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SNELL, Bruno. A cultura grega e as origens do pensamento europeu.

São Paulo:
Perspectiva, 2009.

Sobre o método lexical de Bruno Snell


O método de Snell consiste no recolhimento de determinados vocábulos recorrentes em
autores gregos, no exame específico do uso de cada um deles, e na comparação destes
com outros de sentidos semelhantes. A ideia que subjaz a essa metodologia é a de que
uma noção determinada só existe se existe o termo que a designa.

Introdução
O pensamento, em suas formas lógicas, que surge com os gregos e vem determinar a
maneira de pensar europeia, pretende um vínculo com aquilo que é universal,
incondicionado, eterno, imutável, e, portanto, a-histórico. Em função deste vínculo com
o universal, esta forma de pensar é tomada como sendo ela mesma universal e a-
histórica, ainda que possamos remontar a sua datação no tempo. Posteriormente, a
modernidade filosófica não só concebeu a universalidade do pensamento como também
a identidade dele consigo mesmo durante toda a história: o Homem é uma substância
cujo atributo essencial é o pensamento, entendido como a forma lógica de pensar que
apreende ela mesma a si mesmo enquanto universal. Deste ponto de vista, todo o resto
pode mudar e estar submetido às relações temporais e espaciais, menos o pensamento. É
por isso que quando olhamos o mundo grego o vemos em uma identidade conosco, e
não é porque nos entendemos como sendo o mesmo que eles ou vice-versa, afinal é
evidente que os hábitos e costumes gregos são completamente outros que os nossos –
isso é um fato de história –, mas porque, apesar de todas as diferenças temporais e
acidentais, o pensamento subsiste como sendo o que nos define invariavelmente. Bruno
Snell toma como ponto de partida justamente esta oposição entre o condicionado
historicamente e o incondicionado, com o fim de examinar se é possível encontrarmos
essa concepção de pensamento já nos primeiros itens da cultura grega. O que ele tem em
mente é apresentar que os gregos não só fizeram vir à luz novas maneiras de empregar o
pensamento em novas matheseis, por assim dizer, como a investigação física, as
matemáticas e a filosofia, mas efetivamente criaram o que nós entendemos por
pensamento através do processo de descoberta da alma humana e do espírito humano
que se manifesta na história da filosofia e da poesia grega a partir de Homero.
O que entender, porém, por “descoberta” quando se fala em descoberta do espírito? O
sentido não é o mesmo que quando empregamos o descobrir quando dizemos que
descobrimos o ouro, pois o espírito não existia antes de ser descoberto. No entanto,
descobrir aqui também não é sinônimo de invenção: o espírito não é inventado, não é
uma criação que parte da capacidade intelectual e poiética do homem. De alguma forma
ele já existia antes de ser descoberto, mas não como espírito, ou seja, não como ele virá
a ser concebido. Quando descoberto, o espírito se revela, se dá a ver enquanto espírito,
de modo que só então podemos falar em sua existência, o que faz com que descoberta e
autorrevelação, aqui, apareçam como sinônimos. O que está em jogo aqui é o modo
como ele é compreendido, como é interpretado e por isso como se manifesta nos seus
usos cotidianos.

Capitulo 8. O saber humano e o saber divino.

A problemática do texto reside na manifesta oposição entre saber divino e saber humano
que é comum ao pensamento antigo grego e chega até nossos dias, através da tradição
cristã. No entanto, se a oposição é manifesta, o mesmo não ocorre com a compreensão
destes. O objetivo da investigação, assim, é iluminar o que se entende por saber divino e
humano em cada um dos que pensaram essa dicotomia, bem como discernir o valor e os
limites de ambos nas suas diferentes perspectivas. Snell analisa o desenvolvimento desta
compreensão na tradição grega, analisando passagens específicas em que esta oposição
é visível nos textos de Homero, Hesíodo, a tradição lírica do período arcaico, Xenófanes
(que ele vincula à tradição lírica, mas reconhece que há pontos de distanciamento),
Hecateu, Heráclito e Parmênides.

HOMERO
Nos textos de Homero essa oposição se faz visível, sobretudo, na distinção entre saber
não inspirado e inspiração divina, que já está presente logo no primeiro verso da Ilíada.
O poeta ele mesmo não sabe o que diz, o seu canto não é fruto de sua inteligência e
experiência pessoal, mas da Deusa que o inspira. Um fato significativo, porém, sobre
esta concepção em Homero para o qual Snell nos chama a atenção, é que a inspiração
divina, o enthousiasmós, não é indicativo de loucura, êxtase ou comoção patética (como
será em uma tradição posterior), seja para o poeta, seja para o próprio canto, seja para o
espectador. No catálogo das naus (Il. II, 248ss), a presença das Musas que cantam uma
enumeração dos navios e comandantes presentes em Ílio não está implicada a nenhum
arrebatamento poético, seja da parte do poeta, do canto ou do público; antes o contrário,
elas tomam parte de uma enumeração burocrática e árida, que não provoca furor poético
algum. A razão de sua presença é pelo seu saber. Elas são evocadas porquanto são
sempre presentes e sabem de tudo, enquanto que os homens, incluindo os poetas, apenas
ouvem a kléos e nada sabem.
Ἔσπετε νῦν μοι Μοῦσαι Ὀλύμπια δώματ' ἔχουσαι·
ὑμεῖς γὰρ θεαί ἐστε πάρεστέ τε ἴστέ τε πάντα,
ἡμεῖς δὲ κλέος οἶον ἀκούομεν οὐδέ τι ἴδμεν·
Dizei-me agora, ó Musas que tem morada no Olímpo,
Pois vós sois deusas sempre presentes e sabeis todas as coisas,
E nós apenas ouvimos a kléos e nada sabemos.
Il. II, 484-6.
A oposição é nítida e destaca a condição humana frente à divina: o deus sabe de todas as
coisas pois está sempre presente, enquanto que o homem apenas ouve os rumores, a
fama, a glória, o relato. É um saber sempre parcial, nunca completo, realizado. O saber
humano é sempre mediado e parcial, enquanto que o divino é imediato e perfeito.

HESÍODO
Com Hesíodo nós assistimos à introdução de um tema novo na distinção do saber
humano e do divino: a introdução do falar verdadeiro como força de presentificação do
ser. Jaa Torrano apresenta que a concepção de verdade e mentira em Hesíodo diz
respeito ao des-velamento do ser e ao seu ocultamento, é a palavra eficaz do poeta
(como mestre de verdade) que faz a epifania do verdadeiro e realiza o ser em sua
presença, bem como o oculta e vela-o sob os simulacros da linguagem. Essa tese, que
originalmente é de Heidegger, é a que Detienne explicitou como sendo a estrutura da
verdade poética enquanto palavra eficaz na Grécia Arcaica, apanágio do aedo, do
adivinho e do rei de justiça. Há nesta palavra eficaz uma imanência entre linguagem e
ser, tudo o que vem à luz vem na linguagem e por ela, ela é a força de realização do ser
na nomeação. No entanto, não se trata de um predomínio da linguagem sobre o ser e sim
de uma reciprocidade. A linguagem está no ser porque o ser está na linguagem. A
poesia é, nesse sentido, ao mesmo tempo força de fabricação do real e da própria
linguagem, enquanto palavra dotada de sentido no mundo, porque é somente nela e a
partir dela que há a possibilidade do sentido das coisas. E o poeta é apenas intermediário
do canto que vem da Memória e da força estruturante de Zeus que, com seu grande
noós, eternamente perfaz o mundo e a si mesmo na força do canto das Musas.
αἵ νύ ποθ' Ἡσίοδον καλὴν ἐδίδαξαν ἀοιδήν,
ἄρνας ποιμαίνονθ' Ἑλικῶνος ὕπο ζαθέοιο.
τόνδε δέ με πρώτιστα θεαὶ πρὸς μῦθον ἔειπον,
Μοῦσαι Ὀλυμπιάδες, κοῦραι Διὸς αἰγιόχοιο·
“ποιμένες ἄγραυλοι, κάκ' ἐλέγχεα, γαστέρες οἶον,
ἴδμεν ψεύδεα πολλὰ λέγειν ἐτύμοισιν ὁμοῖα,
ἴδμεν δ' εὖτ' ἐθέλωμεν ἀληθέα γηρύσασθαι.”
ὣς ἔφασαν κοῦραι μεγάλου Διὸς ἀρτιέπειαι,
καί μοι σκῆπτρον ἔδον δάφνης ἐριθηλέος ὄζον
δρέψασαι, θηητόν· ἐνέπνευσαν δέ μοι αὐδὴν
θέσπιν, ἵνα κλείοιμι τά τ' ἐσσόμενα πρό τ' ἐόντα,
καί μ' ἐκέλονθ' ὑμνεῖν μακάρων γένος αἰὲν ἐόντων,
σφᾶς δ' αὐτὰς πρῶτόν τε καὶ ὕστατον αἰὲν ἀείδειν.
ἀλλὰ τίη μοι ταῦτα περὶ δρῦν ἢ περὶ πέτρην;
τύνη, Μουσάων ἀρχώμεθα, ταὶ Διὶ πατρὶ
ὑμνεῦσαι τέρπουσι μέγαν νόον ἐντὸς Ὀλύμπου,
εἴρουσαι τά τ' ἐόντα τά τ' ἐσσόμενα πρό τ' ἐόντα,
φωνῇ ὁμηρεῦσαι, τῶν δ' ἀκάματος ῥέει αὐδὴ
ἐκ στομάτων ἡδεῖα·
Theog. 26-40.

Elas [as Musas] certo dia ensinaram a Hesíodo belo canto,


Enquanto pastoreava ovelhas aos pés do divino Hélicon.
Mas antes de tudo disseram-me as Deusas esta sentença,
Musas Olímpicas, virgens de Zeus porta-égide.
“Pastores agrestes, desgraças deploráveis, só estômagos,
Sabemos muitas mentiras falar semelhantes a verdades,
Sabemos também, quando queremos, dar a conhecer revelações.”
Destarte falaram palavras justas as virgens do grande Zeus,
E concederam-me como cetro um ramo de um loureiro viçoso
Colhido, admirável! Insuflaram-me então um canto
Inspirado de Deuses, a fim de que eu glorie o futuro e o passado,
Exortando-me a hinear a raça dos bem-aventurados sempre presentes,
E a primeiro e por último cantá-las sempre.
Mas porque para mim isto de carvalho ou de pedra?
Tu! Pelas musas comecemos, elas que a Zeus pai
Hineando alegram o grande noús no interior do Olimpo,
E entrelaçam o presente, o futuro e o passado,
Reunindo-os com a voz. Delas flui infatigável som
Das bocas prazerosas.
Theog. 26-40.

XENÓFANES DE CÓLOFON

Com o poeta-filósofo Xenófanes a oposição entre saber humano e divino se estabelece


na distinção entre o saber preciso e o impreciso. Em sua visão, não é dado ao homem
conhecer o claro, o evidente, e sim apenas o dókos, a aparência que a tudo se estende.
Segundo Snell, há neste parecer a emergência de uma nova concepção do saber humano
que o considera como fruto da experiência acumulada com o tempo. Este saber é
adquirido através da procura, de um esforço de busca. O que, porém, resulta deste
esforço de busca é uma questão. Xenófanes diz que o homem descobre melhor, encontra
melhor. Mas o que isto quer dizer? Com o tempo o homem se torna mais capaz de
encontrar, isto é, a sua busca se torna mais exata do que antes, ou ele descobre aquilo
que é melhor? Isto é ambíguo.

Snell adota a posição de que a partir de um esforço de busca os homens encontram


sempre algo de melhor e interpreta esta possibilidade humana como um meio que eleva
o homem ao divino. Esta interpretação é fruto de uma visão de Xenófanes como um
poeta lírico arcaico, que de alguma forma estaria já no interior de alguma forma de
consciência individual. Na lírica grega nós temos as primeiras formulações que
apresentam o homem segundo suas capacidades, sentimentos e virtudes propriamente
humanas. Nesse sentido, a busca pela virtude se dá em um esforço humano individual
que é operado de acordo com a sua atividade particular. Por isso Tirteu, um poeta-
guerreiro, apresenta a virtude máxima como a coragem, Sólon, um poeta-legislador,
apresenta a virtude máxima como a justiça, e Xenófanes, poeta-filósofo, apresenta a
virtude como a sabedoria. Apesar destas diferenças, entretanto, é comum a todos estes a
ideia de que a virtude máxima é atingida por um esforço individual, senão independente
dos deuses, certamente dependente da postura humana. Deste modo, é desse contexto
que emerge essa nova concepção de saber com Xenófanes: uma vez que a sabedoria é a
virtude máxima da vida humana, e que aos homens o saber é obscuro, é necessário
então que o homem busque por si o saber, para que com o tempo ele possa encontra-lo
melhor.

B34 SEXT. adv. math. VII 49. 110 PLUT. aud. poet. 2 p. 17 E
καὶ τὸ μὲν οὖν σαφὲς οὔτις ἀνὴρ ἴδεν οὐδέ τις ἔσται
εἰδὼς ἀμφὶ θεῶν τε καὶ ἅσσα λέγω περὶ πάντων·
εἰ γὰρ καὶ τὰ μάλιστα τύχοι τετελεσμένον εἰπών,
αὐτὸς ὅμως οὐκ οἶδε· δόκος δ' ἐπὶ πᾶσι τέτυκται.

B34 SEXT. adv. math. VII 49. 110 PLUT. aud. poet. 2 p. 17 E
O que é claro, com efeito, homem nenhum viu, e ninguém nada
saberá acerca dos deuses e do que quer que eu diga sobre todas as coisas:
E se no mais das contas acontecesse de alguém dizer algo perfeito,
Ainda assim ele não saberia: opinião, de fato, é o que se faz sobre tudo.

B18 STOB. Ecl. I 8, 2. Flor. 29, 41.


οὔτοι ἀπ' ἀρχῆς πάντα θεοὶ θνητοῖσ' ὑπέδειξαν,
ἀλλὰ χρόνωι ζητοῦντες ἐφευρίσκουσιν ἄμεινον

B18 STOB. Ecl. I 8, 2. Flor. 29, 41.


Os deuses não apresentaram tudo de início aos mortais,
Mas, com o tempo, procurando eles descobrem melhor.

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