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REFERENCIAL TEÓRICO

Os dados do Censo de 2010, publicados na década passada,


apresentam informações relevantes para a compreensão do cenário brasileiro.
Segundo os números, os católicos passaram de 89% da população brasileira
na década de 80 para 64,50% em 2010. Os protestantes pentecostais foram de
3,20% à 18,30% e o grupo de pessoas que se identificava como sem religião
há 30 anos passou de 1,9% para 8,9% em 2010. Os espíritas kardecistas
passaram de 0,7% na década de 80 para 2% em 2010 e a categoria das outras
religiões foi de 1,2% a 2,3%. Esse aumento está abaixo das expectativas de
especialistas, mas, só nos anos 2000 representa 15,3 milhões de pessoas que
passaram a se declarar como “sem religião”. Segundo Ronaldo de Almeida
(2010) e Rogério Barbosa (2010) esses dados do censo mostram dois
fenômenos: a queda do catolicismo e o crescimento dos pentecostais e das
pessoas “sem religião”, além do gradual aumento de minorias religiosas.

Segundo uma pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV,


2009), em 1991 de cada 100 jovens entre 15 e 19 anos, apenas cinco não
tinham religião, incluindo-se nesse número os ateus e pessoas que não
seguem nenhuma doutrina religiosa. Nos anos 2009, segundo nova pesquisa
feita, o número de pessoas sem religião aumentou: passou para oito em cada
100 jovens e um crescimento semelhante e, por vezes, superior pode ser
observado na faixa etária de 20 a 29 anos. É interessante notar que, para efeito
das pesquisas comentadas pelo documento da FGV, o emprego da categoria
"sem religião", que abrange pessoas que naquele momento da vida respondem
a uma pesquisa quantitativa que não explora suas percepções acerca da
religião, mas assinala o modo como tais respondentes declaram-se sem
adesão religiosa em dado momento da vida. O termo sem religião tem sido
usado como categoria guarda-chuva que abarcaria uma miríade de relações
com o religioso, dentre as quais frequentemente se emprega outros termos
como “ateísmo”, “ceticismo”, “agnosticismo” que demandam formas de
apartamento do religioso. Por outro lado, “sem religião” é também um termo
problemático, considerando que pode abarcar pessoas que compartilham de
adesões religiosas múltiplas, não institucionais, de identificações mais fluídas,
conforme apenas pesquisas qualitativas podem indicar. Nossa posição aqui, é
de que os sentidos da religião para pessoas que se definem como sem religião,
pode revelar dados etnográficos relevantes à compreensão das atuais relações
entre contemporaneidade e religião.

Podemos perceber que o cenário religioso brasileiro está passando por


mudanças significativas que podem ser observadas há pelo menos 30 anos e
que não dão sinal de que sejam transformações que vão favorecer a
recuperação da hegemonia cristã, mas sim o aparecimento de novas formas de
religiosidade, além do crescimento de minorias religiosas como as religiões
afrobrasileiras, o espiritismo, religiosidades orientais, pessoas que se declaram
sem religião, além de outros grupos emergentes, como as igrejas inclusivas.
Natividade (2010) procura explorar aspectos importantes dessas instituições
para destacar um discurso voltado para gays e lésbicas que querem ser
incluídos em espaços religiosos, estando esse movimento ligado a um
ambiente social e político que vêm reconhecendo progressivamente a
legitimidade das “minorias sexuais” no espaço público. As igrejas inclusivas
representam um claro exemplo do atual quadro do pluralismo religioso no
Brasil, que aparenta ser uma tendência que veio para constituir um objeto de
estudo complexo que possui dinâmicas que desafiam o olhar das ciências
sociais.

Partindo desses dados sociológicos, tomarei como objeto antropológico


certos segmentos que se percebem como “sem religião”. Ele já vem sendo
objeto de conhecimento científico, como apontam trabalhos de autores tais
quais Regina Novaes (2004; 2008)), Ronaldo de Almeida (2006; 2010) e
Rogério Barbosa (2010). O recorte desse trabalho compreende as populações
juvenis que se consideram “sem religião”.

Isso se justifica especialmente por essa ser a parcela da população geral


na qual mais cresce o fenômeno (entre os jovens de 15 a 29 anos o número
chega a 9,50%). Meu trabalho investiga os nexos entre pessoas sem religião e
certas formas de percepção da religiosidade. O objetivo é tomar como objeto
de análise o modo como jovens sem religião significam a religiosidade e, para
tanto, nesse capítulo evocarei o debate acadêmico das Ciências Sociais nessa
área temática.
Diversos autores se dedicaram a pensar as relações entre religião e
sociedade, conforme se pode verificar em uma breve investida em alguns
autores clássicos e contemporâneos. Já entre os evolucionistas, compreender
as religiões dos ditos povos primitivos implicava em enquadrar a religião a
partir do olhar ocidental, muitas vezes tidas como superstições ou formas de
religiosidades que implicavam sobrevivências, condutas incompreensíveis. Um
autor que pode ser utilizado como exemplo é James George Frazer, que se
dedicou aos estudos das formas mais arcaicas de religião em sua obra O
Ramo de Ouro (1982), numa tentativa de compreender o que seria constituinte
da unidade original do pensamento religioso. Para isso, Frazer enxergava a
religião como um processo evolutivo no qual seria possível traçar o caminho
fluente dessa evolução religiosa das formas mais primitivas em direção a uma
espiritualidade mais pura. Para o autor, era necessário perceber a religião
como fazendo parte de um sistema cultural que compreende diversas maneiras
racionais de comportamento incorporadas em indivíduos que se conhecem e
compartilham dos mesmos pressupostos e, para compreendê-la, deve-se
conhecer a totalidade do contexto no qual está inserida.

Em sua obra As formas elementares da vida religiosa, Durkheim se


preocupa de forma especial com o fenômeno religioso ao empreender uma
investigação sobre suas origens e funções com o propósito de aprender as
características essenciais da religiosidade. Segundo o autor, o dever da
sociologia seria encontrar "[...] elementos permanentes que constituem o que
há de eterno na religião [...], ou seja "[...] o conteúdo objetivo da ideia que se
fala de religião em geral" (DURKHEIM, 2003, p. X). Nessa obra, a intenção do
autor é chegar a uma dita origem da religiosidade, não necessariamente
histórica, mas causal. Durkheim chama a atenção para o que considera a
percepção de religião adequada para o estudo:

[...] deixando de lado nossa concepção em geral de religião


em geral, consideremos as religiões em sua realidade
concreta e procuremos destacar o que elas podem ter em
comum; pois a religião pode ser definida em função das
carcterísticas que se encontram em toda parte onde houver
religião. (DURKHEIM, 2003, p.4)

Sob a perspectiva durkheiminiana pode-se perceber a religião como um


sistema independente com o intuito de explicitar como as partes que a
constituem se relacionam e conferem a cada religião um caráter específico.
Durkheim coloca a religião como um fenômeno social que é composto de
crenças e ritos. A religião é traduzida de acordo com a concepção de que ela é
um todo orgânico formado por partes que desempenham funções específicas,
relacionando-se de maneira solidária. De forma mais ampla, a religião também
pode ser encarada como parte do sistema social geral para que se possa
entender as funções do fenômeno religioso na sociedade.

Para Durkheim, os homens não percebem de forma precisa o que


concede a determinados objetos de culto a dimensão de sagrado, mas para os
fiéis, a presença do sagrado é algo real, pois provoca neles um sentimento que
torna concreta a existência daquilo que provoque objetivamente essa
sensação. Em Durkheim, a religião reforça sentimento de solidariedade e
integração. Nesse sentido, religião e sociedade são indissociáveis.

Outro autor que trata das relações entre religião e vida social é Radcliffe
Brown, em seu livro Estrutura e Função na Sociedade Primitiva. A história da
humanidade é marcada por um grande número de sociedades que possuíam
crenças que os levavam a acreditar em forças superiores que deveriam ser
honradas em função de benefícios a serem obtidos para suas vidas cotidianas
e constituía prática comum entre os antropólogos tentarem perceber como
essas religiões foram desenvolvidas e por qual razão eram aceitas, ao invés de
voltarem a atenção para quais eram as funções da religião nas relações sociais
em cada sociedade estudada. Partindo da ideia de que a dimensão da
religiosidade representa uma parte importante da dinâmica social tanto quanto
a moral ou a lei, Radcliffe Brown coloca a importância de lidar com a função da
religião na manutenção da ordem social. Independentemente do quão
"primitiva" possa ser uma sociedade, o papel da religião permanece o de
constituir um mecanismo de controle social, organizando as relações nela
existentes.

Para Clifford Geertz, a religião representa uma entre várias percepções


que os homens utilizam para compreender o mundo e a essência da ação
religiosa consiste em construir um conjunto de símbolos que tenham o
potencial de exercer uma autoridade, uma grande persuasão sobre as
pessoas. Assim:

Na crença e na prática religiosa, o ethos de um grupo torna-se


intelectualmente razoável porque demonstra representar um tipo de
vida idealmente adaptado ao estado de coisas atual que a visão de
mundo descreve, enquanto essa visão de mundo torna-se
emocionalmente convincente por ser apresentada como uma imagem
de um estado de coisas verdadeiro, especialmente bem-arrumado
para acomodar tal tipo de vida. (GEERTZ,2008, p. 67)

Um símbolo expressa de forma figurativa algo que não pode ser


expressado de forma literal, algo que serve de vínculo para uma percepção e
os símbolos sagrados, que fazem parte do ideário religioso, funcionam como
sintetizadores de uma forma de ver o mundo. A religiosidade constitui um
padrão cultural, um modelo que orienta relações e incorpora simbolismos de
verdades que são transcendentais, ou seja, são externas aos indivíduos, sendo
necessário compreender de que forma elas determinam as noções do que é
verdadeiramente real para as pessoas e que disposições essas noções
induzem.
Geertz afirma que o homem seria funcionalmente incompleto se não
houvessem padrões culturais, pois ao contrário de outros animais, não
conseguimos sobreviver apenas seguindo instintos. No caso da religião, o que
é determinado é um padrão de significação para a vida, qual seria o sentido da
existência que deve determinar as ações e objetivos do homem, o que Geertz
chama de “O problema do significado”. Nesse sentido, a religião aparece como
uma fonte de consolo para todo o sofrimento, pois estabelece que aquilo que
ocorre na vida das pessoas tem algum motivo e que serve a um fim último. O
autor dá importância à dimensão dos rituais na construção da dimensão da
crença, pois eles representam comportamentos consagrados que reforçam
concepções gerais de percepção da realidade e confirmam de forma concreta
as crenças. A religião é então percebida como:

(1) um sistema de símbolos que atua para (2) estabelecer poderosas,


penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens
através da (3) formulação de conceitos de uma ordem de existência
geral e (4) vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade que
(5) as disposições e motivações parecem singularmente realistas.
(GEERTZ,2008, p. 67)
A questão da religiosidade e sua relevância nas relações sociais
também é discutida por Geertz em seu texto O beliscão do destino, onde são
feitas considerações sobre a importância da religião na definição da identidade
do indivíduo. A religião pode parecer, se ponderada sem muita atenção, um
aspecto que diz respeito à subjetividade, algo dotado de caráter individual que
tem mais significado no âmbito pessoal. Entretanto, o que ocorreu no século
XX e continua a se desenrolar no nosso século é a influência da religião para
além da escolha individual, permeando a vida social. Esta atua não apenas
como um fator que ajuda na definição da identidade e caráter dos indivíduos,
mas também como uma imagem que carrega a necessidade de afirmação e
aceitação perante a sociedade (GEERTZ, 2001). Isso se deve à uma mudança
na conjuntura mundial, que pode ser exemplificada com o fim da Guerra Fria,
que se desenrolou grande parte da segunda metade do século passado e
quando acabou, pôs fim a determinações maniqueístas de identidade como
socialista ou capitalista, abrindo espaço para novas identificações subjetivas
como etnia, idioma, cultura e também religião. Isso representa um movimento
geral que trouxe para a dimensão do público e político aspectos que antes
constituíam componentes da vida privada e subjetiva dos indivíduos, como as
crenças. Sobre isso, Geertz afirma:

A projeção de grupos e lealdades religiosamente definidos em todos


os aspectos da vida coletiva, partindo da família e bairro para fora, faz
parte, portanto, de um movimento geral que é muito maior do que ela
própria: a substituição de um mundo construído com uns poucos
tijolos análogos e mal encaixados, por um mundo não mais
uniformemente nem menos completamente construído com muitos
tijolos menores, mais diversificados e mais irregulares. (GEERTZ,
2001, pg. 157)

Em todas as sociedades humanas são observáveis sistemas de


reciprocidade de caráter interpessoal, nas quais os indivíduos estabelecem
relações onde existem expectativas quando se empreende uma ação em
relação ao outro. Marcel Mauss em seu texto Ensaio sobre a Dádiva define
como o que seria essa característica, englobando relações que definem uma
tríplice obrigação: dar, receber e retribuir. Mauss observa esse fenômeno pela
sua importância na produção e reprodução da sociedade, já que a dádiva
preexiste aos interesses contratuais e às obrigações legais, sendo responsável
por modelar diversas relações no meio social. No caso específico da esfera
religiosa, podemos observar como a dádiva é responsável por produzir um
certo tipo de aliança, onde o devoto realiza determinadas ações rituais como
um modo de firmar um relacionamento com sua divindade ou divindades. Essa
prestação de valores espirituais consiste em um fator de grande relevância
para a análise do religioso, uma vez que a crença é construída através dessa
comunicação com o transcendente, ou seja, com aquilo que é externo ao
indivíduo e considerado sagrado, e Mauss identifica essa relação com o divino
através da prece. Para o autor, ela constitui um dos aspectos centrais da vida
religiosa, representando a natureza dos rituais e da crença, uma vez que é
inicialmente instituída aos indivíduos como uma ação coletiva durante alguns
rituais e é importante para a confirmação do credo.

A prece representa um fator de individualização e espiritualização do


religioso, pois através do pensamento e das palavras utilizadas na
comunicação com o transcendente a consciência do indivíduo se torna o
campo dessa conversação ao invés do público e as religiões seguiram uma
tendência semelhante, tornando-se em certo nível cada vez mais imateriais e
transcendentes. Ela se tornou uma iniciativa privada na medida em que a
flexibilidade do pensamento que determina a comunicação com o divino. A
origem desse processo se encontra na experiência coletiva, quando a
importância dos rituais públicos e mais mecânicos de contato com o divino
eram mais presentes, entretanto a prece incorporou um aspecto mais subjetivo
à comunicação, tornando o contato do crente com Deus mais pessoal e mais
eficiente no sentido de que o contato é mais direto. Ela é responsável pela
formação do laço entre os homens e seus deuses e pela crença na eficácia da
comunicação, já que o que dá a prece sua funcionalidade é sua profunda ação
íntima sobre a consciência das pessoas.

Mauss questiona qual seria o motivo que faz os Deuses ouvirem, por
assim dizer, as preces humanas, ou mais precisamente, como se dá a
concretização da relação de crença com o divino, pois existe o credo e ele não
existiria se não houvesse resposta dos deuses para as preces. A solução para
essa dúvida é que existe uma reposta, porque os deuses compartilham um
universo com os homens, participam de uma relação de reciprocidade que
parte da consciência humana para o transcendente e essa relação se
assemelha a uma comunicação com outros indivíduos, criando um campo de
ação comum onde espera-se uma resposta do interlocutor, pois este entende a
comunicação e a expectativa que a cerca. A comunicação linguística é
determinante de todo o complexo da prece, pois os deuses são colocados em
uma posição de parceiros comunicacionais dos homens, ou seja,
compreendem a relação de troca que construímos com eles. Os indivíduos
dedicam devoção que pode ser representada através dos rituais religiosos e os
deuses devem recompensá-los com favores, sejam benefícios durante a vida
ou o objetivo final, a salvação, que pode ser entendida como a vida após a
morte na companhia dos ancestrais e do divino. Dessa forma, a religião se
estabelece como uma esfera que interfere na formação de modelos de conduta
voltados para o cumprimento de determinadas expectativas estabelecidas pela
doutrina seguida.

A função de dispositivo de controle e manutenção da ordem é, na


dimensão da religiosidade, uma característica que aparece como determinante
para muitos autores. Para Peter Berger em sua obra o Dossel Sagrado, a
religião constitui um fenômeno que tem por objetivo a legitimação da ordem
social, constituindo um cosmos sobrenaturalizado que representa uma barreira
para o reconhecimento do caráter humano da criação da sociedade. Nesse
sentido, a dimensão da religiosidade tem a função de situar a humanidade
dentro de um marco infinito que é o universo, atribuindo a este um significado
humano. (BERGER, 1985). Berger chama a atenção para o fato de que a
religião representou e ainda representa, em certo nível, um dos métodos mais
efetivos de dominação uma vez que constitui a base ética e moral da
sociedade fundamentando-a em origens superiores ao mundo humano.
Entretanto, o autor chama também destaca a existência do processo de
secularização que já se desenvolve há algum tempo e, entre outras
consequências, pode ser apontado como um fator responsável para a
existência do pluralismo religioso existente na modernidade, que colocou um
fim ao monopólio das tradições religiosas cristãs no Ocidente. A hipótese é que
esse pluralismo constitui um verdadeiro "mercado" religioso, colocando aos
indivíduos a escolha entre diferentes formas de crença e acabando com a
obrigação de adesão ao credo hegemônico.

As pesquisas de caráter quantitativo realizadas no Brasil apresentam o


indicativo da formação de um novo cenário religioso que pode ser
caracterizado pelo pluralismo. Existem diversas religiões em expansão que se
estabelecem progressivamente em relação a hegemonia do catolicismo.
Novaes em seu texto Jovens sem religião: sinais de outros tempos fala da
presença do “sincretismo nova era”, que determina encontros entre tradições e
modernidade através de meios de comunicação atuais como a internet,
afirmando que a diversidade da religiosidade brasileira pode ser vista como
“expressão da pós-modernidade geradora de espaços múltiplos e identidades
fluidas, assim como de pertencimentos religiosos”. Aponta também a relevância
do conceito de “duplo pertencimento”, que contribui para compreender a
dinâmica de movimento dos brasileiros em um campo religioso marcado por
uma hegemonia católica que é reconhecida e legitimada pelo Estado
(NOVAES,2008).

Para Almeida e Barbosa (2010), as mudanças no campo religioso no


Brasil contemporâneo podem ser percebidos como evidência do aumento da
lógica individual e rompimento dos laços primários com a religião familiar,
sendo um fenômeno mais característico da juventude, por ser um período da
vida onde a identidade do indivíduo ainda está em construção e a grande oferta
de informações e, consequentemente, ideias sobre religiosidade age de forma
determinante em favor do aumento da descontinuidade da tradição religiosa e
crescimento de minorias. Junto a isso, a secularização aparece como um
fenômeno cada vez mais presente em todas as sociedades modernas, partindo
dos meios de formação acadêmica em direção a esferas mais cotidianas da
vida social. Sobre isso, Berger afirma:

[...] existe uma subcultura internacional composta por


pessoas de educação superior no modelo ocidental, em
particular no campo das humanidades e das ciências
sociais, que é de fato secularizada. Essa subcultura é o
vetor principal de valores iluministas. Embora seus membros
sejam relativamente poucos, são muito influentes, pois
controlam instituições que definem 'oficialmente' a realidade
[...] São notadamente semelhantes em todo mundo atual
(BERGER, 2001, pg. 11)

Para Charles Taylor, a secularidade se apresenta em algumas


definições distintas, mas merece destaque para ele “aquela que nos leva de
uma sociedade na qual era praticamente impossível não acreditar em Deus
para uma na qual a fé, [...] representa apenas uma possibilidade entre outras”
(TAYLOR, 2010, p.15). A crença em Deus não é mais axiomática, na verdade,
existem muitos contextos em que nem é a opção mais plausível a ser adotada,
especialmente nas sociedades ocidentais. Taylor destaca que isso ocorre
desde meados do século XIX devido à valorização cada vez maior do poder da
razão em detrimento da existência do transcendente como forma de perceber e
explicar o mundo.

A diferença fundamental entre crentes e descrentes é que, para os


primeiros, a fonte de explicação para a realidade encontra-se fora deles, na
existência de uma entidade divina que deve ser adorada e que contém as
respostas para todos os questionamentos, podendo proporcionar a realização
máxima da vida humana, que seria chegar no lugar de plenitude, um estado de
satisfação elevada em que todos os objetivos foram atingidos, proporcionando
paz e felicidade ao indivíduo. Para aqueles que não creem, a realização se dá
através de outros fatores, como a percepção de que o poder da razão para
explicar a realidade está contido em cada pessoa e que a vida não deve
possuir como objetivo a adoração de um ser superior, sendo muito mais
sensato agir tendo foco no florescimento dos seres humanos e construção de
uma sociedade harmônica.

É interessante destacar essas formas de se experimentar a realidade


para perceber que todas as crenças se sustentam de acordo com um contexto
no qual se inserem e que determina o que é certo. Taylor afirma que houve
uma mudança em todo o contexto no qual experimentamos e buscamos a
plenitude, passando da antiga estrutura que ele chama de “ingênua” para
compreender a realidade para uma “reflexiva”. Para o autor:

[...] passamos de um mundo no qual o lugar de plenitude era


compreendido sem problematizações como fora ou “além” da vida
humana, para uma era de conflitos na qual essa interpretação é
desafiada por outras que localizam a plenitude (num amplo espectro
de maneiras diferentes) “dentro” da vida humana. (TAYLOR, 2010, p.
29)

O que se torna claro pela análise dos dados de pesquisas como as


realizadas pelo IBGE e FGV é a mudança do cenário religioso brasileiro. Os
indivíduos têm progressivamente buscado novas formas de identidade
religiosa, sendo essa busca facilitada pela grande variedade de opções
religiosas disponíveis (HERVIEU-LÉGER, 2008). Hervieu-Léger argumenta que
a transmissão da cultura, de uma geração para a seguinte, de forma geral, é o
que mantém a dinâmica social. Os jovens da nova geração têm a
responsabilidade de dar continuidade à tradição, mantendo a linha de
transmissão. Entretanto, a continuidade não implica em imutabilidade, pois com
o passar das gerações os aspectos culturais são transmitidos, mas isso ocorre
sempre com acréscimo de alguns detalhes que mudam a cultura original,
instaurando dinâmicas de descontinuidade que colocam as gerações sempre
em certa oposição (HERVIEU-LÉGER, 2008).

Com efeito, não existe transmissão sem tensões. Verifica-se uma


intensificação de processos de ruptura quando o assunto é a reprodução da
religião na família e nos domicílios. Hervieu-Léger endossa que doutrinas
religiosas hegemônicas são confrontadas na atualidade com uma multiplicidade
de alternativas religiosas. Essas novas expressões da crença constituem as
dinâmicas da 'religião em movimento', em processos de inovação, ruptura ou
descontinuidades de religiões herdadas. O que se verifica é o aumento do
caráter privativo da escolha em detrimento do social. A possibilidade de
escolher, migrar ou desvincular-se da religião de origem é uma recorrência
sociológica, segundo analistas das transformações da religião no mundo
contemporâneo.

Os domicílios, que são um espaço para a reprodução da religião,


exemplificam as dinâmicas de pluralismo religioso ou desvinculação da religião
de origem. A hipótese é que a família esteja perdendo sua importância na
definição da opção religiosa das pessoas. Segundo os dados do IBGE (2010),
o catolicismo é a religião que mais perde fiéis no Brasil. Aqueles que se
declaram sem religião ou pertencentes a religiões distintas do catolicismo
cresceram em grande quantidade e em 2010 representam 35,5% da
população. Entretanto, vale ressaltar que embora esses não católicos incluam
os sem religião, abrangem também minorias religiosas, como os cultos
afrobrasileiros e espíritas. Ainda que esse crescimento seja claro, destaca-se a
hegemonia do cristianismo. Por outro lado, os números exemplificam a
pluralidade existente no país, ocasionada pelo surgimento de novas doutrinas
cristãs nos últimos anos.

Peter Berger afirma que a existência de diversas instituições religiosas


leva à criação de várias ideologias doutrinárias adaptadas à preferência do
consumidor, estabelecendo um problema para a legitimação religiosa. Isso pelo
fato de que, se a tradição religiosa se adapta de acordo com necessidades ele
perde a característica de imutabilidade que concede às religiões a devoção e
confiança de seus fiéis. Isso constitui uma falha na estrutura de plausibilidade,
enfraquecendo também a realidade subjetiva do mundo religioso em questão.
Deve-se atentar para a existência de uma nova forma de consciência que
favorece a opção religiosa como uma dimensão subjetiva e pessoal em
detrimento da imposição do social. "Na França, 4% dos pais conservam a fé
religiosa entre as qualidades importantes a serem encorajadas nos filhos"
(HERVIEU-LÉGER, 2008). O fato não significa que os pais não possuam um
tipo de crença, mas apenas que não consideram a religião como algo vital a ser
ensinado aos filhos. A crença individual não possui embutida em suas
condições de existência a obrigação de transmiti-la. Isso traz a tona o
protagonismo da juventude na escolha da religião, uma vez que não mais são
mais coagidos pela estrutura familiar nessa opção. Os jovens tem a
oportunidade de definir suas identidades na dimensão religiosa de acordo com
seus desejos, mais baseados em suas vivências e afinidades com determinada
doutrina, seja por simpatia com sua ideologia ou por acreditarem que esta lhes
traga mais benefícios ou, ao invés disso, de se desligarem da religião por esta
não representar mais nada de importante em suas vidas.

Os autores Regina Novaes e Ronaldo Almeida na discussão dos dados


presentes no censo realizado pelo IBGE em 2010, chamam a atenção para a
descontinuidade da religião entre as gerações. Os autores examinam o que
compreendem como uma 'crise' na transmissão religiosa que se desenrola na
atualidade. Outro ponto que é colocado é a metodologia de obtenção de dados
do censo, que parte apenas de uma pergunta básica: "Qual é a sua religião?"
(ALMEIDA, 2004). O problema com essa abordagem é a limitação que carrega
a pergunta absoluta, pois se refere a apenas um momento nas vidas dos
indivíduos, não possibilitando a apreensão dos outros momentos da trajetória
religiosa dessas pessoas, ou seja, não se pode identificar os momentos em
que a religiosidade passa por um período de mudança até deixar de se
manifestar, no caso dos jovens sem religião. O método utilizado pelos autores
para obter uma melhor compreensão da trajetória religiosa dos indivíduos pode
ser definido dessa forma:

[...] apesar de família e domicílio não se sobreporem


exatamente, os laços familiares são majoritariamente
frequentes nos domicílios brasileiros. E a despeito de serem
familiares ou não, a diversidade religiosa inflete, mesmo que
parcialmente, sobre as relações cotidianas domiciliares,
podendo induzi-las tanto ao conflito como ao aumento dos
afetos entre as pessoas, entre outras possibilidades.
(MENEZES; TEIXEIRA, 2013, p. 318)

O método adotado permite perceber as diferenças religiosas entre pais e


filhos que ainda convivem no mesmo domicílio, dessa forma, compreende uma
faixa etária que corresponde ao intervalo da pré-adolescência até a idade em
que os filhos tendem a sair de casa, entre os 25 e 30 anos. Esses indivíduos
podem obviamente passar pelo trânsito religioso após a saída de casa, mas
esse não é o foco dessa pesquisa. A percepção que se obtém é que a família,
antes considerada como um locus de destaque para reprodução religiosa, não
existe mais como formadora por excelência da crença dos jovens, perdendo
constantemente a capacidade de transmiti-la.

Os dados do Censo possibilitam discutir as clivagens de geração na


análise das mudanças na paisagem religiosa brasileira. A probabilidade de
permanecer católico é menor nos primeiros ciclos de vida, enquanto que a
adesão a outras religiões aumenta, atingindo seu ápice aos 25 anos de idade
(ALMEIDA, 2010 apud TEIXEIRA; MENEZES, 2013, p. 316). Os autores
destacam que entre os que rompem com a doutrina hegemônica, os sem
religião possuem chances crescentes de se declarar dessa forma entre a idade
de 15 até os 25 anos, mostrando que se desligar da religiosidade é um
fenômeno comum na juventude e início da fase adulta, quando os filhos já
possuem mais condições de estabelecer escolhas divergentes das de seus
pais. Assim, pode-se perceber que os sem religião e as religiões minoritárias se
comportam de maneira inversa ao catolicismo, que é mais procurado por
pessoas que já se encaminham para os ciclos finais de suas vidas.

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