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constituinte?
"As jornadas de junho demonstraram que a multidão existe – e excede.
Desperta esperanças, estimula desejos, produz comunidade, devém
insurgente. Multiplicidade de singularidades em permanente recomposição, a
plebe experimentou nas manifestações seu “devir-multidão”, afirmou-se como
“parcela dos sem parte” que recusa não ter parte na riqueza socialmente
produzida por ela. E, ao mesmo tempo, mostrou ser a única força capaz de
produzir uma outra “pólis” possível, com outros valores, apontando para a
instituição de uma nova ordem comum", escrevemAdriano Pilatti e Giuseppe
Cocco, 11-07-2013.
Segundo eles, "as tentativas de neutralizar o impulso de transformação que
vem das ruas são tão ilusórias quanto o “consenso” que “vigorava” até junho".
"A insustentável surdez do poder hoje - continuam - se traduz justamente no
lamentável frescobol governo x oposição-mídia: ambos os lados se esfalfam
pra manter a bolinha das discussões abstratas no ar, enquanto a ventania das
exigências substantivas aumenta. Não, essa dança da chuva, esse jogo de
cabra-cega à beira do abismo não é o que nos interessa".
E concluem, afirmando:
O vil intento de incriminar livros por fenômenos que têm origem na tensão
comando-resistência evoca a Era das Trevas e bem revela os usos autoritários
de uma “liberdade de expressão” que é privilégio de poucas famílias e seus
amanuenses. “Poder Constituinte – um ensaio sobre as alternativas da
modernidade”, de Antonio Negri, é um sólido e erudito tratado de filosofia
política que interpela cinco séculos de pensamento e práticas constituintes e
seus avessos, com uma profundidade analítica consensualmente reconhecida
pelos melhores no assunto. Até mesmo os detratores do autor reconhecem ser
esse seu melhor trabalho teórico, e uma referência necessária aos debates que
enfrenta. Se alguém só conseguiu ler ali um mirabolante “manual prático de
chavismo plebiscitário”, isso fala apenas do singular leitor, não da obra.
No entanto, para refletir sobre os acontecimentos de junho e a situação política
resultante é pertinente retomar, sim, mas nos seus devidos termos, nossa
perspectiva crítica sobre os experimentos de constituição de governos
dos/pelos/para os “de baixo” na Venezuela e na Argentina. Ela permite
compreender porque consideramos a experiência dos governos Lula mais
fecunda. O que ali nos interessava era identificar a trajetória mais aberta ao
poder constituinte ou, ao menos, qual governo desenvolvia políticas mais
permeáveis aos processos de mobilização social por direitos. Nossa simpatia
pelos governos Chavez e Kirchner nada tinha a ver com as “personas”
políticas de seus líderes ou com seus improváveis modelos, mas com as lutas
de classe, as insurgências, os movimentos de liberação que os levaram ao
poder, e com os quais os novos governos se relacionavam.
O que nos interessava nos experimentos sul-americanos era o momento
constituinte e o quanto ele continuava aberto, renovado e presente nos novos
governos. Não as superstições plebiscitárias voltadas a legitimar reformas
constitucionais decididas de cima para baixo, mas as questões substantivas de
apropriação da riqueza comum e ampliação/efetivação de direitos: desde a
reversão da renda do petróleo venezuelano para os mais pobres, até a política
de direitos humanos desencadeada pelo movimento das madres y abuelas de
la plaza de mayo. Não eram os sucessos eleitorais de Chavez e Kirchner que
nos mobilizavam, mas os momentos constituintes dos quais nasceram e
dependiam: desde o levante Que se Vayan Todos em 2001 e a força dos
movimentos na garantia da efetiva punição dos crimes da ditadura argentina,
até o Caracazo e o levante multitudinário contra o golpe em 2002 na
Venezuela. Algumas dessas dimensões também reencontramos nos momentos
constituintes bolivianos e equatorianos.
Para nós a experiência brasileira foi mais interessante, não por ser mais (ou
menos) “socialista”, nem por ter um “modelo” claro a ser implementado. O que
nos interpelava na “anomalia” brasileira era a justamente a ausência de modelo
e de qualquer dimensão socialista. Uma trajetória totalmente interna ao
processo de integração do capitalismo global e, ao mesmo tempo, aberta aos
processos constituintes. Em certa medida, isso também explica a boa fortuna
da multifacetária Constituição de 1988, inicialmente enjeitada pelas elites e
pela esquerda “purista”, hoje objeto geral de disputa em torno de seus sentidos
determinantes.