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Publicamos, a seguir, trés trabalhos doutrind- rios da autoria de eminentes professéres da Facul- dade de Direito da Paraiba, os quais foram apresen- tados ao ensejo do Semindrio de Direito Privado, que se realizou na semana de 23 a 28 de maio de 1960, orgenizado pela Faculdade de Direito da Uni- versidade da Paraiba, pelo Diretério Académico “Epitdcio Pessoa” e pela Seccéo da Ordem dos Advogados da Paraiba, empreendimento ésse que contou com a presenca do Prof. Alvaro Costa, da nossa Faculdade de Direito. CRITERIO CIENTIFICO PARA DIS- TINGUIR A PRESCRICAO DA DECA- DENCIA E PARA IDENTIFICAR AS ACOES IMPRESCRITIVEIS PROF. AGNELO AMORIM FILHO Professor da Faculdade de Direito ry 1s ix i | da Universidade da Paraiba as 34 e gu : SUMARIO: — 1 — O problema em face da doutrina e da 8 4 lei. II — Critérios que tém sido propostos para se fazer a dis- | ® tincdo. III — A moderna classificagéo dos direitos e os direi- | - =e tos potestativos, IV — Criticas feitas 4 existéncia dos direitos potestativos. V — Modos de exercicio dos direitos potestati- vos. VI — Moderna classificacio das agdes. VII — Agdes constitutivas. VIII — Fundamentos e efeitos da prescrigéo. IX — Fundamentos e efeitos da decadéncia. K — Casos espe- ciais de acdes constitutivas. XI — Acées declaratérias. XII — Aces aparentemente declaratérias. XIII — O problema da imprescritibilidade das acdes. XIV —Alcance dos artigos 177 e 179 do Cédigo Civil. XV — Conclusées. Revista DA FACULDADE DE DIREITO I — O PROBLEMA EM FACE DA DOUTRINA E DA LEI A questao referente A distingéo entre prescric&o e de ca- déncia — tao velha quanto os dois velhos institutos de profun- das raizes romanas — continua a desafiar a argicia dos ju- ristas. As duvidas sdo tantas, e vém se acumulando de tal forma através dos séculos, que, ao lado de autores que acen- tuam a complexidade da matéria, outros, mais pessimistas, chegam até a negar — é certo que com indiscutivel exagero — a existéncia de qualquer diferenca entre as duas principais espécies de prazos extintivos. E o que informa De RUGGIERO (“Instituicdes de direito civil”, vol. 1°, pg. 335 da trad. port.). J&é BAUDRY-LACANTINERIE e ALBERT TISSIER declaram que sao faliveis, ou imprestaveis, os varios critérios propostos para distinguir os dois institutos. Acentuam, ainda, que nao se pode, a priori, estabelecer diferenca entre prescricéo e de- eadéncia, e sim examinar caso por caso, para dizer, a poste- riori, se o mesmo é de prescricgaéo ou de decadéncia. CLOVIS BEVILAQUA, por sua vez, afirma que “a doutrina ainda nao € firme e clara neste dominio” (‘Teoria geral”, pg. 367 da 2® ed.). Para AM{LCAR DE CASTRO, é “uma das mais difi- ceis e obscuras questées de direito essa de distinguir a pres- erigaéo da decadéncia” (Revista dos Tribunais, 156/323) . GIORGI diz que a ciéncia ainda nao encontrou um critério seguro para distinguir a prescrigéo das caducidades (“Teoria de las obligaciones”, vol. 9°, pg. 217). E CAMARA LEAL, * inegavelmente o autor brasileiro que mais se dedicou ao es- tudo do assunto, chegando mesmo a elaborar um método pra- tico para se fazer a distincao entre os dois institutos, diz que éste é “um dos problemas mais arduos da teoria geral do di- reito civil”, (“Da prescrigéo e da decadéncia”, pag. 133 — 18 ed.). £ incontestavel, porém, que as investigacdes doutrinarias, confirmadas pela grande maioria da jurisprudéncia, ja conse- guiram, pelo menos, chegar a uma conclusao: a de que os dois — 302 — Revista pA Facunpave pe Drrerro institutos se distinguem. Déste modo, falta apenas encontrar uma regra, um critério seguro, com base cientifica, para se fundamentar tal distingao, de modo a se tornar possivel iden- tificar, a priori, os prazos prescricionais e os decadenciais, o que, sem divida, nao constitui empreendimento facil. No direito brasileiro a questao ainda se torna mais com- plexa e ericada de obstaculos, pois o nosso Cédigo Civil englo- ba indiscriminadamente, sob uma mesma denominag&o e su- bordinados a um mesmo capitulo, os prazos de prescric&o e os prazos de decadéncia, dando-lhes, conseqiientemente, trata- mento igual. Por vézes, ainda, o mesmo Cédigo faz uso de ter- minologia absolutamente inadequada em face dos pronuncia- mentos da jurisprudéncia e da doutrina: é quando se refere a “prescrigao do direito” (arts. 166, 167, e 174, I), embora pre- yaleca o ponto de vista segundo o qual é a acao, e nao o di- reito, que prescreve. Este Ultimo esta sujeito é 4 decadéncia, cujos efeitos atingem a acdo apenas por via reflexa. A expli- cacéo para aquéle injustificavel érro do nosso Cédigo é a se- guinte, segundo observagao de Costa Manso: No projeto pri, mitivo, organizado por CLOVIS BEVILAQUA, os prazos decadéncia se achavam dispersos pelo Cédigo, nos lug: apropriados, e assim foram mantidos pela comiss&o revi: extra-parlamentar, pela “Comissao dos XXI” da Camara; Deputados, e pela propria Camara, nas trés discussdes mentais. Na redagdo final, entretanto, a respectiva confi OS supondo melhorar o projeto, metodizando-o, transferj Bara ©, a Parte Geral todos os prazos de decadéncia, colocan aids ao Jado dos prazos prescricionais prépriamente ditos. E pas- sou despercebido, nao foi objeto de debate, resultando, daf~ao invés do planejado melhoramento, um érro manifesto de classificagéo. (Revista dos Tribunais 85/257) . Aquela indiscriminag&o, que resultou de uma lamentavel inadverténcia, forca os aplicadores do Cédigo a decidirem — 303 — Revista pA FacuipapE DE DrIrEITo contra seu texto expresso, distinguindo onde éle nao distingue, infringindo-se, assim, multissecular regra de hermenéutica. £ certo porém que, ou se adota essa atitude de franca rebeldia contra o texto legal, ou ter-se-A que chegar a conclusao ainda mais absurda, isto é¢, admitir que certos prazos classificados pelo Cédigo como sendo de prescrigéo (mas que sao, indiscu- tivelmente, de decadéncia), podem ser objeto de suspensao, de interrupg4o e de rentincia. Como um exemplo entre muitos, emos 0 prazo que tem o marido para anular o casamento ntraido com mulher ja deflorada (art. 178, § 1°). Ninguém idmite, doutrinariamente, a possibilidade ser tal prazo objeto le interrupcdo, suspensfo, ou renincia, mas, por outro lado, e Se minguém pode negar que, em face do texto do Cédigo Civil, 0 ~ © m | mesmo prazo é susceptivel de rentincia, interrupcao, ou sus- se pensao. Como situar-se o intérprete diante dessa alternativa ' tao paradoxal? Atentar contra a letra da lei, ou atentar con- tra o bom senso juridico? A unica solucdo é seguir aquéle conselho de CARPENTER: em artigos de lei, o érro, quando € demasiado grande, nao prejudica, pois pode ser ladeado (“Da prescric&o”, pg. 357 — la. ed.). Déste modo, apesar do texto expresso do Cédigo, doutrina e jurisprudéncia, embora diver- gindo as opinides com referéncia a alguns casos, classificam como sendo de decadéncia os prazos previstos no artigo 178, § 19; § 20; § 30; $401 e II; § 5°, I, Il, Ml, e IV; $76.1, 10, TV, V, XL, X11, e XU), §)\ 21, Vice VII; §8°; § 99, I, letras a e b; II, III, IV, V, e VI; e § 10°, VIL. Ha também um outro problema de capital importancia, intimamente relacionado com aquéle da distingéo entre pres- erigéo e decadéncia, e ao qual néo se tem dispensado a neces- saria atencdo. E o que diz respeito 4s denominadas agées im- prescritiveis. Como identificar tais agdes? Ou — reunindo os dois problemas — como saber se determinada acéo est4 su- bordinada a um prazo de prescricao, a um prazo de decadén- cia (por via indireta), ou se ela é imprescritivel? a —304— Revista pA Facunpape pve Direrro tI — CRITSRIOS QUE TEM SIDO APRESENTADOS PARA DISTINGUIR A PRESCRICAO DA DECADENCIA O critério mais divulgado para se fazer a distingio entre os dois institutos é aquéle segundo o qual a prescricao extin- gue a acio, e a decadéncia extingue o direito. Entretanto, tal critério, além de carecer de base cientifica, ¢ absolutamente falho e inadequado, pois pretende fazer a distinco pelos efei- tos ou conseqiiéncias, se bem que aqueles sejam, realmente, os principais efeitos dos dois institutos. O critério apontado apre- senta-se, assim, com uma manifesta petig&o de princfpio, pois © que se deseja saber, precisamente, é quando o prazo extin- tivo atinge a acdo ou o direito. O que se procura é a causa e nao o efeito. Processo distintivo indiscutivelmente mais vantajoso do que aquéle é o sugerido por CAMARA LEAL, assim resumido pelo seu autor: “f de decadéncia o prazo estabelecido pela lei, ou pela vontade unilateral ou bilateral, quando pre- fixado ao exercicio do direito pelo seu titular. E é de prescricfo, quando fixado, nao para o exercicio do direito, mas para o exercicio da ac&o que o pro- tege. Quando, porém, o direito deve ser exercido por meio da acao, originando-se ambos do mesmo fato, de modo que o exercicio da acéo representa o proprio exercicio do direito, o prazo estabelecido para a acao deve ser tido como prefixado ao exer- cicio do direito, sendo, portanto, de decadéncia, em- bora aparentemente se afigure de prescricao”. (CAMARA LEAL — “Da prescricéio e da de- cadéncia”, 1* ed., pdgs. 133 e 134). Todavia, 0 critério proposto por CAMARA LEAL, embo- Ta muito util na pratica, se ressente de dupla falha: Em pri- — 305 — cclals Aplkaded a Revista DA FACULDADE DE DIREITO meiro lugar, é um critério empirico, carecedor de base cien- tifica, e isto 6 reconhecido pelo préprio CAMARA LEAL, pois éle fala em “discriminagao prdatica dos prazos de decadéncia das acdes” — (Obra citada, pag. 434). Com efeito, adotando- -se o referido critério, é facil verificar, praticamente, na maioria dos casos, se determinado prazo extintivo é prescricio- nal ou decadencial, mas o autor nao fixou, em bases cientifi- cas, uma norma para identiiicar aquelas situacées em que o direito nasce, ou nao, concomitantemente com a acao, pois é éste o seu ponto de partida para a distincdo entre os dois ins- titutos. Em segundo lugar, o critério em exame nao fornece elementos para se identificar, direta ou mesmo indiretamente (isto 6, por excluséo), as denominadas acées imprescritiveis. Faz-se necessario, assim, intensificar a procura de um ou- tro critério, e temos a impresséo que, tomando-se como ponto de partida a moderna classificagio dos direitos desenvolvida por CHIOVENDA e, particularmente, a categoria dos direitos potestativos, chegar-se-4, indubitavelmente, aquele critério ideal, isto é, a um critério dotado de bases cientificas e que permite, simult4nea e seguramente, distinguir, a priori, a pres- erigéo da decadéncia, e identificar as denominadas agdes im- prescritiveis. E 0 que nos propomos demonstrar com o presen- te trabalho. III — A MODERNA CLASSIFICACAO DOS DIREITOS E OS DIREITOS POTESTATIVOS Segundo CHIOVENDA, (“Instituigdes”, 1/35 e sgs.), os direitos subjetivos se dividem em duas grandes categorias: A primeira compreende aqueles direitos que tém por finalidade um bem da vida a conseguir-se mediante uma prestacdo, po- sitiva ou negativa, de outrem, isto é, do sujeito passivo. Rece- bem éles, de CHIOVENDA, a denominagao de “direitos a uma prestacdo”, e como exemplos poderiamos citar todos aquéles que compdem as duas numerosas classes dos direitos reais e — 306 — Revista DA Facunpape ve DirerTo pessoais. Nessas duas classes ha sempre um sujeito passivo obrigado a uma prestacdo, seja positiva (dar ou fazer), como nos direitos de crédito, seja negativa (abster-se), como nos di- reitos de propriedade. A segunda grande categoria é a dos de- nominados “direitos potestativos”, e compreende aqueles po- deres que a lei confere a determinadas pessoas de influirem, com uma declaracéo de vontade, sdbre situagGes juridicas de outras, sem o concurso da vontade destas. Desenvolvendo a conceituacao dos direitos potestativos, diz CHIOVENDA: “fsses poderes (que nao se devem confundir com as simples manifestagdes de capacidade juridica, como a faculdade de testar, de contratar e seme- Ihantes, a que nao corresponde nenhuma sujeicao alheia), se exercitam e atuam mediante simples de- claracaéo de vontade, mas, em alguns casos, com a necessaria intervencéo do Juiz. Tém tédas de co- mum tender 4 producao de um efeito juridico a fa- vor de um sujeito e a cargo de outro, o qual nada deve fazer, mas nem por isso pode esquivar-se aquele efeito, permanecendo sujeito A sua produ- gao. A sujeigao é um estado juridico que dispensa © concurso da vontade do sujeito, ou qualquer ati- tude déle. Sao poderes puramente ideais, criados e concebidos pela lei..... } @, pois, que se apresentam como um bem, nado ha exclui-los de entre os direi- tos, como realmente nfo os exclui o senso comum e © uso juridico. E mera peticao de principio afirmar que nao se pode imaginar um direito a que nao cor- responda uma obrigacao”. (“Instituigées” — trad. port., 1/41, 42). Von TUHR, por sua vez, conceitua os direitos potestati- vos nos seguintes térmos: “Em principio, quando se trata de modificar os li- mites entre duas esferas juridicas, é necessario o — 307 — Revista DA FacupavE pe DrreITo acérdo dos sujeitos interessados. A possibilidade que tém A e B de modificar suas relagoes juridicas reeiprocas, nao pode, evidentemente, conceber-se como um direito, pois nado pressup6e mais que a ca- pacidade geral de produzir efeitos juridicos. Sem embargo, distinta é a situacéo quando A ou B tém a faculdade de realizar a modificacgéo em virtude de sua s6 vontade. Tais faculdades sao inumeraveis e ilimitadamente diversas, porém sempre se funda- damentam em certos pressupostos exatamente de- terminados, Neste caso cabe falar de direitos; sao os potestativos;” (“DERECHO CIVIL” — vol. 1°, tomo 1°, pag. 203, da trad. cast.) Como exemplos de direitos potestativos podem ser citados os seguintes: o poder que tém o mandante e o doador de re- vogarem o mandato e a doagdo; o poder que tem o cénjuge de promover o desquite; o poder que tem o conddmino de des- fazer a comunhao; o poder que tem o herdeiro de aceitar ou renunciar a heranga; o poder que tém os interessados de pro- mover a invalidagdo dos atos juridicos nulos ou anulaveis (con- tratos, testamentos, casamentos, ete.); 0 poder que tem o sé- cio de promover a dissolugaéo da sociedade civil; o poder que tem o contratante de promover a rescisao do contrato por ina- dimplemento (art. 1.092, do Céd. Civ.), ou por vicios redi- bitérios (art. 1.101); 0 poder de escolha nas obrigagées al- ternativas (art. 884); o poder de interpelar, notificar, ou pro- testar, para constituir em mora; o poder de alegar compen- sacéo; o poder de resgate do imével vendido com clausula de retrovenda; o poder de adquirir meiagao de parede, muro, etc. (art. 643); o poder de dar vida a um contrato mediante acei- taco da oferta; o poder de requerer a interdicdo de determi- nadas pessoas; o poder de promover a rescisfio das sentencas; o poder que tem o pai de contestar a legitimidade do filho de sua mulher (art. 344); 0 poder assegurado ao filho de de- — 308 — Revista pa Facunpave ve Drreiro sobrigar os imoveis de sua propriedade alienados ou gravados pelo pai fora dos casos permitidos em lei; 0 poder que tém os herdeiros do filho de pleitearem a prova da legitimidade da filiagdo; o poder que tem 0 adotado de se desligar da adocao realizada quando éle era menor ou se achava interdito; 0 po- der assegurado ao cénjuge ou seus herdeiros necessarios para anular a doacao feita pelo cénjuge adtltero ao seu ctimplice. Muitos outros exemplos ainda poderiam ser citados. Da exposicdo feita acima se verifica facilmente que uma das principais caracteristicas dos direitos potestativos é 0 es- tado de sujeigéo que o seu exercicio cria para outra ou outras pessoas, independentemente da vontade destas tltimas, ou mesmo contra sua vontade. Assim, por exemplo, o mandata- rio, o donatario e os outros condéminos, sofrem os efeitos da extingao do mandato, da doacdo, e da comunhao, sem que pos- sam se opor a realiazcfo do ato que produizu aquéles efeitos. No maximo a pessoa que sofre a sujeigdo pode, em algumas hipéteses, se opor a que o ato seja realizado de determinada forma, mas nesse caso o titular do direito pode exercé-lo por outra forma. Ex.: divisio judicial, quando os demais condé- minos nao concordam com a diviséo amigavel. Outras caracteristicas dos direitos potestativos: sao in- susceptiveis de violacéo e a éles nao corresponde uma pres- tagao. A categoria dos direitos potestativos é conceituada por varios outros autores em térmos mais ou menos equivalentes aos de CHIOVENDA e Von TUHR: ENNECERUS — KIPP e WOLF — “‘Tratado de derecho civil”, vol. 1°, tomo 1°, trad. cast., pag. 294; LEHMANN — “Tratado de derecho civil”, vol. 1°, pags. 128 e 129; GUILHERME ESTELITA — “Direi- to de aciio — direito de demandar” pags. 88 e 89; PONTES DE MIRANDA — “Tratado de direito privado”, vol. 5°, pg. 242; J. FREDERICO MARQUES — “Ensaio sébre a jurisdi- ¢&o voluntaria”, pag. 241; ORLANDO GOMES — “Introdu- Ho ao direito civil”, pag. 119; e LUIS LORETO — Revista Forense 98/9. — 309 — Revista DA FacuLpapE DE DIREITO IV — CRITICAS FEITAS A EXISTENCIA DOS DIREITOS POTESTATIVOS A categoria dos direitos potestativos embora admitida por varios autores, principalmente na Alemanha e na Italia, tam- bém tem sido muito combatida. Entretanto, CHIOVENDA, ao redigir as suas “Instituigdes de direito processual civil”, afir- mou que “...as vivas controvérsias dos ultimos anos em térno aos direitos potestativos agora se aplacaram e a categoria pode considerar-se em definitivo, também na Italia, reconhecida pela doutrina e pela propria jurisprudéncia, que lhe consa- grou a utilidade pratica em importantes aplicagées”. (Vol. 19, pag. 43 da trad. port.). As principais objecées feitas A existéncia dos direitos po- testativos siéo as seguintes: alega-se que éles nada mais sao do que faculdades juridicas, ou, entaéo, manifestacdes da capa- cidade juridica, e que ndo se pode admitir a existéncia de um direito ao qual nao corresponda um dever. Todavia, na expo- sigfo que faz da sua doutrina, CHIOVENDA da resposta cabal e antecipada a tédas aquelas objecdes. Assim,"cumpre acen- tuar, em primeiro lugar, que o exercicio de um direito potes- tativo cria um estado de sujeicéo para outras pessoas, coisa que nao ocorre com o exercicio das meras faculdades. Por su- jeigGo, como ja vimos, deve-se entender a situacdo daquele que, independentemente da sua vontade, ou mesmo contra sua vontade, sofre uma alteracéo na sua situagdo juridica, por férca do exercicio de um daqueles poderes atribuidos a outra pessoa e que receberam a denominacio de direitos potestati- vos. Com efeito, ao fazer referéncia as declaragées de vontade por meio das quais se exercitam os direitos potestativos, CHIOVENDA diz: “Tém tédas de comum tender 4 produgio de um efeito juridico a favor de um sujeito e a cargo de outro, 0 qual nada deve fazer, mas nem por isso —310— REvIsTA DA FACULDADE DE DIREITO pode esquivar-se aquele efeito, parmanecendo su- jeito 4 sua producdo. A sujeigdéo é um estado juridi- co que dispensa o concurso da vontade do sujeito, ou qualquer atitude déle”. (“Instituigdes”, 1/41). E precisamente o que ocorre com o poder, assegurado aos contratantes, de promoverem a decretacéio de invalidade dos contratos nulos, exemplo tipico de direito potestativo. Se um dos contratantes pretende exercitar aquéle direito, pode fazé- | lo sem o concurso da vontade do outro, e éste, embora n&o pos- | sa se opor, fica sujeito aos efeitos do ato: sua esfera juridica é afetada por uma manifestacéo da vontade alheia, indepen- dentemente da prépria vontade. Ja o mesmo nao ocorre com o exercicio das denomina- das faculdades juridicas: tal exercicio sé afeta a esfera juri- dica de terceiro com aquiescéncia déste. Ex.: O proprietario tem o poder de vender a coisa, mas sé a compra quem quer — ninguém é obrigado a fazé-lo. O exercicio désse poder nao cria um estado de sujeicéo para terceiros sem a vontade dés- tes. Tal poder é, por conseguinte, uma mera faculdade, e nao um direito potestativo. Por ai se verifica que nfo assiste qualquer parcela de ravio a CUNHA GONCALVES quando identifica os direitos potestativos com as faculdades juridicas e cita, como exemplos, os atos de andar, comer, beber, dormir, dansar, ler e escrever (“Principios de direito civil luso-brasileiro”, vol. 1°, pag. 62, e “Tratado de direito civil”, vol. 1°, tomo 1°, da 1* edicao brasileira). Tais atos, entretanto, sio faculdades que nem si- quer podem ser classificadas de juridicas, e muito menos podem ser clasificados de direitos potestativos, pois nao criam estados de sujeicéo para terceiros. Com referéncia as outras objecées feitas A existéncia dos direitos potestativos, convém atentar para as consideracées que CHIOVENDA faz a respeito do contetido juridico da ex- pressdo “bem”, a qual abrange, entre outras coisas, “... a mo- —31l1— i | Revista DA FacutpapE pe DirerTo dificagéo do estado juridico existente, quando se tenha inte- résse de interromper uma relacio juridica ou de constituir uma nova”, E arremata: “... pois que (tais poderes) se apre- sentam como um bem, nao ha exclui-los de entre os direitos, como realmente nao os exclui o senso comum e o uso juridi- co”. — (“Institutigdes”, vol. 1°, pag. 42). Como reférgo de argumentacdo poder-se-ia invocar, ainda, a opiniéo de PON- TES DE MIRANDA: “Téda permissaéo de entrar na esfera juridica de outrem é direito; A todo direito corresponde sujeito passivo, — ou total, nos direitos absolutes, ou determinado, nos direitos relativos. Os direitos formativos, quer ge- radores, quer modificativos, quer extintivos, nao s&o sem sujeitos passivos: ha sempre esfera juridica alheia em que se opera a eficacia do exercicio de tais direitos”. (“Tratado de direito privado”, vol. V. pdg. 245). E certo que, em virtude da grande semelhanca entre os dois institutos, torna-se muito sutil, em alguns casos, a distin- ¢4o entre os direitos potestativos e as meras faculdades, mas a questao fica grandemente facilitada se se levar em conta, como fator distintivo, a sujeigéo, pois esta so existe nos direi- tos potestativos. Déste modo, aqueles que no querem, de forma alguma, ver nos direitos potestativos uma categoria auténoma de di- reitos subjetivos, tém que admitir, necessariamente, que éles constituem, pelo menos, uma classe especial de faculdades — isto é, aquelas faculdades cujo exercicio cria um estado de sujeicgdo para terceiros. O problema se reduzira, entao, a uma simples questao de natureza terminoldgica. De qualquer for- ma, nado serao afetadas as conclusdes que temos em vista no presente estudo. —312— Revista pA Facupape ve Dierro vy — FORMAS DE EXERCICIO DOS DIREITOS POTESTATIVOS Os direitos potestativos se exercitam e atuam, em prin- cipio, mediante simples declaracées de vontade do seu titular, independentemente de apelo as vias judiciais e, em qualquer hipotese, sem 0 concurso da vontade daquéle que sofre a sujei- gao. Exemplos: os direitos de revogacdo do mandato, de acei- tagado da heranga, de dar vida a um contrato mediante aceita- gao da oferta, de escolha nas obrigagoes alternativas, de re- trovenda, de dissolugao das sociedades por tempo indetermi- nado (art. 1.404). Em outros casos, que compéem uma segunda categoria, os direitos potestativos também podem ser exercitados medi- ante simples declaragéo da vontade do seu titular, sem apélo & via judicial, mas sémente se aquéle que sofre a sujeicdo con- cordar com tal forma de exercicio. Se nao houver concordan- cia, o titular do direito potestativo pode recorrer 4 via judicial para exercita-lo. Tal via funciona, ai, apenas subsidiariamente. Exemplos: o direito que tem o condémino de dividir a coisa comum; o direito que tem o sécio de promover a dissolucao da sociedade por tempo determinado, antes de expirado o res- pectivo prazo (art. 1.408, do Cod. Civ.); 0 direito que tem o doador de revogar a doacao; 0 direito que tem o filho de deso- brigar os imoveis de sua propriedade alienados ou gravados pelo pai fora dos casos expressos em lei; 0 direito que tem o cénjuge, ou seus herdeiros necessarios, para anular a doac&o feita pelo cénjuge adiltero ao seu ctimplice; o direito que tem © vendedor para resgatar o imdével vendido com clausula de retrovenda. Finalmente, ha uma terceira categoria de direitos potes- tativos que s6 podem ser exercidos por meio de ac&o, A ac&o, aqui, ja nao tem carater simplesmente subsidiario, ou facul- tativo, mas obrigatério, como forma de exercicio do direito. Conseqiientemente, nessa terceira categoria néo se dispensa a —313 — Revista pa Facuupape pe Direiro propositura da acéo nem mesmo quando todos os interessados, inclusive aquéles que sofrem a sujeicdo, estao de acodrdo em que o direito seja exercitado por outra forma. E por ésse mo- tivo que CALAMANDREI da, a tais procedimentos judiciais, a denominacéo de agoes necessdrias, e a elas faz referéncia em varias passagens dos seus “Estudios sobre el proceso civil” (pags., 37, 152, 233, 238, 239 e 240 da trad. cast.). O que tem em vista a lei, ao eleger a vida judicial como forma especial e exclusiva de exercicio dos direitos potestati- vos dessa terceira categoria, 6 conceder maior seguranca para determinadas situac6es juridicas cuja alteracéo tem reflexos acentuados na ordem plblica. Nessa categoria EDUARDO COUTURE inclui de modo geral, aquéles direitos potestativos que dizem respeito ao estado civil das pessoas (‘Fundamen- tos del derecho procesal civil”, pag. 221). Exemplos — o di- reito que tem o marido de promover a anulacdo do casamento contraido com mulher ja deflorada, e todos aquéles direitos de invalidar os casamentos nulos ou anulaveis; o direito que tem o pai de contestar a legitimidade do filho de sua mulher; 0 direito que tem o filho ilegitimo de pleitear o reconhecimen- to de sua paternidade, quando o pai nao o reconheceu volun- tariamente; o direito que tém determinadas pessoas de reque- rerem a interdicao de outras, etc., etc. Corolario da natureza especial destas acdes constitutivas necessarias é a impossibilidade de ser aplicado a elas o prin- cipio da confissdo ficta, consubstanciado no art. 209 do Cédigo de Processo Civil. Ao propor uma daquelas agoes por meio das quais sao exercidos os direitos potestativos da segunda e da terceira ca- tegorias, o respectivo autor nao pleiteia do réu qualquer pres- tacdo, seja prestacao de dar, de fazer, de nao-fazer, de abster- -se, ou de outra espécie. O que éle visa com a propositura da ac&o 6, apenas, criar, extinguir, ou modificar determinada si- tuagdo juridica, e isso é feito independentemente da vontade, ou mesmo contra a vontade da pessoa ou pessoas que ficam sujeitas aos efeitos do ato. Assim, o réu da ac&o, embora nao —314— RevisTa DA FACULDADE DE DIREITO fique obrigado a uma prestacéo, sofre uma sujeigéo. E o que ecorre, por exemplo, com a acao proposta pelo cénjuge coacto para anular o casamento. Julgada procedente a agio, 0 efeito da sentenca nao é a condenagio do outro cénjuge a uma pres- taedo, e sim a anulaco do casamento. A tal efeito o outro cén- juge fica sujeito, mesmo contra sua vontade. Como se verifica facil e prontamente, ha uma nitida dife- renca de contetido entre tais acdes e aquelas outras que ca- racterizam a atividade jurisdicional e que sao propostas exa- tamente com o objetivo de compelir o réu a uma prestacdo. VI — MODERNA CLASSIFICACAO DAS ACOES A concepeao dos direitos potestativos induziu a substitui- gao da tradicional classificacio das agdes, oriunda do direito romano, e que levava em conta a natureza do direito cuja defesa se pretendia com o exercicio da acdo (acées reais, pes- soais, mistas e prejudiciais), por uma outra classificacéo que tivesse em vista a natureza do pronunciamento judicial plei- teado. ‘“‘Classificagéo segundo a carga de eficacia’”’, conforme a conceituou Pontes de Miranda (“Tratado de direito privado” 5/483). De acérdo com essa orientac&o, CHIOVENDA classificou as acdes em trés grupos principais: condenatérias, constituti- vas e declaratérias (“Instituigdes”, 1/67) . Langa-se mao da ac&o condenatéria quando se pretende obter do réu uma determinada prestacéo (positiva ou negati- va), pois, “correlativo ao conceito de condenacao é 0 conceito de prestacdo”. Déste modo, um dos pressupostos da ac&o de condenagao é “a existéncia de uma vontade de lei que garan- ta um bem a alguém, impondo ao réu a obrigacdéo de uma prestagdo. Por conseqiiéncia, nao podem jamais dar lugar a sentenga de condenacio os direitos potestativos”. (CHIOVEN- DA — obra cit., 1/267). — 315 —

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