão lá.
-Pode deixar mãe! – Iori sorriu para ela, que se aproximou e afagou o rosto
soado de forma carinhosa e aproveitou para averiguar o ferimento superficial
do rosto, mas logo se virou para perguntar a uma das cozinheiras quanto
tempo levaria para o cozido de porco selvagem ficasse pronto.
Paco tocou levemente o braço do amigo e ambos vestiram novamente suas
camisas, já que agora estariam na frente de duas damas não era certo ficar
seminu. Caminhando um pouco atrás de Iori, paco tentava regularizar a
respiração que tinha se tornado um pouco irregular.
-Se eu não soubesse o motivo para esse seu pequeno colapso de ansiedade,
diria que você meu amigo, estaria morrendo. – Iori provocou olhando por
cima do ombro. Paco fechou a cara e fez uma pequena careta.
-Cale a boca. – Foi a única coisa que disse antes de ambos entrarem na sala
de jantar particular da família Gashin. – Vossa graça! – paco levou a mão a
testa e estava próximo a se curvar quando Jedrek Gashin fez que não com a
cabeça. O macho feérico estava relaxado em sua cadeira, na espera dos dois
rapazes, a túnica branca com as mangas verdes esbarrava levemente no
prato, ainda intocado. Os cabelos dourados, se possível até um pouco maior
do que o da esposa, estavam presos para trás.
-Filho – Jedrek nunca questionou o gesto e deixa o garoto fazer porque sabia
que ele se sentiria melhor assim. – Posso perguntar como foi o treino hoje?
Ou devo presumir que paco levou o pior?
-Gostaria de dizer que ganhei. Mas fora um empate – Iori disse e se virou
para Paco com a jarra de suco ainda em mãos, um gesto mudo para o amigo
estender-lhe a taça. – Se bem que Paco está gostando bastante do olho roxo.
-Fêmeas acham mais atraentes! – o amigo disse após Iori preencher seu
cálice, o levando a boca e piscando para o duque, e disfarçadamente para a
mulher em sua frente. O duque gargalhou, o rosto imortal banhado em
felicidade. Felicidade essa que emanava a todos do recinto.
-Só acho que vocês deveriam diminuir um pouco a força com que treinam. –
Orlandra Gashin retornou ao cômodo com uma travessa flutuante atrás de si.
– Sei que vocês jovem são doidos por cicatrizes de batalhas. Mas que tal fazer
em uma de verdade?
-Relaxe querida! São apenas garotos querendo extravasar. Nunca iriam bater
para se ferir de verdade. – Jedrek pegou na mão da esposa assim que ela
assumiu seu lugar ao lado da filha, no outro lado do duque. – Como sei que
devem estar famintos podemos deixar as conversas para depois.
-Ok. O que precisamos saber? – Etta perguntou levando o garfo com torta a
boca. O duque piscou com um ar de inocência.
-Concordo com Etta – Iori disse e Paco balançou a cabeça apoiando o amigo.
A duquesa riu e apoiou a mão novamente encima da do marido.
-Está tão na cara que temos algo a dizer? – Jedrek perguntou divertido, olhou
para o rosto da esposa que sorria calma.
-Eu sei querida. – A fêmea riu, assim como todos. – Bom já que entenderam
isso como deveria ser entendido. Passo a palavra a você querido.
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Iori repetia a frase de seu pai já tinha muitas horas. Quando a notícia veio a
tona Orlandra e Etta ficaram tão felizes que já estavam conversando entre si
sobre qual tecido deveriam comprar para fazer um novo vestido, afinal
teriam ainda uma semana para prepararem a ida ao castelo. Paco apenas
enfiou mais torta na boca e soltou um “faz tempo que não vejo a princesa”.
Iori apenas continuou calado. Nissía nunca foi um problema para o humano,
apesar de a mesma nunca reparar na existência dele. Ambos nem tiveram
uma verdadeira convivência quando ele estava no castelo quando criança. Ela
apenas o viu duas vezes e falou que nada de ruim iria acontecer a ele, e
depois de uma semana de viajem o duque apareceu e o levou. Então não
entendia o porquê dela ter ido embora por tanto tempo, e não entendia mais
ainda o porquê de uma comemoração de retorno tão grande para a princesa
herdeira.
Naquela noite Iori foi dormir pensando na ida ao castelo e em pouco tempo
já estava perdido no mundo dos sonhos.
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O homem verde puxava as correntes com muita mais força que o cara da
espada. A pele ao redor do pulso do menino já estava esfolada. Andaram por
uma rua meio movimentada, que se enchia de barracas com pessoas
estranhas. O cheiro de tempero impregnou o ar, noz moscada, curry, pimenta
e canela. Se ele não estivesse preso a grilhões teria aproveitado o cheiro
delicioso que vinha de uma das barracas de comida, o estomago roncando
concordava ainda mais seu pensamento.
-Vamos! – o homem verde gritou puxando a corrente com mais força,
fazendo a primeira da fila tropeçar e cair de joelhos. Ninguém ao redor se
preocupou em olhar, alheios ao redor e cuidando de seu próprio umbigo. –
Levante sua estupida! – O som carne contra carne foi ouvido. O homem verde
acertou o rosto da garota, que agora possuía um corte no lábio inferior, e
voltou a puxar as correntes. Fazendo as outras crianças tropeçarem e
voltarem a andar.
Ele os levou para uma espécie de pousada, onde foram todos despidos e
limpos com água gelada e uma bucha de palha áspera, que assim que entrou
em contato com a pele machucada das costas do menino fez com que
sangrasse mais. A mulher que o limpava apenas esfregou o corte mais forte.
Cada porta e janela do quarto da “pousada” possuía um ser estranhado
armado até os dentes, impossibilitando qualquer tentativa de fuga, essas que
já estavam escassas devido a corrente e aos grilhões nos pulsos e tornozelos.
Após o banho gelado, todos foram vestidos com uma espécie de camisola
bege surrada e novamente o homem verde os puxava.
Foram levados para uma espécie de palco, e por onde o homem verde os
puxavam a multidão abria caminho, sussurrando preços e tratamentos para
a “mercadoria” que o barco grande trouxe ao cais naquela manhã.
Mercadoria. O garoto se lembrou novamente que aquele sim era um péssimo
destino. O homem verde os posicionou de frente para a multidão, no meio de
uma praça lotada. Todos em uma linha reta onde poderiam ser avaliados.
Mais a frente uma mesinha com um martelo. Aquilo era um leilão.
A menina da ponta foi puxada a frente. E girada de um lado ao outro para ser
avaliada. A boca cortada estava inchada e os olhos arregalados diante
daquele povo estranho, com chifres, assas e alguns com olhos demais.
-Fêmea de 7 anos. Pele clara, cabelos lisos. Quando crescer um pouco mais
pode ser reprodutora. Mãos pequenas para trabalho doméstico leve. – Uma
mulher com pernas finas e escuras anotava em um papel os olhos eram
inteiramente enegrecidos, sem globo ocular aparente. E nas costas uma
grande asa em frangalhos. – Começaremos com 20 moedas de ouro.
Uma coisa que parecia um homem velho e gordo, que possuía dois chifres na
cabeça e caninos sobressalentes como o homem verde, levantou a mão.
-20 dou-lhe uma... 20 dou – A mulher da asa quebrada começou a falar, mas
foi interrompida por outra mão levantada.
E assim aconteceu com mais duas crianças, até chegar na vez dele. O
homem verde se aproximou o machado em uma mão e a outra grudada em
seu braço fino. Ele foi arrastado até o meio, apenas alguns passos iguais aos
outros. Girado de um lado ao outro.
-Macho de oito anos. Pele marrom claro, cabelos meio enrolados, ágil pelo
tamanho e quando crescer pode ser útil no trabalho braçal. E pelo corte nas
costas aguenta a chibatadas. – A mulher inseto, como ele a tinha apelidado o
olhou de esguelha e voltou a escrever no papel. – 80 moedas de ouro.
Ele respirou fundo, o corpo tremendo tanto que fazia com que os dentes
batessem uns nos outros. Mas sempre quieto. E quieto ele esperou pelo
primeiro lance, mas o que recebeu foram gritos e mais gritos.
-A GUARDA DE AMMIEL ESTÁ COM O REI! – um homem com um chifre no
meio da testa começou a gritar. -CORRAM.
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-Não tem dormido bem? – Etta sempre fora reservada. E desde que Iori
chegou à mansão Gashin ela foi a primeira que o menino correu, com medo
dos moradores e dos criados da propriedade. Etta o acolheu com um abraço
e lhe disse que ficaria tudo bem que ele não teria que ter medo e que
ninguém o iria machucar.
-Aquilo já passou Iori. Está no passado. – Ele levantou os olhos avelã para
encarar os olhos verdes da irmã. Iori sorriu levou a mão ao rosto da irmã
onde deixou uma caricia leve, a mulher sorriu e o puxou para um abraço. –
Agora está tudo bem. Nada irá te machucar meu irmão.
-Sim. Estou terminando de lavar Aléia. Quero levar ela e Neruk para o pasto
ao norte, lá está batendo mais sol e ventando mais. Iram secar rapidinho. –
Ele disse se aproximando mais dos dois irmãos. Pegou uma das mãos de Etta
e deixou um leve selar no topo da mesma. -Está muito bonita essa manhã
Etta!
A mulher corou e sorriu ainda mais para o meio orc. Iori fez um gesto de que
ia vomitar. E recebeu um soco no ombro de Paco.
-Bem, já que vai para o pasto norte irei com você. Estava mesmo querendo
cavalgar hoje. – o humano disse se colocando no meio dos dois.
-Cavalgar? – Paco riu. – Vamos andando com eles. Estão molhados. A não ser
que queria molhar a bunda.
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O calor do sol fez com que a grama se tornasse um grande cobertor verde,
Aléia e Neruk estavam deitados perto do lago hidra.