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SSE Chile CAPITULO VI Reconceituagéo e projeto emancipatorio da Universidade Catdlica de Valparaiso Leticia Beatriz Arancibia Martinez Daniela Alejandra Calderén Diaz we 178 IAMAMOTO, MV. | SANTOS, CM. (Org5) 1. Introdugo, Neste capitulo levantam-se questdes em torno da producao e re cepgao de conhecimentos no Movimento de Reconceituagao do Servigo Social na América Latina, a partir do caso da Escola de Servigo Social da Universidade Catélica de Valparaiso (UCV) no Chile. Conside- ram-se a inscrigio hist6rica da formagao universitatia, as discuss6es, mudangas e conflitos que se encontram marcados pelas flutuacdes, crises, rupturas e diversos modos de compreender o social e a pratica profissional. Entendendo que o Servigo Social é um produto (IAMAMOTO, 2003), os conhecimentos que se colocam em circulagao — os questionados, os que se adotam ou buscam transformar — ex- pressam uma dinamica de disputa entre leituras que pretendem uma perspectiva de totalidade numa processualidade de outorgar sentido a producao/reprodugao da sociedade. ‘Analisam-se 0s momentos de circulagao de conhecimentos — recepcia, apropriagio, producao e difusio — na formacao da dita Escola desde finais dos anos de 1960 até 1973, bem como a articulagao de leituras, perspectivas e autores no desenvolvimento do projeto de Escola que pde em questdo o Servigo Social tradicional e conservador das décadas anteriores e que, no transito para a racionalizacao proposta pelo desenvolvimentismo, se voltou para processos de envolvimento e comprometimento com a luta dos setores populares no Chile. A pesquisa, seguindo uma metodologia qualitativa, entrevistou ¢ realizou grupos focais com ex-alunos, ex-professores e sujeitos do periodo estudado na UCV e em outras faculdades do Chile e do Brasil, Fez-se também revisdo documental: i) dos contextos explicativos do ensino e pesq nniveis da época sobre 0 con- texto universit ii) da pesquisa: distinguindo problemas, marcos tedricos e conceituais, objetivos e metodologias nos trabalhos de conclusio de curso (TCC) do periodo de 1964-1973 e pesquisas sobre ou durante o periodo; objetivos, curriculos, planos e programas de estuclo, métodos de ensino © aprendizagem, métodos de avaliagio, administragio do ensino, a [AMISTORIA PELO AVESSO 9 relacao professor-aluno, estgios profissionais, decretos e instrumentos normativos da formagio; iv) do debate académico e da sua divulgacao: sistematizando as teméticas dos seminarios, congressos, coléquios, revistas e documentos de associagbes do Servigo Social. Perguntamo-nos acerca da produgio e circulagao de conheci- mentos partindo do Servigo Social na Escola da UCV entre 1964 e 1973. Quais problemas, conflitos, matérias e categorias aparecem nas discusses? Quais leituras se fazem? Com quais métodos e matrizes te6ricas? O que se propunha como orientagao da pratica profissional? Quais viradas se observam e como é possivel explicé-las? ‘Tomando as categorias propostas por Horacio Tarcus, analisam-se 0s processos de produgao e recepeio de conhecimentos ¢ teorias durante © Movimento, dando énfase as perspectivas presentes na discussao do projeto educativo da nova Escola de “Trabalho Social” e nas “memé- de graduacio” (TCC no Brasil) entre 1970 1973. Os destaques, as leituras, as matrizes tebricas, epistemolégicas e politicas, somadas as perguntas que mobilizaram a reflexao e a critica de professores alunos no Movimento de Reconceituacao do Servigo Social, ilumi- narao a discussao sobre “O que é Trabalho Social?”, em meio a crise € regressdo conservadora que hoje afetam a América Latina e o mundo. 2. Uma nova perspectiva sobre a circulagao de ideias em Tarcus Horacio Tarcus propée ler 0 processo de produgao e recepgio de um corpo de ideias dos intelectuais conceptivos (organicos em 1. Vale a pena lembrar que nos passes hispanofalantes o Movimento de Reconcetuacio panhad por uma mudanca na forma de se referir A profissio, nomeando-a, a pati 180 IAMAMOTO, M.V.| SANTOS, C.M. (Orgs) tendo a recepgao do conhecimento como problema. Isso ica deixar de supor “uma teoria universal disponivel para seu uuso adequado” e uma correta aplicagao local, para atentar-se “aquele mal-entendido estrutural inerente a todo processo de ‘adogao’ de ideia num contexto hetersnomo ao contexto da sua producao”? (TARCUS, 2013a, p. 11). Desse modo, “[o] conceito de recepgao remete a um proceso maior de produgio/difusdo intelectual, no qual é neces- sario distinguir (analiticamente) produtores, difusores, receptores e consumidores das ideias, embora esses processos se confundam na pratica, e os papéis possam ser assumidos de forma simultanea por um mesmo sujeito” (p. 30). O autor aborda uma recepcao nao dogmitica ou, em outros ter- ‘mos, “a particular apropriagdo e eventualmente posterior producao de novos conhecimentos por parte dos receptores” (TARCUS, 2013a, p.37). Reconhece assim a especificidade que adota um corpo de ideias quan- do sio recepcionadas e apropriadas, os usos, as leituras e o componente ativo e criativo implicado na difusao, tradugao, citagao e publicacao, bem como 0s sujeitos que contribufram para isso — tradutores, edi- tores, pesquisadores, professores e ativistas. Além disso, considera 0s processos que aportaram a configuracdio de matrizes de interpre~ tacao “aplicada, adaptada, aclimatada, mestigada, recriada ou bem. antropofagizada” (2013b, p. 37). Portanto, a perspectiva da recepgio “[...] exige uma pesquisa sobre os modos, canais e agentes por meio dos quais tem ingressado? o pensamento, ¢, a0 mesmo tempo, uma reflexao mais geral sobre os processos de recepgao de ideias, dos seus alcances e limites” (2013a, p. 12). O autor propée a distingao de quatro momentos ndo lineares para interpretar o dinamismo de um corpo de ideias: a produgao, a difusto, 4 recepeao e a apropriagiio. Estes podem se observar na expe de refundagio da Escola de “Trabalho Social” da UCY, no Chi ido processos maiores na América Latina. 2 Todas as. para 0 portuguds pel 1 traduzidas [AHISTORIA PELO AVESSO 21 0 momento da produgao Para Tarcus (2013a) 0 da produgito de wma teo lectuais conceptivos’ Gramsci)” (p. 30, grifos do autor). Na década de 1960 se distingue a presenca de autores latino-americanos € de “uma interlocugao critica [do Servigo Soci incias sociais” (NETTO, 2007, p. 77). No livro O que é Trabalho Social? — projeto da sscola de Servigo Social da UCV em 1971 —, encontramos autores la corrente desenvolvimentista e da teoria da dependéncia, a saber, rrebisch, Cardoso, Faletto, assim como Gunder Frank, Santos e Marini; autores criticos ao capitalismo e com uma perspectiva centrada na América Latina, como 6 0 caso de Zemelman e Hinkelammert; auto- res que assumem uma postura de critica ao colonialismo, tais quais Quijano; autores que resgatam a educacio popular de Paulo Freire. 22 0 momento da difusdo O autor vai propor que um corpo de ideias dé-se por meio da sua edigao em livros, folhetos, periédicos, revistas, difusio pode ser desenvolvida pelos mesmos embora existam agentes especializados nessa func eresses comerciais, culturais ou politicos, como editorias [..J, propagandistas, de partidos ou movimentos que podem assumir uma teoria e veicular por diversas vias sua difuso (TARCUS, 2013a, p. 30). Nesse sentido, a difusao foi realizada no Chile diretamente pelos autores latino-americanos que chegaram ao pais no periodo de 1967- 1973. Também a verificamos no livro do projeto de Escola da UCV, 130 & proposta como “primero mii 182 |AMAMOTO, MLV. | SANTOS, CM (F publicacdes denominada Ensaios de Trabalho Social” (QUIROZet al, 1972, P. 36, grifos nossos), com o “objetivo central [de] comunicar diversas experiéncias dessa perspectiva do Trabalho Social profissional, para serem submetidas a revisio critica dos trabalhadores sociais e também Por pessoas vinculadas ao Trabalho Social no Chile e na América Latina” (p. 37). Esse interesse excedeu a prépria experiéncia, pois 'vro circulou entre diversas Escolas, professores ¢ atores do Servigo Social em varios paises, incl 23 0 momento da recepgdo (ou transferéncia) e Suas condicionantes histéricas no ambito social, politico, ideolégico e tedrico O momento da recepeao de um corpo de ideias representa “um Proceso ativo pelo qual determinados grupos sociais sentem-se in- terpelados por uma teoria produzida em outro campo de producio, tentando adapté-la (recepcioné-la) ao seu préprio campo” (TARCUS, 2013a, p. 53), sendo diferente do original a partir do ponto de vista do sujeito receptor. Pode-se reconhecer sua inscrigao histérica nas condicdes sociais, politicas, ideoldgicas e teéricas As condigdes sociais intervém na difusdo, considerando as dinami- cas de circulacao de pessoas, livros, notas, revistas e discussdes, Na América do Sul, uma maior participacao social e as discusses sobre 0 desenvolvimento geraram um cenério de troca interdisciplinar e de critica na interacio, difundindo e disseminando leituras e experiéncias, Logo, os golpes de Estado ocorridos a partir de 1964 empurraram ao exilio e a processos migratérios Sul-Sul. A Escola da UCV, chegaram intelectuais brasileiros exilados, que contribuiram nas discussdes do Projeto de Escola, como é 0 caso de Vicente e Eva Faleiros, Também. contribuiram nesses processos estudantes de pés-graduacao vindos da Europa, como Victor Farias, que trouxe consigo a leitura de Marx feita em alemao — leitura essa que conviveu com verses de manual [AHISTORIA PELO AVESSO 183 € divulgagao massiva do marxismo em circulagdo naquele momento (PALMA, 2016). As condigdes politicas e sociais se referem as relacdes de poder na América Latina entre atores de diferentes local, nacional € mundial. No contexto global de Guerra Fria, os Estados Unidos estendem sua influéncia aos governos da América Latina mediante a Alianga para o Progresso, com um discurso desenvolvimentista. ‘Ao mesmo tempo, na América Latina, a Revolugo cubana validava novas formas e linguagens de independéncia e libertagao, que marca- rao profundamente o cenério de politizagao e o auge de movimentos populares nos anos de 1960 e 1970. No Chile, o encontro sinérgico entre atores politizados ofereceu condigées favoraveis para a recepgdo de um conjunto de ideias e teorias em grupos sociais e politicos de esquerda, que incluiam pro- fissionais, académicos ¢ estudantes universitérios, assim como nos movimentos sociais e populares que se encontravam num momento culminante de reivindicagies sociais e politicas, disputando a repre- sentagao nacional no governo da Unidade Popular (UP). Em 1970, assumiu Salvador Allende e deu-se inicio a um processo de crescente participacao social e politica de setores de operdrios, moradores e estudantes. Nacionalizaram-se as fabricas, configurando o.chamado setor social da economia”, ¢ os trabalhadores passaram a exercer progressivo controle na sua gestao. A Escola da Universidade Catélica de Valparaiso aparece como expressio singular dessa época, numa cidade-porto com um desen- volvimento industrial em expansdo e um considerével ntimero de empregados organizados de empresas e servicos ptiblicos — dos se~ io etc. Porém, o golpe de Estado interrompeu proceso a partir do dia 11 de setembro de 1973: os trabalhadores e igentes politicos foram perseguidos e assassinados; as empres privatizadas; e as Escolas de Servigo Social, na maior parte do p: foram fechadag, incluindo a recém refundada Escola da UCV. lem na apropriagao e nas po dades de difusdo de conhecimentos em maior escala, assim como na 184 |AMAMOTO, M.V. | SANTOS, C. M. (Orgs) sua promogao em diferentes espagos por sintonia ou identificagao, Elas podem ser reforcadas no Ambito politico se houver formas e instituiges que contribuam a instalagao de um conjunto de ideias, No Chile, centros de pensamento — como a Cepal — difundiram ias desenvolvimentistas pela América Latina, estendendo-se amente. Por outro lado, as reformas da Igreja implantadas no contexto do pés-Coneilio Vaticano II mar= caram uma mudanga ideolégica, pois os contetidds de libertagao @ emancipacao da proposta de educacao popular de Paulo Freire difundiram-se através do seu trabalho na reforma agréria do go- mo democrata-cristéo de Frei Montalva, enquanto Ernani Fiori vinculou-se como vice-reitor da Universidade Catélica do Chile (Santiago), em pleno desenvolvimento da chamada Reforma uni« versitéria. Fatos esses que permeiam as discussées do projeto de Escola e o seu documento final. No que toca as condigdes teéricas, a Reconceituagio conseguiu ‘condensar —na sua heterogeneidade — teorias (ou matrizes tedricas) sobre a transformacao que permitiram entender uma realidade que se revelava cega perante os profissionais. Uma delas seria o reconhe- cimento da “questao soci: [.-até entao, nés falavamos dos pobres, dos miserdveis, dos margi« nais, na época de Frei, seguindo Vekemans e outras pessoas, mas, na verdade, essa ideia da “questio soci capital ¢ trabalho, fundamentalmente surge ligada no Chile [..] nas Escolas ligadas ao tema da Reconceituacio; ¢ aceitar a “questao social” implica se comprometer profissionalmente com um tipo de ago social (LOPEZ, 2016, s.p.). Diferentes processos marcam 0 Servico Social ¢ Ihe chamam a ‘uma revisio da sua formagao nos planos ético- te6rico-metodol6gico e pratico;sendo a Escola da UCV também part cipanteativa do movimento que resultou num novo projeto educativo, AHISTORIA PELO AVESSO 185 2.4 0 momento da apropriagdo e de uma nova produgao A apropriacao é entendida como “o ‘consumo’ de um corpo de 'S por parte de um suposto ‘leitor final’ no termo da corrente circulagio” (TARCUS, 2013a, p. 32). No entanto, esse k A discussao sobre a dependéncia na América Latina ocupa um ir relevante no projeto da Escola da UCV, no qual se distinguem enquadramentos. O primeiro orado para a anlise dos fendmenos do modo capi deprimido” (p. 17). Observa-se, portanto, a apropriagao de uma sspectiva marxista da teoria da dependéncia, com influéncia de San- 's € Marini, mas incorporando também a critica cultural de Quijano. Na Escola da UCV também se nota uma singular apropriagao do ta, critica e transformagio manifesta-se em agoes, téticas e estratégias IAMAMOTO, M.V.| SANTOS, CM. (Orgs) segundo o projeto global da classe trabalhadora, para conseguir historica- mente a participacao, a gestao, o planejamento e a administracao do seu destino, pelos mesmos sujeitos do processo” (PIZARRO et al.,1972, P. 56, grifos do autor). 4 __O corpo de ideias do projeto da Escola de Trabalho Social da UCV eas mudangas do Plano de Estudos também se expressam nos Processos de formagao da refundada Escola. Os trabalhos de conclu- sio de curso (TCC) dao conta da selegdo de teorias, epistemologias e do desenvolvimento de conceitos que mostram as discusses sobre a realidade social, matrizes explicativas, problemas, métodos e estraté- gias de projecao dos processos de mudanga, : 25 A apropriacéo e a producao a partir de uma légica dialética nos TCC entre 1970-1973 As memérias, como chamadas em espanhol, ou trabalhos de conclusio de curso (TCC) no Brasil, eram um processo de sintese da experiéncia prética e do processo formativo em conjunto, buscando a teorizagao a partir do Trabalho Social, pois “ao termo desses contetidos [do curriculo}, o estudante deve sistematizar seu processo de aprendi- zagem, contribuindo com a conformagéo de uma teoria do Trabalho Social, [...] para efeitos de titulacao” (PIZARRO et al., 1972, p. 61). Revisaram-se 104 TCC disponiveis no arquivo da UCV entre 1964 € 1973, Segundo os enfoques e as teorias empregadas, distinguem-se dois periodos. O primeiro, com 69 exemplares, compreende o perfo- do entre 1964-1969, dando conta de um Servico Social tradicional de corte funcionalista com forte influéncia norte-americana e europeia, somado aos primeiros germes de critica em 1969. No segundo pe- riodo, por sua vez, abarcando o perfodo de 1970-1973, se esr tum giro significativo na producao de conhecimentos, que coincide tanto com a discussao do projeto de refundagao da Escola da UCV quanto com 0 comego do govern da Unidade Popular, Desse perfodo se [NHISTORIA PELO AVESSO. 187 encontraram fisicamente dispontveis 35 TCC. Sobre isso, é relevante destacar a eventual perda de exemplares, pois previamente ao golpe de Estado de 1973, no quadro das ocupagées encabecadas pela Frente Patria e Liberdade (grupo de extrema-direita), houve grandes quei- mas de documentos na Escola, Concentrar-nos-emos nas produgdes do segundo periodo. Compreendia-se a categoria de Campo de ago como “uma forma de aproximagao da realidade” (PIZARRO et al., 1972, p. 37). Sua di- namicidade a torna dependente da situagao histérica e da conjuntura social. Os chamados “grupos populares” eram concebidos como “protagonistas do processo de libertacdo nacional no plano da infra ¢ superestrutura social” (p. 38). O Campo de agiio tenta mover-se para além de um reconhecimento formal-abstrato, indo “a totalidade con- creta do homem de hoje, na sua cotidianidade, para participar junto a ele da concretizagao de um projeto de libertagao” (p. 37). Por outro lado, nos miicleos de formago da Escola, desenvolvia-se um proceso coletivo de discussao teérico-pratica dos estagios e das matérias trabalhadas nos TCC. Realizava-se uma andlise hist6rica baseada na pesquisa das condicdes de vida de operdrios, camiponeses € ‘moradores urbanos, e sua participagao nos processos de producdo na- cional e mundial, procurando compreender também os processos de reprodugao social e sua “relagdo com a totalidade social” (PIZARRO et al,, 1972, p. 55-56). ‘Assumindo uma légica dialética, contemplavam-se processos ‘plorat6rio-descritivos da realidade concreta e cotidiana dos trabalha- dores, ¢ analitico-explicativos da situagao de dependéncia econémi- ca-cultural do pais nas relagées capitalistas no ambito mundial, de modo a articular as reflexes com as carateristicas da formacao social do pais. Identificavam-se a dinamica entre diferentes niveis e Areas de expresso da realidade e a anilise dos conflitos, distinguindo um nivel imediato de um nivel mediato — assim denominados. Nos seus estigios, os alunos realizavam uma aproximacao semi-etnogréfica da realidade cotidiana dos trabathadores em indtistrias (sindicatos), bairros e assentamentos rurais durante cinco a seis meses, a0 cabo IAMAMOTO, M.V.| SANTOS, C.M. (Orgs) dos quais conheciam seus modos de vida e trabalho, desenvolvendo atividades produtivas junto a esses trabalhadores (dai 0 nome “es- : ‘objeto de pesquisa concebe-se rucio te6rica e sistematica que surgiria da andlise do radigdes concretas € reais que apresenta a sociedade num mi ico determinado, Quer dizer, nio se trata de definir 0 objeto a partir de um esquema abstrato ¢ ideal nem desde um ponto de vista pragmatico (PIZARRO 1972, p. 29), Com elementos da tradigao marxista, recuperavam-se expresses historicas do conflito entre segmentos de classe: capital industrial/ operdrios; capital agrério/trabalhadores rurais; autoridades politicas (entendidas como representantes do capital) /moradores-trabalhadores urbanos. A andlise do conflito se dava na abordagem dos momentos em que se tornava mais agudo o confronto de interesses especificos de classe (mobilizagdes populares e greves, como também repressd0 institucional, por exemplo). Assim, era possivel reconhecer a: tradiges” centrais e secundarias — con: profissional — e suas expressdes no nivel material das relagdes de produgao nos espagos em que se desenvolviam os estagios. Esse marco cera interpretado a partir da contradigao central entre capital e trabalho, considerando também as contradigdes expressas num nivel ideolégico. jeradas objeto da pratica Estas tiltimas contradigdes eram ident na dominagao ou alienagao conscié -adas principalmente jural de camponeses e na chamada ia dependente dos moradores urbanos, que historicamente teriam incorporado os valores ¢ ideias da classe dominante, difun- didos e reforcados pelos meios monopolizados de comunicagio de massas — estes sio tema do livro Os meios de comunicagito de mass: de Armand Mattelart. AISTORIA PELO AVESSO jualismo e paterné Asrelagdes sociais marcadas pelo ind na representacao politica sao vistas como obstaculos para a estratégia socialista, com destaque para o papel da educagao e da organizacao. Outra observacao mostra que o ritmo das mudangas nas relagdes de produgao do governo da Unidade Popular nao se traduziu de forma ata em mudancas “superestruturais” No plano material e ideol6gico, identificaram-se a direta domi- nacdo da oligarquia nacional sobre as classes populares e as relagoes de dominagio exercidas pelo capital estrangeiro, revelando muiltiplas expressées da dependéncia em trés Areas: industrial, rural e urbana. Vejamos a seguir algumas das abordagens desenvolvidas nelas. im a) Entrea teoria do valor e a consciéncia de classe: as fensdes na organi- zagio dos operdrios e os desafios da producio Na area industrial, compreendiam-se historicamente a formacao 1 do pais, as mudangas na estrutura produtiva nacional e as ‘ais desde a colonizagéo, com a formagdo e desenvol bancéria e facgdes da classe trabalhadora). Analisavam-se 0 proceso de produgao; a procedéncia estrangeira e 0 monopélica dos meios de trabalho; a producao social da riqueza nas maos dos trabalhadores € suas atividades laborais didri ‘icas do lugar de trabalho, \adas, salério e lucros da empresa. A teoria do valor de Marx era a destacar sao a obra de Ernest Mandel, Introdugito @ teoria econdmica marxista, e de Perry Anderson, 5 limitagdes e possibilidades da acto sindical. Inclui-se a reflexao sobre a participacéo dos trabalhadores no processo da Unidade Popular (UP), ando as dificuldades organizativas dos sindicatos para sua unificagao e, por outro lado, criticando o paternalismo da empresa. A pratica profissional orientava-se pela promogao de formagao de consciéncia de classe, propondo agées de alfabetizagao de adult capacitagées, ciclos de debates, foros, atividades recreativas e cultur 190 IAMAMOTO, MV. | SANTOS, CM, (Orgs) b) As contradigoes ideol6gicas ¢ a dominagio cultural em zonas rurais Na drea rural, pesquisava-se a realidade concreta da populagao nacional e do assentamento em que se desenvolviam os estégios. A propriedade e concentragio da terra eram compreendidas como re- sultado de “séculos de dominagao” desde a colonizagao. Também se estudava a composicao nacional de classes: por um lado, a burguesia agréria e suas aliancas, por outro, os trabalhadores da terra, abordando do Movimento camponés e destacando sua relagio conflitiva com os governos, bem como os obstéculos para desenvolver a estra- égia de reforma agréria da UP. Abordavam-se também as rotinas de ida ¢ trabalho dos assentados. O principal referencial tesrico para a igdes” ideolégicas nos assentamentos rurais era Althusser. A orientagao da pratica profissional concentrava-se no “nivel da superestrutura”, propondo estratégias de educacio politica , asse, unidade, ;, organizacao e tomada de decisdes coletivas nos Conselhos camponeses da mencionada reforma. ©) Desde a dependéncia para a “libertagio do homem oprimido” Na Area concentrada nas condigdes de vida dos “trabalhadores- -moradores” urbanos, a cidade 6 vista desde as categorias de centro e periferia, estudando as fases hist6ricas da mobilizacdo de moradores na luta por moradia e urbanizacao. Atribufa-se a ideologia dominante a organizagao fraca e passiva dos trabalhadores-moradores, além do individualismo, fatalismo e visto desarticulada, reforcada (na sua percepgao) por medidas pi fragmentadoras dos ‘governos — nacionais ¢ locais — “populistas’. Entre os moradores, identificava-se a chamada “consciéncia dependente”, que Ihes impe- diria de projetar as mudangas que so capazes de prod condigao de gestores e protagonistas. Desde uma logica dialética, ena linha das propostas para a pratica profissional, o “objetivo imediato” era a promogio de processos de mobilizagio massiva dos moradores em torno das suas necessidades por meio da tomada de consciéncia, A HISTORIA PELO AVESSO 191 da unidade e organizacdo. O “objetivo mediato”, entretanto, buscava niras diversas frentes de luta dos trabalhadores para projetar maiores graus de hegemonia. Para além das tematicas abordadas por Area, ent termos gerais, os TCC escritos entre 1970 e 1973 propdem uma pratica orientada para bertagiio da humanidade oprimida”, nao como uma interpreta- 10 te6rica abstrata, mas como uma anélise de conjuntura (nacional € internacional). De modo a reconhecer a poténcia da organizagao das lasses populares para impulsar um projeto de governo popular — chilena ao socialismo” —, que projetava uma série de mudangas institucionais e b) de em duas direcdes mutuamente reforcadas: disputa pela hegemonia para “criar poder popul ‘Aaapropriagto dos marxismos nos TCC tem poucas referéncias diretas ‘a textos de Marx, pautando-se em interpretagdes através de outros sutores, nomeadamente Althusser, com a diviséo entre infraestrutura superestrutura como reflexo das condigées materiais e com o uso do onceito de ideologia. Também no projeto de Escola vé-se a categoria de prixis, citada a partir da obra de autores como Karel Kosik e Hugo ‘Zemelman. Esse conceito tem especial relevancia para a compreensao das projegdes da pratica profissional, pois “[o] objetivo geral do Tra balho Social é a praxis da libertagao dos grupos dominados. Proceso de libertacdo que se planteia em cada homem, junto a outros, no contexto de uma libertagio social, de acordo com 0 projeto historico desses grupos” (QUIROZ, 1972, p. 37, grifos do autor). Nessa linha, os estégios promovem 0 compromisso com as classes populares e 0 impulso & estratégia do governo popular para: 1) re~ pensar os tragos das politicas publicas, retroalimentando o desenho le sua implementagio; 2) contribuir para a estratégia anterior~ mente mencionada di poder popular”, facilitando ferramentas rganizagto, gest, mobilizacao, politizagto e conscientizagio. A nogio colativo é permeada por Freire sob 0 conceito do “homem horizonte deveria apontar para a “li- . Essa inspiragao freiriana conduz a um bertagio”, também co 192 VAMAMOTO, M.V. | SANTOS, CM. (Orgs) desenho metodolégico com influéncia da educacao popular, que, a partir de uma l6gica dialética, busca desmontar a ideologia dominante. Conclusdes O projeto de Escola da UCY, elaborado no quadro do Movimento de Reconceituagao, permitiu uma articulacdo, ancoragem e sintese da apropriacao de teorias que admitiam uma perspectiva critica. Foi um. momento crucial de produgao e uma das principais fontes consultadas nos TCC do periodo de 1970-1973, com uma apropriacao singular as. O projeto perfila-se como uma bateria teérica de base que, além de expor a importancia da teorizacao partindo do Servico Social, articula-se com um projeto politico maior, encabecado na época pela UP. Considerando o cendrio em que se encontra a realidade latino- imericana e chilena, a Nova Escola se apropria de um conjunto de leias do marxismo, da teoria da dependéncia e da educacao popular, sendo transversalmente destacados elementos da critica & economia politica e optando exp! imentistas, em beneficio de andlises de processos e dindmicas que pretendem abordar 0 Servigo Social Aapropriagio de uma perspectiva materialista hist6rico-dialética se expressa metodologicamente na estrutura e na l6gica das produces escritas, conduzindo as reflexdes e criticas a pratica profissional no contexto amplo do modo de produgao capitalista. Este se articula e se conjuga com uma ética de libertagao que perpassa as interpretagées. Finalmente, destacamos a importancia de se levantar a discussio sobre 0 projeto de Reconceituagao da Escola de Trabalho Social da UCY, partindo do reconhecimento da produgdo e recepgao do co- nhecimento, pois se mostram assim os diferentes atores e processos que colaboram na gestagao de um corpo de ideias e na promogao de /AHISTORIA PELO AVESSO. 193 discussdes que levam a um Servigo Social mais maduro e consciente do seu lugar histérico como profissao. Referéncias IAMAMOTO, M. EI Ser profesional. Si0 Paulo: Ci LOPEZ, T. Teresa Léper: NETTO, J. P. La Reconceptualizas ALAYON, N. (Org). Trabajo Social acion. Buenos Aires: Espacio E via viva, cuarenta afios después. In: 0: 40 anos de la Reconceptua- ja Beatriz projet Universitaria sobre 0 tura comparada pesquisa e do ensino do Servigo Social no Chile e no Brasil IZARRO, E. et al. (eds.) {Qué es Trabajo soci social UCV. Ensayos de Trabajo social, Valpars ? Proyecto Escuela de Trabajo 1, 1972, QUIROZ, T. 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