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OS DESCAMINHOS DA LIBERDADE
Uma Análise da Moral de Sartre
Niterói
2000
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OS DESCAMINHOS DA LIBERDADE
Uma Análise da Moral de Sartre
Niterói
2000
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OS DESCAMINHOS DA LIBERDADE
Uma Análise da Moral de Sartre
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________________
Prof. Fernando José Fagundes Ribeiro
Universidade Federal Fluminense
Niterói
2000
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AGRADECIMENTOS
Na verdade, não; e foi por isso que o sucesso de Sartre foi tão ambíguo
quanto volumoso, inflado dessa mesma ambigüidade. As pessoas se
lançaram avidamente sobre uma comida qual tinham fome; quebraram os
dentes e soltaram gritos cuja violência intrigava e atraía. Sartre os seduzia
mantendo, no nível do indivíduo, os direitos da moral; mas a moral que ele
indicava não era a deles. Seus romances lhes devolviam uma imagem da
sociedade que eles recusavam; acusaram-no de realismo sórdido, de
miserabilismo. Estavam dispostos a ouvir sobre eles mesmos algumas
verdades brandas, mas não a se olhar de frente. Contra a dialética marxista,
reivindicavam a liberdade; mas Sartre exagerava. A liberdade que ele lhes
oferecia implicava em fatigantes responsabilidades; voltava-se contra as
instituições, os costumes; destruía sua segurança. Convidava-os a usá-la
para se aliar ao proletariado: eles queriam entrar para a História, mas não
por essa porta. Categorizados, catalogados, os intelectuais comunistas os
incomodavam muito menos. Em Sartre, os burgueses se reconheciam, sem
consentir na superação da qual ele lhes dava o exemplo; ele falava a língua
deles, usando-a para lhes dizer o que não queriam ouvir. Eles vinham e
voltavam a Sartre porque ele lhes fazia perguntas que eles mesmos se
faziam: fugiam porque as respostas os chocavam.”
Simone de Beauvoir
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SUMÁRIO
Introdução ................................................................................................ 10
PARTE I - O SER .................................................................................. 16
Capítulo 1 - A Fenomenologia .............................................................. 17
Capítulo 2 - A Náusea ........................................................................... 22
Capítulo 3 - O Ser e o Nada .................................................................. 26
Capítulo 4 - A Má Fé............................................................................. 31
Capítulo 5 - A Liberdade....................................................................... 38
Capítulo 6 - O Outro ............................................................................. 47
Análise Fílmica :“Deserto vermelho” ................................................... 57
PARTE II - OS VALORES ...................................................................... 69
Capítulo 1 - A Deliberação Moral ........................................................ 70
Capítulo 2 - O Existencialismo é um Humanismo................................ 81
Análise Fílmica: “A rotina tem seu encanto” ....................................... 95
PARTE III - A HISTÓRIA .................................................................... 107
Capítulo 1 – Existencialismo e Marxismo .......................................... 108
Capítulo 2 – A Alienação .................................................................... 126
Capítulo 3 – O Grupo .......................................................................... 139
Capítulo 4 – O Progresso de Kant....................................................... 151
Capítulo 5 – O Espírito Absoluto de Hegel ........................................ 156
Capítulo 6 – O Materialismo de Marx e a Moral de Sartre ................ 163
Análise Fílmica: “Eles não usam black-tie” ....................................... 181
Conclusão ............................................................................................... 195
Bibliografia ............................................................................................ 199
Apêndice................................................................................................. 204
Sartre em tempo de globalização ........................................................ 204
Notas biográficas ................................................................................. 211
Ilustrações .............................................................................................. 220
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES
RESUMO
O filósofo Jean-Paul Sartre foi uma das figuras mais marcantes do século
XX, escrevendo sobre os mais variados temas. Foi constatada uma lacuna
em sua obra em relação ao Cinema, sendo necessário um deslocamento da
análise para o campo moral de seu pensamento. Há uma visão geral de sua
obra, buscando uma coerência em seu desenvolvimento. São ilustrados os
seus conceitos filosóficos a partir da análise de filmes, permitindo uma
maior compreensão.
Introdução
1
CONTAIT, M. e RYBALKA, M. Les écrits de Sartre Paris: Gallimard, 1970. pp. 546-2
2
SARTRE, J.-P. Situations VII. Paris: Gallimard, 1965. pp. 332-342
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COHEN-SOLAL, A. Sartre: 1905-1980. trad. Milton Persson. Porto Alegre: L&PM, 1986. pp. 118-21.
A autora narra as excentricidades do jovem parisiense naquela pequena cidade, causando atos
reprovatórios, como andar mal vestido, permitir os alunos fumarem na sala de aula e ser freqüentemente
visto bêbado em companhia dos seus alunos nos bordéis locais.
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“(...) Je prétends que le cinéma est un art nouveau qui a ses lois propres, ses moyens particuliers, qu’on
ne peut le réduire au thêatre, qu’il doit servir à votre culture au même titre que le grec ou la philosophie.»
in CONTAIT, M. e RYBALKA, M. op cit p. 548
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convicções políticas, que mudaram os rumos de sua moral. Este universo beligerante
trouxe um fator crucial ao mais existencialistas dos termos existencialistas: a Liberdade.
O que é a Liberdade para Sartre? Esta á uma pergunta que percorrerá o nosso
trabalho, resguardando o seguinte princípio: toda liberdade está em situação e não há
situação sem liberdade. Assim, chegamos ao binômio “Liberdade-Situação”, que resume
o pensamento sartreano. Queremos demonstrar que Sartre não rompeu com sua proposta
existencialista ao se aproximar do Marxismo. Porém, a sua prometida Moral foi-se
encaminhando para uma proposta marxista e para tal, houve um deslizamento no
binômio “Liberdade-Situação” e não, um abandono. Ou seja, existe coerência, apesar de
muitos problemas, no pensamento sartreano. O nosso esforço é comprovar isto.
Este binômio trouxe uma nova luz para pensar o Marxismo. Sartre criticava
duramente os marxistas que caíram num economicismo mecanicista ou num idealismo
puro, em busca do “Homem Marxista”. Mais do que relações econômicas, os homens
mantêm entre si relações pessoais e é neste plano que se desenrolam as ações políticas.
Há um espaço para a subjetividade no materialismo de Marx, pois a dialética é um
momento da consciência e não, uma lei da matéria.
Este estudo sobre a Moral será apoiado em análises de filmes. Porém, não
analisaremos filmes intimamente ligados ao Existencialismo. Fugiremos de tal
empreendimento com a intenção intelectual de distinguir o Existencialismo como uma
corrente filosófica de uma moda passageira que varreu a cultura francesa no pós-guerra.
PARTE I - O SER
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Capítulo 1 - A Fenomenologia
Esta foi criada por Edmund Husserl (1859-1938) que buscava, no fim do
século XIX, fundamentar o conhecimento, devido a eufórica expansão do método
científico. A Filosofia, com seus grandes sistemas tradicionais, estava em crise, devido à
vaga positivista que atribuía um poder exacerbado à Ciência. Porém, campos como a
física ou a química já possuíam um solo firme, mas as recém-nascidas ciências, como a
sociologia ou a antropologia, careciam de uma sólida fundamentação filosófica.
Oriundas do positivismo, zelavam por um objetivismo puro, como uma simples
descrição de fatos empíricos, isentos de elementos subjetivistas. Imitando o modelo das
ciências da natureza, estas começaram a ser questionadas. As suas leis tinham uma
fundamentação? Serão apenas convenções?
Foi pela psicologia, que gozava um enorme prestígio em sua época, que
Husserl orientou seus estudos. Esta é uma ciência empírica dos fatos do conhecimento,
onde, segundo as teorias vigentes, a consciência abriga imagens ou representações dos
objetos que afetam nossos sentidos. Porém, uma nova luz é lançada com as idéias de
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O fenômeno não é uma cortina que esconde alguma coisa, nem tampouco, um
mero feixe amorfo de sensações. O seu sentido é inteiramente imanente, podendo ser
percebida a sua essência. O fenômeno é aquilo que se manifesta imediatamente à
consciência. Assim, a filosofia deveria partir da experiência real, com um “retorno às
coisas mesmas”. A essência é sempre idêntica a si mesma, independente das
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o esforço de André Bazin (1918-1958). Mas, como vimos, para tal é necessário
pressupor que a tela é um espaço de realidade.1
1
As idéias de Bazin desenvolvidas no pós-guerra foram influenciadas pelo neo-realismo italiano e pelo
existencialismo francês, sobretudo Sartre. Portanto, o ponto de partida de sua teoria realista é a
fenomenologia. Para Bazin, o cinema possui uma dimensão ontológica que remete à realidade concreta
que é impressa na película. A imagem fotográfica, diferente da pintura, nos exibe a matéria nua e
oferecida à nossa percepção. O cinema não é uma aparência do real, mas a criação de um mundo na tela
que é “à imagem do real”. Propõe, inclusive uma fenomenologia, em que o cinema não deveria ser
ideológico, mas exibir um mundo “entre parênteses”, ou seja, o mundo como ele realmente é. Seria
deveras interessante estudar a influência das idéias fenomenológicas e existencialistas no pensamento
baziniano, porém, isto fugiria à proposta de nosso trabalho.
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designa o objeto, mas é por ela e nela, e somente nela, que se forma o objeto, pois sem
ela não seria possível tal síntese.
Capítulo 2 - A Náusea
Notamos que a Náusea é tão perturbadora pelo fato de nos retirar qualquer
ponto de apoio para a nossa existência. A vida humana é um absurdo despossuído de
sentido: “Todo ente nasce sem razão, se prolonga por fraqueza e morre por acaso” (p.
197). Ficamos petrificados diante deste assustador niilismo que nos assalta, mas o
esforço de Sartre é ultrapassar a Náusea. Realmente, se permanecêssemos mergulhados
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Inspirada em Havre, onde Sartre iniciou a sua carreira no magistério.
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na Náusea, ficaríamos imobilizados por uma passividade absoluta. Porém, Sartre quer
um ativismo constante e para tal é necessário sobrepujar este aterrador estado. A Náusea
é, de suma importância, porque é por ela que experimentamos a existência, e, é
justamente pelo fato de ser algo tão horrível que conseguimos abandonar as nossas
idéias preconcebidas do mundo. É nesta completa ausência de solo firme que se
edificará o pensamento sartreano e, portanto, devemos sentir os nossos pés tremularem
no vazio: “A existência não é algo que se deixe conceber de longe: tem que nos invadir
bruscamente, tem que se deter sobre nós, pesar intensamente sobre nosso coração como
um grande animal imóvel - do contrário não é há absolutamente nada mais.” (p.195).
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Os heróis sartreanos são basicamente “anti-heróis”, ou seja, as experiências que vivem estão
relacionadas com os atos cotidianos, banais, fazendo uma forte relação entre o personagem e a situação.
Lembremos que o existencialismo se baseia de que o homem é um ser-no-mundo. Contudo, não confundir
com algum “naturalismo”, como fosse o meio que forjasse o homem. A essência humana não é algo dado,
está sempre a construir, assim como o mundo. Estas são questões que desenvolveremos ao longo do texto,
mas, já podemos identificar como Sartre irá, aos poucos, se dirigir para o Marxismo, e em que pontos irá
criticar numa certa leitura deste.
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Em 1943, quando a cruz suástica paira sobre as cabeças dos franceses, Sartre
publica um volumoso ensaio: “O Ser e o Nada” (L’Être et le Néant). Neste livro ocorre
a sistematização de seu pensamento ontológico, já esboçado em suas quatro publicações
filosóficas anteriores. Encontramos nessa obra um fundamento básico: o fenômeno.
Sendo o que é, o Em-si possui uma identidade perfeita. Esta é a sua principal
característica. O Em-si é absolutamente idêntico a si mesmo, não aceitando qualquer
fissura, tendo uma plenitude absoluta. Isto recorda ao Ser todo inteiro idêntico de
Parmênides de Eléia (c. 530-460 a.C.), cujo unicidade o repelia do Não-ser. Para Sartre,
devido a esta inteireza do Em-si, a sua estrutura interna é impossível de ser determinada,
cabendo à consciência apenas tratar dele por negação.
Se o Em-si está encerrado sobre si, o Ser-Para-si é algo aberto, ou seja, está
situado no mundo entre as coisas, mas não é uma delas. Ele está em frente ao mundo, na
presença dele. Há uma distância entre a consciência e o mundo. O Para-si seria uma
“doença do Ser”, pois é como se o Em-si tivesse se rompido. Assim, o Em-si não
depende do Para-si para existir, mas apenas para existir como fenômeno, dito de outro
modo, a consciência não cria o mundo, mas somente o constata. Agora, por que o Para-
si surgiu é algo impossível de saber, pois o Para-si, como o ser que questiona, já se
encontra desde o primeiro momento com o Em-si. Não há como saber como seria antes
do aparecimento do Para-si.4
Esta constatação se dá através de um recuo diante das coisas. Para Sartre todo
conhecimento deriva de um movimento negativo. Quando afirmo que tal coisa é uma
caneta, estou dizendo que ela não é um livro, não é um homem, etc. Assim, a
consciência, que não é uma substância, sendo algo totalmente aberto, se comporta pela
via da negação. Se o fundamento do Em-si é o ser pleno, o Para-si, que é um outro
totalmente distinto, é o nada.
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Sartre afirma, sob uma metáfora, de que seria como que o Em-si, em uma revolta por sua contingência,
quisesse fundamentar-se a si próprio, buscando uma consciência de si, aflorando o Nada no seio do Ser,
formando o Para-si.
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Devido a isto, a consciência é um ser bizarro entre as coisas. Este recuo que
há entre a consciência e o mundo é o Nada. Porém, este Nada não é alguma coisa, pois o
Nada não é. Assim, o Para-si carrega o Nada que invade o Ser, pois o Nada não nadifica
as coisas, pois sendo algo que não é, não possui características. O Nada é nadificado, ou
seja, ele provém de algum lugar como se fosse uma secreção. Já vimos que o Em-si é
totalmente pleno, portanto, o Nada não pode vir do Em-si. Desta forma, é algum ser que
carrega em seu âmago o Nada, ser este que está em seu próprio ser o questionamento de
seu ser, ou seja, o seu próprio nada; “o homem é o ser pelo qual o nada vem ao mundo”.
Somos transcendência pois há um Nada que nos separa do mundo, o que não
nos torna uma coisa, porém, ao mesmo tempo, somos facticidade, pois possuímos um
corpo, sendo uma coisa no mundo. A minha consciência contempla o mundo, mas
encerrada a um corpo e, portanto, comprometida com este. Desta forma, vivemos num
corpo, atolados no mundo, mas sem ser totalmente parte deste.
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possui um teor perturbador, que tende ser escamoteado de forma fraudulenta, por um
mecanismo de autodefesa da consciência.
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Capítulo 4 - A Má Fé
Sendo assim, todos os atos da consciência poderiam ser outros, já que são
livres. Ou seja, não há nenhum fundamento que justifique seus atos. A consciência,
portanto, não pode ser determinada por nenhuma causa exterior a ela - ela é o seu
próprio fundamento. Diante deste fato somos assaltados pela Angústia. Esta, nada mais
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Vemos que a angústia ocorre quando, numa situação, me choco com uma rede
de possibilidades. E a escolha de tal possível como um ato concreto torna todos os
outros possíveis que a situação comporta em estado de não-ser, mas estes só são
mantidos sob tal forma pela minha conduta, convertendo a mim próprio na única fonte
de meu ato. A angústia é a tomada de consciência desta ausência de fundamento onde se
desenrolam os meus atos. De súbito, verifico que sou uma liberdade.
Por ser livre, sou angústia. E para dissimulá-la, preciso fingir que não sou
livre. Ou seja, julgo que ajo de tal forma, porque poderia somente agir como tal. Eu
escamoteio a liberdade de mim mesmo para encontrar um repouso, ansiando em me
converter num Em-si. Eu ajo como se fosse uma pedra que cai, não por vontade própria,
mas impelida pelas leis da física. Este mascaramento se chama Má-fé.
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Estudaremos detalhadamente a Liberdade no capítulo seguinte. Este conceito é fundamental no
pensamento sartreano e o ponto nevrálgico de nosso estudo, merecendo uma análise mais cuidadosa.
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Isto ocorre porque o Para-si é uma fissura, sendo um ser que é o que ele não é
e não é o que ele é. A Má-fé se processa devido a esta dualidade estrutural do Para-si,
fazendo a consciência capaz de ser totalmente ela mesma e, simultaneamente, estando à
distância de si própria. Diante desta constatação, Sartre evoca um conceito desenvolvido
no nosso século: o inconsciente.
próprios pensamentos, que estão ocultos no inconsciente. E este, por sua vez, não
poderia censurar a si próprio.
A Má-fé é uma conduta de defesa da consciência, mas esta não reconhece que
está na defensiva. A dissimulação da angústia é possível por um jogo dúbio com a nossa
transcendência e facticidade. Entende-se melhor as condutas de Má-fé, em três
exemplos célebres de Sartre: a jovem coquette, o garçom de café e o homossexual.
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Sartre zelou por uma moral rigorosa, não aceitando isenções de responsabilidade. É neste viés que se dá
a sua recusa radical do inconsciente. Por tal, é acusado de ter uma leitura simplista e mecanicista da
psicanálise. Atualmente, esta é extremamente mais sofisticada, após uma revisão de elementos
cientificistas e positivistas da teoria de Freud, sistematizada por Jacques Lacan (1901-1981). Em suas
últimas entrevistas, Sartre reconhece a assimilação destas novas leituras. Numa entrevista em 1971,
sublinha isso: “Continuo a não acreditar no inconsciente sob certas formas, embora a concepção do
inconsciente em Lacan seja mais interessante...” SARTRE, J. – P. “Situações X” trad. Pedro Tamen.
Lisboa: António Ramos, 1977. p. 103.
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Vemos que esta jovem está de má-fé, pois ela quer e não quer ser desejada
simultaneamente. O desejo do outro deixa-a horrorizada, portanto ela retira a conotação
sexual de seus elogios. A idéia de ser apenas um corpo para o outro é insuportável,
transformando, portanto, uma transcendência numa facticidade. Ela desarma as
intenções de seu companheiro, despojando-as de seu caráter transcendente (oriundas de
uma liberdade) encarando-as como fossem um Em-si. Porém ela se permite desfrutar o
desejo do outro, apreendendo aquilo que é como sendo o que não é, ou seja, numa
transcendência. O fato do desejo alheio é convertido em respeito, estima, admiração. Os
elogios de seu parceiro não estão carregados de algum sentido corporal, são
direcionadas ao seu espírito. Quando a sua beleza é elogiada, não se trata de sua carne,
mas de seu porte, seu charme, ou seja, algum elemento espiritual. Este processo se
radicaliza quando ocorre o contato físico, pois há um secessão completa entre corpo e
espírito. Ela nega o seu próprio corpo, vendo do alto como algo plástico nas mãos de seu
parceiro, enquanto ela continua a falar de sua vida, indo às mais altas regiões da
especulação sentimental. Ela quer o desejo do outro, não como de fato ele é (algo
carnal), mas como gostaria que fosse (um respeito ao seu espírito). Em outras palavras,
ela quer que o seu companheiro a ame como ela ama a si própria.
Contudo, se eu sou o que não sou e não sou o que sou, ou seja, que é preciso
que nos façamos constantemente ser o que somos, como posso querer me adequar
perfeitamente naquilo que pretendo ser? Apenas por uma conduta de Má-fé possuo a
ilusão desta identidade plena comigo mesmo. É o exemplo do garçom de café. Ele
brinca com o seu corpo, inclinando a bandeja, com gestos leves e um ar solícito aos
fregueses. Ele está representando em ser um garçom de café. A sua cortesia se deve ao
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que é cobrado de sua função. Portanto, toda função social é um teatro que representamos
para o outro.7 O garçom está de má-fé porque ele quer simplesmente ser um garçom.
Porém, não pode ser uma coisa, como uma mesa é uma mesa. A sua condição é uma
“representação” para os outros e para ele próprio. Portanto, ele não pode ser um garçom
Em-si, pois, por mais que cumpra todas as suas funções, há uma consciência de “ser
garçom”, fazendo dele um ator, realizando os seus gestos mecanicamente. No café, ele
se ilude ao tentar ser garçom, pois se ele está servindo as mesas, isto se deve a uma
escolha. Ele poderia ter faltado ao serviço ou atender mal os clientes, correndo o risco
de ser despedido.
7
Em Kean (adaptação da peça de Alexandre Dumas) Sartre desenvolve este tema com o personagem-
título que foi o maior ator inglês de sua época. Vemos que o teatro não se limita à ribalta, sendo levado
para o campo social e amoroso.
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Capítulo 5 - A Liberdade
O fato de ter um ser finito e limitado é o que motiva a minha escolha, pois se
eu realizasse todos os meus possíveis, eu me desagregaria. A escolha leva em
consideração que realizo tal possível, em detrimento de todos os outros. Porém, esta
incompletude intrínseca de meu ser, tornando-me algo finito, não limitaria a minha
liberdade?
Os meus atos passados são convertidos num Em-si. Já não posso mais
modificá-los, pois já estão realizados. Podemos imaginar, portanto, que o passado é algo
que me determina. Porém, esta “imutabilidade” do passado não limita a minha
liberdade, pois o passado somente adquire sentido e força por minha própria escolha. Se
eu me envergonho de minha origem pobre ou de algum ato vergonhoso cometido na
juventude, sou eu que atribuo valor de vergonha ao meu passado. Posso livremente
decidir se o passado deve permanecer vivo ou não, e em que grau de intensidade ele me
“oprime”. O seu significado vem do que eu decidir. Nesses termos, o poder do passado
vem do futuro.
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A Liberdade não é um possível que possuo, pois em Sartre não existe a dicotomia clássica ato-potência.
Em sua filosofia, tudo está em ato.
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Concordamos que o desenvolvimento tecnológico se relaciona com um certo período histórico, e eu não
escolho em que época vivo. Porém, com as ferramentas que a minha época me oferece, posso realizar-me
livremente. A História, como o Para-si, é uma totalização-em-curso, empreendida livremente pelos
homens. Abordaremos a questão do coletivo e como é encarada a História em Sartre, na Parte III.
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Evidente que eu não escolho a situação em que me encerro, mas sim que
atitude tomar diante dela. Assim, o importante é o que fazemos daquilo de que somos
feitos. A liberdade, portanto, encontra no mundo somente obstáculos que ela própria
colocou. Assim, a liberdade não é limitada por nada exterior a ela, apenas por ela
própria. Somente a liberdade pode limitar a liberdade. Seria como se ela aprisionasse a
si própria, pois eu não sou livre em deixar de ser livre. Assim, Sartre afirma que
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Eu sou livre para escolher, mas não posso escolher em não escolher.
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Por que o futuro? O passado, como já vimos, é um Em-si, sendo algo que eu
arrasto atrás de mim. O presente, por sua vez, é imediatamente petrificado em passado.
Jamais possuo a experiência do presente, pois este é uma fuga constante. Assim, o
presente do qual necessito, eu retiro do futuro, que é algo distante das mãos congelantes
do Em-si.
Portanto, o futuro dá um sentido ao meu presente, mas isto não significa que
me determina, pois é uma imagem de possibilidade, além de que a minha consciência
futura pode escolher outra coisa. Portanto, pelo projeto, vemos que a consciência está
sempre no futuro, se projetando em sua direção, por ser o Para-si uma totalização-em-
curso.
que constato o mundo como algo “inacabado”, graças a uma “tarefa futura realizada”,
vendo assim lacunas a serem preenchidas.
Podemos ver que a consciência vem do futuro pelo caráter deste ser cheio de
possibilidades. Porém, haveria um lugar onde o meu futuro é encerrado. É a Morte.
Seria o único momento onde não seria livre? A morte é inevitável, portanto, o fato de eu
ser mortal limitaria a minha liberdade?
A minha finitude não se deve ao fato de ser mortal. As minhas escolhas são
petrificadas no passado, não posso mais reavivá-lo, querendo mudar o porquê de minha
escolha, que se deu em detrimento dos outros possíveis. Assim, sou finito por ser livre,
pois a cada escolha que realizo ao longo da vida, exprimindo a minha unicidade, se
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cristaliza num Em-si acabado e finito, dirigindo-se ao futuro. Por outro lado, a morte
não exprime a minha unicidade, mas é a singularidade do Para-si que determina a morte
como minha. Todos os meus atos são singulares, não somente na morte, pois ninguém
pode amar ou sentir dor no meu lugar. Eu sempre sou insubstituível.
assim, ela não é algum limite à liberdade, pois esta já não existe quando advém a
morte.11
Não existe nada que limite a liberdade. Portanto, não existe algo que
predetermine o ser do Para-si. Este não é definido anteriormente, mas no transcorrer da
sua existência. Não há nenhuma essência a priori, que indique o sentido da vida
humana. O Para-si, por definição, é pura possibilidade de ser, ou seja, a sua essência se
faz a partir da existência. O homem cria a si próprio, produzindo a sua essência. Assim,
chegamos ao princípio capital do existencialismo: a existência precede a essência.
Já vimos que a única liberdade que não temos é a de não escolher sermos
livres ou não. Se eu pudesse ser livre para tal, eu teria uma liberdade anterior à escolha,
mas a liberdade é co-extensiva à escolha. Ela só existe numa manifestação concreta,
senão a liberdade seria alguma essência, como no idealismo. Vemos, então, que a
liberdade é algo contingente. Assim, não somos o fundamento de nossa liberdade, já que
não a escolhemos.
Todo ato humano é um ato livre. Isto não significa que não haja uma
coerência em nossos atos. A minha forma de agir constitui uma conduta pessoal de meu
caráter. Portanto, atrás de cada um de meus atos está algo que os costura, dando esta
minha coerência interna. Há uma escolha originária de nosso ser, que se chama projeto
fundamental.
Porém, este projeto fundamental não é algo imutável. Se fosse, seria alguma
essência. Ele provém de uma escolha e, portanto, é algo cambiável. Assim, é possível
mudar ou não mudar tal projeto e, portanto, não posso afirmar o que é algum homem,
enquanto ele estiver vivo. Após sua morte, isto é capaz pois a sua transcendência se
desvanece, endurecendo-se num Em-si. Em suma, Sartre crê no conceito de conversão.
11
Sartre compartilha o raciocínio de Epicuro (341-270 a.C.) que pregava a despreocupação em relação à
morte, pois quando ela chega, eu já não estou mais: “Habitua-te a pensar que a morte nada é para nós,
visto que todo o mal e todo bem se encontram na sensibilidade: e a morte é a privação da sensibilidade.”
(Antologia de Textos de Epicuro in Os Pensadores).
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desejo de ser Em-si. Porém, este Em-si que é desejado não é um Em-si puro e
contingente que se auto-ignora. Este Em-si seria uma plenitude que fosse para si mesma
seu próprio fundamento. Portanto, as motivações do Para-si se concentram nesta
perpétua busca, almejando ser um Em-si-Para-si. Ou seja, seria uma consciência que
seria o fundamento de si própria pela pura consciência que tomasse de si mesma. Este
ideal possui um nome: Deus. Assim, o projeto fundamental da realidade humana é este
desejo de ser Deus. Todo homem, antes de qualquer elemento cultural, possui esta
“propensão religiosa”, pois a condição humana é, fundamentalmente, querer ser Deus.
Isto explica a presença do discurso mítico, em suas várias manifestações, em todas as
culturas. Porém, isto jamais se completa por ser impossível tal síntese, constituindo a
condição humana como um lançar-se em direção à algo que jamais será. Como um
cachorro que corre atrás do próprio rabo. É por isso que Sartre afirma que o “homem é
uma paixão inútil”. E completa: “Toda realidade humana é uma paixão, já que projeta
perder-se para fundamentar o ser e, ao mesmo tempo, constituir o Em-si que escape à
contingência sendo fundamento de si mesmo, o Ens causa sui que as religiões chamam
de Deus.” Portanto, a paixão humana é a inversa de Cristo, que se despojou de seu poder
divino para martirizar-se como homem; o homem, por sua vez, quer perder-se como
homem para se converter em Deus.
12
Para desvendar esta conexão singular entre os atos e o projeto fundamental, Sartre esboça a
possibilidade de uma “psicanálise existencial”.
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projeto fundamental não é algo sólido, podendo ser mudado. Portanto, a nossa vida é,
em suma, a escolha de um modo de viver. Somos uma escolha!
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Capítulo 6 - O Outro
Até agora analisamos a consciência como algo solitário. Porém, cada homem
existe no mundo entre outros homens. Assim, eu simplesmente sei que existem outras
consciências no mundo. Esta certeza é tão absoluta quanto tenho de minha própria
existência. Como isto é possível?
Já vimos que Outro é algo que me constitui, antes de sua aparição concreta.
Para isso, a minha consciência deve possuir uma negação interna, já que o Outro é a
consciência que eu não sou. Recordemos que o Para-si é negação de Ser, logo, é como
se engolisse tal poder nadificador, gerando esta certeza originária. Assim, é através desta
certeza, que precede o meu encontro com o Outro, capaz de reconhecê-lo como um
sujeito, e não como uma coisa do mundo (o problema em que Descartes se encontrou).
Assim eu sei que estou diante de uma outra consciência, e não de um boneco de carne.
13
Se os europeus questionavam a humanidade dos ameríndios, isto se deve por um “choque cultural”.
Lembremos que o existencialismo entrou “em voga” após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), que
abalou as crenças da civilização branca e européia ao comprovar, em escala industrial, a capacidade
radical do homem de desumanizar o Outro. Se o nazista coisificava o judeu, isso não se deve a algo
intrínseco do judeu, mas a algum mecanismo interno da consciência do nazista. É relevante citar que ainda
não abordamos o conflito. Estamos aqui no plano puramente ontológico, mas as relações com o Outro e
comigo mesmo ocorrem no plano material e, portanto, toda relação humana é uma relação moral e
histórica.
49
Eu possuo uma predisposição natural de ser visto pelo Outro. Porém, o que
ocorre quando acontece o nosso primeiro contato? O olhar do Outro me capta e o Para-
si sofre uma modificação brusca. Essa consciência de “ser visto” pelo outro esvai o
Para-si dele mesmo, como que escapando o mundo que, anteriormente, eu possuía. O
Outro rouba o “meu mundo”, deslocando-me do centro, convertendo-me como um
objeto entre objetos. Mesmo me reconhecendo como uma consciência, o Outro me capta
como pedaço de matéria que está inserido no mundo, sendo uma “coisa consciente”.
Assim, o Outro me desloca para o plano da objetividade, sendo algo que me somente
experimento pelo Outro. Até então, o Para-si se compreendia como uma pura
subjetividade, sendo somente através do Outro que tomo consciência de outro modo de
meu Ser: a minha objetividade. Sei que sou um corpo físico, que ocupa um determinado
espaço entre as coisas do mundo. Portanto, o Outro é indispensável ao conhecimento
que possuo de mim mesmo. Se ele não existisse, eu jamais me apreenderia como algo
objetivo.
Isto se deve ao corpo, pois é através dele que possuo relações concretas com o
Outro. Aliás, sem este, eu jamais poderia saber algo sobre meu corpo. Todo juízo
objetivo em relação ao meu corpo passa através do Outro, que formula conceitos em
como sou. O Outro me capta como um “corpo no mundo”, assim, é por ele que me sei
como um corpo objetivo, pois, antes disso, eu sou o meu corpo (logo não posso ter um
conhecimento objetivo dele). Eu não posso vivenciá-lo como uma estrutura fisiológica,
composta por órgãos. Eu vivencio uma dor, mas quando o médico me diz que tenho
uma úlcera em meu estômago, eu somente sei que tenho um estômago através dele, pois
é algo que não vivencio.14 O mesmo se dá em relação ao meu caráter (se sou feliz,
covarde, bondoso, etc).
14
Sartre dizia que descobriu a sua feiúra através das mulheres. Há um fato biográfico que o marcou muito
em sua infância. Por ser filho único, Sartre foi excessivamente mimado pela mãe e avó, possuindo uma
grande autoconfiança. Aos 12 anos, acompanhado de colegas do Liceu, ao se aproximar de uma menina
extremamente bonita, esta o desprezou: “Eu recuei, e o grupo caiu na gargalhada. Percebi então que eu era
feio”. Isto foi uma mudança importante como ele reconhece: “minha feiúra me impediu de me tornar um
afetado. O sujeito que não se sente feio é, no máximo, um reformista, porque, fundamentalmente, em sua
vida, está tudo bem.”(entrevista a John Gerassi).
50
generoso, covarde, feliz como uma porta é uma porta. O olhar do Outro é uma
encarnação do mito de Medusa; ele me petrifica. O Outro é uma opressão à minha
subjetividade.
Se o Outro é necessário a mim, é, por outro lado, algo que me ameaça. Diante
do Outro já não possuímos o “controle” do mundo. A minha liberdade é ameaçada pela
liberdade alheia. Não podemos constranger o Outro a olhar-nos como queremos, como
julgarmos de certa forma. O olhar do Outro é sempre uma ameaça inesperada, pois me
encontro numa rede de projetos cujos fins me escapam, já que os ignoro. O Outro faz de
mim um mero instrumento de seus possíveis, podendo, inclusive, negar os meus
possíveis.
concentra no esforço de possuir a liberdade alheia. Pois como esta é uma eterna ameaça,
eu tento domá-la. Assim, duas consciências lançam os seus olhares, por desejar paralisar
o seu semelhante. As relações humanas são, no nível ontológico, tentativas de se possuir
a liberdade do Outro. Isto não se deve a um impulso egoísta, empreendido por uma
vontade má, mas ao simples fato de existirmos como limite à liberdade alheia.
Lembrando, desse modo, que a mola originária do Ser-para-Outro é o conflito.
Este é o princípio que rege o Amor. Ao querer ser amado, desejo apossar-me
da liberdade de alguém, pela sedução, sem querer perdê-la como tal, permitindo em se
perder para fazer de mim um centro de referência absoluto. Assim, ao querer ser amado
é querer ser o fundamento do Outro. Para tal, o amante não deseja escravizar o amado,
mas que este seja um sujeito livre e não é um objeto. No amor, eu quero prender uma
liberdade como uma pura liberdade, encontrando desta forma, uma identidade plena
comigo. O ideal do amante é que o Outro seja eu, sem deixar de ser o Outro.
52
A relação com o Outro traz à tona o estudo da linguagem. Esta não é uma
invenção de nossa subjetividade. Faz parte da condição humana, pois é originariamente
a experiência que o Para-si pode fazer de seu ser-para-Outro e, posteriormente, o
transcender desta experiência e sua utilização ruma a possibilidade de ser isto ou aquilo
para o outro. Portanto, a linguagem é algo do meu ser frente ao olhar do Outro. Porém,
eu não posso conceber quais serão os efeitos de meus gestos e atitudes, já que o Outro
os interpreta através de sua liberdade, e como a consciência alheia me é incognoscível, a
minha linguagem sempre escapa de mim mesmo. A linguagem me revela a liberdade
daquele que me escuta em silêncio, ou seja, a sua transcendência. Por outro lado, eu sou
uma objetividade ao Outro, não podendo indicar a minha transcendência. A questão da
linguagem é a mesma do corpo, da qual a minha objetividade provem do Outro: “Não
posso ouvir-me falar nem ver-me sorrir”.
liberdade alheia, mas apenas conservá-la como livre. Assim, eu me entrego como uma
coisa ao Outro. Porém, isto é impossível, pois só posso experimentar-me como algo
objetivo através do Outro. Não sou capaz de me objetivar por conta própria. Assim, o
ato de me entregar como coisa, já comprova que há uma escolha de querer coisificar-me,
acusando o elemento subjetivo do masoquista.
orgânico, mas como um corpo dotado de liberdade, identificando o seu corpo com sua
consciência.15 Realizo isto através da carícia, pela qual transformo a sua subjetividade
em pura carne, podendo possuí-la. Isto é necessário, porque originalmente, eu viso o
corpo do Outro como um corpo em situação; a carne, ao contrário, aparece como
contingência pura da presença. O desejo é uma tentativa de despir o corpo de seus
movimentos, passando a ser pura carne.
15
Sartre recusa a idéia de que a sexualidade é uma contingência de nossa estrutura fisiológica. Não somos
seres sexuados por possuirmos órgãos sexuais, mas, o inverso, possuímos órgãos sexuais por sermos seres
sexuados. O desejo sexual é uma modalidade de ato da consciência, que se torna desejante, “convertendo-
se” em corpo. É uma manifestação do Para-si. Realmente, a única contingência que existe é o formato de
meu corpo (não escolhendo o fato de ser homem ou mulher), porém, através da minha liberdade, sou
capaz de realizar o que quiser com este. Se encararmos a sexualidade através do materialismo, como algo
puramente orgânico, certas questões, como a homossexualidade ou a bissexualidade, se transformariam
em distúrbios acidentais do sistema neurológico. Isto anularia qualquer ato da consciência. Ora, posso
estar fisiologicamente saudável e não sentir desejo e vice-versa. A sexualidade não pode ser resumida por
impulsos fisiológicos.
55
Porém, ainda posso recorrer a uma atitude extrema: o sadismo. O sádico quer
apropriar-se da liberdade alheia como pura carne, recusa-se que o Outro o faça carne. A
sua intenção é a não reciprocidade do desejo sexual. E, para apossar-se da liberdade do
Outro, recorre à violência, tratando-o como um puro objeto, um pedaço de carne, através
da humilhação e da dor. O sádico é uma pessoa metódica, que instiga a carne alheia com
“todo o tempo do mundo”, como que testando a consistência daquela consciência
encarnada. Despoja, como no desejo, o corpo de qualquer movimento voluntário,
reduzindo a um mero utensílio. Porém, o sadismo se converte em desejo; ao se deparar
diante de um corpo totalmente ofegante (completamente “encarnado”), o sádico não
sabe o que fazer. No ponto em que seu objetivo seria atingido, a sua consciência recua.
Cai num círculo vicioso: o sadismo é o fracasso do desejo, e o desejo é o fracasso do
sadismo. Contudo, há um outro nível de fracasso que ocorre simultaneamente. O sádico
quer se apossar da liberdade alheia como uma pura carne, porém a subjetividade do
Outro sempre lhe escapa. Quanto mais se obstina, mais esta foge. A liberdade que este
encontra é a propriedade objetiva do Outro-objeto. É um Outro no mundo, enquanto que
o sádico quer se apropriar do Outro por inteiro, recuperando o seu ser-para-Outro. O
sádico descobre seu erro quando a vítima olha para ele, em outras palavras, experimenta
a alienação de seu ser na liberdade do Outro. Descobre que não somente não recuperou
seu “ser-fora”, como que seu ato é coagulado e transcendido. Percebe, então, que não
pode se apoderar da liberdade do Outro através da humilhação porque é na e pela
liberdade do Outro que um mundo vem existir, um mundo em que há um sádico,
instrumentos de tortura e pretextos para a humilhação e renegação.
16
O nazista, antes de tratar o judeu como uma mera coisa a ser explorada e exterminada nos campos de
concentração, encarava o judeu como um inimigo implacável à raça ariana, pois havia uma conspiração
56
consciência odiosa o quer como uma transcendência, e não odeia tal ou qual detalhe, o
que seria detestar. Assim, ao odiar e perseguir até a morte um outro em particular, estou
almejando, através de um só, o ódio a todos. O outro que eu odeio representa todos. Isto
se dá pelo fato de meu projeto ser a reconquista da minha liberdade não-substancial de
Para-si. Contudo, o ódio é um projeto fracassado, pois não posso suprimir as outras
consciências e, mesmo que pudesse, não posso apagá-los como se não tivessem existido.
A ausência do Outro me remota à sua presença em outro lugar, no caso, no passado. E
este é um Em-si que arrasto, impresso pela existência do Outro. Aquele que, uma vez,
foi Para-Outro está contaminado em seu ser pelo resto de seus dias.
judaica mundial que freava as plenas atividades da raça superior. Como escreveu Adolf Hitler (1889-
1945): “o forte é mais forte sozinho” in HITLER, A. Minha luta. trad. s. n. São Paulo: Moraes, 1983, p.
319.
57
(um norte industrial com um sul agrário), a Itália disputou com dificuldades as suas
colônias na África. Ideologicamente, um país fortemente influenciado pelo catolicismo,
o que já demonstra a dificuldade, no século XIX, de se impor a ordem burguesa frente à
poderosa instituição feudal que foi a Igreja Católica. Foi neste país complexo que surgiu
o Fascismo, com uma ideologia centralizadora, militarista e associando o povo com
Estado. O seu lema “Deus, Pátria e Família” demonstra o típico cenário do capitalismo
italiano: o pensamento católico, o Estado forte e a importância do núcleo familiar em
sua cultura latina. Já durante a guerra sofre duas invasões: a alemã e a aliada, sendo o
palco de dois mundos que se chocam. Posteriormente, com a vitória aliada, surge uma
nova Itália; o sul se industrializa e novos hábitos e costumes são afixados. Este
admirável mundo novo (consumista, hedonista e agnóstico) se confronta com as antigas
concepções. Porém, não era só a Itália que mudava, mas o mundo inteiro com a
chamada terceira Revolução Industrial (o advento da sociedade de informação,
conduzido pela telemática – união da telecomunicação com a informática). Porém,
como abordamos aqui, estas inovações encontram um país repleto de singularidades.
Neste sentido, vemos uma crise moral, onde novos valores são impostos à
força sobre os antigos. Antonioni, em sua arte, foi sensível à estas transformações
sociais, que se refletiu nas relações interpessoais. Encontramos em seus filmes um vazio
de valores, devido a uma transformação abrupta nas relações humanas, sobretudo entre
homem e mulher. Portanto, os “devaneios metafísicos e existenciais” em Antonioni
estão visceralmente ligados com uma questão social. O mesmo podemos falar de Sartre.
18
“A aventura”(L’avventura; 1960), “A noite” (La notte; 1961) e “O eclipse” (L’eclisse; 1962).
59
Corrado, pois Giuliana não consegue criar vínculos pessoais, seja com o marido, o filho
ou o amante. O filme termina como começa, Giuliana com Valério na fábrica.
19
Numa entrevista a Jean-Luc Godard, Antonioni diz: “Il est trop simpliste, comme beaucoup l’on fait, de
dire que j’accuse ce monde industrialisé, inhumain, où l’individu est écrosé et conduit à la névrose (...)
Pour moi, je tiens à le dire, cette sorte de névrose qu’on voit dans Deserto rosso est surtout une question
d’adaptation. Il y a des gens qui s’adpatent, et d’autres qui ne l’ont pas encore fait, car ils sont trop liés à
des structures, ou des rythmes de vie, qui sont maintenant dépassés. C’est le cas de Giuliana ». Cahiers du
cinema, Paris, nº 160, nov. 1964, pp. 10-6.
61
quando os personagens estão numa cabana e aparece um navio pela janela. Giuliana diz
a Corrado que não gosta de olhar muito para o mar, pois perde o interesse pela terra
firme. Vemos que Giuliana possui uma relação de atração e repulsa ao navio.
Interessante notar que os navios são enquadrados de forma a aparecerem como se
estivessem navegando na terra. Aparecem em canais, passando por trás das árvores ou
invadindo uma janela. Temos a sensação de que a terra firme não é tão firme assim.
Somente em dois momentos, o navio é filmado em alto mar. Uma seqüência em que
Giuliana conversa com Corrado num convés. Neste diálogo, ela confessa que a amiga
que conhecera na clínica, que não conseguia amar nada ou ninguém, era ela e que ela
havia tentado o suicídio. É fundamental esta confissão (o suicídio, principalmente) ser
num navio. Giuliana se sente como um navio, jogada à deriva numa massa líquida,
porém possui uma certa ojeriza a ser isso. No final, em sua “conversa” com o
marinheiro estrangeiro, ela tenta assumir esta ligação com o navio, porém vemos uma
conotação de fuga. Ela busca um lugar seguro, distante de tudo e de todos. O aspecto
escuro desta seqüência, com o cais sujo e objetos enferrujados, exibem este mundo
industrial em que Giuliana vive, mas não quer viver. Ela possui uma atração pelo navio,
porém ainda não assumiu a sua condição. Ela age de má-fé, pois busca uma forma de
fugir do mundo. Porém, o navio está ancorado, parado, hirto. Nem vemos a água nestes
planos. Ainda mais, nós nem escutamos o barulho do mar. Já não existe mais diferença
entre terra e mar, sólido e líquido. É por isso que, após suas perguntas ao marujo, ela
recua assustada, com medo. Não existe fuga!
ambos formam um único ser, alcançando uma sensação de plenitude. Porém, tudo muda
quando, certo dia, aparece um navio. Aqui se trata de um navio mais “natural”, ou seja,
que não possui um aspecto industrial, pois é um veleiro, movido a energia eólica (um
elemento natural).Bem distante dos enormes cargueiros e petroleiros que aparecem
durante o resto do filme. Porém, se trata de uma construção humana, o que destoa do
ambiente natural da praia. É por isso que a garota nada em sua direção, curiosa, atraída
pela embarcação. Contudo, não há ninguém no navio. Ela volta para a praia, e um canto
feminino é entoado. Aos poucos, ela percebe que são as pedras que cantam. Vemos aqui
uma ruptura na relação harmônica da garota com a praia. O fato de não existir pessoas
no navio, demonstra que este, por incrível que pareça (trata-se de uma fábula e portanto
tudo é permitido), não é algo artificial, mas um elemento natural. É por isso que é um
veleiro e não nenhum dos outros navios aparecidos no filme. O navio traz o sentimento
de instabilidade, se transformando num elemento perturbador. Assim,.quando ela volta
para a praia, esta já não é mais a mesma. Ela passa a ter uma estranheza em relação
àquele lugar, outrora harmônico. A praia passa a ser algo esquisito. Ela estava tão ligada
com aquele lugar, que nem percebia a diferença entre a areia, o mar, as pedras. O navio
deflagrou um processo, em que este estado de plenitude é quebrado, transformando as
pedras em algo bizarro. Trata-se de um choque, de uma metamorfose radical em toda a
praia. Como podemos ver, este conto de Giuliana é a experiência da Náusea.
No fim desta fábula, Giuliana diz que as pedras circundavam a garota como
se fossem carne. Ocorre uma “humanização” das pedras. Aqui ocorre o inverso de sua
realidade, em que as pessoas se fazem pedras. No conto, a garota está sozinha (devemos
frisar isto), ela é uma consciência solitária, ela vive num mundo sem o Outro. A
seqüência que melhor representa esta relação com o Outro é o da cabana. Aqui todos
entram num apertado cômodo vermelho, onde ocorre um jogo erótico, com trocas
mútuas de carícias. Este quadro já era preparado pela conversa sobre afrodisíacos. No
cômodo, Giuliana diz que “quer fazer amor”, e todos riem. Posteriormente, ela esbarra
sem querer em Corrado, já exibindo ao espectador uma relação que está sendo
construído entre eles. Passado esta cena, quando alguns dormem, Giuliana afirma a Ugo
que a sua vontade era sincera. Vemos que Giuliana está deslocada entre aquelas pessoas,
pois tratava-se de uma questão puramente sexual, enquanto ela aborda uma questão
afetiva. Sendo uma mulher emocionalmente confusa, ela não sabe o limite entre desejo e
63
amor, tanto em relação a Ugo quanto Corrado. O jogo erótico do cômodo, na verdade, é
um campo de batalha. Podemos nos aproximar da peça “Entre quatro paredes”, onde “o
inferno são os outros”. É o que ocorre aqui, transformando o cômodo num “deserto
vermelho”, isto é, um lugar árido, hostil e mortal. E Giuliana se torna uma vítima na
cova dos leões, pois ela não sabe jogar, sendo alvo de pilhéria. Os personagens sabem
que estão num inferno, e quando Corrado começa a quebrar o cômodo, as mulheres se
divertem e o ajudam. Vemos aqui duas ações distintas. Corrado, que não se sente à
vontade no jogo (devido à presença de Giuliana como vítima), inicia um ato de revolta
àquele lugar, isto é, àquela condição agonística entre todos na cabana. As mulheres o
ajudam a quebrar como um divertimento. O prazer sensual ocorrido no cômodo se
prolonga no prazer de destruí-lo. A ação lúdica erótica se desenrola na destruição lúdica.
Trata-se, portanto, de uma ação ambígua, pois elas destroem aquilo que anteriormente
lhes agradava. Tanto a revolta de Corrado quanto o prazer das mulheres são
manifestações de um descontentamento com a condição geral. Porém, é um ato
impotente. Giuliana ajuda a destruir, divertindo-se como as outras mulheres, mas
quando troca um olhar com Corrado, ela se envergonha. Percebe que o ato de Corrado é
distinto das mulheres, e ela se sente perdida frente àquele olhar. Ela foi desaprovada por
sua conduta, o que a perturba. E isto chega ao ápice quando aparece o navio, perdido na
neblina (como um elemento misterioso e silencioso), que deixa todos inquietos na
cabana. O fato de o navio aparecer de forma tão quieta os perturba mais ainda. Porém,
Giuliana afirma que havia escutado anteriormente um apito de navio, confirmando a
narração de Linda (Xênia Valdri). Esta, posteriormente, nega ter ouvido, reforçando
Giuliana na situação incômoda de mulher perturbada. Aqui vemos que todos os
personagens são confusos, porém Giuliana catalisa esta tensão emocional. Por isso ela
corre apavorada da cabana e se tranca no carro, quase provocando um acidente.
realizar uma ligação com aquela criança que ela carrega. Porém, Valério recusa o
sanduíche. Giuliana, portanto, se esconde para comê-lo, e quando o seu filho se
aproxima, ela o guarda no sobretudo. Vemos uma pessoa acuada, assustada diante do
olhar do Outro (está ocorrendo um movimento sindical na fábrica). Com todas aquelas
pessoas e rejeitada pelo filho, ela come o sanduíche, longe do olhar alheio. Giuliana não
é dotada o suficiente para enfrentar este olhar. Esta cena já é um anúncio das relações
afetivas turbulentas que serão abordadas no filme, pois, ela come o sanduíche (já
mordido pelo Outro) como um ato proibido. O sanduíche possui uma conotação erótica,
e esta atitude nervosa e assustada de Giuliana, já anuncia o seu affair com Corrado,
tanto que quando são apresentados na fábrica, há um longo plano/contra-plano dos dois
se olhando. Desde que se conhecem, Giuliana e Corrado se sentem atraídos.
Corrado, por sua vez, é um homem contraditório, pois o seu trabalho nega a
sua condição existencial. Sendo um engenheiro, ele ajuda a construir aquele mundo que
o esmaga. A patologia de Giuliana é um sintoma daquele mundo, se associando ao ser
ambíguo que é Corrado. É por isso que ele se apaixona por aquela mulher neurótica,
pois ele reconhece a sua fragilidade na doença dela, ou seja, ela é uma pessoa
semelhante a ele. A Patagônia é o lugar de fuga para Corrado. Nesta seqüência ocorre
um exemplo de Má-Fé. Ele fala aos trabalhadores de como será na Patagônia. Porém,
quando começam as perguntas concretas (“Como serão os alojamentos? Como
receberemos? Quando podemos mandar vir nossas mulheres?”), Corrado fica calado,
como se convertesse numa coisa. Porém, ele lança o seu olhar aos trabalhadores,
encarando-os como algo do ambiente (tanto que as perguntas são em off). Isto ocorre
pois se trata de duas Patagônias. Corrado pensa num lugar ideal, enquanto que os
trabalhadores a encaram como um ambiente concreto de trabalho. É por isso que ele
65
recua diante desse massacre de perguntas. Ele olha de forma vazia, com planos das
paredes, das formas geométricas, das pessoas. Temos uma sensação de gratuidade, pois
as paredes, as pessoas, ou seja, aquela apresentação é algo absurdo, sem sentido.
Corrado percebe que sua Patagônia não existe, é um lugar utópico. No plano seguinte,
ele está sozinho num depósito, cabisbaixo. Ele está desiludido, pois não existe fuga. É, a
partir desse momento, que ele vai investir em sua relação com Giuliana, quando ela vai
procurá-lo. A Patagônia que ele procura não é um lugar, mas uma forma de agir em seu
próprio mundo. E será com Giuliana, que ele começará a mudar o seu comportamento.
Mas, ele ainda está procurando uma Patagônia...
O filme não trabalha somente com cores. O som é muito bem utilizado, com a
música eletrônica composta por Vittorio Gelmetti. A seqüência de abertura é
impactante. Os planos da fábrica, com suas cores avermelhadas e esmaecidas, com a
música eletrônica e o canto feminino apresentam o tom do filme. De início, o ambiente
lúgubre e o uso de música já apresenta a escolha estética do cineasta. E serão nos
diálogos entre Giuliana e Corrado que estes dois elementos (cor e música) serão melhor
utilizados.
depois pede ajuda a Corrado, pois ela têm medo (“medo de tudo”). Corrado a abraça e
começa beijá-la. Durante toda a relação amorosa, os personagens se esfregam
sofregamente, sendo difícil reconhecê-los. O ambiente vai ficando cada vez mais escuro
e na cena de amor, a câmera está tão próxima que os personagens se tornam
indistinguíveis. Os seus corpos tomam toda a tela, como se fossem um cenário. Durante
várias passagens, Giuliana aparece nos cantos do quadro. Aqui, ela é o quadro inteiro.
Ou ela foge do centro ou desfaz a sua nitidez. Isto demonstra a falta de harmonia, de
plenitude da personagem. Por isso o centro, o lugar fixo, é algo que lhe escapa. Durante
todo o filme, a câmera não interage com os personagens. Ela os observa, como um olhar
distante. O único momento é a cena de amor, em que ela avança sobre os dois,
invadindo sua relação. Ela está em cima deles, se esfregando em seus corpos. Mas esta
invasão não deixa de ser um olhar severo e profundo sobre as ações dos personagens.
Após a relação, o escuro do quarto contrasta com as paredes claras da casa vazia. Aqui,
ela diz que existe algo de horrível na realidade, mas não sabe o que é. Esperava que
alguém a ajudasse e acusa Corrado de não tê-lo feito. Corrado, melancólico, sai da casa,
indo embora. A seqüência seguinte é a do marinheiro. Isto, lembremos, com o uso dos
ruídos eletrônicos. Esta seqüência (o do diálogo) utiliza a música e o contraste entre as
cores.
20
Na citada entrevista, Antonioni diz: “Je tiens à souligner que ce n’est pas le milieu qui fait naître la
crise: il a fait seulement éclater.(...)
Jean-Luc Godard: - Mais cette beauté du monde moderne n’est-elle pas aussi la résolution des difficultés
psychologiques des personnages, n’en montre-t-elle pas la vanité?
68
pernas) que o garoto finge ter. Vemos que ele está tão perdido quanto seus pais.
Portanto, não se trata de uma mera questão de adaptação. É um mal-estar inerente à
condição humana. Não é um fator patológico ou psicológico, mas de um elemento
ontológico!
Antonioni: - On ne doit pas sous-estimer le drame de ces hommes ainsi conditionnés. Sans drame, il n’y a
pas d’hommes non plus, peut-être. Je ne crois pas non plus la beauté du monde moderne puisse résoudre à
elle nos drames. Je crois, par contre, qu’une fois adaptés aux nouvelles techniques de vie, nous trouverons
peut-être de nouvelles solutions à nos problèmes.
Mais porquoi me faites-vous parler de ces choses-là? Je ne suis pas un philosophe, et tous ces
raisonnements n’ont rien à voir avec l’ «invention» d’un film.» Idem, p. 13.
69
PARTE II - OS VALORES
70
Porém, isto não seria cair num solipsismo? Ora, lembremos que a liberdade
não é uma abstração vaga, mas algo que está intrinsecamente ligado ao mundo. Toda
liberdade está em situação, portanto, para o existencialismo este homem não é
impessoal, mas é a pluralidade de homens concretos, singulares, projetando-se em
direção aos seus fins próprios, a partir de situações tão singulares quanto a sua
subjetividade. Encontramos um dos pontos mais delicados do existencialismo: se os
homens, originalmente, se encontram separados, como então se reúnem?
Toda deliberação moral, por mais pessoal que seja, possui um elemento de
universalidade. E este é a liberdade. O que Sartre chama de escolha autêntica (o inverso
da Má-fé) é uma escolha que afirma a liberdade. Esta é a única fonte de onde surgem
todas as significações e todos os valores, é a condição original de qualquer justificação
da existência. “O homem que procura justificar a sua vida deve desejar antes de tudo e
absolutamente a própria liberdade: ao mesmo tempo que exige a realização de fins
concretos, de projetos singulares, ela se impõe universalmente. Não é um valor
totalmente constituído, que se proporia de fora à minha adesão abstrata, mas surge (não
no plano da facticidade, mas no plano moral) como causa de si: é exigido
necessariamente pelos valores que coloca e através dos quais se coloca, porque, ao
recusar-se, recusaria a possibilidade de qualquer fundamento” escreve de Beauvoir.
O ato moral, portanto, é querer-se livre. Como posso querer ser livre, se já sou
uma liberdade? O ato moral é um desejo de libertação. É uma afirmação da liberdade,
ou seja, eu assumo aquilo que me constitui (que não é uma essência ou natureza). A
minha liberdade está em situação, fazendo do mundo um obstáculo necessário à minha
ação. A liberdade somente possui sentido numa ação concreta. Contudo, a minha
liberdade não é limitada pelas coisas do mundo, como as pedras ou o céu. Somente, pela
ação de outros homens ocorre tal limitação. Assim, cada um depende dos outros e o que
acontece através dos outros depende de mim quanto ao seu sentido. É possível, portanto,
que haja uma situação de opressão: quando certos homens negam aos outros homens o
desejo de um futuro aberto. Os oprimidos não deixam de ser livres em sua constituição
73
Portanto, todo projeto provém de uma escolha, que somente é possível através
da liberdade. E esta somente existe pelos atos concretos, que estão encerrados num
mundo de possibilidades. Portanto, não posso agir fora desses possíveis, senão a minha
ação será vazia e sustentada por um idealismo abstrato. Não posso contar que as
gerações futuras prossigam a minha luta, fundamentando-me na bondade humana ou na
convicção do homem em empreender o bem-estar geral, pois o homem é livre e não
existe natureza humana na qual possa me apoiar. Isto não acarreta um pessimismo,
muito pelo contrário, pois se o homem é o que faz, isto me impele a agir no mundo
concreto no qual estou situado. Se eu ajo embasado no amanhã, isto é má-fé, pois seria
uma fuga das possibilidades, lançando para os homens do futuro uma responsabilidade
que é minha. Se um revolucionário, no fim de sua vida, vê que os seus objetivos não
foram alcançados, isso não significa um castigo trágico, mas um exemplo de orgulho,
pois, apesar das adversidades, o seu projeto foi assumido autenticamente. Assim, a
responsabilidade de meu projeto é somente minha e é necessário assumi-la, agindo,
mesmo que eu fosse o único revolucionário sobre a face da terra. Este comprometimento
moral da condição do projeto se chama engajamento.
1
Na Parte seguinte estudaremos o paradoxo moral que tanto intriga Sartre: a Revolução.
74
Aos poucos, ela começa a questionar as condutas que seus pais impõem. Nota
que os valores morais não são mandamentos celestiais e que os adultos já não são mais
seres divinos. Compreende que cabe somente à sua subjetividade, o ato moral e se vê
obrigada a assumir isto. É por isso que a adolescência, em geral, é um período
turbulento e difícil, pois é quando um mundo pleno e perfeito desmorona, cabendo,
somente ao adolescente sozinho, construir um outro. É neste período que se molda o
caráter moral do indivíduo, o que não significa que não possa mudar ao correr da vida.
Porém, este ato de assumir o aspecto subjetivo do agir moral pode ser
escamoteado, surgindo várias condutas de má-fé. Assistimos, assim, a um quadro de
variedade da conduta humana.
2
“Moral da ambigüidade” (Pour une morale de l’ambiguïté) trad. Ana Maria de Vasconcellos. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1970 (o original é de 1947).
75
Ao se ver que possui uma existência, ocorre uma fuga para os valores
estabelecidos. É o homem sério que age segundo o espírito de seriedade. Este se desfaz
de sua liberdade, tomando os valores como incondicionados; transformando os fins em
absolutos. Assim, em cada ocasião, o homem sério deve renegar a sua liberdade,
garantindo a sacralidade incontestável de seus valores. É uma prática de má-fé muito
comum pelo fato de todos nós termos sidos crianças. O homem sério é uma pessoa
extremamente perigosa, pois como cai no fanatismo, tende a se tornar um tirano,
esmagando seus semelhantes em detrimento da Moral. Deve, acima de tudo, resguardar
os valores, principalmente, pela violência. É inconcebível que haja outros valores
porque os seus são os únicos e verdadeiros. Portanto, tudo no mundo lhe parece como
ameaça. E é justamente através deste olhar paranóico, que o homem sério vê o fracasso
de seu ato. Como as coisas são ameaçadoras, sente que a vida é algo absurda, e percebe
que procurou fora de si as justificações de seus atos.
comunico-me com o projeto dos outros. Portanto, o homem encontra na existência dos
outros homens uma justificação de sua própria existência. O ato moral é querer-se livre,
o que também significa querer livres os outros. A relação eu-outro é indissolúvel.
possui acesso aos meios de comunicação) para que transmita a opinião do proletário por
ele próprio. Cabe ao intelectual não interferir neste processo, sendo uma consciência
crítica do partido.3 Desde sempre, Sartre vinculava a deliberação moral com um ato
político, enquanto Camus critica a violência em termos gerais. Aqui, ele cai num
idealismo, encarando a violência como uma abstração, e não um ato realizado por
homens de carne e osso num mundo empírico. A Revolta é um ato puramente
metafísico. Rompe com o Absurdo (que impossibilita a formação de qualquer moral)
porém recorre a um recurso de abstração. A moral que Sartre propõe deve estar ligada a
uma ação concreta, não remetendo a um Deus transcendente ou a um Homem
transcendental. Assim, para entenderemos o rompimento Sartre-Camus é necessário
compreendermos as condições históricas da Guerra Fria, senão cairemos num idealismo
puro, esquecendo que as idéias nascem de homens que vivem no mundo.
3
Sartre encara o intelectual necessariamente como um burguês que deve negar a sua classe, Os
pensadores que se aliam à ideologia burguesa Sartre batiza de cães de guarda, termo criado por seu amigo
Paul Nizan (1905-1940). Para Antonio Gramsci (1891-1937), o intelectual orgânico são os pensadores de
sua própria classe e os intelectuais burgueses são criados para assegurar a coesão e a ideologia da
sociedade capitalista. Para Sartre, o intelectual é convocado entre os técnicos do saber prático
(professores, jornalistas, artistas, cientistas, juristas, diplomatas) pela própria burguesia, para se legitimar.
O intelectual vende a sua força de trabalho mental para a elite burguesa que o contrata para forjar-lhe um
pensamento; “Hoje em dia a coisa é clara: a indústria quer pôr a mão na universidade para obrigá-la a
abandonar o velho humanismo ultrapassado e a substituí-lo por disciplinas especializadas, destinadas a
dar às empresas técnicos (...)” in “Em defesa dos intelectuais” (Plaidoyer pour les intellectuels) trad.
Sergio Goes de Paula. São Paulo: Ática, 1994. pp 22-3. (Esse texto é originalmente o de três conferências
proferidas em Tóquio e Kyoto em setembro e outubro de 1965). Para Gramsci, o proletariado deve criar
os seus próprios pensadores, e isto ocorre através do partido (que é um intelectual coletivo) cujo papel
decisivo é uma pedagogia das massas e a formação de uma contracultura, visando a criação da hegemonia,
ou seja, a fundação de uma nova filosofia e civilização. O intelectual burguês é preparado em instituições
sociais (a escola, a universidade, a igreja) enquanto que o intelectual proletário se forma na prática
política (movimentos sociais, partidos, sindicatos). Vemos que o conceito de intelectual em Gramsci é
muito mais amplo do que em Sartre. O intelectual sartreano é um produto histórico que remete aos
filósofos do século XVIII. Após o estabelecimento do mundo burguês, surge o intelectual, em sua figura
dúbia, devido a sua condição pequeno-burguesa. Por isso , ele é um traidor. Ele é apenas um sinal da
contradição interna da ideologia burguesa, que busca conhecimentos e práticas universais que são
aplicados em interesse de uma classe particular.
80
não se trate apenas de uma fórmula abstrata que o existencialismo propõe. E para isso,
nada melhor que analisar as próprias palavras de Sartre.
81
Este texto foi, originalmente, uma palestra realizada numa segunda-feira, dia
29 de outubro de 1945, no auditório das Centrais, organizada pelo clube Agora.
Existencialismo era a palavra da moda, e centenas de pessoas lotaram aquele auditório
abafado. Confusões na bilheteria, cadeiras quebradas e mulheres desmaiadas
contribuíram para a má fama de desregramento moral dos “existencialistas”. Aquela
juventude, diante de um mundo a ser reconstruído após anos de guerra e ocupação, que
se apinhava para ouvir a voz nervosa de um estrábico de 1,57 m de altura, jamais, em
sua maioria, se aventurara nas espessas páginas de “O Ser e o Nada”. Esta conferência
foi realizada para explicar o que era aquela palavra, que nem o próprio Sartre criara, mas
que, apesar de sua aversão a rótulos adotara. Ele era o homem que todos queriam ouvir e
sobre o assunto, todos já falavam, sem saber do que se tratava.
4
Sartre escreveu cerca de duas mil páginas no pós-guerra, abandonando em 1949. Retoma em 1964,
porém não continuou para escrever a sua volumosa obra L‘ Idiote de la famille. Foi publicado,
82
torna a vida humana possível e que, por outro lado, declara que toda verdade e toda ação
implicam um meio e uma subjetividade”.
postumamente, em 1983, o Cahiers pour une morale, com 583 páginas de textos escritos entre 1945 e
1948, incluindo textos incompletos.
83
ele não é nada, só será alguma coisa após ser aquilo que fizer de si mesmo. Ele é um
projeto que “se vive a si mesmo subjetivamente” e, antes desse projeto, não existe nada.
Ele é o que ele projetou ser, porém, não se trata de uma decisão consciente no sentido
vulgar. Portanto, cabe somente ao homem a responsabilidade por aquilo que é.
5
Heidegger recusou ser tratado como “existencialista”, e, em resposta a esta conferência escreveu, logo a
seguir, o artigo Carta sobre o humanismo.
6
Isto não significa que não haja espaço para o Mal no existencialismo. Para Sócrates (470/469-399 a.C.)
não existe o mal absoluto, pois escolho sempre aquilo que é bom, porém, há uma escala de bens. Após ver
que tal bem momentâneo acarreta um mal posterior, isto se deve à minha ignorância. O ato moral provém
do Saber. Para o existencialismo não se trata de uma relação epistemológica, mas de uma “paixão”. Eu
escolho tal valor porque eu escolho. Assim, abre espaço para o Mal, pois por um ato de Má-fé sobrepujo a
minha individualidade descolando-o de seu fundo universal. Também posso escolher o meu próprio mal,
84
pois, isso se dá ao tipo de projeto fundamental escolhido. Posso ter escolhido ver o mundo como um “vale
85
pois é responsável por tudo o que faz. Não existe a “paixão” como uma força
devastadora que impele o homem a agir de tal forma, como uma fatalidade. O homem é
responsável por sua paixão, e cabe somente a ele decifrar os sinais do mundo. Portanto,
o homem está condenado a inventar o homem a cada instante.
O que nos resta é confiar em nosso instinto, ou seja, relacionar o valor moral
pelo sentimento. Se eu sinto que gosto de minha mãe o bastante para sacrificar tudo (a
minha vingança, o desejo de luta, de aventura) fico com ela. Se contrário, eu parto. Mas
como medir um sentimento? Para o existencialista, o sentimento é construído por nossos
atos praticados, e não os que poderiam ter realizados. Somente sei que amo
profundamente a minha mãe depois que sacrifiquei tudo por ela. Nada é mais mentiroso
que especular no campo afetivo, demonstrando um sentimento por atos virtualmente
possíveis. Assim, os sentimentos e os atos são quase indiscerníveis, portanto não posso
me apoiar num sentimento para uma decisão moral, pois o sentimento é medido já por
um ato. Mas pelo menos o rapaz foi procurar seu professor, pedindo um conselho. Ora,
quando procuramos alguém para nos aconselharmos, na verdade, eu já decidi o que
fazer. Ao escolher alguém como um conselheiro, no fundo, já sei aproximadamente que
tipo de conselho esta pessoa me dará. O rapaz, se fosse cristão, procuraria certamente
um padre. Mas existem padres colaboracionistas, oportunistas, resistentes. Escolhendo o
tipo de padre, o jovem estará decidindo que tipo de conselho receberá. E quando o aluno
foi procurar Sartre, ele já sabia que tipo de conselho iria receber: “você é livre;
escolha!”. Assim, não existe moral geral. Ela não indica caminhos precisos a seguir, não
existem sinais no mundo. Os cristãos discordarão, pois segundo eles a nossa vida é
marcada por sinais. O existencialista admite que sim, mas ainda assim sou eu que
escolho o significado que eles têm. Tomemos um exemplo verídico: John Gerassi
(1931- ), em sua biografia de Sartre, narra o seu relacionamento com o filósofo: o viu
nascer em Paris, onde sua mãe, fugindo das conturbações políticas na Espanha, foi para
realizar o seu sexto aborto, mas devido à ausência de seu marido que se
responsabilizava pelos assuntos delicados, acabou dando à luz.7 Gerassi, em tom
irônico, afirma que ele é um “aborto abortado”. Ora, para um religioso, este fato é a
maior prova de Deus, pois, distinto dos seus cinco virtuais irmãos, foi salvo porque era
o seu destino, cabendo alguma missão a realizar neste mundo. Já para um ateu, este é o
maior sinal da absurdidade da vida humana, provando a contingência radical que rege a
existência. Assim, coube somente a Gerassi a responsabilidade da decifração de seu
“nascimento ameaçado”. Portanto, o desamparo implica que somos nós mesmos que
escolhemos o nosso ser: “desamparo e angústia caminham juntos”.
7
Seus pais, o comunista judeu de origem espanhola Fernando Gerassi e a feminista ucraniana Stépha
Awdykowicz serviram de inspiração aos personagens Gomez e Sarah da trilogia “Os caminhos da
liberdade” (Les chemins de la liberté). Eles formaram uma das sólidas amizades da vida de Sartre e de sua
companheira Simone de Beauvoir.
87
que só é possível assumindo os possíveis em que está circunscrito. Não posso agir
esperando que amanhã o meu projeto seja levado por outros homens. Isto seria inventar
uma possibilidade puramente abstrata. Portanto, devo “agir sem esperança”. Aqui, o
existencialismo se aproxima da moral estóica. Porém, isto não acarreta um quietismo?
Não, isto é uma prática autenticamente moral, pois devo agir mas não posso ter ilusões.
Eu cairia num dogmatismo, violentando o mundo concreto às minhas idéias e vontades.
O quietismo é a recusa da ação, me desencarregando dela, pois outros homens agirão
por mim. Essas pessoas dissimulam o seu mal-estar moral, suportando a sua miséria,
afirmando que elas valem mais do que são, de que as circunstâncias foram adversas, que
não tiveram nenhum grande amor pois não encontraram um parceiro digno de tal
sentimento, etc. Há um jogo de virtualidades, onde inclinações e possibilidades
permaneceram encerradas em mim. Para o existencialista, o amor é aquele que se
manifesta em sua construção, não existe um afeto que ficou inutilizado por não ter
encontrado condições de ser manifestado. O gênio é aquele que se expressa pelas obras
de arte; se houvesse um filme que um grande cineasta pudesse fazer, ele teria feito. A
genialidade de um artista é a totalidade de suas obras. Quando, em 1964, Sartre recusou
o Prêmio Nobel de Literatura, ele afirmou que seria reconhecer o julgamento de seus
juizes que o laurearam pela sua autobiografia “As palavras” (Les mots). Isto o
converteria numa “instituição”, pois seria encarado não como um homem, mas como um
totem por ser um “Nobel”, além de enterrá-lo vivo, pois a sua obra foi julgada por
apenas um livro. Ora, Sartre continuaria a escrever, e se tivesse recebido o prêmio, todas
as suas linhas posteriores seriam “sagradas”, pois vinham de um monumento de
mármore, de um “Nobel”. Por outro lado, Sartre, em nenhum momento, desmereceu a
importância do prêmio, a respeitabilidade da Academia Sueca, mas aceitar o Nobel seria
faltar com suas convicções morais. Realmente, tal pensamento pode assustar as pessoas
que fracassaram em seus projetos de vida, mas, em compensação, demonstra que o que
realmente vale é a realidade, que o homem nada mais é do que a sua vida. Assim,
definimos o homem em sua positividade e não como um negativo, pelos atos que
poderiam ter sidos feitos. Mas, isto não implica que a vida de um artista não se dá
somente por sua coletânea de obras, o que seria simplista, mas que outras coisas
contribuíram para defini-lo, pois foram vividos por ele.: “o que queremos dizer é que um
homem nada mais é do que uma série de empreendimentos, que ele é a soma, a
organização, o conjunto das relações que constituem esses empreendimentos”.
88
Lembremos que o que vale não é o êxito ou o fracasso de nosso projetos, mas o fato de
terem sido escolhidos por nossa subjetividade, assumindo-os, e que esses foram
realizados numa rede de relações concretas.
projeto é válido e, por último, os valores são gratuitos, não são sérios. Veremos como
Sartre responde a estas acusações.
A segunda objeção, a de que não se pode julgar os outros, sob certo ponto de
vista, é verdadeira e falsa. Verdadeira, pois quando o homem escolhe o seu projeto com
toda sinceridade e lucidez, não é possível preferir um outro. Tampouco existe progresso,
em que haveria uma melhoria; o homem permanece o mesmo perante situações
diversas, e a escolha é sempre uma escolha numa determinada situação.8 Porém,
8
"(...) É preciso acreditar no progresso. Esta talvez seja uma de minhas últimas ingenuidades". Esta é uma
das declarações mais polêmicas de Sartre, que durante toda a sua vida foi um crítico do progresso.
Declaração dada em sua famosa e polêmica última entrevista, realizada em fevereiro de 1980, concedida
ao seu secretário particular Benny Lévy (que utilizava o pseudônimo de Pierre Victor ou Pierre Bloch),
um judeu egípcio maoísta, que a partir de 1978 começa a estudar cabala e hebraico, e que publicou textos,
após a morte de Sartre, aproximando a moral sartreana do judaísmo, abrindo uma polêmica com Simone
de Beauvoir que publicou em 1981 o seu último livro de memórias "A cerimônia do adeus" (La cérémonie
des adieux) para preservar a memória e a integridade do pensamento de seu companheiro. Não entraremos
aqui nesta polêmica, sobretudo a levantada em uma entrevista em que aparece um Sartre com uma retórica
frágil e desanimada. Nesta entrevista, Sartre concorda que a perspectiva moral no fim de "O ser e o nada"
está intimamente ligada com o seu debate posterior com marxismo, e que a sua preocupação atual era
buscar verdadeiros fins sociais da moral para encontrar um princípio para a esquerda. ("Gostaria que
nossa discussão fosse ao mesmo tempo o esboço de uma moral e a descoberta do verdadeiro princípio da
91
podemos julgar, pois o homem escolhe a si mesmo perante os outros. Inicialmente, por
um juízo lógico não puramente moral, podemos afirmar que certas escolhas estão
fundadas na verdade, enquanto outras, no erro. Afirmamos então, que este homem está
de má fé, quando se refugia num determinismo. Ora, podem objetar desta forma: por
que este homem não pode escolher-se de má fé? Bom, estamos aqui não julgando
moralmente, mas que a sua má fé é um erro. A Má fé é uma mentira, pois escamoteia a
liberdade do engajamento. Um homem está de má fé quando declara que certos valores
preexistem a si próprio, contradizendo-se, ao afirmá-los como valores impostos,
querendo-os ao mesmo tempo. Nenhuma moral é imposta, sou eu que a coloco como
algo imposto. Poderiam indagar: se sou livre, eu não posso querer ser um homem de má
fé? Sim, não existe nenhum motivo em não sê-lo, mas eu posso declarar que você está
de má fé e atitude verdadeiramente moral é algo coerente. Um valor moral de verdade
não pode estar sustentado numa mentira. A liberdade possui como objetivo querer-se a
si própria em cada situação concreta. O homem ao estabelecer os seus valores, em seu
desamparo, não é pode desejar outra coisa a não ser a liberdade como o fundamento de
todos os valores. Eu quero a liberdade em situações particulares, e ao querer a minha
liberdade, quero a dos outros. Porém, é possível que certas pessoas afirmem sua
liberdade, ocultando de si mesmos a gratuidade de sua existência ou afirmando sua total
liberdade em seu próprio nome. Àqueles que dissimulam a sua liberdade através de
desculpas deterministas, ou com exigências de seriedade, batizamos de covardes. Aos
outros que fogem de sua contingência, afirmando a sua existência como uma
necessidade, como que portadores de uma "missão" preestabelecida, batizaremos de
safados ou canalhas (no original, "salauds"; sujos). Estas posturas são julgadas apenas
nos critérios de autenticidade. Princípios abstratos demais não podem definir uma ação;
"o conteúdo é sempre concreto e, por conseguinte, imprevisível; há sempre invenção". O
esquerda"). Este princípio, segundo o entrevistador, tem alguma relação com um desejo de sociedade.
Sartre concorda: "Veja bem, minhas obras são um malogro. Não disse tudo que queria dizer, nem da
maneira como queria dizer (...) o futuro desmentirá muitas das minhas afirmações; espero que algumas
sejam conservadas, mas, em todo caso, há um movimento lento da História em direção a uma tomada de
consciência do homem pelo homem. Neste momento, tudo o que foi feito no passado assumirá o seu lugar,
o seu valor. Por exemplo, o que escrevi (...) Em outras palavras, é preciso acreditar no progresso. Esta
talvez seja uma de minhas últimas ingenuidades". A História para Sartre, como ele afirma posteriormente
nessa entrevista, é uma sucessão de malogros que por uma marcha lenta vai desalienando o homem e
abrindo espaço para fundar um humanismo, quando seremos homens completos nesta nova sociedade.
Assim, a História tem um sentido, e, é neste viés, o aspecto do termo "progresso", que Sartre ironicamente
diz ser uma "ingenuidade", pois como ele próprio criticou numa certa leitura do marxismo, a idéia de
progresso é uma invenção burguesa do século XIX. Aqui estamos adiantando certos elementos que
estudaremos a seguir. ("O testamento de Sartre." Trad. s.n., 4. ed., Porto Alegre: L&PM, 1986. pp 23-4).
92
que importa é que a invenção se faz em nome da liberdade; "podemos escolher qualquer
coisa se nos colocamos ao nível de um engajamento livre".
A última objeção é que os valores não são sérios, pois somos nós que os
escolhemos. Ora, se eliminamos Deus, alguém tem que criar os valores. Assim, eles não
são sérios porque nós o criamos, pelo contrário, só podemos encará-los com seriedade
pois fomos nós que os colocamos, assumindo-os. Isso significa antes de tudo que a vida
não possui sentido a priori, cabendo a nós mesmos dar um sentido a ela.
Dostoievski. Ora, mas ao mesmo tempo, afirma que ainda que Deus existisse, nada
mudaria na forma ontológica de se encarar o homem, ou seja, que o problema da
existência divina é dispensável ao pensamento. Aqui, Sartre já está dando um passo
adiante, mas o outro pé ainda se prende a um ateísmo vigoroso e, muitas vezes,
militante. Acusam-no atualmente de ser humanista, o que ele realmente afirmou ser.
Porém, o seu humanismo não é um culto ao homem. O homem sartreano está sempre
fora de si mesmo, ou seja, há algo de inumano no homem. E à medida em que o seu
pensamento foi-se dirigindo para o marxismo, esta relação do homem com este "fora",
vai ser cada vez mais problematizada. A sua atenção vai ser deslocada da Liberdade
para a Situação, revendo a relação entre o homem e o mundo. Eis a História!
95
9
O primeiro estúdio iniciou seus trabalhos em Kyoto, no ano de 1912, batizada de Nippon Katsudo
Kabushikigaisha, ou Nikkatsu. Posteriormente, vieram a Shochiku (1920), a Toho (1936, que se dividiu
em 1947, surgindo a Shintoho), a Daiei (1942) e a Toei (1951) que formaram os cinco maiores estúdios,
em moldes de Hollywood. O cinema japonês seguirá este padrão num estilo comercial. A sua produção
voltou-se para o mercado interno, pois durante décadas, os japoneses, em sua auto-crítica como cultura
demasiada hermética, jamais pensaram em exibir seus filmes no Ocidente. Acreditava-se que um ocidental
nunca compreenderia-os. Esta postura mudará nos anos 50. Porém, a pesquisadora Lúcia Nagib comenta
que nunca houve no Japão um studio system ao estilo hollywoodiano, pois as suas grandes produtoras
sempre tiveram poucos recursos, com um profissionalismo artesanal, formado por funcionários recebendo
salários irrisórios e filmes de baixo custo. Tanto que para a autora, o movimento da chamada “Nouvelle
Vague Japonesa” (niponizada para nuberu bagu) não foi uma ruptura e sim, um desenrolar deste tipo de
produção (ver NAGIB, L. Em torno da nouvelle vague japonesa. Campinas: Editora da UNICAMP,
1993). A partir dos anos 60, ocorre a decadência deste sistema de estúdios. Já em 1961, a Shintoho foi à
bancarrota, ocasionando um efeito dominó em suas “irmãs” nos anos subseqüentes.
10
Muitos destes filmes se perderam, sobretudo da fase muda e militarista, sendo um dos maiores
obstáculos aos historiadores do cinema japonês. Isto se deve a três grandes fatores. Primeiro, foi o terrível
terremoto de Kanto em 1923 que assolou o eixo econômico do país: Tóquio e vizinhanças, lugar onde se
situavam estúdios. O segundo foi a Segunda Guerra Mundial, quando o Japão foi sistematicamente
bombardeado pelos Aliados. Relevante lembrar que naquela época a maioria das cidades (exceto os
grandes centros) utilizavam a tradicional arquitetura japonesa, com casa de madeira, tornando-se alvos
fáceis às bombas incendiárias inimigas. E por último, o período de Ocupação norte-americana (1945-
1952), no qual o seu comandante militar, o general Douglas MacArthur (1880-1964), ordenou a
destruição dos filmes de propaganda de guerra ou que exaltavam os valores expansionistas do período
militarista. Os exemplares que chegaram até nós são raridades que foram escondidos e salvos.
96
A forma de abordar este tema será nas mudanças da família japonesa no pós-
guerra. Não se trata do tema comum de conflitos de gerações. Muito dos seus filmes
destacam a relação entre pai e filha, sendo esta a representante dos valores tradicionais.
Sempre é uma filha solteira, estimulada pelo pai a se casar, para que ela não fique velha
e solteira. No início, a filha não sente necessidade de se casar pois possui uma obrigação
moral de cuidar do pai em sua velhice. Isto se refere à vida pessoal de Ozu, que jamais
se casou, morando com seus pais, tratando-os na velhice. Os seus filmes repetem os
mesmos temas, demonstrando que relevante não é a narrativa, mas a forma de se narrar.
O seu perfeccionismo irá se voltar para a construção cuidadosa dos planos e da
disposição, milimetricamente planejada, dos atores em cena.
assusta com o seu estado patético. O professor se arrepende por não ter feito casar a sua
filha Tomoko (Haruko Sugimura). Hirayama, preocupado, começa a forçar Michiko a
pensar em casamento. Porém, o seu amado Yutaka Miura (Teruo Yoshida) já está
comprometido, deixando ao pai escolher o futuro noivo. Hirayama aceita o pretendente
de Kawai; assim ocorrem as bodas, e o pai deve aprender a viver sem a filha.
Outra mudança é o amigo de Hirayama, Horie (Ryuji Kita) que é casado com
uma mulher bem mais nova. Kawai constantemente o censura por tal fato, enquanto
Hirayama é indiferente. Este novo tipo de matrimônio garante os momentos cômicos do
filme, com os comentários maldosos dos amigos, sobretudo Kawai. É uma questão nova
e perturbadora o relacionamento de um viúvo com uma mulher com idade de ser sua
filha. Aqui, já vemos novos padrões de comportamento que chega a chocar com antigos
valores.
a qualquer custo. Tal atitude romperia com o tipo de personagens nos filmes que Ozu
realiza. Ela é uma mulher que simboliza os valores tradicionais. No início, dentro de
uma seriedade, depois, passando a ser rompida. Os valores não são totalmente
abandonados, podemos testemunhar uma transição. Ela sai de casa, porém segue uma
conduta de matrimônio, ainda com valores tradicionais presentes. É uma sociedade em
metamorfose que Ozu capta com sua câmera.
especial em relação aos personagens, como se fossemos uma visita, uma testemunha de
seus movimentos e afetos.
cotidiano que é filmado. Ninguém “rouba a cena” de ninguém, pois é a cena como um
todo que é o “grande ator”. Assim, a disposição geométrica dos atores sempre fica, ao
decorrer do filme, em posições similares, com a intensa repetição cotidiana. Os atores
entram e saem de plano, em geral, pelo mesmo lugar, sempre pela lateral ao fundo ou do
fundo (Figura 1). Jamais atravessam o campo e entram e/ou saem pelo lado da câmera
(Figura 2).
Visto isso, podemos analisar algo que percorre todo o filme: o corredor.
Assim, como o navio no filme anteriormente analisado, aqui aparece várias vezes este
cômodo. Aparece na fábrica, na casa tanto de Hirayama quanto de Koichi. O corredor é
um cômodo de passagem, um lugar de transição de um ambiente para o outro. No filme,
o personagem sempre aparece no centro da tela, percorrendo o corredor (semelhante ao
apartamento de Corrado no filme anterior). O personagem vem do fundo, em direção à
câmera, percorrendo várias portas. Como não se choca com a câmera, sempre sai ou
entra pela laterais. Esta centralidade dá um ar de solitário aos personagens, cabendo
somente a eles fazerem o seu caminho, e em quais portas entrar. A câmera possui um
domínio sobre a cena, pois sendo o corredor um espaço estreito, o personagem se
movimenta dentro de um quadro fechado. Se o personagem cruzasse o quadro ou saísse
e entrasse pelo lado da câmera, haveria uma quebra deste domínio. O personagem seria
mais forte que a câmera, criando a sensação de um “espaço fora da tela”. Em Ozu, o
personagem é um elemento constitutivo do quadro, ele não o precede. Já vimos que há
uma captura do vazio. O corredor simboliza a deliberação moral, onde o personagem se
encontra abandonado, em escolher os seus “caminhos”por conta própria. A sua
centralidade evoca esta solidão. Como figura, o corredor é uma linha reta que sai da
câmera em direção ao infinito, cortado na transversal em infinitos pontos por linhas
retas paralelas entre si (Figura 3). Trata-se de um caminho dado pela câmera, cabendo
ao personagem transitar somente por fora do eixo da lente. Este caminho único
demonstra o controle do cineasta, que possui um distanciamento crítico em relação ao
personagem. Que portas ele deve escolher é uma decisão pessoal do personagem, mas
esta centralização demonstra que cabe somente à sua subjetividade. É por isso que a
câmera está aí, para captar este momento subjetivo de escolha. A câmera não interfere
na decisão e nem julga, apenas o observa. Podemos fazer um paralelo deste
distanciamento com a relação ator-público do teatro kabuki, no qual Bertold Brecht
103
Assim, como existem esses planos soltos dentro da narrativa, outros que
seriam essenciais diegeticamente, o público não assiste. Por exemplo, a cerimônia de
casamento não aparece. Aliás, esta é uma característica de Ozu, que apesar de abordar
em vários filmes o tema do matrimônio, a cerimônia em si o público não participa.
11
WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. trad. M. Irene de Q. F. Szmrecsányi e
Tamás J. M. K. Szmrecsányi. 5. ed. São Paulo: Pioneira, 1987.
12
BURCH, N. “Ozu Yasujiro” in NAGIB, L. e PARENTE, A. (Org) Ozu: o extraordinário cineasta do
cotidiano trad. Maria L. S. de Almeida et allii. São Paulo: Marco Zero, 1990. pp. 29-56
104
Como não é um filme voltado para os fins, ele capta os atos simples, banais,
que são as expressões da ação pura. Para entendermos melhor, é necessário conhecer o
artista. Ozu era zen-budista e a sua concepção religiosa influenciou o seu estilo artístico.
O seu olhar sobre a vida cotidiana se articula com o pensamento da arte zen.
época. As estações marcam períodos e são usada em relação às fases da vida e seus
respectivos estados de espírito:
Ora, vemos uma concepção de tempo cíclico. É essa temporalidade que Ozu
capta em seus filmes, exibindo o cotidiano, os atos repetitivos. Esta é uma
temporalidade que está se perdendo em seu Japão. O mundo industrial, com sua ânsia de
velocidade e criação constante de obsolescência, não comporta condição para tempo
cíclico. É uma nova temporalidade. Porém, neste pós-guerra, tampouco é um tempo
linear, típico da modernidade, mas um tempo descontínuo, contraditório, de rupturas e
simultaneidades.14 É um choque total de mundos. E Ozu quis registrar o tradicional
tempo cíclico em seus dias contados.
13
ZEMAN, M. “A arte zen de Yasujiro Ozu, o poeta sereno do cinema japonês” in Idem, pp. 109-126.
14
LYOTARD, J.-F. A condição pós-moderna. trad. Ricardo Barbosa. 5 ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
1998.; BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar trad. Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L.
Ioriatti. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
106
Japão.15 A última cena exibe todo o peso da solidão em sete planos. São planos dos
cômodos da casa, como escadas, portas e janelas, com suas linhas e escuro, com a luz
vinda do fundo. Aqui, Ozu transforma em imagens o afeto da solidão. Nos dois últimos
planos aparece Hirayama, primeiro de perfil num corredor, o outro, mais aberto, é no
mesmo lugar, com ele indo à cozinha, no fundo do corredor. Bebe um copo de chá e
senta-se pensativo, de lado. Longe da câmera, há um ar de alheamento, marcando a
tristeza com o ambiente semi-escuro. A saída de Michiko da casa demonstra a vitória
dos valores modernos, a constituição da família mononuclear burguesa. Porém, a
conquista do individualismo tem por ônus a solidão na velhice. Hirayama é um herói
trágico, pois todo o seu esforço é fugir da solidão, porém o que faz é ir ao encontro dela.
Assusta-se diante da figura do ex-professor, querendo evitar ser um velho só e
amargurado. Porém, ao casar Michiko, acaba tornando-se no que tanto temia. Esse
quadro pessimista é o fim trágico de um mundo. O canto de cisne moral de uma cultura
milenar...
15
Esta transformação de valores no pós-guerra aparece em várias cinematografias. No cinema francês,
encontramos Jacques Tati (1907-1982) que através de suas comédias, critica fortemente a modernização
da vida européia. Significativa é a sua hilariante visão da “americanização” da França em “Carrossel da
esperança” (Le jour de fête; 1949).
107
1
Devido a sua expansão territorial, as estruturas jurídico-políticas do Estado Romano começam a entrar
em crise em meados do século II a. C., ocorrendo um conflito entre a aristocracia senatorial e a ordem
eqüestre (comandantes militares). Isto é superado, após a tentativa de dois triunviratos, com a coroação,
em 27 a. C., de Otávio ou Otaviano (63 a.C.- 14 d. C.), que passa a se denominar Augusto. Nasce um
novo Estado: é o fim da Republica e o surgimento do Império.
110
não é o trabalho material dos homens concretos, mas a manifestação de uma Idéia, isto
é, o saber Absoluto. O Direito Romano, por exemplo, é uma etapa do desenrolar deste
Saber ou Espírito Absoluto. Portanto, a dialética hegeliana é uma lei do pensamento e
das idéias.
Para Marx, é o desenrolar das ações práticas dos homens que segue a lei das
contradições. Segundo ele, a História humana está vinculada à História da natureza,
ambos se condicionam mutuamente. Existe uma evolução das espécies e o homem,
como animal, não está isento desta marcha, porém é o único animal capaz de
transformar a natureza. Diante disto, Friedrich Engels (1820-1895) desenvolve a
concepção de Dialética da Natureza. Ou seja, a matéria também é regida por leis
dialéticas, desenvolvendo-se em contradições internas. Portanto, há uma luta intestina
entre os caracteres físico-químicos. Por exemplo, a adaptabilidade das espécies ao meio
ambiente é uma lei dialética. Digamos que, por uma mutação genética, nasce um
cafeeiro resistente a uma espécie de larvas. Consegue-se reproduzir, ocorrendo um
aumento quantitativo da realidade: ao invés de um cafeeiro mutante, existem vários.
Posteriormente, por uma mudança climática, a população de larvas cresce, ocorrendo
uma mudança qualitativa: somente os cafeeiros mutantes resistiram à praga. Este
raciocínio também é empregado à matéria inorgânica: a água do rio, pelo calor, nega-se,
transformando-se em vapor d’água, condensando-se em nuvens. A chuva é a síntese, ao
vermos nuvens e água juntas. A perspectiva dialética da natureza transformou-se num
dogma aos pensadores marxistas posteriores, passando a ser o modelo teórico a ser
seguido pelos cientistas e técnicos de formação soviética.
Se existe uma dialética no movimento histórico, sendo que são os homens que
realizam a História, vemos que a dialética está encerrada nos homens. Somos seres
dialéticos! A consciência, através do projeto, sendo uma totalização-em-curso, age
através do método dialético, negando uma realidade, projetando-se para o futuro.
Portanto, antes de irmos para a História, devemos estudar a sua fonte, ou seja, a razão
humana. É na subjetividade do indivíduo, onde está o primeiro momento da dialética.
Portanto, esta não é uma lei universal da História, mas uma condição existencial, uma
realidade vivida pelos homens. Assim, toda dialética histórica se origina na
subjetividade individual, pois a História provém dos homens.
2
“Engels qui tire le matérialisme dialectique vers l’économisme, Engels qui décrit l’exploitation comme
um processus physico-chimique et qui fait naître les conflits sociaux non de la structure même du regime
de production, mais de l’évolution de ce regime, Engels qui nous montre les hommes produits par le
systéme sans nous faire voir le systéme produit par les hommes et qui réduit le conflit interhumain à n’être
qu’une expression symbolique des contradiction de l’économie.” SARTRE, J.-P. Situations VII. Paris:
Gallimard, 1965. pp 13-5.
112
Isto não significa para Sartre que a razão analítica deve ser abandonada. Ela
possui a sua utilidade, pois separa, classifica, descreve; porém, não relaciona os
elementos seccionados. Este é o ponto da polêmica de Sartre com o antropólogo Claude
Lévi-Strauss (1908- ). Este ironiza Sartre, em seu discurso encomiástico sobre a
dialética, demonizando a razão analítica, enquanto que em seu livro “Crítica da razão
113
Vimos que em sua vida, Sartre começou a agir cada vez mais como militante.
A idéia de fundar a revista Les Temps Modernes, com o final da guerra, partiu da
intenção de vincular o trabalho intelectual com a atividade política. Após anos de
intensos estudos, em 1960, vêem à luz a já citada obra “Crítica da razão dialética”.
Sartre havia rompido com o seu pró-sovietismo, quando o Exército Vermelho ocupara
as ruas de Budapeste em 1956, enquanto os partidos comunistas de todos os países ainda
estavam assustados com o relatório Krushev apresentado no XX Congresso do PCUS
(Partido Comunista da União Soviética). No ano da publicação de sua segunda grande
obra, a recente Vª República francesa começava a negociar com a sua colônia Argélia,
assolada por uma sangrenta guerra. O resto da África, acompanha este processo de
independências, às vezes violentas, como é o caso dos belgas que tentam reprimir os
nativos de Ruanda (dividida por conflitos étnicos) e de Congo. Portugal e Espanha,
ainda sob ditaduras de origem fascista, desconhecem o diálogo com suas colônias,
sufocando qualquer movimento de libertação. No outro lado do mundo, começam as
tensões entre a China e a União Soviética, desestruturando a órbita socialista,
promovendo contestações da Albânia, enquanto a rebelde Iugoslávia, preocupada com
sua independência após o ocorrido na Hungria, busca se conciliar com o Kremlin. O
114
Veremos como Sartre concilia o seu pensamento com o marxismo. Para ele, a
Filosofia não existe; há filosofias, que expressam o movimento geral da sociedade, e
enquanto a sociedade se estrutura de determinado modo, tal filosofia subsiste. Porém,
esta filosofia jamais se apresenta como algo inerte, acabada; ela própria é movimento
como uma expressão das ações da sociedade. O filósofo é aquele que opera a totalização
do saber de sua época, unificando todos os conhecimentos, orientando-os em certos
esquemas diretores que traduzem as atitudes e técnicas da classe ascendente diante de
sua época e diante do mundo. Posteriormente, após os seus princípios serem esmagados,
a filosofia nos é apresentada como uma idéia desvinculada de sua práxis, como uma
simples expressão. Portanto, a filosofia permanece eficaz enquanto experimenta a práxis
que a engendrou. Porém, ela se transforma, perdendo a sua singularidade e limpada do
caráter datado, passa a impregnar as massas, transformando-se nelas e por elas como um
instrumento coletivo de emancipação. É neste contexto que entendemos o papel do
racionalismo cartesiano na origem dos panfletos políticos dos iluministas do século
XVIII, ultrapassando a própria concepção burguesa, e infiltrando-se nas camadas
populares.
Percebemos, então que, por seu caráter tão abrangente, são raros os momentos
de criação filosófica. Entre os séculos XVII e XX, encontram-se três destas épocas: a
primeira, a de Descartes e John Locke (1632-1704); depois a de Immanuel Kant (1724-
1808) e Hegel; e, finalmente, a de Marx. Essas três filosofias, por sua vez, permanecem
sendo o horizonte intelectual e cultural de uma época, enquanto o momento histórico em
que foram criadas não for superado. Porém, outros homens prosseguirão o desenrolar
deste pensamento, explorando outros campos não abordados pelos filósofos, utilizando
115
Kierkegaard não chegou a constituir uma filosofia (aliás ele sempre recusou o
título de “filósofo”), mas suas idéias se apresentam como uma reação à sistematização
do hegelianismo, pois existe uma singularidade irredutível do vivido. O homem
existente não pode ser assimilado por nenhum sistema de idéias, pois o seu sofrimento
sempre escapa do Saber. É impossível objetivar a dor da perda, a culpa dos pecados, a
dúvida acerca da salvação e o medo da morte. Kierkegaard prega a irracionalidade
radical da religião, onde a distância entre Deus e o homem é infinita. Os Seus
mandamentos são incognoscíveis, nenhum saber (como a filosofia, a teologia ou a
ciência) é capaz de apreende-los, somente através de uma fé subjetiva. A pura
subjetividade se opõe a qualquer universalidade objetiva da essência, que alcança uma
tranqüila mediação. O homem descobre em si mesmo oposições, indecisões, equívocos
que não podem ser superados. Esta interioridade infinita e profunda, constituída de
paradoxos, ambigüidades, dilemas, reencontrada para além de qualquer juízo lógico
através de um ato pessoal diante dos outros e de Deus, Kierkegaard chama de existência.
Esta, na medida em que é vivida, não pode jamais ser objeto de um saber.
pelas suas necessidades, pelas condições materiais de sua existência e pela natureza de
seu trabalho, isto é, de sua luta contra as coisas e contra os homens”.
Assim, Marx inaugura uma nova filosofia, abrangendo com o seu pensamento
a realidade do trabalho alienado que sustenta o capitalismo. Marx destrói tanto as idéias
de Kierkegaard quanto as de Hegel, pois afirma, como o primeiro, a singularidade da
existência humana, e, como o segundo, o homem concreto na sua realidade objetiva. O
existencialismo, sendo um protesto idealista contra o idealismo, ficará oculto no campo
do pensamento durante anos. Contra Marx, a burguesia criará um exército de pós-
kantianos e neocartesianos, até que somente no início do século XX, a figura do
dinamarquês retorna, ao combater a dialética marxista com ambigüidades, paradoxos,
pluralismos, no momento em que o pensamento burguês passa à defensiva. É o caso de
Jaspers, que aparece no entre-guerras, descrevendo os labirintos da subjetividade, com o
objetivo de mostrar a infelicidade do homem sem Deus. Termos como “transcendência”,
“malogro”, revelam um tom pessimista próprio a uma burguesia descristianizada mas
nostálgica da fé pois perdeu a confiança em sua ideologia racionalista e positivista. Este
dilarecimento da subjetividade humana, apresentado pelos existencialistas, se volta não
mais contra o Saber de Hegel, mas contra a práxis marxista.
Por quê? Se a intenção destes pensadores era o encontro com os homens concretos, por
que o existencialismo não se dissolveu no marxismo? É o que tenta responder György
Lukács (1885-1971), afirmando que os intelectuais burgueses deram um último passo ao
seu idealismo moribundo, abandonando o seu método, mas salvaguardando seus
fundamentos e resultados, tentando buscar uma ilusória “terceira via” entre o idealismo
e o materialismo. De uma certa forma, Lukács demonstrou as ilusões idealistas por
detrás daquele discurso, mas havia algo muito mais profundo que este húngaro, um ex-
kantiano convertido ao marxismo-leninismo durante a Primeira Guerra Mundial, não era
capaz de entender: “estávamos convencidos ao mesmo tempo de que o materialismo
histórico fornecia a única interpretação válida da história e de que o existencialismo
permanecia a única abordagem concreta da realidade”. Ora, o marxismo exercia uma
forte influência mas não atendia às exigências daqueles homens. Por quê? Isto se deve à
própria condição em que o marxismo chegou, deixando de ser um pensamento e uma
prática, pois operou-se uma “verdadeira cisão que jogou a teoria de um lado e a praxis
do outro.” Este divórcio transformou a prática num empirismo cego e a teoria num
Saber puro e cristalizado. O marxismo, que possui a condição de abarcar toda a
atividade humana, endureceu, erguendo conceitos a priori de um Saber absoluto. O
existencialismo renasceu então, ao realizar as mesmas críticas de Kierkegaard a Hegel.
Porém, se o luterano de Copenhague recusa a concepção hegeliana de homem e real, o
existencialismo e o marxismo visam o mesmo objeto, de formas distintas, já que o
último busca o homem na idéia e o segundo, no cotidiano. Discordamos de Kierkegaard
de que o homem é incognoscível, mas que ele continua desconhecido pois o marxismo
concreto não existe, tornando-se um idealismo voluntarista, isto é, num conjunto de
juízos mantidos sobre a idéia de matéria e idéia dialética.
homem livre em sua plenitude. Qualquer pensamento que tente explicar a nossa
sociedade fora dos quadros do marxismo, acaba caindo em idéias pré-Marx. É o caso de
qualquer pensamento que negue a exploração capitalista, concebendo um homem livre
nos moldes iluministas do século XVIII.
4
Sartre ainda tinha o projeto de escrever um quarto volume que estudaria especificamente o romance
“Madame Bovary”, mas desistiu devido ao cansaço pelo tema e a impossibilidade de se dedicar ao estudo
devido à cegueira.
122
seu irmão Achille, pois seu pai sempre o considerou um inapto, o “idiota da família”.
Seguiu a carreira jurídica, trabalho que odiava, buscando nas letras um modo de superar
a opressora figura paterna. Porém, também vemos a sua trajetória artística (marcada
pelos sofrimentos da infância às crises nervosas do fim da vida) associada com a
ascensão da pequena burguesia francesa no Segundo Império. Como escreve Sartre:
“Sabe-se que o marxista contemporâneo (...) pretende descobrir o objeto no processo
histórico e o processo histórico no objeto. Na realidade, ele substitui um e outro por um
conjunto de considerações abstratas que se referem imediatamente aos princípios. O
método existencialista, ao contrário, quer permanecer heurístico. Não terá outro meio
senão o “vaivém”: determinará progressivamente a biografia (por exemplo),
aprofundando a época, e a época, aprofundando a biografia”.
“Os homens fazem a História, mas não sabem que a fazem”, dizem os
marxistas. Esta frase obscura pode possuir diversas interpretações. Para os marxistas
contemporâneos, os homens herdam uma condição material das gerações anteriores, que
determinam agir de um certo modo. Porém, esta herança do meio produtivo foi criado
pelos homens do passado, portanto a História é humana. Vemos um verdadeiro discurso
contraditório, pois se a consciência é um mero reflexo da matéria, como é possível os
homens serem o sujeito da História? O existencialismo afirma que os homens fazem a
sua história sob uma base material já existente, mas não são essas condições que a
fazem, e sim, os próprios homens que decidem o que fazer com essas condições, senão
seriam meros instrumentos de forças inumanas que criariam, através e apesar dos
homens, o meio social. Porém, os homens se alienam no processo histórico, deixando de
o reconhecer como um produto seu. Isto ocorre pelo fato de a História ser a obra de
todos os homens ,e portanto, um emaranhado de projetos, com interesses conflitantes de
classes e grupos.
uma certa indiferença com sua prole. Ora, vemos, portanto, uma condição concreta, um
fator econômico desta sociedade: a escassez de mulheres. Isto não significa que isto
determina a homossexualidade dos marquesinos. Trata-se de uma escolha diante de um
campo de possibilidades (que é restrito, concordamos), pois esta sociedade poderia ter
encontrado outro caminho, não obrigatoriamente pela poliandria e pelo
homossexualismo. Poderia haver um mecanismo interno de controle populacional,
exterminando ou abandonando um certo número de meninos recém-nascidos como
sacrifício aos deuses. Portanto, a poliandria foi o rumo tomado no processo histórico
desta sociedade. E isto se vincula ao aspecto subjetivo destas pessoas, através do ar
indiferente das mulheres (que por serem raras e valorizadas possuem um certo poder) e
da angústia dos homens (devido à sua sensação de impotência). E cada indivíduo
experimenta esta realidade a seu modo: as suas relações com sua esposa, com os outros
maridos dela, são vivenciadas de modo distinto. E é nesta realidade que ele se aliena,
tomando aquele mundo social como uma natureza, objetivando a poliandria e o
homossexualismo que não foram escolhas conscientes, no sentido vulgar do termo
(lembremos que Sartre sempre recusou o conceito de inconsciente freudiano).5
5
Voltemos a Flaubert: “(...) a passividade (...) para mim, no caso de Flaubert, ela tem duas causas: as
manipulações da criança de peito por uma mãe pouco amante e a crise da aprendizagem da leitura que
Gustave conhece passados os sete anos, quando o pai chama a si de forma autoritária e repressiva,
exercendo uma chantagem com a honra familiar, a alfabetização do filho mais novo. Achille, o irmão mais
velho, sempre foi apontado a Gustave como um modelo pela família, e daí a sensação de inferioridade
deste (...). Desse ponto de vista, Flaubert surge votado à passividade pelo seu próprio estatuto de filho
mais novo.
-Votado? Isso não poderá surpreender aqueles que vêem em si o filósofo da liberdade.
- De uma certa maneira nascemos todos predestinados. Somos votados a um certo tipo de ação desde
a origem, pela situação em que se encontram a família e a sociedade em dado momento. É
indubitável, por exemplo, que um jovem argelino nascido em 1935 está votado a fazer a guerra. Em
certos casos, a história condena antecipadamente. A predestinação é o que em mim substitui o
determinismo: considero que não somos livres – ao menos provisoriamente, hoje em dia – visto que
estamos alienados. Perdemo-nos sempre na infância: os métodos de educação, a relação pai-filho, o
ensino, etc., tudo isso dá um eu, mas um eu perdido. (...) Isto não quer dizer que esta predestinação
não contenha alguma escolha, mas sabe-se que ao escolhermos não realizaremos o que escolhemos: é
a isso que chamo a necessidade da liberdade. Por exemplo, Flaubert não estava inteiramente
condicionado a escolher a escrita. Isso veio a pouco e pouco, a partir do momento em que aprendeu a
124
ato. No caso dos marquesinos vemos a escassez das mulheres como uma situação, que é
superada pelo matrimônio poliândrico, que é o cerne desta sociedade. Isto ocorre através
do projeto, que é simultaneamente uma negatividade e uma positividade. Uma negação,
pois busca a superação de uma realidade concreta, e, positividade, pois cria um mundo
ainda não-existente. Reaparece aqui o “circuito de ipseidade”, quando uma realidade
objetiva é encarada por um futuro idealizado por um projeto subjetivo. É neste sentido
que entendemos a práxis revolucionária como uma ação de transformação do mundo,
pois o mundo burguês é imperfeito e seus problemas somente serão resolvidos na
sociedade comunista. Sartre escreve: “Simultaneamente fuga e salto para a frente, recusa
e realização, o projeto retém e revela a realidade superada, recusada pelo movimento
mesmo que a supera: assim, o conhecimento nada tem de um Saber absoluto: definido
pela negação da realidade recusada em nome da realidade a produzir, ele [o
conhecimento] permanece cativo da ação que ilumina e desaparece com ela [a ação].”
Isto se vincula ao funcionamento dialético da razão humana. O marxismo atual
imprimiu a dialética na História, como se fosse uma lei universal, esquecendo que é nos
homens que ela surge. E é justamente a práxis revolucionária a mais apropriada para a
transformação do mundo, pois ela chama para si a dialética. Ela exige uma
temporalidade dialética, um modo de encarar as coisas sob o ponto de vista dialético. O
tempo não está na História: a temporalidade surge da práxis humana. É através da ação
humana que um conceito de tempo é criado. Marx percebeu isso ao criticar a noção
burguesa de “progresso”, que necessita de uma temporalidade homogênea e linear.
Porém, o marxismo se desvirtuou ao se apropriar do “progresso”, criando uma dialética
paralisada, pois ela totaliza as atividades humanas dentro de um tempo contínuo e
homogêneo, seguindo o racionalismo burguês, ou seja, cartesiano.
ler. Tudo isto corresponde àquela parte da Critique de la raison dialectique em que descrevo o que é
a liberdade alienada”. “Acerca de ‘L’Idiote de la famille’” in Situações X, op. cit. pp 91-2
125
seus detratores. Para os materialistas, Sartre é demasiado idealista, enquanto que para os
idealistas, ele é demasiado materialista.
Capítulo 2 – A Alienação
Alienação é um termo criado por Hegel, que significa uma etapa do Espírito,
em que a consciência vê o fruto de sua própria criação como algo hostil, submetendo-se
a ele, ao invés de encará-lo como obra sua, ligada ao seu livre desenvolvimento. Hegel
afirma que o estado infeliz do homem se deve ao fato de seu ser estar dividido, ou seja,
não há uma conciliação entre a subjetividade e o universal. É necessário restabelecer a
unidade perdida, visando a libertação total do homem.
Hegel nutre uma forte nostalgia pela pólis grega, onde o homem era pleno,
identificando-se com o mundo, experimentando a felicidade e a completa liberdade.
Completamente distinta da Alemanha de sua época, dividida e governada por monarcas
absolutistas, onde a opressão e a censura reinavam. Hegel possui o projeto, em toda a
sua filosofia, de libertar o homem, e isto somente será capaz através da vida racional.
Ao analisar a vida na cidade grega, Hegel busca entender o que foi perdido.
Inicia uma crítica da religião estudada pelos iluministas. Estes buscavam uma
fé pura, limpa de qualquer preconceito e mistificações. Assim, chegam a dois princípios
que bastavam para satisfazer o homem: a crença em Deus e na imortalidade da alma. O
resto poderia ser atirado ao fogo, pois não passava de crendices e temores, inculcados
pela casta parasitária dos sacerdotes, pois o clero sempre foi um dos pilares do poder
aristocrático. Hegel criticará esta fé austera e serena, por ser algo abstrato, chamando-a
de religião positiva. O termo “positividade” aqui empregado possui um sentido
pejorativo, exprimindo algo estranho, hostil, petrificado. O que Hegel valoriza é o que
chama de religião do povo, que está intimamente ligada às práticas e costumes da vida
pública, ou seja, uma identidade da política e da religião. Era o que experimentavam os
gregos, pois a verdadeira deusa de Atenas era Atena, deusa da sabedoria, cujos cultos se
ligavam à vida política. Porém, algo que Hegel herda dos iluministas é o desejo de
constituir uma fé racionalizada, longe das superstições, obscurantismos e disparates da
religião no Antigo Regime. Hegel via na religião grega uma forma de pedagogia do
povo. Lembremos, inclusive, que ele foi seminarista em Tübingen, abandonando a
carreira eclesiástica por falta de vocação, dedicando-se aos estudos de filosofia e ao
magistério.
127
Vimos, portanto, que no jovem Hegel havia em seu pensamento uma forte
intenção política. Porém, ocorre uma mudança em seu pensamento a partir de 1807,
após a sua estada em Iena, quando subordina a política à especulação filosófica. Passa a
acreditar que o único meio de libertar o homem não é pela via política, mas pela
filosofia, constituindo uma autêntica vida plena, sistematizada pelo Estado racional. Não
entraremos aqui a discutir o motivo desta mudança, acerca da qual divergem os
estudiosos de Hegel. Para alguns, o filósofo sofreu uma decepção política, abandonando
o otimismo juvenil diante da impossibilidade de se realizar uma revolução liberal na
Alemanha. Para outros, foi um novo passo, não se tratando de uma decepção com a
política, mas de uma insuficiência da solução política diante do verdadeiro problema
que preocupava Hegel.
Marx irá subverter tudo isso! De início, irá mudar o seu ponto de vista em
relação à alienação. Hegel não a dotava de um sentido negativo, pois a alienação era
uma etapa, um momento do devir total. Marx adotara um sentido mais ético, pois a
alienação é vivida, comprometendo o seu pensamento para buscar uma destruição da
alienação. As suas idéias são impregnadas de um sentido de luta. Para Hegel, isto
128
ocorria pelo saber absoluto, que é o resultado e, ao mesmo tempo, a supressão das
alienações. Ele visa o sentido mais otimista, pois a exteriorização da consciência é um
momento indispensável de uma marcha progressiva. Assim, ocorre a totalidade humana,
quando a essência se reúne, porém enriquecida. Em Marx não existe este acúmulo
positivo mas, a intenção de reduzir a alienação, que é uma experiência concreta dos
homens. Não existe um otimismo progressista, até porque não há este desenrolar da
essência humana na História, pois o homem não possui essência, ele é histórico.
Uma das primeiras alienações que Marx irá identificar é a religião. Apesar de
descender de uma tradicional família de rabinos, jamais teve formação religiosa. Isto
muito se deve a seu pai, um racionalista liberal e laico, formado nas leituras dos
iluministas franceses e Kant. Chegou a converter a sua família ao protestantismo apenas
para dar maiores perspectivas à sua carreira jurídica. Portanto, desde jovem, coerente
com o pensamento vigente em casa, Marx verá a necessidade da emancipação da
alienação religiosa.
A filosofia não será a resposta para este mundo concreto, como pensava
Hegel. Para Marx, ela também é uma alienação, nascida como resposta à religião, mas
que acabou se convertendo numa variante. O homem está visceralmente ligado com a
sua produção material e, portanto, a especulação filosófica não leva em conta esta
condição humana. O filósofo é um homem dilacerado, e o seu esforço é contraditório,
pois pretende tratar de uma plenitude, à medida em que vive somente do pensamento,
convertendo-se num trabalhador intelectual separadamente do trabalho concreto e
histórico. O que Marx visa é um conhecimento associado a uma prática. Este é o grande
engodo da filosofia, pois ela, para existir, necessita dessa divisão ilusória entre teoria e
prática: “Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo diferentemente, cabe
transformá-lo.” Marx está engajado numa ação revolucionária e, portanto, o verdadeiro
pensamento é o que considera a sua ligação com a práxis.
Outro erro de Hegel foi a sua ingênua crença em seu caro Estado racional.
Imaginava que o Estado era o máximo totalizador, que conciliava todas as divergências
da sociedade. Tratava-se de algo sublime, pois é o “universal concreto”, o próprio
Absoluto encravado nos homens (mais adiante veremos o que é o Estado para Hegel e
como o idolatra).Em suma, através do Estado, todas as diferenças se apagam,
congregando a sociedade como um todo harmônico, dando igualdade a todos os seus
cidadãos. Para Marx, o Estado não está além das particularidades, pelo contrário, é um
instrumento de dominação de uma classe. É construído todo um aparato coercitivo e
uma legislação que visam o funcionamento da exploração pela classe dominante.
Também oculta a luta de classes, criando a ilusão de se tratar de uma entidade autônoma
e neutra, que não sofre influências de interesses particulares. Cria-se a imagem de uma
sociedade harmônica, funcionando como um organismo, em que cada qual executa a
tarefa que lhe cabe. A separação das classes antagônicas é velada. O Estado não passa
de uma máquina de dominação a serviço de uma classe particular.
6
Não confundir com o conceito sartreano de ideologia, apresentado no capítulo anterior.
131
7
Do economista francês Jean-Baptsite Say (1767-1832), um estudioso da obra de Smith, sendo o mais
célebre divulgador do pensamento liberal na França dessa época.
132
filósofo (no sentido sartreano) alemão, numa concepção de tempo médio gasto pelo grau
das forças produtivas e das relações de produção daquela sociedade em produzir
determinado bem. Assim é neste aspecto social, como vimos acima, que designa o que é
uma mercadoria. Nem todo bem é uma mercadoria, pois existem bens extremamente
úteis, com grande valor de uso, mas que não possuem valor de troca: é o caso de bens
que não são frutos de qualquer trabalho, dados diretamente pela natureza (o ar, a luz
solar); por outro lado, existem bens que são produzidos mas que não são trocados, indo
para o consumo direto, sem passar pela troca. Existe, portanto, um valor de troca virtual,
pois como resultado de um trabalho também possui os dois tipos de valor. Portanto, a
produção de mercadoria sempre visa um Outro, pois não adianta produzir algo com
valor de uso, mas um valor de uso para os outros, isto é, um valor de uso que tenha um
significado social. Se estamos falando numa relação com o Outro, caímos no campo
moral. Assim, perguntamos: por trás de toda a atividade econômica existe
obrigatoriamente um aspecto moral? É o que tentaremos responder posteriormente.
trabalho abstrato. Assim, o dinheiro nos aparece como algo mágico, que é capaz de
possuir qualquer coisa. Porém, este valor não está no dinheiro em si, ele é produzido nas
relações dos homens entre si, através da troca das mercadorias. Este caráter onipotente
do dinheiro é o que tanto seduz o capitalista, pois o dinheiro pode ser convertido em
qualquer coisa, isto é, posso adquirir o que desejar através dele. Contudo, o capitalista
acredita que este “dom” está no dinheiro em si.
clássicos (entre eles Ricardo) não aplicam esta teoria com coerência, pois quando
estudam os salários, recorrem às leis da oferta e da demanda, relacionando-os com o
crescimento populacional. Para Marx, se o valor é convertido em quantidade de
trabalho, este mesmo raciocínio deve ser aplicado no mercado de trabalho. Assim, há
uma verdadeira coerência, porque o valor da mercadoria não surge no plano da
circulação, mas no momento em que é produzido, isto é, o capital só surge na esfera da
produção. Portanto, é necessário analisarmos como funciona o meio produtivo.
Portanto, o trabalhador sofre uma alienação. Ele não se identifica com o fruto
do seu trabalho, pois este lhe é expropriado, em sua gênese, encarando as condições de
trabalho como algo estranho e hostil. Com o aperfeiçoamento de máquinas e
ferramentas, o trabalhador é cada vez mais depreciado, exigindo menos força muscular,
sendo possível mesmo o uso de mulheres e crianças. Assim, o trabalhador passa a ser
um mero apêndice da máquina, realizando um serviço mecânico e banal. Inicia-se um
processo de definhamento do corpo e do espírito do trabalhador, embrutecendo-o
consideravelmente, chegando às raias da animalização.
Capítulo 3 – O Grupo
homem sabe que está diante de outra consciência. A própria matéria que nos circunda
facilita esta união humana, pois possibilita encará-la conjuntamente como algo a ser
trabalhado, a execução de uma tarefa comum a ser realizada, etc. Contudo, esta união é
ameaçada por uma característica básica desta matéria circundante: a escassez. É
necessário trabalhar arduamente sobre a matéria pois esta é avara em recursos para a
quantidade de homens que a habitam. O trabalho é obrigatoriamente constante, pois a
subsistência depende dele, passando a ser algo penoso, como um castigo que nos abate.
Vemos que, para Sartre, economia está relacionada com bens escassos.
Aqui, Sartre se afasta de Marx, pois para este a História humana é a história
da luta de classes. Com isto, Sartre concorda, mas a origem da divisão da sociedade em
classes antagônicas é a escassez. Marx não teria dado um papel de destaque merecido à
ela. A História é o processo das diversas formas de organização social, sistematizada
por relações hostis entre os homens, a partir de uma guerra mais básica por eles travada:
a guerra com a natureza.
suprimia, passa a ser a sua verdadeira fonte. Por exemplo: para resolver uma carência
energética, foi construída uma hidrelétrica. Trata-se de um trabalho, visando destruir a
escassez. Porém, a abundância de hoje passa a ser a escassez de amanhã, pois, digamos
que com a hidrelétrica, uma floresta foi inundada, criando uma escassez de espécies
animais e vegetais úteis para a sociedade. Portanto passo a encarar esta matéria
trabalhada como uma herança maldita, algo que me limita: é o Prático-Inerte. Trata-se
de prático, pois é uma matéria moldada pela ação prática de outros homens, mas é
inerte, pois é a coagulação de práxis anônimas do passado.
objetividade) que escapa de minha consciência. Aqui ocorre o mesmo, mas numa escala
maior.9
9
Vemos que o ideal humanista, que prega um conceito geral do Homem é impossível. Somente uma
consciência fora da humanidade poderia totalizar as consciências. Este ser seria Deus, que mesmo assim,
não possuiria tal conhecimento, pois, sendo uma consciência, Ele não poderia estar fora da totalidade das
consciências. E se fosse um objeto, não totalizaria nada, pois somente uma consciência possui esta
capacidade. Mesmo se idealizarmos Deus como um Em-si-Para-si, não haveria tal conceito de Homem,
pois sendo Deus simultaneamente plenitude de Ser e de consciência não conseguiria totalizar as
consciências, pois sendo consciência e objeto, ao mesmo tempo, Ele estaria fora da totalidade,
conhecendo-a como uma união de objetos, e não como um grupo de sujeitos.
146
que o grupo busca alcançar este acabamento de si; o que é impossível, sendo, portanto,
unicamente pela práxis que o grupo existe.
continha fins inertes que unificavam os homens numa coletividade alienada (a Série).
Portanto, havia um elemento de inércia que foi suprimido, posteriormente, pelo grupo-
em-fusão. Assim, este elemento inerte passa a ser obtido, agora, pelo juramento. O
perigo exterior que mantinha a coesão é substituído por um perigo interior, onde cada
membro é vigilante do outro. Aos poucos, o grupo passa a dividir tarefas, deixando de
ser uma práxis homogênea para ser uma heterogeneidade calculada. Assim, cada
membro recebe uma função dentro da ação coletiva. Desta forma, cada integrante
cumpre a sua tarefa como um meio para alcançar um fim mais amplo, que é a ação
global de todos os membros que constituem a práxis do grupo. Cada membro possui um
papel vital para a manutenção do grupo; ninguém é mais importante que o outro. Todos
se reconhecem na atividade do grupo, e vêem em sua função e na dos outros, o modo
pelo qual se manifesta a práxis coletiva. Com a dispersão física dos membros, o Prático-
Inerte começa a engordurar este funcionamento. Separado de seus companheiros, o
indivíduo é incapaz de se ver unificado ao grupo, passando a encarar a sua função mais
como um fim particular do que um meio para a ação coletiva. Ocorre o fracasso da
intenção de transformar o grupo num “indivíduo comum”. O grupo é uma totalização-
em-curso, e quando busca tornar-se um ser acabado, ameaça a sua constituição.
grupo, mas somente a do soberano. A sua livre práxis é identificado como a ação e
vontade do grupo. Até aqui, não existiam chefes, todos os membros exerciam uma
função que se coadunavam mutuamente. Quando estas ações começaram a se dispersar,
foi necessária a criação de uma inércia para o funcionamento do grupo e o nascimento
da hierarquia, que passa a encarnar o grupo inteiro. O soberano não é um indivíduo, um
mero integrante do grupo, mas o próprio grupo personificado.
Desta forma, o grupo se degrada, retornando-se à Série. Uma vez que não me
identifico com a minha práxis, pois vejo-me realizando fins preestabelecidos pelo
Soberano, a alienação retorna vitoriosa. As ações dispersas dos membros não
conseguem se fundir no organismo individual do soberano. Ele se torna um ser estranho
e hostil aos seus companheiros de grupo, além de que, o próprio soberano se engana ao
acreditar que é a encarnação do grupo, pois somente na práxis é livre. Já não há mais
nenhuma possibilidade de coesão, apenas uma união absurda de moléculas dispersas.
Relevante é notar que o papel do Soberano não precisa ser realizado por um único
membro do grupo. Pode ser feito por uma elite, que constitui o Estado. Assim, no final
do processo, o que nasceu da liberdade de todos oriundo de um ato de revolta, se
converte numa servidão de todos à liberdade de um homem ou de uma elite.
Isto ocorre porque o grupo sempre fracassa quando busca ser uma totalidade
fechada, um Ser acabado, pois ele é algo que está sempre por via de totalizar-se. Quando
pretende realizar este ideal, o grupo se dissolve. As etapas do grupo, descritas acima,
não necessitam ser percorridas obrigatoriamente. A queda do grupo à Série não precisa
ser somente no final do processo, com o aparecimento do Soberano. Aqui estamos
relatando um quadro estático. Na realidade, existem simultaneamente diferentes formas
de coletividades interagindo. A História é formada por esta relação entre série e grupos,
que por sua vez, estão se metamorfoseando, pois as gerações seguintes herdam uma
realidade concreta, superando-a de seu modo particular. E cada homem, dentro de sua
série ou grupo, possui uma relação singular com a sua condição.
estão inseridos, mas a presença de um terceiro mediador. É a outra classe, que unifica os
homens que estão no outro lado produtivo, unificando-os de fora. A classe opressora
unifica a classe oprimida e vice-versa. Assim, cada membro se vê integrado à sua classe
por um observador de fora, reconhecendo a sua condição como a mesma de seu
companheiro. A classe, internamente, passa a ser uma mini-sociedade: ela é constituída
de séries e grupos, que se movimentam entre si. Não existe o proletariado, mas
proletariados, coexistindo diferentes formações grupais de proletários. O mesmo ocorre
com a burguesia, que é algo multifacetado. Assim, o grupo-em-fusão, no caso do
proletariado, é apenas uma parcela da classe que se rebela, enquanto outros permanecem
mergulhados na série. Os grupos institucionalizados na classe, como o Partido
Comunista e os sindicatos, pretendem unificar a classe inteira como um grande grupo,
porém se encontram afastados dos operários serializados. Estes grupos
institucionalizados são úteis para suscitar o surgimento de grupos-em-fusão,
mobilizando os homens mergulhados na série, porém, tratando-se de um grupo
institucional, tendem à serialidade. Assim, os grupos-em-fusão estão sempre na
vanguarda, sendo encarados, em certos casos, como inimigos pelo grupo institucional.
Assim, a luta de classes não pode ser encarada como um mecanismo de forças
econômicas que formam a sociedade. Sem dúvida, fatores materiais possuem um papel
importante, pois a desigualdade social tende a aumentar no sistema capitalista. Porém, o
aspecto objetivo não é suficiente para mobilizar a ação humana. É necessário um
aspecto subjetivo, quando cada indivíduo interioriza as suas condições materiais, para,
posteriormente, exteriorizar num projeto, visando um fim a se realizar. Assim, o
mecanismo entre as classes é o mesmo na relação entre os homens: ao interiorizar a sua
realidade concreta, marcada pela escassez, o indivíduo vê o seu semelhante como um
inimigo. Para ocorrer isso, é necessário, anteriormente, o reconhecimento da liberdade
alheia. Assim, é preciso deter estas liberdades, para controlar os homens em seu
potencial ameaçador, ocorrendo o primado da violência na História humana. A luta de
classes, portanto, é o esforço da liberdade para limitar outra liberdade. Desta forma,
cada classe reconhece a liberdade que está na outra classe, organizando uma ação como
resposta à práxis da sua oponente. A ação de uma provoca a ação da outra, ocorrendo
um tenso jogo de ação-reação. Portanto, trata-se de um processo dialético, com relações
recíprocas entre as classes que é constituída por séries e grupos. Não se trata de um
150
emaranhado confuso de ações, mas de um conjunto de práxis que segue uma lógica
dialética. Concluímos que a classe explorada move a sua práxis como a negação da
negação, ou seja, se vê num certo contexto material (unida pelo olhar da sua oponente),
notando o seu estado de serialidade que contribui para a sua exploração, reconhecendo a
necessidade de transformar esta realidade através da práxis revolucionária, negando a
sua condição de explorada. A burguesia, por sua vez, ao se consolidar, reconhece o
perigo da classe que ela explora, submetendo-a a um papel secundário na distribuição de
bens escassos. Ao ver ameaçada, diante de qualquer esboço de grupo-em-fusão na classe
adversária, mobiliza-se para negar àquela negação da sua condição de classe
exploradora.
Desta forma, por trás das manifestações históricas, está o jogo dialético das
classes subdivididas em séries e grupos, que agem entre e contra si, impelido por um
fator básico: a violência, que é utilizada como recurso para reduzir a liberdade alheia
diante do perigo que esta se torna devido a escassez. Portanto, as manifestações
históricas se resumem a uma relação de reconhecimento e hostilidade com o Outro. A
História não é criada por forças estranhas, sejam seres supremos, leis naturais ou
contradições econômicas, mas pelos próprios homens. Diante do quadro das relações
dos homens entre si, surge então a questão moral. No entanto, como se relacionam
Moral e História? Kant e Hegel são filósofos que buscaram equacionar esta relação, e
um breve exame de suas doutrinas nos servirá de preâmbulo à colocação propriamente
sartro-marxista do problema.
151
Já esbarramos algumas vezes com a moral kantiana. Isto se deve, porque para
um pensador sério que decide estudar a Moral, como é o caso de Sartre, é impossível
ignorar a presença de Kant. O kantismo, como o cartesianismo, foi um elemento
marcante na formação acadêmica de Sartre, tendo vários kantianos como professores.
Aliás, a sua obra “Crítica da razão dialética” é uma referência ao filósofo alemão,
fazendo uso do seu conceito de “crítica”, não como uma oposição, mas como o estudo
das estruturas da razão, bem como de seus limites.
Diferente da moral, Kant não chegou a escrever uma detalhada obra acerca da
filosofia da história. O único texto especificamente sobre isto é um opúsculo, que apesar
de curto, possui um longo título. Trata-se de “Idéia de uma história universal de um
ponto de vista cosmopolita”, publicado em 1784. O que está por trás deste título tão
pomposo, bem ao gosto das grandiloqüências da cultura alemã?
também tende a se isolar, com um desejo egoísta de realizar tudo a seu modo. É
justamente por esta oposição entre os homens que há uma necessidade da presença dos
outros homens, até para vilipendiá-los. Assim, inicia-se um processo de refinamento dos
hábitos, fazendo os homens passarem da barbárie à cultura. As paixões humanas vão se
direcionando para o princípio racional e o discernimento moral. A metáfora que Kant
utiliza é a da floresta: cada árvore busca o máximo de luz solar para si, e é esta luta entre
elas, que faz todas crescerem de modo reto em direção ao céu. Através dos interesses
particulares de cada árvore, a floresta cresce de modo harmônico. Isto é um aspecto
liberal de Kant, em que é pela concorrência que se chega ao equilíbrio social.
contraditório, pois anteriormente havia dito que não queria julgar os homens (até porque
seria impossível julgá-los, se eram inconscientes em seus atos).
Não existe um “fim da História”, como pode parecer. Esta soberania da razão
e o reino da moralidade não chegarão nunca. Trata-se de uma idéia diretriz para as
instituições da sociedade civil, que estará sempre se aperfeiçoando. O progresso não
encontra um término, haverá sempre melhoras na forma da organização social e do
sistema jurídico. É através de mudanças dentro da legalidade que ocorre a melhoria
social. Kant é um reformista e não um revolucionário. Quando estourou a Revolução
Francesa, Kant aplaudiu com entusiasmo as suas idéias liberais, pois o Estado
absolutista é irracional. O poder político não pode se curvar aos caprichos de um único
homem, cuja legitimidade está em Deus. O Estado deve ser regulamentado de modo
racional e, portanto, seguir a universalidade por intermédio de uma representatividade
geral inscrita numa Constituição. Contudo, quando a cabeça do rei foi cortada, sendo o
prelúdio para muitas outras, Kant se assustou! O estado de direito não pode ser
instaurado por um crime, mas seguindo o processo legal. Portanto, a Moral, uma idéia
reguladora que rege a História, não se implantará como uma Nova Jerusalém. Isto
ocorre porque o homem é um ser ambíguo. A idéia de que o processo histórico encontra
um fim será de outro alemão, mas bem diferente.
156
Desta forma, o Espírito se realiza como História. Ele não está na História, é a
própria História. E sendo esta um ato racional, visa a realização de um fim. Esta meta é
o conhecimento de si, ou seja, a História é o Espírito se auto-conhecendo. Ora, nós já
sabemos o que é o Espírito; ele é liberdade. E o saber, para Hegel, não se trata de um ato
158
10
Na verdade este não é um bom exemplo, pois Hegel, na última parte da sua Introdução, levanta as
condições geo-climáticas para o Espírito se manifestar. Numa profunda aula de etnocentrismo, os únicos
povos propícios para a manifestação do Espírito são os de clima temperado, dispensando as zonas
tropicais, frias e polares. Assim, povos e raças são dispensadas e Hegel não poupa críticas à “indolência
dos negros” ou à “covardia dos asiáticos”. Relevante notar que História para Hegel é a História do
Ocidente (Mesopotâmia, Grécia, Roma, Europa central), que se desemboca no povo germânico! É fácil,
nos dias de hoje, não levarmos à sério este ensaio de egocentrismo erudito, mas isto nos torna consciente
de como os europeus, durante séculos, se acreditavam o centro do mundo.
161
alguns homens eram livres. Então, a individualidade apareceu pela primeira vez. Na
Grécia, aparecia na figura do cidadão livre, que ainda não possuía uma autêntica
consciência de si. Encontrava-se harmoniosamente ligado com a pólis, como algo
natural. Em Roma, o homem atinge a sua subjetividade, através do conceito jurídico da
propriedade privada. O princípio da liberdade de todos os homens aparece no seio do
mundo romano, que com uma exacerbação da subjetividade, gera a dilapidação do
Estado romano. O cristianismo se hegemoniza através do individualismo romano, pela
salvação pessoal. Alcança-se a consciência da liberdade universal mas, em primeiro
lugar, na esfera celeste. O mundo germânico (construído por povos que derrubaram o
Estado romano) possui o objetivo de desenvolver o princípio cristão, mas, não numa
fuga aos céus, mas realizá-lo aqui no mundo concreto. Portanto, durante séculos, a Idade
Média, a Reforma, o Iluminismo, a Revolução Francesa, são o processo de
aprofundamento da liberdade dos homens, através da conciliação da subjetividade com a
universalidade.
fundada por uma vontade geral. E é pelos Grandes Homens que a vontade geral se
manifesta, pois é necessário um instrumental humano para se realizar.
Para Hegel, existem três classes. A aristocrática, que está ligada à riqueza da
terra e à família, e que possui um papel fundamental na guerra. Aqui, não há espaço para
o pacifismo de Kant, pois a guerra entre os Estados é até útil para a manutenção deles, e
a coesão do povo diante de um agressor externo.11 A guerra parece algo horrível aos
olhos das particularidades mas, quando o individualismo é esquecido, torna-se digno e
libertador sacrificar a vida individual em nome do universal. Lembremos que Hegel é
nacionalista. Por outro lado, quem possui o papel produtivo é a classe industriosa, que
congrega industriais, operários e camponeses, criando os bens econômicos a serem
usufruídos por todos. E por último, a classe que possui o papel central na conciliação do
universal com o particular e, portanto, uma classe universal: são os servidores públicos,
que administram o Estado.
11
Será um hegeliano, Karl von Clausewitz (1780-1831), o criador da concepção de Totaler Krieg (Guerra
Total), encarando a guerra como “a continuação da política com o emprego de outros meios”, ou seja, é
impossível separar a direção puramente militar da direção política.
163
Na verdade, não se trata de algo tão simples assim. Marx jamais foi um
autêntico hegeliano! Desde o seu encontro com as idéias de Hegel, sempre assumiu uma
postura crítica em relação a elas. Realmente, compreendeu e preservou todo o potencial
da dialética, mas sempre suspeitou de Hegel. Com Feuerbach ocorreu o mesmo. O
materialismo que Marx buscou nunca foi o feuerbachiano, que parte de uma crítica de
Hegel. Marx fará uma crítica da crítica. Portanto, voltamos a afirmar: Marx não foi
hegeliano, mas um crítico da crítica, isto é, um metacrítico do hegelianismo. É neste
sentido que aparece o seu materialismo.
12
É seguindo este princípio que Lênin concebe a história da filosofia como uma luta entre o materialismo
e o idealismo.
13
A burguesia é originalmente materialista. Ao se converter numa classe reacionária e decadente, passou a
apelar para o idealismo. Ver KONSTANTINOV, F. V. Teoria materialista da História trad. J. A Ramos.
Rio de Janeiro: Equipe, 1969.
165
Para Marx não existe divisão entre História humana e História da natureza. O
homem não se separa da natureza, pois é um animal. Se a História para Marx é a
atividade de homens concretos, estes, antes de mais nada, devem estar vivos. O primeiro
aspecto fundamental é, portanto, a necessidade orgânica do corpo humano. Porém,
diferente dos animais, o homem é capaz de transformar a natureza. Este foi o erro de
Feuerbach, que imaginava o homem como um ser que satisfaz as suas necessidades
166
Onde existe uma relação, ela existe para mim: o animal não se
“relaciona” com nada, simplesmente não se relaciona. [grifo dos
autores]. Para o animal, sua relação com outros não existe como
relação. A consciência, portanto, é desde o início um produto social, e
continuará sendo enquanto existirem homens. [o grifo é meu]
(MARX; ENGELS, 1977, p. 43)
Por trás das relações de produção estão as classes sociais. Estas são grandes
grupos humanos que se diferenciam entre si pelo lugar que ocupam na estrutura de
produção. No modo capitalista, se resumem em, basicamente, duas: a burguesia e o
proletariado. A primeira se define por ser a detentora exclusiva de todos os meios de
produção, enquanto que a segunda é obrigada a sobreviver pela venda de sua força de
trabalho. Sendo a sociedade uma produção histórica, estas duas classes somente
apareceram numa determinada época da humanidade. A burguesia surgiu em certas
cidades, basicamente portuárias, convertendo-se em grandes centros comerciais, na
Baixa Idade Média (a partir dos séculos XI e XII, para ser mais exato). Aos poucos,
inicia a sua usurpação dos meios de produção, constituindo uma dissolução da relação
de vínculo direto do trabalhador com a terra, das relações de propriedade sobre os
instrumentos de trabalho e da relação direta do trabalhador com o processo produtivo,
transformando-se num homem “livre”, isto é, assalariado. O campo se submete à cidade,
vinculando as suas terras aos interesses mercantis (sobretudo da indústria têxtil),
expulsando uma grande mão-de-obra despossuída de tudo para os centros urbanos. As
14
O capital se divide em “capital constante” (c) (máquinas, instalações, matérias-primas, energia) e
“capital variável” (v) (salários). Lembremos que há a mais-valia (m) que é expropriada do trabalhador.
Esta não é o lucro, que se expressa da seguinte forma: l = m / c + v. Com o desenvolvimento técnico, o
custo do capital constante se eleva, mas a taxa de mais-valia tende a se manter, pois a exploração possui
um limite. Ocorre, portanto, o que Marx chama de “lei da baixa tendencial do lucro”, isto é, a margem do
170
Tudo faz crer que a burguesia é uma autêntica classe universal. Mas não, pois
ao mesmo tempo em que ela cria um mundo à sua imagem e semelhança, ela cria o seu
oposto. A burguesia produz a sua antítese: o proletariado. É uma classe que ela rejeita,
mas que está visceralmente ligada. Todas as outras revoluções anteriores foram
realizadas por uma minoria, baseadas num tipo de propriedade. A única forma de
libertar o proletariado é destruindo a propriedade burguesa dos meios de produção.
Porém, como esta é o ápice do conceito de “propriedade privada”, pois é a possuidora de
todos os meios de produção, o proletariado deve destruir a propriedade privada por
completo. A sua libertação ocorrerá com o advento da propriedade coletiva. Por outro
lado, o modo capitalista de produção é contraditório, pois o trabalho tende a ser cada
vez mais coletivo, enquanto que os meios de produção ainda estão submetidos à forma
de propriedade privada. Esta é a grande contradição do capitalismo: a socialização
crescente das forças produtivas com o aspecto privado das relações de produção!
lucro tende cada vez mais a baixar com o desenvolvimento do sistema capitalista. Há um total
171
E por que uma revolução? Para mudar a propriedade dos meios de produção,
é necessário transformar radicalmente as relações de produção, pois a classe
exploradora não deseja voluntariamente abrir mão de seus privilégios apesar do mal que
ela faz à outra classe e a si mesma, pelo fato de estar alienada. É preciso criar novas
relações de produção que coincidam com o atual estágio das forças produtivas, ou seja,
que os meios de produção sejam de propriedade social e não mais privado. Isto somente
é possível com a tomada do poder político, para que se modifique a estrutura jurídico-
política sobre os meios de produção. Isto porque o Estado foi criado para legitimar um
tipo de posse dos meios de produção por uma classe. Portanto, o proletariado deve
tomá-lo. Mas, se o fim último de sua revolução é a criação da sociedade sem classes, o
Estado também deve ser destruído, pois trata-se de um instrumento de opressão por uma
classe. A passagem do capitalismo para o comunismo não se realizará do dia para a
noite. Marx afirma a necessidade de uma fase intermediária (o socialismo), em que a
classe proletária em posse do Estado, inicia a destruição da sociedade burguesa. É o que
chama de ditadura do proletariado.
é o paraíso na terra, pois como toda sociedade humana também terá os seus problemas.
Porém, são problemas que nem podemos imaginar, de tão mergulhados que estamos na
sociedade burguesa. É impossível conceber o que seria concretamente este tipo de
sociedade. Portanto, o marxismo não é uma religião atéia e milenarista. Somente os
detratores mais imbecis, que possuem uma leitura tão grosseira, possa acusá-lo de tal
coisa. Assim, não haveria um “fim da História”, onde o comunismo fosse o coroamento
de um longo e penoso processo, onde o Homem coincidisse plenamente com sua
essência, após a destruição de todas as alienações. Isto seria uma visão evolutiva e, pior,
essencialista. Sim, na sociedade comunista haverá a supressão da exploração do homem
pelo homem, onde o indivíduo se identificará com a sociedade, sendo as suas aptidões
individuais desenvolvidas em harmonia com o social, numa sociedade racionalmente
planejada por todos e para todos, não havendo carestias para ninguém. Mas, como isto
será de uma forma detalhadamente descrita é impossível de sabermos, entregando à
razão humana o benefício da dúvida.
é a luta isolada dos indivíduos, mas, é a luta de classes, o motor da História. Importante
ressaltar que as classes não são entidades acabadas, fechadas sobre si, que entram em
luta. É a partir da luta que as classes são engendradas. Trata-se de um conceito
dinâmico. Aqui vemos a relação do conflito abordado por Sartre na concepção marxiana
das classes. Desta forma, são os próprios homens que fazem a História, no sentido de
que são as massas, as forças sociais comprometidas na luta de classes que impulsionam
a marcha da História. Portanto, não se trata de algo puramente econômico, mas também
de uma luta política. E quando se abre o cenário político, há um espaço para o acaso.
Uma revolução pode ocorrer não necessariamente durante uma crise econômica, mas
numa crise política.15
15
Desenvolvendo este raciocínio, Lênin dará uma maior autonomia da política em relação à economia
(mas sem abandonar os dois termos). Assim, ocorre uma flexibilização entre as condições objetivas e as
condições subjetivas da Revolução. Desta forma, o seu modelo político pode se realizar num país
economicamente atrasado, como era o caso da Rússia. Lembremos também que a Revolução proletária,
não se resumiria num único país, mas estaria ligado com os demais países europeus. Lembremos que
174
Lênin, após o sucesso da revolução em seu país, previu que o mesmo ocorreria na Alemanha. Ele estava
errado, mas não cabe aqui estudarmos tal motivo.
175
16
Não estamos aqui entrando no que Marx chama de ciência. É neste contexto que entendemos todo o
esforço de Louis Althusser (1918-1990) em vincular marxismo com a epistemologia de Gaston Bachelard
(1884-1962).
176
desta, abandonando valores eternos em vista das oportunidades terrenas. A sua famosa
frase: “os fins justificam os meios”, é o que entra em conflito com Sartre. Estamos
exercendo uma “seriedade”, ao tomarmos os fins, que nós mesmos projetamos como
absolutos. Os valores morais não estão num plano supraterreno, mas ligados com a
prática concreta. Maquiavel percebeu isso, mas de forma ainda confusa, pois acabou
“absolutizando” os seus objetivos práticos. Isto ocorre, pois, diferente de Marx, os
homens ainda não são os senhores da História mas apenas navegantes no impetuoso rio
da fortuna. E como toda arte náutica, existem bons e maus marujos. E para enfrentar
algo tão poderoso, somente uma conduta tão intransigente. A fortuna, como afirma
Maquiavel, é como uma mulher: ela seduz e vai embora, preferindo os homens audazes
e ferozes do que os circunspectos; sendo necessário - como toda mulher - para dominá-
la, “bater-lhe e contrariá-la”. Isto é, agarrá-la pelos cabelos! Maquiavel acertou ao
conceber o poder como algo imanente. O príncipe quer o poder para estar no poder. É
algo que é um fim em si mesmo. Mas, há um “nada” que o sustenta, pois a existência
humana é contingente.
17
O tema da Revolução aparece em várias obras artísticas, os roteiros cinematográficos “A engrenagem”
(L’Engrenage) e “Os dados estão lançados” (Les jeux sont faits) e a sua peça mais polêmica, “As mãos
sujas” (Les mains sales), que deveria ter autorização pessoal de Sartre para ser encenada, pois, poderia ser
usada, de acordo com o tom, como uma propaganda anti-comunista. Não é por acaso que esta peça foi
proibida na URSS.
177
fantôme de Staline), dividido em duas perguntas: “com que direito?” e “era o momento
oportuno?”. Realiza uma profunda análise política dos fatos, divergindo da tirania
soviética aos países sob sua influência. A sistematização filosófica de seu marxismo
virá, como já vimos, em 1960. A partir daí, Sartre sempre apoiará movimentos de
minoria fora da ortodoxia pregada pelos PCs, voltando-se, sobretudo para o Terceiro
Mundo. Execra o colonialismo, apoiando, especialmente, a independência da Argélia e
do Congo belga, exalta a Revolução Cubana (no começo, antes de se unir à órbita
soviética), participa dos movimentos estudantis em 68, compromete-se com os maoístas
no começo da década de 70, julga as atrocidades cometidas pelos norte-americanos na
guerra do Vietnã, simpatiza com o movimento político-racial dos Black Panthers, apóia
o terrorismo basco contra a ditadura franquista.
Por que Sartre, para resolver a sua questão moral, foi para o marxismo?
Primeiro, devemos entender que Sartre sempre nutriu um forte ódio e desprezo à
18
Para o marxismo ortodoxo, a História, sendo uma ciência, possui leis assim como as ciências da
natureza. E como o marxismo é uma teoria unida com a práxis, este conhecimento não só pode como deve
ser aplicado. Desta forma, assim como a física é empregada pela engenharia, o conhecimento das
formações sociais é empregada na luta revolucionária. Nessa perspectiva, as cinco leis gerais da História
são: 1) lei da ação determinante da existência social sobre a consciência social; 2) lei da ação
determinante do tipo de produção dos bens materiais sobre a estrutura e o desenvolvimento da sociedade;
3) lei econômica da correspondência necessária das relações de produção com o caráter e grau de
desenvolvimento das forças produtivas; 4) lei da ação determinante da infra-estrutura sobre a
178
superestrutura; e 5) lei das revoluções sociais na passagem de uma forma social para outra.
KONSTANTINOV, F. V. op. cit.
19
Esta conciliação está subjacente em toda a obra de Marx. Como unir a luta revolucionária com as leis
econômicas? Como não cair em nenhum dos extremos: o economicismo e o esquerdismo? Este jogo entre
liberdade e determinismo sempre chamou a atenção de Marx, desde a sua juventude. O atomismo de
Demócrito era problemático ao unir uma ética na conduta humana com o determinismo mecanicista dos
átomos. Epicuro resolveu este problema com o conceito de clinamen, o desvio nas trajetórias atômicas.
Desde seu doutorado, Marx levantou uma questão que o perseguiu em toda a sua vida.
179
20
Foi publicado postumamente, em novembro de 1985, Critique de la raison dialectique – tome II:
l’inteligibilité de l’histoire, formado por notas escritas em 1958
180
Sartre formulou um conceito nada marxista: a escassez. Esta é um elemento caro aos
neoclássicos. Para Marx, o fundamental é o trabalho. Por outro lado, se a existência
precede a essência, devemos compreender o que fundamenta a existência humana. A
escassez, em último instância, remete às necessidades orgânicas do corpo humano. Ora,
não é assim que Marx e Engels pensam como o primeiro fato histórico? Infelizmente,
não sabemos o que Sartre pensaria sobre a História. Porém, pelo que sabemos, o
marxismo cumpriu a sua função diante o problema moral de Sartre. Contudo, criou
outros problemas dificílimos, como o estudo sobre o homem.
Poderia ter sido o segundo volume da “Crítica da razão dialética” o seu tão
postergado livro de Moral?...
181
21
SALEM, H. Leon Hirszman: o navegador das estrelas. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. Grande parte
deste trabalho é baseado nesta excelente biografia.
22
GUARNIERI, G. Eles não usam black-tie.5. ed Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987.
182
Numa noite chuvosa, Maria (Bete Mendes) conta ao namorado Tião (Carlos
Alberto Riccelli) que está grávida. Feliz, este decide preparar o casamento, anunciando
o noivado. A notícia pega de surpresa o pai Otávio (Gianfrancesco Guarnieri) e a mãe
Romana (Fernanda Montenegro). Porém, os rumores de greve na fábrica, por aumento
salarial, constituem outra preocupação de Romana, já que seu marido fora preso durante
a repressão. Tendo que assumir a responsabilidade de ser marido e pai, Tião se preocupa
com a greve, que pode prejudicar os seus planos. Seu amigo Jesuíno (Anselmo
Vasconcelos) o incentiva a entregar os nomes dos companheiros sindicalistas, antes que
o movimento deflagre, para ganhar a simpatia dos patrões. No sindicato, Otávio e seu
amigo Bráulio (Milton Gonçalves) acham precipitada a greve, que deve ser discutida
com a categoria, enquanto que radicais, entre eles Santini (Francisco Milani), insistem
183
23
Vemos como a questão de furar a greve aparece no quadro I do ato II:
Tião: - O jeito é arriscá! Vou furá a greve. Vou falá com o gerente, e ficá do lado dele.
Jesuíno: - Tião! Tem outro jeito...
Tião: - Qual?
Jesuíno: - Furá e não furá...
(...)
Tião: - Besteira! Eu tô fazendo isso consciente. Único jeito que eu tenho é me arrumá, não devo satisfação
pra ninguém. Quem quisé que se arrebente de fazê greve a vida toda por causa de mixaria. Eu não sou
disso. Quero casá e vivê feliz com minha mulhé! Se a turma quisé, pode dá o desprezo... Nesse mundo o
negócio é dinheiro, meu velho. Sem dinheiro, até o amor acaba! Pois eu vou sê feliz, vou tê amô, e vou tê
dinheiro, nem que pra isso eu tenha de puxá saco de meio mundo! (o grifo é meu). GUARNIERI, G. op.
cit. pp 72-74.
184
O fato de não entrar na briga do marido com o filho, torna-a isenta de dar
razão tanto a um quanto a outro. Ela reconhece os motivos de ambos e percebe que
haverá uma cisão na família. Otávio sempre fala em estar preocupado com Tião, que ele
está sem rumo, desorientado, mas é Romana quem possui a sensibilidade de perceber a
iminente desarmonia familiar. No dia da greve, ela consulta as cartas (apelo emocional),
que esconde quando o marido acordo (ação racional). É confirmada a sua apreensão,
esperando as más notícias. Ao filho e ao marido pergunta se estão levando o endereço
de casa, caso ocorra alguma coisa. Romana sabe, que naquele dia, tudo mudará, pois a
185
sua família está correndo um grande risco. No final, ela se concilia com Tião,
perguntando: “você acha que valeu a pena, Tião?”. Tião responde que não furou a greve
por covardia, que fez o que achava certo. Ela responde que sabe disso. Preocupa-se para
onde vai o filho e afirma, no alto de sua vivência: “você vai aprender que é melhor
passar fome entre os amigos, do que passar fome entre estranhos”. Quando Tião se
levanta, convicto com o seu novo destino, ambos se abraçam num dos momentos mais
emotivos do filme. Aqui, Tião, outrora cabisbaixo e escondido, retoma o seu orgulho e
se prepara para a sua nova vida. Interessante notar que após a cena do assassinato de
Bráulio, aparece Tião no ônibus, olhando para a janela, pensativo. Morte e vida se
relacionam neste corte espacial. Simultaneamente, enquanto o destino da greve muda
com a morte de Bráulio (que salvou Tião de ser linchado pelos companheiros), Tião
nasce outra vez ao sair de casa. A morte de Bráulio transforma a fábrica num lugar
fúnebre, pois foi também ali que Tião, o primogênito de Otávio, “morreu” ao furar a
greve na frente do pai. É um momento de morte e renascimento, pois vemos o fim e o
advento de um novo Tião enquanto a morte de Bráulio faz renascer a greve.
todo mundo, preferiu o desprezo... Porque teve medo! Você num acredita em nada, só
em você. Você é um... convencido!”24). No filme, Maria possui ódio da atitude realizada
por Tião. Ela transcende a mera reprovação ao individualismo na peça, pois adquire
consciência de classe. Tião ficou do lado do inimigo, convertendo-se num traidor, num
covarde. Sente desprezo ao ver que Tião entrou na fábrica (como “bom moço”)
enquanto o seu pai e seus companheiros eram massacrados na porta. Submeteu-se à
vontade dos patrões, agüentando tudo “de cabeça baixa”. Isto é imperdoável, pois como
diz Maria: “não queria que você fosse herói, mas que fosse gente”. Eles são humilhados
e explorados pelos patrões, e ele se tornou conivente com esta situação. Quando Tião se
irrita, ela diz para bater nela, no pai, na mãe, em seus companheiros. Ao ser esbofeteada,
faz uma clara alusão à ditadura (“Fizeram escola, esses filhos da puta!”). Veremos que
em certos pontos, o filme se refere ao momento histórico presente mas isto não o torna
datado. A explosão de Maria parte de um questionamento sobre os ideais de seu noivo.
Ela não quer ser uma mulherzinha que cozinhará para ele, cuidando do filho que estuda
numa escola legal. Aqui, Maria assume a sua condição de proletária e de mulher.
Expulsa Tião do quarto, rompendo tudo com ele, pois a sua vida não pode ser
compartilhada com um covarde, ela não se submete a viver sob este preço. Maria sabe
qual é a sua condição (proletária e mulher) e que deve lutar bravamente por isso. Como
afirmava Simone de Beauvoir, o feminismo é uma batalha travada em duas frentes: a
luta de classes e a luta dos sexos.25
24
idem., p. 112.
25
Sartre confirma isso: “A luta de classes, até aqui, opõe homens entre si. Trata-se essencialmente de
relações entre homens, de relações respeitantes ao poder ou à economia. A relação das mulheres com os
homens é muito diferente. É indubitável que existem implicações muito importantes do ponto de vista
econômico, mas a mulher não é uma classe, e o homem, relativamente à mulher, também não é uma
classe. É outra coisa, é a relação entre os sexos”. “Simone de Beauvoir interroga Jean-Paul Sartre» in
Situações X; p 112. A questão da relação entre luta de classes e feminismo está na introdução da obra
capital de Simone de Beauvoir (BEAUVOIR, S. O segundo sexo. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo:
Difusão Européia do Livro, 1960. 2 v.) Há uma extensa bibliografia sobre existencialismo e feminismo.
Além da leitura obrigatória da obra-prima de Simone, ressaltamos as suas entrevistas em SCHWATZER,
A. Simone de Beauvoir hoje. Trad. José Sanz. 2. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1986; e sempre importante, os
seus livros de memórias, ressaltando “A força da idade”, quando “descobre” que ela é mulher: “Viu-se
entretanto que eu atribuía pouca importância às condições reais de minha vida; nada travava a minha
vontade, pensava. Não negava a minha feminilidade; não a assumia tampouco. Não pensava nela. Tinha as
mesmas liberdades e a mesma responsabilidade que os homens. (...) Sei hoje que para me descrever devo
dizer primeiramente: “Sou uma mulher”, mas minha feminilidade não constitui para mim nem um
incômodo nem um álibi. Como quer que seja, é um dos dados de minha história, não uma explicação”; pp
365-366. Sobre a elaboração e, principalmente, a repercussão da publicação de “O segundo sexo” em
1949, ver especificamente o capítulo IV em BEAUVOIR, S. A força das coisas. Trad. Maria H. F.
Martins. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. pp 153-175.
187
26
Importante ressaltar como Helena Salem aborda esta questão em Hirszman: “Ao eleger um núcleo
familiar como o espaço por onde transitam todas as emoções e angústias individuais e sociais dos
personagens, Eles não usam black-tie adquire também uma força e autenticidade especiais, uma dimensão
universal e mesmo atemporal (...). O conflito do pai com o filho, que se mistura à luta política mas não
perde também o seu caráter de disputa pai/filho; da mãe que protege sua cria em qualquer circunstância e
188
incondicionalmente; enfim, situações de absoluta intimidade vivenciadas numa família são integradas à
questão política mais geral. Essa dinâmica cativa o espectador pela sua verdade intrínseca, sua
integridade. Nada e ninguém no filme têm ar de mentira.
Leon também abordou essa questão numa entrevista, comparando seu trabalho ao do cineasta
japonês Yasujiro Ozu (...), autor de belíssimos filmes, que discute as questões sociais através do pequeno
núcleo familiar- como, por exemplo, em As irmãs Munekata (1950), no qual faz uma crítica profunda ao
tratamento da mulher na sociedade japonesa, contando a história de duas irmãs, o marido opressor de uma
delas, e o velho pai. “Penso que todas as lutas sociais – problemas no local de trabalho, desemprego,
política de repressão – passam pela família” – afirmou Hirszman. “Elas estão inter-relacioanadas no
sentido de que a família pode ser a base para a resistência popular. [...] E as mulheres são uma parte
importante dessa resistência, como vemos nas formas de Romana apoiar aqueles que estão na luta mais
diretamente, na participação ativa de Maria na greve e a sua recusa do machismo de Tião. Mas todas essas
crises sociais e individuais passam através da família. Nesse sentido, Black-tie tem um paralelo com o
trabalho de Ozu, que usa a família como a base para discutir as relações sociais dos indivíduos.”
(Entrevista a Randall Johnson e Robert Stam, Recovering Popular Emotion, Cineaste, p. 21)”. SALEM,
H. op. cit .pp. 262-3.
189
anos 50-60. Em vários trechos, existem comentários sobre a ditadura e a democracia que
se anuncia.
por convicção. Realmente, ele não é apenas um covarde, ele não confia em seus
companheiros, não possui consciência de classe. Na visão dele, isto não significa que ele
seja um “filho da mãe”, ele apenas preferiu ter o desprezo da sua gente do que vê sofrer
todos como sofrem em sua casa. Otávio reconhece que também tem culpa (“E deixa eu
acreditar nisso! Senão vou sofrer muito mais. Se não vou achar que meu filho caiu na
merda sozinho. Eu vou achar que meu filho é um safado de nascença!”). A traição de
Tião está ligada ao fato de Otávio ter sido um pai ausente. Aqui vemos que Otávio faz
uma auto-crítica, reconhecendo que a sua prisão prejudicou a sua família. Porém,
prejudicou não no sentido que Tião acha, no sentido de privação financeira e afetiva,
mas na ausência de um fundamento ideológico na formação de seu filho. Isto se
relaciona à sua afirmação no botequim: “Quem muda de casa, muda as idéias”. A
exterioridade teria sido interiorizada de uma maneira distinta, caso Otávio tivesse sido
um pai presente em sua infância. Com certeza, o seu filho caçula Chiquinho (Flávio
Guarnieri) jamais faria algo semelhante, pois não chegou a sofrer tanto o período em
que Otávio esteve preso. Jamais furaria uma greve. Portanto, este conflito familiar
espelha a visão existencialista de Marx, em que antes de manter ligações políticas, os
homens possuem laços pessoais. Tião não nasceu um traidor, ele escolheu ser um
traidor. E essa escolha está associada ao tipo de experiências que ele vivenciou. O
mesmo podemos afirmar de Sartre. O intelectual é um traidor, um burguês que se volta
contra a sua própria classe. Ora, Sartre não nasceu traidor, ele o escolheu ser.
outra). Portanto, dificilmente Tião tenha entregado Santini, pois ele se reconhece em sua
gente (não o despreza como na peça). O que ele não aceita é ser privado em nome de
algo que para ele é abstrato (“a classe trabalhadora”, “o proletariado”). Por outro lado,
Tião, pessoalmente, não tolera Santini, o que sugere um motivo bastante forte em
entregá-lo. Há um tom ambíguo e sutil por parte de Hirszman, que deixa esta questão
aberta para o espectador. O fato de Santini ser despedido não explica por si só que Tião
o tenha entregue pois, Santini sempre é identificado como um agitador, alguém que fala
muito e está sempre revoltado (o fato de terem escolhido um italiano transmite este
estereótipo e remete às origens da organização sindical, sobretudo em São Paulo, onde
os italianos tiveram um papel fundamental no movimento operário no início do século).
27
Idem, p. 266.
194
Conclusão
pontos mais delicados no próprio Marx que é o uso do termo “Natureza” e da relação do
homem com esta. Realmente, Marx percebeu o erro do materialismo fisiológico
(Feuerbach) mas é possível a confusão ao uso de conceitos iluministas (a relação
homem-natureza é uma questão kantiana oriunda de Rousseau). Tanto que daí resulta a
crítica feroz de Sartre à “Dialética da Natureza”, culpando Engels por esta leitura
positivista, que deprecia o papel da consciência. Esta é a sombra de Husserl que o
persegue, isto é, Sartre é um filósofo da consciência. É neste viés que aparece a História.
Sartre era avesso a rótulos, mas no fim de sua vida lhe perguntaram se
preferia ser chamado de “existencialista” ou “marxista”. Sartre respondeu preferir o de
197
Quando o Muro caiu, o momento foi de uma árdua reflexão, sobre saber qual
foi o erro. Não podemos jogar às traças das bibliotecas os livros de Marx, como se os
goulags, as violências da Revolução Cultural, os campos da morte no Camboja ou as
guerras civis na África tivessem sido criados pelo exilado alemão que morreu na miséria
em Londres. Seria o mesmo que culpar Cristóvão Colombo (1450/1-1506) pelos
massacres ocorridos com as populações ameríndias. Ou, se formos mais radicais, dar
uma parcela de responsabilidade a mahatama Mohandas Gandhi (1869-1948) pelo fato
de a Índia possuir armas nucleares! Hoje sabemos a importância e os desvios de regimes
políticos baseados na obra de Marx. Sartre exaltava a figura do “grupo-em-fusão”, pelo
que chegou a ser acusado de anarquista. Lembremos que “A crítica da razão dialética” é
de 1960, mas parece que estamos lendo a descrição das ruas francesas em maio de 1968.
E o despertar desta onda de descontentamento varreu o mundo (tanto no Leste quanto no
Oeste) naquele ano. Portanto, não se tratava de uma mera singularidade do cenário
francês. Havia algo de podre no mundo... Atualmente, a podridão é tanta que o fedor nos
198
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204
Apêndice
Sartre em tempo de globalização
Para sabermos o que Sartre tem a nos ensinar, devemos entender quais os
problemas que o pressionaram. Ele é de uma geração que viu o mundo se desmoronar
sob seus pés, e toda a sua atividade intelectual (como filósofo, artista e militante) é
resultado disso.
No século XX, isto foi posto em discussão. As duas guerras que assolaram o
mundo, o declínio das democracias frente aos regimes totalitários, o colapso do sistema
financeiro em 1929, lançaram uma geração diante de um vazio, vendo se desfazerem
estes valores absolutos. Sartre é um intelectual que surge neste período. O seu esforço
virá na crítica e recusa aos valores absolutos, na necessidade de se criar novos valores
fundamentados na responsabilidade.
Pertenço a uma geração que estava na adolescência quando o Muro caiu. Ora,
justamente quando começaríamos a entender o mundo, a buscar nossos valores, o
mundo se desfazia por todos os lados! Já não existia mais referencial para ninguém.
Termos como “Primeiro Mundo”, “Segundo Mundo”, “Terceiro Mundo” ou “países
não-alinhados” foram para o lixo. Não existiam termos ou idéias que expressassem o
que ocorria diante dos olhos de todos.
1
Outro pensador influente para estes jovens é Herbert Marcuse (1898-1979).
206
Aqui está uma questão em que Sartre pode nos ajudar! A crítica do sujeito, da
dissolução do eu, promovido pela geração de 68, são questões que foram postos na mesa
pelo próprio Sartre. Não há uma ruptura radical entre uma geração e outra. Sartre fala do
indivíduo dentro de um grupo, que é formado por um “Terceiro Mediador”. Porém, o
verdadeiro grupo é aquele que se forma por um “olhar” dos seus integrantes voltados
para eles próprios. Tradicionalmente, o sujeito (não o indivíduo) surge do uso da Razão,
que cria as suas próprias leis, criando uma identidade. Hoje, o indivíduo se descolou do
sujeito, formando uma pluralidade de indivíduos atomizados (que Marx já criticava) que
não possuem nenhuma identidade. Ora, a sociedade não é formada por átomos que se
chocam entre si, mas por relações sociais formadas historicamente. Trata-se de um
processo histórico e, portanto, não é imutável. Sartre nos mostra o grupo surgindo do
próprio grupo, pois este já é uma estrutura ontológica do indivíduo (o Ser-para-Outro).
Porém, não se trata da formação de um sujeito, pois não ocorre a criação de uma
identidade. O grupo é grupo-em-fusão, isto é, um processo constante de inter-relações
dos indivíduos entre e contra si. Portanto, não se trata de um retorno ao sujeito ou algum
elogio à identidade, mas de uma manifestação que está em movimento perpétuo. Esta é
uma das genialidades de Sartre: ele usou um conceito típico da burguesia (o
individualismo) contra a própria burguesia. Com o aumento do individualismo nos dias
de hoje, Sartre se torna uma presença ativa em sua crítica mordaz ao individualismo.
a banalização dos temas. Vivemos numa sociedade bombardeada por informações por
todos os lados, alcançando os mais elevados graus de abstração no campo econômico-
social, formando uma sociedade intermediada por imagens.2 Isto criou e privilegiou
certos padrões de comportamentos homogeneizados. Veremos como: em primeiro lugar,
foi dito que a tecnologia, com o surgimento da robótica, diminuiria o trabalho,
aumentando o tempo de ócio. Isto é uma mentira, porque nunca se trabalhou tanto
quanto hoje em dia! Trabalha-se mais do que na Idade Média, cuja economia possuía
atividades sazonais, além de intervalos constantes para as atividades religiosas. Este fato
levanta duas questões. Com o advento dessas novas tecnologias não existe mais um
horário fixo de trabalho. Através de celulares, bips ou lap tops, o trabalhador está 24
horas por dia à disposição do capital. Antigamente, ele estava preso ao tempo em que
permanecia dentro do estabelecimento de trabalho. Atualmente, as paredes deste local
de trabalho desconhecem limites! Portanto, o capital necessita se agilizar cada vez mais
para se acumular no estágio em que se encontra. Isso levanta outra questão. O trabalho
(Marx já havia afirmado) não é uma natureza ou essência humana, ligada a uma
necessidade fisiológica do organismo do homem, como pode aparecer segundo os
economistas liberais. O trabalho é uma expressão histórica e, portanto, não existe
natureza humana. Hoje um homem ocidental médio precisa de mais coisas para viver do
que há cem anos atrás. Isso comprova que não existe um limite orgânico para a
necessidade humana, se relaciona ao caráter de tecnologia com a criação de
obsolescência, e não como saciadora de carências. Neste aumento de trabalho, se
privilegiam-se modelos comportamentais associados à velocidade e à agilidade. Pede-se
ao trabalhador ser uma pessoa dinâmica, ativa, comunicativa e participativa. Este é o
tipo de subjetividade mais apreciada pelo capitalismo contemporâneo.
Uma das doenças que abatem o espírito de minha geração é a apatia. Como
perdemos os nossos valores antes mesmo de criá-los, voltamo-nos cada vez mais para
nós mesmos (individualismo), absorvendo este bombardeio de informações que nos
rodeiam. Não há regras esclarecedoras de como agir no mundo. Que diga querer mudá-
lo! Porém, esse papel messiânico não foi outorgado por nenhuma força externa (Deus ou
História) mas de algo que vem de nós mesmos. Aqui se encontra o importante saldo que
os loucos anos 60 – que para nós parecem tão esdrúxulos como as suas roupas e
2
DEBORD, G. A sociedade do espetáculo trad. Estela Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997
210
“Vocês têm que reinventar a tradição de vocês”, acrescentou ainda, “uma tradição
que a revolução cultural tem que dar a si mesma.”3
“Vaut-il mieux avoir tort avec Sartre ou raison avec Aron?» (É melhor estar
errado com Sartre ou ter razão com Aron?). Essa perturbadora pergunta que circulava na
época pode soar perversa hoje, após 20 anos da morte de Sartre (e 40 de sua passagem
ao Brasil). É um dos homens que possui uma das obras mais complexas e ricas que este
século já produziu. A verdadeira questão é se preferimos ler autores que não trazem
nada de enriquecedor e perturbador para nós, com idéias inescrupulosamente acabadas,
ou obras plurais, que repercutem em vários campos, levantando questões intrigantes?
Queremos um mestre que diga tudo o que devemos fazer ou um companheiro que nos
pressiona, nos faz pensar e que discutiu suas idéias sem medo, brigou com meio mundo
e reviu seus próprios pontos de vista ao longo da vida?
3
COHEN-SOLAL, A. op. cit p 587. Acerca da opinião de Sartre sobre Maio de 68 ver SARTRE, J.-P.
Situations VIII Paris: Gallimard, 1972
211
Notas biográficas
forte experiência social. Em 1941, consegue ser libertado ao passar por civil, fugindo
para Paris. Retoma o seu posto no liceu e funda um grupo de resistência Socialisme et
Liberté, com amigos, colaborando também com artigos para jornais clandestinos. É
transferido para o liceu Condorcet. Em 1943, monta a sua primeira peça de teatro Les
mouches e publica L’être et le néant. Com a Libertação, viaja para os Estados Unidos
como correspondente do jornal Combat! e funda a revista Les Temps Modernes. Recusa
a Legião de Honra, como Camus. Mundialmente famoso, abandona o magistério,
vivendo de sua carreira de escritor. Nesta condição, passa a viajar para várias partes do
mundo, como a África, a URSS, a Escandinávia, a China, o Japão, Israel, etc. Com seus
problemas com os comunistas, funda em 1948 o partido Ressemblement Démocratique
Révolutionnaire (R.D.R.), abandonando-o no ano seguinte. Em 1952, participa do
Congresso dos Povos para a Paz, em Viena, aproximando-se do PCF. Em 1956, a URSS
invade a Hungria, e Sartre rompe com os comunistas. Passa a tomar doses de
anfetaminas para escrever Critique de la raison dialectique, publicado em 1960. Neste
mesmo ano viaja para o Brasil, após estar em Cuba e Iugoslávia, permanecendo três
meses em nosso país. Neste período, assinou o famoso “Manifesto dos 121” a favor da
independência da Argélia. Em 1964, recusa o Prêmio Nobel de Literatura. No ano
seguinte, inicia o seu pedido de adoção para Arlette Elkaïm, uma judia argelina.
Participa do Tribunal Russel em 1966, julgando os crimes dos norte-americanos no
Vietnã. Devido a problemas políticos, Sartre escreve uma carta ao presidente De Gaulle,
mas o tribunal teve que ser transferido para Estocolmo. Em 1968, participa dos
movimentos dos estudantes, trava uma violenta polêmica com Aron e condena a
intervenção soviética na Tchecoslováquia. Assume a diretoria do jornal maoísta Le
Cause du Peuple, em 1970, emprestando o seu nome para vários jornais militantes como
Révolution!, Tout! e Libération, chegando a ser preso, devido a sua relação com os
maoístas. Em 1972, é filmado o documentário de longa-metragem Sartre par lui-même
(1977) de Alexandre Astruc. Em 1973, inicia o processo de cegueira, devido a
problemas cardiovasculares por uso de anfetaminas e de uma vida desregrada, como
excesso de bebida e tabaco. Junto com Aron e André Glucksman inicia um movimento a
favor dos refugiados vietnamitas em 1979. Vítima de um edema pulmonar, é internado
em 20 de março, morrendo em 15 de abril de 1980. Seu corpo foi cremado e suas cinzas
depositadas no cemitério de Montparnasse, sendo seu funeral acompanhado por um
cortejo de 50 mil pessoas, sobretudo jovens.
213
Bibliografia
teatrais neste período estudantil. Voltou-se para o cinema, iniciando como crítico na
revista Cinema, em 1935, trabalhando como assistente de Roberto Rossellini (1906-
1977) e Marcel Carné (1909-1996). Ao retornar da França, inicia as filmagens de seu
primeiro documentário Gente del Pó, que devido à guerra, conseguiu montá-lo e lançá-
lo somente em 1947. Com o fim da guerra, inicia a sua carreira de documentarista em
pleno Neo-realismo. O seu primeiro longa-metragem é “Crônica de um amor (Cronaca
di un amore; 1950), influenciado por Robert Bresson (1907-1999). Passa a chamar
atenção com o seu filme “O grito” (Il grido; 1957), passando à fama mundial com seu
sucesso em Cannes com “A aventura” (L’avventura; 1959). O seu primeiro filme
colorido “Deserto vermelho” (Il deserto rosso; 1964) recebe o Leão de Ouro em
Veneza. Realiza algumas co-produções na Inglaterra. Em 1986, sofre um derrame,
deixando-o parcialmente paralisado e perdendo parte da fala, o que o impede de
continuar filmando. Esteve no Brasil em 1994, sendo homenageado no Festival de
Gramado. Em conjunto com Win Wenders (1945- ), dirige seu último filme “Além
das nuvens” (Al di lá delle nuvolle; 1995).
Filmografia
Curtas-metragens:
Longas-metragens:
escreveu cartas sobre a guerra ao jornal Asahi Shimbun. Retorna ao seu país em 1939, e
dois projetos de produção são proibidos pela censura, porém, alcança sucesso de crítica
e público com “Os irmãos da família Toda” (Toda-ke no kyodai; 1941). Devido ao seu
sucesso, é enviado pelo governo, em 1941, à Singapura para realizar filmes de
propaganda de guerra. É feito prisioneiro pelos ingleses, porém, destrói todo o material
filmado antes de cair nas mãos do inimigo. Retorna ao Japão, em fevereiro de 1946,
sendo consagrado com seus filmes. É premiado pela quinta vez com o Prêmio de
Melhor Filme do Ano, em 1949, com “Pai e filha” (Banshun). No final da década de 50,
Ozu alcança ao ápice de sua carreira. Em 1954, recebe vários prêmios outorgados pelo
Ministério da Educação e pelo Imperador e no ano seguinte é o primeiro diretor de
cinema a ser eleito para a Academia Nacional de Arte. A partir de 1959, seus filmes são
premiados, por três anos consecutivos, pela Sociedade Nacional dos Artistas. Em
fevereiro de 1962, morre sua mãe. No ano seguinte, prepara o roteiro de seu próximo
filme e de uma produção para a televisão. Na primavera se submete a uma cirurgia para
tratar de um tumor maligno no pescoço. Retorna a casa, mas as dores continuam, sendo
internado em 12 de outubro. Na tarde seu 60º aniversário (12 de dezembro de 1963),
Ozu morre. Suas cinzas são depositadas no templo de Engaku em Kita-Kamakura. Na
lápide, não possui nenhum nome ou data, apenas a inscrição mu (o nada, o vazio).
Filmografia:
Filmografia:
Curtas-metragens:
Longas-metragens:
Ilustrações
Figura 1
Figura 2
221
Geometrização do Corredor
Figura 3
222
222
223
Memorial
223