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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

CENTRO DE ESTUDOS GERAIS


INSTITUTO DE ARTE E COMUNICAÇÃO SOCIAL

FABIÁN RODRIGO MAGIOLI NÚÑEZ

OS DESCAMINHOS DA LIBERDADE
Uma Análise da Moral de Sartre

Niterói
2000
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FABIÁN RODRIGO MAGIOLI NÚÑEZ

OS DESCAMINHOS DA LIBERDADE
Uma Análise da Moral de Sartre

Projeto experimental apresentado ao Curso de


Graduação em Comunicação Social da
Universidade Federal Fluminense, como requisito
parcial para obtenção do Grau de Bacharel.
Habilitação: Cinema.

Orientador: Prof. Dr. FERNANDO JOSÉ FAGUNDES RIBEIRO

Niterói
2000
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FABIÁN RODRIGO MAGIOLI NÚÑEZ

OS DESCAMINHOS DA LIBERDADE
Uma Análise da Moral de Sartre

Projeto experimental apresentado ao Curso de


Graduação em Comunicação Social da
Universidade Federal Fluminense, como requisito
parcial para obtenção do Grau de Bacharel.
Habilitação: Cinema.

Aprovado em agosto de 2000.

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________________
Prof. Fernando José Fagundes Ribeiro
Universidade Federal Fluminense

Prof. Antonio A. Serra


Universidade Federal Fluminense

Prof. Hernani Heffner


Universidade Federal Fluminense

Niterói
2000
4

A todos os homens e mulheres que lutam


por uma universidade pública, gratuita e
de qualidade neste país.
5

AGRADECIMENTOS

Agradecemos a todos que, direta ou indiretamente, contribuíram para a


elaboração desta monografia. Em especial, à minha família, pelo apoio e
dedicação e a dois amigos que me são muito caros: ao Prof. Fernando José
Fagundes Ribeiro, cujo grupo de estudos amadureceu o meu interesse pela
Filosofia e abriu novas perspectivas à minha vida acadêmica; e ao Prof.
Hernani Heffner, que me ensinou a entender a profundidade da arte do
Cinema.
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“O mais modesto escrito suscitava aclamações, fazia-se um grande


alvoroço em torno do nosso autor: os países estrangeiros se comoviam com
benevolência com esse estardalhaço, e o ampliavam. Entretanto, embora as
circunstâncias tenham contado tanto a favor de Sartre, não foi por acaso;
havia, pelo menos à primeira vista, uma notável coincidência entre aquilo
que ele trazia ao público e o que este reivindicava. Os pequeno-burgueses
que o liam também tinham perdido a fé na paz eterna, num calmo
progresso, em essências imutáveis; haviam descoberto a História sob a sua
aparência mais medonha. Precisavam de uma ideologia que integrasse
essas revelações sem, no entanto, obrigá-los a jogar fora suas antigas
justificações. O existencialismo, esforçando-se por conciliar história e
moral, autorizava-os a assumir sua condição transitória, sem renunciar a
um certo absoluto, a enfrentar o horror e o absurdo, conservando ao mesmo
tempo sua dignidade de homem, e a preservar sua singularidade. Parecia
fornecer-lhe a solução sonhada.

Na verdade, não; e foi por isso que o sucesso de Sartre foi tão ambíguo
quanto volumoso, inflado dessa mesma ambigüidade. As pessoas se
lançaram avidamente sobre uma comida qual tinham fome; quebraram os
dentes e soltaram gritos cuja violência intrigava e atraía. Sartre os seduzia
mantendo, no nível do indivíduo, os direitos da moral; mas a moral que ele
indicava não era a deles. Seus romances lhes devolviam uma imagem da
sociedade que eles recusavam; acusaram-no de realismo sórdido, de
miserabilismo. Estavam dispostos a ouvir sobre eles mesmos algumas
verdades brandas, mas não a se olhar de frente. Contra a dialética marxista,
reivindicavam a liberdade; mas Sartre exagerava. A liberdade que ele lhes
oferecia implicava em fatigantes responsabilidades; voltava-se contra as
instituições, os costumes; destruía sua segurança. Convidava-os a usá-la
para se aliar ao proletariado: eles queriam entrar para a História, mas não
por essa porta. Categorizados, catalogados, os intelectuais comunistas os
incomodavam muito menos. Em Sartre, os burgueses se reconheciam, sem
consentir na superação da qual ele lhes dava o exemplo; ele falava a língua
deles, usando-a para lhes dizer o que não queriam ouvir. Eles vinham e
voltavam a Sartre porque ele lhes fazia perguntas que eles mesmos se
faziam: fugiam porque as respostas os chocavam.”

Simone de Beauvoir
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SUMÁRIO

Introdução ................................................................................................ 10
PARTE I - O SER .................................................................................. 16
Capítulo 1 - A Fenomenologia .............................................................. 17
Capítulo 2 - A Náusea ........................................................................... 22
Capítulo 3 - O Ser e o Nada .................................................................. 26
Capítulo 4 - A Má Fé............................................................................. 31
Capítulo 5 - A Liberdade....................................................................... 38
Capítulo 6 - O Outro ............................................................................. 47
Análise Fílmica :“Deserto vermelho” ................................................... 57
PARTE II - OS VALORES ...................................................................... 69
Capítulo 1 - A Deliberação Moral ........................................................ 70
Capítulo 2 - O Existencialismo é um Humanismo................................ 81
Análise Fílmica: “A rotina tem seu encanto” ....................................... 95
PARTE III - A HISTÓRIA .................................................................... 107
Capítulo 1 – Existencialismo e Marxismo .......................................... 108
Capítulo 2 – A Alienação .................................................................... 126
Capítulo 3 – O Grupo .......................................................................... 139
Capítulo 4 – O Progresso de Kant....................................................... 151
Capítulo 5 – O Espírito Absoluto de Hegel ........................................ 156
Capítulo 6 – O Materialismo de Marx e a Moral de Sartre ................ 163
Análise Fílmica: “Eles não usam black-tie” ....................................... 181
Conclusão ............................................................................................... 195
Bibliografia ............................................................................................ 199
Apêndice................................................................................................. 204
Sartre em tempo de globalização ........................................................ 204
Notas biográficas ................................................................................. 211
Ilustrações .............................................................................................. 220
8

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Movimentos de Atores em Ozu


Figura 1..................................................................................................214
Figura 2..................................................................................................214
Figura 3..................................................................................................215
Quadro Geral do Pensamento de Sartre.................................................216
9

RESUMO

O filósofo Jean-Paul Sartre foi uma das figuras mais marcantes do século
XX, escrevendo sobre os mais variados temas. Foi constatada uma lacuna
em sua obra em relação ao Cinema, sendo necessário um deslocamento da
análise para o campo moral de seu pensamento. Há uma visão geral de sua
obra, buscando uma coerência em seu desenvolvimento. São ilustrados os
seus conceitos filosóficos a partir da análise de filmes, permitindo uma
maior compreensão.

Palavras-chaves: Filosofia - Existencialismo - Cinema


10

Introdução

O século XX termina com uma herança catastrófica: duas guerras mundiais,


armas químicas e nucleares, expurgos étnicos e regimes totalitários. Dentro desse negro
quadro, aparece uma das figuras mais irrequietas, imerso nas discussões mais
características deste século. Trata-se do filósofo Jean-Paul Sartre.

A obra de um filósofo muito se assemelha a de um artista, pois seu


pensamento se desenrola intimamente ligado à vida de seu criador. Ele encontra
impasses, crises e não devemos assistir a tal fato numa lógica de progresso. Porém,
podemos agrupar uma coerência em seu encadeamento. O mesmo podemos afirmar de
Sartre, apesar das reviravoltas de sua obra. Com certeza, as próximas gerações ao
olharem este século, encontrarão a sombra de Sartre, pois foi um dos maiores expoentes
pensadores desta centúria. E o Existencialismo repercutiu em todos os campos do
pensamento, como na Arte. O Cinema não foi exceção. Porém, Sartre sempre teve uma
relação problemática com o cinema. Sempre o reconheceu como uma expressão de
elevado nível e jamais negou o seu caráter artístico. Desde criança sempre foi um
apaixonado pelos filmes, sendo um freqüentador assíduo das salas de exibição. Por
outro lado, os filmes adaptados de suas peças ou realizados de seus roteiros não
alcançaram a expectativa que Sartre esperava. Ele sempre lamentou não ter contribuído
com maior intensidade ao cinema, sendo absorvido pelo teatro, pela literatura e pela
crítica literária (isto sem falar da música, que Sartre tanto adorava). Em termos teóricos,
escreveu praticamente nada sobre cinema. É uma verdadeira lástima!

Dois textos se destacam: “L’art cinématographique”1 e “Discussion sur la


critique a propos de ‘l’Enfance d’Ivan’»2. O primeiro texto é um discurso proferido por
Sartre em sua primeira aparição pública, em 12 de julho de 1931, numa solenidade do
liceu François I, em Havre. Assumira o cargo de professor de filosofia, quatro meses
antes, e tinha acabado de se formar e de completar vinte e seis anos de idade. Segundo a
tradição do liceu, cabia ao professor mais moço proferir o discurso que servia de

1
CONTAIT, M. e RYBALKA, M. Les écrits de Sartre Paris: Gallimard, 1970. pp. 546-2
2
SARTRE, J.-P. Situations VII. Paris: Gallimard, 1965. pp. 332-342
11

preâmbulo ao conjunto da cerimônia. Em toda aquela pompa, vestido de beca, Sartre


falou sobre... cinema! Causou um certo escândalo à burguesia daquela pequena cidade
provinciana.3 Sartre afirma nesta ocasião que o cinema é a arte que melhor reflete a
civilização de nosso tempo, pois representa a irreversibilidade do tempo com a sua
sucessão de planos. É uma arte tão nobre quanto o teatro e a música, possuindo leis
próprias e meios particulares, convocando seus alunos a freqüentarem mais as salas de
cinema.4 O segundo texto é extremamente famoso, se tratando de uma carta contra uma
crítica cinematográfica do filme soviético “A infância de Ivan” (Ivanovo detstvo; 1962)
de Andrei Tarkovski (1932-1986). Contra os comunistas que acusavam Tarkovski de
“artista burguês”, Sartre o defende como representante da geração de artistas formados
no “realismo socialista” do stalinismo, se revoltando contra este esquematismo estético.
Tornou-se célebre a definição de Sartre ao cinema hermético de Tarkovski: “surrealismo
socialista”.

Como podemos ver, Sartre jamais esquematizou um pensamento acerca do


cinema. Não chegou nem esboçar alguma teoria cinematográfica. Portanto,
deslocaremos o nosso estudo para a questão central de sua obra: a Moral. Primeiro, que
a manifestação artística traz à tona a relação Eu-Outro. E, o que é mais importante, a
grande questão que sempre preocupou a cabeça de Sartre é a Moral. Verdade seja dita, o
filósofo francês foi um moralista, não no sentido pejorativo do termo, mas um pensador
preocupado em compreender o comportamento humano. Porém, ao escrever o seu
tratado ontológico “O ser e o nada” prometeu uma moral que durante o resto de sua
vida, jamais saiu à luz. Quais foram os problemas que Sartre encontrou em seu próprio
arcabouço filosófico?

O Existencialismo ganhou fama (durante esse trabalho teremos o zelo de


separar a Filosofia da moda) na Europa pós-guerra, num período de crise de valores,
com o advento da era nuclear. O mundo dividido da Guerra Fria moveu Sartre à fortes

3
COHEN-SOLAL, A. Sartre: 1905-1980. trad. Milton Persson. Porto Alegre: L&PM, 1986. pp. 118-21.
A autora narra as excentricidades do jovem parisiense naquela pequena cidade, causando atos
reprovatórios, como andar mal vestido, permitir os alunos fumarem na sala de aula e ser freqüentemente
visto bêbado em companhia dos seus alunos nos bordéis locais.
4
“(...) Je prétends que le cinéma est un art nouveau qui a ses lois propres, ses moyens particuliers, qu’on
ne peut le réduire au thêatre, qu’il doit servir à votre culture au même titre que le grec ou la philosophie.»
in CONTAIT, M. e RYBALKA, M. op cit p. 548
12

convicções políticas, que mudaram os rumos de sua moral. Este universo beligerante
trouxe um fator crucial ao mais existencialistas dos termos existencialistas: a Liberdade.

O que é a Liberdade para Sartre? Esta á uma pergunta que percorrerá o nosso
trabalho, resguardando o seguinte princípio: toda liberdade está em situação e não há
situação sem liberdade. Assim, chegamos ao binômio “Liberdade-Situação”, que resume
o pensamento sartreano. Queremos demonstrar que Sartre não rompeu com sua proposta
existencialista ao se aproximar do Marxismo. Porém, a sua prometida Moral foi-se
encaminhando para uma proposta marxista e para tal, houve um deslizamento no
binômio “Liberdade-Situação” e não, um abandono. Ou seja, existe coerência, apesar de
muitos problemas, no pensamento sartreano. O nosso esforço é comprovar isto.

Este binômio trouxe uma nova luz para pensar o Marxismo. Sartre criticava
duramente os marxistas que caíram num economicismo mecanicista ou num idealismo
puro, em busca do “Homem Marxista”. Mais do que relações econômicas, os homens
mantêm entre si relações pessoais e é neste plano que se desenrolam as ações políticas.
Há um espaço para a subjetividade no materialismo de Marx, pois a dialética é um
momento da consciência e não, uma lei da matéria.

Com a queda do Muro do Berlim e o colapso de grande parte dos países


socialistas, o capitalismo é orgulhosamente proclamado como a melhor forma de gerir a
vida humana. Porém, esta nova fase capitalista nos exibe que vivemos numa sociedade
em transição. A crise mundial do trabalho é o exemplo do desconhecido que está para
vir, o que desconcerta até muitos pensadores liberais. Esta descrença e a marcha da
Globalização, dita inexorável, traz em cena o desenrolar da História. E o binômio
sartreano pode servir como parâmetro existencial para pensar os nossos dias, como uma
forma de combater um discurso totalitário e até então demasiado otimista. Quem faz a
História? Sartre, de acordo com o doutrina marxista, afirma serem os homens, numa
negação dos fatos. É negando que se afirmam os projetos pessoais, e é pelas
singularidades que se move a História. O nosso século, em oposição ao anterior, nos
tornou pessimistas e se o desemprego é o anúncio dos anos vindouros, devemos evitar
ao máximo a realização de um negro pesadelo. A História não está pronta, ela está por
se fazer...
13

Este estudo sobre a Moral será apoiado em análises de filmes. Porém, não
analisaremos filmes intimamente ligados ao Existencialismo. Fugiremos de tal
empreendimento com a intenção intelectual de distinguir o Existencialismo como uma
corrente filosófica de uma moda passageira que varreu a cultura francesa no pós-guerra.

Não estamos negando o valor estético de tais filmes, porém, buscaremos em


outros que não estão explicitamente ligados a tal pensamento, como uma forma de
ilustração das idéias de Sartre. Recordemos que o Existencialismo floresceu numa época
de crise de valores, e Sartre trouxe à tona uma doutrina moral, atéia e coerente a um
mundo que testemunhou Auschwitz e Hiroshima.

Outro critério é o fato de serem filmes de depois da guerra. Sem querermos


ser etapistas, a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) foi o grande marco do século XX.
A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) contestou certos padrões sociais, mas se
tratava de uma mera guerra imperialista. A Segunda transcendeu em muito tal conteúdo.
Tratava-se de um conflito ideológico entre três correntes: a democracia liberal, o
totalitarismo e o socialismo. Podemos afirmar que a Guerra Fria (1946-1989) foi um
desenrolar deste quadro beligerante no campo ideológico. Muito mais forte, com
certeza, pois se tratava de concepções de mundo opostos e excludentes (a democracia
liberal e o totalitarismo compartilhavam a concepção de uma economia de mercado).
Atualmente, com o fim da Guerra Fria, a democracia liberal, como o único modelo de
pensamento disponível, passou a exibir suas contradições e dificuldades num elevado
grau. O Cinema, sendo uma arte que nasceu na sociedade industrial, manifestou este
desenrolar do século XX. No pós-guerra, vemos o conflito ideológico entre Leste-Oeste
e, com o desenvolvimento técnico, se iniciou uma expansão, não só tecnológica, mas de
padrões comportamentais. A indústria cultural divulgou em escala planetária, em
proporções muito maiores do que antes da guerra, certos tipos de valores e hábitos. Os
três filmes aqui analisados são manifestações de resistência à esta homogeneização,
pertencendo a cinematografias periféricas (como movimento estético e pretensões
comerciais). Analisaremos, portanto, os filmes dentro de uma abordagem estética,
enquanto expressão dos conceitos filosóficos de Sartre. Apesar de enfocarmos um filme
de cada cineasta diferente, abordaremos superficialmente as suas obras e o papel do
filme analisado dentro do trabalho global do cineasta.
14

O nosso estudo se divide em três partes, e em cada qual uma análise.

A primeira parte enfoca o aspecto ontológico da obra de Sartre. Veremos,


então, desde os seus princípios fenomenológicos até a sua concepção ontológica madura
(“O ser e o nada”). Analisaremos “Deserto vermelho” (Il deserto rosso; 1964) de
Michelangelo Antonioni; trabalhando os conceitos de Náusea e Má-Fé, e encarando as
relações humanas como Conflito.

A segunda parte aborda a questão moral, especificamente, desvelando a


questão dos valores e as diferentes relações com estes. É o período do pós-guerra (pré-
52, o encontro de Sartre com o Marxismo), quando o Existencialismo converteu-se
numa moda. Estudamos o texto “O existencialismo é um humanismo”. Analisaremos
“A rotina tem seu encanto” (Samma no aji; 1962) de Yasujiro Ozu, centrando numa
transformação moral, trabalhando conceitos de Espírito de seriedade e Liberdade.

A última parte estuda a conciliação do Existencialismo com o Marxismo. Na


verdade, esta parte deveria estar dividida em duas fases: de 1952 até 1956, que é a
primeira sistematização do pensamento existencialista ao marxismo (leninismo, para
sermos mais exato) e posteriormente, após 1956, quando Sartre rompe com os
comunistas, elaborando a “Crítica da razão dialética”. Por questões de tempo e espaço,
além do fator de relevância, abordaremos a fase marxista de uma forma genérica,
privilegiando esta última fase, em que o pensamento de Sartre está mais elaborado em
relação ao Marxismo. Tratando-se do estudo da Moral de Sartre, a relação Eu-Outro se
sustentará numa interpretação da História, onde o binômio “Liberdade-Situação”
encontrará um espaço. Este estudo privilegia “Crítica da razão dialética”, e
principalmente a sua introdução “Questão de método”. Analisaremos “Eles não usam
black-tie” (1981) de Leon Hirszman, trabalhando conceitos de Série e Grupo-em-fusão.

Com a divisão da obra de Sartre em três momentos, no viés da Moral, teremos


um visão geral e extensa de seu pensamento. Por último, levantaremos certas questões e
o papel de Sartre nos dias de hoje (ver apêndice). A obra deste filósofo é extremamente
extensa e repleta de detalhes. Sartre foi um dos pensadores mais completos sendo além
de filósofo, romancista, dramaturgo, roteirista, crítico literário, crítico de arte, jornalista
15

e militante político. Escrevia sobre os mais variados assuntos compulsivamente; não


sendo um filósofo de gabinete, estando sempre presente nas ruas como ativista político,
ou, por suas atividades boêmias, tendo uma agitada vida amorosa. Foi um homem que
defendeu suas idéias com determinação, despertando grande admiração ou forte ódio.
Chegou a sofrer três atentados em sua vida (duas bombas em seu apartamento durante a
guerra da Argélia e uma mão esfaqueada –“para parar de escrever mentiras”; disse o
esfaqueador – nos anos 70). O papa Pio XII (1876-1958) – o mesmo piedoso pontífice
que abençoou os canhões fascistas e manteve estreitas relações com os nazistas –
declarou, na encíclica Humanis generis (1950), o Existencialismo como uma das
filosofias contemporâneas mais perniciosas para a humanidade, colocando toda a obra
de Sartre no Index. Na mesma época, algumas das suas peças foram proibidas da União
Soviética. Amado ou odiado, ele é uma das figuras mais importantes deste século. Será
que, ao virar o calendário, as suas idéias ficarão enterradas no passado? As novas
gerações não terão nada a ouvir desta voz que não cessava de incomodar tantas pessoas?
16

PARTE I - O SER
17

Capítulo 1 - A Fenomenologia

No ano de 1931, Sartre fora nomeado professor de filosofia no Liceu


François I em Havre. Em uma de suas estadas em Paris foi seduzido pela fenomenologia
por Raymond Aron (1905-1983). Simone de Beauvoir (1908-1986) narra em suas
memórias como ocorreu tal encontro:

Aron apontou em seu copo: “Estás vendo, meu camaradinha, se tu és


fenomenologista, podes falar deste coquetel, e é filosofia”. Sartre
empalideceu de emoção, ou quase: era exatamente o que ambicionava
há anos: falar das coisas como as tocava, e que fosse filosofia. Aron
convenceu-o de que a fenomenologia atendia exatamente a suas
preocupações: ultrapassar a oposição do idealismo e do realismo,
afirmar a um tempo a soberania da consciência e a presença do
mundo, tal como se dá a nós. (BEAUVOIR, 1984, p. 138)

Para compreendermos a obra de Sartre, devemos partir dos fundamentos


fenomenológicos, nos quais se erguerá a sua ontologia. Porém, o que é a
fenomenologia?

Esta foi criada por Edmund Husserl (1859-1938) que buscava, no fim do
século XIX, fundamentar o conhecimento, devido a eufórica expansão do método
científico. A Filosofia, com seus grandes sistemas tradicionais, estava em crise, devido à
vaga positivista que atribuía um poder exacerbado à Ciência. Porém, campos como a
física ou a química já possuíam um solo firme, mas as recém-nascidas ciências, como a
sociologia ou a antropologia, careciam de uma sólida fundamentação filosófica.
Oriundas do positivismo, zelavam por um objetivismo puro, como uma simples
descrição de fatos empíricos, isentos de elementos subjetivistas. Imitando o modelo das
ciências da natureza, estas começaram a ser questionadas. As suas leis tinham uma
fundamentação? Serão apenas convenções?

Foi pela psicologia, que gozava um enorme prestígio em sua época, que
Husserl orientou seus estudos. Esta é uma ciência empírica dos fatos do conhecimento,
onde, segundo as teorias vigentes, a consciência abriga imagens ou representações dos
objetos que afetam nossos sentidos. Porém, uma nova luz é lançada com as idéias de
18

Franz Brentano (1830-1917). Sua grande contribuição é distinguir dois tipos de


fenômenos: os psíquicos, que possuem uma intencionalidade e os físicos, que podem
ser percebidos, sendo tal percepção original o seu conhecimento fundamental. Vemos
que a consciência não possui uma mera passividade, já que visa aos objetos, e a
descrição do fenômeno como ele é, conduzindo-nos a um conhecimento seguro,
escapando de fatores subjetivos.

A intencionalidade e a descrição dos fenômenos são os aspectos fundamentais


do pensamento husserliano. A teoria do conhecimento, na qual um sujeito cognoscente
pode alcançar com veracidade uma realidade heterogênea a sua, não pode ser encerrada
no psicologismo. Este é uma simples descrição empírica, não havendo espaço para as
leis lógicas que o fundamentam. Portanto, o problema dessas ciências, segundo Husserl,
é que elas não determinam rigorosamente o seu objeto, e não sabem, assim, o que elas
estudam. É preciso que através de um método rígido, estes elaboram os seus conceitos
próprios e necessários.

O que Husserl quer combater vigorosamente é o naturalismo em que essas


ciências caem. Para o positivismo, a consciência e os objetos que apreende seriam
ambos objetos naturais ou físicos. A consciência seria um efeito de eventos fisiológicos
ocorridos no cérebro e no sistema nervoso. Ora, isto acarreta numa impossibilidade de
rigor científico, pois a ciência provém de uma universalidade. O naturalismo se engana
ao confundir o físico com o psíquico. Mistura o fruto de sua investigação com o seu
fundamento. No entanto, o fundamento não pode estar na mesma linha do
fundamentado. Para Husserl, ciências como a matemática ou a lógica criam os seus
próprios fundamentos, porém seria a filosofia, em última instância, a geradora de todos
os princípios. Assim, conseguiria finalmente sair das especulações metafísicas para se
tornar a mais rigorosa das ciências. Isto ocorrerá quanto o filósofo se tornar no estudioso
dos fenômenos, utilizando a fenomenologia.

O fenômeno não é uma cortina que esconde alguma coisa, nem tampouco, um
mero feixe amorfo de sensações. O seu sentido é inteiramente imanente, podendo ser
percebida a sua essência. O fenômeno é aquilo que se manifesta imediatamente à
consciência. Assim, a filosofia deveria partir da experiência real, com um “retorno às
coisas mesmas”. A essência é sempre idêntica a si mesma, independente das
19

circunstâncias contingentes de sua realização. Através de um objeto é possível alcançar


a essência que este compartilha com outros, conseguindo sair da sua singularidade, o
que, segundo Husserl, foi o que o empirismo não conseguiu realizar. Portanto, a
primeira tarefa de Husserl foi distinguir as diferentes formas de como os objetos vêem à
consciência (pela percepção ou imaginação, por exemplo.) para chegar a estrutura pura
dessas essências, que devem ser analisadas em seu dado imediato, através de uma
intuição.

Para compreendermos este movimento devemos saber o que é a consciência.


A sua estrutura básica é a intencionalidade. Este conceito, oriundo da filosofia
medieval, significa que a consciência se resume no ato de visar alguma coisa, como se
explicita em sua célebre frase: “toda consciência é consciência de alguma coisa”. Assim,
a consciência não é uma substância, mas uma atividade constituída de atos (percepção,
imaginação, especulação, volição, etc.). Da mesma forma, o objeto só pode ser definido
em sua relação com a consciência e não possui uma existência própria fora desta
relação. Assim, a fenomenologia não é uma simples contemplação das essências num
mundo estático, mas a análise de uma consciência dinâmica.

Dessa forma, Husserl rompe com a dualidade sujeito-objeto, já que estes


provêm de um mesmo ato, partindo de uma correlação original. Diferentemente do
senso comum, não há um sujeito que percebe objetos, sendo ambos de natureza distinta
num jogo de interior-exterior. A própria forma de como esta relação se dá faz parte
dessa estrutura. Eu posso ver uma flor, ou imaginá-la, ou sonhar com esta. Isto não
significa que a experiência onírica ou imaginativa seja inferiores à da percepção. Ou
seja, a flor sonhada não é menos real do que a percebida. Ela possui uma realidade
própria, pois foi num sonho que se apresentou à consciência. E o sonho é um ato da
consciência, o que Husserl batiza de noesis. O que é visado, ele nomeia de noema.
Portanto, a flor percebida, imaginada ou sonhada são distintas pois se dá em relações
noemáticas diferentes. O mesmo se dá com um filme. Este não é um simples registro
fotoquímico de um objeto concreto. A sua exibição numa tela, dota-o de uma realidade
própria. Assim, o lendário espanto dos espectadores ao trem do filme dos irmãos
Auguste (1862-1954) e Louis Lumière (1864-1948) ocorre por ser tão real quanto um
trem numa estação. Porém, é relevante recordar que o cinema não é mera fotografia em
movimento, mas uma linguagem. Frente a isso, definir o que é a realidade fílmica é todo
20

o esforço de André Bazin (1918-1958). Mas, como vimos, para tal é necessário
pressupor que a tela é um espaço de realidade.1

Já que a consciência e o fenômeno não existem separadas um do outro, as


idéias só existem porque são idéias sobre as coisas. E a fenomenologia pretende
alcançar as suas essências, para chegar à realidade como ela é. E para tal, Husserl afirma
ser necessário “limpar” os objetos de qualquer juízo. É o que chama de redução
fenomenológica ou epoqué, quando colocamos entre parênteses a realidade do mundo
exterior, sem negá-la ou afirmá-la, como se existisse independente da consciência. O
que chama de “atitude natural”, ou seja, o ato do senso comum de acreditar que as
coisas existem exteriormente. Como as vemos. Porém a redução possui duas etapas:
primeiramente, devemos buscar o significado ideal das coisas. É a busca da essência do
elemento empírico que, segundo Husserl, é o que toda ciência deve fazer para definir
anteriormente o objeto de seu estudo. Esse momento é chamado de redução eidética.
Posteriormente, ocorre a redução transcendental, que visa à própria consciência como
constituidora das essências. É neste nível que chegamos à apoditicidade radical da
relação noemática.

Alcançamos então ao Ego Transcendental, que é um “eu puro”, muito além


do psiquismo, pois não é algo subjetivo, mas o lugar onde se desdobra a
intencionalidade. Ele é independente do mundo, pois é totalmente absoluto. O mundo,
como vêem a consciência, é um campo fenomenal. Porém, isto não significa que o
mundo é uma simples manifestação da consciência, como se brotasse deste “Eu Puro”.
O Ego Transcendental sistematiza uma síntese unificadora cognoscente, função
espontânea da consciência em contato com os elementos sensíveis que são os chamados
dados hiléticos. O que não torna a consciência como um simples pólo recipiente, pois
esta é composta pelos atos de pensamento, e os objetos, que visados por esses atos, se
constituem e se apresentam unicamente através deles. A intencionalidade não apenas

1
As idéias de Bazin desenvolvidas no pós-guerra foram influenciadas pelo neo-realismo italiano e pelo
existencialismo francês, sobretudo Sartre. Portanto, o ponto de partida de sua teoria realista é a
fenomenologia. Para Bazin, o cinema possui uma dimensão ontológica que remete à realidade concreta
que é impressa na película. A imagem fotográfica, diferente da pintura, nos exibe a matéria nua e
oferecida à nossa percepção. O cinema não é uma aparência do real, mas a criação de um mundo na tela
que é “à imagem do real”. Propõe, inclusive uma fenomenologia, em que o cinema não deveria ser
ideológico, mas exibir um mundo “entre parênteses”, ou seja, o mundo como ele realmente é. Seria
deveras interessante estudar a influência das idéias fenomenológicas e existencialistas no pensamento
baziniano, porém, isto fugiria à proposta de nosso trabalho.
21

designa o objeto, mas é por ela e nela, e somente nela, que se forma o objeto, pois sem
ela não seria possível tal síntese.

Husserl possuía uma forte afinidade com o pensamento de René Descartes


(1596-1650), que o admirava por ter feito da filosofia um método rigoroso e por haver
demonstrado que o “eu penso” é o único fundamento possível por ser algo absoluto e a
priori. O seu único lamento é que após ter chegado à este apriorismo radical, o filósofo
francês recorreu à um argumento teológico, fazendo de Deus um ponto de apoio ao seu
cogito. Husserl declarava que a fenomenologia era um neocartesianismo, pois o seu
fundamento capital é o “eu puro”, sempre idêntico a si mesmo, provando a sua diferença
com um “eu psicológico”, já que este é unido ao mundo empírico.

Se a fenomenologia é uma descrição das essências, como esta pode ser o


cimento para uma filosofia chamada existencialista? Antes de mais nada devemos
recordar que o primado da fenomenologia é a intencionalidade, o que faz com que as
essências não sejam puras idéias flutuantes, mas algo que corresponde à um objeto do
mundo, seja real ou ideal. Sujeito e objeto estão indissociavelmente juntos, constituindo
a base fundamental do existencialismo: o homem é um ser-no-mundo. Ambos surgem
no mesmo ato, sendo inconcebível pensar o homem sem o mundo, e este sem o homem.
Assim, a redução fenomenológica impõe a necessidade de refletir o campo de vivência
(com que os últimos livros de Husserl se preocupam), em distinguir o meu eu do Ego
Transcendental, cujos atos são a fonte e o fundamento da compreensão de si. Se viver é
acima de tudo existir, a existência é algo que escapará sempre de qualquer
conhecimento, pois este ser-no-mundo não é nem um sujeito puro nem o mundo um
puro objeto. A existência será algo da qual e pela qual se desdobrará o conhecimento,
escapando ela própria de qualquer ciência ou domínio da consciência. Assim, a
segurança daquele “Eu Puro”, no qual se unia e se fundavam os atos da consciência, será
abalada. E isso ocorre, em Sartre, por uma radicalidade do conceito de intencionalidade.
Entretanto, antes de desbastar esta consciência, será necessário passar pela existência, o
que somente ocorre por um “choque filosófico”.
22

Capítulo 2 - A Náusea

Vemos o quanto Husserl se filiava a Descartes, pelo fato de ter alcançado um


princípio sólido para o conhecimento. E para tal, foi necessário duvidar de tudo, da
veracidade do mundo, de seu corpo, das matemáticas e de toda e qualquer idéia. Algo
semelhante ocorre em Sartre, mas o seu questionamento cairá sobre o sentido da
existência humana. O nosso cotidiano, os nossos valores, as nossas certezas. Esta
potencialização da dúvida não está em nenhum ensaio filosófico; Sartre a realizou em
seu romance “A Náusea” (La Nausée).

Publicado em março de 1938, o texto se apresenta sob a forma do diário de


Antoine Roquentin, um homem de trinta e cinco anos sem grandes preocupações
financeiras, que se fixa na pequena cidade portuária de Bouville (cidade da lama)2 para
realizar uma pesquisa sobre o marquês de Rollebon, um nobre do século XVIII. Aos
poucos, o nosso personagem começa a desvelar o sentido da existência, interrogando-se
sobre tudo ao seu redor, atingindo inclusive a si próprio. Observando os homens em
suas atividades diárias, em seus ritos sociais, pergunta-se acerca do que nos força a
realizar tais atos. Olha para as coisas que o cercam: o mar, as gaivotas, as pedras e se
pergunta por que estão aí: “Por que estou aqui? E por que não estaria aqui?” (p.155).

E então, Roquentin começa a se sentir como se seu lugar no mundo não


tivesse nenhuma necessidade. Simplesmente estava aí, como se fosse algo sobrando. A
sua existência era algo totalmente gratuito, ou seja, sem razões ou justificativas. Assim,
começa a se sentir enjoado do mundo, perturbado em seu pensamento e com medo
diante deste terrível fato. Algo que não conseguia dizer o que era, mas que batiza sob o
nome de Náusea.

Poderíamos equivocadamente acreditar tratar-se de um mero romance


psicológico, que estamos diante de um evento emocional do personagem: “A Náusea
não me abandonou e não creio que me abandone tão cedo; mas já não estou submetido a
ela, já não se trata de uma doença, nem de um acesso passageiro: a Náusea sou
eu”(p.187). Atingimos ao princípio filosófico do livro. A Náusea não é uma experiência
23

psicológica ou fisiológica, mas uma experiência ontológica! Roquentin chega ao


fundamento que constitui a sua essência. Este é o ponto de partida de todo o pensamento
sartreano. E a moral existencialista, tão vigorosamente criticada, se apóia neste dado.
Compreendendo a que Sartre se refere sob o nome de Náusea, compreendemos (a não
ser por maledicência) o que está em jogo no campo moral pelos existencialistas.

Já sabemos que a Náusea não é algo subjetivo. Não se tem consciência da


Náusea, pois o “eu” se dissolve nela. O “eu” participa de uma consciência de Náusea.
Esta, por sua vez, não se refere às coisas. Quando Roquentin olha para a raiz do
castanheiro e já não sabe mais o que é ele, a árvore ou o jardim, isto ocorre porque a
Náusea não está associada aos existentes, mas à existência. Por isso podemos afirmar o
seu caráter ontológico, pois é algo que transcende os dados que existem para o puro ato
de existir. E assim, põe em toda a crueza o que é existir.

A existência se resume a um dado: a gratuidade. O fato de existir é algo


despossuído de qualquer sentido. É algo sem explicações. Existir é estar aí, ou seja,
existimos porque simplesmente existimos. A existência, por definição, é desnecessária.
É algo gratuito e absurdo. Assim, Roquentin compreende o que é a Náusea: “O essencial
é a contingência. O que quero dizer é que, por definição, a existência não é a
necessidade. Existir é simplesmente estar presente; os entes aparecem, deixam que os
encontramos, mas nunca podemos deduzi-los. Creio que há pessoas que compreenderam
isso. Só que tentaram superar essa contingência inventando um ser necessário e causa de
si próprio. Ora, nenhum ser necessário pode explicar a existência: a contingência não é
uma ilusão, uma aparência que se pode dissipar; é o absoluto, por conseguinte a
gratuidade perfeita. Tudo é gratuito: esse jardim, essa cidade e eu próprio. Quando
ocorre que nos apercebamos disso, sentimos o estômago embrulhado, e tudo se põe a
flutuar (...): é isso a Náusea (...)”.

Notamos que a Náusea é tão perturbadora pelo fato de nos retirar qualquer
ponto de apoio para a nossa existência. A vida humana é um absurdo despossuído de
sentido: “Todo ente nasce sem razão, se prolonga por fraqueza e morre por acaso” (p.
197). Ficamos petrificados diante deste assustador niilismo que nos assalta, mas o
esforço de Sartre é ultrapassar a Náusea. Realmente, se permanecêssemos mergulhados

2
Inspirada em Havre, onde Sartre iniciou a sua carreira no magistério.
24

na Náusea, ficaríamos imobilizados por uma passividade absoluta. Porém, Sartre quer
um ativismo constante e para tal é necessário sobrepujar este aterrador estado. A Náusea
é, de suma importância, porque é por ela que experimentamos a existência, e, é
justamente pelo fato de ser algo tão horrível que conseguimos abandonar as nossas
idéias preconcebidas do mundo. É nesta completa ausência de solo firme que se
edificará o pensamento sartreano e, portanto, devemos sentir os nossos pés tremularem
no vazio: “A existência não é algo que se deixe conceber de longe: tem que nos invadir
bruscamente, tem que se deter sobre nós, pesar intensamente sobre nosso coração como
um grande animal imóvel - do contrário não é há absolutamente nada mais.” (p.195).

Em aspectos literários, Roquentin não é um personagem dotado de um caráter


profundo.3 É um simples intelectual pequeno-burguês, sintetizado na epígrafe do
romance: “É um rapaz sem importância coletiva; é apenas um indivíduo”. Em “A
Náusea” não encontramos um personagem com uma profundidade esmerada, como em
Fiodor Dostoievski (1821-1881), ou de algum tipo de metáfora absurda como em Franz
Kafka (1893-1924). Roquentin passeia pelas ruas, cafés e praças e encara os habitantes
de Bouville com um olhar céptico e crítico. E será através deste olhar, com este
distanciamento em relação aos seus semelhantes, que ele olhará para si próprio,
alcançando o cerne do fundamento existencial. Sabe que há um nada que o sustenta e
que outros, que executam as suas tarefas diárias tranqüilamente, possuem uma ilusão
fantasmagórica que é o alicerce da hipocrisia confortável da burguesia. Repudiando esta
forma de vida mentirosa que o enoja, Roquentin buscará uma forma de transcender a
Náusea, e não dela fugir.

Portanto, é possível ir além da Náusea. No romance, o nosso personagem


encontra uma saída através da arte. Toda obra de Sartre, artística e filosófica, é um
esforço para nos mostrar algum rumo. E se há caminhos, é uma fraqueza nos
enterrarmos na Náusea e nos deixarmos congelar num quietismo niilista. Já podemos,
então, perceber que o nada possui um papel ontológico importante, criando uma relação

3
Os heróis sartreanos são basicamente “anti-heróis”, ou seja, as experiências que vivem estão
relacionadas com os atos cotidianos, banais, fazendo uma forte relação entre o personagem e a situação.
Lembremos que o existencialismo se baseia de que o homem é um ser-no-mundo. Contudo, não confundir
com algum “naturalismo”, como fosse o meio que forjasse o homem. A essência humana não é algo dado,
está sempre a construir, assim como o mundo. Estas são questões que desenvolveremos ao longo do texto,
mas, já podemos identificar como Sartre irá, aos poucos, se dirigir para o Marxismo, e em que pontos irá
criticar numa certa leitura deste.
25

entre o mundo e a consciência. Aqui retornamos aos princípios fenomenológicos já


citados, porém, Sartre irá redefini-los sob uma outra ótica.
26

Capítulo 3 - O Ser e o Nada

Em 1943, quando a cruz suástica paira sobre as cabeças dos franceses, Sartre
publica um volumoso ensaio: “O Ser e o Nada” (L’Être et le Néant). Neste livro ocorre
a sistematização de seu pensamento ontológico, já esboçado em suas quatro publicações
filosóficas anteriores. Encontramos nessa obra um fundamento básico: o fenômeno.

Porém, se o fenômeno é o que aparece, havendo aquilo que aparece e a quem


aparece, encontramos de chofre um dualismo. O esforço de Sartre será buscar um
monismo e evitar as dicotomias tradicionais da filosofia: essência-aparência, sujeito-
objeto, ato-potência. Remontando ao método fenomenológico, a relação entre a
consciência e o mundo deverá ser pensada contra o idealismo e o materialismo. No
primeiro, há um primado da consciência, e no segundo, um primado do objeto. Assim, o
fenômeno deve ser um absoluto, evitando cair em algum desses pólos. Ou seja, há um
ser do aparecer, isto é, o fenômeno não é uma manifestação de ser, conforme a cisão
kantiana, mas possui um teor ontológico próprio.

O ser é transfenomenal, pois ao se manifestar através do fenômeno, se


anuncia como além deste. Trata-se de uma transcendência na imanência. Mas, como se
dá a relação com a consciência? Esta não é um elemento constitutivo do ser do objeto;
pelo contrário, Sartre utiliza o raciocínio fenomenológico de que “toda consciência é
consciência de alguma coisa” com a evidência de que esta se estrutura, visando algo
totalmente distinta dela. Ela se manifesta por um ser que não seja ela mesma. Assim,
vemos uma radicalização do conceito de intencionalidade, tornando a consciência um
vazio absoluto, definindo-a como algo que se relaciona com uma alteridade radical.

Desta forma, Sartre se distancia de Husserl, evitando qualquer sombra de


idealismo devido à soberania dada à consciência pelo pai da fenomenologia. Evitamos,
assim, o perigo de solipsismo que o “Eu Puro” poderia acarretar. Com o esvaziamento
completo da consciência, há uma opacidade absoluta do objeto. Ocorrem, portanto, duas
formas do Ser, que Sartre batiza de Ser-Em-si e Ser-Para-si. E, no entanto, como duas
manifestações extremamente opostas podem se relacionar?
27

Primeiramente, devemos definir o que é o Ser-Em-si. Isto se resume em três


características: o ser é, o ser é em si e o ser é o que é. Vemos que o Em-si é totalmente
pleno, encerrado sobre si. Não podemos afirmar se é passivo ou ativo, pois estas são
manifestações da consciência. Tampouco em relação a afirmação ou negação, já que do
Em-si nada podemos afirmar ou negar, pois isto são considerações sobre alguma coisa.
Para tal, deveria que haver alguma relação e o Em-si é uma imanência pura. É por isso
que é em si.

Sendo o que é, o Em-si possui uma identidade perfeita. Esta é a sua principal
característica. O Em-si é absolutamente idêntico a si mesmo, não aceitando qualquer
fissura, tendo uma plenitude absoluta. Isto recorda ao Ser todo inteiro idêntico de
Parmênides de Eléia (c. 530-460 a.C.), cujo unicidade o repelia do Não-ser. Para Sartre,
devido a esta inteireza do Em-si, a sua estrutura interna é impossível de ser determinada,
cabendo à consciência apenas tratar dele por negação.

Se o Em-si está encerrado sobre si, o Ser-Para-si é algo aberto, ou seja, está
situado no mundo entre as coisas, mas não é uma delas. Ele está em frente ao mundo, na
presença dele. Há uma distância entre a consciência e o mundo. O Para-si seria uma
“doença do Ser”, pois é como se o Em-si tivesse se rompido. Assim, o Em-si não
depende do Para-si para existir, mas apenas para existir como fenômeno, dito de outro
modo, a consciência não cria o mundo, mas somente o constata. Agora, por que o Para-
si surgiu é algo impossível de saber, pois o Para-si, como o ser que questiona, já se
encontra desde o primeiro momento com o Em-si. Não há como saber como seria antes
do aparecimento do Para-si.4

Esta constatação se dá através de um recuo diante das coisas. Para Sartre todo
conhecimento deriva de um movimento negativo. Quando afirmo que tal coisa é uma
caneta, estou dizendo que ela não é um livro, não é um homem, etc. Assim, a
consciência, que não é uma substância, sendo algo totalmente aberto, se comporta pela
via da negação. Se o fundamento do Em-si é o ser pleno, o Para-si, que é um outro
totalmente distinto, é o nada.

4
Sartre afirma, sob uma metáfora, de que seria como que o Em-si, em uma revolta por sua contingência,
quisesse fundamentar-se a si próprio, buscando uma consciência de si, aflorando o Nada no seio do Ser,
formando o Para-si.
28

Devido a isto, a consciência é um ser bizarro entre as coisas. Este recuo que
há entre a consciência e o mundo é o Nada. Porém, este Nada não é alguma coisa, pois o
Nada não é. Assim, o Para-si carrega o Nada que invade o Ser, pois o Nada não nadifica
as coisas, pois sendo algo que não é, não possui características. O Nada é nadificado, ou
seja, ele provém de algum lugar como se fosse uma secreção. Já vimos que o Em-si é
totalmente pleno, portanto, o Nada não pode vir do Em-si. Desta forma, é algum ser que
carrega em seu âmago o Nada, ser este que está em seu próprio ser o questionamento de
seu ser, ou seja, o seu próprio nada; “o homem é o ser pelo qual o nada vem ao mundo”.

Como já vimos, o Ser se manifesta sob as formas do Em-si e do Para-si. Este


último, que é um hiato do Em-si, carrega o Nada que vaza sobre as coisas. O Para-si
existe somente em relação ao Em-si, pois sendo um puro nadificador, necessita de algo
para nadificar. O Nada precisa de um fundo de Ser para se manifestar, pois, em si
próprio ele não se sustenta pois ele não é. Assim, o Nada é nada de alguma coisa. O
Para-si somente existe “em relação a”. Porém, esta relação com o Em-si é sempre
“inacabada”, pois para o Em-si, em sua plenitude perfeita, é irrelevante esta relação.
Esta é a grande “maldição” que ronda o Para-si, sendo condenado a ser um Ser
incompleto. O Para-si é incansável ao tentar preencher este vazio interior, esta cisão
feita de Nada, separando-o de ser um Ser pleno. O Para-si, na linguagem sartreana, é
uma perpétua “totalização-em-curso”.

Seria absurdo imaginar o Para-si independente do Em-si. Seria uma pura


abstração e pior, seria considerar o Nada de seu interior como algo de concreto.
Portanto, o Para-si precisa do Em-si, fazendo deste parte de sua estrutura interna,
engolfando-o com Nada, convertendo-o num fenômeno. Por outro lado, a presença da
opacidade pura do Em-si se converte num obstáculo para que o Para-si possa se tornar
esta abstração, fazendo da relação Para-si-Em-si algo infeliz e necessário, configurando
o paradoxo da realidade humana: somos simultaneamente transcendência e facticidade.

Somos transcendência pois há um Nada que nos separa do mundo, o que não
nos torna uma coisa, porém, ao mesmo tempo, somos facticidade, pois possuímos um
corpo, sendo uma coisa no mundo. A minha consciência contempla o mundo, mas
encerrada a um corpo e, portanto, comprometida com este. Desta forma, vivemos num
corpo, atolados no mundo, mas sem ser totalmente parte deste.
29

É importante ressaltar que este paradoxo é contingente e necessário.


Necessário, porque sem o Em-si, o Para-si não “existiria”. Sem o corpo, a consciência
não poderia contemplar o mundo, pois é pelo corpo que estou situado no mundo. Sem
este, a consciência seria um puro espírito, como se visse o mundo do alto do
firmamento. Não é necessário entender o absurdo que é esta idéia, sendo um idealismo
completo.

Recordemos que Sartre recusa tanto o idealismo como o materialismo. O


problema da relação consciência-mundo é algo que remete a Descartes, na complicada
ligação res cogito e res extensa, que tanto embaraçou o pai da filosofia moderna em
como a consciência se encarna no corpo, sendo duas substâncias tão distintas. Sartre diz
que o erro de Descartes foi encarar o corpo como um objeto do mundo. Realmente,
posso visá-lo desta forma, como quando um cirurgião opera um paciente, sendo este um
mero pedaço de carne, podendo ser cortado e costurado. Mas a principal relação que
possuo com o meu corpo é de viver nele. Assim, eu não uso o meu corpo como se fosse
uma mera máquina, mas, eu sou o meu corpo, ou seja, não existe cisão entre um
elemento espiritual e material, pois o Para-si é totalmente consciência e corpo. Assim, o
corpo também é consciência.

A permanência do Em-si no Para-si também é contingente, pois exprime a


nossa contingência de “estar aí”, de ser um puro fato sem fundamento. Ou seja, não
escolhi nascer com este corpo que carrega certos caracteres fisiológicos e determinado
por certa condição histórico-cultural. Não existe uma explicação para ser tal corpo
mortal, em tal época, em certa condição social e etc. A minha existência é absurda!

Portanto, o Em-si é o que é, fechado sobre si mesmo enquanto que o Para-si,


que traz um Nada em si, está sempre incompleto, buscando preencher-se. Para tal,
desliza em torno do Em-si, regorjitando o Nada, mantendo uma ligação paradoxal, num
jogo de transcendência-facticidade. Assim, o Para-si é o que ele não é e não é o que ele
é. Em outras palavras, devido ao seu recuo nadificador frente às coisas, o Para-si é
transcendência, visando um objeto mas não sendo ele. Porém, simultaneamente, é
obrigado a ser este Ser com o qual jamais coincide, pois precisa estar no mundo para
poder contemplá-lo e para contemplar, não pode “ser” mundo. Esta situação ambígua
30

possui um teor perturbador, que tende ser escamoteado de forma fraudulenta, por um
mecanismo de autodefesa da consciência.
31

Capítulo 4 - A Má Fé

Já vimos a ambigüidade em que se encontra o Para-si. A consciência é um


processo nadificador, se relacionando com o mundo através deste ato de recusa. Não
entraremos nos mecanismos da consciência, pois o objetivo deste trabalho é o aspecto
moral, e não o epistemológico da obra de Sartre. Porém, devemos saber brevemente
como se manifesta a consciência.

A consciência é um vazio, sendo pura intencionalidade. Assim, ela se dirige


às coisas, nadificando-as, e, portanto, transcendente. Lembrando Husserl, a consciência
é consciência de seu objeto, e, portanto, ela não pode jamais ser objeto dela própria. A
consciência existe para ela própria como consciência, assim, ela deve ser uma presença
imediata, sem valor de conhecimento. É o que Sartre batiza de cogito pré-reflexivo. Isto
significa que antes de toda reflexão, a consciência deve ser uma presença espontânea.
Por exemplo, se estou vendo um filme na televisão e alguém me pergunta o que eu estou
fazendo, eu reflito e respondo: “estou vendo um filme”. Ora, para que eu emitisse esse
juízo, eu teria que “saber” o que estava realizando, o que significa que eu já era
consciente do ato de ver o filme. Assim, este momento de ser consciente de estar
consciente se dá no nível pré-reflexivo, de uma maneira não-posicional, ou seja, visando
a minha consciência não como um objeto de conhecimento, uma coisa do mundo.

Através do processo nadificador, a consciência se define como uma recusa de


Ser. Se o Para-si é inacabado, isto significa que a sua incompletude é uma eterna
possibilidade de ser algo. Vemos que o Para-si é liberdade. É este vazio que há em seu
interior que o faz ser, por definição, livre. Assim, a Liberdade é esta secreção de Nada
do Para-si.5

Sendo assim, todos os atos da consciência poderiam ser outros, já que são
livres. Ou seja, não há nenhum fundamento que justifique seus atos. A consciência,
portanto, não pode ser determinada por nenhuma causa exterior a ela - ela é o seu
próprio fundamento. Diante deste fato somos assaltados pela Angústia. Esta, nada mais
32

é, do que a consciência de ser liberdade, ou como descreve Sartre: “é o modo de ser da


liberdade como consciência de ser; é na angústia que a liberdade está em seu ser
colocando-se a si mesma em questão”.

Porém, angústia não é medo. Sartre retoma a diferença conceitual elaborada


por Søren Kierkegaard (1813-1855). O medo é um sentimento diante dos seres do
mundo, enquanto que a angústia se configura diante de mim mesmo. Posso ter medo de
avião, já que a tecnologia aeronáutica é falível. Mas este medo passa a ser angústia,
quando imagino a possibilidade de uma queda e não posso prever qual será a minha
reação diante deste fato. Sartre dá um exemplo bem simples e consagrado: ao estar num
precipício, sinto vertigem. A vertigem é angústia quando sinto medo, não de cair nele,
mas de me jogar nele. Porém, a angústia nem sempre vem precedida ou seguida pelo
medo. Posso ser incumbido de uma tarefa delicada, e posso me angustiar com a idéia de
que não possa realizá-la, sem sentir medo de um possível fracasso.

Vemos que a angústia ocorre quando, numa situação, me choco com uma rede
de possibilidades. E a escolha de tal possível como um ato concreto torna todos os
outros possíveis que a situação comporta em estado de não-ser, mas estes só são
mantidos sob tal forma pela minha conduta, convertendo a mim próprio na única fonte
de meu ato. A angústia é a tomada de consciência desta ausência de fundamento onde se
desenrolam os meus atos. De súbito, verifico que sou uma liberdade.

Porém, não me angustio a todos os instantes. Isto ocorre pelo fato da


consciência poder agir sem colocar em questão o seu caráter livre. Somente em algumas
situações, em geral perigosas ou ameaçadoras, quando a minha existência está em jogo,
tornam-me sensível a um leque de possíveis.

Por ser livre, sou angústia. E para dissimulá-la, preciso fingir que não sou
livre. Ou seja, julgo que ajo de tal forma, porque poderia somente agir como tal. Eu
escamoteio a liberdade de mim mesmo para encontrar um repouso, ansiando em me
converter num Em-si. Eu ajo como se fosse uma pedra que cai, não por vontade própria,
mas impelida pelas leis da física. Este mascaramento se chama Má-fé.

5
Estudaremos detalhadamente a Liberdade no capítulo seguinte. Este conceito é fundamental no
pensamento sartreano e o ponto nevrálgico de nosso estudo, merecendo uma análise mais cuidadosa.
33

Devemos distinguir a má-fé da mentira. O que é mentir? É deformar


intencionalmente uma verdade como se fosse algo real. O mentiroso jamais se encontra
enganado daquilo que está deformando. Ou seja, ele deforma uma verdade que ele
conhece ou crê conhecer. A consciência está além do juízo mentiroso que ela enuncia,
negando algo que está fora dela, sem se negar. A mentira é um ato de transcendência.

A Má-fé seria mentir a si mesmo. Ou seja, quem engana e é enganado são a


única e mesma pessoa. Porém, se a consciência é una, e não uma soma de peças, como
posso ser o enganador e o enganado ao mesmo tempo? Se tudo se desenrola em minha
consciência, eu sou consciente de me enganar e também consciente de ser enganado.
Sendo enganador, devo saber aquilo que estou escondendo, e sendo enganado, devo
acreditar na mentira que eu mesmo inventei, ocultando uma verdade de mim próprio.
Como isto é possível?

Isto ocorre porque o Para-si é uma fissura, sendo um ser que é o que ele não é
e não é o que ele é. A Má-fé se processa devido a esta dualidade estrutural do Para-si,
fazendo a consciência capaz de ser totalmente ela mesma e, simultaneamente, estando à
distância de si própria. Diante desta constatação, Sartre evoca um conceito desenvolvido
no nosso século: o inconsciente.

A teoria psicanalítica de Sigmund Freud (1856-1939) parte do princípio de


que os atos humanos possuem um caráter simbólico, representando mais do que
aparentam. Estas representações (sonhos, desejos, fobias, obsessões,...) se manifestam
na consciência, sem serem manifestações da consciência. Isto ocorre por um mecanismo
de ocultamento da mente humana, que para tal, possui estruturas distintas (Id, Ego e
Superego). O inconsciente seria um “porão” onde estão guardados os “instintos básicos”
do homem, mas que afloram na consciência, que por sua vez possui um elemento
censurador que tenta recalcá-los.

Mas Sartre se questiona como funciona este mecanismo de censura. Nem


todos os instintos são recalcados pois alguns são inofensivos e tolerados. Portanto, quem
distingue o que deve ser recalcado? Se for o inconsciente, este não pode discernir o que
é tolerável do que não é. E se for um ato consciente, como a consciência pode recalcar
algo que não sabe o que está recalcando? Como ela pode enganar a si própria? Em
Freud, vemos uma mentira sem mentiroso, pois a consciência não sabe a causa de seus
34

próprios pensamentos, que estão ocultos no inconsciente. E este, por sua vez, não
poderia censurar a si próprio.

A crítica fundamental de Sartre ao inconsciente freudiano se dirige às


conseqüências deste estranho paradoxo. Os impulsos do inconsciente atuam sobre a
conduta do indivíduo, que escapa de sua consciência. Isto acarreta uma inocência
desmesurada, pois através desta censura interna, nunca estou a par de minhas intenções,
isentando-me de toda responsabilidade sobre meus atos, já que não sei o que me foi
ocultado. Para Sartre, a idéia de censura já pressupõe a consciência daquilo que deve ser
censurado. O modelo sartreano é o de uma consciência una, que possui um estamento
não-reflexivo, que é uma pura liberdade, tornando todo e qualquer ato uma escolha.
Assim, Sartre recusa o conceito de inconsciente, que nada mais é que uma Má-fé sem o
comprometimento da consciência.6

A Má-fé é uma conduta de defesa da consciência, mas esta não reconhece que
está na defensiva. A dissimulação da angústia é possível por um jogo dúbio com a nossa
transcendência e facticidade. Entende-se melhor as condutas de Má-fé, em três
exemplos célebres de Sartre: a jovem coquette, o garçom de café e o homossexual.

No primeiro, uma jovem vai a um primeiro encontro com um homem. Ela


sabe perfeitamente quais são as intenções de seu cortejador e que, cedo ou tarde, terá
que tomar alguma decisão. Porém, ela não quer sentir a urgência desta escolha,
entregando-se aos elogios de seu companheiro, despojando-os de todo sentido sexual.
As frases elogiosas são tomadas como um juízo objetivo, assim, quando ela ouve “você
é muita bonita”, é o mesmo que afirmasse “esta porta é azul”. Porém, eis que o homem
pega sua mão! O contato físico traz à tona o sinal de desejo de seu parceiro. Para evitar a
cobrança de decisão que pesa sobre ela, a jovem abandona a sua mão, mas não percebe
que a abandona. É uma coisa inerte nas mãos do homem.

6
Sartre zelou por uma moral rigorosa, não aceitando isenções de responsabilidade. É neste viés que se dá
a sua recusa radical do inconsciente. Por tal, é acusado de ter uma leitura simplista e mecanicista da
psicanálise. Atualmente, esta é extremamente mais sofisticada, após uma revisão de elementos
cientificistas e positivistas da teoria de Freud, sistematizada por Jacques Lacan (1901-1981). Em suas
últimas entrevistas, Sartre reconhece a assimilação destas novas leituras. Numa entrevista em 1971,
sublinha isso: “Continuo a não acreditar no inconsciente sob certas formas, embora a concepção do
inconsciente em Lacan seja mais interessante...” SARTRE, J. – P. “Situações X” trad. Pedro Tamen.
Lisboa: António Ramos, 1977. p. 103.
35

Vemos que esta jovem está de má-fé, pois ela quer e não quer ser desejada
simultaneamente. O desejo do outro deixa-a horrorizada, portanto ela retira a conotação
sexual de seus elogios. A idéia de ser apenas um corpo para o outro é insuportável,
transformando, portanto, uma transcendência numa facticidade. Ela desarma as
intenções de seu companheiro, despojando-as de seu caráter transcendente (oriundas de
uma liberdade) encarando-as como fossem um Em-si. Porém ela se permite desfrutar o
desejo do outro, apreendendo aquilo que é como sendo o que não é, ou seja, numa
transcendência. O fato do desejo alheio é convertido em respeito, estima, admiração. Os
elogios de seu parceiro não estão carregados de algum sentido corporal, são
direcionadas ao seu espírito. Quando a sua beleza é elogiada, não se trata de sua carne,
mas de seu porte, seu charme, ou seja, algum elemento espiritual. Este processo se
radicaliza quando ocorre o contato físico, pois há um secessão completa entre corpo e
espírito. Ela nega o seu próprio corpo, vendo do alto como algo plástico nas mãos de seu
parceiro, enquanto ela continua a falar de sua vida, indo às mais altas regiões da
especulação sentimental. Ela quer o desejo do outro, não como de fato ele é (algo
carnal), mas como gostaria que fosse (um respeito ao seu espírito). Em outras palavras,
ela quer que o seu companheiro a ame como ela ama a si própria.

Portanto, vemos que a Má-fé é a formulação de conceitos contraditórios. Isto


é possível com uma manipulação de nossa ambigüidade, pois somos ambos
transcendência e facticidade. Na Má-fé, eu não pretendo superá-los ou coordená-los
numa síntese, eu afirmo a identidade de ambos, conservando as suas diferenças. E para
tal, eu afirmo a facticidade como sendo transcendência e a transcendência como sendo
facticidade, para que quando eu me esbarrar com uma, eu possa jogar com a outra. É
como se num jogo, eu pudesse conservar simultaneamente dois elementos opostos,
querendo ganhar dos dois lados. Seria, ao bater um pênalti, como se o jogador fosse
também o goleiro, no mesmo ato.

Contudo, se eu sou o que não sou e não sou o que sou, ou seja, que é preciso
que nos façamos constantemente ser o que somos, como posso querer me adequar
perfeitamente naquilo que pretendo ser? Apenas por uma conduta de Má-fé possuo a
ilusão desta identidade plena comigo mesmo. É o exemplo do garçom de café. Ele
brinca com o seu corpo, inclinando a bandeja, com gestos leves e um ar solícito aos
fregueses. Ele está representando em ser um garçom de café. A sua cortesia se deve ao
36

que é cobrado de sua função. Portanto, toda função social é um teatro que representamos
para o outro.7 O garçom está de má-fé porque ele quer simplesmente ser um garçom.
Porém, não pode ser uma coisa, como uma mesa é uma mesa. A sua condição é uma
“representação” para os outros e para ele próprio. Portanto, ele não pode ser um garçom
Em-si, pois, por mais que cumpra todas as suas funções, há uma consciência de “ser
garçom”, fazendo dele um ator, realizando os seus gestos mecanicamente. No café, ele
se ilude ao tentar ser garçom, pois se ele está servindo as mesas, isto se deve a uma
escolha. Ele poderia ter faltado ao serviço ou atender mal os clientes, correndo o risco
de ser despedido.

Desta forma, o homem não coincide plenamente com o ser, mas,


paradoxalmente, tende necessariamente a ser. E a Má-fé só é possível graças a esta
fissura interna da condição humana. Tomemos o exemplo do homossexual. Trata-se de
um homossexual que possui um intolerável sentimento de culpa por seus atos, e se
desculpa aos olhos dos outros, como se o seu caso sempre fosse “à parte”, singular, e
que as mulheres que conheceu não eram sexualmente interessantes, que está
experimentando as coisas diferentes da vida, etc. Ou seja, ele afirma ter
comportamentos homossexuais, mas ele não é fundamentalmente um homossexual. Por
que ele está de Má-fé? Vemos uma fuga do juízo do Outro, que o condena por sua
pederastia, e para tal, é preciso negar os seus atos como não sendo o que são. Apreende
as suas práticas sexuais que estão calcificadas no passado (a sua facticidade) como
podendo ter sido outras, isto é, conferindo um outro sentido (transcendência). Porém, ao
mesmo tempo, ele nega a sua opção sexual, como se ele não pudesse ser outra coisa. Ele
toma a sua transcendência (que está além de qualquer sexualidade, já que é liberdade)
como uma facticidade (em ser este não-homossexual que ele afirma ser). Este
heterossexual, que ele diz ser (e pode ser por ser livre) seria algo impossível de não sê-
lo, ou seja, ele cria uma identidade de um heterossexual Em-si.

Contudo, pode-se imaginar que o contrário da Má-fé seria a sinceridade. No


exemplo anterior, tudo seria resolvido se ele confessasse plenamente: “eu sou um
pederasta e nada mais!”. Porém, não há diferença entre a Má-fé e a sinceridade como

7
Em Kean (adaptação da peça de Alexandre Dumas) Sartre desenvolve este tema com o personagem-
título que foi o maior ator inglês de sua época. Vemos que o teatro não se limita à ribalta, sendo levado
para o campo social e amoroso.
37

podemos imaginar. O “campeão da sinceridade” seria aquele que afirmasse totalmente o


seu ser, como dissesse: “sou assim”. Ora, isto seria criar uma identidade perfeita consigo
próprio, convertendo-se num Em-si. Aqui encontramos um outro aspecto em
entendermos a Má-fé, que é o funcionamento da fé. Chegamos ao cerne das atitudes que
estão calcadas na crença.

Se na Má-fé eu acredito na minha própria mentira, tenho consciência de que


estou mentindo. A Má-fé não é uma decisão reflexiva, mas uma determinação
espontânea do nosso ser, como o sono ou a vigília, e que uma vez nela, é difícil de sair.
O que não significa impossível. Portanto, se há uma fé da Má-fé, concluímos que toda
crença põe em questão o seu próprio objeto de crença, negando-se. Crer é saber que se
crê, e saber que se crê é já não crer. A crença só pode se realizar negando-se, ela se
manifesta, dirigindo a si própria. Portanto, crer é não crer. O ideal da crença seria crer
naquilo que se crê, como na sinceridade (ser o que se é), produzindo um modelo de Em-
si. A Má-fé utiliza engenhosamente esta autodestruição da fé para convencer a
consciência de que é o que não é ou não é o que é. Contudo, esta arma pode ser usada
contra a própria Má-fé, nos retirando dela.

A Má-fé revela em todo o seu aparato ardiloso a condição ambígua da


existência humana. Não se trata de uma atitude cínica ou uma vontade culposa, mas de
um mecanismo da consciência. Por isto, nunca sabemos se estamos ou não agindo de
Má-fé. É relevante ressaltar, porém, que não se trata de um comportamento puramente
moral, mas de um elemento constitutivo de nosso ser. Talvez o mais complicado em se
estudar Sartre é discernir aonde termina a ontologia e onde começa a moral. Vemos que
estes fatores se interpenetram, pois se a vida humana é ambígua como podemos afirmar
algum valor moral? Já vimos que a Má-fé (algo do meu ser) está sempre ligado a um
outro. Nos três exemplos, o outro é o que motiva a conduta de Má-fé. Isto se deve a um
ocultamento da angústia, acarretando uma ameaça terrível à constituição do ser. Pois só
uma liberdade pode constranger uma outra liberdade. Sendo assim, antes de chegarmos
ao relacionamento com o Outro, devemos analisar o que é a liberdade.
38

Capítulo 5 - A Liberdade

Se é possível afirmar qual o mais existencialista dos termos existencialistas,


este é, sem sombra de dúvida, a Liberdade. Isto se deve ao fato de que o âmago do
homem, em sua condição paradoxal, é a liberdade. Se a minha existência é
absolutamente gratuita, esta ausência completa de justificação me impele a me fazer ser,
responsabilizando-me e, somente a mim próprio, desta atitude. Assim, a passagem da
gratuidade existencial para a responsabilidade humana é conduzida por eu ser liberdade.

Não se pode confundir esta liberdade com a vontade ou decisão consciente.


Não se deve encarar, porém, como uma liberdade abstrata, isto é, como uma
possibilidade que possuo no interior de meu espírito.8 Como tudo na existência, ela deve
se manifestar concretamente, portanto, através da escolha de uma ação. Ser livre é fazer
escolhas, e mesmo ao me abster de escolher já é uma escolha.

O fato de ter um ser finito e limitado é o que motiva a minha escolha, pois se
eu realizasse todos os meus possíveis, eu me desagregaria. A escolha leva em
consideração que realizo tal possível, em detrimento de todos os outros. Porém, esta
incompletude intrínseca de meu ser, tornando-me algo finito, não limitaria a minha
liberdade?

Não se deve confundir a liberdade no sentido vulgar de seu termo, em realizar


tudo o que quiser. A liberdade não é uma pura abstração, pois a consciência está
mergulhada no mundo e não fora dela. Portanto, a liberdade só é possível graças a um
campo de resistência. Para que eu possa ser livre, deve haver algo que separa a
concepção de meu ato de sua realização concreta. É preciso levar em conta a facticidade
na qual a consciência está encarnada.

Isto se deve ao fato de minhas ações se realizarem no meio do mundo e este é


algo com o qual me choco. Se fosse possível a um ser realizar tudo o que quisesse, ou
seja, concretizar todos os seus possíveis, encontrando-se num infinito de escolhas,
afundar-se-ia numa angústia tão gigantesca, que acabaria não agindo.
39

Porém, a minha facticidade não é algum obstáculo para a liberdade.


Realmente, eu possuo um corpo que não escolhi, nasci num mundo construído por
outros homens, a minha formação se deu numa determinada condição material de meus
pais Veremos como isso não me impede de ser livre.

Somos livres porque existe um mundo resistente à liberdade, no qual estamos


situados. A liberdade não está relacionada com o êxito ou o fracasso de meus atos, mas
estes só podem fracassar ou ter êxito graças à escolha que eu fizer. Posso estar preso
numa cela, mas sou livre para agir diante deste fato material: eu posso empreender uma
fuga ou me resignar com a minha prisão. Vemos que se o mundo não oferecesse
nenhuma resistência, a liberdade não seria possível.

Assim, se dá com o meu corpo. A minha constituição fisiológica não me


permite voar. Mas isto só pode ser um obstáculo, se eu escolher voar. Posso realizá-lo
no plano imaginário (onde eu escolho que resistências o mundo pode me oferecer) ou
utilizando ferramentas retiradas do mundo, visando lograr tal intenção.9 Eu não escolho
a minha altura ou a herança genética que possuo, mas posso escolher o que fazer com
meu corpo, tanto pintá-lo com maquiagem como fazer de minha condição étnica uma
bandeira de luta.

Os meus atos passados são convertidos num Em-si. Já não posso mais
modificá-los, pois já estão realizados. Podemos imaginar, portanto, que o passado é algo
que me determina. Porém, esta “imutabilidade” do passado não limita a minha
liberdade, pois o passado somente adquire sentido e força por minha própria escolha. Se
eu me envergonho de minha origem pobre ou de algum ato vergonhoso cometido na
juventude, sou eu que atribuo valor de vergonha ao meu passado. Posso livremente
decidir se o passado deve permanecer vivo ou não, e em que grau de intensidade ele me
“oprime”. O seu significado vem do que eu decidir. Nesses termos, o poder do passado
vem do futuro.

8
A Liberdade não é um possível que possuo, pois em Sartre não existe a dicotomia clássica ato-potência.
Em sua filosofia, tudo está em ato.
9
Concordamos que o desenvolvimento tecnológico se relaciona com um certo período histórico, e eu não
escolho em que época vivo. Porém, com as ferramentas que a minha época me oferece, posso realizar-me
livremente. A História, como o Para-si, é uma totalização-em-curso, empreendida livremente pelos
homens. Abordaremos a questão do coletivo e como é encarada a História em Sartre, na Parte III.
40

Assim, o Para-si é liberdade por ser um nadificador das coisas do mundo.


Portanto, se a liberdade, como vimos, só é possível pela facticidade, esta não pode ser
algo que determine a liberdade. Esta, por definição, é algo que não é determinado.
Porém, se a liberdade está situada, devemos saber o que é este elemento de facticidade
que a envolve. É o que chamamos de situação.

A Situação se apresenta como um fenômeno que deriva da contingência da


liberdade10 e da contingência do Em-si: é pela situação que o Em-si se transforma em
motivo. Portanto, a situação é o resultado que o ato livre faz com o Em-si, ou seja, é o
modo como o Para-si nadifica o Em-si. No exemplo do passado, se a minha liberdade
cria um valor para os meus atos passados, isto se deve ao fato desta secreção de Nada
do Para-si (que é a liberdade) se apropriar do Em-si. O meu passado é, a cada instante,
criado. Portanto, toda liberdade está em situação e só há situação pela liberdade.

Este é o cerne de todo o pensamento sartreano. O binômio “Liberdade-


Situação” está presente em todo o seu empreendimento intelectual, esboçado desde as
suas primeiras obras fenomenológicas até a sua fase marxista. Isto jamais será
abandonado em sua obra, por ser um desdobramento do axioma central de toda a sua
filosofia: o homem é um ser-no-mundo.

Assim, só há liberdade pela situação (que coloca obstáculos para as minhas


metas), porém, paradoxalmente, o conceito de situação só existe pela liberdade. Um não
existe sem o outro. São dois elementos que vêm juntos, que são indissociáveis, como as
duas faces de uma moeda. Se pretendo deslocá-los, me encontro em dois pólos
contrários, ou no idealismo mais abstrato, ou no mais mecanicista dos materialismos.
Portanto, não posso querer analisar um sem levar em consideração o outro.

Evidente que eu não escolho a situação em que me encerro, mas sim que
atitude tomar diante dela. Assim, o importante é o que fazemos daquilo de que somos
feitos. A liberdade, portanto, encontra no mundo somente obstáculos que ela própria
colocou. Assim, a liberdade não é limitada por nada exterior a ela, apenas por ela
própria. Somente a liberdade pode limitar a liberdade. Seria como se ela aprisionasse a
si própria, pois eu não sou livre em deixar de ser livre. Assim, Sartre afirma que

10
Eu sou livre para escolher, mas não posso escolher em não escolher.
41

“estamos condenados a ser livres”. A liberdade é um fato contingente constitutivo do


meu ser.

Para executar os meus possíveis no campo concreto, devo, portanto, querer


escapar da situação em que me encontro. Como, através da minha transcendência, nega-
se tal facticidade. Portanto, o Para-si está sempre fugindo do Em-si, para que não seja
algo endurecido. Isto se deve a uma visada para o futuro, expressa no conceito de
Projeto.

Por que o futuro? O passado, como já vimos, é um Em-si, sendo algo que eu
arrasto atrás de mim. O presente, por sua vez, é imediatamente petrificado em passado.
Jamais possuo a experiência do presente, pois este é uma fuga constante. Assim, o
presente do qual necessito, eu retiro do futuro, que é algo distante das mãos congelantes
do Em-si.

O futuro é a indeterminação absoluta, um puro possível. É algo que eu posso


ser, mas não obrigatoriamente o que serei. Vemos que este é único campo onde a
transcendência se sente segura, como num lar. O Para-si, em sua incompletude, encontra
no futuro aquilo que pode ser, vendo neste lugar distante a totalidade que tanto almeja.

Portanto, o futuro dá um sentido ao meu presente, mas isto não significa que
me determina, pois é uma imagem de possibilidade, além de que a minha consciência
futura pode escolher outra coisa. Portanto, pelo projeto, vemos que a consciência está
sempre no futuro, se projetando em sua direção, por ser o Para-si uma totalização-em-
curso.

Assim, o mundo nos é apresentado através de um movimento temporal em


direção ao futuro. É um movimento do presente para o futuro e, posteriormente, vice-
versa. Sartre batiza este ato da consciência de Circuito de ipseidade. Ao escrutar o
mundo presente, me dirijo ao futuro, e, posteriormente, volto ao presente, trazendo
aquele “mundo perfeito e acabado” para agir sobre o mundo. Por exemplo, ao olhar para
uma janela, digo que ela está fechada, isto é possível porque projeto a possibilidade
futura de abri-la, e, ao voltar, posso designá-la como fechada. Isto é algo no campo do
conhecimento, porém, o projeto é um conceito estendido para as ações práticas, uma vez
42

que constato o mundo como algo “inacabado”, graças a uma “tarefa futura realizada”,
vendo assim lacunas a serem preenchidas.

Podemos ver que a consciência vem do futuro pelo caráter deste ser cheio de
possibilidades. Porém, haveria um lugar onde o meu futuro é encerrado. É a Morte.
Seria o único momento onde não seria livre? A morte é inevitável, portanto, o fato de eu
ser mortal limitaria a minha liberdade?

A morte é um dos momentos em que há uma tensão entre a transcendência e a


facticidade, como se algum limite exterior “ameaçasse” a liberdade. São ocasiões que
Sartre batiza de situações-limite. Na morte, eu não possuo nenhum futuro no qual posso
visar o meu projeto. Quando estou morto me encontro petrificado, sendo aquilo
conforme o juízo alheio. A Morte é a vitória do Outro sobre mim, pois a minha
subjetividade é convertida numa pura objetividade. Estou entregue, de forma indefesa,
aos outros. Não seria, portanto, um limite à minha liberdade?

Segundo Martin Heidegger (1889-1976), a morte não é um limite, mas é algo


constitutivo da realidade humana. Ela só possui algum sentido por causa da liberdade,
constituindo uma estrutura ontológica do nosso ser, que é o “Ser-para-a-morte”. Pelo
fato de existirmos, a morte é algo essencial ao homem. Assim, o homem é sempre
“poder morrer”, sendo um dos seus possíveis. Nós escolhemos livremente a nossa
morte, sendo o momento onde totalizamos o nosso ser sempre por fazer, alcançando,
por fim, uma completude à nossa existência, devido a singularidade desta experiência;
pois a minha morte, ninguém pode experimentar por mim.

Sartre discorda da solução heideggeriana, acusando de ter “humanizado” a


morte, como sendo algo que pertence à vida humana. A morte não é um limite à
liberdade, não, por ser um projeto, mas por ser algo que não pertence ao Para-si. Ela é
totalmente estranha à existência humana, não sendo alguma estrutura ou prolongamento
do Para-si.

A minha finitude não se deve ao fato de ser mortal. As minhas escolhas são
petrificadas no passado, não posso mais reavivá-lo, querendo mudar o porquê de minha
escolha, que se deu em detrimento dos outros possíveis. Assim, sou finito por ser livre,
pois a cada escolha que realizo ao longo da vida, exprimindo a minha unicidade, se
43

cristaliza num Em-si acabado e finito, dirigindo-se ao futuro. Por outro lado, a morte
não exprime a minha unicidade, mas é a singularidade do Para-si que determina a morte
como minha. Todos os meus atos são singulares, não somente na morte, pois ninguém
pode amar ou sentir dor no meu lugar. Eu sempre sou insubstituível.

A morte tampouco pode ser um projeto. Este, por definição, é a superação de


uma situação, em rumo a um futuro inexistente, conferindo um sentido para o presente.
Todo projeto, ao ser realizado, sempre abre um novo campo de possibilidades. Ora, a
morte é a ausência de possíveis. O Para-si é um ser que sempre busca algo a vir,
portanto, a morte jamais pode ser algo intrínseco ao seu ser. Portanto, a morte é sempre
algo exterior, é uma fatalidade que abate sobre a minha existência. Ou seja, ela é uma
pura facticidade, uma contingência. É um fato absurdo como o meu nascimento. É por
isso que Sartre afirma: “É absurdo que tenhamos nascido, é absurdo que tenhamos que
morrer”.

Devemos lembrar-nos também que todo projeto possui um elemento de


previsibilidade. Se ele é um possível, é pelo fato de ser previsível. Porém, a morte é
sempre inesperada, pois é uma indeterminação pura. Jamais saberei quando ocorrerá o
momento de minha morte. Mesmo para um condenado à morte, esta é uma surpresa,
pois a data marcada para a execução pode ser suspensa. E mesmo quando opto pelo
suicídio, isso não significa que sei quando será o meu segundo derradeiro, pois posso
desistir na última hora ou sobreviver à tentativa.

Por outro lado, se as nossas escolhas sempre fossem concretizadas, anulariam


à liberdade, pois esta exige sempre possíveis. Assim, todo projeto pode ser concretizado
ou não. Existe um fator de imprevisibilidade. A morte é este elemento surpresa que se
abate sobre a liberdade. Esta, portanto, possui em sua essência a sua própria destruição.
Ser livre é correr riscos, inclusive, o de perder a liberdade por completo.

Neste sentido, eu jamais experimento a minha morte, pois esta é ausência de


liberdade. A morte é algo exterior à minha pessoa, portanto, eu só posso experimentar a
morte no Outro. Assim, eu devo estar indiferente à morte, pois esta é indiferente à
minha existência. No momento em que chega a morte, eu já não existo mais. Sendo
44

assim, ela não é algum limite à liberdade, pois esta já não existe quando advém a
morte.11

Não existe nada que limite a liberdade. Portanto, não existe algo que
predetermine o ser do Para-si. Este não é definido anteriormente, mas no transcorrer da
sua existência. Não há nenhuma essência a priori, que indique o sentido da vida
humana. O Para-si, por definição, é pura possibilidade de ser, ou seja, a sua essência se
faz a partir da existência. O homem cria a si próprio, produzindo a sua essência. Assim,
chegamos ao princípio capital do existencialismo: a existência precede a essência.

Já vimos que a única liberdade que não temos é a de não escolher sermos
livres ou não. Se eu pudesse ser livre para tal, eu teria uma liberdade anterior à escolha,
mas a liberdade é co-extensiva à escolha. Ela só existe numa manifestação concreta,
senão a liberdade seria alguma essência, como no idealismo. Vemos, então, que a
liberdade é algo contingente. Assim, não somos o fundamento de nossa liberdade, já que
não a escolhemos.

Todo ato humano é um ato livre. Isto não significa que não haja uma
coerência em nossos atos. A minha forma de agir constitui uma conduta pessoal de meu
caráter. Portanto, atrás de cada um de meus atos está algo que os costura, dando esta
minha coerência interna. Há uma escolha originária de nosso ser, que se chama projeto
fundamental.

Porém, este projeto fundamental não é algo imutável. Se fosse, seria alguma
essência. Ele provém de uma escolha e, portanto, é algo cambiável. Assim, é possível
mudar ou não mudar tal projeto e, portanto, não posso afirmar o que é algum homem,
enquanto ele estiver vivo. Após sua morte, isto é capaz pois a sua transcendência se
desvanece, endurecendo-se num Em-si. Em suma, Sartre crê no conceito de conversão.

Este projeto é algo intrínseco à constituição do Para-si. Recordemos que este


é uma totalização-em-curso, um ser que é falta de ser. Ele busca encher-se em um Em-
si, e por isso ele o nadifica, como querendo apreendê-lo. Logo, a realidade humana é

11
Sartre compartilha o raciocínio de Epicuro (341-270 a.C.) que pregava a despreocupação em relação à
morte, pois quando ela chega, eu já não estou mais: “Habitua-te a pensar que a morte nada é para nós,
visto que todo o mal e todo bem se encontram na sensibilidade: e a morte é a privação da sensibilidade.”
(Antologia de Textos de Epicuro in Os Pensadores).
45

desejo de ser Em-si. Porém, este Em-si que é desejado não é um Em-si puro e
contingente que se auto-ignora. Este Em-si seria uma plenitude que fosse para si mesma
seu próprio fundamento. Portanto, as motivações do Para-si se concentram nesta
perpétua busca, almejando ser um Em-si-Para-si. Ou seja, seria uma consciência que
seria o fundamento de si própria pela pura consciência que tomasse de si mesma. Este
ideal possui um nome: Deus. Assim, o projeto fundamental da realidade humana é este
desejo de ser Deus. Todo homem, antes de qualquer elemento cultural, possui esta
“propensão religiosa”, pois a condição humana é, fundamentalmente, querer ser Deus.
Isto explica a presença do discurso mítico, em suas várias manifestações, em todas as
culturas. Porém, isto jamais se completa por ser impossível tal síntese, constituindo a
condição humana como um lançar-se em direção à algo que jamais será. Como um
cachorro que corre atrás do próprio rabo. É por isso que Sartre afirma que o “homem é
uma paixão inútil”. E completa: “Toda realidade humana é uma paixão, já que projeta
perder-se para fundamentar o ser e, ao mesmo tempo, constituir o Em-si que escape à
contingência sendo fundamento de si mesmo, o Ens causa sui que as religiões chamam
de Deus.” Portanto, a paixão humana é a inversa de Cristo, que se despojou de seu poder
divino para martirizar-se como homem; o homem, por sua vez, quer perder-se como
homem para se converter em Deus.

Contudo, se o projeto fundamental é, basicamente, este rumo a Deus, isto não


seria alguma essência ou natureza humana, limitando a liberdade? Lembremos, que esta
é uma escolha que cria as suas próprias possibilidades enquanto que tal desejo é anterior
à esta escolha. O que torna a liberdade possível é esta falha de ser do Para-si,
conduzindo-a ao desejo de ser Deus. Porém, isto não é uma “natureza humana” como
pode aparecer, pois este “desejo de ser” é uma estrutura abstrata, que nada limita à
liberdade. Concretamente, o projeto individual não é formado por este desejo, mas é
uma invenção particular de seus fins, ou seja, uma conduta livre de ser e viver situações
específicas. As conexões entre os nossos atos e o projeto fundamental são
absolutamente singulares, pois cada pessoa elege como se processam tais relações,
inventando um sistema particular de interpretações e significações. É por isso que os
loucos também possuem uma coerência interna em seus atos.12 Relevante recordar que o

12
Para desvendar esta conexão singular entre os atos e o projeto fundamental, Sartre esboça a
possibilidade de uma “psicanálise existencial”.
46

projeto fundamental não é algo sólido, podendo ser mudado. Portanto, a nossa vida é,
em suma, a escolha de um modo de viver. Somos uma escolha!
47

Capítulo 6 - O Outro

Até agora analisamos a consciência como algo solitário. Porém, cada homem
existe no mundo entre outros homens. Assim, eu simplesmente sei que existem outras
consciências no mundo. Esta certeza é tão absoluta quanto tenho de minha própria
existência. Como isto é possível?

Eu não possuo a priori com o outro uma relação de conhecimento, havendo


um sujeito que conhece e um objeto a ser conhecido. Descartes se viu embaraçado numa
questão difícil ao colocar o cogito frente a outros semelhantes como algo no mundo,
encontrando algo dúbio em saber se o outro que vejo não é algum autômato ou uma
representação da minha consciência. Em Sartre, eu não possuo tal dúvida, pois não viso-
lhe como uma pura matéria, apesar de minha relação com o outro ocorrer através de
meu corpo; porém não há cisão entre o corpo e a consciência. Eu capto o Outro como
uma consciência, um ser que se projeta, uma totalização-em-curso.

Entenderemos melhor como é saber a existência da subjetividade. Quando eu


realizo algum ato vulgar, o realizo como uma escolha, sem problemas. Porém, quando
percebo a presença de um outro, sou invadido pela vergonha. Esta realiza uma relação
íntima de mim comigo mesmo, pois pela vergonha eu apreendo um modo de meu ser.
Assim, é através do Outro que eu encontro uma outra forma de minha constituição
ontológica. Ao me envergonhar, o Outro se torna um intermediário entre eu e mim
mesmo. A vergonha é, antes de tudo, um reconhecimento de como sou como o outro me
vê. Desta forma, a vergonha é vergonha de si diante do outro, sendo duas estruturas
inseparáveis.

Portanto o Outro é uma estrutura de meu Ser. Assim, todo Para-si é, na


verdade, Para-Si-Para-Outro. É uma outra modalidade que me constitui - o Ser-para-
Outro. Assim, antes mesmo de qualquer relação concreta que possuo com o Outro, este
é uma parte integrante de ser da minha consciência. Por isso, mesmo quando estou
sozinho, estou em relação com o Outro. Até o eremita, mais solitário possui esta
experiência com alteridade, pois a própria ausência de outrem indica a sua existência
concreta: eles estão ausentes, logo estão presentes em outro lugar.
48

O Outro é, por definição, o sujeito que não sou. Se eu conhecesse de fato


como é a subjetividade alheia, eu me converteria no próprio Outro. Isso é absurdo,
acabando com a alteridade, e destruindo a minha consciência e a do Outro. Assim, não
há condições de apreendê-lo enquanto sujeito, apenas como objeto. O Outro me é
incognoscível, é impenetrável, algo que sempre escapa de meu alcance.

Já vimos que Outro é algo que me constitui, antes de sua aparição concreta.
Para isso, a minha consciência deve possuir uma negação interna, já que o Outro é a
consciência que eu não sou. Recordemos que o Para-si é negação de Ser, logo, é como
se engolisse tal poder nadificador, gerando esta certeza originária. Assim, é através desta
certeza, que precede o meu encontro com o Outro, capaz de reconhecê-lo como um
sujeito, e não como uma coisa do mundo (o problema em que Descartes se encontrou).
Assim eu sei que estou diante de uma outra consciência, e não de um boneco de carne.

Oriunda desta certeza originária é uma disposição natural do meu Ser: a


disposição de ser visto pelo Outro. Por outro lado, se eu tenho em mim o Outro, como
uma “consciência que não sou”, este Ser que é idêntico, em sua estrutura ontológica, a
mim, possui, por sua vez, “eu” embutido nele. Ou seja, eu sou o Outro no Outro.

Assim, através desses requisitos, eu sou capaz de reconhecer o Outro como


uma consciência. Dessa forma, todo homem ao se encontrar com um estranho, ambos se
reconhecem reciprocamente como homens, pois ambos desde o seu nascimento são
Para-Si-Para-Outro. O primeiro encontro que possuo com um estranho é como se fosse
uma relação que sempre existiu. Cada homem reconhece o caráter humano do Outro, e
tem a sua humanidade reconhecida pelo Outro. Por essa “relação originária”, reconheço
a humanidade de todos os homens. Contudo, este fator ontológico não é um mero laço
abstrato pois a minha relação com o Outro se manifesta de forma concreta, pois eu
convivo no mundo com outros homens.13

13
Se os europeus questionavam a humanidade dos ameríndios, isto se deve por um “choque cultural”.
Lembremos que o existencialismo entrou “em voga” após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), que
abalou as crenças da civilização branca e européia ao comprovar, em escala industrial, a capacidade
radical do homem de desumanizar o Outro. Se o nazista coisificava o judeu, isso não se deve a algo
intrínseco do judeu, mas a algum mecanismo interno da consciência do nazista. É relevante citar que ainda
não abordamos o conflito. Estamos aqui no plano puramente ontológico, mas as relações com o Outro e
comigo mesmo ocorrem no plano material e, portanto, toda relação humana é uma relação moral e
histórica.
49

Eu possuo uma predisposição natural de ser visto pelo Outro. Porém, o que
ocorre quando acontece o nosso primeiro contato? O olhar do Outro me capta e o Para-
si sofre uma modificação brusca. Essa consciência de “ser visto” pelo outro esvai o
Para-si dele mesmo, como que escapando o mundo que, anteriormente, eu possuía. O
Outro rouba o “meu mundo”, deslocando-me do centro, convertendo-me como um
objeto entre objetos. Mesmo me reconhecendo como uma consciência, o Outro me capta
como pedaço de matéria que está inserido no mundo, sendo uma “coisa consciente”.
Assim, o Outro me desloca para o plano da objetividade, sendo algo que me somente
experimento pelo Outro. Até então, o Para-si se compreendia como uma pura
subjetividade, sendo somente através do Outro que tomo consciência de outro modo de
meu Ser: a minha objetividade. Sei que sou um corpo físico, que ocupa um determinado
espaço entre as coisas do mundo. Portanto, o Outro é indispensável ao conhecimento
que possuo de mim mesmo. Se ele não existisse, eu jamais me apreenderia como algo
objetivo.

Isto se deve ao corpo, pois é através dele que possuo relações concretas com o
Outro. Aliás, sem este, eu jamais poderia saber algo sobre meu corpo. Todo juízo
objetivo em relação ao meu corpo passa através do Outro, que formula conceitos em
como sou. O Outro me capta como um “corpo no mundo”, assim, é por ele que me sei
como um corpo objetivo, pois, antes disso, eu sou o meu corpo (logo não posso ter um
conhecimento objetivo dele). Eu não posso vivenciá-lo como uma estrutura fisiológica,
composta por órgãos. Eu vivencio uma dor, mas quando o médico me diz que tenho
uma úlcera em meu estômago, eu somente sei que tenho um estômago através dele, pois
é algo que não vivencio.14 O mesmo se dá em relação ao meu caráter (se sou feliz,
covarde, bondoso, etc).

Portanto, o outro me reconhece como sujeito (projeto) e ao mesmo tempo


enquanto objeto. Sou apreendido nas duas condições ambíguas de que me constituo.
Assim, o Outro é capaz de me designar, suprimindo os meus possíveis. Passo a ser feio,

14
Sartre dizia que descobriu a sua feiúra através das mulheres. Há um fato biográfico que o marcou muito
em sua infância. Por ser filho único, Sartre foi excessivamente mimado pela mãe e avó, possuindo uma
grande autoconfiança. Aos 12 anos, acompanhado de colegas do Liceu, ao se aproximar de uma menina
extremamente bonita, esta o desprezou: “Eu recuei, e o grupo caiu na gargalhada. Percebi então que eu era
feio”. Isto foi uma mudança importante como ele reconhece: “minha feiúra me impediu de me tornar um
afetado. O sujeito que não se sente feio é, no máximo, um reformista, porque, fundamentalmente, em sua
vida, está tudo bem.”(entrevista a John Gerassi).
50

generoso, covarde, feliz como uma porta é uma porta. O olhar do Outro é uma
encarnação do mito de Medusa; ele me petrifica. O Outro é uma opressão à minha
subjetividade.

Ao me petrificar, o Outro me transforma numa coisa entre as coisas. Ele é


capaz de realizar algo que me é impossível: apreender-me como coisa. Esta visão,
somente o Outro possui, sendo algo que não posso captar, pois sempre serei uma
subjetividade para mim mesmo. E tampouco posso folhear a subjetividade alheia, por
ser esta incognoscível. Assim, o Outro rouba algo que me pertence e me aliena sempre,
pois jamais terei acesso a esta coisificação de meu eu.

O Outro, vemos, é capaz de realizar o ideal de toda consciência: me tornar


num Em-si-Para-si. O Outro me constitui num sujeito-objeto, porém jamais posso ser
capaz de experimentar o meu Ser como identidade objetiva, o que me falta para me
totalizar. Assim, a minha totalização como Em-si-Para-si se encontra fora de meu
alcance, pertencendo exclusivamente à subjetividade do Outro. Como diz Sartre: “Eu
tenho o meu fundamento fora de mim”.

Se o Outro é necessário a mim, é, por outro lado, algo que me ameaça. Diante
do Outro já não possuímos o “controle” do mundo. A minha liberdade é ameaçada pela
liberdade alheia. Não podemos constranger o Outro a olhar-nos como queremos, como
julgarmos de certa forma. O olhar do Outro é sempre uma ameaça inesperada, pois me
encontro numa rede de projetos cujos fins me escapam, já que os ignoro. O Outro faz de
mim um mero instrumento de seus possíveis, podendo, inclusive, negar os meus
possíveis.

Encontramo-nos, portanto, indefesos diante do Outro, pois é uma consciência


que nos julga. A transcendência alheia supera a minha transcendência, convertendo-me
numa “transcendência-transcendida”. Não existe fuga ao olhar do Outro, até porque ele
está encravado no meu próprio ser (sou um Ser-para-Outro). Assim, Sartre diz que o
nosso “pecado original” é a minha existência surgir no mundo habitado pelo Outro.

Desta forma, o fundamento das relações com o Outro é o conflito. É a famosa


frase de Garcin, na peça “Entre quatro paredes” (Huis clos): “o inferno são os outros”.
Toda relação que possuo com o Outro, seja de total indiferença ou de respeito, se
51

concentra no esforço de possuir a liberdade alheia. Pois como esta é uma eterna ameaça,
eu tento domá-la. Assim, duas consciências lançam os seus olhares, por desejar paralisar
o seu semelhante. As relações humanas são, no nível ontológico, tentativas de se possuir
a liberdade do Outro. Isto não se deve a um impulso egoísta, empreendido por uma
vontade má, mas ao simples fato de existirmos como limite à liberdade alheia.
Lembrando, desse modo, que a mola originária do Ser-para-Outro é o conflito.

Neste esforço de imobilizar a liberdade alheia, possuo duas condutas a adotar


em minha relação com o Outro. São duas condutas, aparentemente, opostas, excluindo-
se mutuamente, e das quais sempre sou remetido, num constante círculo vicioso. A
primeira atitude é a de tratar o Outro como sujeito que nos transcende.

O Outro me converte num Em-si-Para-si, portanto desejo a visão que o Outro


tem sobre mim, prevendo assimilá-la. Desta forma, pretendo roubar a consciência alheia
enquanto consciência livre, ou seja, reduzi-la à condição de liberdade submetida a mim,
porém, paradoxalmente, sem perdê-la como consciência. Como se quisesse ser o Outro,
mas sem anular a sua alteridade.

Para tentar realizar tal intenção, preparo o ardil de esconder o máximo


possível a minha liberdade, para escravizar a do Outro. Esforço-me para escamotear a
minha liberdade, para ser um puro “ser visto”, desejando em converter-me em algo
objetivo pelo olhar do Outro. A minha vontade é usar o Outro para encontrar um
fundamento ao meu ser, ou seja, exibo-me de forma escancarada ao Outro como se eu
mesmo tivesse feito desse modo. Quero fazer-me no único responsável deste Em-si que
o Outro me transforma.

Este é o princípio que rege o Amor. Ao querer ser amado, desejo apossar-me
da liberdade de alguém, pela sedução, sem querer perdê-la como tal, permitindo em se
perder para fazer de mim um centro de referência absoluto. Assim, ao querer ser amado
é querer ser o fundamento do Outro. Para tal, o amante não deseja escravizar o amado,
mas que este seja um sujeito livre e não é um objeto. No amor, eu quero prender uma
liberdade como uma pura liberdade, encontrando desta forma, uma identidade plena
comigo. O ideal do amante é que o Outro seja eu, sem deixar de ser o Outro.
52

Para isto, o amante se comporta o possível como um objeto para o amado.


Porém, ele não quer ser uma mera coisa, mas ser um “objeto amável” que foi escolhido
livremente pelo amado. Há uma fuga da contingência, pois não pode aceitar que a sua
relação com o Outro seja uma mera casualidade. Buscando um fundamento, é necessário
que tal fato contingente seja apagado, como se tivesse um “destino”, algo necessário
nesta relação. O Outro não poderia estar amando outra pessoa em meu lugar, pois eu fui
“escolhido” livremente como o seu “objeto amável”.

No amor, há todo um esforço de criar uma síntese entre “Eu-Outro”, em que,


apesar das nossas liberdades se ameaçarem mutuamente, a nossa relação pudesse
unificar duas subjetividades diferentes, terminando o conflito que nos fundamenta.
Contudo, este fim não é obtido. Eu quero preservar a amada como uma liberdade e, para
tal, me ofereço como objeto, tentando apoderar-me de sua visão sobre mim. Porém, a
minha amada também quer ser amada e age do mesmo modo que eu. Ela quer que eu
seja uma liberdade, se oferecendo como um objeto para mim. Vemos que ocorre uma
dispersão de projetos. A relação amorosa cai num impasse sem solução.

A relação com o Outro traz à tona o estudo da linguagem. Esta não é uma
invenção de nossa subjetividade. Faz parte da condição humana, pois é originariamente
a experiência que o Para-si pode fazer de seu ser-para-Outro e, posteriormente, o
transcender desta experiência e sua utilização ruma a possibilidade de ser isto ou aquilo
para o outro. Portanto, a linguagem é algo do meu ser frente ao olhar do Outro. Porém,
eu não posso conceber quais serão os efeitos de meus gestos e atitudes, já que o Outro
os interpreta através de sua liberdade, e como a consciência alheia me é incognoscível, a
minha linguagem sempre escapa de mim mesmo. A linguagem me revela a liberdade
daquele que me escuta em silêncio, ou seja, a sua transcendência. Por outro lado, eu sou
uma objetividade ao Outro, não podendo indicar a minha transcendência. A questão da
linguagem é a mesma do corpo, da qual a minha objetividade provem do Outro: “Não
posso ouvir-me falar nem ver-me sorrir”.

Retornaremos, porém, à relação amorosa. Esta é um conflito de projetos,


encerrando-se num beco sem saída. Mas, posso tomar uma atitude radical: o
masoquismo. Recuso o possível a minha subjetividade para me converter num mero
objeto para o Outro. Aqui já não pretendo em apossar-me, através da sedução, da
53

liberdade alheia, mas apenas conservá-la como livre. Assim, eu me entrego como uma
coisa ao Outro. Porém, isto é impossível, pois só posso experimentar-me como algo
objetivo através do Outro. Não sou capaz de me objetivar por conta própria. Assim, o
ato de me entregar como coisa, já comprova que há uma escolha de querer coisificar-me,
acusando o elemento subjetivo do masoquista.

Assim, malogramos ao querer nos apropriarmos da subjetividade alheia. No


amor, eu posso apoderar-me do corpo do outro, mas não de sua liberdade. A
subjetividade do Outro é um lugar inacessível para mim. Assim, mudo a minha atitude
em relação ao Outro: tratá-lo como um objeto que transcendemos. Ao me ver ameaçado
pelo olhar do Outro, tomo uma posição de contra-ataque, enviando o meu olhar ao
Outro. Assim, eu o objetivo, querendo esvaziá-lo de toda subjetividade, transformando-
o num mero corpo.

Escolho, então, em olhar o olhar do Outro, para neutralizá-lo. É a indiferença,


quando sou uma cegueira em relação ao Outro. Pratico uma espécie de solipsismo, pois
sinto como vivesse sozinho no mundo, os outros são essas formas que me circundam.
Posso tocá-los, como toco num copo. Assim, eu me sinto tranqüilo, pois não tenho
consciência de que o olhar do outro pode coagular minhas possibilidades e meu corpo,
experimentando o oposto da timidez. Essas “pessoas” são funções: o bilheteiro nada
mais é que a função de coletar ingressos; o garçom nada mais é que a função de servir
fregueses. Estou só e seguro. Sou capaz de ficar neste estado de Má-fé por muito tempo,
até por uma vida inteira, salvo em certas ocasiões. Porém, sem o Outro, eu não sou
capaz de constituir a minha objetividade. Mesmo que o garçom seja uma função, isto me
remete a algo que está fora de mim, embora este não me seja apreensível. Tenho um
sentimento de falta e de mal-estar, pois, apesar do Outro ser um perigo à minha
subjetividade, eu necessito dele para utilizá-lo em experimentar uma outra estrutura de
meu ser: a minha objetividade.

Falhando ao ignorar a existência alheia, passo a ter outra postura. A


subjetividade alheia me escapa, porém sou eu o fundamento da sua objetividade.
Portanto, desejo apreender a liberdade do Outro, identificando-a com a sua objetividade-
para-mim. Este é o sentido do desejo sexual. Pretendo circunscrever a liberdade do
Outro em seu corpo. No ato sexual, eu não viso o corpo de outrem como um objeto
54

orgânico, mas como um corpo dotado de liberdade, identificando o seu corpo com sua
consciência.15 Realizo isto através da carícia, pela qual transformo a sua subjetividade
em pura carne, podendo possuí-la. Isto é necessário, porque originalmente, eu viso o
corpo do Outro como um corpo em situação; a carne, ao contrário, aparece como
contingência pura da presença. O desejo é uma tentativa de despir o corpo de seus
movimentos, passando a ser pura carne.

Possuindo a carne da amada, possuo a sua “consciência encarnada”. E ela ao


possuir minha carne, possui a minha “consciência encarnada”. Ocorre, como já citamos,
uma comunhão de desejo: cada consciência ao encarnar-se, encarna a outra, e passo a
sentir a minha própria carne e a carne do Outro através da minha, e tenho consciência de
que esta carne que sinto e da qual me aproprio por minha carne é carne-sentida-pelo-
outro. Assim, eu uso o corpo alheio como um meio de me descobrir como carne, e
busco nesta outra carne, a sua “consciência encarnada” para possuí-la. Isto explica
porque o desejo, apesar de visar o corpo inteiro, alcança-o através das massas de carne
menos diferenciadas, mais grosseiramente inervadas, possuindo o mínimo de
movimento voluntário (seios, nádegas, coxas, ventre, etc), como que próximos de uma
facticidade pura, como coisas. A própria mão que acaricia está meio desligada, similar a
uma ferramenta aperfeiçoada.

Contudo, esta intenção de apreender a liberdade alheia fracassa no desejo


sexual. Com a concretização do desejo sexual (o prazer), a minha consciência,
subitamente, volta-se para si própria. A vontade de atingir a subjetividade do Outro
através da carne se dissipa, pois, ao sentir prazer, o Outro foge das minhas mãos. Após o
orgasmo, o desejo se desvanece. Eu apenas encontro a minha própria subjetividade. O
ideal seria que eu sentisse o prazer do Outro como se fosse o meu próprio prazer.
Porém, isto não ocorre, porque o orgasmo é algo puramente subjetivo, não se faz como

15
Sartre recusa a idéia de que a sexualidade é uma contingência de nossa estrutura fisiológica. Não somos
seres sexuados por possuirmos órgãos sexuais, mas, o inverso, possuímos órgãos sexuais por sermos seres
sexuados. O desejo sexual é uma modalidade de ato da consciência, que se torna desejante, “convertendo-
se” em corpo. É uma manifestação do Para-si. Realmente, a única contingência que existe é o formato de
meu corpo (não escolhendo o fato de ser homem ou mulher), porém, através da minha liberdade, sou
capaz de realizar o que quiser com este. Se encararmos a sexualidade através do materialismo, como algo
puramente orgânico, certas questões, como a homossexualidade ou a bissexualidade, se transformariam
em distúrbios acidentais do sistema neurológico. Isto anularia qualquer ato da consciência. Ora, posso
estar fisiologicamente saudável e não sentir desejo e vice-versa. A sexualidade não pode ser resumida por
impulsos fisiológicos.
55

carne. A ejaculação e os espasmos vaginais são conseqüências objetivas do prazer, e não


o prazer em si mesmo.

Porém, ainda posso recorrer a uma atitude extrema: o sadismo. O sádico quer
apropriar-se da liberdade alheia como pura carne, recusa-se que o Outro o faça carne. A
sua intenção é a não reciprocidade do desejo sexual. E, para apossar-se da liberdade do
Outro, recorre à violência, tratando-o como um puro objeto, um pedaço de carne, através
da humilhação e da dor. O sádico é uma pessoa metódica, que instiga a carne alheia com
“todo o tempo do mundo”, como que testando a consistência daquela consciência
encarnada. Despoja, como no desejo, o corpo de qualquer movimento voluntário,
reduzindo a um mero utensílio. Porém, o sadismo se converte em desejo; ao se deparar
diante de um corpo totalmente ofegante (completamente “encarnado”), o sádico não
sabe o que fazer. No ponto em que seu objetivo seria atingido, a sua consciência recua.
Cai num círculo vicioso: o sadismo é o fracasso do desejo, e o desejo é o fracasso do
sadismo. Contudo, há um outro nível de fracasso que ocorre simultaneamente. O sádico
quer se apossar da liberdade alheia como uma pura carne, porém a subjetividade do
Outro sempre lhe escapa. Quanto mais se obstina, mais esta foge. A liberdade que este
encontra é a propriedade objetiva do Outro-objeto. É um Outro no mundo, enquanto que
o sádico quer se apropriar do Outro por inteiro, recuperando o seu ser-para-Outro. O
sádico descobre seu erro quando a vítima olha para ele, em outras palavras, experimenta
a alienação de seu ser na liberdade do Outro. Descobre que não somente não recuperou
seu “ser-fora”, como que seu ato é coagulado e transcendido. Percebe, então, que não
pode se apoderar da liberdade do Outro através da humilhação porque é na e pela
liberdade do Outro que um mundo vem existir, um mundo em que há um sádico,
instrumentos de tortura e pretextos para a humilhação e renegação.

Ao fracassar nas outras possibilidades, tomo uma ação desesperada: destruir a


existência do Outro. É o Ódio. Desejo perseguir o Outro e eliminá-lo, para que este não
me objetive. O Para-si que odeia, deseja apenas ser um Para-si, rejeitando o seu ser-
para-Outro. Por ser inacessível, conformando-se a ser uma pura nadificação livre.
Recusa o fato de o Outro constituir a minha liberdade. Para isso, a minha primeira
atitude não é rebaixar o objeto de meu ódio, mas reconhecê-lo como uma liberdade.16 A

16
O nazista, antes de tratar o judeu como uma mera coisa a ser explorada e exterminada nos campos de
concentração, encarava o judeu como um inimigo implacável à raça ariana, pois havia uma conspiração
56

consciência odiosa o quer como uma transcendência, e não odeia tal ou qual detalhe, o
que seria detestar. Assim, ao odiar e perseguir até a morte um outro em particular, estou
almejando, através de um só, o ódio a todos. O outro que eu odeio representa todos. Isto
se dá pelo fato de meu projeto ser a reconquista da minha liberdade não-substancial de
Para-si. Contudo, o ódio é um projeto fracassado, pois não posso suprimir as outras
consciências e, mesmo que pudesse, não posso apagá-los como se não tivessem existido.
A ausência do Outro me remota à sua presença em outro lugar, no caso, no passado. E
este é um Em-si que arrasto, impresso pela existência do Outro. Aquele que, uma vez,
foi Para-Outro está contaminado em seu ser pelo resto de seus dias.

Portanto, malgrado todas as tentativas encerradas nas duas atitudes básicas


que tomo em relação ao Outro, vemos que estamos sempre num constante círculo
vicioso. É o mesmo que ocorre no eterno movimento do Para-si em direção ao Em-si,
para completar-se. Vemos, no plano ontológico, que o conflito é o fundamento das
relações humanas e que a consciência do Outro me é inexpugnável. O Outro conhece o
segredo do meu “objeto no mundo”, a que não possuo acesso. É relevante recordar que
estamos no campo estritamente ontológico, tornando possível uma moral, considerando
a realidade humana em situação. Sartre termina seu longo tratado ontológico afirmando
a possibilidade de se descrever o campo ético dos projetos humanos. O Para-si
determina a si mesmo como falta em seu ser, surgindo o valor com esta falta com o qual
se relaciona. Se o homem é desejo de ser Deus, é esta odisséia em busca do fundamento,
que me converte na única fonte de todos os meus atos. E será a responsabilidade,
assumindo-me como liberdade pura, que o filósofo francês irá pregar como fator moral
fundamental da minha relação com os outros e comigo mesmo.

judaica mundial que freava as plenas atividades da raça superior. Como escreveu Adolf Hitler (1889-
1945): “o forte é mais forte sozinho” in HITLER, A. Minha luta. trad. s. n. São Paulo: Moraes, 1983, p.
319.
57

Análise Fílmica :“Deserto vermelho”


(Il deserto rosso)
Direção: Michelangelo Antonioni
Produção: Antonio Cervi
Roteiro: Michelangelo Antonioni e Tonino Guerra
Fotografia: Carlo Di Palma
Montagem: Eraldo Da Roma
Itália/França Cor 1964 120 min

Tornou-se célebre apresentar Antonioni como o cineasta da


incomunicabilidade. Os seus personagens se encontram perdidos, tateando-se uns sobre
os outros, encontrando um enorme vazio que os esmaga. Dentro deste viés, salta aos
olhos a seguinte questão: como entender um cineasta egresso do Neo-realismo italiano
fizesse filmes tão herméticos? Será que as questões sociais foram abolidas, trazendo à
tona elucubrações existenciais?

Devemos entender que Antonioni começou a sua carreira no cinema como


documentarista. Na efervescência neo-realista, seus primeiros filmes abordam questões
sociais, o cotidiano, o trabalho. Foi filmando na rua, em contato com o povo, que
desenvolveu o seu gosto pelas pessoas, pelas relações entre as pessoas. Estamos falando
de um país devastado pela guerra e asfixiado por 20 anos de ditadura, e que diante deste
quadro de ruína, um mundo novo é construído. O neo-realismo é um movimento
artístico que surgiu e captou esta transição. A jovem República Italiana acabara de
nascer, e o otimismo de construir um novo mundo, melhor, segundo os preceitos
socialistas, rondava a cabeça destes homens. Porém, no começo dos anos 50, o
entusiasmo foi esfriado. A Democracia-cristã se afirmou no poder, através do voto, e
alinhou a Itália no cenário político da Guerra Fria. A Europa em ruínas é reerguida pelos
norte-americanos, e toda uma concepção de mundo logo invade o velho solo europeu.
Pela primeira vez na História, surge uma superpotência não-européia.

Na Itália, esse processo sofreu algumas particularidades. Trata-se de um


Estado tardiamente unificado (aliás, desde o Império Romano, a complexidade política
na Itália exige um esforço hercúleo de compreensão), cuja burguesia necessitou de um
forte centralismo estatal para lançar as bases de seu mundo. Num quadro dicotômico
58

(um norte industrial com um sul agrário), a Itália disputou com dificuldades as suas
colônias na África. Ideologicamente, um país fortemente influenciado pelo catolicismo,
o que já demonstra a dificuldade, no século XIX, de se impor a ordem burguesa frente à
poderosa instituição feudal que foi a Igreja Católica. Foi neste país complexo que surgiu
o Fascismo, com uma ideologia centralizadora, militarista e associando o povo com
Estado. O seu lema “Deus, Pátria e Família” demonstra o típico cenário do capitalismo
italiano: o pensamento católico, o Estado forte e a importância do núcleo familiar em
sua cultura latina. Já durante a guerra sofre duas invasões: a alemã e a aliada, sendo o
palco de dois mundos que se chocam. Posteriormente, com a vitória aliada, surge uma
nova Itália; o sul se industrializa e novos hábitos e costumes são afixados. Este
admirável mundo novo (consumista, hedonista e agnóstico) se confronta com as antigas
concepções. Porém, não era só a Itália que mudava, mas o mundo inteiro com a
chamada terceira Revolução Industrial (o advento da sociedade de informação,
conduzido pela telemática – união da telecomunicação com a informática). Porém,
como abordamos aqui, estas inovações encontram um país repleto de singularidades.

Neste sentido, vemos uma crise moral, onde novos valores são impostos à
força sobre os antigos. Antonioni, em sua arte, foi sensível à estas transformações
sociais, que se refletiu nas relações interpessoais. Encontramos em seus filmes um vazio
de valores, devido a uma transformação abrupta nas relações humanas, sobretudo entre
homem e mulher. Portanto, os “devaneios metafísicos e existenciais” em Antonioni
estão visceralmente ligados com uma questão social. O mesmo podemos falar de Sartre.

“Deserto vermelho” geralmente é apresentado como um filme menor em sua


obra (o que é injusto!). Trata-se de um filme de transição entre a trilogia18 e “Blow-up”
(1966), isto é, quando questões puramente existenciais passam a ser abandonadas,
vinculando-se com uma questão social. “Blow-up já é um filme mais crítico à
sociedade, sobretudo à cultura anglo-saxã (que se tornava hegemônica na época). Esta
crítica social será levada ao extremo em seu filme mais militante, “Zabriskie point”
(1969). Neste quadro, “Deserto vermelho” assume um papel secundário, como um mero
elo nas fases de sua obra. Esse juízo desconsidera a importância deste filme.

18
“A aventura”(L’avventura; 1960), “A noite” (La notte; 1961) e “O eclipse” (L’eclisse; 1962).
59

Esteticamente falando é vital por se tratar do primeiro filme colorido de


Antonioni. Não por uma curiosidade, mas vemos o grau de sensibilidade que o cineasta
possui, manejando as cores de forma magistral. Trata-se de um filme de linguagem
cromática. Outro fator interessante é a sua protagonista, que é pela primeira vez,
explicitamente neurótica. A sua inadaptabilidade ao mundo que a cerca chega às raias da
doença. Vemos, portanto, uma radicalização do tema abordado na trilogia. Porém, não
se trata de um exagero estilizado, mas uma profundidade no grau de crítica do cineasta.
Era necessária uma neurótica para criar um discurso mais forte e impiedoso. Desta
forma, vemos um processo na linguagem antoniana nos anos 60. Dos casais perdidos e
vazios de “A aventura”, já prenunciados pelos desencontros amorosos de “O grito” (Il
grido; 1957), até os jovens rebeldes que explodem toda a hipocrisia do mundo burguês
no final de “Zabriskie point”, há um discurso contestador que vai se exacerbando. O
vazio das relações afetivas, fruto de uma crise de valores, é respondido pelos novos
valores dos jovens rebeldes. A questão amorosa vem à tona pela seqüência de sexo no
deserto em “Zabriskie point”, demonstrando a experimentação no campo afetivo como
criação de novas formas de relações. A questão pessoal e social caminham juntas. É o
que ocorre em Sartre, de “O ser e o nada” à “Crítica da razão dialética”. Porém, em
Antonioni, esses novos valores serão avaliados em relação com a identidade subjetiva
em seus últimos filmes; seja numa perda, em “O passageiro: profissão
repórter”(Professione: repórter; 1975); numa sobreposição, em “O mistério de
Oberwald” (Il mistério di Oberwald; 1980); ou uma busca, em “Identificação de uma
mulher” (Identificazione di uma donna; 1982). O seu último filme, “Além das nuvens”
(Al di lá delle nuvole; 1995), retorna à fragilização das emoções nas diferentes formas
de relação entre homem e mulher. Seria um retorno ao tema afetivo de seu primeiro
longa “Crônica de um amor” (Cronaca di un amore; 1950)? Na verdade, não um
retorno, mas o refinamento de um tema que jamais foi abandonado pelo cineasta.

A história de “Deserto vermelho” é bem simples. Giuliana (Mônica Vitti) é a


esposa de Ugo (Carlo Chionetti) e mãe de Valerio (Valerio Bartoleschi). Na fábrica,
onde trabalha seu marido, é apresentada ao engenheiro Corrado Zeller (Richard Harris).
Através da relação que começa a ser construída entre ambos, Giuliana narra a sua
doença e o período em que esteve internada. Ocorre uma relação amorosa, forçada por
60

Corrado, pois Giuliana não consegue criar vínculos pessoais, seja com o marido, o filho
ou o amante. O filme termina como começa, Giuliana com Valério na fábrica.

Podemos imaginar que as dificuldades afetivas de Giuliana se devem ao seu


estado neurótico. Porém, numa seqüência com Corrado, ela pergunta qual era a sua
orientação política. Ele responde que na verdade ninguém sabe muito bem no que
acredita, que crê na humanidade, na justiça e no progresso, e o que é importante é
manter a consciência tranqüila. Essa cena é contraditória, pois ambos estão num rio
poluído, e quando Corrado fala desses ideais, há um plano em que o personagem está ao
lado de torres, como que o esmagando. Já não há mais espaço para a humanidade e o
progresso, ou seja, Corrado ainda está preso numa visão iluminista da ciência. Ele sabe
disso, e por isso se justifica com sua “consciência tranqüila”. Por outro lado, Ugo não
consegue lidar com a neurose de sua esposa, tornando-se um marido ausente. Vemos
que Giuliana não é uma mera mulher neurótica, mas o estado extremo de uma condição
geral.

Antonioni trabalha com cores frias e com um aspecto sujo. O ambiente


industrial, a poluição, a lama, o concreto, mostram um mundo que é estranho aos seus
personagens. Porém, não se trata de uma mera crítica a um mundo tecnocrata. A sua
abordagem não é humanista, mas aponta o descompasso entre as pessoas e o meio que
as circunda.19 Não se trata de uma crítica ao desenvolvimento técnico, mas uma análise
profunda entre as pessoas lançadas num mundo no qual não encontram o seu lugar.

É um filme sobre a Angústia. Como os valores se desmoronaram, todos se


chocaram com a gratuidade de suas existências. Por isso, a figura do navio é importante.
Durante todo o filme, os personagens se encontram com algum navio. O navio
representa a instabilidade, um meio de transporte que se desloca na água, um elemento
fluído. Através do empuxo, o navio transforma a própria água em sua base de
sustentação. Vemos aqui a questão da Liberdade e da gratuidade. Por isso, os
personagens sempre são interpelados por algum navio. Uma passagem significativa é

19
Numa entrevista a Jean-Luc Godard, Antonioni diz: “Il est trop simpliste, comme beaucoup l’on fait, de
dire que j’accuse ce monde industrialisé, inhumain, où l’individu est écrosé et conduit à la névrose (...)
Pour moi, je tiens à le dire, cette sorte de névrose qu’on voit dans Deserto rosso est surtout une question
d’adaptation. Il y a des gens qui s’adpatent, et d’autres qui ne l’ont pas encore fait, car ils sont trop liés à
des structures, ou des rythmes de vie, qui sont maintenant dépassés. C’est le cas de Giuliana ». Cahiers du
cinema, Paris, nº 160, nov. 1964, pp. 10-6.
61

quando os personagens estão numa cabana e aparece um navio pela janela. Giuliana diz
a Corrado que não gosta de olhar muito para o mar, pois perde o interesse pela terra
firme. Vemos que Giuliana possui uma relação de atração e repulsa ao navio.
Interessante notar que os navios são enquadrados de forma a aparecerem como se
estivessem navegando na terra. Aparecem em canais, passando por trás das árvores ou
invadindo uma janela. Temos a sensação de que a terra firme não é tão firme assim.
Somente em dois momentos, o navio é filmado em alto mar. Uma seqüência em que
Giuliana conversa com Corrado num convés. Neste diálogo, ela confessa que a amiga
que conhecera na clínica, que não conseguia amar nada ou ninguém, era ela e que ela
havia tentado o suicídio. É fundamental esta confissão (o suicídio, principalmente) ser
num navio. Giuliana se sente como um navio, jogada à deriva numa massa líquida,
porém possui uma certa ojeriza a ser isso. No final, em sua “conversa” com o
marinheiro estrangeiro, ela tenta assumir esta ligação com o navio, porém vemos uma
conotação de fuga. Ela busca um lugar seguro, distante de tudo e de todos. O aspecto
escuro desta seqüência, com o cais sujo e objetos enferrujados, exibem este mundo
industrial em que Giuliana vive, mas não quer viver. Ela possui uma atração pelo navio,
porém ainda não assumiu a sua condição. Ela age de má-fé, pois busca uma forma de
fugir do mundo. Porém, o navio está ancorado, parado, hirto. Nem vemos a água nestes
planos. Ainda mais, nós nem escutamos o barulho do mar. Já não existe mais diferença
entre terra e mar, sólido e líquido. É por isso que, após suas perguntas ao marujo, ela
recua assustada, com medo. Não existe fuga!

O segundo momento em que aparece o navio em alto mar é durante o conto


sobre a garota (Emanuela Pala Carboni) que Giuliana narra ao seu filho internado. Esse
é um dos momentos mais interessantes do filme. É o único momento em que as cores
são vivas, fortes, com o aspecto de “natural”. O cenário exuberante de uma praia deserta
salta aos olhos do espectador acostumado com o mundo industrial do filme. As cores
são todas claras, distintas do resto do filme que puxam para o escuro. Isso dá às imagens
uma enorme leveza. Trata-se de uma garota, antes de tudo, solitária, que encontrou
aquela praia como um refúgio. Este é o mundo para onde Giuliana deseja fugir. A água,
com as suas ondas suaves, contrasta com o rio poluído, lamacento, viscoso e parado de
sua realidade. A água é cristalina, podendo se ver o fundo, isto é, a água é apenas uma
capa sobre a terra, sendo algo mais sólido. A garota está em plena harmonia com a praia,
62

ambos formam um único ser, alcançando uma sensação de plenitude. Porém, tudo muda
quando, certo dia, aparece um navio. Aqui se trata de um navio mais “natural”, ou seja,
que não possui um aspecto industrial, pois é um veleiro, movido a energia eólica (um
elemento natural).Bem distante dos enormes cargueiros e petroleiros que aparecem
durante o resto do filme. Porém, se trata de uma construção humana, o que destoa do
ambiente natural da praia. É por isso que a garota nada em sua direção, curiosa, atraída
pela embarcação. Contudo, não há ninguém no navio. Ela volta para a praia, e um canto
feminino é entoado. Aos poucos, ela percebe que são as pedras que cantam. Vemos aqui
uma ruptura na relação harmônica da garota com a praia. O fato de não existir pessoas
no navio, demonstra que este, por incrível que pareça (trata-se de uma fábula e portanto
tudo é permitido), não é algo artificial, mas um elemento natural. É por isso que é um
veleiro e não nenhum dos outros navios aparecidos no filme. O navio traz o sentimento
de instabilidade, se transformando num elemento perturbador. Assim,.quando ela volta
para a praia, esta já não é mais a mesma. Ela passa a ter uma estranheza em relação
àquele lugar, outrora harmônico. A praia passa a ser algo esquisito. Ela estava tão ligada
com aquele lugar, que nem percebia a diferença entre a areia, o mar, as pedras. O navio
deflagrou um processo, em que este estado de plenitude é quebrado, transformando as
pedras em algo bizarro. Trata-se de um choque, de uma metamorfose radical em toda a
praia. Como podemos ver, este conto de Giuliana é a experiência da Náusea.

No fim desta fábula, Giuliana diz que as pedras circundavam a garota como
se fossem carne. Ocorre uma “humanização” das pedras. Aqui ocorre o inverso de sua
realidade, em que as pessoas se fazem pedras. No conto, a garota está sozinha (devemos
frisar isto), ela é uma consciência solitária, ela vive num mundo sem o Outro. A
seqüência que melhor representa esta relação com o Outro é o da cabana. Aqui todos
entram num apertado cômodo vermelho, onde ocorre um jogo erótico, com trocas
mútuas de carícias. Este quadro já era preparado pela conversa sobre afrodisíacos. No
cômodo, Giuliana diz que “quer fazer amor”, e todos riem. Posteriormente, ela esbarra
sem querer em Corrado, já exibindo ao espectador uma relação que está sendo
construído entre eles. Passado esta cena, quando alguns dormem, Giuliana afirma a Ugo
que a sua vontade era sincera. Vemos que Giuliana está deslocada entre aquelas pessoas,
pois tratava-se de uma questão puramente sexual, enquanto ela aborda uma questão
afetiva. Sendo uma mulher emocionalmente confusa, ela não sabe o limite entre desejo e
63

amor, tanto em relação a Ugo quanto Corrado. O jogo erótico do cômodo, na verdade, é
um campo de batalha. Podemos nos aproximar da peça “Entre quatro paredes”, onde “o
inferno são os outros”. É o que ocorre aqui, transformando o cômodo num “deserto
vermelho”, isto é, um lugar árido, hostil e mortal. E Giuliana se torna uma vítima na
cova dos leões, pois ela não sabe jogar, sendo alvo de pilhéria. Os personagens sabem
que estão num inferno, e quando Corrado começa a quebrar o cômodo, as mulheres se
divertem e o ajudam. Vemos aqui duas ações distintas. Corrado, que não se sente à
vontade no jogo (devido à presença de Giuliana como vítima), inicia um ato de revolta
àquele lugar, isto é, àquela condição agonística entre todos na cabana. As mulheres o
ajudam a quebrar como um divertimento. O prazer sensual ocorrido no cômodo se
prolonga no prazer de destruí-lo. A ação lúdica erótica se desenrola na destruição lúdica.
Trata-se, portanto, de uma ação ambígua, pois elas destroem aquilo que anteriormente
lhes agradava. Tanto a revolta de Corrado quanto o prazer das mulheres são
manifestações de um descontentamento com a condição geral. Porém, é um ato
impotente. Giuliana ajuda a destruir, divertindo-se como as outras mulheres, mas
quando troca um olhar com Corrado, ela se envergonha. Percebe que o ato de Corrado é
distinto das mulheres, e ela se sente perdida frente àquele olhar. Ela foi desaprovada por
sua conduta, o que a perturba. E isto chega ao ápice quando aparece o navio, perdido na
neblina (como um elemento misterioso e silencioso), que deixa todos inquietos na
cabana. O fato de o navio aparecer de forma tão quieta os perturba mais ainda. Porém,
Giuliana afirma que havia escutado anteriormente um apito de navio, confirmando a
narração de Linda (Xênia Valdri). Esta, posteriormente, nega ter ouvido, reforçando
Giuliana na situação incômoda de mulher perturbada. Aqui vemos que todos os
personagens são confusos, porém Giuliana catalisa esta tensão emocional. Por isso ela
corre apavorada da cabana e se tranca no carro, quase provocando um acidente.

Na abertura do filme, esta relação de Giuliana com o Outro, aparece quando


ela compra o sanduíche de um operário na porta da fábrica. Como a personagem está
sendo apresentada, vemos que se trata de uma pessoa nervosa. Ela compra com pressa o
sanduíche, mesmo já estando mordido. Ela se sente atraída por um objeto do Outro,
mas, sendo alguém insegura, ela não pode ficar muito tempo diante dele. Ela deve
ameaçar o Outro de forma súbita, pois não possui muita força para manter o conflito.
Por outro lado, ela faz do sanduíche uma ponte para o seu filho. Ela o oferece, tentando
64

realizar uma ligação com aquela criança que ela carrega. Porém, Valério recusa o
sanduíche. Giuliana, portanto, se esconde para comê-lo, e quando o seu filho se
aproxima, ela o guarda no sobretudo. Vemos uma pessoa acuada, assustada diante do
olhar do Outro (está ocorrendo um movimento sindical na fábrica). Com todas aquelas
pessoas e rejeitada pelo filho, ela come o sanduíche, longe do olhar alheio. Giuliana não
é dotada o suficiente para enfrentar este olhar. Esta cena já é um anúncio das relações
afetivas turbulentas que serão abordadas no filme, pois, ela come o sanduíche (já
mordido pelo Outro) como um ato proibido. O sanduíche possui uma conotação erótica,
e esta atitude nervosa e assustada de Giuliana, já anuncia o seu affair com Corrado,
tanto que quando são apresentados na fábrica, há um longo plano/contra-plano dos dois
se olhando. Desde que se conhecem, Giuliana e Corrado se sentem atraídos.

Por que ocorre tal atração? Giuliana vê em Corrado, um homem distinto de


Ugo. Ela não agüenta o seu papel de dona de casa, sendo uma mulher infeliz e uma mãe
fria. O fato de Corrado ser um homem frágil mas afetuoso cria uma identificação por
parte de Giuliana. Porém, ela tem medo de se arriscar afetivamente numa relação extra-
conjugal. Por isso Giuliana, num determinado momento, tenta rejeitar Corrado. Assim,
como a garota da fábula se sente atraída pelo navio (o elemento que perturba), Giuliana
possui desejo misturado com repulsa em relação a Corrado. Vemos aqui, que o Outro
me ameaça, mas também é algo necessário para mim.

Corrado, por sua vez, é um homem contraditório, pois o seu trabalho nega a
sua condição existencial. Sendo um engenheiro, ele ajuda a construir aquele mundo que
o esmaga. A patologia de Giuliana é um sintoma daquele mundo, se associando ao ser
ambíguo que é Corrado. É por isso que ele se apaixona por aquela mulher neurótica,
pois ele reconhece a sua fragilidade na doença dela, ou seja, ela é uma pessoa
semelhante a ele. A Patagônia é o lugar de fuga para Corrado. Nesta seqüência ocorre
um exemplo de Má-Fé. Ele fala aos trabalhadores de como será na Patagônia. Porém,
quando começam as perguntas concretas (“Como serão os alojamentos? Como
receberemos? Quando podemos mandar vir nossas mulheres?”), Corrado fica calado,
como se convertesse numa coisa. Porém, ele lança o seu olhar aos trabalhadores,
encarando-os como algo do ambiente (tanto que as perguntas são em off). Isto ocorre
pois se trata de duas Patagônias. Corrado pensa num lugar ideal, enquanto que os
trabalhadores a encaram como um ambiente concreto de trabalho. É por isso que ele
65

recua diante desse massacre de perguntas. Ele olha de forma vazia, com planos das
paredes, das formas geométricas, das pessoas. Temos uma sensação de gratuidade, pois
as paredes, as pessoas, ou seja, aquela apresentação é algo absurdo, sem sentido.
Corrado percebe que sua Patagônia não existe, é um lugar utópico. No plano seguinte,
ele está sozinho num depósito, cabisbaixo. Ele está desiludido, pois não existe fuga. É, a
partir desse momento, que ele vai investir em sua relação com Giuliana, quando ela vai
procurá-lo. A Patagônia que ele procura não é um lugar, mas uma forma de agir em seu
próprio mundo. E será com Giuliana, que ele começará a mudar o seu comportamento.
Mas, ele ainda está procurando uma Patagônia...

O filme não trabalha somente com cores. O som é muito bem utilizado, com a
música eletrônica composta por Vittorio Gelmetti. A seqüência de abertura é
impactante. Os planos da fábrica, com suas cores avermelhadas e esmaecidas, com a
música eletrônica e o canto feminino apresentam o tom do filme. De início, o ambiente
lúgubre e o uso de música já apresenta a escolha estética do cineasta. E serão nos
diálogos entre Giuliana e Corrado que estes dois elementos (cor e música) serão melhor
utilizados.

São três importantes diálogos com os dois sozinhos. O primeiro (aos 19


minutos de filme), numa casa vazia, onde os dois se conhecem melhor, e Giuliana fala
ter estado internada. Daí, vão para um apartamento em Ferrara, onde Giuliana narra com
detalhes a sua internação. Nos outros diálogos, os personagens já são mais íntimos, e
ocorrem após Ugo ter viajado. É Giuliana quem toma a iniciativa de ver Corrado. O
segundo diálogo ocorre no convés do navio, quando se dá a confissão da tentativa de
suicídio. O último diálogo é o momento mais dramático do filme. Perturbada com a
falsa doença do filho, Giuliana procura Corrado em seu apartamento. Afirma que jamais
estará curada e que tem medo. Por iniciativa de Corrado, fazem amor. Giuliana tenta
fugir mas Corrado a leva para a casa do primeiro diálogo. Aqui, já com o adultério
consumado, Giuliana se sente culpada por sua infidelidade e diz que Corrado não a
conseguiu ajudar. Corrado sai, abandonando-a.

Os enquadramentos captam o dilema existencial dos personagens. A rua onde


fica a casa vazia é estreita, com os personagens costeando as paredes. Isto será um ato
costumeiro de Giuliana. Na casa, quando ela se aproxima das paredes, aloja-se nos
66

cantos. Ela busca um apoio, demonstrando insegurança. É um ato ambíguo, pois as


paredes também a esmagam. O contraste das cores é essencial. Giuliana usa cores
escuras, enquanto as paredes são claras. Porém, não é um contraste radical, pois as
paredes possuem uma cor esmaecida e Mônica Vitti possui o cabelo castanho claro. Isto
demonstra que não há muita diferença entre a personagem e o cenário. Apesar do
contraste, é como se ambos estivessem no mesmo plano, colados. Isto dá uma sensação
visual de falta de nitidez, que aparece em vários momentos do filme. Ocorre um clima
angustiante às imagens. Importante ressaltar que Giuliana, em geral, sempre está nos
cantos da tela (sobretudo esquerdo). Ela é enquadrada dentro do cenário, mas
dificilmente no centro. Há uma valorização do fundo sobre a personagem. Em dois
momentos importantes, ela se encontra no centro. No apartamento em Ferrara, quando
narra o diagnóstico médico: falta de apoio. O outro, quando vai ao apartamento de
Corrado. O prédio é todo branco, de um tom bem forte (distinto de todas as cores no
filme). Num plano, vemos um longo corredor branco com Giuliana caminhando em
direção a Corrado. Os personagens estão no centro do quadro. Este plano remete à rua
estreita do primeiro diálogo. O cenário os esmaga. No plano do corredor, isto é muito
mais ilustrativo, pois a assepsia do branco contrasta com as roupas escuras dos
personagens, que estão no fim do corredor, pequenos. O fato de a câmera estar fixa cria
esta visão assustadora do corredor.

O último diálogo é o clímax de toda a obra. As cores são magistralmente


utilizadas, e os sons eletrônicos aparecem durante toda a cena. Após o forte branco, a
parede interna do apartamento é escura (cor de madeira). Giuliana diz ter frio, e tira o
sobretudo (posteriormente tira o casaco). Aqui, ela está extremamente perturbada e
Corrado, com seu ar sempre apático, se torna um pólo oposto. Porém, são dois aspectos
da mesma condição. Giuliana pergunta se ele a ama e questiona por que dependemos
dos outros. Depois, aparece uma parede clara, e ela se encosta nela, afirmando querer
todos próximos como um muro. Ela se abaixa na poltrona e diz que nunca estará curada.
Ela pega um mapa (da América do Sul) e afirma que deve existir um lugar melhor.
Lembremos que Corrado irá viajar para a Patagônia, e Giuliana tem medo de perdê-lo. O
diálogo é praticamente um monólogo, pois Corrado praticamente confirma as perguntas
de sua interlocutora. Aqui não há diferença entre a doença de Giuliana e a aparente
normalidade de Corrado. Ambos padecem do mesmo mal. Ela se enrola na lençol e
67

depois pede ajuda a Corrado, pois ela têm medo (“medo de tudo”). Corrado a abraça e
começa beijá-la. Durante toda a relação amorosa, os personagens se esfregam
sofregamente, sendo difícil reconhecê-los. O ambiente vai ficando cada vez mais escuro
e na cena de amor, a câmera está tão próxima que os personagens se tornam
indistinguíveis. Os seus corpos tomam toda a tela, como se fossem um cenário. Durante
várias passagens, Giuliana aparece nos cantos do quadro. Aqui, ela é o quadro inteiro.
Ou ela foge do centro ou desfaz a sua nitidez. Isto demonstra a falta de harmonia, de
plenitude da personagem. Por isso o centro, o lugar fixo, é algo que lhe escapa. Durante
todo o filme, a câmera não interage com os personagens. Ela os observa, como um olhar
distante. O único momento é a cena de amor, em que ela avança sobre os dois,
invadindo sua relação. Ela está em cima deles, se esfregando em seus corpos. Mas esta
invasão não deixa de ser um olhar severo e profundo sobre as ações dos personagens.
Após a relação, o escuro do quarto contrasta com as paredes claras da casa vazia. Aqui,
ela diz que existe algo de horrível na realidade, mas não sabe o que é. Esperava que
alguém a ajudasse e acusa Corrado de não tê-lo feito. Corrado, melancólico, sai da casa,
indo embora. A seqüência seguinte é a do marinheiro. Isto, lembremos, com o uso dos
ruídos eletrônicos. Esta seqüência (o do diálogo) utiliza a música e o contraste entre as
cores.

Na última seqüência, Giuliana está com Valério na fábrica, como no começo


do filme. Ela não se curou, pois continua a mesma. Seu filho pergunta o que é a fumaça
amarela que sai das chaminés. Ela diz ser veneno, o que faz o garoto perguntar por que
os pássaros não voam ali. Giuliana responde que eles já sabem que a fumaça é tóxica.
Portanto, é possível uma adaptabilidade a este mundo industrial e hostil. É um fim
otimista? Bom, isso vemos em como é tratado o garoto. O seu quarto é repleto de
brinquedos eletrônicos, como um robô que aparece numa cena. Vemos que ele possui
uma intimidade com este mundo industrial, e provavelmente, quando adulto será
diferente de seus pais. Trata-se apenas de uma questão de adaptabilidade. O próprio
Antonioni afirma isto, apesar de problematizar a questão, tendo uma atitude esperançosa
em relação ao garoto.20 Porém, este otimismo contrasta com a doença (paralisia nas

20
Na citada entrevista, Antonioni diz: “Je tiens à souligner que ce n’est pas le milieu qui fait naître la
crise: il a fait seulement éclater.(...)
Jean-Luc Godard: - Mais cette beauté du monde moderne n’est-elle pas aussi la résolution des difficultés
psychologiques des personnages, n’en montre-t-elle pas la vanité?
68

pernas) que o garoto finge ter. Vemos que ele está tão perdido quanto seus pais.
Portanto, não se trata de uma mera questão de adaptação. É um mal-estar inerente à
condição humana. Não é um fator patológico ou psicológico, mas de um elemento
ontológico!

Antonioni: - On ne doit pas sous-estimer le drame de ces hommes ainsi conditionnés. Sans drame, il n’y a
pas d’hommes non plus, peut-être. Je ne crois pas non plus la beauté du monde moderne puisse résoudre à
elle nos drames. Je crois, par contre, qu’une fois adaptés aux nouvelles techniques de vie, nous trouverons
peut-être de nouvelles solutions à nos problèmes.
Mais porquoi me faites-vous parler de ces choses-là? Je ne suis pas un philosophe, et tous ces
raisonnements n’ont rien à voir avec l’ «invention» d’un film.» Idem, p. 13.
69

PARTE II - OS VALORES
70

Capítulo 1 - A Deliberação Moral

O homem experimenta uma condição ambígua, por ser sujeito e objeto ao


mesmo tempo. É uma consciência que desvenda o mundo e, simultaneamente, uma
coisa entre as coisas do mundo. Várias filosofias tentaram escamotear tal dualidade,
reduzindo o espírito à matéria, ou integrar a matéria ao espírito, ou confundi-los no seio
de uma substância única. Negaram a morte, integrando-a à vida, prometendo a
imortalidade, ou negaram a vida, considerando-a como uma mera ilusão. O
existencialismo é uma filosofia da ambigüidade, afirmando os dois aspectos da condição
humana. Este pensamento floresceu no século, onde os homens mais experimentaram o
paradoxo de sua existência. Uma época nascida pela “morte de Deus”, que via com bons
olhos a soberania humana. Porém, as “boas novas” prometidas pela ciência e tecnologia
foram abaladas, quando os homens de bigode do século XIX inauguraram uma nova era
nas lamacentas trincheiras de uma guerra mundial. A elegância e o brilho daquele
mundo civilizado foram revirados pelo horror de uma carnificina desmesurada.
Contudo, isto foi apenas o início. Enquanto surgia a produção em série, homens
pregavam um extermínio em grande escala. Atônitos, viam as suas esperanças serem
afundadas num mar de sangue, executado por uma ira fria e cínica. O otimismo dos
nossos antepassados caiu por terra ao revelar o potencial humano de destruir o planeta.
Tornou-se inevitável, segundo os existencialistas, a necessidade de assumir a sua
ambigüidade fundamental.

Ontologicamente, o homem é o ser que se faz carência de ser a fim de que


haja ser. O que nos condiz é um “fracasso” de ser. Muitos detratores do pensamento
existencialista viram neste malogro a impossibilidade de qualquer moral. É justamente
por esta carência de ser, que se torna necessário o surgimento de uma moral, uma forma
de orientar as ações humanas. Se o homem coincidisse plenamente com o seu ser, não
haveria sentido num valor moral. Até os filósofos otimistas partem desse pressuposto,
porém escamoteando o “fracasso” ontológico humano. Como afirma Simone de
Beauvoir: “Não se propõe moral a um Deus”. Assim, a lei moral não pode ser algo que
condicione o ser de um homem. Ou seja, a lei moral não pode ser como uma lei da
natureza, um aspecto empírico ou psicológico.
71

Sartre afirma que o “homem é uma paixão inútil”. Assim, criticou-se o


existencialismo por pregar um tragicismo inevitável, mergulhando o homem no
desespero e no niilismo. O termo “inútil” aqui empregado não significa que a vida
humana é vã. A nossa existência original está aquém do útil e do inútil. Isto só deverá
ter sentido através dos projetos humanos. Significa, portanto, que não pode haver um
critério exterior à existência humana para avaliar o homem. A sua carência de ser faz
com que o mundo seja desvelado à consciência. A “paixão inútil” é este impulso em
direção ao ser, fazendo do homem um elemento ativo. A passividade é ontologicamente
impossível. E o malogro deste ato faz com que o homem se torne presente ao mundo e
ao mundo presente. Para atingir a sua verdade, o homem não deve tentar desfazer a
ambigüidade de seu ser, mas, ao contrário, concordar realizá-la: ele não se alcança senão
na medida em que aceita permanecer à distância de si mesmo. Assim, a ação
existencialista é semelhante à redução husserliana: o homem deve colocar “entre
parênteses” a sua vontade de ser e reconduzir-se à consciência de sua verdadeira
condição. Da mesma forma que a fenomenologia nos previne do dogmatismo, o
existencialismo ( que não nega nossos desejos, projetos e paixões) nos previne de
colocar como absolutos os fins que a nossa liberdade projetou.

Assim, é somente através da existência humana que faz surgir no mundo os


valores a partir dos quais se poderá julgar os empreendimentos nos quais se engajará.
Isto não significa que vivemos no “melhor dos mundos possíveis”, conforme o
otimismo eloqüente de Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), ou que “viver é sofrer”,
segundo o negro pessimismo de Arthur Schopenhauer (1788-1860). Para Sartre, a nossa
existência é uma pura contingência, não havendo razão para existirmos ou não
existirmos. O fato da existência não pode ser avaliado, pois é por este fato que parte
qualquer princípio de avaliação, não podendo ser comparado com nada que esteja fora
dele. Assim, para sermos otimistas ou pessimistas em relação à existência humana,
devemos estar fora dela para que possamos compará-la com outra coisa. O homem
existe. Não devemos, portanto, nos indagar da utilidade da existência, se a vida vale a
pena ser vivida. O que devemos nos perguntar é se desejamos viver e em que condições.

Chegamos à soberania da liberdade humana. Não havendo nenhum


fundamento fora da nossa existência, isto nos torna a única fonte de nossos atos e
valores morais. Não existe nenhuma tábua das leis no firmamento celeste. Cabe somente
72

ao homem realizar este código moral. O homem carrega em seu íntimo a


responsabilidade de um mundo que não é obra de uma força exterior, mas dele mesmo,
e no qual inscreve seus fracassos e suas vitórias.

Porém, isto não seria cair num solipsismo? Ora, lembremos que a liberdade
não é uma abstração vaga, mas algo que está intrinsecamente ligado ao mundo. Toda
liberdade está em situação, portanto, para o existencialismo este homem não é
impessoal, mas é a pluralidade de homens concretos, singulares, projetando-se em
direção aos seus fins próprios, a partir de situações tão singulares quanto a sua
subjetividade. Encontramos um dos pontos mais delicados do existencialismo: se os
homens, originalmente, se encontram separados, como então se reúnem?

Toda deliberação moral, por mais pessoal que seja, possui um elemento de
universalidade. E este é a liberdade. O que Sartre chama de escolha autêntica (o inverso
da Má-fé) é uma escolha que afirma a liberdade. Esta é a única fonte de onde surgem
todas as significações e todos os valores, é a condição original de qualquer justificação
da existência. “O homem que procura justificar a sua vida deve desejar antes de tudo e
absolutamente a própria liberdade: ao mesmo tempo que exige a realização de fins
concretos, de projetos singulares, ela se impõe universalmente. Não é um valor
totalmente constituído, que se proporia de fora à minha adesão abstrata, mas surge (não
no plano da facticidade, mas no plano moral) como causa de si: é exigido
necessariamente pelos valores que coloca e através dos quais se coloca, porque, ao
recusar-se, recusaria a possibilidade de qualquer fundamento” escreve de Beauvoir.

O ato moral, portanto, é querer-se livre. Como posso querer ser livre, se já sou
uma liberdade? O ato moral é um desejo de libertação. É uma afirmação da liberdade,
ou seja, eu assumo aquilo que me constitui (que não é uma essência ou natureza). A
minha liberdade está em situação, fazendo do mundo um obstáculo necessário à minha
ação. A liberdade somente possui sentido numa ação concreta. Contudo, a minha
liberdade não é limitada pelas coisas do mundo, como as pedras ou o céu. Somente, pela
ação de outros homens ocorre tal limitação. Assim, cada um depende dos outros e o que
acontece através dos outros depende de mim quanto ao seu sentido. É possível, portanto,
que haja uma situação de opressão: quando certos homens negam aos outros homens o
desejo de um futuro aberto. Os oprimidos não deixam de ser livres em sua constituição
73

ontológica. Os opressores, através da má-fé, simulam um quadro, tornando os oprimidos


ignorantes de sua própria condição e do fato de serem livres. O projeto dos opressores
obliteram certos possíveis do projeto dos oprimidos. Isto é possível, pois a condição
histórica é naturalizada. Assim, o proletário encara a fábrica como um objeto do mundo,
como uma montanha, e não como um produto de um projeto humano.

O ato moral é uma afirmação da liberdade, e manifestá-la é querê-la por toda


a humanidade. Eu somente sou livre, ou seja, realizo a minha autenticidade, ao desejar
indefinidamente a liberdade de todos. Portanto, a causa da liberdade não é unicamente
minha, mas universalmente humana. A opressão é um ato humano e, portanto, posso
recusá-la ou aceitá-la. Se eu me abstenho de reconhecer tal situação, torno-me cúmplice
da exploração dos meus semelhantes. Assim, tenho que revelar aos meus semelhantes a
sua condição, e que é possível recusá-la.1

Portanto, todo projeto provém de uma escolha, que somente é possível através
da liberdade. E esta somente existe pelos atos concretos, que estão encerrados num
mundo de possibilidades. Portanto, não posso agir fora desses possíveis, senão a minha
ação será vazia e sustentada por um idealismo abstrato. Não posso contar que as
gerações futuras prossigam a minha luta, fundamentando-me na bondade humana ou na
convicção do homem em empreender o bem-estar geral, pois o homem é livre e não
existe natureza humana na qual possa me apoiar. Isto não acarreta um pessimismo,
muito pelo contrário, pois se o homem é o que faz, isto me impele a agir no mundo
concreto no qual estou situado. Se eu ajo embasado no amanhã, isto é má-fé, pois seria
uma fuga das possibilidades, lançando para os homens do futuro uma responsabilidade
que é minha. Se um revolucionário, no fim de sua vida, vê que os seus objetivos não
foram alcançados, isso não significa um castigo trágico, mas um exemplo de orgulho,
pois, apesar das adversidades, o seu projeto foi assumido autenticamente. Assim, a
responsabilidade de meu projeto é somente minha e é necessário assumi-la, agindo,
mesmo que eu fosse o único revolucionário sobre a face da terra. Este comprometimento
moral da condição do projeto se chama engajamento.

1
Na Parte seguinte estudaremos o paradoxo moral que tanto intriga Sartre: a Revolução.
74

Porém, é possível ter vários tipos de relacionamento com os valores morais.


Estudaremos doravante uma classificação realizada por Simone de Beauvoir destas
diversas formas do agir moral.2

Primeiramente, ela descreve o contato que possuímos com o mundo humano e


a nossa relação com a moralidade. A criança nasce num mundo feito sem ela, construído
por outros homens. Ela não possui controle sobre o mundo, encarando as instituições
humanas como naturalizadas, eternas e acabadas. É permitido a ela o espaço lúdico,
experimentando fins que ela própria colocou, sob uma feliz tranqüilidade, pois o
“mundo sério” é aquele dos adultos.

Aos poucos, ela começa a questionar as condutas que seus pais impõem. Nota
que os valores morais não são mandamentos celestiais e que os adultos já não são mais
seres divinos. Compreende que cabe somente à sua subjetividade, o ato moral e se vê
obrigada a assumir isto. É por isso que a adolescência, em geral, é um período
turbulento e difícil, pois é quando um mundo pleno e perfeito desmorona, cabendo,
somente ao adolescente sozinho, construir um outro. É neste período que se molda o
caráter moral do indivíduo, o que não significa que não possa mudar ao correr da vida.

Porém, este ato de assumir o aspecto subjetivo do agir moral pode ser
escamoteado, surgindo várias condutas de má-fé. Assistimos, assim, a um quadro de
variedade da conduta humana.

Se é possível designar uma hierarquia, no nível mais baixo estaria o


subhomem. Ao se ver diante da carência de ser que o constitui, o subhomem se afasta,
não querendo assumir a sua existência. O que o caracteriza é a apatia, causada por um
medo fundamental diante do campo existencial, dos seus riscos e da tensão que este
implica. Os seus atos jamais são coerentes, somente fugas. Vê o mundo como algo
insignificante e apagado, despojando-se de algum sentido para viver. O seu sonho seria
converter-se num puro fato, como uma pedra. Porém, isto é impossível, pois vê-se que é
o responsável por si no momento em que é censurado pelo outro de não se querer. Nota
que a sua recusa de existir é uma forma de existir: “Ninguém pode conhecer vivo a paz
do túmulo”, escreve de Beauvoir.

2
“Moral da ambigüidade” (Pour une morale de l’ambiguïté) trad. Ana Maria de Vasconcellos. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1970 (o original é de 1947).
75

Ao se ver que possui uma existência, ocorre uma fuga para os valores
estabelecidos. É o homem sério que age segundo o espírito de seriedade. Este se desfaz
de sua liberdade, tomando os valores como incondicionados; transformando os fins em
absolutos. Assim, em cada ocasião, o homem sério deve renegar a sua liberdade,
garantindo a sacralidade incontestável de seus valores. É uma prática de má-fé muito
comum pelo fato de todos nós termos sidos crianças. O homem sério é uma pessoa
extremamente perigosa, pois como cai no fanatismo, tende a se tornar um tirano,
esmagando seus semelhantes em detrimento da Moral. Deve, acima de tudo, resguardar
os valores, principalmente, pela violência. É inconcebível que haja outros valores
porque os seus são os únicos e verdadeiros. Portanto, tudo no mundo lhe parece como
ameaça. E é justamente através deste olhar paranóico, que o homem sério vê o fracasso
de seu ato. Como as coisas são ameaçadoras, sente que a vida é algo absurda, e percebe
que procurou fora de si as justificações de seus atos.

Assim, ao experimentar o absurdo, tudo aparece arbitrário. Os valores


despencam como um castelo de cartas. Surge, então, o niilista. É o inverso do homem
sério, no sentido de que os valores são todos vazios. Ele decide nada ser. Assim, se
aproxima da seriedade, tomando a negatividade como um absoluto. É um sério
decepcionado e voltado sobre si mesmo. Ele recusa todos os valores sociais porém não
afirma nada em seu lugar. Simplesmente deseja recusar, se assemelhando ao subhomem,
porém, diferente deste, o recuo do niilista é posterior ao se lançar ao mundo. O niilista
sabe que existe, e se decepciona por isso. Portanto, destila um desprezo à sua condição
existencial, desprezando assim, toda a humanidade. O seu ideal é desfazer a sua
existência, para livrar-se de sua liberdade tão incômoda. Porém, isto é impossível. O
niilista experimenta a ambigüidade da condição humana, mas de forma errônea: o
homem não é uma existência definida por uma carência, mas é uma carência no seio da
existência.

Há, porém, o homem que se lança ardorosamente à ação, não se prendendo ao


fim visado. É o aventureiro. Assemelha-se à escolha autenticamente moral, contudo
existe um ato de má-fé nele. Se o existencialismo não exigisse a responsabilidade junto
com a liberdade, o aventureiro seria o herói existencialista. Seria o sonho almejado
pelos jovens burgueses que pensavam em encontrar em Sartre o seu novo mestre. O
76

aventureiro não se prende às coisas, os seus empreendimentos são independentes de


êxito ou fracasso. Nisto ele é autêntico. Todavia, dificilmente o espírito de aventura
aparece puro. Ao contestar os valores reconhecidos, o aventureiro, na verdade, apenas
joga com os valores conforme os seus interesses particulares. É o que ocorre atualmente,
ao vermos pessoas que apoiavam a ditadura militar, proclamando-se como verdadeiros
democratas. Assim, o aventureiro se converte num sério, pois toma o arrivismo como
prioridade básica de seus atos. Há um absoluto por trás destes.

Porém, mesmo que o aventureiro se afirmasse de forma pura, o seu esforço


seria malogrado. O projeto aventureiro é completamente subjetivo, tornando-se abstrato.
Ele quer afirmar a sua existência solitariamente. O aventureiro se caracteriza por sua
indiferença ao conteúdo humano de seus atos; afirmando-se, desconsiderando a
existência de outrem. Assume positivamente a sua subjetividade, porém, age de má-fé,
recusando-se a reconhecer que a sua transcendência se dirige aos outros.

É possível inverter tal aspecto, caindo num novo tipo de má-fé. É o


apaixonado. Este é a antítese do aventureiro, pois a subjetividade é fracassada diante do
conteúdo. Coloca o objeto como um absoluto, não como o sério, como uma coisa
desligada de si, mas desvendada por sua subjetividade. A paixão almeja perseguir os
seus fins, que ele reconhece que colocou, como uma missão sagrada a seguir.
Inicialmente se trata de uma conduta autêntica, porém se degrada ao tornar-se uma
necessidade, cessando de ser escolhida. Uma paixão pode se transformar numa
seriedade e vice-versa. Existem gradações entre as duas condutas.

O ato autenticamente moral, que caracteriza o homem livre, é o que toma os


valores, reconhecendo a sua subjetividade, segundo o âmbito da situação. Sendo
independente quanto ao fim perseguido por seu projeto, o homem livre destina o futuro
como aberto, procurando prolongar-se pela liberdade de outrem. Reconhece que sua
liberdade está intrinsecamente ligada com a de outros homens, sendo necessário
respeitar a liberdade alheia e ajudar a libertar. Não foge do mundo, buscando alhures
justificativas às suas ações. A sua liberdade se projeta através da realidade, de um
conteúdo no qual a liberdade fundamente o valor. Reconhece a impossibilidade de um
agir solitário, pois a consciência desvenda o ser, e o mundo que ela revela está sobre o
fundo de mundo revelado pelos outros homens. Para que haja o “meu mundo”,
77

comunico-me com o projeto dos outros. Portanto, o homem encontra na existência dos
outros homens uma justificação de sua própria existência. O ato moral é querer-se livre,
o que também significa querer livres os outros. A relação eu-outro é indissolúvel.

Lembremos que o que motiva a deliberação moral é a ambigüidade da


condição humana. Porém, é necessário não confundir a noção de ambigüidade com a de
absurdo. Ao afirmarmos que a condição humana é ambígua, isto significa que o sentido
não está jamais fixado, está sempre constantemente sendo criado. O absurdo renega
qualquer tipo de sentido, afirmando a impossibilidade de criar um.

Aqui encontramos uma diferença entre Sartre e Albert Camus (1913-1960).


Este último vê na “morte de Deus” a soberania do Absurdo que massacra o homem
moderno. O suicídio é “o único problema filosófico verdadeiramente sério”, pois todas
as outras questões (a Verdade, o Bem, etc.) vêm posteriormente, ao se resolver o dilema
se a vida vale à pena ou não ser vivida. O suicídio é uma forma de se resolver o absurdo,
pois ele impõe um valor radical, que é o de não viver. Porém, o problema do absurdo
não pode ser resolvido, ele deve ser assumido. Portanto, a única forma sincera de se
lidar com a absurdidade não é através do suicídio, mas viver na Revolta.

Contudo, devemos saber o que é o Absurdo para Camus. Em Kafka, vemos


personagens que se esbarram num mundo cujos signos remetem a um significado
transcendente mas inatingível. O sentido do mundo é incognoscível em termos
humanos. Em Camus, os personagens circulam num mundo povoado de signos que não
remetem a nada. Estão simplesmente aí, sem nenhuma razão para tal. Assim, ele vê o
mundo como que “através de um vidro”, ou seja, retirando o significado das coisas,
descrevendo simplesmente. Por isso que atos tão díspares são similares, seja o enterro
da mãe, um domingo de ócio no apartamento ou assassinar um árabe na praia. Os seus
personagens possuem uma passividade assustadora - antes de entrarem na Revolta - pois
todos os atos são iguais. Diferente de Kafka, cujos personagens sofrem uma angústia
lancinante, pois eles buscam em algum lugar o sentido de seus atos. O escritor tcheco é
“kierkegaardiano”, ou seja, Deus existe porém Ele é inacessível, obscuro e imprevisível,
enquanto que Camus experimenta um ateísmo pulsante, vendo o homem caído num
mundo sem Deus, entregue à sua própria sorte.
78

A Náusea sartreana é a experiência do Absurdo, que é assumido e


transcendido. Para Camus, como já vimos, somente através da Revolta. O absurdo
camusiano provem do combate íntimo entre o homem e a irracionalidade do mundo,
enquanto que o absurdo sartreano é a contingência do ser o que é, a sua base
fundamental. Sartre afirma que o absurdo de Camus é herdeiro do pensamento clássico,
relacionado com o escândalo e a desilusão. O seu absurdo, por outro lado, é a qualidade
primordial e injustificável da existência. Aqui esbarramos em divergências ideológicas
entre ambos. O rompimento da relação Sartre-Camus se deu em 1951, na ocasião da
publicação do ensaio “O homem revoltado” (L’homme révolté) do escritor franco-
argelino, que esperava uma crítica favorável de Les Temps Modernes, revista de Sartre,
o que não ocorreu. Camus criticou publicamente tal atitude e Sartre respondeu de forma
virulenta, enveredando para o lado pessoal. Na verdade, tal fato foi apenas o clímax de
uma onda de discordâncias que já estava ocorrendo previamente. Não se trata de uma
batalha campal na fogueira das vaidades entre dois escritores franceses mundialmente
famosos, como apresentam os simplistas. Devemos entender a situação político-
ideológica daquela ocasião, sobre os problemas na URSS. Dentro de Les Temps
Modernes sobressaiu a corrente liderada por Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) e
apoiada por Sartre em denunciar as violências da política soviética, mas sem cair no
anticomunismo, o que seria favorecer os defensores burgueses. Para Camus, a denúncia
deveria ser mais radical, ir mais fundo nos crimes do stalinismo. Sartre buscava uma
articulação complexa entre a moral e a política, e se era necessário denunciar os
soviéticos, deveria também criticar os crimes cometidos pelos norte-americanos.
Procurava um pragmatismo ético, enquanto Camus denunciava radicalmente a
violência, de qualquer tipo e não importa de onde venha. A Revolta é um ato de recusa,
é o ato de dizer “não” ao que a sociedade me exige.

Concordamos que estamos num momento complicado no pensamento de


Sartre (o que será resolvido posteriormente), porém, mais tarde, ele criará o conceito de
Bastardia. O intelectual nasce e cresce no meio burguês, mas deve trair a sua classe (o
seu berço), para se aproveitar dos meios que lhe são oferecidos pela sociedade
capitalista, para trazer à tona a voz do proletário. O novo intelectual que Sartre propõe
não é um líder que traz a Verdade das massas numa bandeja de prata, como um
“leninismo acadêmico”, mas um homem que utiliza o seu status (uma figura pública que
79

possui acesso aos meios de comunicação) para que transmita a opinião do proletário por
ele próprio. Cabe ao intelectual não interferir neste processo, sendo uma consciência
crítica do partido.3 Desde sempre, Sartre vinculava a deliberação moral com um ato
político, enquanto Camus critica a violência em termos gerais. Aqui, ele cai num
idealismo, encarando a violência como uma abstração, e não um ato realizado por
homens de carne e osso num mundo empírico. A Revolta é um ato puramente
metafísico. Rompe com o Absurdo (que impossibilita a formação de qualquer moral)
porém recorre a um recurso de abstração. A moral que Sartre propõe deve estar ligada a
uma ação concreta, não remetendo a um Deus transcendente ou a um Homem
transcendental. Assim, para entenderemos o rompimento Sartre-Camus é necessário
compreendermos as condições históricas da Guerra Fria, senão cairemos num idealismo
puro, esquecendo que as idéias nascem de homens que vivem no mundo.

Assim, a deliberação moral é um ato subjetivo, pois cabe somente ao


indivíduo. Porém, não se trata de um solipsismo pois o homem está no mundo com
outros homens e, para realizar o seu projeto, que é um ato concreto, vincula-se com os
outros. Os valores não se encontram fora do mundo, mas se formam a partir de ações
objetivas, de acordo com conjunturas específicas. A tábua de valores não se encontra
num lugar distante, mas no momento íntimo do agir. A moral, como a arte e a ciência,
não fornece receitas, propõe apenas métodos. Devemos, portanto, exemplificar, para que

3
Sartre encara o intelectual necessariamente como um burguês que deve negar a sua classe, Os
pensadores que se aliam à ideologia burguesa Sartre batiza de cães de guarda, termo criado por seu amigo
Paul Nizan (1905-1940). Para Antonio Gramsci (1891-1937), o intelectual orgânico são os pensadores de
sua própria classe e os intelectuais burgueses são criados para assegurar a coesão e a ideologia da
sociedade capitalista. Para Sartre, o intelectual é convocado entre os técnicos do saber prático
(professores, jornalistas, artistas, cientistas, juristas, diplomatas) pela própria burguesia, para se legitimar.
O intelectual vende a sua força de trabalho mental para a elite burguesa que o contrata para forjar-lhe um
pensamento; “Hoje em dia a coisa é clara: a indústria quer pôr a mão na universidade para obrigá-la a
abandonar o velho humanismo ultrapassado e a substituí-lo por disciplinas especializadas, destinadas a
dar às empresas técnicos (...)” in “Em defesa dos intelectuais” (Plaidoyer pour les intellectuels) trad.
Sergio Goes de Paula. São Paulo: Ática, 1994. pp 22-3. (Esse texto é originalmente o de três conferências
proferidas em Tóquio e Kyoto em setembro e outubro de 1965). Para Gramsci, o proletariado deve criar
os seus próprios pensadores, e isto ocorre através do partido (que é um intelectual coletivo) cujo papel
decisivo é uma pedagogia das massas e a formação de uma contracultura, visando a criação da hegemonia,
ou seja, a fundação de uma nova filosofia e civilização. O intelectual burguês é preparado em instituições
sociais (a escola, a universidade, a igreja) enquanto que o intelectual proletário se forma na prática
política (movimentos sociais, partidos, sindicatos). Vemos que o conceito de intelectual em Gramsci é
muito mais amplo do que em Sartre. O intelectual sartreano é um produto histórico que remete aos
filósofos do século XVIII. Após o estabelecimento do mundo burguês, surge o intelectual, em sua figura
dúbia, devido a sua condição pequeno-burguesa. Por isso , ele é um traidor. Ele é apenas um sinal da
contradição interna da ideologia burguesa, que busca conhecimentos e práticas universais que são
aplicados em interesse de uma classe particular.
80

não se trate apenas de uma fórmula abstrata que o existencialismo propõe. E para isso,
nada melhor que analisar as próprias palavras de Sartre.
81

Capítulo 2 - O Existencialismo é um Humanismo

O prometido livro de moral que se intitularia, inicialmente, L’Homme, Sartre


jamais terminou. Chegou a retomá-lo após a conciliação de seu pensamento com o
marxismo, porém, a sua pena impulsiva foi empregada para atender outros assuntos, que
deveriam ser pensados urgentemente.4 Estudaremos aqui um texto célebre que é uma
excelente síntese de seu pensamento, cujo caráter pedagógico (sem ser simplista) salta
aos olhos. Trata-se de “O existencialismo é um humanismo” (L’existentialisme est un
humanisme).

Este texto foi, originalmente, uma palestra realizada numa segunda-feira, dia
29 de outubro de 1945, no auditório das Centrais, organizada pelo clube Agora.
Existencialismo era a palavra da moda, e centenas de pessoas lotaram aquele auditório
abafado. Confusões na bilheteria, cadeiras quebradas e mulheres desmaiadas
contribuíram para a má fama de desregramento moral dos “existencialistas”. Aquela
juventude, diante de um mundo a ser reconstruído após anos de guerra e ocupação, que
se apinhava para ouvir a voz nervosa de um estrábico de 1,57 m de altura, jamais, em
sua maioria, se aventurara nas espessas páginas de “O Ser e o Nada”. Esta conferência
foi realizada para explicar o que era aquela palavra, que nem o próprio Sartre criara, mas
que, apesar de sua aversão a rótulos adotara. Ele era o homem que todos queriam ouvir e
sobre o assunto, todos já falavam, sem saber do que se tratava.

Inicialmente, Sartre se propõe a defender o existencialismo de diversas


críticas. Afirmam que ele incita as pessoas a permanecerem no imobilismo do
desespero; desembocando numa filosofia contemplativa. Acusam-no de exibir apenas o
lado sórdido do homem, não havendo condições para a solidariedade. Os comunistas o
criticam por ser um puro subjetivismo, acarretando uma solidão completa,
impossibilitando a união coletiva. Os cristãos acusam que sem Deus, os valores morais
são vazios, permitindo ao homem fazer o que quiser. A proposta de Sartre é responder a
estas acusações e afirma que “concebemos o existencialismo como uma doutrina que

4
Sartre escreveu cerca de duas mil páginas no pós-guerra, abandonando em 1949. Retoma em 1964,
porém não continuou para escrever a sua volumosa obra L‘ Idiote de la famille. Foi publicado,
82

torna a vida humana possível e que, por outro lado, declara que toda verdade e toda ação
implicam um meio e uma subjetividade”.

Essa série de críticas se deve a um grande mal-entendido, pelo fato de o


existencialismo se tornar uma palavra vazia, devido à sua vulgarização. As pessoas
ávidas de escândalo e de agitação, na ausência de alguma doutrina, como fora o
surrealismo, apropriaram-se do existencialismo para rotularem os seus hábitos. A
primeira coisa a fazer é definir esta palavra.

Contudo, o que complica mais ainda é que há dois tipos de existencialistas: os


cristãos, onde se encontra Karl Jaspers (1883-1969) e Gabriel Marcel (1889-1973); e os
ateus, que Sartre coloca Heidegger5 e a si próprio. O fato comum é que ambos partem da
premissa de que a existência precede a essência, ou que é necessário partir da
subjetividade. Sartre dá um exemplo do fabricante de corta-papel. Para criá-lo, o
fabricante deve saber para que servirá tal objeto e, portanto, neste caso, a essência do
corta-papel precede a sua existência. Assim, a visão técnica do mundo é essencialista.

Se concebermos um Deus criador, associamo-lO a um artífice superior.


Assim, o conceito de homem está no espírito de Deus antes de sua criação, assimilável
ao corta-papel no espírito industrial. O indivíduo concreto é a materialização de um
conceito que existe na inteligência divina. No século XVIII, os filósofos suprimiram a
noção de Deus, mas não eliminaram a idéia de que a essência precede a existência. O
homem possui uma natureza humana: esse conceito está presente em todos os homens,
em qualquer homem. Seja um cosmonauta russo da Guerra Fria, um cavaleiro inglês da
Terceira Cruzada ou um eunuco chinês da dinastia Qin, todos compartilham de um
conceito universal: o Homem. Assim, a essência do homem precede a sua existência
histórica sobre o mundo.

O existencialismo ateu de Sartre é mais coerente. Se Deus não existe, há pelo


menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser que não possa ser definido
previamente: este ser é o homem. Como isto ocorre? O homem, primeiramente, surge
no mundo e só posteriormente se define. Não é possível defini-lo anteriormente porque

postumamente, em 1983, o Cahiers pour une morale, com 583 páginas de textos escritos entre 1945 e
1948, incluindo textos incompletos.
83

ele não é nada, só será alguma coisa após ser aquilo que fizer de si mesmo. Ele é um
projeto que “se vive a si mesmo subjetivamente” e, antes desse projeto, não existe nada.
Ele é o que ele projetou ser, porém, não se trata de uma decisão consciente no sentido
vulgar. Portanto, cabe somente ao homem a responsabilidade por aquilo que é.

Contudo, esta responsabilidade não cabe somente à sua própria


individualidade, mas a todos os homens. Aqui esbarramos em dois sentidos da palavra
“subjetivismo”, e é com isso que os adversários utilizam. Primeiramente, significa uma
escolha individual. Por outro lado, significa a impossibilidade de se transpor os limites
da subjetividade humana. Esse segundo sentido, o mais profundo, que constitui o
existencialismo. Assim, quando o homem escolhe a si mesmo, ele escolhe todos os
homens. Em cada ato que realizamos, escolhemos um tipo de homem que queremos ser,
e assim, um modelo que julgamos o correto. Assim, moldamos uma imagem que é
válida para todos e para toda a nossa época. Isto se deve ao fato de que o valor que
escolhemos é sempre bom e “nada pode ser bom para nós sem ser para todos”.6 Até o
ato mais individual está comprometido com todos os homens. Ao decidir me casar, isto
depende do meu amor, da minha condição financeira, porém, ao trilhar a minha vida
para a vida matrimonial, estou engajando toda a humanidade numa instituição
monogâmica. Portanto, sou responsável por mim e por todos, pois a minha
responsabilidade engaja a humanidade inteira.

Porém, o existencialismo utiliza termos sombrios como angústia, desamparo,


desespero. Isto se deve a uma visão negativa da vida humana, afirmam os detratores.
Enganam-se, pois não compreendem o sentido que está por trás de tais palavras. Aliás,
quem dá sentido às palavras são os homens e, portanto, quem afirma que tais termos são
sombrios não é o existencialismo, mas a visão sombria de seus críticos. Portanto, iremos
definir o que são tais termos. “O homem é angústia”, declara o existencialista. Ora, se o
homem é o que escolhe ser, escolhendo simultaneamente a humanidade inteira, o

5
Heidegger recusou ser tratado como “existencialista”, e, em resposta a esta conferência escreveu, logo a
seguir, o artigo Carta sobre o humanismo.
6
Isto não significa que não haja espaço para o Mal no existencialismo. Para Sócrates (470/469-399 a.C.)
não existe o mal absoluto, pois escolho sempre aquilo que é bom, porém, há uma escala de bens. Após ver
que tal bem momentâneo acarreta um mal posterior, isto se deve à minha ignorância. O ato moral provém
do Saber. Para o existencialismo não se trata de uma relação epistemológica, mas de uma “paixão”. Eu
escolho tal valor porque eu escolho. Assim, abre espaço para o Mal, pois por um ato de Má-fé sobrepujo a
minha individualidade descolando-o de seu fundo universal. Também posso escolher o meu próprio mal,
84

sentimento de total e profunda responsabilidade gera a angústia. Porém, nem todos


sentem esta ansiedade devido a um mascaramento. É a Má-fé. Porém, mesmo
disfarçando, a angústia volta. Esse tipo de angústia é a que Kierkegaard chama de
“angústia de Abraão”. Lembremos do relato bíblico no qual Deus ordena a Abraão a
sacrificar seu filho Isaac. Ora, tratava-se de uma ordem divina e, por mais absurdo que
fosse, eu tenho que obedecer. Porém, quem decide o que devo obedecer é apenas a
minha subjetividade. Quem prova que se tratava de Deus Nosso Senhor? Seria a voz de
Lúcifer ou um devaneio causado pelo sol do deserto? Seria ele realmente Abraão?
Conta-se que quando Maomé (570-632) iniciou escutar vozes, ele pensou que estava
ficando louco, mas, na verdade, eram palavras vindas do anjo Gabriel! Portanto, cabe
somente a mim decidir o que fazer e até as manifestações de um Deus, sou eu quem as
interpreto. Desta forma, toda escolha individual implica um valor. A angústia não
conduz à inação, pelo contrário, até impele a tomar uma ação. Todos que tiveram algum
dia uma grande responsabilidade conhecem esse tipo de angústia, como é o caso dos
chefes militares de cujas ordens dependem a vida dos outros. Assim, a angústia não
impede a ação, mas é uma parte constitutiva desta.

O termo desamparo significa que Deus não existe e o existencialismo leva


este fato às últimas conseqüências. No final do século XIX, pensadores franceses
tentaram constituir uma moral laica, dispensando a noção de Deus, mas para que
houvesse uma moral eram necessários valores existentes a priori, como o próprio
conceito de Deus. Ora, o existencialismo afirma a impossibilidade de uma moral
preestabelecida, pois as situações são singulares. Portanto, os valores não pairam sobre a
minha cabeça, mas se constituem nas ações concretas. Isto se deve à ausência de Deus, e
este fato é extremamente incômodo ao existencialista. Ele não escamoteia o fato de que
Deus não existe como os moralistas do século XIX faziam. É a fórmula de Dostoievski:
“Se Deus não existisse, tudo seria permitido”. Escreve Sartre: “Eis o ponto de partida do
existencialismo”. Como tudo é permitido, o homem se encontra desamparado, pois ele
não encontra nada nele e nem fora dele em que se agarrar. Portanto, ele não possui
desculpas, pois, como não há natureza humana, não existe nada que o determine, sendo,
então, puramente livre. O homem é liberdade: estamos sós e sem desculpas. Por isso que
o homem está condenado a ser livre; condenado porque não se criou a si mesmo e livre,

pois, isso se dá ao tipo de projeto fundamental escolhido. Posso ter escolhido ver o mundo como um “vale
85

pois é responsável por tudo o que faz. Não existe a “paixão” como uma força
devastadora que impele o homem a agir de tal forma, como uma fatalidade. O homem é
responsável por sua paixão, e cabe somente a ele decifrar os sinais do mundo. Portanto,
o homem está condenado a inventar o homem a cada instante.

Sartre dá um exemplo de um dos seus alunos: o pai, que possuía tendências


colaboracionistas, estava brigado com a mãe e o seu irmão mais velho tinha morrido na
ofensiva alemã de 1940. O rapaz, imbuído de sentimentos generosos, encontrava-se num
dilema: partir para a Inglaterra e alistar-se nas Forças Franceses Livres, para vingar seu
irmão ou permanecer junto à sua mãe, já que era o único consolo dela, pois estava
perturbada pela semitraição do marido e pela morte do filho. Encontramos aqui duas
morais: uma da simpatia, mais individual e a outra, mais ampla mas de uma eficácia
mais contestável, pois poderia não chegar à Inglaterra. Como é possível escolher? Se eu
for um cristão sigo: seja caridoso, amai o próximo, sacrificai pelo seu semelhante? Ora,
quem é meu semelhante? Minha mãe ou o combatente que arrisca a sua vida para me
libertar? A moral kantiana diz: nunca trate os outros como um meio, mas como um fim.
Ora, se eu ficar junto da minha mãe, estarei tratando o combatente como um meio para a
libertação da França. E se eu me alistar, tratarei o combatente como um fim, mas
sacrifico a minha mãe, podendo estar tratando-a como um meio para me tornar um
combatente. Como decidir o que fazer? Como é possível haver um ato moral a priori ?
Isto é impossível, pois toda moral abstrata não dá conta dos casos particulares. Os seus
valores são vagos, pois são demasiado amplos, desconsiderando os casos concretos em
que vivemos. O “próximo”, “seu semelhante”, “fim” são termos vazios, descarnados,
portanto, inúteis.

O que nos resta é confiar em nosso instinto, ou seja, relacionar o valor moral
pelo sentimento. Se eu sinto que gosto de minha mãe o bastante para sacrificar tudo (a
minha vingança, o desejo de luta, de aventura) fico com ela. Se contrário, eu parto. Mas
como medir um sentimento? Para o existencialista, o sentimento é construído por nossos
atos praticados, e não os que poderiam ter realizados. Somente sei que amo
profundamente a minha mãe depois que sacrifiquei tudo por ela. Nada é mais mentiroso
que especular no campo afetivo, demonstrando um sentimento por atos virtualmente
possíveis. Assim, os sentimentos e os atos são quase indiscerníveis, portanto não posso

de lágrimas” e querer viver através do sofrimento..


86

me apoiar num sentimento para uma decisão moral, pois o sentimento é medido já por
um ato. Mas pelo menos o rapaz foi procurar seu professor, pedindo um conselho. Ora,
quando procuramos alguém para nos aconselharmos, na verdade, eu já decidi o que
fazer. Ao escolher alguém como um conselheiro, no fundo, já sei aproximadamente que
tipo de conselho esta pessoa me dará. O rapaz, se fosse cristão, procuraria certamente
um padre. Mas existem padres colaboracionistas, oportunistas, resistentes. Escolhendo o
tipo de padre, o jovem estará decidindo que tipo de conselho receberá. E quando o aluno
foi procurar Sartre, ele já sabia que tipo de conselho iria receber: “você é livre;
escolha!”. Assim, não existe moral geral. Ela não indica caminhos precisos a seguir, não
existem sinais no mundo. Os cristãos discordarão, pois segundo eles a nossa vida é
marcada por sinais. O existencialista admite que sim, mas ainda assim sou eu que
escolho o significado que eles têm. Tomemos um exemplo verídico: John Gerassi
(1931- ), em sua biografia de Sartre, narra o seu relacionamento com o filósofo: o viu
nascer em Paris, onde sua mãe, fugindo das conturbações políticas na Espanha, foi para
realizar o seu sexto aborto, mas devido à ausência de seu marido que se
responsabilizava pelos assuntos delicados, acabou dando à luz.7 Gerassi, em tom
irônico, afirma que ele é um “aborto abortado”. Ora, para um religioso, este fato é a
maior prova de Deus, pois, distinto dos seus cinco virtuais irmãos, foi salvo porque era
o seu destino, cabendo alguma missão a realizar neste mundo. Já para um ateu, este é o
maior sinal da absurdidade da vida humana, provando a contingência radical que rege a
existência. Assim, coube somente a Gerassi a responsabilidade da decifração de seu
“nascimento ameaçado”. Portanto, o desamparo implica que somos nós mesmos que
escolhemos o nosso ser: “desamparo e angústia caminham juntos”.

O desespero significa que somente posso contar com os possíveis que


encontro para a minha ação. Diante de casos concretos, posso agir de acordo com o
campo de possibilidades em que esbarro. Não posso moldar o mundo à minha vontade,
pois nenhum desígnio ou Deus poderá mudá-lo ao meu bel-prazer. Isto não significa um
limite à liberdade, como já vimos anteriormente. Aqui entenderemos a profundidade do
conceito de engajamento, que é o compromisso moral que possuo com o meu projeto,

7
Seus pais, o comunista judeu de origem espanhola Fernando Gerassi e a feminista ucraniana Stépha
Awdykowicz serviram de inspiração aos personagens Gomez e Sarah da trilogia “Os caminhos da
liberdade” (Les chemins de la liberté). Eles formaram uma das sólidas amizades da vida de Sartre e de sua
companheira Simone de Beauvoir.
87

que só é possível assumindo os possíveis em que está circunscrito. Não posso agir
esperando que amanhã o meu projeto seja levado por outros homens. Isto seria inventar
uma possibilidade puramente abstrata. Portanto, devo “agir sem esperança”. Aqui, o
existencialismo se aproxima da moral estóica. Porém, isto não acarreta um quietismo?
Não, isto é uma prática autenticamente moral, pois devo agir mas não posso ter ilusões.
Eu cairia num dogmatismo, violentando o mundo concreto às minhas idéias e vontades.
O quietismo é a recusa da ação, me desencarregando dela, pois outros homens agirão
por mim. Essas pessoas dissimulam o seu mal-estar moral, suportando a sua miséria,
afirmando que elas valem mais do que são, de que as circunstâncias foram adversas, que
não tiveram nenhum grande amor pois não encontraram um parceiro digno de tal
sentimento, etc. Há um jogo de virtualidades, onde inclinações e possibilidades
permaneceram encerradas em mim. Para o existencialista, o amor é aquele que se
manifesta em sua construção, não existe um afeto que ficou inutilizado por não ter
encontrado condições de ser manifestado. O gênio é aquele que se expressa pelas obras
de arte; se houvesse um filme que um grande cineasta pudesse fazer, ele teria feito. A
genialidade de um artista é a totalidade de suas obras. Quando, em 1964, Sartre recusou
o Prêmio Nobel de Literatura, ele afirmou que seria reconhecer o julgamento de seus
juizes que o laurearam pela sua autobiografia “As palavras” (Les mots). Isto o
converteria numa “instituição”, pois seria encarado não como um homem, mas como um
totem por ser um “Nobel”, além de enterrá-lo vivo, pois a sua obra foi julgada por
apenas um livro. Ora, Sartre continuaria a escrever, e se tivesse recebido o prêmio, todas
as suas linhas posteriores seriam “sagradas”, pois vinham de um monumento de
mármore, de um “Nobel”. Por outro lado, Sartre, em nenhum momento, desmereceu a
importância do prêmio, a respeitabilidade da Academia Sueca, mas aceitar o Nobel seria
faltar com suas convicções morais. Realmente, tal pensamento pode assustar as pessoas
que fracassaram em seus projetos de vida, mas, em compensação, demonstra que o que
realmente vale é a realidade, que o homem nada mais é do que a sua vida. Assim,
definimos o homem em sua positividade e não como um negativo, pelos atos que
poderiam ter sidos feitos. Mas, isto não implica que a vida de um artista não se dá
somente por sua coletânea de obras, o que seria simplista, mas que outras coisas
contribuíram para defini-lo, pois foram vividos por ele.: “o que queremos dizer é que um
homem nada mais é do que uma série de empreendimentos, que ele é a soma, a
organização, o conjunto das relações que constituem esses empreendimentos”.
88

Lembremos que o que vale não é o êxito ou o fracasso de nosso projetos, mas o fato de
terem sido escolhidos por nossa subjetividade, assumindo-os, e que esses foram
realizados numa rede de relações concretas.

Assim, o que apavora os detratores não é o pessimismo mas um duro


otimismo que o existencialismo possui. Os personagens existencialistas são fracos,
covardes ou maus, não por algum desvio hereditário, influência do meio, da sociedade,
mas porque escolheram ser assim. Não há nenhum determinismo orgânico ou
psicológico na ficção existencialista, apenas a pura responsabilidade de seus
personagens. O que atemoriza as pessoas é que o covarde é culpado de sua covardia. Se
eu fosse covarde por alguma inclinação, se eu nascesse covarde, isto me tranqüilizaria,
pois o que quer que eu faça, eu serei um covarde a vida inteira. Andarei como um
covarde, dormirei como um covarde, comerei como um covarde. Para o existencialismo,
o covarde se faz covarde, assim como o herói se faz herói. Assim, sempre existe a
possibilidade de o covarde deixar de o ser, como também o herói. O principal é o
engajamento total, e não um caso particular.

Desta forma, vemos que o existencialismo não encerra o homem num


quietismo, ao contrário, pois o define pela ação. Tampouco é uma filosofia pessimista, é
a doutrina mais otimista, pois o destino do homem está em suas próprias mãos. O
homem deve agir e, somente isto, lhe permite viver. Trata-se de uma “moral da ação e
do engajamento”. Se ainda acusam o existencialismo de ser um solipsismo, encerrando
o homem em sua subjetividade individual, Sartre afirma que isto se deve a “razões
estritamente filosóficas”, que se ele parte da subjetividade do indivíduo, não o faz por
ser um burguês, mas por ser o único ponto de partida verdadeiro. A fórmula de
Descartes “penso, logo existo” é “a verdade absoluta da consciência que apreende a si
mesma”. Aqui nos remetemos a uma questão epistemológica, reforçando os critérios da
fenomenologia e os seus vínculos com o cartesianismo. Segundo Sartre, tal teoria (o
cogito) dignifica o homem, pois não o transforma num objeto. Todo materialismo
acarreta numa coisificação do sujeito e dos outros, pois somos um conjunto de reações
determinadas, como um planeta que realiza as suas revoluções. Porém, a subjetividade
existencialista não é algo puramente individual, como a cartesiana, mas uma forma de
apreendermos nós mesmos perante o outro. O outro é tão verdadeiro quanto eu, através
do penso. Pois, recordemos que o outro é uma estrutura ontológica de meu ser. O cogito
89

jamais experimenta a solidão absoluta. O outro é indispensável à minha existência, e a


minha intimidade me põe em frente de uma liberdade que age e pensa comigo, contra ou
a favor. O mundo que a minha consciência desvenda é imediatamente um mundo de
intersubjetividade, onde “o homem decide o que ele é e o que são os outros”.

Por outro lado, se o existencialismo recusa uma essência humana, há porém


uma universalidade da condição humana. Não se trata de um jogo de palavras. Por
condição entendemos como o “conjunto de limites a priori que esboçam a sua situação
fundamental no universo”. O que entendemos por isso? As situações históricas variam;
posso nascer escravo ou senhor, servo ou senhor feudal, proletário ou burguês. O que
não varia é o fato de estar no mundo e ser mortal. Sou fruto de relações históricas, pois
não existe uma essência em meu âmago que antecede a minha existência concreta, e, um
servo da gleba, no mesmo feudo, no século XI ou no século XIII, são pessoas
completamente distintas, pois as conjunturas são outras. O que ambos experimentam é o
fato de viverem no mundo, trabalharem, se relacionarem com os outros e morrerem.
Estes limites não são nem subjetivos nem objetivos, ou melhor, possuem uma face
objetiva e outra subjetiva. São objetivos pois estão em todo lugar, sendo reconhecíveis;
e subjetivos pois são vividos, pois seria algo abstrato se o homem não os vivesse, ou
seja, se o homem não se determinasse livremente na sua existência em relação a eles.
Assim, mesmo que os projetos humanos sejam diferentes, nenhum deles permanece
inteiramente obscuro para mim, pois são todos tentativas para transpor esses limites. Ou
seja, apesar de seus conteúdos serem totalmente singulares, a sua estrutura abstrata é
universal. Portanto, todo projeto, por mais individual que seja, tem um valor universal.
Isto significa que, a partir de uma situação concebida, é possível reconstituir o projeto
de um chinês, um afegão ou um esquimó. Neste sentido, podemos afirmar que existe
uma universalidade do homem, porém ela não é dada, é constantemente construída. Isto
não abole a relatividade histórica! Eis a grande intenção do existencialismo: exibir a
ligação entre o absoluto do engajamento livre (compreensível em qualquer época e por
qualquer pessoa) e a relatividade do conjunto cultural que pode resultar desta escolha.
Não existe diferença entre um ser absoluto num tempo determinado e um ser
universalmente compreensível.

Porém, ainda se critica a subjetividade com três objeções: primeira, cada um


pode fazer o que bem entender; segunda, é impossível julgar os outros, porque qualquer
90

projeto é válido e, por último, os valores são gratuitos, não são sérios. Veremos como
Sartre responde a estas acusações.

A primeira, “você pode escolher o que quiser” não é verdade. Pode-se


escolher, porém, é impossível não escolher, pois mesmo quando não escolho, já estou
escolhendo. Isto já limita a fantasia e o capricho. O homem está em situação, não sendo
possível decidir a priori o que fazer. Ele escolhe a sua moral, e engaja toda a
humanidade neste ato, sendo impossível não possuir a responsabilidade total desta
escolha. A moral existencialista se assemelha à construção de uma obra de arte. Isto
significa que se trata de um movimento criador, independente de um código
preestabelecido. Quando um pintor cria um quadro, ele não desenterra algo que já estava
na tela em branco. O quadro se fez pelas e nas pinceladas do pintor. Ele não é a
materialização de uma idéia, pois os valores estéticos passam a existir posteriormente.
Nesse sentido, ninguém pode prever a pintura de amanhã, pois os seus valores estéticos
virão somente por sua construção. Um quadro se constitui por si mesmo, na medida em
que a tinta vai sendo aplicada na tela. Assim, há um traço comum entre a arte e a moral,
pois há invenção e criação, não havendo condições de se decidir a priori o que fazer.
Uma moral geral não é capaz de orientar ninguém. Portanto, o homem vai se
construindo, escolhendo a sua moral, e pela pressão das circunstâncias é impossível não
deixar de escolher uma.

A segunda objeção, a de que não se pode julgar os outros, sob certo ponto de
vista, é verdadeira e falsa. Verdadeira, pois quando o homem escolhe o seu projeto com
toda sinceridade e lucidez, não é possível preferir um outro. Tampouco existe progresso,
em que haveria uma melhoria; o homem permanece o mesmo perante situações
diversas, e a escolha é sempre uma escolha numa determinada situação.8 Porém,

8
"(...) É preciso acreditar no progresso. Esta talvez seja uma de minhas últimas ingenuidades". Esta é uma
das declarações mais polêmicas de Sartre, que durante toda a sua vida foi um crítico do progresso.
Declaração dada em sua famosa e polêmica última entrevista, realizada em fevereiro de 1980, concedida
ao seu secretário particular Benny Lévy (que utilizava o pseudônimo de Pierre Victor ou Pierre Bloch),
um judeu egípcio maoísta, que a partir de 1978 começa a estudar cabala e hebraico, e que publicou textos,
após a morte de Sartre, aproximando a moral sartreana do judaísmo, abrindo uma polêmica com Simone
de Beauvoir que publicou em 1981 o seu último livro de memórias "A cerimônia do adeus" (La cérémonie
des adieux) para preservar a memória e a integridade do pensamento de seu companheiro. Não entraremos
aqui nesta polêmica, sobretudo a levantada em uma entrevista em que aparece um Sartre com uma retórica
frágil e desanimada. Nesta entrevista, Sartre concorda que a perspectiva moral no fim de "O ser e o nada"
está intimamente ligada com o seu debate posterior com marxismo, e que a sua preocupação atual era
buscar verdadeiros fins sociais da moral para encontrar um princípio para a esquerda. ("Gostaria que
nossa discussão fosse ao mesmo tempo o esboço de uma moral e a descoberta do verdadeiro princípio da
91

podemos julgar, pois o homem escolhe a si mesmo perante os outros. Inicialmente, por
um juízo lógico não puramente moral, podemos afirmar que certas escolhas estão
fundadas na verdade, enquanto outras, no erro. Afirmamos então, que este homem está
de má fé, quando se refugia num determinismo. Ora, podem objetar desta forma: por
que este homem não pode escolher-se de má fé? Bom, estamos aqui não julgando
moralmente, mas que a sua má fé é um erro. A Má fé é uma mentira, pois escamoteia a
liberdade do engajamento. Um homem está de má fé quando declara que certos valores
preexistem a si próprio, contradizendo-se, ao afirmá-los como valores impostos,
querendo-os ao mesmo tempo. Nenhuma moral é imposta, sou eu que a coloco como
algo imposto. Poderiam indagar: se sou livre, eu não posso querer ser um homem de má
fé? Sim, não existe nenhum motivo em não sê-lo, mas eu posso declarar que você está
de má fé e atitude verdadeiramente moral é algo coerente. Um valor moral de verdade
não pode estar sustentado numa mentira. A liberdade possui como objetivo querer-se a
si própria em cada situação concreta. O homem ao estabelecer os seus valores, em seu
desamparo, não é pode desejar outra coisa a não ser a liberdade como o fundamento de
todos os valores. Eu quero a liberdade em situações particulares, e ao querer a minha
liberdade, quero a dos outros. Porém, é possível que certas pessoas afirmem sua
liberdade, ocultando de si mesmos a gratuidade de sua existência ou afirmando sua total
liberdade em seu próprio nome. Àqueles que dissimulam a sua liberdade através de
desculpas deterministas, ou com exigências de seriedade, batizamos de covardes. Aos
outros que fogem de sua contingência, afirmando a sua existência como uma
necessidade, como que portadores de uma "missão" preestabelecida, batizaremos de
safados ou canalhas (no original, "salauds"; sujos). Estas posturas são julgadas apenas
nos critérios de autenticidade. Princípios abstratos demais não podem definir uma ação;
"o conteúdo é sempre concreto e, por conseguinte, imprevisível; há sempre invenção". O

esquerda"). Este princípio, segundo o entrevistador, tem alguma relação com um desejo de sociedade.
Sartre concorda: "Veja bem, minhas obras são um malogro. Não disse tudo que queria dizer, nem da
maneira como queria dizer (...) o futuro desmentirá muitas das minhas afirmações; espero que algumas
sejam conservadas, mas, em todo caso, há um movimento lento da História em direção a uma tomada de
consciência do homem pelo homem. Neste momento, tudo o que foi feito no passado assumirá o seu lugar,
o seu valor. Por exemplo, o que escrevi (...) Em outras palavras, é preciso acreditar no progresso. Esta
talvez seja uma de minhas últimas ingenuidades". A História para Sartre, como ele afirma posteriormente
nessa entrevista, é uma sucessão de malogros que por uma marcha lenta vai desalienando o homem e
abrindo espaço para fundar um humanismo, quando seremos homens completos nesta nova sociedade.
Assim, a História tem um sentido, e, é neste viés, o aspecto do termo "progresso", que Sartre ironicamente
diz ser uma "ingenuidade", pois como ele próprio criticou numa certa leitura do marxismo, a idéia de
progresso é uma invenção burguesa do século XIX. Aqui estamos adiantando certos elementos que
estudaremos a seguir. ("O testamento de Sartre." Trad. s.n., 4. ed., Porto Alegre: L&PM, 1986. pp 23-4).
92

que importa é que a invenção se faz em nome da liberdade; "podemos escolher qualquer
coisa se nos colocamos ao nível de um engajamento livre".

A última objeção é que os valores não são sérios, pois somos nós que os
escolhemos. Ora, se eliminamos Deus, alguém tem que criar os valores. Assim, eles não
são sérios porque nós o criamos, pelo contrário, só podemos encará-los com seriedade
pois fomos nós que os colocamos, assumindo-os. Isso significa antes de tudo que a vida
não possui sentido a priori, cabendo a nós mesmos dar um sentido a ela.

Assim, é possível construir uma comunidade humana. Aqui esbarramos com


dois sentidos de humanismo. Primeiro, como uma teoria que considera o homem como
meta e valor supremo. Posso maravilhar-me ao ver as construções humanas; aviões,
hidrelétricas, foguetes, catedrais, obras de arte e dizer "como o homem é magnífico".
Isto significa que eu pessoalmente me beneficio de atos elevados de outros homens,
tomando-os como um valor ao homem em geral. Este humanismo é um absurdo, pois se
sou um homem como posso emitir um juízo acerca da totalidade do homem? Somente
um outro ser, um cachorro ou um cavalo, pode afirmar sobre o homem em seu conjunto.
O existencialismo não julga o homem em geral, pois jamais coloca o homem como uma
meta, pois a humanidade nunca está pronta, encerrada em si mesma; está sempre por se
fazer. Sartre rejeita este tipo de humanismo, e é este que ele critica ferozmente em "A
Náusea", através do personagem do Autodidata, que se empenha na erudita tarefa
patética de ler todos os livros em ordem alfabética da biblioteca municipal ou quando
Roquentin passeia pelo museu municipal, vendo os quadros inescrupulosamente
pintados dos homens e mulheres importantes do passado da cidade: "Adeus, belos lírios
tão delicados em seus pequenos santuários pintados; adeus, belos lírios, nosso orgulho e
nossa razão de ser. Adeus, Salafrários". Este culto à humanidade, como propunha
Auguste Comte (1798-1857), numa nova religião substituindo Deus pela Humanidade, é
terrível pois encara o homem como algo cristalizado, e podemos dizer, que leva ao
fascismo. Deste humanismo, Sartre não deseja nada.

O outro sentido é o seguinte: o homem está sempre se lançando fora de si,


dirigindo-se a fins transcendentes, caracterizando o homem como uma superação
constante. "Não existe outro universo além do universo humano, o universo da
subjetividade humana", ou seja, há um vínculo entre a transcendência e a subjetividade,
93

e é isto que chamamos de humanismo existencialista. É um humanismo pois cabe


somente ao homem, em seu desamparo, decidir sobre si mesmo, não voltando-se para si,
como uma essência ou um orgulho de pertencer à raça humana, à maneira comteana,
mas lançando-se para fora de si. Neste sentido, há algo de inumano no homem, pois ele
busca algo alhures, é um "desejo de ser Deus", ou seja, ele quer "deixar" de ser homem,
porém, é assumindo isto livremente que se realiza como ser humano. Isto ocorre no
âmago de sua subjetividade e, portanto, somente existe o mundo humano. É
inconcebível imaginar o mundo sem o homem, pois ele é desvelado por nossa
consciência.

Portanto, o existencialismo é uma doutrina da ação, um otimismo, e que parte


de uma postura atéia e coerente. Os cristãos o acusam de mergulhar o homem no
desespero, pois afirma que Deus não existe. O ateísmo existencialista não pretende
provar que Deus não existe, pelo contrário, pois mesmo se Deus existisse, em nada
mudaria o seu pensamento. Sartre escreve: "Não que acreditemos que Deus exista, mas
pensamos que o problema não é o de sua existência; é preciso que o homem se
reencontre e se convença de que nada pode salvá-lo dele próprio, nem mesmo uma
prova válida da existência de Deus" (o grifo é meu). Para a filosofia contemporânea, o
fato de que Deus exista ou não exista é irrelevante, trata-se de um falso problema. Não
cabe a Filosofia colocar na mesa esse tipo de discussão. O discurso filosófico é o
discurso do Ser. O filósofo nos apresenta uma Ontologia, preocupando-se em como se
estrutura o Ser. Atualmente, a Filosofia não constrói grandes sistemas, apreendendo
tudo, partindo de um único ponto. Isto fazia a Metafísica, que erigia grandes linhas,
dividindo em classes e subclasses. Atualmente, o Ser é encarado como algo puramente
imanente e, portanto, a Ontologia é o único discurso próprio e capaz. Assim, não há uma
cisão entre moral e ontologia, pois isto é indiscernível. É por isso que em Sartre já
vemos uma imiscuidade entre ambos, apesar do esforço do filósofo em querer dividi-los,
pois o autor ainda estava preso a uma certa concepção de filosofia. É por isso que Sartre
jamais conseguiu escrever a sua Moral, pois o seu pensamento foi cada vez mais
avançando nesta direção, fugindo de seu "controle". Isto se radicalizou com o marxismo,
que define o homem por uma práxis revolucionária. Ser e moral se misturam. Isto é
evidente na questão de Deus. Sartre afirma que a sua intenção sempre foi constituir um
pensamento ateu e coerente. Ele diz que o seu ponto de partida é a fórmula de
94

Dostoievski. Ora, mas ao mesmo tempo, afirma que ainda que Deus existisse, nada
mudaria na forma ontológica de se encarar o homem, ou seja, que o problema da
existência divina é dispensável ao pensamento. Aqui, Sartre já está dando um passo
adiante, mas o outro pé ainda se prende a um ateísmo vigoroso e, muitas vezes,
militante. Acusam-no atualmente de ser humanista, o que ele realmente afirmou ser.
Porém, o seu humanismo não é um culto ao homem. O homem sartreano está sempre
fora de si mesmo, ou seja, há algo de inumano no homem. E à medida em que o seu
pensamento foi-se dirigindo para o marxismo, esta relação do homem com este "fora",
vai ser cada vez mais problematizada. A sua atenção vai ser deslocada da Liberdade
para a Situação, revendo a relação entre o homem e o mundo. Eis a História!
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Análise Fílmica: “A rotina tem seu encanto”


(Samma no aji)
Direção: Yasujiro Ozu
Produção: Shizuo Yamanouchi
Roteiro: Kogo Noda e Yasujiro Ozu
Fotografia: Yuharu Atsuta
Montagem: Yoshiyasu Hamamura
Japão Cor 1962 113 min

O cinema japonês foi “descoberto” pelo ocidente na década de 50. Os


cineastas da terra do sol nascente brilharam em todos os festivais ocidentais,
influenciando o cinema desde lado do mundo. Estes cineastas pertencem, quase todos, à
primeira geração de cineastas não egressos do teatro kabuki. São artistas que se
formaram já dentro do cinema, nos primórdios dos grandes estúdios9, o que favoreceu a
sua ascensão rápida nos quadros de funcionários. São cineastas que começaram a dirigir
seus filmes muito jovens, sendo autores de um grande número de filmes.10

Yasujiro Ozu é um destes cineastas. Ingressa na Shochiku em 1923 e


integrará o quadro de funcionários da companhia por toda a vida, realizando alguns

9
O primeiro estúdio iniciou seus trabalhos em Kyoto, no ano de 1912, batizada de Nippon Katsudo
Kabushikigaisha, ou Nikkatsu. Posteriormente, vieram a Shochiku (1920), a Toho (1936, que se dividiu
em 1947, surgindo a Shintoho), a Daiei (1942) e a Toei (1951) que formaram os cinco maiores estúdios,
em moldes de Hollywood. O cinema japonês seguirá este padrão num estilo comercial. A sua produção
voltou-se para o mercado interno, pois durante décadas, os japoneses, em sua auto-crítica como cultura
demasiada hermética, jamais pensaram em exibir seus filmes no Ocidente. Acreditava-se que um ocidental
nunca compreenderia-os. Esta postura mudará nos anos 50. Porém, a pesquisadora Lúcia Nagib comenta
que nunca houve no Japão um studio system ao estilo hollywoodiano, pois as suas grandes produtoras
sempre tiveram poucos recursos, com um profissionalismo artesanal, formado por funcionários recebendo
salários irrisórios e filmes de baixo custo. Tanto que para a autora, o movimento da chamada “Nouvelle
Vague Japonesa” (niponizada para nuberu bagu) não foi uma ruptura e sim, um desenrolar deste tipo de
produção (ver NAGIB, L. Em torno da nouvelle vague japonesa. Campinas: Editora da UNICAMP,
1993). A partir dos anos 60, ocorre a decadência deste sistema de estúdios. Já em 1961, a Shintoho foi à
bancarrota, ocasionando um efeito dominó em suas “irmãs” nos anos subseqüentes.
10
Muitos destes filmes se perderam, sobretudo da fase muda e militarista, sendo um dos maiores
obstáculos aos historiadores do cinema japonês. Isto se deve a três grandes fatores. Primeiro, foi o terrível
terremoto de Kanto em 1923 que assolou o eixo econômico do país: Tóquio e vizinhanças, lugar onde se
situavam estúdios. O segundo foi a Segunda Guerra Mundial, quando o Japão foi sistematicamente
bombardeado pelos Aliados. Relevante lembrar que naquela época a maioria das cidades (exceto os
grandes centros) utilizavam a tradicional arquitetura japonesa, com casa de madeira, tornando-se alvos
fáceis às bombas incendiárias inimigas. E por último, o período de Ocupação norte-americana (1945-
1952), no qual o seu comandante militar, o general Douglas MacArthur (1880-1964), ordenou a
destruição dos filmes de propaganda de guerra ou que exaltavam os valores expansionistas do período
militarista. Os exemplares que chegaram até nós são raridades que foram escondidos e salvos.
96

filmes para outras produtoras de forma solicitada. Ascendeu dentro da empresa


rapidamente, pois esta ainda estava em formação. Dirigiu seu primeiro filme aos 24
anos de idade, intitulado “Espada da penitência” (Zange no yaiba; 1927). Este é seu
único jidai-jeki (drama histórico), pois irá se especializar em gendai-jeki (drama em
ambiente contemporâneo). O seu talento será tardiamente reconhecido no Ocidente
(final dos nos 50 e começo dos 60), ofuscado pelo culto a Kenji Mizoguchi (1898-1956)
e Akira Kurosawa (1910-1998).

Ozu criou um estilo personalíssimo de filmar. Podemos afirmar que não


deixou herdeiros fiéis, distinto dos dois grandes cineastas citados acima. Os seus filmes
estão comprometidos com o registro do cotidiano e, em seus últimos filmes, de um
estilo de vida que estava se perdendo. Retrata o difícil convívio das tradições milenares
com a modernização do Japão. Por isso, a importância de estudá-lo em relação à moral
de Sartre em nosso trabalho. A sensibilidade de Ozu foi utilizada no registro desta
transição de valores.

A forma de abordar este tema será nas mudanças da família japonesa no pós-
guerra. Não se trata do tema comum de conflitos de gerações. Muito dos seus filmes
destacam a relação entre pai e filha, sendo esta a representante dos valores tradicionais.
Sempre é uma filha solteira, estimulada pelo pai a se casar, para que ela não fique velha
e solteira. No início, a filha não sente necessidade de se casar pois possui uma obrigação
moral de cuidar do pai em sua velhice. Isto se refere à vida pessoal de Ozu, que jamais
se casou, morando com seus pais, tratando-os na velhice. Os seus filmes repetem os
mesmos temas, demonstrando que relevante não é a narrativa, mas a forma de se narrar.
O seu perfeccionismo irá se voltar para a construção cuidadosa dos planos e da
disposição, milimetricamente planejada, dos atores em cena.

O argumento de “A rotina tem seu encanto” é justamente o citado acima. O


viúvo Shuhei Hirayama (Chinshu Ryu) vive com a sua filha Michiko (Shima Iwashita) e
com seu filho Kazuo (Shinichiro Mikami). O primogênito Koichi (Keiji Sada) vive com
sua esposa Akiko (Mariko Okada) num conjunto habitacional. O colega de trabalho de
Hirayama, Hidezo Kawai (Nobuo Nakamura) afirma ter um pretendente para Michiko,
que já tem 24 anos. Hirayama não se preocupa com isto. Porém, ao se encontrar com seu
velho professor Seitaro Sakamura, de alcunha “o Cabaça” (Eijiro Tono), Hirayama se
97

assusta com o seu estado patético. O professor se arrepende por não ter feito casar a sua
filha Tomoko (Haruko Sugimura). Hirayama, preocupado, começa a forçar Michiko a
pensar em casamento. Porém, o seu amado Yutaka Miura (Teruo Yoshida) já está
comprometido, deixando ao pai escolher o futuro noivo. Hirayama aceita o pretendente
de Kawai; assim ocorrem as bodas, e o pai deve aprender a viver sem a filha.

Vemos dois tipos de família no filme. O de Hirayama, que simboliza os


valores tradicionais, do pai com seus filhos. Segundo a moral feudal japonesa, a unidade
clânica é essencial, cabendo a todos morarem sob o mesmo teto, regido por uma rígida
hierarquia patriarcal. A mulher possuía um papel secundário nesta estrutura, mas é um
elemento vital na manutenção da casa e na continuidade da prole. Do outro lado, vemos
a família de Koichi, simbolizando a típica família mononuclear burguesa. O próprio
apartamento em que mora, contrasta fortemente com a tradicional casa de madeira de
seu pai. Na casa de Hirayama, todos os afazeres domésticos são realizados por Michiko.
Já na casa de Koichi, este já participa dos trabalhos da casa, em especial numa cena em
que aparece cozinhando. Apesar de que quando sua esposa chega, ela se responsabiliza
pela comida. Ambas as mulheres, Michiko e Akiko, fazem reclamações aos homens da
casa, porém são distintas. Michiko se aborrece com o horário em que seu pai e irmão
chegam a casa, devido ao jantar. E a sua principal preocupação é a bebida, chegando a
censurar várias vezes seu pai por chegar “alcoolizado” em casa. Por outro lado, Akiko
se aborrece por questões financeiras. Isto é extremamente explorado no longo tema do
taco de golfe. Koichi pedira um dinheiro emprestado ao pai para comprar uma nova
geladeira. Na verdade, ele pedira uma quantia acima do preço, pois pensava em comprar
uma sacola de tacos de golfe. Akiko o censura severamente por sua perdularidade, pois
ela gostaria de comprar uma bolsa. No final, ela própria resolve o conflito com o
marido, comprando (com seu próprio dinheiro) a primeira parcela da sacola. Podemos
imaginar que se trata de uma esposa conciliadora e atenciosa aos caprichos do marido.
Mas não é o caso, pois ela faz isso contra a sua vontade e depois diz que usará o restante
do dinheiro emprestado para comprar a bolsa. Aqui vemos dois tipos de mulheres.
Akiko é vaidosa e se impõe diante do marido. Já Michiko está totalmente atrelada à casa
e se aborrece quando os seus serviços são disturbados. A preocupação denota outro tipo
de relação, pois a questão da bebida é mais uma preocupação pessoal, de cunho moral. E
a outra preocupação é uma questão puramente monetária. Vemos que o casamento de
98

Koichi é tipicamente burguês e já podemos testemunhar uma sociedade consumista. O


golfe e a bolsa espelham essa vontade de consumo e é por isso que as relações morais
são substituídas por financeiras. Há um espírito individualista, pois tanto o golfe quanto
a bolsa foram consumidos, satisfazendo ambos. O conflito conjugal foi resolvido
quando a demanda foi respondida. Interessante notar que a causa inicial é o dinheiro da
geladeira. Numa cena, uma vizinha aconselha Akiko comprar rápido, pois logo lançarão
outro modelo. A sociedade de consumo é representada pela família de Koichi, morando
em seu condomínio.

Outra mudança é o amigo de Hirayama, Horie (Ryuji Kita) que é casado com
uma mulher bem mais nova. Kawai constantemente o censura por tal fato, enquanto
Hirayama é indiferente. Este novo tipo de matrimônio garante os momentos cômicos do
filme, com os comentários maldosos dos amigos, sobretudo Kawai. É uma questão nova
e perturbadora o relacionamento de um viúvo com uma mulher com idade de ser sua
filha. Aqui, já vemos novos padrões de comportamento que chega a chocar com antigos
valores.

Desde o início do filme, a questão do matrimônio está presente em tudo. O


casamento da funcionária que trabalha com Hirayama, e o tipo de casal formado por
Horie e sua jovem esposa. A proposta dada por Kawai é dada logo no começo da
narrativa. Ozu apresenta a sua questão logo de cara, aprofundando-a ao transcorrer da
narrativa. O que assusta Hirayama é o antigo professor, que se embriaga como um
escapismo à sua vida amarga. Kawai é categórico, afirmando ser este o seu destino caso
não case Michiko. Ozu escolhe um ex-professor como personagem para demonstrar o
descrédito aos velhos valores. No jantar, o ex-professor diz que os seus colegas de antes
estão todos em condições melhores do que ele. Isto faz ressaltar que a sua triste
condição está ligada ao celibato da filha. Porém, é significativo, sobretudo na cultura
japonesa, a figura do mestre ser ridicularizada de tal forma. Ele simboliza a tradição, e
se encontra decadente e infeliz, como algo destinado ao fim. É um Japão fadado à
morte. Hirayama se reconhece neste estado e o rejeita, com medo. Por outro lado, ele
também tem medo da solidão em sua velhice, e por isso titubeia em casar sua filha. Ele
estava tão arraigado aos seus valores, que foi necessário um “choque” para colocá-los
em xeque.
99

O mesmo ocorre com Michiko. Ela jamais pensara em se casar, realizando


apenas o dever moral que lhe cabe. Ela possui um espírito de seriedade, absolutizando
os seus fins. A sua obrigação é ficar em casa, cuidando do pai. É por isso que ela possui
tanta resistência quando ele a interpela a respeito de casamento. O fato de sair de casa
fere o objetivo de sua vida firmado pela tradição. Aos poucos, forçada por Hirayama, ela
começa a questionar a sua própria moral. Consegue contar ao seu irmão Kazuo que está
apaixonada por Miura (note que esta cena não é mostrada ao espectador), aflorando
sentimentos até então subordinados a um plano inferior. Sabendo que seu amado já está
comprometido, ela chora escondida (o espectador não a vê chorando). Com a
transformação moral de Michiko, o seu campo afetivo também se modifica. Ela sofre
pois é impossível se casar com o homem que ama. Aqui, o amor possui um papel
importante como valor para Michiko. Contudo, ela deixa sob os cuidados do pai a
escolha de seu futuro noivo. Importante frisar que se trata de um discurso puramente
implícito. Hirayama vai consolá-la, afirmando que ela não precisa se sentir obrigada a
casar com o pretendente de Kawai, mas seria bom conhecê-lo antes de rejeitá-lo.
Michiko não fala nada durante esta cena, que termina com um plano frontal dela, triste,
mexendo no material de costura. Na seqüência seguinte, Hirayama encontra seus
amigos, trazendo a resposta ao pedido. Há uma elipse, pois somos privados da decisão
de Michiko ao pai. O filme não possui grandes momentos dramáticos, pois Ozu
privilegia a ação corriqueira e comum do dia a dia. É por isso que não aparece a decisão
de Michiko, pois esta seria uma cena de maior intensidade que as outras. (como o
choro). Há uma homogeneidade dramática, que atravessa toda a obra. Tal cena quebraria
este ritmo. Podemos imaginar que Michiko jamais abandona totalmente a seriedade uma
vez que deixou ao pai escolher com quem vai se casar, conforme a tradição. Isto é um
erro, porque o próprio Hirayama não impõe o rapaz indicado por Kawai. Portanto, ela
decidiu conhecer o rapaz. Aqui, Michiko realiza um ato moral com base na Liberdade.
Porém, ela não luta pelo amor de Miura, mas entrega aos homens mais velhos
(Hirayama e Kawai) o preparativo do casamento. Verdade seja dita, não se trata de um
“casamento arranjado” no sentido clássico, pois os noivos se conhecem previamente e
consumam as bodas de acordo um afeto mútuo. Porém, há uma codificação de conduta
que ainda pode ser estranha hoje em dia: ser apresentado por terceiros, receber proposta
de um desconhecido. Os valores tradicionais ainda estão presentes. E, Michiko se casa
dentro deste molde. Ela não é uma mulher passional pronta para conquistar o seu amado
100

a qualquer custo. Tal atitude romperia com o tipo de personagens nos filmes que Ozu
realiza. Ela é uma mulher que simboliza os valores tradicionais. No início, dentro de
uma seriedade, depois, passando a ser rompida. Os valores não são totalmente
abandonados, podemos testemunhar uma transição. Ela sai de casa, porém segue uma
conduta de matrimônio, ainda com valores tradicionais presentes. É uma sociedade em
metamorfose que Ozu capta com sua câmera.

Isto é identificável com a presença de um Japão antigo no meio de um Japão


moderno. O bar em que Hirayama vai, junto com Yoshitaro Sakamoto (Daisuke Kato),
antigo subordinado da época da guerra, simboliza o Japão antigo. O fato de tocar uma
velha marcha marcial dá um ar de saudosismo. Interessante notar que a mulher do bar
(Kyoko Kishida), segundo Hirayama, se assemelha à sua falecida esposa (encarnação do
passado). Vemos que a questão do casamento é massacrantemente presente. O bar é um
espaço físico na narrativa que representa o passado, mas é um lugar ambíguo, pois o
letreiro luminoso é em alfabeto latino, e não em ideogramas (“Torys Bar”). A cena da
rua repleta de letreiros luminosos mostra a nova Tóquio que está nascendo. O diálogo
mais genial do filme é quando Sakamato imagina o que teria acontecido se o Japão
tivesse ganho a guerra. “Estaríamos em Nova Iorque, agora”, diz. “Os jovens o imitam
só porque nós perdemos”, comenta. Fala que os norte-americanos se vestiriam como os
japoneses caso a guerra fosse ganha. Ironicamente, Hirayama diz que foi até bom terem
perdidos. Aqui, vemos explicitamente esta transformação ligada com a guerra.

Ozu possui um talento ímpar em construir planos. Zela pela harmonia do


quadro, agrupando linhas e formas geométricas. Os personagens são colocados
milimetricamente planejados. A sua direção de atores estava centrada na disposição
dentro do quadro. Outra característica principal de seu estilo é a câmera baixa. Ozu a
colocava a 40 ou 50 cm do chão, como a postura de alguém sentado no tatami de uma
tradicional casa japonesa. Muitos teóricos reconhecem esta analogia, porém, alguns
acham algo estranho e absurdo, pois as pessoas também se levantam em casa.

Discussões à parte, a câmera baixa foi o modo que a sensibilidade de Ozu


optou para absorver toda a simetria da arquitetura japonesa. Interessante notar que este
artifício, em geral, é utilizado para destacar o personagem, criando uma sensação de
poder e imponência. Em Ozu, ocorre o inverso, a câmera baixa dá ao público um lugar
101

especial em relação aos personagens, como se fossemos uma visita, uma testemunha de
seus movimentos e afetos.

Analisaremos a seqüência em que Kawai fala com Michiko sobre o


casamento. Esta é a primeira vez que ela sabe sobre a proposta, pois seu pai não lhe
falou. Michiko aparece num corredor. Após um corte, há uma câmera baixa em direção
à porta, quando ela entra no escritório. Vemos que há todo um jogo de linhas na tela,
com a porta, a mesa, uma cadeira ao fundo com um armário do outro lado e um quadro
na parede. A personagem veste um sóbrio tailler azul com linhas retas. A conversa de
ambos ocorre através de plano e contra-plano, com Kawai de lado com persianas ao
fundo. Podemos ver a harmonia de formas e como os personagens transitam. Michiko
entra no escritório, sendo vista em câmera baixa, como se tivéssemos alojados sem
problemas naquele cômodo. Quando ela estava indo embora, ocorre o diálogo (através
do plano/contra-plano). Os personagens olham para a câmera, de frente. Isto dá um tom
de pressão a Kawai e de intimidade à Michiko. O fato de ambos olharem para a câmera,
dá uma expressividade muito maior.

Como não existe momentos dramáticos, a narrativa registra as ações diárias. É


o banal o que deve ser apreendido. Desta forma, os personagens não podem ser
expressivos. Como vimos, eles circulam seguindo linhas e formações geométricas
dentro do quadro. Não existe contraste entre o personagem e o cenário. Isto acarreta uma
dissolução do elemento humano, exalando uma sensação de vazio. Os dilemas morais
ocorrem numa base de contingência, neste ar vago da existência (seja do homem quando
do mundo). Portanto, a narrativa não pode ser conduzida por dramáticas expressividades
por parte dos atores. É a câmera que se apropria deste papel. É por isso que os
movimentos de câmera são abandonados. Esta imobilidade liga-se com o estilo e
temática de seus filmes. Um severo código de gestos que combinam com a formalidade
do povo japonês. Sobretudo, neste filme, que aborda a questão de casamento. A postura
suave, pouca gesticulação, quase ausência de contato físico são exemplos de uma
tradição abordada pelo diretor. É esta forma de viver que se está perdendo e que a sua
câmera registra e domina. Há um ar de serenidade, típico dos valores tradicionais.

Portanto, o importante não são os atores e sim, o contexto em que estão


inseridos. Não estamos depreciando seus talentos, mas é a reunião deles num fato
102

cotidiano que é filmado. Ninguém “rouba a cena” de ninguém, pois é a cena como um
todo que é o “grande ator”. Assim, a disposição geométrica dos atores sempre fica, ao
decorrer do filme, em posições similares, com a intensa repetição cotidiana. Os atores
entram e saem de plano, em geral, pelo mesmo lugar, sempre pela lateral ao fundo ou do
fundo (Figura 1). Jamais atravessam o campo e entram e/ou saem pelo lado da câmera
(Figura 2).

Visto isso, podemos analisar algo que percorre todo o filme: o corredor.
Assim, como o navio no filme anteriormente analisado, aqui aparece várias vezes este
cômodo. Aparece na fábrica, na casa tanto de Hirayama quanto de Koichi. O corredor é
um cômodo de passagem, um lugar de transição de um ambiente para o outro. No filme,
o personagem sempre aparece no centro da tela, percorrendo o corredor (semelhante ao
apartamento de Corrado no filme anterior). O personagem vem do fundo, em direção à
câmera, percorrendo várias portas. Como não se choca com a câmera, sempre sai ou
entra pela laterais. Esta centralidade dá um ar de solitário aos personagens, cabendo
somente a eles fazerem o seu caminho, e em quais portas entrar. A câmera possui um
domínio sobre a cena, pois sendo o corredor um espaço estreito, o personagem se
movimenta dentro de um quadro fechado. Se o personagem cruzasse o quadro ou saísse
e entrasse pelo lado da câmera, haveria uma quebra deste domínio. O personagem seria
mais forte que a câmera, criando a sensação de um “espaço fora da tela”. Em Ozu, o
personagem é um elemento constitutivo do quadro, ele não o precede. Já vimos que há
uma captura do vazio. O corredor simboliza a deliberação moral, onde o personagem se
encontra abandonado, em escolher os seus “caminhos”por conta própria. A sua
centralidade evoca esta solidão. Como figura, o corredor é uma linha reta que sai da
câmera em direção ao infinito, cortado na transversal em infinitos pontos por linhas
retas paralelas entre si (Figura 3). Trata-se de um caminho dado pela câmera, cabendo
ao personagem transitar somente por fora do eixo da lente. Este caminho único
demonstra o controle do cineasta, que possui um distanciamento crítico em relação ao
personagem. Que portas ele deve escolher é uma decisão pessoal do personagem, mas
esta centralização demonstra que cabe somente à sua subjetividade. É por isso que a
câmera está aí, para captar este momento subjetivo de escolha. A câmera não interfere
na decisão e nem julga, apenas o observa. Podemos fazer um paralelo deste
distanciamento com a relação ator-público do teatro kabuki, no qual Bertold Brecht
103

(1898-1956) se inspirou para a sua concepção dramatúrgica de “distanciamento” do seu


teatro épico. A geometrização do espaço possui dois significados. Com já mencionamos,
é a sistematização de “espaços”, uma codificação de posturas e gestos, descrevendo uma
hierarquização de condutas típicas de um Japão tradicional. Neste caso, o filme é um
registro de um antigo modo de vida em extinção. Numa interpretação weberiana, é a
racionalização de uma conduta de vida, própria do mundo capitalista e ocidental.11
Assim, o filme documentaria uma mudança de hábitos, espelhando um novo Japão
nascendo à força.

O apreendimento do vazio é algo bem forte em Ozu. São utilizados


fartamente “planos deslocados’, em geral, entre seqüências. Não se trata de planos com
intenção temporal, para passar uma noção de que transcorreu um tempo ou
simultaneidade (“enquanto isso...”). São planos totalmente soltos dentro da diegese,
enfocando, geralmente, algum objeto da casa, com bastante espaço vazio. Não há
pessoas nestes planos. São sobretudo construções, como prédios ou casas. Qual é a
função destes planos?

Vários teóricos discutem o seu sentido, impressionados sobretudo pelos


enormes vazios na tela. Alguns os apelidam de “naturezas-mortas”. O teórico Noël
Burch os chama de pillow-shots (planos-travesseiros) pois são planos sem nenhuma
relação narrativa, onde descasa o fluxo diegético.12 Este termo provem de pillow-words
(palavras travesseiros), em Japonês makura-kotoba, que é um termo utilizado na poesia
tradicional japonesa para ideogramas que, isoladamente, possuem um significado
obscuro, mas que modificam a primeira do verso seguinte. Burch realiza uma analogia
com Ozu, pois estes planos, em si são estranhos, mas promovem uma ligação entre as
seqüências, ainda que não no sentido narrativo-temporal.

Assim, como existem esses planos soltos dentro da narrativa, outros que
seriam essenciais diegeticamente, o público não assiste. Por exemplo, a cerimônia de
casamento não aparece. Aliás, esta é uma característica de Ozu, que apesar de abordar
em vários filmes o tema do matrimônio, a cerimônia em si o público não participa.

11
WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. trad. M. Irene de Q. F. Szmrecsányi e
Tamás J. M. K. Szmrecsányi. 5. ed. São Paulo: Pioneira, 1987.
12
BURCH, N. “Ozu Yasujiro” in NAGIB, L. e PARENTE, A. (Org) Ozu: o extraordinário cineasta do
cotidiano trad. Maria L. S. de Almeida et allii. São Paulo: Marco Zero, 1990. pp. 29-56
104

Sempre testemunhamos a noiva se arrumando (quando o pai lhe dá um conselho) e


depois das bodas, o pai bebendo. A cerimônia é cortada, há uma elipse. Interessante
notar que toda a narrativa caminha para o casamento, mas o que imaginaríamos que
fosse o clímax da história (a cerimônia em si) para o público é negado. Ora, em Ozu,
não existe clímax, pois o filme possui uma homogeneidade dramática. Isto demonstra
uma qualidade ímpar do cineasta, pois o uso das elipses foi concebido para cortar o
desnecessário do fluxo narrativo. Aqui, o momento para o qual a narrativa se direciona é
escondido do público. Isto demonstra que o personagem se define menos pelo resultado
visado por sua ação do que pela sua forma peculiar de engajamento num projeto. Esta é
a escolha autenticamente moral!

Como não é um filme voltado para os fins, ele capta os atos simples, banais,
que são as expressões da ação pura. Para entendermos melhor, é necessário conhecer o
artista. Ozu era zen-budista e a sua concepção religiosa influenciou o seu estilo artístico.
O seu olhar sobre a vida cotidiana se articula com o pensamento da arte zen.

O Zen está voltado para a experiência individual e inexprimível, direcionado


para a iluminação interior. Assim, a arte é uma linguagem da alma que busca revelar
toda a beleza do cosmo. Essa beleza é orientada pelo mu (que pode ser traduzido por
nada, o vazio). Chegar ao mu é alcançar a iluminação. Portanto, a arte zen é uma “arte
sem arte”. Buscar a beleza nas coisas simples, num pingo de chuva, no perfume de uma
flor, no frescor da brisa. Assim, encontramos uma concepção totalmente distinta da arte
ocidental renascentista. Não existe algo semelhante à “obra de arte”, algo cujo único
sentido é ser contemplado. A beleza é uma experiência única e pessoal, onde sentimos a
profundeza inefável do mu (vemos que o “nada” possui um papel ontológico
fundamental).

A nossa vida é uma parte do cosmo, e está relacionada com a harmonia do


todo. E este equilíbrio encontramos na natureza. Diversos filmes de Ozu possuem títulos
que se referem às estações do ano: “Flor do equinócio”(referindo à uma estação),
“Começo de primavera”, “Dias de outono”, “Fim de verão”, “Primavera tardia”( título
original de “Pai e filha”). O próprio filme em questão significa “O gosto de samma” (um
peixe comum no Japão), referindo à breve temporada no final do verão, que é a sua
105

época. As estações marcam períodos e são usada em relação às fases da vida e seus
respectivos estados de espírito:

Primavera = juventude = otimismo


Verão = meia-idade = quietude
Outono = velhice = melancolia
Inverno = morte = desconhecido13

Ora, vemos uma concepção de tempo cíclico. É essa temporalidade que Ozu
capta em seus filmes, exibindo o cotidiano, os atos repetitivos. Esta é uma
temporalidade que está se perdendo em seu Japão. O mundo industrial, com sua ânsia de
velocidade e criação constante de obsolescência, não comporta condição para tempo
cíclico. É uma nova temporalidade. Porém, neste pós-guerra, tampouco é um tempo
linear, típico da modernidade, mas um tempo descontínuo, contraditório, de rupturas e
simultaneidades.14 É um choque total de mundos. E Ozu quis registrar o tradicional
tempo cíclico em seus dias contados.

O filme em questão possui um tom bem melancólico. A fala do ex-professor


durante sua embriaguez é uma sentença que percorre a obra: “o homem é um ser
solitário”. Quando escrevia o roteiro deste filme com Noda, a mãe de Ozu falecera. Foi
um duro golpe para o cineasta que, solteiro, sempre vivera com a mãe. Realmente, a
melancolia e a amargura estão presentes em todo o filme. A solidão é um fantasma que
assombra o pacato Hirayama. No final do filme, ele se encontra com seus amigos. Neste
diálogo, Kawai recorda das sábias palavras do patético ex-professor, já que os filhos,
cedo ou tarde, abandonam os pais. Após esta seqüência, Hirayama sozinho vai beber no
bar, que é a materialização do passado. Irônico é o diálogo em que a mulher pergunta se
ele vem de um funeral, devido à expressão e à roupa. Ele responde que é quase isso.
Todos os freqüentadores do bar estão mergulhados num clima de morbidez. A marcha
marcial traz à tona as reminiscências da guerra, antes desta brusca ocidentalização do

13
ZEMAN, M. “A arte zen de Yasujiro Ozu, o poeta sereno do cinema japonês” in Idem, pp. 109-126.
14
LYOTARD, J.-F. A condição pós-moderna. trad. Ricardo Barbosa. 5 ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
1998.; BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar trad. Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L.
Ioriatti. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
106

Japão.15 A última cena exibe todo o peso da solidão em sete planos. São planos dos
cômodos da casa, como escadas, portas e janelas, com suas linhas e escuro, com a luz
vinda do fundo. Aqui, Ozu transforma em imagens o afeto da solidão. Nos dois últimos
planos aparece Hirayama, primeiro de perfil num corredor, o outro, mais aberto, é no
mesmo lugar, com ele indo à cozinha, no fundo do corredor. Bebe um copo de chá e
senta-se pensativo, de lado. Longe da câmera, há um ar de alheamento, marcando a
tristeza com o ambiente semi-escuro. A saída de Michiko da casa demonstra a vitória
dos valores modernos, a constituição da família mononuclear burguesa. Porém, a
conquista do individualismo tem por ônus a solidão na velhice. Hirayama é um herói
trágico, pois todo o seu esforço é fugir da solidão, porém o que faz é ir ao encontro dela.
Assusta-se diante da figura do ex-professor, querendo evitar ser um velho só e
amargurado. Porém, ao casar Michiko, acaba tornando-se no que tanto temia. Esse
quadro pessimista é o fim trágico de um mundo. O canto de cisne moral de uma cultura
milenar...

15
Esta transformação de valores no pós-guerra aparece em várias cinematografias. No cinema francês,
encontramos Jacques Tati (1907-1982) que através de suas comédias, critica fortemente a modernização
da vida européia. Significativa é a sua hilariante visão da “americanização” da França em “Carrossel da
esperança” (Le jour de fête; 1949).
107

PARTE III - A HISTÓRIA


108

Capítulo 1 – Existencialismo e Marxismo

Em “O ser e o nada”, Sartre faz uma análise ontológica da condição humana.


Num certo sentido podemos dizer que esta visão é incompatível com uma leitura
histórica. Estamos descrevendo uma essência e, portanto, algo que escapa das garras do
tempo. A Metafísica é um discurso meta-histórico. Devemos recordar também, que o
princípio ontológico principal de Sartre é a liberdade. Ora, se somos condicionados
numa determinada situação histórica, como podemos ser livres? Se estamos encerrados
nas relações do capitalismo (um produto histórico), em que sentido a minha conduta é
livre?

O desenrolar do pensamento sartreano vai abrir um espaço para a História. Se


o revolucionário possui uma prática de transformação, isso se deve à uma escolha,
oriunda de sua liberdade. Vemos que a História começa a ser desenhada nos moldes
sartreanos como uma escolha ou como um projeto fundamental em grande escala.
Agora, discutir que escolha é essa e quem a delineou é algo que iremos tratar no
desenrolar deste trabalho. Já sabemos que Sartre parte de uma concepção atéia e,
portanto, a História não seria um roteiro para a humanidade escrita por um Deus. Porém,
ao nos vermos como um ser histórico, isto não contradiz a minha liberdade, pois é
através de um meio de resistência que esta se manifesta. Portanto, viver numa
determinada situação histórica não nega o fato de ser livre. A respeito da ocupação
nazista, Sartre afirmou que foi o período em que os franceses estiveram mais livres, pois
a presença física do soldado alemão fez o francês se ver como um patriota, escolhendo o
colaboracionismo, o oportunismo ou a resistência. Ou seja, uma escolha pessoal frente à
uma realidade de opressão. Assim, Sartre vai ajustar o rumo de suas idéias ao encontro
da concepção de História de Karl Marx (1818-1883).

O que rege a História, segundo Marx, é o movimento dialético. Não


entraremos na origem da dialética, que remete à filosofia grega. Modernamente, o seu
idealizador foi Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), que viu no trabalho o
conceito-chave do desenvolvimento da condição humana. O trabalho é um movimento,
é um processo de transformação, que se vincula a uma superação dialética. Para
entendermos, devemos tomar o verbo em Alemão aufheben, que significa suspender.
109

Porém, possui três sentidos: o de anular, negar; o de elevar, erguer; e o de promover


alguma coisa a um nível superior, uma passagem de qualidade. Hegel utiliza este termo
em seu três sentidos: a superação dialética é, simultaneamente, a negação de uma
realidade, a conservação de algo essencial dessa e a passagem para um nível superior.
Vemos, desta forma, três etapas necessárias: uma tese (afirmação de uma realidade),
posteriormente uma antítese (a negação desta) e, por último, uma síntese ( a negação da
negação, ou seja, uma unificação conciliadora dos elementos contraditórios). Este
movimento prossegue, transformando esta síntese numa tese, e se desenvolvendo do
mesmo modo. Por exemplo, com o advento da República Romana,após a expulsão dos
etruscos, ocorre, durante três séculos, os conflitos da plebe pela sua igualdade política e
civil com o patriciado. Com a promulgação da Lei das Doze Tábuas, em 451/0 a.C., a
plebe conquista a igualdade política de cidadãos, sendo a base angular do Direito
Romano. Portanto, vemos uma superação dialética, quando a desigualdade cívica entre
plebeus e patrícios é anulada, conservando as diferenças internas desses dois grupos
sociais, elevados a um estágio superior do Estado Romano. Somente após a resolução
destes conflitos internos, Roma poderá se lançar à sua expansão militar e territorial,
visando o domínio do mar Mediterrâneo ocidental, abrindo frente aos interesses de
Cartago. Após a destruição desta cidade, Roma continuará seu projeto expansionista,
criando um dos maiores impérios da humanidade.1 Assim, ocorre um movimento
dialético na História, quando dois elementos contraditórios, mas não excludentes, se
relacionam. São elementos que surgem numa relação de contradição. Ao afirmar que um
homem não é um cachorro, trata-se de uma negação. Mas a contradição dialética é
quando os elementos estão numa relação de oposição. Assim, afirmamos que um
escravo não é um senhor e vice-versa. Os termos “escravo” ou “senhor” somente fazem
sentido dentro desta relação. No caso romano vemos tal processo entre a plebe e o
patriciado. Com as Doze Tábuas, esta contradição é anulada mas se mantêm
conservadas as diferenças étnicas e culturais.

Portanto, a história humana segue um movimento por entre elementos


contraditórios, que se manifestam através do trabalho. Contudo, este trabalho para Hegel

1
Devido a sua expansão territorial, as estruturas jurídico-políticas do Estado Romano começam a entrar
em crise em meados do século II a. C., ocorrendo um conflito entre a aristocracia senatorial e a ordem
eqüestre (comandantes militares). Isto é superado, após a tentativa de dois triunviratos, com a coroação,
em 27 a. C., de Otávio ou Otaviano (63 a.C.- 14 d. C.), que passa a se denominar Augusto. Nasce um
novo Estado: é o fim da Republica e o surgimento do Império.
110

não é o trabalho material dos homens concretos, mas a manifestação de uma Idéia, isto
é, o saber Absoluto. O Direito Romano, por exemplo, é uma etapa do desenrolar deste
Saber ou Espírito Absoluto. Portanto, a dialética hegeliana é uma lei do pensamento e
das idéias.

Para Marx, é o desenrolar das ações práticas dos homens que segue a lei das
contradições. Segundo ele, a História humana está vinculada à História da natureza,
ambos se condicionam mutuamente. Existe uma evolução das espécies e o homem,
como animal, não está isento desta marcha, porém é o único animal capaz de
transformar a natureza. Diante disto, Friedrich Engels (1820-1895) desenvolve a
concepção de Dialética da Natureza. Ou seja, a matéria também é regida por leis
dialéticas, desenvolvendo-se em contradições internas. Portanto, há uma luta intestina
entre os caracteres físico-químicos. Por exemplo, a adaptabilidade das espécies ao meio
ambiente é uma lei dialética. Digamos que, por uma mutação genética, nasce um
cafeeiro resistente a uma espécie de larvas. Consegue-se reproduzir, ocorrendo um
aumento quantitativo da realidade: ao invés de um cafeeiro mutante, existem vários.
Posteriormente, por uma mudança climática, a população de larvas cresce, ocorrendo
uma mudança qualitativa: somente os cafeeiros mutantes resistiram à praga. Este
raciocínio também é empregado à matéria inorgânica: a água do rio, pelo calor, nega-se,
transformando-se em vapor d’água, condensando-se em nuvens. A chuva é a síntese, ao
vermos nuvens e água juntas. A perspectiva dialética da natureza transformou-se num
dogma aos pensadores marxistas posteriores, passando a ser o modelo teórico a ser
seguido pelos cientistas e técnicos de formação soviética.

Sartre rejeita esta doutrina, porque o Em-si é algo incognoscível e, portanto, é


impossível afirmar a existência de leis internas. Além de que, para funcionar a dialética,
são necessários conceitos como “temporalidade”, “negatividade”, ou seja, elementos
que somente existem com o Para-si. Para afirmarmos que há uma tese-antítese-síntese
no fenômeno natural da evaporação e da condensação, é preciso haver uma cadeia lógica
entre a água do rio, o vapor d’água e a água da chuva. A água do rio que evapora remete
à um futuro inexistente que é a chuva. Ora, já vimos que somente a consciência é capaz
de uma negação, projetando-se para o futuro. Portanto, a dialética vem ao mundo pelo
Para-si. A matéria ignora o movimento; é algo completamente inerte. Somente com a
intervenção humana, é possível identificar elementos dialéticos na natureza, quando esta
111

passa a se integrar na História humana, como um meio produtivo. Devemos recordar


que a dialética é um mecanismo da consciência, logo, ao identificarmos tais leis na
natureza, é algo que provém do olhar humano. Os corpos celestes não precisam estudar
as leis da Física para realizarem suas revoluções. O mesmo ocorre com a dialética, estas
leis estão na consciência, e não na matéria.

Portanto, é uma temeridade afirmarmos a existência de uma dialética na


natureza. É na História humana, onde ela é mais concebível, onde devemos analisá-la.
Marx estudou o seu funcionamento na História humana, estudo este que foi levado ao
campo da matéria por seu companheiro Engels. Isto até é compreensível, pois a
Natureza, por ser um estado de coisas por definição, é a arqui-rival da História.
Empolgado com a teoria evolucionista de Charles Darwin (1809-1882), Engels viu uma
historicidade na Natureza, aplicando o método dialético. Lamentavelmente, para Sartre,
o marxismo seguiu sob a sombra de Engels, já com as idéias evolucionistas de seu
herdeiro Karl Kautsky (1854-1938) e da concepção científico-natural da ciência social
do teórico político Lênin (1870-1924). Porém, as idéias de Marx jamais chegaram a um
materialismo economicista evolutivo.2 Assim, devemos buscar a origem da dialética, o
seu fundamento; o que Marx não chegou a realizar.

Se existe uma dialética no movimento histórico, sendo que são os homens que
realizam a História, vemos que a dialética está encerrada nos homens. Somos seres
dialéticos! A consciência, através do projeto, sendo uma totalização-em-curso, age
através do método dialético, negando uma realidade, projetando-se para o futuro.
Portanto, antes de irmos para a História, devemos estudar a sua fonte, ou seja, a razão
humana. É na subjetividade do indivíduo, onde está o primeiro momento da dialética.
Portanto, esta não é uma lei universal da História, mas uma condição existencial, uma
realidade vivida pelos homens. Assim, toda dialética histórica se origina na
subjetividade individual, pois a História provém dos homens.

2
“Engels qui tire le matérialisme dialectique vers l’économisme, Engels qui décrit l’exploitation comme
um processus physico-chimique et qui fait naître les conflits sociaux non de la structure même du regime
de production, mais de l’évolution de ce regime, Engels qui nous montre les hommes produits par le
systéme sans nous faire voir le systéme produit par les hommes et qui réduit le conflit interhumain à n’être
qu’une expression symbolique des contradiction de l’économie.” SARTRE, J.-P. Situations VII. Paris:
Gallimard, 1965. pp 13-5.
112

Porém, se a dialética se encontra em nossa subjetividade, não estamos


correndo o risco de cairmos num hegelianismo? Se a dialética existe em primeiro lugar
na consciência, trata-se apenas de uma lei do pensamento? Não, porque este
subjetivismo está vinculado a uma práxis. Lembremos que o Para-si somente existe no
mundo do Em-si. É impossível desuni-los. Assim, a menor unidade histórica é a ação
individual, que é a experiência original do processo dialético. Através do projeto, ocorre
uma transformação no mundo concreto passando pela subjetividade do indivíduo.
Porém, na História não existem homens atomizados, pois estes pertencem a grupos e
classes sociais. A História não é um pulular de projetos individuais. Portanto, a
desalienação do indivíduo ocorre com a formação do grupo. Estudaremos este tema
detalhadamente mais adiante.

Desta forma, se somos visceralmente seres dialéticos, a razão dialética é a


única capaz de compreender a realidade humana. O problema das ciências humanas (e
do marxismo atualmente) é o de se debruçar sobre o homem através da razão analítica.
Encaram o homem como algo inerte, submetido às leis exteriores, impotentes para
qualquer ação interna. Descreve-no como uma coisa alheia ao processo históricos.
Mesmo o marxismo incorreu neste erro, criando um paradoxo total, pois, ao afirmarem
que a História é dialética, certos marxistas tornam os movimentos sociais como encaixes
de blocos endurecidos. A História passa a ser uma série de fotografias, como imagens
estáticas. Assim, o seu movimento é retirado, sendo incompreensível como uma
conjuntura histórica passa para outra, em suma, não existe movimento. A História é
como um filme, e não uma sucessão de imagens paradas. Nesta perspectiva, o homem
passa a agir impelido por leis que o oprimem. Ele é um mero efeito de causas materiais:
dos sistemas sociais, das condições de vida, de ligações físico-químicas no sistema
nervoso. Ele passa a ser um boneco nas mãos da matéria. Encarado desta forma, os
homens são pateticamente passivos, seguindo o fluir da História como um barco à
deriva, ao sabor das ondas.

Isto não significa para Sartre que a razão analítica deve ser abandonada. Ela
possui a sua utilidade, pois separa, classifica, descreve; porém, não relaciona os
elementos seccionados. Este é o ponto da polêmica de Sartre com o antropólogo Claude
Lévi-Strauss (1908- ). Este ironiza Sartre, em seu discurso encomiástico sobre a
dialética, demonizando a razão analítica, enquanto que em seu livro “Crítica da razão
113

dialética” (Critique de la raison dialectique), o autor aplica o método analítico ao


classificar, separar, descrever. Ora, Sartre reconhece isto, e, em nenhum momento,
apresenta a razão dialética como oposta à analítica, como o “diabo e o bom Deus”. Até
porque, para ocorrer a dialética é preciso uma etapa analítica: primeiro, devemos
descrever, analisar os objetos de estudo para depois coordená-los. É neste sentido que
Sartre afirma o primado da dialética sobre a analítica. A razão analítica está a serviço da
razão dialética. Porém, a polêmica com Lévi-Strauss se encontra em outro nível, no
modo de conceber o estudo das ações humanas. Não entraremos nos meandros desta
discussão, na crítica de Sartre ao estruturalismo, que entrou em moda na França
justamente quando o existencialista conciliou seu pensamento com o marxismo.
Enquanto se falava em “estruturas”, “isso fala”, Sartre falava em “totalização-em-
curso”, “grupo-em-fusão”. Porém, Sartre jamais considerou o estruturalismo como um
disparate cientificista; tratava-o com respeito, como algo importante para o pensamento
desde que se reconhecessem seus limites. As “estruturas”, o olhar analítico não são
capazes de abarcar toda a complexidade da realidade.

Vimos que em sua vida, Sartre começou a agir cada vez mais como militante.
A idéia de fundar a revista Les Temps Modernes, com o final da guerra, partiu da
intenção de vincular o trabalho intelectual com a atividade política. Após anos de
intensos estudos, em 1960, vêem à luz a já citada obra “Crítica da razão dialética”.
Sartre havia rompido com o seu pró-sovietismo, quando o Exército Vermelho ocupara
as ruas de Budapeste em 1956, enquanto os partidos comunistas de todos os países ainda
estavam assustados com o relatório Krushev apresentado no XX Congresso do PCUS
(Partido Comunista da União Soviética). No ano da publicação de sua segunda grande
obra, a recente Vª República francesa começava a negociar com a sua colônia Argélia,
assolada por uma sangrenta guerra. O resto da África, acompanha este processo de
independências, às vezes violentas, como é o caso dos belgas que tentam reprimir os
nativos de Ruanda (dividida por conflitos étnicos) e de Congo. Portugal e Espanha,
ainda sob ditaduras de origem fascista, desconhecem o diálogo com suas colônias,
sufocando qualquer movimento de libertação. No outro lado do mundo, começam as
tensões entre a China e a União Soviética, desestruturando a órbita socialista,
promovendo contestações da Albânia, enquanto a rebelde Iugoslávia, preocupada com
sua independência após o ocorrido na Hungria, busca se conciliar com o Kremlin. O
114

Vietnã do Sul, outrora colônia francesa, se inquieta com a ação de guerrilheiros


comunistas, aumentando o número de agentes norte-americanos no país. Porém, o
grande estorvo dos Estados Unidos é Cuba, que experimenta os primeiros anos do
governo revolucionário dos barbudos de Sierra Maestra. No Oriente Médio, os
“capacetes azuis” da ONU (Organização das Nações Unidas) ocupam o Sinai, porém os
conflitos entre Israel e os países árabes, liderados pelo nacionalista Egito, estão longe de
serem resolvidos, sobretudo com a recente criação de diversas organizações palestinas,
dando força militar e política a estes cidadãos rejeitados tanto pelos israelenses quanto
pelos árabes.

Veremos como Sartre concilia o seu pensamento com o marxismo. Para ele, a
Filosofia não existe; há filosofias, que expressam o movimento geral da sociedade, e
enquanto a sociedade se estrutura de determinado modo, tal filosofia subsiste. Porém,
esta filosofia jamais se apresenta como algo inerte, acabada; ela própria é movimento
como uma expressão das ações da sociedade. O filósofo é aquele que opera a totalização
do saber de sua época, unificando todos os conhecimentos, orientando-os em certos
esquemas diretores que traduzem as atitudes e técnicas da classe ascendente diante de
sua época e diante do mundo. Posteriormente, após os seus princípios serem esmagados,
a filosofia nos é apresentada como uma idéia desvinculada de sua práxis, como uma
simples expressão. Portanto, a filosofia permanece eficaz enquanto experimenta a práxis
que a engendrou. Porém, ela se transforma, perdendo a sua singularidade e limpada do
caráter datado, passa a impregnar as massas, transformando-se nelas e por elas como um
instrumento coletivo de emancipação. É neste contexto que entendemos o papel do
racionalismo cartesiano na origem dos panfletos políticos dos iluministas do século
XVIII, ultrapassando a própria concepção burguesa, e infiltrando-se nas camadas
populares.

Percebemos, então que, por seu caráter tão abrangente, são raros os momentos
de criação filosófica. Entre os séculos XVII e XX, encontram-se três destas épocas: a
primeira, a de Descartes e John Locke (1632-1704); depois a de Immanuel Kant (1724-
1808) e Hegel; e, finalmente, a de Marx. Essas três filosofias, por sua vez, permanecem
sendo o horizonte intelectual e cultural de uma época, enquanto o momento histórico em
que foram criadas não for superado. Porém, outros homens prosseguirão o desenrolar
deste pensamento, explorando outros campos não abordados pelos filósofos, utilizando
115

os utensílios que nos deixaram. São construídos novos artefatos, conduzindo


modificações internas com suas investigações, pois este pensamento não está acabado, é
algo vivo. A estes homens chamamos de ideólogos. Portanto, o existencialismo é uma
ideologia, que vive parasitariamente à margem do saber, a qual inicialmente tentava
opor-se, mas que agora tenta integrar-se. Porém, para melhor compreendermos esta
relação, devemos retornar a Kierkegaard.

A mais ampla de todas as totalizações filosóficas é o hegelianismo. Aqui, não


há uma mera relação entre o Saber e o Ser, o último é incorporado e dissolvido no saber,
que se desenrola conhecendo a si mesmo: o espírito se objetiva, se aliena e se retorna
incessantemente, se realiza como História. Os homens se alienam, exteriorizam-se nas
coisas, porém, toda alienação é superada pelo Saber Absoluto. Assim, os sofrimentos e
as angústias dos homens são atravessados pelo Saber, dissolvendo-os, integrando as
consciências humanas à totalização suprema, passando-os ao absoluto, o único concreto
verdadeiro.

Kierkegaard não chegou a constituir uma filosofia (aliás ele sempre recusou o
título de “filósofo”), mas suas idéias se apresentam como uma reação à sistematização
do hegelianismo, pois existe uma singularidade irredutível do vivido. O homem
existente não pode ser assimilado por nenhum sistema de idéias, pois o seu sofrimento
sempre escapa do Saber. É impossível objetivar a dor da perda, a culpa dos pecados, a
dúvida acerca da salvação e o medo da morte. Kierkegaard prega a irracionalidade
radical da religião, onde a distância entre Deus e o homem é infinita. Os Seus
mandamentos são incognoscíveis, nenhum saber (como a filosofia, a teologia ou a
ciência) é capaz de apreende-los, somente através de uma fé subjetiva. A pura
subjetividade se opõe a qualquer universalidade objetiva da essência, que alcança uma
tranqüila mediação. O homem descobre em si mesmo oposições, indecisões, equívocos
que não podem ser superados. Esta interioridade infinita e profunda, constituída de
paradoxos, ambigüidades, dilemas, reencontrada para além de qualquer juízo lógico
através de um ato pessoal diante dos outros e de Deus, Kierkegaard chama de existência.
Esta, na medida em que é vivida, não pode jamais ser objeto de um saber.

Portanto, é impossível separar Kierkegaard de Hegel, pois seu pensamento


surge como uma negação de todo o sistema hegeliano e de seus conceitos totalizantes,
116

como uma “reação do romantismo cristão contra a humanização racionalista da fé”. Há


que se concordar que tanto Kierkegaard quanto Hegel têm razão. O filósofo alemão está
certo ao transcender esta obstinação em paradoxos cristalizados, remetendo-os a uma
subjetividade pura e abstrata, enquanto que é pelo concreto que devemos nos interessar.
Por sua vez, o ideólogo dinamarquês está certo ao afirmar que a dor, a paixão, o
sofrimento dos homens são realidades brutas que escapam de qualquer saber, não
podendo por ele ser modificadas. É certo que o subjetivismo religioso de Kierkegaard é
um grande palácio idealista, mas dá um passo adiante de Hegel, ao afirmar o primado de
uma irredutibilidade de um certo real ao pensamento. Ou seja, o ser é irredutível ao
saber. São dois termos incomensuráveis.

É justamente o mesmo aspecto que encontramos em Marx, mas num outro


nível. Para Marx, Hegel confundiu a objetivação, simples exteriorização do homem nas
coisas, com a alienação que volta contra o homem a sua exteriorização. Assim, basta
uma virada da consciência, através da dialética, para que o homem contemple a si
mesmo num mundo que ele criou. Porém, não é possível tal passe de mágica, pois não
se trata de um mero jogo de conceitos mas da História real. Através da produção
material de sua existência, os homens entram em relações que são independentes de sua
vontade, mesmo sendo os próprios homens aqueles que engendram tal processo, mas
segundo normas que, no entanto, escapam à sua consciência social. Os homens pensam
sobre si próprios através de uma estrutura erguida sobre a reprodução material de suas
vidas. Na fase atual, ocorre um descompasso entre as forças produtivas e as relações de
produção, agravando o caráter alienatório do trabalho, quando o homem não se
reconhece no seu próprio produto, encarando-o como algo autônomo e inimigo. Existe
uma realidade histórica que é irredutível a uma idéia, ou seja, não basta ter consciência
de tal processo para este se desfazer, mas realizar um trabalho material através da práxis
revolucionária. É necessário realizar uma ação no plano concreto. Há um primado da
ação sobre o saber. Como diz Sartre: “Afirma ele [Marx], também, que o fato humano é
irredutível ao conhecimento, que ele deve ser vivido e ser produzido; apenas não vai
confundi-lo com a subjetividade vazia de uma pequena burguesia puritana e mistificada
[Kierkegaard]: dele faz o tema imediato da totalização filosófica e é o homem concreto
que ele coloca no centro de suas pesquisas, este homem que se define simultaneamente
117

pelas suas necessidades, pelas condições materiais de sua existência e pela natureza de
seu trabalho, isto é, de sua luta contra as coisas e contra os homens”.

Assim, Marx inaugura uma nova filosofia, abrangendo com o seu pensamento
a realidade do trabalho alienado que sustenta o capitalismo. Marx destrói tanto as idéias
de Kierkegaard quanto as de Hegel, pois afirma, como o primeiro, a singularidade da
existência humana, e, como o segundo, o homem concreto na sua realidade objetiva. O
existencialismo, sendo um protesto idealista contra o idealismo, ficará oculto no campo
do pensamento durante anos. Contra Marx, a burguesia criará um exército de pós-
kantianos e neocartesianos, até que somente no início do século XX, a figura do
dinamarquês retorna, ao combater a dialética marxista com ambigüidades, paradoxos,
pluralismos, no momento em que o pensamento burguês passa à defensiva. É o caso de
Jaspers, que aparece no entre-guerras, descrevendo os labirintos da subjetividade, com o
objetivo de mostrar a infelicidade do homem sem Deus. Termos como “transcendência”,
“malogro”, revelam um tom pessimista próprio a uma burguesia descristianizada mas
nostálgica da fé pois perdeu a confiança em sua ideologia racionalista e positivista. Este
dilarecimento da subjetividade humana, apresentado pelos existencialistas, se volta não
mais contra o Saber de Hegel, mas contra a práxis marxista.

Sartre relembra a sua trajetória intelectual, em que o pavor da burguesia ao


marxismo era tanto que, quando era estudante universitário, o currículo dos cursos de
Filosofia iam até Kant. Inclusive Hegel, o pai da dialética usada por Marx, era um
desconhecido nas cátedras francesas. Óbvio que os livros de Marx ocupavam as
prateleiras de suas bibliotecas, pois até os professores incentivavam a sua leitura, já que
é preciso conhecer para refutar. Porém, sem conhecimentos de dialética e professores
marxistas, como compreender a profundidade da obra marxiana? Assim, os homens
daquela geração não se transformavam com suas leituras, pois encaravam os textos de
Marx como “as concepções de um intelectual alemão que habitava Londres nos meados
do século passado”. Devido à sua formação idealista, estes homens não possuíam
conhecimento da condição concreta da classe proletária, encarando-a como a encarnação
de uma idéia, que através de uma revolução cumpriria o seu papel messiânico para a
humanidade. Educados no humanismo burguês, estes jovens viam o mundo ao seu redor
se despedaçar, mas através de um olhar idealista e individualista. Amavam os autores
que denunciavam a hipocrisia daquela sociedade, explicando que a existência era um
118

escândalo. Simone de Beauvoir relembra criticamente, de forma genial, esses anos de


juventude:

Éramos contra a sociedade, em sua forma atual; mas esses


antagonismos nada tinham de melancólico: implicava um robusto
otimismo. O homem devia ser recriado e essa invenção seria em parte
obra nossa. Não pensávamos contribuir para isso senão com livros; os
negócios públicos aborreciam-nos, mas esperávamos que os
acontecimentos se desenrolariam segundo nossos desejos sem que
tivéssemos que nos meter neles. (...)
Ignorávamos em todos os terrenos o peso da realidade.
Vangloriávamo-nos de uma liberdade radical. Acreditamos durante
tanto tempo e com tenacidade nessa palavra que preciso ver de perto o
que nela púnhamos. Cobria uma experiência real. (...) Tínhamos da
liberdade uma intuição prática, irrecusável; nosso erro foi não a
encerrar dentro de seus justos limites (...). O dado apareceu-nos como
a matéria de nossos esforços, não como seu condicionamento;
pensávamos não depender de nada. Assim como nossa cegueira
política, esse orgulho espiritualista explica-se antes de tudo pela
violência de nossos projetos. Escrever, criar: não ousaríamos em
verdade arriscar-nos a essa aventura se não tivéssemos absoluta
certeza de nós, de nossos fins e de nossos meios. Nossa audácia era
inseparável das ilusões que a sustentavam e as circunstâncias as
haviam favorecido juntas. (...) Nossa existência satisfazia tão bem
nosso desejos que nos parecia que a tínhamos escolhido; daí
augurarmos que sempre se submeteria a nossos desígnios. A sorte que
nos serviria mascarava-nos a adversidade do mundo. Por outro lado,
interiormente, não sentíamos empecilhos. Eu mantinha boas relações
com meus pais, mas eles tinham perdido todo domínio sobre mim;
Sartre nunca conhecera o pai; nem sua mãe nem, seus avós tinham
encarnado a lei a seus olhos. Em certo sentido, éramos ambos sem
família e tínhamos erigido essa situação em princípio. (...) Não
hesitávamos em contestar todas as coisas e nós mesmos todas as vezes
em que a ocasião a solicitava; criticávamo-nos e condenávamo-nos
com desenvoltura, porquanto toda mudança se nos afigurava um
progresso. Como nossa ignorância dissimulava-nos a maior parte dos
problemas que nos deveriam ter inquietado, contentávamo-nos com
essas revisões e imaginávamo-nos intrépidos. (Beauvoir, 1994, pp. 19-
0)

Foram a guerra, a ocupação e a resistência que ensinaram a esse jovem casal,


o fator vital da prática política como meio de trabalho social. Antes disso, eles já se
interessavam pelos homens reais com seus trabalhos e suas dores, devido à falência do
humanismo idealista burguês. Como escreve Sartre: “exigíamos uma filosofia que desse
conta de tudo sem nos aperceber de que ela já existia e que era ela, justamente, que
provocava em nós essa exigência”. No pós-guerra, quando estes homens descobriram a
violência do mundo concreto, o existencialismo vem a adquirir um papel de destaque.
119

Por quê? Se a intenção destes pensadores era o encontro com os homens concretos, por
que o existencialismo não se dissolveu no marxismo? É o que tenta responder György
Lukács (1885-1971), afirmando que os intelectuais burgueses deram um último passo ao
seu idealismo moribundo, abandonando o seu método, mas salvaguardando seus
fundamentos e resultados, tentando buscar uma ilusória “terceira via” entre o idealismo
e o materialismo. De uma certa forma, Lukács demonstrou as ilusões idealistas por
detrás daquele discurso, mas havia algo muito mais profundo que este húngaro, um ex-
kantiano convertido ao marxismo-leninismo durante a Primeira Guerra Mundial, não era
capaz de entender: “estávamos convencidos ao mesmo tempo de que o materialismo
histórico fornecia a única interpretação válida da história e de que o existencialismo
permanecia a única abordagem concreta da realidade”. Ora, o marxismo exercia uma
forte influência mas não atendia às exigências daqueles homens. Por quê? Isto se deve à
própria condição em que o marxismo chegou, deixando de ser um pensamento e uma
prática, pois operou-se uma “verdadeira cisão que jogou a teoria de um lado e a praxis
do outro.” Este divórcio transformou a prática num empirismo cego e a teoria num
Saber puro e cristalizado. O marxismo, que possui a condição de abarcar toda a
atividade humana, endureceu, erguendo conceitos a priori de um Saber absoluto. O
existencialismo renasceu então, ao realizar as mesmas críticas de Kierkegaard a Hegel.
Porém, se o luterano de Copenhague recusa a concepção hegeliana de homem e real, o
existencialismo e o marxismo visam o mesmo objeto, de formas distintas, já que o
último busca o homem na idéia e o segundo, no cotidiano. Discordamos de Kierkegaard
de que o homem é incognoscível, mas que ele continua desconhecido pois o marxismo
concreto não existe, tornando-se um idealismo voluntarista, isto é, num conjunto de
juízos mantidos sobre a idéia de matéria e idéia dialética.

Isto não significa que o marxismo tenha envelhecido, convertendo-se num


pensamento caduco e decadente. Pelo contrário, o marxismo ainda está por fazer! Ele é
“a filosofia insuperável de nosso tempo”, pois as condições que a engendraram são as
mesmas. É claro que o capitalismo não é algo estático, mas o tipo de relações e de
homens que são produzidos são os mesmos, pois se referem à definição deste sistema
econômico. Enquanto existir o constrangimento ao trabalho causado pela exploração,
esta filosofia não nos abandonará. Somente na sociedade comunista, quando os homens
reproduzirem a sua vida material em sua plena consciência, será possível afirmar o
120

homem livre em sua plenitude. Qualquer pensamento que tente explicar a nossa
sociedade fora dos quadros do marxismo, acaba caindo em idéias pré-Marx. É o caso de
qualquer pensamento que negue a exploração capitalista, concebendo um homem livre
nos moldes iluministas do século XVIII.

É bem verdade que Sartre utiliza o termo “liberdade” em sua obra. Se é


impossível concebermos uma filosofia da liberdade em nosso tempo, como explicar este
termo empregado por Sartre? Este conceito se refere a uma liberdade alienada, pois
estamos lidando com um tipo de homem que é um ser alienado. Alienação e liberdade
não são termos contraditórios, pelo contrário, só é possível alienar um ser livre. Não se
escraviza uma pedra ou uma máquina. Assim, o pensamento sartreano se enlaça ao
marxismo, que continuará a viver até o dia em que os homens chegarem ao verdadeiro
reino da liberdade: “o marxismo é uma descrição verdadeira de um homem inteiramente
falso, de um homem falseado pelas próprias premissas de suas técnicas e de suas
necessidades.” Quando a sociedade comunista for implantada, o marxismo se desfará
como espuma, dando lugar a uma filosofia da liberdade. Aqui esbarramos numa
sutileza, pois a palavra “liberdade” possui dois sentidos. Não podemos afirmar que a
liberdade sartreana é uma espécie de predecessora da liberdade comunista, como uma
proto-idéia. Isto é impossível, pois ainda vivemos num mundo da exploração, sendo
inconcebível para nós qualquer outro tipo de liberdade que não seja a alienada. Como o
marxismo é o horizonte filosófico de nossa era, não somos capazes de pensar fora de
seus parâmetros.

O existencialismo propõe lubrificar o marxismo, que foi cristalizado.


Devemos compreender como os homens entram em relação entre si e com as coisas. A
sociedade não é formada por indivíduos isolados que entram em relação, mas já por
seres atravessados por relações sociais. Portanto, o nosso subjetivismo existencialista
não é um individualismo burguês. Valorizamos o aspecto subjetivo, pois é através dele
que a práxis humana entra em contato com o mundo concreto. O indivíduo apreende os
valores e as técnicas da sociedade capitalista no meio familiar. A infância é um período
importantíssimo para o existencialista, pois é nela que o indivíduo interioriza a condição
do mundo objetivo e os valores de sua classe. Os marxistas contemporâneos esquecem
que os homens um dia foram crianças, encarando o surgimento do homem quando
ganham o seu primeiro salário. Até se tornar um agente do meio produtivo, o indivíduo,
121

no seio de sua família, interiorizou, a seu modo particular, o funcionamento desta


sociedade, com suas práticas, costumes e preconceitos. Não existe o acaso, não no
sentido em que entendemos, pois a criança se torna esta ou aquela pessoa pois ela
particularizou um universal. Ela viveu no particular uma condição social e é justamente
na família, que é o ponto de inserção da classe com o indivíduo, que ocorreu tal
processo. Este momento é o que chamamos de interiorização da exterioridade.

O indivíduo, ao se movimentar com maior desenvoltura, se manifesta nas


relações sociais que o atravessam (laços profissionais, afetivos, matrimoniais, etc).
Diante deste mundo concreto, que ele faz parte, começa a agir segundo os preceitos que
ele interiorizou. Tomemos cuidado em não acharmos que estamos falando da
manifestação de alguma “essência”, mas de um modo de agir construído, de uma práxis
que passa obrigatoriamente pela subjetividade. Entenderemos isto melhor ao
abordarmos o projeto e a práxis. Em suma, este momento é a exteriorização da
interioridade.

O existencialismo propõe analisar estes dois momentos da ação humana. Isto


através do que Sartre batiza de método progressivo-regressivo, dando conta
simultaneamente da circularidade das condições materiais e do condicionamento mútuo
das relações humanas estabelecidas sobre esta base. É segundo este modelo teórico que
o filósofo (ou melhor ideólogo) francês utiliza em sua última grande obra: L’Idiot de la
famille, que através de suas 2.801 páginas, em três volumes, estuda um dos seus
escritores preferidos, Gustave Flaubert (1821-1880).4 O que o motiva é compreender as
relações da luta de classe na França do século XIX e a vida pessoal deste literato,
considerado um dos pais do realismo: “Flaubert era um burguês, mas nem todo burguês
era Flaubert”. Ou seja, estudar o que há de burguês em Flaubert e o que há de Flaubert
em sua condição burguesa. Não era a primeira vez que Sartre se debruçava sobre um
artista, relacionando-o com a sua condição existencial. Charles Baudelaire (1821-1867),
Stéphane Mallarmé (1842-1898) e Jean Gênet (1911-1976) passaram por seus escritos,
mas foi com Flaubert que Sartre aplicou o seu pensamento coligado com o marxismo.
Flaubert experimentou, durante toda a sua vida, um complexo de inferioridade diante de

4
Sartre ainda tinha o projeto de escrever um quarto volume que estudaria especificamente o romance
“Madame Bovary”, mas desistiu devido ao cansaço pelo tema e a impossibilidade de se dedicar ao estudo
devido à cegueira.
122

seu irmão Achille, pois seu pai sempre o considerou um inapto, o “idiota da família”.
Seguiu a carreira jurídica, trabalho que odiava, buscando nas letras um modo de superar
a opressora figura paterna. Porém, também vemos a sua trajetória artística (marcada
pelos sofrimentos da infância às crises nervosas do fim da vida) associada com a
ascensão da pequena burguesia francesa no Segundo Império. Como escreve Sartre:
“Sabe-se que o marxista contemporâneo (...) pretende descobrir o objeto no processo
histórico e o processo histórico no objeto. Na realidade, ele substitui um e outro por um
conjunto de considerações abstratas que se referem imediatamente aos princípios. O
método existencialista, ao contrário, quer permanecer heurístico. Não terá outro meio
senão o “vaivém”: determinará progressivamente a biografia (por exemplo),
aprofundando a época, e a época, aprofundando a biografia”.

“Os homens fazem a História, mas não sabem que a fazem”, dizem os
marxistas. Esta frase obscura pode possuir diversas interpretações. Para os marxistas
contemporâneos, os homens herdam uma condição material das gerações anteriores, que
determinam agir de um certo modo. Porém, esta herança do meio produtivo foi criado
pelos homens do passado, portanto a História é humana. Vemos um verdadeiro discurso
contraditório, pois se a consciência é um mero reflexo da matéria, como é possível os
homens serem o sujeito da História? O existencialismo afirma que os homens fazem a
sua história sob uma base material já existente, mas não são essas condições que a
fazem, e sim, os próprios homens que decidem o que fazer com essas condições, senão
seriam meros instrumentos de forças inumanas que criariam, através e apesar dos
homens, o meio social. Porém, os homens se alienam no processo histórico, deixando de
o reconhecer como um produto seu. Isto ocorre pelo fato de a História ser a obra de
todos os homens ,e portanto, um emaranhado de projetos, com interesses conflitantes de
classes e grupos.

Sartre dá um exemplo que tanto adora: nas Ilhas Marquesas, existe um


problema crônico de fome, devido à escassez de alimento, e uma diferença demográfica
brutal, havendo muito mais homens do que mulheres. Existe, portanto, uma angústia
latente nos marquesinos que está relacionado com o alto índice de homossexualismo
como uma resposta à raridade das mulheres e da poliandria. Porém, não se trata apenas
de uma satisfação de necessidade sexual, mas de um ato de vingança contra a mulher.
Outro fator é a relação pai-filho ser mais carinhosa do que com a mãe, que demonstra
123

uma certa indiferença com sua prole. Ora, vemos, portanto, uma condição concreta, um
fator econômico desta sociedade: a escassez de mulheres. Isto não significa que isto
determina a homossexualidade dos marquesinos. Trata-se de uma escolha diante de um
campo de possibilidades (que é restrito, concordamos), pois esta sociedade poderia ter
encontrado outro caminho, não obrigatoriamente pela poliandria e pelo
homossexualismo. Poderia haver um mecanismo interno de controle populacional,
exterminando ou abandonando um certo número de meninos recém-nascidos como
sacrifício aos deuses. Portanto, a poliandria foi o rumo tomado no processo histórico
desta sociedade. E isto se vincula ao aspecto subjetivo destas pessoas, através do ar
indiferente das mulheres (que por serem raras e valorizadas possuem um certo poder) e
da angústia dos homens (devido à sua sensação de impotência). E cada indivíduo
experimenta esta realidade a seu modo: as suas relações com sua esposa, com os outros
maridos dela, são vivenciadas de modo distinto. E é nesta realidade que ele se aliena,
tomando aquele mundo social como uma natureza, objetivando a poliandria e o
homossexualismo que não foram escolhas conscientes, no sentido vulgar do termo
(lembremos que Sartre sempre recusou o conceito de inconsciente freudiano).5

Ao afirmarmos que o homem está alienado, não o estamos tratando como


uma coisa e a alienação como leis físicas que regem os condicionamentos de
exterioridade. Existe um ato humano que transforma o mundo sobre condições materiais
dadas. Encaramos o homem, acima de tudo, como um ser que age através da superação
de uma situação, fazendo daquilo que se fez dele, mesmo que não se reconheça neste

5
Voltemos a Flaubert: “(...) a passividade (...) para mim, no caso de Flaubert, ela tem duas causas: as
manipulações da criança de peito por uma mãe pouco amante e a crise da aprendizagem da leitura que
Gustave conhece passados os sete anos, quando o pai chama a si de forma autoritária e repressiva,
exercendo uma chantagem com a honra familiar, a alfabetização do filho mais novo. Achille, o irmão mais
velho, sempre foi apontado a Gustave como um modelo pela família, e daí a sensação de inferioridade
deste (...). Desse ponto de vista, Flaubert surge votado à passividade pelo seu próprio estatuto de filho
mais novo.
-Votado? Isso não poderá surpreender aqueles que vêem em si o filósofo da liberdade.
- De uma certa maneira nascemos todos predestinados. Somos votados a um certo tipo de ação desde
a origem, pela situação em que se encontram a família e a sociedade em dado momento. É
indubitável, por exemplo, que um jovem argelino nascido em 1935 está votado a fazer a guerra. Em
certos casos, a história condena antecipadamente. A predestinação é o que em mim substitui o
determinismo: considero que não somos livres – ao menos provisoriamente, hoje em dia – visto que
estamos alienados. Perdemo-nos sempre na infância: os métodos de educação, a relação pai-filho, o
ensino, etc., tudo isso dá um eu, mas um eu perdido. (...) Isto não quer dizer que esta predestinação
não contenha alguma escolha, mas sabe-se que ao escolhermos não realizaremos o que escolhemos: é
a isso que chamo a necessidade da liberdade. Por exemplo, Flaubert não estava inteiramente
condicionado a escolher a escrita. Isso veio a pouco e pouco, a partir do momento em que aprendeu a
124

ato. No caso dos marquesinos vemos a escassez das mulheres como uma situação, que é
superada pelo matrimônio poliândrico, que é o cerne desta sociedade. Isto ocorre através
do projeto, que é simultaneamente uma negatividade e uma positividade. Uma negação,
pois busca a superação de uma realidade concreta, e, positividade, pois cria um mundo
ainda não-existente. Reaparece aqui o “circuito de ipseidade”, quando uma realidade
objetiva é encarada por um futuro idealizado por um projeto subjetivo. É neste sentido
que entendemos a práxis revolucionária como uma ação de transformação do mundo,
pois o mundo burguês é imperfeito e seus problemas somente serão resolvidos na
sociedade comunista. Sartre escreve: “Simultaneamente fuga e salto para a frente, recusa
e realização, o projeto retém e revela a realidade superada, recusada pelo movimento
mesmo que a supera: assim, o conhecimento nada tem de um Saber absoluto: definido
pela negação da realidade recusada em nome da realidade a produzir, ele [o
conhecimento] permanece cativo da ação que ilumina e desaparece com ela [a ação].”
Isto se vincula ao funcionamento dialético da razão humana. O marxismo atual
imprimiu a dialética na História, como se fosse uma lei universal, esquecendo que é nos
homens que ela surge. E é justamente a práxis revolucionária a mais apropriada para a
transformação do mundo, pois ela chama para si a dialética. Ela exige uma
temporalidade dialética, um modo de encarar as coisas sob o ponto de vista dialético. O
tempo não está na História: a temporalidade surge da práxis humana. É através da ação
humana que um conceito de tempo é criado. Marx percebeu isso ao criticar a noção
burguesa de “progresso”, que necessita de uma temporalidade homogênea e linear.
Porém, o marxismo se desvirtuou ao se apropriar do “progresso”, criando uma dialética
paralisada, pois ela totaliza as atividades humanas dentro de um tempo contínuo e
homogêneo, seguindo o racionalismo burguês, ou seja, cartesiano.

O projeto está intrinsecamente ligado à práxis. Esta, por sua vez, é a


passagem do objetivo para o objetivo através da subjetividade. Em outras palavras,
temos uma realidade concreta dada que é interiorizada, movendo o projeto (um jogo
entre presente e futuro) para a superação desta situação, que é realizada por um trabalho
sobre o plano concreto. Transformamos o mundo através de um projeto subjetivo. Esta
relação inseparável entre o objetivo e o subjetivo é o que faz de Sartre alvo da crítica de

ler. Tudo isto corresponde àquela parte da Critique de la raison dialectique em que descrevo o que é
a liberdade alienada”. “Acerca de ‘L’Idiote de la famille’” in Situações X, op. cit. pp 91-2
125

seus detratores. Para os materialistas, Sartre é demasiado idealista, enquanto que para os
idealistas, ele é demasiado materialista.

Para Sartre, essa relação já havia, em germe, no próprio Marx. O filósofo


alemão era materialista, mas ele sempre se preocupou em não cair num materialismo
mecanicista. O materialismo prega que o ser determina o pensar, isto é, como diz Sartre,
o primado da existência sobre a consciência. O existencialismo, como seu próprio nome
diz, faz deste primado o objeto de uma afirmação de princípio. Aqui, Sartre, que apesar
de ateu sempre foi um crítico do materialismo, vincula o seu pensamento ao de Marx,
pois o seu materialismo não dota a matéria de um poder esmagador sobre os homens. Há
um espaço para a subjetividade humana, pois são os homens que criam e reproduzem o
seu meio material: “A verdade é que a subjetividade não é nem tudo, nem nada; ela
apresenta um momento do processo objetivo (o da interiorização da exterioridade), e
este momento se elimina sem cessar, para sem cessar renascer novamente”. Assim,
depois de uma exaustiva ginástica intelectual, Sartre vincula existencialismo com,
marxismo, entendendo por marxismo, o materialismo histórico. Voltamos a repetir, não
negamos convictamente a existência da dialética na matéria, não podendo afirmar ou
negar isto, sendo algo que escapa do alcance da razão humana. Portanto, é na História,
criada pelos homens e não por forças naturais ou sobrenaturais, que devemos estudar a
dialética. É preciso injetar sangue neste marxismo endurecido, enchendo de carne a
História, pois ela é feita por homens vivos; homens que sofrem, possuem alegrias e
tristezas, amam, odeiam e que protestam, unindo-se como uma força revolucionária. E é
na práxis, na formação do grupo, a etapa para a alienação ser rompida. Porém, antes de
chegarmos ao grupo, devemos entender o que é a alienação.
126

Capítulo 2 – A Alienação

Alienação é um termo criado por Hegel, que significa uma etapa do Espírito,
em que a consciência vê o fruto de sua própria criação como algo hostil, submetendo-se
a ele, ao invés de encará-lo como obra sua, ligada ao seu livre desenvolvimento. Hegel
afirma que o estado infeliz do homem se deve ao fato de seu ser estar dividido, ou seja,
não há uma conciliação entre a subjetividade e o universal. É necessário restabelecer a
unidade perdida, visando a libertação total do homem.

Hegel nutre uma forte nostalgia pela pólis grega, onde o homem era pleno,
identificando-se com o mundo, experimentando a felicidade e a completa liberdade.
Completamente distinta da Alemanha de sua época, dividida e governada por monarcas
absolutistas, onde a opressão e a censura reinavam. Hegel possui o projeto, em toda a
sua filosofia, de libertar o homem, e isto somente será capaz através da vida racional.
Ao analisar a vida na cidade grega, Hegel busca entender o que foi perdido.

Inicia uma crítica da religião estudada pelos iluministas. Estes buscavam uma
fé pura, limpa de qualquer preconceito e mistificações. Assim, chegam a dois princípios
que bastavam para satisfazer o homem: a crença em Deus e na imortalidade da alma. O
resto poderia ser atirado ao fogo, pois não passava de crendices e temores, inculcados
pela casta parasitária dos sacerdotes, pois o clero sempre foi um dos pilares do poder
aristocrático. Hegel criticará esta fé austera e serena, por ser algo abstrato, chamando-a
de religião positiva. O termo “positividade” aqui empregado possui um sentido
pejorativo, exprimindo algo estranho, hostil, petrificado. O que Hegel valoriza é o que
chama de religião do povo, que está intimamente ligada às práticas e costumes da vida
pública, ou seja, uma identidade da política e da religião. Era o que experimentavam os
gregos, pois a verdadeira deusa de Atenas era Atena, deusa da sabedoria, cujos cultos se
ligavam à vida política. Porém, algo que Hegel herda dos iluministas é o desejo de
constituir uma fé racionalizada, longe das superstições, obscurantismos e disparates da
religião no Antigo Regime. Hegel via na religião grega uma forma de pedagogia do
povo. Lembremos, inclusive, que ele foi seminarista em Tübingen, abandonando a
carreira eclesiástica por falta de vocação, dedicando-se aos estudos de filosofia e ao
magistério.
127

Vimos, portanto, que no jovem Hegel havia em seu pensamento uma forte
intenção política. Porém, ocorre uma mudança em seu pensamento a partir de 1807,
após a sua estada em Iena, quando subordina a política à especulação filosófica. Passa a
acreditar que o único meio de libertar o homem não é pela via política, mas pela
filosofia, constituindo uma autêntica vida plena, sistematizada pelo Estado racional. Não
entraremos aqui a discutir o motivo desta mudança, acerca da qual divergem os
estudiosos de Hegel. Para alguns, o filósofo sofreu uma decepção política, abandonando
o otimismo juvenil diante da impossibilidade de se realizar uma revolução liberal na
Alemanha. Para outros, foi um novo passo, não se tratando de uma decepção com a
política, mas de uma insuficiência da solução política diante do verdadeiro problema
que preocupava Hegel.

Assim, Hegel verá na alienação uma etapa do desenrolar do Espírito, que


caminha para a essência plena do homem. Esta plenitude perdeu-se após a pólis grega,
quando surgiu o conceito de propriedade privada pelos romanos, expandido
posteriormente, com o advento do cristianismo, até abarcar a própria espiritualidade no
conceito de conceito de salvação pessoal. A consciência voltou-se para si, com uma
valorização da subjetividade. Assim, ocorreu um divórcio entre o particular e o
universal. A vida dos homens na sociedade moderna se vê dominada por forças
econômicas e sociais estranhas, constituindo a sociedade como um grande mercado,
onde se relacionam meros indivíduos, formados por compradores e vendedores ligados
por trocas de mercadorias. É necessária uma unidade, através da filosofia, isto é, pela
universalidade da razão. Assim, somente no Estado racional, a plenitude é alcançada,
quando a vida privada do indivíduo se confunde com a vida pública do cidadão. Este
estágio é o coroamento de um processo, tornando necessário a infeliz cisão entre o
particular e o universal ocorrida após os gregos. Este novo Estado é a refundação da
pólis grega, mas num nível superior, pois agora, através da subjetividade, os homens
possuem consciência de sua felicidade e completa liberdade.

Marx irá subverter tudo isso! De início, irá mudar o seu ponto de vista em
relação à alienação. Hegel não a dotava de um sentido negativo, pois a alienação era
uma etapa, um momento do devir total. Marx adotara um sentido mais ético, pois a
alienação é vivida, comprometendo o seu pensamento para buscar uma destruição da
alienação. As suas idéias são impregnadas de um sentido de luta. Para Hegel, isto
128

ocorria pelo saber absoluto, que é o resultado e, ao mesmo tempo, a supressão das
alienações. Ele visa o sentido mais otimista, pois a exteriorização da consciência é um
momento indispensável de uma marcha progressiva. Assim, ocorre a totalidade humana,
quando a essência se reúne, porém enriquecida. Em Marx não existe este acúmulo
positivo mas, a intenção de reduzir a alienação, que é uma experiência concreta dos
homens. Não existe um otimismo progressista, até porque não há este desenrolar da
essência humana na História, pois o homem não possui essência, ele é histórico.

Uma das primeiras alienações que Marx irá identificar é a religião. Apesar de
descender de uma tradicional família de rabinos, jamais teve formação religiosa. Isto
muito se deve a seu pai, um racionalista liberal e laico, formado nas leituras dos
iluministas franceses e Kant. Chegou a converter a sua família ao protestantismo apenas
para dar maiores perspectivas à sua carreira jurídica. Portanto, desde jovem, coerente
com o pensamento vigente em casa, Marx verá a necessidade da emancipação da
alienação religiosa.

Porém, o seu pensamento irá divergir das críticas de Ludwig Feuerbach


(1804-1872), filósofo por quem Marx sempre nutriu um forte respeito apesar de suas
diferenças. Para Feuerbach, Deus é uma transposição dos valores humanos num ser
superior. Assim, as relações que o homem possui com a natureza e com os outros
homens são os modelos da relação com os seres divinos. Esta transposição para um
mundo imaginário provoca uma alienação ao homem, que sofre uma cisão entre o
individual e o genérico em sua humanidade. Esta essência genérica não é identificada
pois está descolada das pessoas, colocada num plano superior. Portanto, é necessário
destruir a religião, para que o homem retome a sua essência plena. Ora, para Marx,
Feuerbach faz uma excelente crítica à religião, porém derruba Deus de Seu trono,
trazendo-o à terra. O “Homem” tornou-se um novo ser supremo, sendo algo puramente
abstrato, pois não existe essência humana. Além do mais, a alienação religiosa é apenas
um reflexo de uma alienação muito mais profunda. É no mundo concreto em que o
homem está dividido, transportando este divórcio para o plano celestial. Assim, a
religião passa a ser uma arma de dominação por uma classe, pois legitima o seu poder,
tornando os homens passivos, preocupados e temerosos com seres imaginários,
desviando sua atenção da violência à qual estão submetidos. Portanto, não é através de
129

um movimento anticlerical e de um ateísmo militante, que esta alienação se irá desfazer.


É transformando o mundo concreto que irá ocorrer isto.

A filosofia não será a resposta para este mundo concreto, como pensava
Hegel. Para Marx, ela também é uma alienação, nascida como resposta à religião, mas
que acabou se convertendo numa variante. O homem está visceralmente ligado com a
sua produção material e, portanto, a especulação filosófica não leva em conta esta
condição humana. O filósofo é um homem dilacerado, e o seu esforço é contraditório,
pois pretende tratar de uma plenitude, à medida em que vive somente do pensamento,
convertendo-se num trabalhador intelectual separadamente do trabalho concreto e
histórico. O que Marx visa é um conhecimento associado a uma prática. Este é o grande
engodo da filosofia, pois ela, para existir, necessita dessa divisão ilusória entre teoria e
prática: “Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo diferentemente, cabe
transformá-lo.” Marx está engajado numa ação revolucionária e, portanto, o verdadeiro
pensamento é o que considera a sua ligação com a práxis.

Outro fator importantíssimo é que o plano das idéias é criado à imagem e


semelhança do mundo concreto. Ou seja, os filósofos, que vivem numa determinada
condição material e histórica, transportam o funcionamento da sociedade para as idéias,
acreditando que se trata de conceitos universais e eternas. Óbvio que isto ocorre de
forma inconsciente, pois os filósofos experimentam um tipo de existência que se
manifesta em suas idéias. Este processo de transposição das condições materiais para as
6
idéias é o que Marx chama de ideologia. Este fenômeno possui um papel vital para
assegurar o funcionamento da sociedade, pois escamoteia a exploração que a sustenta,
tornando os homens passivos diante dela. Diante de uma criação humana e histórica,
pensam que se trata de algo natural, universal, ontológico e, portanto, impossível de
imaginar de outra forma, pois é, foi e sempre será de tal forma. Assim, “as idéias da
classe dominante são, em cada época, as idéias dominantes”, ou seja, a classe dominante
detém, simultaneamente, o poder material e espiritual sobre a sociedade, pois quando
uma classe ascende ao poder, ela cria um mundo segundo seus interesses,
fundamentando uma ideologia. Esta ideologia já existia enquanto a classe lutava por sua
ascensão, mas a partir de sua consolidação, deixa de ser usada como uma arma de
libertação para ser um instrumento de dominação. Assim, todas as classes daquela
130

sociedade passam a experimentar a ideologia da classe economicamente dominante. Ela


passa a produzir uma universalidade que é ilusória, pois está baseada numa
particularidade. E a condição sine qua non da ideologia é a crença de que as idéias
existem em si, independentes do plano concreto, da condição material dos homens. Esta
é a cegueira de que sofrem os filósofos, como todos os demais homens da sociedade em
que vivem.

Outro erro de Hegel foi a sua ingênua crença em seu caro Estado racional.
Imaginava que o Estado era o máximo totalizador, que conciliava todas as divergências
da sociedade. Tratava-se de algo sublime, pois é o “universal concreto”, o próprio
Absoluto encravado nos homens (mais adiante veremos o que é o Estado para Hegel e
como o idolatra).Em suma, através do Estado, todas as diferenças se apagam,
congregando a sociedade como um todo harmônico, dando igualdade a todos os seus
cidadãos. Para Marx, o Estado não está além das particularidades, pelo contrário, é um
instrumento de dominação de uma classe. É construído todo um aparato coercitivo e
uma legislação que visam o funcionamento da exploração pela classe dominante.
Também oculta a luta de classes, criando a ilusão de se tratar de uma entidade autônoma
e neutra, que não sofre influências de interesses particulares. Cria-se a imagem de uma
sociedade harmônica, funcionando como um organismo, em que cada qual executa a
tarefa que lhe cabe. A separação das classes antagônicas é velada. O Estado não passa
de uma máquina de dominação a serviço de uma classe particular.

Podemos perceber, portanto, que todas essas dominações remetem a uma


alienação básica, na qual está sustentada toda a sociedade: a alienação econômica. É no
plano produtivo, onde fica a base da dominação de uma classe social específica. E é
sobre esta base, que edificará uma gigantesca estrutura (política, jurídica, religiosa,
ideológica, moral) que corrobora esta dominação. Assim, é somente mudando o plano
econômico que todo o resto, por conseqüência, desmoronará. Desta forma, estas
alienações serão destruídas apenas com a quebra da alienação econômica.

No fim de sua vida, quando mora em Londres, Marx dedica-se


exaustivamente ao estudo da economia. Reconhece o teor científico dos economistas
clássicos, mas os seus trabalhos são relativos, pois não percebem a alienação que sofre a

6
Não confundir com o conceito sartreano de ideologia, apresentado no capítulo anterior.
131

sociedade e constroem análises estáticas, desconsiderando importantes fatores


históricos. Assim, estes economistas fizeram apenas estudar os fenômenos da economia,
não alcançando a sua verdadeira essência. É o que Marx pretende realizar, pois como já
vimos, ele não deseja fazer uma filosofia, sendo esta uma alienação, mas chegar a um
conhecimento científico da realidade. Por outro lado, diferente dos economistas
clássicos, essa ciência deve integrar a dimensão histórica das relações sócio-
econômicas.

O grande divisor de águas do pensamento econômico é o escocês Adam


Smith (1723-1790). Antes dele, a economia se dividia em duas correntes: os
mercantilistas e os fisiocratas. Os primeiros se preocupavam com uma balança
comercial favorável, visando o metalismo (acúmulo de metais) e o fortalecimento do
Estado. Os segundos viam na agricultura a riqueza de uma nação, encarando o comércio
e a indústria como algo menor. As idéias de Smith parte de uma crítica dessas duas
correntes. A sua principal contribuição é encarar como fonte da riqueza de uma nação,
não o comércio ou a agricultura, mas o trabalho humano. A partir daí, é vital uma
divisão do trabalho que resulta de uma tendência humana inata para a troca. Com esta
divisão é possível o aumento da produção através da economia de tempo e o
aperfeiçoamento de máquinas e ferramentas. Devido a essa tendência inata para a troca é
necessário um aumento dos mercados que é estimulado pelo aumento da produtividade.
Daí decorre a acumulação de capital, que passa a ser reinvestido na produção,
aumentando a riqueza nacional. O mercado, movido pelo impulso egoísta das pessoas,
tende a se harmonizar, sendo, portanto, necessário a não-intervenção do Estado em suas
leis. Esta crença de que o mercado é auto-regulado é o que posteriormente será
popularizado como lei de Say7, que afirma que a oferta cria a sua própria demanda.
Desta forma, Smith desloca o enfoque dos economistas para uma preocupação do
crescimento econômico a longo prazo e a distribuição da renda entre as classes, ou seja,
o seu uso para as camadas produtivas da sociedade (estes são os princípios da Escola
Clássica, sustentados no estudo da economia como leis naturais auto-reguladoras que
levam à harmonia social).

7
Do economista francês Jean-Baptsite Say (1767-1832), um estudioso da obra de Smith, sendo o mais
célebre divulgador do pensamento liberal na França dessa época.
132

O inglês David Ricardo (1772-1823) vai retomar a obra de Smith,


desenvolvendo um estudo, que se tornou um dogma posteriormente, acerca da
distribuição da renda entre as classes sociais (para ele são três: a latifundiária, a
capitalista e a operária). Não entraremos aqui neste tema, mas sim, no seu estudo de
onde vêm o valor da mercadoria, que interessará Marx. Para Ricardo, seguindo a trilha
do pensamento de Smith, o valor de uma mercadoria é determinado pela quantidade de
trabalho nela incorporada. Ou seja, o valor é dado pelo seu custo em trabalho. Este
princípio ricardiano é chamado de Teoria do valor-trabalho. Este custo é calculado não
apenas pelo trabalho imediato, mas também pelo trabalho mediato. Em outras palavras,
se uma mercadoria foi produzida através de trabalhadores e máquinas, no cálculo de seu
valor está o trabalho do trabalhador (custo imediato), e o trabalho incorporado à
máquina (custo mediato), pois a máquina para ser construída exigiu certa quantidade de
trabalho. Assim, atrás do preço de uma mercadoria está o valor, atrás do valor estão os
custos de produção, que, em último lugar, podem ser reduzidos ao trabalho humano.

O pensamento econômico de Marx inicia com um aperfeiçoamento da teoria


do valor-trabalho de Ricardo. Porém, diferente do inglês, Marx não está preocupado
com o crescimento econômico, mas em desvendar o funcionamento da sociedade
capitalista. Assim, para ele, o capital é, antes de mais nada, uma relação social de
produção. Não se trata de uma coisa, mas de uma relação social entre pessoas através de
coisas. Esta relação, por sua vez, é uma relação histórica, pois a sociedade capitalista
surgiu numa determinada época da humanidade. Assim, o capital somente surge com o
aparecimento da burguesia, em outras palavras, com o advento de uma classe específica,
proprietária exclusiva dos meios de produção, após a destruição da ordem feudal,
obrigando a outra classe a vender a sua força de trabalho para sobreviver. Vemos,
portanto, que a sociedade capitalista se constitui como um mundo mercantil, onde tudo
se transformou em mercadoria, inclusive a força de trabalho.

É bem verdade que já existiam atividades mercantis, muito antes do


nascimento da burguesia. Então, o que diferencia esse mercado do mercado capitalista?
Nesta sociedade mercantil simples, as mercadorias são produzidas para serem trocadas
no mercado, mas não existe uma classe detentora dos meios de produção, ou seja, todos
são capazes de produzirem mercadoria visando a troca. Assim, se produz uma
mercadoria (M), que é trocada por dinheiro (D), para ser gasto (no mesmo valor) na
133

compra de outra mercadoria (M’). Desta forma, chegamos à seguinte expressão: M – D


– M’.

No capitalismo ocorre uma inversão neste processo. A mercadoria de fim,


passa a ser um meio para a obtenção de dinheiro, ou seja, o que interessa é a obtenção
de mais dinheiro. Assim, através do dinheiro (D), o capitalista compra mercadorias (a
força de trabalho e meios de produção – M), visando produzir algo a ser vendido mais
caro no mercado. Ou seja, o objetivo do capitalista é vender mais caro do que gastou
(D’). Assim, chegamos à expressão: D – M – D’.

Estas expressões são simplificações do funcionamento do mercado, porém,


para realmente compreendê-lo devemos saber o que é mercadoria e o que é dinheiro.

A mercadoria não é simplesmente um produto ou bem, ela é um produto que


se destina à troca no mercado. Uma sociedade, que consome tudo o que produz, não
possui mercadorias. É visando a troca que faz surgir a mercadoria. Assim, trata-se de um
trabalho social, pois o valor da mercadoria está relacionado com a troca, com as relações
entre os homens. Não é como em Locke (considerado o pai do liberalismo) que pensava
o indivíduo que trabalha isolado a partir da natureza, saciando as suas necessidades,
para depois, com o excedente, entrar em contato com os outros indivíduos. A sociedade
não é formada por indivíduos atomizados, mas é atravessada por relações sociais.
Assim, a mercadoria possui em sua gênese uma relação com o Outro.

O valor de uma mercadoria é decomposto em duas categorias: o valor de uso


e o valor de troca. O valor de uso é a capacidade de um bem em atender certas
necessidades específicas. Por exemplo, o casaco serve para abrigar do frio, assim como
o anzol serve para pescar. O valor de troca é a capacidade de um bem de ser equivalente
a outros bens, podendo ser trocado. Assim, os bens possuem diferentes valores de uso,
mas precisam compartilhar de um padrão comum que fundamente seu valor de troca,
necessitando, por exemplo, de vinte anzóis para trocar por um casaco.

O que determina essa equivalência entre os bens? Ora, Ricardo já nos


respondeu, é a quantidade de trabalho incorporado a estes objetos no tempo de
produção. Desta forma, Marx afirma que o valor de uma mercadoria equivale ao tempo
de trabalho socialmente necessário para produzi-la. Aqui entra a questão social do
134

filósofo (no sentido sartreano) alemão, numa concepção de tempo médio gasto pelo grau
das forças produtivas e das relações de produção daquela sociedade em produzir
determinado bem. Assim é neste aspecto social, como vimos acima, que designa o que é
uma mercadoria. Nem todo bem é uma mercadoria, pois existem bens extremamente
úteis, com grande valor de uso, mas que não possuem valor de troca: é o caso de bens
que não são frutos de qualquer trabalho, dados diretamente pela natureza (o ar, a luz
solar); por outro lado, existem bens que são produzidos mas que não são trocados, indo
para o consumo direto, sem passar pela troca. Existe, portanto, um valor de troca virtual,
pois como resultado de um trabalho também possui os dois tipos de valor. Portanto, a
produção de mercadoria sempre visa um Outro, pois não adianta produzir algo com
valor de uso, mas um valor de uso para os outros, isto é, um valor de uso que tenha um
significado social. Se estamos falando numa relação com o Outro, caímos no campo
moral. Assim, perguntamos: por trás de toda a atividade econômica existe
obrigatoriamente um aspecto moral? É o que tentaremos responder posteriormente.

Um bem para ser produzido necessita de uma certa quantidade de trabalho. O


que torna bens tão distintos em comum é o fato de derivarem de um trabalho. Assim, o
que foi utilizado para realizar a produção de um bem específico é o trabalho concreto.
Para poder haver uma troca, é necessário uma equivalência da quantidade de trabalho
entre os bens. Assim, já não se trata mais do trabalho específico do alfaiate na execução
do casaco ou do ferreiro na execução do anzol. É uma abstração, que faz desaparecer os
trabalhos específicos de cada produtor. É o trabalho abstrato. Desta forma, o trabalho
concreto cria o valor de uso, enquanto que o trabalho abstrato cria o valor de troca.
Portanto, é possível haver um câmbio, pois são abstraídas as formas concretas de
trabalho, isolando o valor de troca; o tempo de trabalho assumindo o papel de
denominador comum.

Construído este quadro, Marx critica os economistas que não enxergam de


onde nasce o valor de uma mercadoria. Quando estes utilizam o termo “valor” se
referem somente ao valor de troca. Porém, este valor, que é o valor de troca, se
apresenta sob uma outra forma. O dinheiro é uma mercadoria que possui a capacidade
de ser trocada por qualquer outra mercadoria. Isto ocorre porque o dinheiro é a
manifestação mais elevada do valor, ou seja, é a forma mais desenvolvida do valor de
troca. Trata-se, portanto, de uma abstração da abstração, pois é o grau mais elevado do
135

trabalho abstrato. Assim, o dinheiro nos aparece como algo mágico, que é capaz de
possuir qualquer coisa. Porém, este valor não está no dinheiro em si, ele é produzido nas
relações dos homens entre si, através da troca das mercadorias. Este caráter onipotente
do dinheiro é o que tanto seduz o capitalista, pois o dinheiro pode ser convertido em
qualquer coisa, isto é, posso adquirir o que desejar através dele. Contudo, o capitalista
acredita que este “dom” está no dinheiro em si.

O mesmo ocorre com as mercadorias. Estas passam a ser dotadas de poderes


próprios, nos apresentando o valor delas como estando realmente nelas. Na verdade, é o
trabalho social que dá o valor à mercadoria. O valor não está nas coisas, mas na relação
entre os homens através das coisas. Porém, isto é esquecido, nos fazendo crer que estes
valores se encerram nas coisas, e os homens, à medida que vão trocando tais coisas,
aparecem apenas como meros proprietários destas coisas, isto é, eles são reconhecidos
pelo que possuem. Assim, ocorre uma total inversão, transformando as coisas em seres
autônomos e os homens convertidos em coisas. Este fenômeno é o que Marx chama de
fetichização da mercadoria.

Desta forma, a mercadoria é encarada sob um aspecto religioso. Ela possui


um poder sobrenatural, sendo um ser que existe em si e para si. Por outro lado, como
qualquer objeto de culto, exerce um poder sobre os seus crentes, dominando-os através
de uma força estranha. Assim, o mundo se converte numa enorme fantasmagoria. As
relações sociais no modo capitalista convertem-se em coisas, onde o trabalhador se
transforma numa coisa chamada força de trabalho, recebendo em troca outra coisa que é
o salário; o produto de seu trabalho se transforma em mercadoria que passa a possuir
outra coisa, que é o preço. Os proprietários dos meios de produção, por sua vez, se
convertem em capital, com capacidade de possuir outra coisa, o lucro. Os homens
desaparecem, enquanto que as coisas se humanizam, dotando-os de forças autônomas.
“O mercado exige isso”, pede-se investir, poupar, trabalhar, se especializar, ou seja, os
homens se transformam em meros instrumentos para as ações das coisas.

Até aqui explanamos o funcionamento do mercado, e como ele se constitui no


sistema capitalista. Como o mundo todo se converteu num enorme bazar, é estudando o
que é a mercadoria que começamos a entender a essência deste sistema. E como vimos,
a mercadoria é analisada sob os parâmetros da teoria do valor-trabalho. Porém, os
136

clássicos (entre eles Ricardo) não aplicam esta teoria com coerência, pois quando
estudam os salários, recorrem às leis da oferta e da demanda, relacionando-os com o
crescimento populacional. Para Marx, se o valor é convertido em quantidade de
trabalho, este mesmo raciocínio deve ser aplicado no mercado de trabalho. Assim, há
uma verdadeira coerência, porque o valor da mercadoria não surge no plano da
circulação, mas no momento em que é produzido, isto é, o capital só surge na esfera da
produção. Portanto, é necessário analisarmos como funciona o meio produtivo.

A grande perspicácia de Marx em relação aos clássicos é diferenciar o


trabalho da força de trabalho. O trabalhador, que está destituído de todos os meios de
produção, vende a sua força de trabalho, isto é, a sua aptidão física e mental para
trabalhar, antes de iniciar o trabalho propriamente dito. Esta força de trabalho, como
qualquer mercadoria, possui um valor que é medido, como toda mercadoria, pelo tempo
de trabalho necessário à sua produção. Este valor equivale à subsistência do trabalhador;
o suficiente para que se alimente, se aloje, se vista, se transporte e procrie, gerando uma
prole, que são novas mercadorias para o sistema. Porém, o valor da força de trabalho,
isto é, o tempo necessário para que se possa produzir esta cesta de bens para o sustento
do trabalhador cobre apenas uma parcela da sua jornada de trabalho. Isto ocorre porque
a força de trabalho é uma mercadoria que possui um especial valor de uso: o de produzir
outras mercadorias. Assim, à medida que vai sendo consumida, ela produz. Desta forma,
o que o trabalhador produz em sua jornada é muito mais do que o suficiente para pagar a
sua força de trabalho. Isto é possível porque o salário que o capitalista lhe paga se refere
à sua força de trabalho, e não ao trabalho produzido. Esta diferença, isto é, o valor que o
trabalhador criou além do valor de sua força de trabalho é a mais-valia.

Aqui chegamos à essência da exploração capitalista. O burguês se apropria


gratuitamente de um trabalho produzido pelo trabalhador. Não existe, como pensam os
liberais, homens livres, que por sua livre iniciativa, entram num acordo, através de um
contrato de trabalho, onde cada um troca o que possui. O latifundiário possui a terra; o
capitalista, o capital, e o operário, o trabalho. O latifundiário aluga a terra; o capitalista
investe o capital e o operário vende o seu trabalho. No final do processo, todos ganham;
recebendo de forma justa, cada qual o que merece: o latifundiário, a renda: o capitalista,
o lucro e o operário, o salário. Isto não passa de uma grande mentira! Marx demonstra
que existe uma enorme violência por trás da produção capitalista, onde uma classe, para
137

sobreviver, é forçada a vender a sua força de trabalho, sendo, no final do processo,


espoliada do fruto do seu trabalho.

Portanto, o trabalhador sofre uma alienação. Ele não se identifica com o fruto
do seu trabalho, pois este lhe é expropriado, em sua gênese, encarando as condições de
trabalho como algo estranho e hostil. Com o aperfeiçoamento de máquinas e
ferramentas, o trabalhador é cada vez mais depreciado, exigindo menos força muscular,
sendo possível mesmo o uso de mulheres e crianças. Assim, o trabalhador passa a ser
um mero apêndice da máquina, realizando um serviço mecânico e banal. Inicia-se um
processo de definhamento do corpo e do espírito do trabalhador, embrutecendo-o
consideravelmente, chegando às raias da animalização.

Não é somente o trabalhador que sofre essa alienação. O próprio capitalista é


um ser alienado. Ele vive sob um constante estado de guerra devido à concorrência.
Portanto, é forçado a investir permanentemente (em máquinas, mão-de-obra mais barata,
etc) para não perder mercado. O capitalista atual está muito longe do seu antepassado
burguês avarento, que acumulava o capital para si, entesourando-o. No atual estado das
forças produtivas, o capitalista se converte num escravo do capital, vivendo em sua
função, convertendo-se num mero instrumento. O capital se tornou um fim em si
mesmo, adquirindo uma extraordinária força própria, usando o capitalista como uma
coisa pela qual se reproduz.

No sistema capitalista, tanto o burguês quanto o proletário são vítimas de uma


alienação. Esta, na verdade, se remete a uma alienação muito mais profunda. É a divisão
entre o trabalho intelectual e o trabalho manual. Esta cisão ocorreu quando se praticou
uma divisão social do trabalho, calcada na propriedade privada, dividindo a sociedade
em classes antagônicas. Assim, uma classe particular sustenta materialmente toda a
sociedade, enquanto a outra classe se aproveita deste processo, mantendo a sua
dominação através dos recursos materiais que ela detém e do plano das idéias,
legitimando o seu poder. Esta classe se afastou, portanto, da produção direta dos meios
de subsistência. Este quadro atingiu o ápice no modo de produção capitalista, quando,
pela primeira vez na História, uma classe se vê despossuída de todos os meios de
produção, sendo forçada a vender-se como força de trabalho. Assim, é preciso eliminar
esta alienação fundamental. Isto somente ocorrerá numa sociedade sem classes, onde
138

haverá a liberdade total do homem. E a construção desta sociedade somente será


realizada através de uma prática revolucionária. Esta somente será empreendida por uma
força coletiva, pelas massas sociais. Torna-se necessária a formação do grupo, para
retirar o indivíduo alienado de sua inércia. Aqui, Sartre se encontra com o impasse
fundamental de seu pensamento: se o existencialismo parte da subjetividade humana,
como consciências isoladas podem se unirem numa prática comum, como é o caso da
revolucionária, que propõe a construção do mundo comunista?
139

Capítulo 3 – O Grupo

A relação do homem com a matéria é algo necessário e vital. Lembremos que


o Para-si é um ser incompleto, exigindo a presença do Em-si para existir. Por outro lado,
a consciência não é nenhuma abstração, pois está situada num corpo que habita um
mundo concreto. O homem precisa da presença do mundo para a sua existência, e a
exigência primária é a necessidade de sanar as suas condições fisiológicas.

O primeiro contato do homem com o mundo é através do trabalho, que


possui como objetivo a satisfação da sua necessidade orgânica. Assim, toda
manifestação humana sobre a matéria é originalmente através do trabalho, isto é, a
execução de uma tarefa visando um fim previamente determinado. Diante disto, vemos
que o trabalho é um projeto, uma totalização-em-curso, a superação de um estado atual,
visando um fim a ser realizado. Contudo, há uma característica extremamente
importante neste quadro: o trabalho é um processo dialético. Trata-se, portanto, de uma
negação da negação, pois o homem, ontologicamente, é uma carência no meio da
existência (ou seja, uma negação) que através do trabalho pretende suprimir esta
carência (negação da negação).

Assim, o homem começa a moldar a matéria, interferindo em sua


constituição, imprimindo algo de novo. Isto ocorre, porque o homem, através de sua
subjetividade, age através do seu corpo no plano objetivo. Reconhece a carência a ser
suprimida, agindo sobre a matéria segundo os fins projetados. Desta forma, a matéria
começa a ficar impregnada dos projetos humanos, passando a ser a objetivação das
ações dos homens. À medida em que o trabalho é realizado, os projetos são coagulados
na matéria inerte, onde repousa na concretude a espontaneidade livre da consciência. A
matéria trabalhada carrega em si as marcas dos projetos acabados dos homens, passando
a constituir uma nova realidade material dada.

Porém, eu não entro em contato com a matéria sozinho. Lembremos que o


Para-si possui uma relação com o Outro antes de sua relação concreta. Assim, todo
homem reconhece a humanidade do outro homem e vice-versa. Há uma relação de
reciprocidade, pois ocorre o reconhecimento mútuo da humanidade. Desta forma, todo
140

homem sabe que está diante de outra consciência. A própria matéria que nos circunda
facilita esta união humana, pois possibilita encará-la conjuntamente como algo a ser
trabalhado, a execução de uma tarefa comum a ser realizada, etc. Contudo, esta união é
ameaçada por uma característica básica desta matéria circundante: a escassez. É
necessário trabalhar arduamente sobre a matéria pois esta é avara em recursos para a
quantidade de homens que a habitam. O trabalho é obrigatoriamente constante, pois a
subsistência depende dele, passando a ser algo penoso, como um castigo que nos abate.
Vemos que, para Sartre, economia está relacionada com bens escassos.

Devido a este quadro de recursos precários é engendrado um campo de tensão


real e constante entre os homens. A História humana se resume na guerra perpétua
contra a escassez. Diante disto, começam a se desenrolar os diferentes tipos de relações
do homem com a matéria e dos homens entre si. Assim, devido a este caráter penoso do
processo produtivo, se cria um clima de desconfiança mútua entre os homens. O Outro
passa a ser aquele que me ameaça, constituindo uma rivalidade que dissolve a união
entre os homens. Passa a ser algo a ser eliminado, que devo enfrentar ou utilizar como
um meio para os meus projetos particulares. Mas, lembremos, esta rivalidade só é
possível, pois eu reconheço originalmente o Outro como um homem. Somente posso
escravizar um ser livre, pois não sinto ameaçado em meus projetos por uma montanha.
Desta forma, os meus semelhantes passam a ser algo estranho, hostil, destruidor, em que
não posso compartilhar os meus projetos.

Aqui, Sartre se afasta de Marx, pois para este a História humana é a história
da luta de classes. Com isto, Sartre concorda, mas a origem da divisão da sociedade em
classes antagônicas é a escassez. Marx não teria dado um papel de destaque merecido à
ela. A História é o processo das diversas formas de organização social, sistematizada
por relações hostis entre os homens, a partir de uma guerra mais básica por eles travada:
a guerra com a natureza.

Com o desenrolar da História, a natureza com a qual os homens se esbarram


já é a trabalhada. Os homens herdam das gerações anteriores um certo meio material
circundante impregnado dos projetos antigos., Assim, além da escassez, me encontro
com uma matéria já moldada por outros homens. Vemos, portanto, que a matéria
trabalhada também possui escassez, pois o que poderia ser algo que anteriormente a
141

suprimia, passa a ser a sua verdadeira fonte. Por exemplo: para resolver uma carência
energética, foi construída uma hidrelétrica. Trata-se de um trabalho, visando destruir a
escassez. Porém, a abundância de hoje passa a ser a escassez de amanhã, pois, digamos
que com a hidrelétrica, uma floresta foi inundada, criando uma escassez de espécies
animais e vegetais úteis para a sociedade. Portanto passo a encarar esta matéria
trabalhada como uma herança maldita, algo que me limita: é o Prático-Inerte. Trata-se
de prático, pois é uma matéria moldada pela ação prática de outros homens, mas é
inerte, pois é a coagulação de práxis anônimas do passado.

Assim, quando o homem atua dispersivamente na matéria, é esta que passa a


intervir nos seus projetos. É o Prático-Inerte que começa a comandar o homem, pois este
age de forma solitária, devido a sua liberdade em conflito com outras liberdades. Passa a
ser um campo de contra-finalidades, que impedem os meus projetos particulares. Passo
a ser, portanto, um ser alienado, pois realizo fins que não são os meus, fins
determinados por outros, que estão inscritos no Prático-Inerte. O ser alienado possui o
seu Ser fora de si, vivendo uma vida que não é a sua, realizando uma práxis que lhe é
estranha. Isso não significa que a liberdade foi abolida, que houve uma metamorfose,
transformando o homem num bloco de carne empurrado por leis materiais. A práxis
alienada é antes de mais nada uma práxis e, portanto, oriunda de um projeto. E somente
uma liberdade realiza projetos. O que ocorre na alienação é que não há um
reconhecimento por parte da subjetividade do indivíduo com a sua ação objetiva. Assim,
eu sei qual é o meu projeto, mas este é fracassado diante do campo de contra-finalidades
que se tornou a matéria. Esta se transformou em minha inimiga, que me submete às suas
vontades, circunscrevendo a minha condição social, o tipo de trabalho que me é
destinado, ou seja, estabelecendo um esboço da minha vida antes mesmo do meu
aparecimento na realidade concreta.

Contudo é um erro transformar o Prático-Inerte num demônio que me


acorrenta. Apesar de me alienar, ele não destrói a minha liberdade. Nenhuma liberdade
pode ser destruída, somente pode ser limitada por outra liberdade. E o Prático-Inerte,
como já vimos, é o resultado congelado de liberdades antigas (é por isso que me limita).
Porém, é algo necessário para a Liberdade, pois esta necessita de um meio de resistência
para se manifestar. Assim, não posso culpar a matéria por minha condição existencial,
mas encarar a práxis que está por trás da matéria trabalhada. Nos primórdios do
142

movimento operário, os trabalhadores destruíam as máquinas, pois elas eram a


“encarnação” da exploração capitalista. Foi o germe da fúria revolucionária, pois já
havia um sinal de protesto e intolerância à violência a que estava submetido o
trabalhador. Porém, não é pela supressão da máquina que se vai transformar a realidade
concreta, mas pelo que está por trás da máquina, ou seja, a práxis dos homens que fazem
o sistema funcionar.

Já sabemos que a práxis é a superação de uma realidade presente por um


futuro livremente projetado e não-existente. Na liberdade alienada, este fim a ser
realizado já foi predeterminado, no passado, por práxis anteriores. São as condições
materiais que circunscrevem o meu campo de ação. Assim, diante do Prático-Inerte, a
minha práxis é passiva, acatando regras que não estabeleci, sentindo-me impotente
frente à realidade. Contudo, o próprio Prático-Inerte possui as armas que podem ser
voltadas contra ele mesmo. Não possuo a liberdade de obtenção, pois os meus projetos
são inscritos num campo prévio de possibilidades, mas possuo uma liberdade de como
encarar este campo. Posso sentir-me totalmente resignado com a minha opressão, sentir
revoltado com a minha condição, constituir um tipo de relação com o meu trabalho, ou
seja, construo um campo particular de ação, por mais restrito que ele seja. Todos
organizam um modo singular de se relacionar com a realidade concreta.

Porém, eu não executo as minhas tarefas sozinho. Eu esbarro com outros


homens. Esta existência social não provém da autonomia de seus integrantes, mas é
imposta pelo Prático-Inerte. É o que Sartre chama de Série (ou serialidade; coletividade
serial). Não são os homens que, por sua livre espontaneidade, se agrupam. O
agrupamento vem de fora, é imposto pela matéria. Na verdade, vemos uma pluralidade
de solidões, pois os homens estão dispersos entre si. Assim, o Prático-Inerte constrói
uma maneira de ser dos indivíduos, pois existe uma práxis serial, um modo de
comportamento massivo que fazem seres tão distintos se integrarem. E será justamente
com a formação do grupo que iniciará a luta contra a alienação. E, ironicamente, é o
próprio Prático-Inerte que agrega os homens, que voltarão os seus próprios grilhões
contra a sua opressão.

Contudo, como consciências dispersas passam, espontaneamente, a se unirem


numa práxis comum? Primeiramente, é necessário que haja uma união provocada pela
143

matéria circundante, pois a própria proximidade física torna possível a instauração da


práxis do grupo. É necessário um sentimento de “nós” ao grupo que é dado por um
“terceiro mediador” (veremos isso detalhadamente depois), somado com um perigo
exterior comum, que se desdobra na emergência de um fim ao grupo, fazendo os
indivíduos, diante desta ameaça, se unirem rapidamente. A isto se acrescenta a certeza
de que a solução para este perigo imediato virá com o grupo, isto é, o indivíduo sozinho
se vê impotente, mas potencializa a sua força com a presença de outros semelhantes. É o
que provoca o ímpeto de todos, tornando a práxis do grupo algo gerado de forma
espontânea e abrupta. Contudo, não podemos encarar estes fatores como as causas para
o grupo. Isto seria uma leitura mecanicista das ações humanas. Trata-se de condições
necessárias mas não suficientes, pois estamos enumerando fatores externos. A práxis do
grupo não provém de uma força exterior, mas de uma união desejada pelos próprios
integrantes. A ação do grupo está calcada na ação individual de cada membro, como
uma práxis livre. Essa formação, que nasce dos próprios homens como resposta ao
Prático-Inerte, é o grupo-em-fusão.

Aqui, a memória pode nos desencantar, pois Sartre desenhava a relação


ontológica entre as consciências como conflito. Como é possível a formação de um
grupo, descrita de forma tão sedutora, se a minha relação originária com o Outro é a de
conflito? Sartre caiu numa contradição lógica? Não, pois o indivíduo jamais se dissolve
por completo no grupo. Existe uma tensão permanente entre ambos, que mantém intacta
a alteridade das consciências. Se eu me dissolvesse totalmente, se eu me identificasse
completamente com o Outro, eu seria o próprio Outro. Assim, a própria alteridade seria
destruída, transformando-se num quadro de opressão total, pois anularia qualquer
condição de diferença. Realmente, o termo “conflito” pode soar estranho, moralmente
falando, mas trata-se de uma “distância mínima” para se constituir a relação Eu-Outro.
O conflito entre as consciências é um princípio de distanciamento. Assim, preservando
a alteridade, é possível a identificação com um projeto alheio, compartilhado em sua
práxis. O grupo-em-fusão é um direcionamento para o mesmo fim de um único projeto,
fazendo da práxis uma co-relação intersubjetiva. Assim, esta luta entre as consciências
não cai numa guerra egocêntrica no campo solipsista. A violência oriunda da escassez
só é possível, pois eu reconheço previamente a humanidade do Outro que me ameaça. É
necessário um princípio de reconhecimento de semelhança e, simultaneamente, preserva
144

a singularidade de cada consciência. Não há, portanto, um choque entre indivíduos


isolados, totalmente estranhos entre si. Se fosse, cairíamos num individualismo
absoluto, seguindo o conceito de Thomas Hobbes (1588-1679) da “guerra de todos
contra todos” (bellum omnium contra omnes). István Mészáros (1930- ), discípulo de
Lukács, ainda que considerando Sartre um individualista, elogia a contribuição de seu
pensamento ao marxismo, notando que seu pensamento não é um individualismo
burguês:

E, no entanto, em sua análise do modo pelo qual “o Outro me


determina”, subitamente nos coloca diante de um insight
extraordinário: “Nossa relação não é uma oposição frontal, antes,
porém, uma interdependência oblíqua” (O ser e o nada). Devemos
apreciar a importância desse insight em contraste com muitas teorias
que retratam o conflito social sob um modelo de oposição frontal e
contribuem pesadamente para a geração de expectativas
desapontadoras. Certamente, porém, o conceito de um antagonismo
estrutural irreconciliável não deve ser confundido com o de uma
oposição frontal. “Interdependência oblíqua” não é apenas
perfeitamente compatível com a persistência de um antagonismo
estrutural, como pode muito bem constituir sua modalidade
fundamental, como Sartre nos mostrou. (MÉSZÁROS, 1991, p. 255)

Veremos como isto funciona na coesão do grupo pelo Terceiro Mediador.


Este é um desenrolar do conceito de “nós-objeto”, isto é, quando eu e o outro somos
vistos por um terceiro excluído da nossa relação. Aqui ocorre o mesmo mecanismo de
petrificação já estudado, o terceiro rouba a nossa subjetividade, convertendo o par “eu-
outro” como uma única coisa fundida. Assim, passo a ter uma relação de solidariedade e
compatibilidade com o outro, para que ambos possamos reverter esta objetivação da
nossa subjetividade. Diante deste olhar exterior, somos unificados, isto é, a nossa união
é provocada por uma força de fora. O terceiro excluído desvela fins comuns nas ações
de indivíduos outrora esparsos, unificados por fora, fazendo com que os indivíduos
compartilhem seus movimentos numa relação recíproca. Este olhar exterior contempla a
coletividade de uma maneira objetiva, que escapa da subjetividade dos próprios
integrantes. Lembremos que o Outro possui uma parte de meu ser (a minha
145

objetividade) que escapa de minha consciência. Aqui ocorre o mesmo, mas numa escala
maior.9

No grupo, a união entre os indivíduos parte deles próprios. Assim, a


unificação provém internamente, pois cada membro é o terceiro mediador dos demais.
Por exemplo: A unifica B, C e D, enquanto que é unificado por B, e assim
sucessivamente, num processo contagioso. Não existe ninguém de fora que os unifique,
é uma força vinda de dentro. Portanto, todos os integrantes são responsáveis pela coesão
do grupo, havendo uma intermediação de cada um para todos os outros e de todos sobre
todos. O grupo é uma conjugação de terceiros unificadores-unificados constituindo uma
complexa rede de unificações recíprocas. Assim, há uma tensão entre as consciências,
pois eu não posso isoladamente me integrar ao grupo, somente o Outro é capaz de me
unificar. E este, por conseguinte, me necessita para ser unificado. Esta tensão é
necessária para a existência do grupo, que por se tratar de unificadores-unificados não
há uma multiplicidade de projetos isolados; é a própria multiplicidade que se unifica a si
própria.

O grupo existe através da práxis. Eu me reconheço nos outros, fazendo da


práxis do grupo algo que me pertence. Assim, cada membro vive em si mesmo a ação
do grupo do qual participa. Isto é possível porque a estrutura da práxis individual é a
mesma da do grupo (superação de uma realidade presente) e que os fins do grupo são os
mesmos visados pelo indivíduo. Assim, o indivíduo não se sente sozinho e impotente,
mas como possuidor da força de “todos”, usando esse poder para si e para os que estão
ao seu redor. Porém, o grupo não é um organismo, algo encerrado sobre si. O grupo
sofre o mesmo drama que o Para-si, pois é um Ser incompleto, que está sempre
buscando fechar-se como uma coisa. É uma totalização-em-curso e, portanto, não é uma
entidade estática. Está sempre em movimento, totalizando sem cessar, almejando uma
plenitude perfeita. O grupo nunca é; ele está sempre se fazendo. Assim, é pela práxis

9
Vemos que o ideal humanista, que prega um conceito geral do Homem é impossível. Somente uma
consciência fora da humanidade poderia totalizar as consciências. Este ser seria Deus, que mesmo assim,
não possuiria tal conhecimento, pois, sendo uma consciência, Ele não poderia estar fora da totalidade das
consciências. E se fosse um objeto, não totalizaria nada, pois somente uma consciência possui esta
capacidade. Mesmo se idealizarmos Deus como um Em-si-Para-si, não haveria tal conceito de Homem,
pois sendo Deus simultaneamente plenitude de Ser e de consciência não conseguiria totalizar as
consciências, pois sendo consciência e objeto, ao mesmo tempo, Ele estaria fora da totalidade,
conhecendo-a como uma união de objetos, e não como um grupo de sujeitos.
146

que o grupo busca alcançar este acabamento de si; o que é impossível, sendo, portanto,
unicamente pela práxis que o grupo existe.

O exemplo de grupo-em-fusão que Sartre dá é o que se formou por ocasião da


queda da Bastilha, em 14 de julho de 1789. Foi um momento de irrupção, quando
homens e mulheres dispersos, que sofriam passivamente as determinações do Prático-
Inerte, se levantaram espontaneamente, num ímpeto brusco e geral, voltando-se contra a
famigerada prisão, que naquele momento “encarnou” a opressão da monarquia
absolutista. Não foi uma ação premeditada ou a execução de uma ordem externa.
Aquelas pessoas, por suas próprias vontades, se uniram num ato de fúria e revolta,
surgida na hora, encaminhando-se em direção à Bastilha. O estado de miséria e de fome
que abatia sobre os plebeus, haviam começado a despertar a solidariedade entre estes,
alimentando um descontentamento generalizado, somado ao ódio do contraste de sua
condição com a opulência da nobreza. Neste clima fervente, quando algum plebeu
anônimo gritou: “À Bastilha”, não se trata de alguma ordem, mas da expressão através
de um indivíduo da vontade coletiva. Todos se reconheceram neste projeto, realizando a
práxis em grupo como a sua práxis.

Passado este momento efervescente de coletivização, o grupo se encontra


ameaçado. O grupo possui duas forças contraditórias: uma convergente e a outra,
dispersiva. Convergente, na medida em que o grupo sempre busca completar-se. Mas,
divergente também: sendo uma liberdade geral o que uniu o grupo, não havendo uma
organização central na execução da tarefa e esta uma vez realizada, permite os homens a
se dispersarem novamente. O único motivo que os mantinha ligados era aquela tarefa,
sendo o grupo um meio de se alcançar certo fim. Quando o projeto coletivo se objetiva,
dissolve-se a única razão da coesão do grupo. Portanto, para ocorrer a manutenção do
grupo, os seus membros buscam uma outra forma de elo. Ocorre o Juramento, quando
os membros se comprometem, sob uma sanção, de se manterem unidos, mesmo quando
estiverem dispersos fisicamente. Não pode haver exceção, pois todos se comprometem
com todos para a garantia do grupo. Assim, ocorre um sacrifício da própria liberdade em
prol do grupo.

Começa, desta forma, uma organização de tarefas, e para evitar a sua


dissolução, o grupo começa a se institucionalizar. Lembremos que o Prático-Inerte
147

continha fins inertes que unificavam os homens numa coletividade alienada (a Série).
Portanto, havia um elemento de inércia que foi suprimido, posteriormente, pelo grupo-
em-fusão. Assim, este elemento inerte passa a ser obtido, agora, pelo juramento. O
perigo exterior que mantinha a coesão é substituído por um perigo interior, onde cada
membro é vigilante do outro. Aos poucos, o grupo passa a dividir tarefas, deixando de
ser uma práxis homogênea para ser uma heterogeneidade calculada. Assim, cada
membro recebe uma função dentro da ação coletiva. Desta forma, cada integrante
cumpre a sua tarefa como um meio para alcançar um fim mais amplo, que é a ação
global de todos os membros que constituem a práxis do grupo. Cada membro possui um
papel vital para a manutenção do grupo; ninguém é mais importante que o outro. Todos
se reconhecem na atividade do grupo, e vêem em sua função e na dos outros, o modo
pelo qual se manifesta a práxis coletiva. Com a dispersão física dos membros, o Prático-
Inerte começa a engordurar este funcionamento. Separado de seus companheiros, o
indivíduo é incapaz de se ver unificado ao grupo, passando a encarar a sua função mais
como um fim particular do que um meio para a ação coletiva. Ocorre o fracasso da
intenção de transformar o grupo num “indivíduo comum”. O grupo é uma totalização-
em-curso, e quando busca tornar-se um ser acabado, ameaça a sua constituição.

Assim, o grupo começa a se burocratizar. Diante do fracasso da práxis


comum, recorre-se a uma medida desesperada: fazer da inércia o ponto de força de
coesão ao grupo. A práxis se converte no processo, isto é, numa ação imposta por
estruturas externas, semelhante ao Prático-Inerte. Recebo a minha tarefa como algo
vindo de fora. Assim, na obsessão do grupo em se enrijecer, permanecendo como um
Ser inteiro, a liberdade de cada membro é negada, pois o indivíduo deixa de ser
essencial, insubstituível. Ele se transforma numa ferramenta que executa apenas um
papel dentro da máquina do grupo. Passa a ser completamente passivo. É o último
estágio da coletividade: o grupo institucional.

Apesar do grupo institucional negar as liberdades individuais, impondo uma


estrutura de inércia, transformando a práxis numa ação petrificante, ele se recusa a se
ver como uma Série, buscando reaviver a liberdade que fundou o grupo. Ainda busca o
sonho de se fazer um “indivíduo comum”, um organismo pleno e livre, afirmando que
seus membros são livres, queiram ou não. Portanto, é necessário encarnar a práxis do
grupo numa figura, evitando a dispersão. É o Soberano. Reaparece a ação individual no
148

grupo, mas somente a do soberano. A sua livre práxis é identificado como a ação e
vontade do grupo. Até aqui, não existiam chefes, todos os membros exerciam uma
função que se coadunavam mutuamente. Quando estas ações começaram a se dispersar,
foi necessária a criação de uma inércia para o funcionamento do grupo e o nascimento
da hierarquia, que passa a encarnar o grupo inteiro. O soberano não é um indivíduo, um
mero integrante do grupo, mas o próprio grupo personificado.

Desta forma, o grupo se degrada, retornando-se à Série. Uma vez que não me
identifico com a minha práxis, pois vejo-me realizando fins preestabelecidos pelo
Soberano, a alienação retorna vitoriosa. As ações dispersas dos membros não
conseguem se fundir no organismo individual do soberano. Ele se torna um ser estranho
e hostil aos seus companheiros de grupo, além de que, o próprio soberano se engana ao
acreditar que é a encarnação do grupo, pois somente na práxis é livre. Já não há mais
nenhuma possibilidade de coesão, apenas uma união absurda de moléculas dispersas.
Relevante é notar que o papel do Soberano não precisa ser realizado por um único
membro do grupo. Pode ser feito por uma elite, que constitui o Estado. Assim, no final
do processo, o que nasceu da liberdade de todos oriundo de um ato de revolta, se
converte numa servidão de todos à liberdade de um homem ou de uma elite.

Isto ocorre porque o grupo sempre fracassa quando busca ser uma totalidade
fechada, um Ser acabado, pois ele é algo que está sempre por via de totalizar-se. Quando
pretende realizar este ideal, o grupo se dissolve. As etapas do grupo, descritas acima,
não necessitam ser percorridas obrigatoriamente. A queda do grupo à Série não precisa
ser somente no final do processo, com o aparecimento do Soberano. Aqui estamos
relatando um quadro estático. Na realidade, existem simultaneamente diferentes formas
de coletividades interagindo. A História é formada por esta relação entre série e grupos,
que por sua vez, estão se metamorfoseando, pois as gerações seguintes herdam uma
realidade concreta, superando-a de seu modo particular. E cada homem, dentro de sua
série ou grupo, possui uma relação singular com a sua condição.

E o que são as classes nesta visão? A classe não é um grupo, é uma


coletividade serial, cujos membros se encontram alienados pelo Prático-Inerte. A classe
não possui, portanto, uma unidade de ação, pois é formada por homens dispersos. O que
os une como membros de uma classe não são somente as condições materiais em que
149

estão inseridos, mas a presença de um terceiro mediador. É a outra classe, que unifica os
homens que estão no outro lado produtivo, unificando-os de fora. A classe opressora
unifica a classe oprimida e vice-versa. Assim, cada membro se vê integrado à sua classe
por um observador de fora, reconhecendo a sua condição como a mesma de seu
companheiro. A classe, internamente, passa a ser uma mini-sociedade: ela é constituída
de séries e grupos, que se movimentam entre si. Não existe o proletariado, mas
proletariados, coexistindo diferentes formações grupais de proletários. O mesmo ocorre
com a burguesia, que é algo multifacetado. Assim, o grupo-em-fusão, no caso do
proletariado, é apenas uma parcela da classe que se rebela, enquanto outros permanecem
mergulhados na série. Os grupos institucionalizados na classe, como o Partido
Comunista e os sindicatos, pretendem unificar a classe inteira como um grande grupo,
porém se encontram afastados dos operários serializados. Estes grupos
institucionalizados são úteis para suscitar o surgimento de grupos-em-fusão,
mobilizando os homens mergulhados na série, porém, tratando-se de um grupo
institucional, tendem à serialidade. Assim, os grupos-em-fusão estão sempre na
vanguarda, sendo encarados, em certos casos, como inimigos pelo grupo institucional.

Assim, a luta de classes não pode ser encarada como um mecanismo de forças
econômicas que formam a sociedade. Sem dúvida, fatores materiais possuem um papel
importante, pois a desigualdade social tende a aumentar no sistema capitalista. Porém, o
aspecto objetivo não é suficiente para mobilizar a ação humana. É necessário um
aspecto subjetivo, quando cada indivíduo interioriza as suas condições materiais, para,
posteriormente, exteriorizar num projeto, visando um fim a se realizar. Assim, o
mecanismo entre as classes é o mesmo na relação entre os homens: ao interiorizar a sua
realidade concreta, marcada pela escassez, o indivíduo vê o seu semelhante como um
inimigo. Para ocorrer isso, é necessário, anteriormente, o reconhecimento da liberdade
alheia. Assim, é preciso deter estas liberdades, para controlar os homens em seu
potencial ameaçador, ocorrendo o primado da violência na História humana. A luta de
classes, portanto, é o esforço da liberdade para limitar outra liberdade. Desta forma,
cada classe reconhece a liberdade que está na outra classe, organizando uma ação como
resposta à práxis da sua oponente. A ação de uma provoca a ação da outra, ocorrendo
um tenso jogo de ação-reação. Portanto, trata-se de um processo dialético, com relações
recíprocas entre as classes que é constituída por séries e grupos. Não se trata de um
150

emaranhado confuso de ações, mas de um conjunto de práxis que segue uma lógica
dialética. Concluímos que a classe explorada move a sua práxis como a negação da
negação, ou seja, se vê num certo contexto material (unida pelo olhar da sua oponente),
notando o seu estado de serialidade que contribui para a sua exploração, reconhecendo a
necessidade de transformar esta realidade através da práxis revolucionária, negando a
sua condição de explorada. A burguesia, por sua vez, ao se consolidar, reconhece o
perigo da classe que ela explora, submetendo-a a um papel secundário na distribuição de
bens escassos. Ao ver ameaçada, diante de qualquer esboço de grupo-em-fusão na classe
adversária, mobiliza-se para negar àquela negação da sua condição de classe
exploradora.

Desta forma, por trás das manifestações históricas, está o jogo dialético das
classes subdivididas em séries e grupos, que agem entre e contra si, impelido por um
fator básico: a violência, que é utilizada como recurso para reduzir a liberdade alheia
diante do perigo que esta se torna devido a escassez. Portanto, as manifestações
históricas se resumem a uma relação de reconhecimento e hostilidade com o Outro. A
História não é criada por forças estranhas, sejam seres supremos, leis naturais ou
contradições econômicas, mas pelos próprios homens. Diante do quadro das relações
dos homens entre si, surge então a questão moral. No entanto, como se relacionam
Moral e História? Kant e Hegel são filósofos que buscaram equacionar esta relação, e
um breve exame de suas doutrinas nos servirá de preâmbulo à colocação propriamente
sartro-marxista do problema.
151

Capítulo 4 – O Progresso de Kant

Já esbarramos algumas vezes com a moral kantiana. Isto se deve, porque para
um pensador sério que decide estudar a Moral, como é o caso de Sartre, é impossível
ignorar a presença de Kant. O kantismo, como o cartesianismo, foi um elemento
marcante na formação acadêmica de Sartre, tendo vários kantianos como professores.
Aliás, a sua obra “Crítica da razão dialética” é uma referência ao filósofo alemão,
fazendo uso do seu conceito de “crítica”, não como uma oposição, mas como o estudo
das estruturas da razão, bem como de seus limites.

A pedra angular da moral de Kant é o imperativo categórico. Este é o


comando da moral que relaciona um dever ser definido objetivamente pela razão com a
subjetividade do indivíduo. O ato moral é categórico, pois deve ser um fim em si
mesmo, e não visar algo exterior a ele. Isto seria um imperativo hipotético, pelo qual
uma ação é realizada tendo em vista um interesse externo. Por exemplo, posso não
roubar devido ao constrangimento de uma lei jurídica, com medo de ser preso; ou
praticar a caridade, apenas visando a fama. O ato moral não pode ser realizado por uma
condição externa, por um constrangimento ou por uma finalidade material. Nestes casos,
as minhas ações seriam realizadas pelas paixões. A moral é um ato racional e, portanto,
livre. E ser livre é obedecer às suas próprias leis. Eu ajo de tal forma porque eu
racionalmente determinei agir deste modo, e não por alguma paixão (medo ou vaidade,
nos exemplos citados). E por ser uma lei dada pela razão, é válida para todos os homens
enquanto seres racionais. O dever moral é uma norma universal, pois está em todos os
homens. Desta forma, as condições materiais em que estão os homens em nada
influencia, pois a moral não procede de uma observação empírica, mas de um enunciado
a priori da razão. Assim, as conseqüências do meu ato, que variam conforme as
situações, não devem ser levados em conta para o cumprimento do dever moral. Desta
forma, devo até me sacrificar em certas situações, em que uma imoralidade seria mais
vantajosa, se pretendo agir de modo racional. Portanto, o objetivo dos homens não é a
felicidade, como pensava Aristóteles (384-322 a.C.), mas o dever moral, por serem seres
livres, isto é, racionais. De certo modo, Sartre herda esta intransigência moral, pois ele
exige uma responsabilidade total, isenta de qualquer desculpa.
152

Diferente da moral, Kant não chegou a escrever uma detalhada obra acerca da
filosofia da história. O único texto especificamente sobre isto é um opúsculo, que apesar
de curto, possui um longo título. Trata-se de “Idéia de uma história universal de um
ponto de vista cosmopolita”, publicado em 1784. O que está por trás deste título tão
pomposo, bem ao gosto das grandiloqüências da cultura alemã?

À primeira vista, a História parece um palco de atrocidades, onde são


cometidas terríveis barbaridades. Porém, Kant não quer cair num desespero, ele é
otimista, bem ao estilo do Iluminismo. A História não é um tumulto de violências, mas
algo que está indo para algum lugar. O homem é um ser que está na natureza, e como
toda criatura, está destinado a se desenvolver completamente em direção a um fim. A
natureza não faz nada em vão, tudo possui uma finalidade. Isto é um axioma básico de
Kant. A idéia de acaso é algo que o espanta, que deixaria os fios de sua peruca branca
em pé!

Partindo deste princípio, a natureza não abandonaria o homem neste caos


cego. Por trás desta aparente desordem, há algo que costura as ações humanas. No
homem, a natureza orientou as suas inclinações para o completo desenvolvimento da
razão. O ser humano não age por instinto, como os animais, mas por seu livre arbítrio. É
por isso que só os homens fazem a História. Porém, o homem é um ser ambíguo, pois
ele não é nem totalmente natural nem totalmente racional. A razão deve ser
desenvolvida, o que exige um enorme tempo, apesar da brevidade da vida humana. Este
conhecimento deve ser passado à geração seguinte, e, desta forma, cada geração
transmite à outra “as suas luzes”. Assim, é a espécie que a natureza desenvolve, e não o
indivíduo. Para o indivíduo, a História parece caótica, mas, para a espécie humana
ocorre um desenvolvimento. A espécie é una e, portanto, o indivíduo é apenas uma gota
d’água na corrente histórica. A natureza não está preocupada com ele, mas pela
humanidade inteira, como espécie natural. Este desenvolvimento, apesar de lento e
progressivo, não é linear, pois são possíveis retrocessos e reviravoltas. Para Kant, a
Idade Média é um grande hiato entre o mundo antigo e a Renascença.

O modo que a natureza utiliza para desenvolver o homem é a sua disposição


antagônica. É o que chama de insociável sociabilidade dos homens. O homem possui
uma tendência natural a se associar, para potencializar as suas inclinações, porém,
153

também tende a se isolar, com um desejo egoísta de realizar tudo a seu modo. É
justamente por esta oposição entre os homens que há uma necessidade da presença dos
outros homens, até para vilipendiá-los. Assim, inicia-se um processo de refinamento dos
hábitos, fazendo os homens passarem da barbárie à cultura. As paixões humanas vão se
direcionando para o princípio racional e o discernimento moral. A metáfora que Kant
utiliza é a da floresta: cada árvore busca o máximo de luz solar para si, e é esta luta entre
elas, que faz todas crescerem de modo reto em direção ao céu. Através dos interesses
particulares de cada árvore, a floresta cresce de modo harmônico. Isto é um aspecto
liberal de Kant, em que é pela concorrência que se chega ao equilíbrio social.

É pelos interesses mais vis que começam a ser formuladas as estruturas


racionais da cultura. O Direito nasce como uma forma de conciliar os litígios e o Estado
deve estar calcado no princípio constitucional. Aqui Kant diz não querer julgar os
homens do passado, que praticavam a política do “olho por olho”, cometendo terríveis
crimes. Do ponto de vista da natureza são como crianças, seres que não sabiam o que
faziam, pois estavam mergulhados nas paixões. O sistema jurídico vai se originar
através do desenvolvimento da razão pela espécie humana. Esta é a grande finalidade do
homem: a construção da sociedade civil, baseada no Direito. A natureza não se opõe à
cultura, pelo contrário, ela força os homens a chegarem a este estágio racional. Mas não
por um determinismo natural, mas pelas leis da razão, isto é, pela conduta livre dos
homens. Kant ridiculariza o sonho edênico de uma felicidade originária do homem no
estado natural. O que ele chama pejorativamente de “pastores da Arcádia”, que seriam
seres tolos, ingênuos num mundo tedioso. É pela violência entre os homens, que estes
alcançam a tranqüilidade da sociedade civil. Aqui, Kant ajusta as contas com o filósofo
francês que mais o influenciou: Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). O pensador
alemão não é um saudosista do “bom selvagem”; ele é um apologista da civilização,
porém, não existe uma ruptura entre esta e a natureza. Paradoxalmente, a natureza força
os homens à saírem da passividade do estado natural. É fundar uma sociedade baseada
na liberdade humana, isto é, na razão, a função da humanidade como espécie natural.
Assim, os “pastores da Arcádia” são desinteressantes para a própria natureza, pois eles
agem como bichos, ou seja, não possuem consciência do paraíso em que vivem. É pela
razão que o homem deve tentar alcançar a harmonia.
154

Este mesmo raciocínio é aplicado no campo da política externa. Assim como


a insociável sociabilidade dos homens, os Estados competem entre si, desconfiam
reciprocamente, se agridem, e estão submetidos aos caprichos de seus príncipes. É neste
quadro antagônico que caminha o cenário político para uma harmonia internacional,
através de uma entidade supra-nacional, isto é, uma organização mundial como uma liga
das nações. Legislar-se-ia um Direito internacional, visando a organização do planeta,
podendo até imaginar um projeto de “paz perpétua”. Desta forma, é a própria
animosidade dos Estados que tende a um mundo sem guerras. Kant prega um
cosmopolitismo, que está no título do opúsculo.

O Direito é a preparação para o reino da moralidade. Um ser totalmente moral


não precisa de uma lei jurídica para administrar a sua sociabilidade. Portanto, é pelo
Direito que ocorre uma educação moral do homem, um aperfeiçoamento do uso da
razão. Assim, a História é esta pedagogia da espécie humana para a moralidade. E o que
é educar para Kant? É constranger uma liberdade, para que esta seja utilizada de modo
pleno. Já vimos que ser livre é obedecer às suas próprias leis (autonomia), portanto, o
professor ensina, e até deve punir às vezes, para que a criança de hoje se transforme
num homem que utiliza a razão. A criança obedece leis externas (dadas pelos adultos), e
quando atingir a maioridade, ela própria irá dar as suas leis. Caso contrário, se tornará
um homem cego pelas paixões. Kant parte do princípio que há este potencial de
liberdade na criança. É por isso que educar é constranger uma liberdade, para que esta se
manifeste. Uma árvore ou um cavalo não precisa de um professor; somente um ser livre
pode ser educado.

A educação da humanidade toda é pela História. É por isso que a humanidade


não faz a História, e sim, é ela que é feita pela História. Os homens não são os mestres
da História, mas é a História que é a sua mestra. A História é o modo encontrado pela
natureza de conduzir a espécie humana ao seu perfeito uso da razão e, portanto, ao reino
da Moral. Porém, não podemos achar que a História é regida por leis naturais. Ela é
fruto das ações dos próprios homens, é o resultado de sua livre conduta. Assim, apesar
dos interesses pessoais de cada homem, a espécie caminha para um progresso na sua
acuidade racional. Muitas barbaridades cometidas pelos egoísmos dos indivíduos
poderiam ter sido evitadas, se estes não ficassem presos às suas paixões. Aqui, Kant é
155

contraditório, pois anteriormente havia dito que não queria julgar os homens (até porque
seria impossível julgá-los, se eram inconscientes em seus atos).

Não existe um “fim da História”, como pode parecer. Esta soberania da razão
e o reino da moralidade não chegarão nunca. Trata-se de uma idéia diretriz para as
instituições da sociedade civil, que estará sempre se aperfeiçoando. O progresso não
encontra um término, haverá sempre melhoras na forma da organização social e do
sistema jurídico. É através de mudanças dentro da legalidade que ocorre a melhoria
social. Kant é um reformista e não um revolucionário. Quando estourou a Revolução
Francesa, Kant aplaudiu com entusiasmo as suas idéias liberais, pois o Estado
absolutista é irracional. O poder político não pode se curvar aos caprichos de um único
homem, cuja legitimidade está em Deus. O Estado deve ser regulamentado de modo
racional e, portanto, seguir a universalidade por intermédio de uma representatividade
geral inscrita numa Constituição. Contudo, quando a cabeça do rei foi cortada, sendo o
prelúdio para muitas outras, Kant se assustou! O estado de direito não pode ser
instaurado por um crime, mas seguindo o processo legal. Portanto, a Moral, uma idéia
reguladora que rege a História, não se implantará como uma Nova Jerusalém. Isto
ocorre porque o homem é um ser ambíguo. A idéia de que o processo histórico encontra
um fim será de outro alemão, mas bem diferente.
156

Capítulo 5 – O Espírito Absoluto de Hegel

A influência de Hegel no pensamento de Sartre dispensa apresentação,


transformando o francês num dois mais notórios dialéticos do nosso século. Para estudar
Marx, foi preciso voltar à origem da dialética. Este é um dos grandes problemas dos
marxistas que seguiam as diretrizes de Stálin (1879-1953), que nutria uma forte
desconfiança em relação à dialética, pregando uma ruptura radical entre Marx e Hegel.
Já em 1948, um incômodo professor de estética da Universidade de Budapeste, que
tinha sido preso na União Soviética acusado de “trotskysmo” (o que significava a morte
naquela época), lançou um livro sobre o jovem Hegel, fazendo justiça à dialética e
demonstrando grandes vinculações entre Hegel e Marx. Trata-se de Lukács, que com
seu brilhantismo intelectual sempre foi persona non grata para o stalinismo. Sartre,
décadas depois, verá o quanto o marxismo se desviou de sua autêntica proposta,
desconsiderando que Marx absorveu a dialética de Hegel, ou seja, é um pensador que
veio do hegelianismo.

Apesar de famoso por sua filosofia da História, Hegel jamais publicou em


vida um livro especificamente sobre o assunto. O texto que possuímos, “Lições sobre a
filosofia da História” precedido de sua popular Introdução intitulada “A razão na
História”, é uma compilação, publicada postumamente, de seu curso lecionado cinco
vezes a partir do inverno de 1822/23. Trata-se do período final de sua vida, quando
ocupou a cátedra de filosofia da Universidade de Berlim, lotando auditórios com seus
cursos sobre estética, história da filosofia, filosofia da religião e, o já citado, filosofia da
história. A grande originalidade de Hegel é o seu modo de encarar a História. Os
acontecimentos não estão na História, como um lugar, um arquivo em que se deposita o
passado. Os acontecimentos são a História e, portanto, esta passa a ter uma autonomia
própria, uma força propulsora autônoma. E esse motor da História são as contradições,
pois a História é um processo dialético.

Como Kant, Hegel vê a História como uma sucessão de atrocidades. Porém,


estas violências possuem uma justificativa, pois a História é racional, pois o real
também o é. Salta aos olhos este banho de sangue, mas há, por incrível que pareça, uma
racionalidade ali. E se estamos falando em razão, aparece em cena o Espírito. E o que é
157

isto? Bom, trata-se de algo extremamente complexo de se definir, como tudo na


filosofia alemã desta época. O Espírito é a Razão, o Todo, o Absoluto, a união do
infinito com o finito, que se manifesta em todas as coisas. Porém, o Todo não é a soma
das partes, ele o precede, são as partes que encerram em si algo do todo. Portanto, as
ações particulares dos homens possuem algo de universal. Assim, os atos de violência
causados pelas paixões humanas estão vinculados a algo muito além delas, com o
universal. Desta forma, as próprias paixões criam as suas limitações, sendo utilizadas,
de forma inconsciente, pela própria Razão. Os espíritos dos homens, como
particularidades, são manifestações do Todo.

O homem é uma manifestação bem particular. A Natureza se organiza através


de leis exteriores a ela. Os planetas se movimentam segundo as leis da física e os seres
vivos seguem o instinto. O homem é o único ser que é capaz de querer algo e de
representá-lo conscientemente. Assim, o homem nega a Natureza, por não ser
determinado por leis externas, e cria um mundo para si (a cultura). O homem sabe da
sua existência entre as coisas que o rodeiam, isto é, possui consciência da oposição entre
o mundo exterior e interior. A partir daí, se instaura uma inquietude em seu seio,
interrogando-se sobre a sua existência. O homem é um ser de desejo, diferente dos
animais, que se satisfazem com as suas necessidades fisiológicas. O desejo humano é
querer o reconhecimento do Outro, instaurando a “dialética do senhor e do escravo”. Há
um confronto entre duas consciências que se arriscam até a morte. Porém, uma se
“acovarda”, e se submete à vontade da outra., surgindo o mestre e o escravo. Esta
relação inter-humana, vemos na História. Porém, como já vimos, o homem é, por
definição, a negação da Natureza, ou seja, ele é uma liberdade. Na verdade, esta não é
uma característica do homem, mas do Espírito, que se manifesta através dos homens. A
liberdade humana ocorre porque o homem é um ser espiritual, sendo uma expressão do
Espírito. Portanto, somente um ser livre pode fazer História, pois ele é o radicalmente
outro da Natureza, isto é, não segue leis externas, pois,como já vimos, a História possui
uma força autônoma.

Desta forma, o Espírito se realiza como História. Ele não está na História, é a
própria História. E sendo esta um ato racional, visa a realização de um fim. Esta meta é
o conhecimento de si, ou seja, a História é o Espírito se auto-conhecendo. Ora, nós já
sabemos o que é o Espírito; ele é liberdade. E o saber, para Hegel, não se trata de um ato
158

meramente epistemológico, ele é performativo. Ao saber que sou livre, eu sou


plenamente livre. Isto significa que os homens do passado, por serem inconscientes, não
eram seres da Natureza. Eram, antes de tudo, homens, que não possuíam consciência de
sua liberdade. Assim, como a semente possui em si o germe da árvore, os homens do
passado já possuíam este conhecimento da liberdade, mas num estado de latência.
Portanto, a História é o progresso na consciência da liberdade.

A semente para chegar à árvore, através de leis externas (como o solo, a


chuva, o sol, etc), nega o seu estágio inicial para alcançar o estágio final. Porém, a
História é algo espiritual e, portanto, o Espírito nega a si próprio por suas próprias leis.
Por isso que a História não é uma marcha progressiva lenta e tranqüila, mas marcada por
reviravoltas e rudezas, se transformando num corolário de violências. O movimento do
Espírito é desgastante e duro. Assim, a História é constituída por um tempo homogêneo,
pois sendo a expressão do Espírito, é como se fosse a água de um rio, que percorre da
nascente até a foz.

O Espírito precisa se expressar de forma concreta. E se manifesta, encarnando


nos povos, constituindo-se no Espírito de um Povo (Volkgeist). O indivíduo, para Hegel,
é uma abstração, pois ele somente existe dentro de uma comunidade, atinge a sua vida
total através de seu povo. E o Espírito de um Povo se expressa através da cultura, isto é,
pelos costumes, hábitos e cerimônias religiosas. Os povos, por sua vez, como uma
totalidade orgânica, nascem, se desenvolvem e morrem. E o Espírito passa a se encarnar
de um povo para outro. Sendo a História, o progresso da consciência, existem três
etapas nela: o mundo oriental (Mesopotâmia), onde só um homem era livre (a teocracia
patriarcal), seguido pelo mundo antigo (grego e romano), onde alguns homens eram
livres (a democracia e a aristocracia), para, em último lugar, atingir o mundo germânico
que, pelo cristianismo, todos os homens são livres.

História, para Hegel, é história política, porque as diferentes formas de


organização política são as expressões mais elevadas da cultura. É pela política que o
povo se organiza, dando uma harmonia geral. Hegel busca conciliar o universal com o
particular, isto é, o que ele chama de universal concreto. Critica, portanto, os empiristas,
que apenas atingiram a verdade do particular, através das impressões sensíveis no
indivíduo; e também critica Kant, que atingiu a verdade do universal, mas de forma
159

desencarnada. Porém, o universal se manifesta de forma histórica, ou seja, empírica e,


portanto, os empiristas chegaram ao concreto, mas pelo particular, enquanto que Kant
chegou ao universal, mas de forma abstrata. Entre o individualismo e o cosmopolitismo,
Hegel quer o Povo. Em suma, Hegel é um nacionalista.

Na História, existem homens que se destacam de seus semelhantes. São os


Grandes Homens, os heróis, que pelas suas paixões encarnam o universal, que não está
neles, mas que se manifesta por eles. Lembremos que toda ação particular dos homens
encerra algo de universal. O universal é posto em ação pelas particularidades das
paixões humanas. Assim, entre as paixões e o resultado das ações também se abre um
espaço para o acaso. O processo histórico segue as linhas do Espírito, ocorrendo um
desencontro entre os fins individuais com os objetivos da História. Desta cisão, nasce o
acaso, e se tratando de uma dialética, a liberdade sempre se esbarra com o seu oposto: a
necessidade. Assim, as circunstâncias, que são contingentes, acabam gerando uma
finalidade necessária, através dos atos dos indivíduos (cujo resultado, em geral, não
coincide plenamente com a intenção). Nos Grandes Homens, há uma coincidência entre
a intenção e a necessidade histórica, o que torna as suas paixões uma expressão do
universal. Assim, os desejos pessoais de Alexandre, o Grande (356-323 a.C.), Caio Júlio
César (101/100-44 a.C.) ou Napoleão Bonaparte (1769-1821) são, na verdade, as
manifestações do Espírito se concretizando por intermédio deles. Os seus atos não
visam à felicidade pessoal, pelo contrário, os grandes homens sempre possuem um final
trágico, pois, após a realização da necessidade histórica, as suas figuras passam a ser um
obstáculo. Ou seja, ainda há um particularismo neles, e quando deixam de ser um
utensílio para a marcha do Espírito, devem ser sacrificados sem piedade. Assim, como
diz Hegel, a História não é o lugar da felicidade, pois os indivíduos (inclusive os
grandes homens) trabalham arduamente, e jamais colhem os seus frutos, cujos interesses
particulares estão a serviço de um fim superior. Para o indivíduo, que vê segundo a sua
visão particular, a História se apresenta como uma sucessão de desgraças, infortúnios e
sofrimentos. É pelo sacrifício dos interesses individuais que o progresso do Espírito se
realiza, alcançando estágios superiores. Este sacrifício é batizado de ardil da Razão.
Assim, a História é o altar onde são imolados “a felicidade dos povos, a sabedoria dos
Estados e a virtude dos indivíduos” em nome de uma marcha necessária, gradual e
progressiva do Espírito Absoluto.
160

Realmente, à primeira vista, parece um quadro dantesco que nos assusta.


Porém, não devemos julgar a História. É o que Hegel chama pejorativamente de “visão
moral do mundo”, em que uma consciência individual pretende avaliar a ação do
universal. Porém, diante disto, perguntamos: como entra a questão moral aqui? Já
sabemos que Hegel busca o “universal concreto”, isto é, a união do particular com o
universal, do infinito com o finito. A moral kantiana é algo abstrato, segundo Hegel.
Veremos a questão do progresso que tanto embaraçou o filósofo de Königsberg: Kant
diz que não devemos usar o outro como meio, mas como um fim, porém, ao afirmar que
a História é um movimento progressivo, as gerações passadas são meros utensílios para
as gerações futuras. Este é um paradoxo que jamais foi resolvido. Já em Hegel, a ação
do Espírito exige essa atitude pois o universal se desenrola, mesmo contra os interesses
do particular. É uma marcha árdua e difícil, porém, necessária. Kant afirmava a Moral
como uma lei a priori da razão, o que significa, para Hegel, cair num universalismo
abstrato, pois o indivíduo age dentro da comunidade de seu povo. Portanto, existe este
tipo de moral que é abstrata, utilizando o termo Moral (Moralität). E existe uma moral
concreta, como expressão do Espírito de um Povo, utilizando o termo Ética ou
Eticidade (Sittlichkeit), que são os costumes e os hábitos de um povo. Esta é a
verdadeira Moral para Hegel, não um mandamento universal descolado do mundo
empírico, mas práticas arraigadas nas ações concretas de um povo. Por exemplo, o fato
dos homens chineses usarem as unhas compridas ou das mulheres indianas não
depilarem as sobrancelhas é uma conduta moral, ligada com os usos e costumes como a
expressão do Espírito naquele povo.10

Sendo a moralidade algo do povo, ela é uma expressão histórica. Voltemos à


História, como tomada de consciência da liberdade. Nos orientais (assírios, medas,
babilônios, persas), somente um homem era livre. Os homens ignoravam a sua verdade,
porém o Espírito já estava presente. Os indivíduos eram apenas peças passivas da
vontade do imperador, ou seja, não existia individualidade. Já no mundo greco-romano,

10
Na verdade este não é um bom exemplo, pois Hegel, na última parte da sua Introdução, levanta as
condições geo-climáticas para o Espírito se manifestar. Numa profunda aula de etnocentrismo, os únicos
povos propícios para a manifestação do Espírito são os de clima temperado, dispensando as zonas
tropicais, frias e polares. Assim, povos e raças são dispensadas e Hegel não poupa críticas à “indolência
dos negros” ou à “covardia dos asiáticos”. Relevante notar que História para Hegel é a História do
Ocidente (Mesopotâmia, Grécia, Roma, Europa central), que se desemboca no povo germânico! É fácil,
nos dias de hoje, não levarmos à sério este ensaio de egocentrismo erudito, mas isto nos torna consciente
de como os europeus, durante séculos, se acreditavam o centro do mundo.
161

alguns homens eram livres. Então, a individualidade apareceu pela primeira vez. Na
Grécia, aparecia na figura do cidadão livre, que ainda não possuía uma autêntica
consciência de si. Encontrava-se harmoniosamente ligado com a pólis, como algo
natural. Em Roma, o homem atinge a sua subjetividade, através do conceito jurídico da
propriedade privada. O princípio da liberdade de todos os homens aparece no seio do
mundo romano, que com uma exacerbação da subjetividade, gera a dilapidação do
Estado romano. O cristianismo se hegemoniza através do individualismo romano, pela
salvação pessoal. Alcança-se a consciência da liberdade universal mas, em primeiro
lugar, na esfera celeste. O mundo germânico (construído por povos que derrubaram o
Estado romano) possui o objetivo de desenvolver o princípio cristão, mas, não numa
fuga aos céus, mas realizá-lo aqui no mundo concreto. Portanto, durante séculos, a Idade
Média, a Reforma, o Iluminismo, a Revolução Francesa, são o processo de
aprofundamento da liberdade dos homens, através da conciliação da subjetividade com a
universalidade.

É o Estado, a forma concreta desta conciliação. Hegel critica ferozmente os


contratualistas, que vêem o Estado como uma mera instância superior, oriundo do
contrato entre os indivíduos. O Estado não é criado pelos indivíduos, visando um
determinado fim. Ele se auto-fundamenta, pois é um fim em si mesmo. Não existem
indivíduos fora da comunidade, pelo contrário, é pelo Estado que os indivíduos existem
e desenvolvem as suas habilidades individuais através da cidadania. O Estado é o
“universal concreto”, é onde se une a vontade geral à vontade subjetiva através das suas
determinações gerais e racionais: “o Estado é a idéia divina tal qual existe sobre a terra”.
E a forma ideal de governo deste Estado é a monarquia constitucional, com a vontade
de todos emanada por uma Constituição, que corresponde ao espírito do povo, e
simbolizada carnalmente na figura do monarca. E neste quadro, a moral concreta, isto é,
a Ética se expressa plenamente.

No Estado, os interesses particulares se identificam. Os indivíduos se formam


na família, que por sua vez, se agrupam em classes. E os interesses de cada classe são
levados ao uníssono através do Estado. O jogo dos interesses particulares que se opõem,
Hegel chama de sociedade civil (Bürgerliche Gessellschaft – que também pode ser
traduzido como “sociedade burguesa”). Esta é superada somente pelo Estado, que não é
um agregado, mas a totalidade orgânica de um povo, não originada de um contrato, mas
162

fundada por uma vontade geral. E é pelos Grandes Homens que a vontade geral se
manifesta, pois é necessário um instrumental humano para se realizar.

Para Hegel, existem três classes. A aristocrática, que está ligada à riqueza da
terra e à família, e que possui um papel fundamental na guerra. Aqui, não há espaço para
o pacifismo de Kant, pois a guerra entre os Estados é até útil para a manutenção deles, e
a coesão do povo diante de um agressor externo.11 A guerra parece algo horrível aos
olhos das particularidades mas, quando o individualismo é esquecido, torna-se digno e
libertador sacrificar a vida individual em nome do universal. Lembremos que Hegel é
nacionalista. Por outro lado, quem possui o papel produtivo é a classe industriosa, que
congrega industriais, operários e camponeses, criando os bens econômicos a serem
usufruídos por todos. E por último, a classe que possui o papel central na conciliação do
universal com o particular e, portanto, uma classe universal: são os servidores públicos,
que administram o Estado.

Portanto, com a instauração deste Estado, alcança-se o reconhecimento da


liberdade de todos. É o fim da História, quando o Espírito atinge o seu estágio mais
perfeito e acabado, concretizado no Estado. Isto não significa que os acontecimentos
deixarão de ocorrer, mas que o objetivo da História, que é o progresso da consciência da
liberdade, atingiu o seu término. Isto significa que não ocorrerá nada de novo, apenas o
aperfeiçoamento do estado existente. A Razão se desenvolveu de forma plena, se
manifestando nas ações do Estado. Assim, Hegel encontra na organização burocrática e
militarista do Estado prussiano, a conciliação consigo do Espírito Absoluto. Porém, a
aparente ordem perfeita e harmônica deste Estado, será derrubada pela tese de Marx
sobre a História, apesar de preservar o instrumental hegeliano: a dialética. E não será
mais a política, mas o econômico, o fator do desenrolar histórico.

11
Será um hegeliano, Karl von Clausewitz (1780-1831), o criador da concepção de Totaler Krieg (Guerra
Total), encarando a guerra como “a continuação da política com o emprego de outros meios”, ou seja, é
impossível separar a direção puramente militar da direção política.
163

Capítulo 6 – O Materialismo de Marx e a Moral de Sartre

O pensamento de Hegel dominou o cenário intelectual alemão, apresentando


divergências. Alguns seguidores permaneceram fiéis à concepção política do Hegel
maduro, defendendo as instituições de modelo prussiano. Por outro lado, se constituiu
uma “esquerda”, que criticava este sistema político, mas conservando a dialética como
método de crítica social, econômica, política e ideológica. São os chamados “Jovens
Hegelianos”, formados principalmente por David Friedrich Strauss (1808-1874), Bruno
Bauer (1809-1872), Max Stirner (1806-1856), Arnold Ruge (1802-1880), Moses Hess
(1812-1875) e, o mais importante de todos, Feuerbach.

O jovem Marx participou ativamente das discussões deste grupo, porém,


como já vimos, posteriormente romperia com eles. Tornou-se clássico apresentar o
pensamento de Marx da seguinte forma: durante seus estudos, encontrou no
hegelianismo, a filosofia em sua forma mais acabada. Porém, decepcionou-se com o seu
abstracionismo, indo buscar, no materialismo de Feuerbach, a resposta para as suas
tribulações. Mas também discordaria de Feuerbach, desenvolvendo uma nova forma de
pensar junto com Engels. Portanto, é da ruptura com os seus dois mestres (Hegel e
Feuerbach) que Marx formula o seu pensamento.

Na verdade, não se trata de algo tão simples assim. Marx jamais foi um
autêntico hegeliano! Desde o seu encontro com as idéias de Hegel, sempre assumiu uma
postura crítica em relação a elas. Realmente, compreendeu e preservou todo o potencial
da dialética, mas sempre suspeitou de Hegel. Com Feuerbach ocorreu o mesmo. O
materialismo que Marx buscou nunca foi o feuerbachiano, que parte de uma crítica de
Hegel. Marx fará uma crítica da crítica. Portanto, voltamos a afirmar: Marx não foi
hegeliano, mas um crítico da crítica, isto é, um metacrítico do hegelianismo. É neste
sentido que aparece o seu materialismo.

Para Marx, a corrente filosófica mais coerente é o materialismo12. Notemos


que a sua tese de doutoramento em Filosofia, defendida em 1841, é sobre o atomismo de
Demócrito de Abdera (c. 460-370 a.C.) e Epicuro. Assim, a ciência surgirá de uma
164

“dessacralização” do mundo. Em Kant, o conhecimento é algo da alçada da ciência,


cabendo à filosofia somente determinar as condições para este conhecimento. Hegel
resgata a filosofia, concebendo-a como um todo racional, onde a ciência e a religião
possuem um papel importante, mas subordinado. O “real é racional”, pois se trata da
manifestação de uma Idéia. O Espírito se exterioriza na natureza e nas obras dos homens
para voltar-se a si como consciência deste processo. Feuerbach critica este idealismo,
pois trata das ações humanas. O homem não é a exteriorização do Espírito, mas um ser
puramente material. Aqui, o hegeliano alemão herda as idéias dos materialistas
franceses do Iluminismo: Julien-Offroy de La Mettrie (1709-1751), Denis Diderot
(1713-1784), Claude-Adrien Helvétius (1715-1771), Étienne de Condillac (1715-1780),
barão de Holbach (1725-1789) e marquês de Condorcet (1743-1794), todos
influenciados pelo empirismo inglês. Porém, segundo Marx, Feuerbach comete um erro,
pois concebe o homem como um ser puramente fisiológico e individual. Esquece que o
homem age dentro de uma sociedade e, o que é fundamental, não possui natureza, pois é
histórico. O materialismo feuerbachiano é mecanicista, encarando o homem dentro de
uma definição a-histórica, concebendo a sociedade como uma pluralidade de indivíduos
atomizados. Este tipo de materialismo é o da burguesia (lembremos que os iluministas
foram os paladinos burgueses contra a ordem feudal).13 O que Marx propõe é o
autêntico materialismo, aquele do proletariado. Ou seja, um materialismo que leve em
consideração a história, que é concebida dialeticamente. O materialismo de Marx não é
uma concepção biológica ou molecular do mundo, mas a construção e reprodução das
relações sociais. O sentido profundo do termo “matéria” se confunde com formação
social. Diante da História, da formação social e da transformação da matéria, Marx cai
no campo da economia.

Nem Marx nem Engels criaram o termo “materialismo dialético”. Concebe-se


o marxismo como a expressão de dois elementos: uma ciência, o materialismo histórico,
e, uma filosofia, o materialismo dialético. Se há uma cisão entre estes dois elementos é
algo que divide os marxistas. Isto não significa que o materialismo histórico seja menos
dialético que o outro, mas, são formas de encarar o homem, seja em sua relação com

12
É seguindo este princípio que Lênin concebe a história da filosofia como uma luta entre o materialismo
e o idealismo.
13
A burguesia é originalmente materialista. Ao se converter numa classe reacionária e decadente, passou a
apelar para o idealismo. Ver KONSTANTINOV, F. V. Teoria materialista da História trad. J. A Ramos.
Rio de Janeiro: Equipe, 1969.
165

outro homem (materialismo histórico) ou em sua relação com a natureza (materialismo


dialético). Relevante notar que estes dois elementos não são tão separados em Marx.
Aqui se desenrola uma polêmica entre Sartre e Henri Lefebvre (1901-1991). Como já
vimos, Sartre rejeita a idéia de uma dialética na natureza, dotando a matéria de uma
força autônoma, sendo a História, que é uma atividade humana, o melhor campo para
estudar a dialética. Para Lefebvre, Marx e Engels, num primeiro momento, colocam a
questão do homem com a natureza de forma dialética, passando de uma relação natural
para a cultura, visando a sociedade comunista. Esta fase é o materialismo histórico. Por
volta de 1859, a questão seria recolocada, concebendo toda a natureza como um
dinamismo dialético, situando a história humana dentro desse processo. Esta fase é o
materialismo dialético, que não chegou a ser totalmente formulado por Marx, mas por
Engels. Não entraremos nesta questão, mas isto se deve a um dos aspectos mais
delicados em Marx que é a relação do homem com a natureza, isto é, o uso do termo
problemático “natureza”, e conjugá-lo com a história.

Apesar de a História ter um papel fundamental em seu pensamento, Marx


jamais escreveu um livro especificamente sobre o assunto. Os seus estudos econômicos
e políticos derivam de uma concepção particular de História. O primeiro texto que
esboça a questão histórica é “A Ideologia Alemã”, escrito conjuntamente com Engels,
entre setembro de 1845 e agosto de 1846, durante o exílio em Bruxelas. O texto se
divide em dois volumes como uma crítica do panorama intelectual e política da
Alemanha, seguindo a trilha do anterior trabalho de ambos, intitulado “A Sagrada
Família”. Porém, diferente deste, “A Ideologia Alemã” jamais foi publicada em vida dos
autores, sendo recusada por vários editores e, posteriormente, abandonada, consumindo-
se ambos nas agitações políticas que varreram a Europa nestes anos, culminando nas
revoltas de 1848. Somente em 1932 veio à luz, sendo posteriormente revisto com a
descoberta de partes do manuscrito, através do Instituto Marx-Engels de Moscou.

Para Marx não existe divisão entre História humana e História da natureza. O
homem não se separa da natureza, pois é um animal. Se a História para Marx é a
atividade de homens concretos, estes, antes de mais nada, devem estar vivos. O primeiro
aspecto fundamental é, portanto, a necessidade orgânica do corpo humano. Porém,
diferente dos animais, o homem é capaz de transformar a natureza. Este foi o erro de
Feuerbach, que imaginava o homem como um ser que satisfaz as suas necessidades
166

passivamente. Pelo contrário, o que define o homem é a sua capacidade de produzir os


seus próprios meios de subsistência. É o trabalho; a transformação da matéria. Marx e
Engels (1977, p. 40) escrevem: “(...) satisfeita esta primeira necessidade, a ação de
satisfazê-la e o instrumento de satisfação já adquirido conduzem a novas necessidades –
e esta produção de novas necessidades é o primeiro ato histórico”. A História se
inaugura com a produção de necessidades. Aqui esbarramos com o delicado termo
“necessidade” que, paradoxalmente, para ser satisfeita gera carência. Isto demonstra que
não existe natureza humana, pois apesar de ser um corpo orgânico, o homem está para
além da pura fisiologia, pois pode comer muito além do necessário ou jejuar em nome
de uma causa nobre. Nenhum animal é capaz disso. Porém, devemos ter o cuidado de
não cair num idealismo, pois as idéias provêm de homens que vivem numa situação
concreta. E as necessidades são criadas pelo próprio devir sobre a matéria, e não de
alguma entidade que paira sobre os homens. É inconcebível algo fora da História. Isto é
uma ilusão!

Portanto, devemos melhor entender o que significa o “trabalho”, para


evitarmos tais distorções. Certos animais também operam transformações sobre a
matéria, porém, segundo o instinto. Eles agem segundo normas previamente
determinadas, o que não significam que sejam eternas, pois pelas mutações genéticas
ocorre a evolução das espécies. As abelhas e as formigas executam as suas funções
segundo o seu caráter genético, e somente, com algum erro químico de formação,
mudam o modo de agir. O que beneficia o pior engenheiro em relação ao melhor castor
é a capacidade de conceber a sua tarefa, antes de sua execução. Assim, é possível criar
inovações, pois é capaz de aperfeiçoar um instrumento ou uma técnica. Portanto, não
executa mais do mesmo, pois pode lidar com elementos previsíveis e não-previsíveis à
sua obra. Isto somente ocorre após um acelerado grau de desenvolvimento técnico, pois
a consciência não precede a matéria, ela surge previamente como um “órgão” do corpo
humano, após o encontro com a matéria. Com a divisão do trabalho (em primeiro lugar
de ordem sexual) gera a cisão entre o trabalho material e trabalho intelectual, podendo a
consciência se preocupar consigo mesma, criando as maiores elucubrações. Com esta
divisão, surge o conceito de “propriedade privada”, que é a expropriação do trabalho de
alguém. A sociedade se divide em classes. Os homens passam a ter “consciência”, ou
seja, se reconhecerem diante de si em relação à natureza. Segundo Marx e Engels:
167

Onde existe uma relação, ela existe para mim: o animal não se
“relaciona” com nada, simplesmente não se relaciona. [grifo dos
autores]. Para o animal, sua relação com outros não existe como
relação. A consciência, portanto, é desde o início um produto social, e
continuará sendo enquanto existirem homens. [o grifo é meu]
(MARX; ENGELS, 1977, p. 43)

Ora, tratando-se de algo social, a consciência é por conseqüência histórica. Se


o ser determina o pensar, isto é, se os homens pensam de acordo com as condições
materiais em que vivem, a verdadeira “consciência”, o autêntico conhecimento, é aquela
que reconhece a sua ligação com a produção material. O trabalho não é um ato
individual, mas um produto social e, portanto, histórico. Assim, o “trabalho” para Marx,
diferente do que afirmam os seus detratores, não é uma essência ou uma natureza
humana; não existe o trabalho, mas o trabalho comunal, o trabalho escravo, o trabalho
servil, o trabalho assalariado, etc. Não se trata de um conceito puro e abstrato, mas de
um produto concreto e histórico.

Assim, ao estudarmos a sociedade, percebemos a forma pela qual os homens


se organizam, possui por base um fator econômico. Esta se chama infra-estrutura. Sobre
esta, é construída um suporte jurídico-político e ideológico. É a superestrutura. Não se
trata de um mero reflexo de um sobre o outro, mas de uma totalidade complexa,
concreta e dialética; onde cada fator possui uma realidade própria, relativamente
independente. Senão, toda atividade social seria um mero fruto da economia.

Analisando o funcionamento da produção material, encontramos dois fatores.


O primeiro são as forças produtivas, isto é, os elementos que entram no processo
produtivo: força de trabalho e meios de produção, e que agem de forma combinada. É a
relação do homem com a matéria. Por outro lado, se constitui o segundo fator, as
relações de produção, que são as relações entre os agentes de produção, isto é, os
proprietários dos meios de produção e os trabalhadores. É a relação entre os homens.
Porém, não se trata de meras relações humanas, mas de relações entre posições definidas
na estrutura produtiva. A totalidade dialética destes dois fatores é o modo de produção.

O modo de produção não é um conceito abstrato, mas oriundo da análise das


diferentes formações históricas. Portanto, não existe uma teoria geral da História, mas
168

estruturas específicas de historicidade. Assim a História não é uma temporalidade linear


e homogênea como em Hegel, mas se vê constituir por diferentes momentos específicos.
Desta forma, História não é cronologia, uma sucessão de fatos, mas a sucessão
descontínua dos diferentes modos de produção. Não estudamos a História para prever o
futuro, mas compreender o atual estágio produtivo, dissecando um modo de produção
particular ou comparando-o com outros, para melhor entendê-los. Assim, evitamos
encarar a História como uma marcha linear e progressiva, composta por etapas
evolutivas. E como por trás dos meios de produção existe uma classe particular, a
passagem de um modo de produção ao outro se dá pela ascensão de uma classe
suprimindo a outra. Portanto, a História, sendo a sucessão dos modos de produção, é a
história da luta de classes. Além da produção comunal, Marx, ao constatar o surgimento
das classes antagônicas, reconhece quatro diferentes modos de produção: a asiática, a
escravista, a feudal e a capitalista.

Cada modo de produção possui particularidades geográficas e temporais. O


capitalismo inglês é diferente do alemão, que é diferente do brasileiro. Mas são todos
processos produtivos que seguem o funcionamento do modo de produção capitalista. O
mesmo se dá com as diferentes épocas: o capitalismo de hoje é distinto do de cem anos
atrás. Isto ocorre com as modificações internas do modo de produção, criando,
primeiramente, o capital mercantil; depois, o capital industrial que, por sua vez, se
associa ao capital bancário, formando o capital financeiro, que atualmente se manifesta
sob a forma de capital especulativo. Isto significa que há mudanças no formato do
capital que, antes de mais nada, continua sendo capital.

Como se passa de um modo de produção para o outro? O modo de produção


especifica o tipo de produção material sobre o qual está sustentada uma formação social.
Dentro da sociedade existem relações marginais que escapam do padrão geral. Por
exemplo, atualmente, existem relações não-capitalistas em certas regiões do planeta. Isto
ocorre porque a sociedade não é algo estático e mais, que o próprio modo de produção
está em movimento. Lembremos que há uma relação dialética entre as forças produtivas
e as relações de produção. As primeiras sempre tendem a se desenvolver mais rápidas
que as segundas, provocando uma contradição interna. O advento de novas técnicas e o
aperfeiçoamento constante de ferramentas acabam sendo emperradas pelas relações de
produção. Mas a sociedade não põe nenhum problema sem que ela própria possa
169

resolver. Irrompem-se movimentos sociais para destruir as antigas relações de produção,


visando criar novas, que sejam condizentes com o atual estado das forças produtivas.
Por exemplo, no modo de produção capitalista há uma contradição entre capital e
trabalho. A estrutura jurídica que define a propriedade privada burguesa, de onde surge
o trabalho assalariado, não é compatível com o atual grau de inovações técnicas. Isto
porque a função do sistema capitalista não é produzir para atender necessidades, mas
produzir para produzir. É o lucro que o capitalista visa que, com o avanço tecnológico,
deflagra uma disparidade entre a mais-valia que é expropriada e o crescimento na
composição orgânica do capital.14 O lucro tende a baixar e iniciam-se as crises de
superprodução como forma de resolver este problema interno. Marx, diferente dos
clássicos, não vê estas crises como contingências, pelo contrário, fazem parte da própria
essência do modelo econômico, que se desenrolará de crise em crise. Portanto, o
mercado não é auto-regulador, pois está estruturado numa contradição interna.

Por trás das relações de produção estão as classes sociais. Estas são grandes
grupos humanos que se diferenciam entre si pelo lugar que ocupam na estrutura de
produção. No modo capitalista, se resumem em, basicamente, duas: a burguesia e o
proletariado. A primeira se define por ser a detentora exclusiva de todos os meios de
produção, enquanto que a segunda é obrigada a sobreviver pela venda de sua força de
trabalho. Sendo a sociedade uma produção histórica, estas duas classes somente
apareceram numa determinada época da humanidade. A burguesia surgiu em certas
cidades, basicamente portuárias, convertendo-se em grandes centros comerciais, na
Baixa Idade Média (a partir dos séculos XI e XII, para ser mais exato). Aos poucos,
inicia a sua usurpação dos meios de produção, constituindo uma dissolução da relação
de vínculo direto do trabalhador com a terra, das relações de propriedade sobre os
instrumentos de trabalho e da relação direta do trabalhador com o processo produtivo,
transformando-se num homem “livre”, isto é, assalariado. O campo se submete à cidade,
vinculando as suas terras aos interesses mercantis (sobretudo da indústria têxtil),
expulsando uma grande mão-de-obra despossuída de tudo para os centros urbanos. As

14
O capital se divide em “capital constante” (c) (máquinas, instalações, matérias-primas, energia) e
“capital variável” (v) (salários). Lembremos que há a mais-valia (m) que é expropriada do trabalhador.
Esta não é o lucro, que se expressa da seguinte forma: l = m / c + v. Com o desenvolvimento técnico, o
custo do capital constante se eleva, mas a taxa de mais-valia tende a se manter, pois a exploração possui
um limite. Ocorre, portanto, o que Marx chama de “lei da baixa tendencial do lucro”, isto é, a margem do
170

corporações de ofício sucumbem às inovações técnicas. Com as grandes navegações, a


descoberta da América e o comércio com a África e o Oriente revolucionam a
sociedade, dando um grande impulso ao comércio, à indústria e à navegação de uma
forma nunca antes conhecida. O modo de produção capitalista possui a característica
particular de se universalizar, romper as fronteiras européias, criando o mercado
mundial. Outros povos e civilizações são submetidos à força no processo produtivo. O
capitalismo não se satisfaz até chegar aos últimos rincões do planeta. A burguesia cria
um mundo à sua imagem e semelhança. E no final do século XVIII, a burguesia desfere
o golpe de misericórdia à decadente ordem feudal. Com o grande avanço nas forças
produtivas e madura para o combate político, a burguesia desfaz as últimas relações
feudais, revolucionando as relações de produção. Transformou todas as relações
humanas em atividades mercantis, onde os indivíduos deixam de se relacionar entre si
como membros de uma comunidade, mas como seres atomizados que se vinculam por
questões monetárias. Desfazem-se os vínculos de “honra”, “lealdade” do mundo feudal,
descarnando-se por meras relações de dinheiro. Neste estágio, da completa consolidação
da sociedade burguesa, esta se apossa por inteiro da esfera produtiva, e não somente da
circulante. Desaparece o capital mercantil (ou usurário), abrindo espaço para o capital
industrial.

Tudo faz crer que a burguesia é uma autêntica classe universal. Mas não, pois
ao mesmo tempo em que ela cria um mundo à sua imagem e semelhança, ela cria o seu
oposto. A burguesia produz a sua antítese: o proletariado. É uma classe que ela rejeita,
mas que está visceralmente ligada. Todas as outras revoluções anteriores foram
realizadas por uma minoria, baseadas num tipo de propriedade. A única forma de
libertar o proletariado é destruindo a propriedade burguesa dos meios de produção.
Porém, como esta é o ápice do conceito de “propriedade privada”, pois é a possuidora de
todos os meios de produção, o proletariado deve destruir a propriedade privada por
completo. A sua libertação ocorrerá com o advento da propriedade coletiva. Por outro
lado, o modo capitalista de produção é contraditório, pois o trabalho tende a ser cada
vez mais coletivo, enquanto que os meios de produção ainda estão submetidos à forma
de propriedade privada. Esta é a grande contradição do capitalismo: a socialização
crescente das forças produtivas com o aspecto privado das relações de produção!

lucro tende cada vez mais a baixar com o desenvolvimento do sistema capitalista. Há um total
171

Portanto, diferente das revoluções de outrora, a do proletariado marchará para a


sociedade sem classes. Isto é possível, pois será a primeira ser realizada por uma
maioria. Isso ocorre porque é a primeira revolução empreendida por uma classe que não
possui nenhuma propriedade (seja no sentido de “posse” como de “qualidade”, pois o
trabalhador é um mero apêndice da máquina). É uma classe sem rosto! Não tem pátria,
lei ou família. Qualquer um pode ser proletário. E com a concorrência capitalista, a
sociedade tende a ser cada vez mais desigual, formando uma minoria excessivamente
rica e uma maioria extremamente pobre (é o que estamos vendo hoje). Esta contradição
vai engrossando progressivamente as fileiras do proletariado. Em suma, o proletariado é
a mais revolucionária das classes por ser uma classe universal.

E por que uma revolução? Para mudar a propriedade dos meios de produção,
é necessário transformar radicalmente as relações de produção, pois a classe
exploradora não deseja voluntariamente abrir mão de seus privilégios apesar do mal que
ela faz à outra classe e a si mesma, pelo fato de estar alienada. É preciso criar novas
relações de produção que coincidam com o atual estágio das forças produtivas, ou seja,
que os meios de produção sejam de propriedade social e não mais privado. Isto somente
é possível com a tomada do poder político, para que se modifique a estrutura jurídico-
política sobre os meios de produção. Isto porque o Estado foi criado para legitimar um
tipo de posse dos meios de produção por uma classe. Portanto, o proletariado deve
tomá-lo. Mas, se o fim último de sua revolução é a criação da sociedade sem classes, o
Estado também deve ser destruído, pois trata-se de um instrumento de opressão por uma
classe. A passagem do capitalismo para o comunismo não se realizará do dia para a
noite. Marx afirma a necessidade de uma fase intermediária (o socialismo), em que a
classe proletária em posse do Estado, inicia a destruição da sociedade burguesa. É o que
chama de ditadura do proletariado.

E, nos indagamos: como será a sociedade comunista? Marx jamais a


descreveu claramente! Isto é uma objeção? Muito pelo contrário, pois se tratando de um
pensador que analisa a partir de condições empíricas, como iria prever o futuro? Cairia
numa pura utopia - o que justamente pretende fugir -, perdendo toda a objetividade na
qual se compromete o seu pensamento. Senão, tudo não passaria de uma grande
profecia! Ora, Marx era barbudo mas não era Nostradamus! A sociedade comunista não

descompasso entre as forças produtivas e as relações de produção..


172

é o paraíso na terra, pois como toda sociedade humana também terá os seus problemas.
Porém, são problemas que nem podemos imaginar, de tão mergulhados que estamos na
sociedade burguesa. É impossível conceber o que seria concretamente este tipo de
sociedade. Portanto, o marxismo não é uma religião atéia e milenarista. Somente os
detratores mais imbecis, que possuem uma leitura tão grosseira, possa acusá-lo de tal
coisa. Assim, não haveria um “fim da História”, onde o comunismo fosse o coroamento
de um longo e penoso processo, onde o Homem coincidisse plenamente com sua
essência, após a destruição de todas as alienações. Isto seria uma visão evolutiva e, pior,
essencialista. Sim, na sociedade comunista haverá a supressão da exploração do homem
pelo homem, onde o indivíduo se identificará com a sociedade, sendo as suas aptidões
individuais desenvolvidas em harmonia com o social, numa sociedade racionalmente
planejada por todos e para todos, não havendo carestias para ninguém. Mas, como isto
será de uma forma detalhadamente descrita é impossível de sabermos, entregando à
razão humana o benefício da dúvida.

Se o capitalismo está fadado à morte, devemos cruzar os braços e esperar a


hora derradeira? Não, porque um sistema econômico não entra em colapso por si
mesmo. Ele não é uma entidade abstrata e autônoma, mas se constitui por homens vivos.
Realmente, várias vezes, Marx possui um tom convicto dessa auto-destruição. Por outro
lado, possui um discurso tingido por uma verve exaltada, convocando à luta. Seriam
dois Marx estranhos e irreconciliáveis entre si? À primeira vista, sim; mas Marx sempre
viu a necessidade da luta revolucionária. Esta se torna um ato cego e romântico sem
uma análise científica da sociedade. A intenção mais profunda do marxismo é a união
da teoria com a práxis. Portanto, não podemos cair no economicismo, esperando que as
leis econômicas descritas por Marx se realizem como forças independentes. Isto ocorre
por uma confusão teórica, que desconsidera a importância da superestrutura no
funcionamento da sociedade. Não se trata de um simples reflexo, mas de um vínculo
complexo.
Assim, os homens possuem um papel fundamental na História. É possível
destacar alguns indivíduos nas relações entre os segmentos sociais, contribuindo para os
rumos daquela sociedade. Mas não se trata de “indivíduos”, como pregam os idealistas.
A História não é o fruto das decisões de “grandes homens”. Os homens não perambulam
na sociedade como que flutuando sobre os ares, mas enraizados numa classe social. Não
173

é a luta isolada dos indivíduos, mas, é a luta de classes, o motor da História. Importante
ressaltar que as classes não são entidades acabadas, fechadas sobre si, que entram em
luta. É a partir da luta que as classes são engendradas. Trata-se de um conceito
dinâmico. Aqui vemos a relação do conflito abordado por Sartre na concepção marxiana
das classes. Desta forma, são os próprios homens que fazem a História, no sentido de
que são as massas, as forças sociais comprometidas na luta de classes que impulsionam
a marcha da História. Portanto, não se trata de algo puramente econômico, mas também
de uma luta política. E quando se abre o cenário político, há um espaço para o acaso.
Uma revolução pode ocorrer não necessariamente durante uma crise econômica, mas
numa crise política.15

Falando em ações humanas, podemos nos indagar em como Marx trata a


questão moral. Ora, se tratando de uma análise crítica e concreta, Marx jamais se
preocupou em formular princípios de conduta moral. Isto é papel dos filósofos e
socialistas utópicos, que esquecem a importância do estudo científico da sociedade. Os
valores morais fazem parte da superestrutura e, portanto, estão relacionados com o tipo
de produção daquela sociedade. Um bom exemplo é a condenação da usura pela Igreja
no mundo feudal, deixando de ser um pecado, por ser o sustentáculo da acumulação
capitalista. A Reforma traz novos elementos ideológicos, fazendo do trabalho algo
piedoso e louvatório à obra de Deus. São as armas desta nova classe contra a
mentalidade feudal. Porém, não podemos ter uma simples leitura mecanicista desta
relação. Portanto, sendo os valores morais ligados com o processo produtivo, o
revolucionário deve destruir os valores vigentes. A moral comunista começa, antes de
mais nada, com uma crítica e destruição da moral burguesa. Devemos ter em mente
também que os estudos teóricos de Marx formam um corpo de conceitos gerais, que
devem ser aplicados em estudos específicos. Para empreender a luta revolucionária na
Inglaterra, esta não deve ser conduzida da mesma forma que na Rússia ou na China. Não
existe uma teoria geral da revolução, mas revoluções particulares. Portanto, Marx não
poderia formular uma tábua de valores, pois estas são engendradas a partir da ação

15
Desenvolvendo este raciocínio, Lênin dará uma maior autonomia da política em relação à economia
(mas sem abandonar os dois termos). Assim, ocorre uma flexibilização entre as condições objetivas e as
condições subjetivas da Revolução. Desta forma, o seu modelo político pode se realizar num país
economicamente atrasado, como era o caso da Rússia. Lembremos também que a Revolução proletária,
não se resumiria num único país, mas estaria ligado com os demais países europeus. Lembremos que
174

revolucionária. E como estas são totalmente singulares é impossível formular, antes do


funcionamento de uma sociedade comunista, os seus valores. Porém, a esta luta
revolucionária, como já vimos, é necessário um instrumental teórico, oriundo do estudo
científico da sociedade e, portanto, o verdadeiro revolucionário é aquele que possui
consciência da necessidade de uma transformação nas relações de produção,
constituindo-se numa “tarefa histórica” a ser empreendida pelo proletariado. Não no
sentido de um “destino”, mas de uma necessidade, antes de mais nada, racional! O
capitalismo deve ser destruído por uma questão, acima de tudo, lógica.

Aqui reencontramos a questão levantada no capítulo 2: por trás de toda


atividade econômica existe obrigatoriamente um aspecto moral? Se entendermos por
economia, a transformação da matéria, a resposta é não. A relação do homem com a
natureza é um vínculo puramente objetivo, como produção dos meios de subsistência. E
sendo o homem um animal, trata-se de uma “relação natural”. Assim, como o leão não
se culpabiliza por comer a zebra, o homem também faria o mesmo. A não ser se
chegarmos ao absurdo de humanizarmos os elementos naturais. Mas aqui, já não se
trataria de um puro elemento, uma simples matéria, mas de algo impregnado de um
valor subjetivo. É neste sentido que encontramos o absurdo de “direitos dos animais”.
Ora, somente um homem pode possuir um valor jurídico, um “direito”. O que devemos
entender aqui é o outro lado da questão. O homem não entra em contato com a natureza
sozinho. Ele transforma a matéria através e com outros homens. Falando de uma relação
inter-humana, caímos no campo moral, e, portanto, respondendo a pergunta colocada,
seria um sim. O fato de se desmatar uma floresta se relaciona com todo o funcionamento
da sociedade. A destruição do planeta coloca em questão o seu relacionamento com os
demais homens. Além de, racionalmente falando, ser um absurdo, como que colocar
fogo na própria casa. A escassez progressiva de recursos naturais está associada à busca
do lucro, vinculado com a exploração do homem pelo homem. Portanto, para mudar
este comportamento com a natureza, é necessário transformar todo o processo produtivo
da sociedade. É por isso que as militâncias ecológicas estão tradicionalmente vinculadas
às posições de esquerda.

Lênin, após o sucesso da revolução em seu país, previu que o mesmo ocorreria na Alemanha. Ele estava
errado, mas não cabe aqui estudarmos tal motivo.
175

Contudo, algo pode nos embaraçar: Marx, em sua maturidade, formulou um


estudo econômico, isto é, compreendeu a sociedade cientificamente. E como, ter por trás
de uma concepção econômica, uma postura moral? Como uma ciência pode ter por base
uma moral? Antes de mais nada, uma não é a base da outra, mas há uma inter-relação. O
marxismo se concebe como o vínculo de uma ciência (o materialismo histórico) com
uma filosofia (o materialismo dialético). Ora, podemos estranhar: Marx não criticava os
filósofos? Sim, mas os filósofos que apenas contemplavam o mundo, e não queriam
transformá-lo. O verdadeiro conhecimento (e aqui se entende tanto o filosófico como o
científico) é aquele resultante da união da teoria com a prática. O seu material científico
é um conjunto de conceitos gerais, mas não abstratos, que devem ser utilizados nas
análises de conjunturas político-econômicas de uma sociedade particular. Por outro
lado, há a questão prática e, portanto, ocorre um vínculo com uma conduta moral,
associada a uma filosofia (um modo particular – materialista e dialética – de se pensar o
mundo). Mas não se trata mais de idéias vagas como na ideologia, mas ligadas a uma
base concreta, vindas de um conhecimento científico da sociedade.16

Aqui entendemos o que tanto fascina Sartre no marxismo. Trata-se de um


pensamento intimamente ligado a uma forma de existência. E será numa relação entre
moral e política que Sartre encontrará a resposta para o seu problema. Porém, podemos
nos indagar, em que sentido nós afirmamos alguma forma de relação entre política e
moral após Nicolau Maquiavel (1469-1527). Antes de mais nada, devemos compreender
a profundidade de suas idéias. O diplomata florentino separou moral da política como
um processo de laicização das práticas do Estado. O seu pensamento não parte de um
Estado ideal, mas da análise empírica dos Estados históricos. Aliás, a História possui
um papel fundamental em suas idéias. Maquiavel, seguindo os gregos e os latinos,
aplica um conceito de tempo cíclico, que desdobra determinações concretas sob o nome
de fortuna. O príncipe de virtù é aquele que sabe aproveitar a occasione propícia
oferecida pela fortuna, sabendo extrair o conhecimento dos meios para a ação e a
previsão dos efeitos. É nesta mistura de sorte e perspicácia que surge o bom estadista.
Assim, os homens, para os quais a fortuna sorri, são capazes de intervirem na História.
O rompimento com a moral religiosa na conduta política se deve a uma racionalização

16
Não estamos aqui entrando no que Marx chama de ciência. É neste contexto que entendemos todo o
esforço de Louis Althusser (1918-1990) em vincular marxismo com a epistemologia de Gaston Bachelard
(1884-1962).
176

desta, abandonando valores eternos em vista das oportunidades terrenas. A sua famosa
frase: “os fins justificam os meios”, é o que entra em conflito com Sartre. Estamos
exercendo uma “seriedade”, ao tomarmos os fins, que nós mesmos projetamos como
absolutos. Os valores morais não estão num plano supraterreno, mas ligados com a
prática concreta. Maquiavel percebeu isso, mas de forma ainda confusa, pois acabou
“absolutizando” os seus objetivos práticos. Isto ocorre, pois, diferente de Marx, os
homens ainda não são os senhores da História mas apenas navegantes no impetuoso rio
da fortuna. E como toda arte náutica, existem bons e maus marujos. E para enfrentar
algo tão poderoso, somente uma conduta tão intransigente. A fortuna, como afirma
Maquiavel, é como uma mulher: ela seduz e vai embora, preferindo os homens audazes
e ferozes do que os circunspectos; sendo necessário - como toda mulher - para dominá-
la, “bater-lhe e contrariá-la”. Isto é, agarrá-la pelos cabelos! Maquiavel acertou ao
conceber o poder como algo imanente. O príncipe quer o poder para estar no poder. É
algo que é um fim em si mesmo. Mas, há um “nada” que o sustenta, pois a existência
humana é contingente.

É nesta perspectiva que compreendemos a relação de Sartre com a


Revolução.17 Esta, por definição, consiste num paradoxo moral, pois é por um ato de
violência que se inaugura o reino da moralidade. Para implantarmos a sociedade
comunista é necessário “sujar as mãos”. Senão seremos idealistas, almejando o
comunismo, mas receosos em praticar a sua criação. Trata-se de um “utopista”, que não
entende a verdadeira profundidade da Revolução. Esta não é somente pegar em armas,
mas toda uma prática coerente e sistemática na destruição da ordem burguesa. Por outro
lado, o revolucionário não se pode cegar em seus objetivos, transformando os meios em
fins. O próprio Sartre sofreu isso. Foi o seu “pró-sovietismo” que ocasionou o seu
rompimento com Merleau-Ponty. Sartre “namorou” o PCF (Partido Comunista Francês)
e viu na União Soviética a representante dos interesses proletários na cenário
internacional. É deste período, a coletânea de artigos “Os comunistas e a paz” (Les
communistes et la paix). Porém, em 1956, na ocasião da invasão soviética da Hungria,
Sartre rompe com esta postura, e escreve o importante texto “O fantasma de Stálin” (Le

17
O tema da Revolução aparece em várias obras artísticas, os roteiros cinematográficos “A engrenagem”
(L’Engrenage) e “Os dados estão lançados” (Les jeux sont faits) e a sua peça mais polêmica, “As mãos
sujas” (Les mains sales), que deveria ter autorização pessoal de Sartre para ser encenada, pois, poderia ser
usada, de acordo com o tom, como uma propaganda anti-comunista. Não é por acaso que esta peça foi
proibida na URSS.
177

fantôme de Staline), dividido em duas perguntas: “com que direito?” e “era o momento
oportuno?”. Realiza uma profunda análise política dos fatos, divergindo da tirania
soviética aos países sob sua influência. A sistematização filosófica de seu marxismo
virá, como já vimos, em 1960. A partir daí, Sartre sempre apoiará movimentos de
minoria fora da ortodoxia pregada pelos PCs, voltando-se, sobretudo para o Terceiro
Mundo. Execra o colonialismo, apoiando, especialmente, a independência da Argélia e
do Congo belga, exalta a Revolução Cubana (no começo, antes de se unir à órbita
soviética), participa dos movimentos estudantis em 68, compromete-se com os maoístas
no começo da década de 70, julga as atrocidades cometidas pelos norte-americanos na
guerra do Vietnã, simpatiza com o movimento político-racial dos Black Panthers, apóia
o terrorismo basco contra a ditadura franquista.

A História, portanto, possui um sentido, que é o desenrolar da luta de classes.


Sartre é um racionalista e, por isso, a História não é um caos, apesar de tampouco ser
uma continuidade temporal orientada. São as relações entre séries e grupos que
constituem a luta de classes que dá à História uma compreensão, fundando a base da
dialética histórica na dialética individual. Trata-se de um produto da práxis humana,
sendo uma gigantesca totalização-em-curso. Porém, é uma totalização sem totalizador,
pois não é o fruto de um homem ou de um grupo de homens, mas de uma multiplicidade
da práxis humana, ou seja, ela é um puro processo, de origem humana, sendo um ato
sem sujeito. A História não é um organismo autônomo, mas uma totalização provocada
pela ação dos homens.18 Aqui reencontramos a angústia, pois somente uma pura
liberdade, um ser absurdo e contingente, é capaz de fazer História. Como não existe
uma essência humana, é necessário ao homem sempre completar-se, promovendo o
processo histórico. Por sermos angústia, somos históricos!

Por que Sartre, para resolver a sua questão moral, foi para o marxismo?
Primeiro, devemos entender que Sartre sempre nutriu um forte ódio e desprezo à

18
Para o marxismo ortodoxo, a História, sendo uma ciência, possui leis assim como as ciências da
natureza. E como o marxismo é uma teoria unida com a práxis, este conhecimento não só pode como deve
ser aplicado. Desta forma, assim como a física é empregada pela engenharia, o conhecimento das
formações sociais é empregada na luta revolucionária. Nessa perspectiva, as cinco leis gerais da História
são: 1) lei da ação determinante da existência social sobre a consciência social; 2) lei da ação
determinante do tipo de produção dos bens materiais sobre a estrutura e o desenvolvimento da sociedade;
3) lei econômica da correspondência necessária das relações de produção com o caráter e grau de
desenvolvimento das forças produtivas; 4) lei da ação determinante da infra-estrutura sobre a
178

sociedade burguesa, encontrando em sua crítica mais bem elaborada (o marxismo), um


lugar propício ao seu pensamento. Porém, com o desenrolar dos anos, Sartre foi
transformando esta ira juvenil numa prática efetivamente política. Outra questão
fundamental é o período histórico em que Sartre viveu (Primeira Guerra Mundial,
Revolução Russa, Grande Depressão, Guerra Civil Espanhola, Segunda Guerra
Mundial, Guerra Fria), em que, para todo intelectual, a questão da relação com o
marxismo era vital. Tratava-se de uma questão sobre que todos deveriam ter uma
opinião formada. Porém, o verdadeiro ponto está nos impasses que Sartre esbarrou em
seu próprio pensamento, indo encontrar a resposta em Marx. O seu conceito de
“Liberdade” era algo demasiado abstrato, possuindo uma enorme força. Apesar de
sempre se esquivar do solipsismo, Sartre ainda embaraçava em como compreender a
formação do grupo. Isto se deve ao seu forte cartesianismo, que pensa a consciência
como algo solitário e absoluto. Portanto, era necessário ir para o outro lado da moeda: a
Situação. A Liberdade deveria ser devidamente esquadrinhada em seu lugar. Assim,
surge o seu conceito de “Liberdade alienada”. O grupo virá do “Terceiro Mediador”, que
remete às origens da violência. E esta é gerada pela escassez. Assim, a violência passa a
ser uma formação histórica e não algo ontológico. Isto não significa que o conflito foi
destruído, mas amenizado. Portanto, o marxismo ofereceu o instrumental necessário, no
estudo da Situação, para resolver o seu problema. Por quê? Pois, o marxismo é um
pensamento calcado numa concepção de História e toda filosofia da História, como nós
vimos, é uma forma de conciliar liberdade e determinismo.19 Ora, não era esta,
justamente, a questão que tanto martelava a cabeça de Sartre?

Como já vimos, existem várias filosofias da História. A questão, ainda não


respondida, retorna: por que o marxismo? Porque o desenrolar da História para Marx se
trava no campo puramente humano. Não é a Natureza de Kant, o Espírito de Hegel ou a
Fortuna de Maquiavel. São os próprios homens que fazem a História. E no campo

superestrutura; e 5) lei das revoluções sociais na passagem de uma forma social para outra.
KONSTANTINOV, F. V. op. cit.
19
Esta conciliação está subjacente em toda a obra de Marx. Como unir a luta revolucionária com as leis
econômicas? Como não cair em nenhum dos extremos: o economicismo e o esquerdismo? Este jogo entre
liberdade e determinismo sempre chamou a atenção de Marx, desde a sua juventude. O atomismo de
Demócrito era problemático ao unir uma ética na conduta humana com o determinismo mecanicista dos
átomos. Epicuro resolveu este problema com o conceito de clinamen, o desvio nas trajetórias atômicas.
Desde seu doutorado, Marx levantou uma questão que o perseguiu em toda a sua vida.
179

humano, Sartre sente-se em casa. A subjetividade é o aspecto humano, e Sartre a ligará


com o processo histórico e o devir dialético.

É bem verdade que não podemos cair no completo historicismo, isto é,


devemos saber que a própria idéia de História é histórica. O historicismo é o último
avatar da Metafísica, pois põe tudo na História, exceto ela própria. A História é uma
idéia nascida no século XIX. Por quê? Isso está intimamente associado com o fim da
Metafísica, com o término de essências puras e imutáveis, tornando tudo num fruto
histórico. Kant já havia aberto a cova para a Metafísica. Hegel, tentando salvar a
Filosofia, pensou-a no tempo. Triste engano, pois caberá a Marx entoar o réquiem! O
século XX, por sua vez, se converterá em pomposas exéquias. Devemos entender dois
grandes fatores para isto: o advento da ciência, que transformou o pensamento ocidental
e as revoluções políticas, com dois paradigmas: as Inglesas (1640 e 1688) e a Francesa
(1789), demonstrando a possibilidade da destruição de instituições antiqüíssimas e do
pensamento fundado na tradição.

Agora, nos perguntamos: o marxismo conseguiu resolver o problema moral


de Sartre? Antes de mais nada, Sartre não conseguiu escrever o segundo volume da
“Crítica da razão dialética”, que trataria especificamente sobre a História.20 Isto ocorreu,
pois Sartre se envolveu fortemente com a atividade política e empreendeu em seu
volumoso estudo sobre Flaubert, provando o seu método. Esta obra consumiu vários
anos de sua velhice. Isto sem falar na cegueira que o acometeu no fim da vida,
comprometendo a sua atividade intelectual. Este longo tempo mergulhado em Flaubert
se deve a uma briga que Sartre acabou comprando com... os próprios marxistas! Neste
malabarismo entre o subjetivo e o objetivo, Sartre caiu num vasto campo minado: as
ciências humanas. Como chegar a um conhecimento sobre o homem, sem querer
coisificá-lo? Foi isto que ele tentou realizar em Flaubert, que se constitui numa obra
ímpar, pois somente um Sartre seria capaz de realizá-lo. Ninguém jamais se aventurou a
fazer algo semelhante. Por fim, não entraremos aqui na discussão se Sartre realmente se
tornou um autêntico marxista. Acusam-no de ter uma leitura tão esdrúxula de Marx, que
esta não teria nada de semelhante ao filósofo alemão. Primeiramente, seria impossível
fazer uma distinta separação entre Marx e Engels. Além do que, no campo econômico,

20
Foi publicado postumamente, em novembro de 1985, Critique de la raison dialectique – tome II:
l’inteligibilité de l’histoire, formado por notas escritas em 1958
180

Sartre formulou um conceito nada marxista: a escassez. Esta é um elemento caro aos
neoclássicos. Para Marx, o fundamental é o trabalho. Por outro lado, se a existência
precede a essência, devemos compreender o que fundamenta a existência humana. A
escassez, em último instância, remete às necessidades orgânicas do corpo humano. Ora,
não é assim que Marx e Engels pensam como o primeiro fato histórico? Infelizmente,
não sabemos o que Sartre pensaria sobre a História. Porém, pelo que sabemos, o
marxismo cumpriu a sua função diante o problema moral de Sartre. Contudo, criou
outros problemas dificílimos, como o estudo sobre o homem.

Poderia ter sido o segundo volume da “Crítica da razão dialética” o seu tão
postergado livro de Moral?...
181

Análise Fílmica: “Eles não usam black-tie”


Direção e Produção: Leon Hirszman
Roteiro: Gianfrancesco Guarnieri e Leon Hirszman
Fotografia: Lauro Escorel Filho
Montagem: Eduardo Escorel
Brasil Cor 1981 118 min

Leon Hirszman é conhecido como o mais militante dos cinemanovistas. Não


que os outros integrantes não o fossem, mas Hirszman foi o que mais catalisou a crítica
e análise social em seus filmes. Filho de judeus poloneses fugidos do anti-semitismo,
conheceu de perto a intolerância, pois grande parte de sua família morreu nas mãos dos
nazistas. Formado no ateísmo e no marxismo reinante em casa, ingressou no PCB
(Partido Comunista Brasileiro) aos 14 anos de idade. Iniciou a sua carreira
cinematográfica dentro dos quadros do CPC (Centro de Cultura Popular), fundado em
1961, vinculado à UNE (União Nacional dos Estudantes). Chegou a ser secretário-geral
do setor de cinema do CPC. Como os outros cineastas de sua geração, a sua obra nasce
no movimento estudantil. Hirszman estudou engenharia, por causa da família, mas
desde jovem era um apaixonado pelo cinema. Porém, apesar de ser militante
disciplinado nos rígidos códigos do PCB, jamais foi um sectário. Sempre foi um homem
aberto às novas idéias e, segundo os amigos, um apaziguador, sempre preocupado em
conciliar rixas entre os colegas.21

O filme em questão é uma adaptação da peça homônima de Gianfrancesco


Guarnieri (1934- ), escrita em 1955, quando tinha apenas 21 anos de idade. Foi
idealizada para ser uma peça de despedida do Teatro de Arena de São Paulo, que estava
em processo de falência. Montado pela primeira vez em 1958, a peça se tornou num
sucesso de público e crítica, sendo encenada em outras capitais do país e no exterior.
Um jovem estudante e militante do PCB (como Hirszman), Guarnieri estava
comprometido num teatro político e popular. A sua peça se passa numa favela carioca,
em linguagem popular (com erros de gramática), relatando o conflito familiar entre o pai
sindicalista e o filho fura-greve prestes a se casar.22 O autor realiza uma crítica ao

21
SALEM, H. Leon Hirszman: o navegador das estrelas. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. Grande parte
deste trabalho é baseado nesta excelente biografia.
22
GUARNIERI, G. Eles não usam black-tie.5. ed Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987.
182

individualismo que assolava a juventude dos anos dourados do desenvolvimentismo de


JK.

Hirszman e Guarnieri se conheceram nos tempos do CPC da UNE. O então


estudante de engenharia montou os trechos de filmes que eram projetados na montagem
da peça “A mais-valia vai acabar, seu Edgar” de Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974),
um dos fundadores do Teatro Paulista do Estudante (TPE) e membro do PCB, encenada
no Teatro de Arena da Faculdade de Arquitetura da então Universidade do Brasil (atual
UFRJ), na Praia Vermelha, em janeiro de 1960, ficando quase dois anos em cartaz.
Neste intercâmbio entre universitários de Rio e São Paulo, ambos se conheceram. Desde
a década de 50, Guarnieri vendeu os direitos da peça para o cineasta Carlos Hugo
Christensen (1920-1999), que acabou não a realizando, voltando os direitos ao autor.
Desde 1973, Hirszman alimentava o sonho de filmá-la, porém era apenas um desejo
impossível, seja pelo processo de falência de sua produtora quanto pelo fato de a peça
estar censurada (sendo liberada apenas em 1977). Contudo, em 1979, Hirszman e
Guarnieri começaram a trabalhar no roteiro, morando em São Paulo, onde o filme se
passaria. Mergulharam no mundo operário paulista, em efervescência na época,
levantando uma farta documentação sobre sindicalismo, passando seis meses na
concepção do roteiro. Este período somente foi interrompido por 90 dias, para as
filmagens de “ABC da greve” (1979/1990), um documentário que registra os
acontecimentos da greve geral do ABC paulista. Este filme serviu de laboratório para a
execução de “Black-tie”.

Numa noite chuvosa, Maria (Bete Mendes) conta ao namorado Tião (Carlos
Alberto Riccelli) que está grávida. Feliz, este decide preparar o casamento, anunciando
o noivado. A notícia pega de surpresa o pai Otávio (Gianfrancesco Guarnieri) e a mãe
Romana (Fernanda Montenegro). Porém, os rumores de greve na fábrica, por aumento
salarial, constituem outra preocupação de Romana, já que seu marido fora preso durante
a repressão. Tendo que assumir a responsabilidade de ser marido e pai, Tião se preocupa
com a greve, que pode prejudicar os seus planos. Seu amigo Jesuíno (Anselmo
Vasconcelos) o incentiva a entregar os nomes dos companheiros sindicalistas, antes que
o movimento deflagre, para ganhar a simpatia dos patrões. No sindicato, Otávio e seu
amigo Bráulio (Milton Gonçalves) acham precipitada a greve, que deve ser discutida
com a categoria, enquanto que radicais, entre eles Santini (Francisco Milani), insistem
183

em fazer a greve a qualquer preço. O assassinato do pai de Maria, Jurandir (Rafael de


Carvalho), complica mais ainda aos planos do jovem casal, deixando Tião cada vez
mais inseguro. A greve é aprovada, vencendo a facção dos radicais. No dia da greve,
Tião decide furá-la na frente de Otávio. Maria,que quase sofre um aborto ao ser
espancada pela polícia, desiste do casamento, abandonando Tião com desprezo,
transformando a sua consciência política. Expulso de casa pelo pai, Tião é consolado
pela mãe, que aceita a sua atitude. Ainda sob o tumulto do movimento grevista, a polícia
assassina o conciliador Bráulio. O velório fica lotado, carregado de comoção pela brutal
morte do companheiro. O seu cortejo fúnebre se transforma numa passeata, dando a
força que faltava à greve, que tinha tudo para dar errado.

O comovedor deste filme é que os personagens são extremamente “humanos”.


Eles não estão “prontos”, “acabados”, não são a encarnação de alguma idéia ou
qualidade. Os personagens mudam ao decorrer da narrativa, possuindo todos os seus
motivos. Não se trata de personagens maniqueístas, onde há uma dicotomia entre herói e
vilão. Tião, que é um fura-greve, não é um personagem hostilizado. O seu medo e
insegurança tornam compreensível ao público a sua atitude condenável. Muito diferente
da peça, em que Tião é muito mais individualista, cujo ideal é sair do morro para se
tornar alguém.23 Aliás, a favela, de certa forma, é romantizada, quando Tião é expulso
de casa e Maria rompe com ele, dizendo ser impossível viver fora do morro, fora da
comunidade. No filme, os personagens são mais rebuscados, criando situações
dramáticas extremamente fortes e outras bem sutis. O próprio Jesuíno, que é um mau
caráter, não é “demonizado”, pois sofre o medo do desprezo de seus colegas, como na
peça. Como diz Otávio: “acendeu uma vela pra Deus e a outra para o diabo”. E o radical
Santini não é um revoltado sem motivo, pois a sua atitude se deve à intransigência dos
patrões (“Máquina parada! Negociação deve ser com máquina parada! Este é o único

23
Vemos como a questão de furar a greve aparece no quadro I do ato II:
Tião: - O jeito é arriscá! Vou furá a greve. Vou falá com o gerente, e ficá do lado dele.
Jesuíno: - Tião! Tem outro jeito...
Tião: - Qual?
Jesuíno: - Furá e não furá...
(...)
Tião: - Besteira! Eu tô fazendo isso consciente. Único jeito que eu tenho é me arrumá, não devo satisfação
pra ninguém. Quem quisé que se arrebente de fazê greve a vida toda por causa de mixaria. Eu não sou
disso. Quero casá e vivê feliz com minha mulhé! Se a turma quisé, pode dá o desprezo... Nesse mundo o
negócio é dinheiro, meu velho. Sem dinheiro, até o amor acaba! Pois eu vou sê feliz, vou tê amô, e vou tê
dinheiro, nem que pra isso eu tenha de puxá saco de meio mundo! (o grifo é meu). GUARNIERI, G. op.
cit. pp 72-74.
184

argumento que patrão entende!”). No início do filme, o próprio Otávio comenta a


intransigência da classe patronal: “Eu acho graça desses caras, eles contrariam a lei
numa porção de coisas, mas na hora de pagá o aumento, eles querem se apoiá na lei”.
Portanto, até os personagens mais fortes pejorativamente, não são caricatos. Eles
possuem as razões pessoais para a sua conduta. Como já afirmamos, nenhum
personagem é a materialização de uma idéia, pois eles interagem, como uma dialética
entre eles e neles (como veremos em Maria).

Desde a peça, o personagem mais construído é o de Romana. Ela já é


apresentada de maneira bem forte, reclamando com Otávio e Tião que falam alto àquela
hora da noite. Fala que vive trabalhando, que acorda cedo pra acordar os outros e
preocupada com as confusões dos homens da casa: a greve, para Otávio, e o noivado
apressado de Tião. Porém, sempre cautelosa em não ofender Maria, sobretudo por este
noivado decidido subitamente (“E isto é hora de marcar noivado?” ou “você não podia
esperar amanhã pra me falar essa besteira”). É um personagem que já chega de um
modo bem expressivo (graças à interpretação de Fernanda Montenegro), mas a sua
discussão com o marido e o filho se dá devido à ameaça, já anunciada, aos laços
familiares (a greve e o casamento precipitado). Ela sempre aparece trabalhando, distinto
de todos os outros personagens. Expressa magistralmente a figura materna. Na discussão
entre Otávio e Tião durante o jantar, este sai batendo a porta. Romana, num tom calmo,
fala: “Precisa reforçar essa porta, senão ela não agüenta”. Este pequeno comentário, sutil
(e finamente irônico), denota a sua preocupação pela desagregação da família, intuindo
que outras discussões, muito piores, estão por vir. Ao abordar o tema da discussão, mas
sem entrar nela, vemos uma típica sabedoria feminina em conciliar conflitos e abordar
um assunto de forma extremamente implícita.

O fato de não entrar na briga do marido com o filho, torna-a isenta de dar
razão tanto a um quanto a outro. Ela reconhece os motivos de ambos e percebe que
haverá uma cisão na família. Otávio sempre fala em estar preocupado com Tião, que ele
está sem rumo, desorientado, mas é Romana quem possui a sensibilidade de perceber a
iminente desarmonia familiar. No dia da greve, ela consulta as cartas (apelo emocional),
que esconde quando o marido acordo (ação racional). É confirmada a sua apreensão,
esperando as más notícias. Ao filho e ao marido pergunta se estão levando o endereço
de casa, caso ocorra alguma coisa. Romana sabe, que naquele dia, tudo mudará, pois a
185

sua família está correndo um grande risco. No final, ela se concilia com Tião,
perguntando: “você acha que valeu a pena, Tião?”. Tião responde que não furou a greve
por covardia, que fez o que achava certo. Ela responde que sabe disso. Preocupa-se para
onde vai o filho e afirma, no alto de sua vivência: “você vai aprender que é melhor
passar fome entre os amigos, do que passar fome entre estranhos”. Quando Tião se
levanta, convicto com o seu novo destino, ambos se abraçam num dos momentos mais
emotivos do filme. Aqui, Tião, outrora cabisbaixo e escondido, retoma o seu orgulho e
se prepara para a sua nova vida. Interessante notar que após a cena do assassinato de
Bráulio, aparece Tião no ônibus, olhando para a janela, pensativo. Morte e vida se
relacionam neste corte espacial. Simultaneamente, enquanto o destino da greve muda
com a morte de Bráulio (que salvou Tião de ser linchado pelos companheiros), Tião
nasce outra vez ao sair de casa. A morte de Bráulio transforma a fábrica num lugar
fúnebre, pois foi também ali que Tião, o primogênito de Otávio, “morreu” ao furar a
greve na frente do pai. É um momento de morte e renascimento, pois vemos o fim e o
advento de um novo Tião enquanto a morte de Bráulio faz renascer a greve.

O personagem que sofre uma transformação radical é Maria. Ao correr de


toda a narrativa, ela se preocupa em não pressionar Tião a se casar por causa do filho.
Chega a comentar, de forma sutil (uma característica feminina) em realizar um aborto.
Tião não aceita de forma nenhuma tal ato, e se propõe a se casar e assumir o filho.
Porém, Maria está sempre receosa em não aborrecer Tião. Com a morte de seu pai,
Maria se vê diante de uma nova realidade pois deve cuidar da mãe doente (Lélia
Abramo) e do irmão caçula Bié (Fernando Ramos da Silva). E é justamente na cena em
que Tião está na casa de Maria, quando a mãe e o irmão se retiram para dormir, que
ocorre a primeira mudança em Maria. Tião a proíbe de ir à fábrica no dia seguinte
devido à greve. Maria responde que irá para ajudar no movimento e que Tião não manda
nela. Aqui, de moça preocupada a agradar o seu homem, Maria dá o primeiro passo em
se libertar de sua submissão. O próprio Tião se assusta, ao afirmar que está apenas
preocupado e que não deseja que ela se meta em confusão. Nos confrontos com a
polícia, ela se mantém firme e calma, aparando a sua assustada amiga Silene (Lizete
Negueiros). Na forte cena com Tião, no quarto, ela irrompe violentamente com ele. Não
há nada semelhante na peça, onde Maria decide ficar no morro, rompendo com o
namorado, chorando (“Medo, medo, medo da vida...você teve!....preferiu brigá com
186

todo mundo, preferiu o desprezo... Porque teve medo! Você num acredita em nada, só
em você. Você é um... convencido!”24). No filme, Maria possui ódio da atitude realizada
por Tião. Ela transcende a mera reprovação ao individualismo na peça, pois adquire
consciência de classe. Tião ficou do lado do inimigo, convertendo-se num traidor, num
covarde. Sente desprezo ao ver que Tião entrou na fábrica (como “bom moço”)
enquanto o seu pai e seus companheiros eram massacrados na porta. Submeteu-se à
vontade dos patrões, agüentando tudo “de cabeça baixa”. Isto é imperdoável, pois como
diz Maria: “não queria que você fosse herói, mas que fosse gente”. Eles são humilhados
e explorados pelos patrões, e ele se tornou conivente com esta situação. Quando Tião se
irrita, ela diz para bater nela, no pai, na mãe, em seus companheiros. Ao ser esbofeteada,
faz uma clara alusão à ditadura (“Fizeram escola, esses filhos da puta!”). Veremos que
em certos pontos, o filme se refere ao momento histórico presente mas isto não o torna
datado. A explosão de Maria parte de um questionamento sobre os ideais de seu noivo.
Ela não quer ser uma mulherzinha que cozinhará para ele, cuidando do filho que estuda
numa escola legal. Aqui, Maria assume a sua condição de proletária e de mulher.
Expulsa Tião do quarto, rompendo tudo com ele, pois a sua vida não pode ser
compartilhada com um covarde, ela não se submete a viver sob este preço. Maria sabe
qual é a sua condição (proletária e mulher) e que deve lutar bravamente por isso. Como
afirmava Simone de Beauvoir, o feminismo é uma batalha travada em duas frentes: a
luta de classes e a luta dos sexos.25

24
idem., p. 112.
25
Sartre confirma isso: “A luta de classes, até aqui, opõe homens entre si. Trata-se essencialmente de
relações entre homens, de relações respeitantes ao poder ou à economia. A relação das mulheres com os
homens é muito diferente. É indubitável que existem implicações muito importantes do ponto de vista
econômico, mas a mulher não é uma classe, e o homem, relativamente à mulher, também não é uma
classe. É outra coisa, é a relação entre os sexos”. “Simone de Beauvoir interroga Jean-Paul Sartre» in
Situações X; p 112. A questão da relação entre luta de classes e feminismo está na introdução da obra
capital de Simone de Beauvoir (BEAUVOIR, S. O segundo sexo. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo:
Difusão Européia do Livro, 1960. 2 v.) Há uma extensa bibliografia sobre existencialismo e feminismo.
Além da leitura obrigatória da obra-prima de Simone, ressaltamos as suas entrevistas em SCHWATZER,
A. Simone de Beauvoir hoje. Trad. José Sanz. 2. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1986; e sempre importante, os
seus livros de memórias, ressaltando “A força da idade”, quando “descobre” que ela é mulher: “Viu-se
entretanto que eu atribuía pouca importância às condições reais de minha vida; nada travava a minha
vontade, pensava. Não negava a minha feminilidade; não a assumia tampouco. Não pensava nela. Tinha as
mesmas liberdades e a mesma responsabilidade que os homens. (...) Sei hoje que para me descrever devo
dizer primeiramente: “Sou uma mulher”, mas minha feminilidade não constitui para mim nem um
incômodo nem um álibi. Como quer que seja, é um dos dados de minha história, não uma explicação”; pp
365-366. Sobre a elaboração e, principalmente, a repercussão da publicação de “O segundo sexo” em
1949, ver especificamente o capítulo IV em BEAUVOIR, S. A força das coisas. Trad. Maria H. F.
Martins. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. pp 153-175.
187

Portanto, as mulheres possuem um papel de destaque no filme. Isto não é uma


particularidade desta obra, mas uma característica de Hirszman. Tanto Zulmira de “A
falecida” (1965) quanto Madalena de “São Bernardo” (1972) são personagens femininos
que sofrem e expressam de forma magistral a sua condição de mulher, imposta pela
sociedade. Hirszman é um cineasta que possui uma apurada percepção e carinho em
relação às mulheres. Isto é algo comum em todos os cineastas aqui analisados.
Antonioni privilegia a relação homem-mulher, possuindo uma atração por mulheres
“perdidas” e neuróticas. Mas não num sentido pejorativo, machista, pois os homens
também sofrem (mas de outra forma) esta situação. No cinema japonês, associa-se
cinema e mulher com Mizoguchi. Este possui um forte apreço às mulheres (que
possuem sabedoria), sobretudo a marginalizada, isto é, a prostituta. A mulher em Ozu é
a que está inserida na família, sofrendo sua condição numa sociedade em transformação.
Isto não significa que ela deve ser submissa, mas que há uma ruptura no referencial
ético. Ozu não escolhe a mulher como símbolo dos valores tradicionais por machismo,
como uma apologia ao que deve ser uma mulher ideal. Pelo contrário, ele registra o
vazio deste ideal, que a mulher submissa e encerrada em casa é um paradigma flácido.

Encontramos um liame que costura os três filmes: a mulher e a família.


Tratando-se de filmes que abordam uma mudança moral ligada a uma questão social, a
família (tradicionalmente associada à figura feminina) é o local por excelência por onde
transitam estes personagens; desorientados em Antonioni (lembremos que Giuliana é
uma mãe ausente), que se “adaptam” à uma nova realidade moral em Ozu e em
interação e transformação em Hirszman. Como vimos em Sartre, a família é um aspecto
importante para o existencialismo, pois é onde absorvemos os valores e atitudes de
nossa classe e sociedade. Porém, não podemos achar que estamos diante de um
elemento típico do pensamento conservador. O discurso em defesa da família é
característica da direita. Ora, distinto desta ideologia, a família não é uma essência, uma
idéia reguladora, eterna e imutável. Ela está em constante transformação, pois é um
fruto histórico. A abordagem social é realizada no estudo da família nos três filmes.26

26
Importante ressaltar como Helena Salem aborda esta questão em Hirszman: “Ao eleger um núcleo
familiar como o espaço por onde transitam todas as emoções e angústias individuais e sociais dos
personagens, Eles não usam black-tie adquire também uma força e autenticidade especiais, uma dimensão
universal e mesmo atemporal (...). O conflito do pai com o filho, que se mistura à luta política mas não
perde também o seu caráter de disputa pai/filho; da mãe que protege sua cria em qualquer circunstância e
188

Pode estranhar a diferença cronológica entre os dois filmes anteriores e o aqui


analisado. Os dois são da década de 60 enquanto que este, é do início de 80. Ora, antes
de mais nada, ele é oriundo de uma peça escrita nos anos 50. Trata-se de um período de
grande agitação cultural (ligado com a política) que foi a virada dos anos 50 para os 60,
não só no Brasil, mas em toda América Latina. Hirszman aparece neste contexto.
Importante ressaltar o papel que a Revolução Cubana exerceu na cabeça e no coração
desses homens, como uma resposta concreta à realidade latino-americana. Como
resposta a este borbulhar, vemos um “pipocar” de regimes militares no cenário latino-
americano, começando nos anos 60 até os 70. Especificamente esta década (os setenta) é
o período de maior recrudescimento na América Latina. Ainda sob o impacto das
agitações dos anos 60, era necessário massacrar qualquer sinal de resistência, exaltando
as vantagens econômicas do sistema. Porém, o capitalismo começava a sofrer uma forte
crise, com altas taxas de inflação e baixos índices de crescimento. Foi o período da
falência do Estado keynesiano, do endividamento dos Estados Unidos com a Guerra do
Vietnã (abandonando a paridade do dólar com o padrão-ouro) e as crises do petróleo,
pelas tensões políticas no Oriente Médio. O sistema capitalista estava numa
encruzilhada, encontrando uma saída (?!) no advento do neoliberalismo. A América
Latina, como uma região periférica, sofreu uma dura investida neste mundo em crise. O
irônico é que no outro lado da Cortina, as coisas também iam mal, ocorrendo a abertura
política em meados da década seguinte. O filme aborda o período de transição à
democracia desses países, quando os seus regimes militares tinham os seus dias
contados. O entusiasmo diante da democratização traz ecos do otimismo político dos

incondicionalmente; enfim, situações de absoluta intimidade vivenciadas numa família são integradas à
questão política mais geral. Essa dinâmica cativa o espectador pela sua verdade intrínseca, sua
integridade. Nada e ninguém no filme têm ar de mentira.
Leon também abordou essa questão numa entrevista, comparando seu trabalho ao do cineasta
japonês Yasujiro Ozu (...), autor de belíssimos filmes, que discute as questões sociais através do pequeno
núcleo familiar- como, por exemplo, em As irmãs Munekata (1950), no qual faz uma crítica profunda ao
tratamento da mulher na sociedade japonesa, contando a história de duas irmãs, o marido opressor de uma
delas, e o velho pai. “Penso que todas as lutas sociais – problemas no local de trabalho, desemprego,
política de repressão – passam pela família” – afirmou Hirszman. “Elas estão inter-relacioanadas no
sentido de que a família pode ser a base para a resistência popular. [...] E as mulheres são uma parte
importante dessa resistência, como vemos nas formas de Romana apoiar aqueles que estão na luta mais
diretamente, na participação ativa de Maria na greve e a sua recusa do machismo de Tião. Mas todas essas
crises sociais e individuais passam através da família. Nesse sentido, Black-tie tem um paralelo com o
trabalho de Ozu, que usa a família como a base para discutir as relações sociais dos indivíduos.”
(Entrevista a Randall Johnson e Robert Stam, Recovering Popular Emotion, Cineaste, p. 21)”. SALEM,
H. op. cit .pp. 262-3.
189

anos 50-60. Em vários trechos, existem comentários sobre a ditadura e a democracia que
se anuncia.

Voltemos ao filme em questão. Já vimos as mulheres e o papel fundamental


que possuem. Agora, analisaremos os homens. O Otávio sofreu uma mudança da peça
para o filme. Ele se desmembrou em dois personagens: Otávio e Santini. O primeiro, já
é um militante mais experiente e, portanto, mais centrado enquanto o outro é um jovem
radical que não mede as conseqüências de seu ato. Otávio nos é apresentado como um
homem político. Ele chega a casa, reclamando do estado das ruas do bairro, referindo-se
aos governantes. Santini, por sua vez, é apresentado na saída da assembléia, irritado,
desaprovando a decisão (“Vão atrás desses bunda-moles! Nunca vão conseguir nada!”,
“Sindicato tá na mão de pelego!” ou “Mas, então, porra, vamos ficar nessa de papo,
nessa de negociação? Negociação é com máquina parada! O único argumento que patrão
entende: produção parada!”). Quando começam as demissões, irrita-se terrivelmente,
enquanto Otávio diz para manter a calma, para não chamar a atenção sobre o
movimento. Na cena do refeitório, Santini se revolta com a impotência de seus
companheiros. Aqui, vemos a Série, pois todos comem maquinalmente, cabisbaixos,
abatidos e impotentes frente à opressão que os esmaga. Santini é o único que destoa,
porém é apenas uma voz solitária. Esta é a sua grande diferença em relação a Otávio. A
greve deve vir da vontade da categoria. Deve ser uma opção coletiva. Por isso, Santini
contrasta tanto com seus colegas no refeitório. Percebemos que não há um clima de
agitação grevista, o que significa que a greve, ao ser aprovada, está fadada ao fracasso.
Os operários ainda estão imersos na serialidade enquanto as facções que lutam entre si
no sindicato não espelham esta realidade. Otávio e Bráulio sabem que a greve somente
funciona quando ocorre um interesse oriundo da categoria. De nada adianta impor uma
greve aos companheiros de fábrica. Assim, um grande número fura a greve enquanto o
piquete é facilmente disperso pela polícia, pois não há uma integração entre os
companheiros e os grevistas. É o que Otávio diz a Santini, quando este agride os
operários que entram na fábrica: “Tá parecendo polícia, rapaz! Na marra, não dá não.
Tem que ser no papo.” O discurso de Tião na porta da fábrica parte deste princípio: a
greve é indiferente à vontade dos operários. Ela é um direito individual do trabalhador,
usa quem quer (“Quem quiser entrar, que entre. É democracia ou não é?”). Vemos que
190

Tião possui um discurso individualista, não encarando a greve como um instrumento de


luta de uma classe.

Tião é um dos personagens mais bem tratados na narrativa. Já afirmamos, que


apesar de ser um fura-greve, é um personagem simpático ao público. Ocorrem três
importantes diálogos entre Tião e Otávio: o do botequim, a discussão durante o jantar e
a conversa quando é expulso de casa. No primeiro, Otávio está preocupado com o futuro
do filho, pois o vê sem rumo. Aqui, Otávio se refere à infância de seu filho (“quem
muda de casa, muda as idéias”). É durante a infância que ocorre a “interiorização da
exterioridade”, o que significa que o meio familiar está essencialmente ligado à
formação moral e ideológica do indivíduo. Isto não significa que a pessoa não possa
mudar, mas a realidade é absorvida pelo tipo de relações sofridas pela criança. Tião não
encara a sociedade como uma luta de classes, pois ele não a interiorizou sob esta forma.
A greve e o sindicato são elementos que são utilizados por um conjunto de indivíduos
atomizados. É a partir desta divergência que ocorre a sua discussão com o pai no jantar.
Otávio diz que é compreensível o seu medo, por ser uma geração criada sob a ditadura.
Porém, a realidade mudou e os trabalhadores estão-se organizando. Otávio lança mão de
uma metáfora (discurso velado, típico de uma realidade que vive sob censura) em que
Tião só vê água parada, “é necessário ver a água correndo!” (as coisas mudam, trata-se
de uma outra realidade histórica). Tião se enfurece (“fala que nem maluco!”) e afirma
que a luta política de Otávio prejudicou a vida de todos na família. Tião utiliza uma
outra moral e assim, acusa Otávio de egoísta, pois pensou em sua “causa” em
detrimento de sua família. O que Tião não percebe é que a luta de seu pai (e por
conseqüência, a sua prisão) está ligada ao bem-estar de sua família. É lutando por uma
sociedade melhor que Otávio cumpre o seu dever moral como chefe de família. Estamos
diante de duas morais, uma mais geral (a defesa dos interesses da classe) e uma mais
particular (as condições financeiras da família). Podemos fazer uma analogia com o
dilema moral do aluno de Sartre, durante a guerra. A única forma de relacionar duas
morais é pela liberdade, que é o fundamento universal. Ora, Otávio está correto, pois a
sua luta visa não somente sua liberdade, como a do outro. É um erro acusá-lo de
egoísmo. É sob este viés que ocorre o último diálogo entre os dois. Otávio é bem
categórico: “Quero que você tome o seu rumo, o rumo que você escolheu, porque essa
não é, nunca foi e nunca vai ser a casa de um fura-greve!” Tião afirma ter furado a greve
191

por convicção. Realmente, ele não é apenas um covarde, ele não confia em seus
companheiros, não possui consciência de classe. Na visão dele, isto não significa que ele
seja um “filho da mãe”, ele apenas preferiu ter o desprezo da sua gente do que vê sofrer
todos como sofrem em sua casa. Otávio reconhece que também tem culpa (“E deixa eu
acreditar nisso! Senão vou sofrer muito mais. Se não vou achar que meu filho caiu na
merda sozinho. Eu vou achar que meu filho é um safado de nascença!”). A traição de
Tião está ligada ao fato de Otávio ter sido um pai ausente. Aqui vemos que Otávio faz
uma auto-crítica, reconhecendo que a sua prisão prejudicou a sua família. Porém,
prejudicou não no sentido que Tião acha, no sentido de privação financeira e afetiva,
mas na ausência de um fundamento ideológico na formação de seu filho. Isto se
relaciona à sua afirmação no botequim: “Quem muda de casa, muda as idéias”. A
exterioridade teria sido interiorizada de uma maneira distinta, caso Otávio tivesse sido
um pai presente em sua infância. Com certeza, o seu filho caçula Chiquinho (Flávio
Guarnieri) jamais faria algo semelhante, pois não chegou a sofrer tanto o período em
que Otávio esteve preso. Jamais furaria uma greve. Portanto, este conflito familiar
espelha a visão existencialista de Marx, em que antes de manter ligações políticas, os
homens possuem laços pessoais. Tião não nasceu um traidor, ele escolheu ser um
traidor. E essa escolha está associada ao tipo de experiências que ele vivenciou. O
mesmo podemos afirmar de Sartre. O intelectual é um traidor, um burguês que se volta
contra a sua própria classe. Ora, Sartre não nasceu traidor, ele o escolheu ser.

Por falar em traição, encontramos a questão se Tião entregou realmente seus


companheiros ou não? Isto é algo implícito, pois não há nenhuma seqüência que mostre
isso. Levantam-se as suspeitas de que a demissão de Santini foi causada por Tião. Por
mais covarde ou fura-greve que seja, Tião não parece ser um dedo-duro. Desde o início
da proposta de Jesuíno, Tião fica indignado com esta idéia. Ele é muito mais moral que
Jesuíno, pois isto não se faz com a sua gente. Tião diz não ser um “filho da mãe”, que
ele gosta da sua gente, mas que escolheu ser desprezado por ela. O termo “gostar” é
vago, mas bem aplicado ao pensamento de Tião. A sua moral é a da simpatia, regida por
laços afetivos individuais. A moral de Otávio é o de papel revolucionário, regido por
laços de classe (o campo sobre o qual ocorre a sua discussão com Santini: a relação
entre o sindicato e a categoria). Tião pensa o mundo como uma rede de indivíduos
enquanto Otávio pensa entre estruturas de classe (dentro de uma ou em oposição à
192

outra). Portanto, dificilmente Tião tenha entregado Santini, pois ele se reconhece em sua
gente (não o despreza como na peça). O que ele não aceita é ser privado em nome de
algo que para ele é abstrato (“a classe trabalhadora”, “o proletariado”). Por outro lado,
Tião, pessoalmente, não tolera Santini, o que sugere um motivo bastante forte em
entregá-lo. Há um tom ambíguo e sutil por parte de Hirszman, que deixa esta questão
aberta para o espectador. O fato de Santini ser despedido não explica por si só que Tião
o tenha entregue pois, Santini sempre é identificado como um agitador, alguém que fala
muito e está sempre revoltado (o fato de terem escolhido um italiano transmite este
estereótipo e remete às origens da organização sindical, sobretudo em São Paulo, onde
os italianos tiveram um papel fundamental no movimento operário no início do século).

Bráulio, por sua vez, é a antítese de Santini. Já é um militante experiente


como Otávio. Este é morto justamente apartando Santini num confronto com a polícia.
Em seu velório, vemos a importância de sua trajetória política. Encontramos um
pensamento baseado na História. É o que Otávio diz a Chiquinho: “Viu, Chiquinho. Um
dia o teu filho vai estudar o Bráulio na História do Brasil”. A moral revolucionária está
fundada numa tarefa histórica a ser realizada. O reconhecimento da vida de Bráulio virá
em seus atos registrados para as gerações futuras.

A famosa seqüência dos feijões é uma das mais brilhantes exemplos da


genialidade de Hirszman. A peça termina desta forma, mas com Romana sozinha, o que
muda totalmente a carga dramática da seqüência. Em 14 planos, há uma forte relação de
Romana e Otávio diante da morte de Bráulio. Vemos um ar de dor, tristeza, apatia mas
não numa intensa descarga emocional, como numa narrativa melodramática. A emoção
da cena é transmitida de forma singela, harmonizando-se com a simplicidade do
ambiente. O ato de escolher feijões demonstra um ato cotidiano, de que a vida rotineira
prossegue. Aqui vemos uma ponte entre Hirszman e Ozu. Esta simplicidade é
transmitida através de uma “pureza dramática”, isto é, sem recursos para emocionar o
espectador. Esta cena não possui diálogos e a música só surge nos dois últimos planos,
como uma ligação à seqüência seguinte. Após um plano médio dos dois, há um jogo de
plano e contra-plano de Otávio e Romana. Otávio abatido e Romana com seu olhar
cândido, derramando algumas lágrimas num plano posterior. Em geral, durante todo o
filme, nos diálogos, os personagens estão juntos no mesmo plano. Mesmo quando há
plano/contra-plano, aparece as costas do interlocutor. São poucos os planos com o
193

personagem sozinho durante diálogos. Na cena de despedida de Tião com Romana e


esta (a dos feijões) são raras exceções. Na seqüência entre mãe e filho, ocorre uma
mudança no personagem; estamos testemunhando o nascimento de um novo Tião. É por
isso que os personagem ocupam a tela inteira, exibindo esta transformação intimista. Na
seqüência dos feijões, há a cumplicidade de um personagem com o outro ao
compartilhar um momento de dor. Por isso que eles ocupam toda a tela sozinhos, para
aumentar a carga dramática que o personagem está sofrendo intimamente. Há os planos
das mãos se tocando, ocorrendo o contato físico como manifestação de partilha da dor.
São detalhes, o close que dá em toda a cena este ar de simplicidade e cumplicidade. O
espectador se emociona porque está participando de um momento íntimo entre os dois.
Não há exageros ou uma grande explosão emocional, mas a apreensão de um estado
afetivo de caráter pessoal, que se expressa num ato banal como o de escolher feijões.
Dores profundas podem-se manifestar em pequenos gestos. Isto vemos nos três filmes.
A única exceção é Giuliana, que possui momentos explosivos , mas o seu estado
emocional também se manifesta em atos simples e em pequenos comentários. O melhor
personagem que exemplifica isto em Antonioni é Corrado. Já em Ozu, todos os
personagem agem desta forma, pois não há fortes momentos dramáticos durante a
narrativa. Hirszman já contrabalança, não havendo uma carga de gestos mas de
diálogos. Os grandes momentos dramáticos em Hirszman estão baseados na expressão
verbal. O que não significa que as imagens não são bem construídas. Pelo contrário, os
personagens sempre são enquadrados juntos, salvo em momentos importantes.
Hirszman é um cineasta que sabe filmar diálogos (isto não somente neste filme). É por
isso que a seqüência dos feijões destoa no filme, pois nela não se recorre à
expressividade verbal. Ocorre um diálogo mudo, com a troca de olhares e toques.
Porém, não deixa de ser um diálogo, mas sem fala. O exemplo disso é o uso do
plano/contra-plano, recurso típico de diálogo.

A última seqüência do filme é o êxito do movimento da greve. Mas não como


uma decisão imposta pelo sindicato à categoria, como ocorreu no dia da greve. O
assassinato de Bráulio foi o elemento necessário (e não-previsível) para a deflagração do
movimento. O cortejo-passeata é um grupo-em-fusão. É uma ação oriunda do próprio
grupo. O mais interessante é que esta cena não estava no roteiro do filme.27 Hirszman a

27
Idem, p. 266.
194

imaginou durante as filmagens. A peça, como já sabemos, termina com Romana


escolhendo os feijões. O cineasta rodou esta última cena como uma homenagem ao
movimento popular, incluindo participantes das comunidades eclesiais de base e vários
atores do Teatro de Arena (como Paulo José que representa o padre). Também é uma
referência à greve do ABC, que Hirszman documentou, que se fortaleceu após a morte
de um dos trabalhadores. Assim, a ausência de diálogo entre o sindicato e a categoria é
preenchida por uma questão subjetiva. Os homens que se organizam numa ação
revolucionária constroem, antes de mais nada, relações pessoais. É isto que os
marxistas, com os quais Sartre tanto brigava, não entendiam. A subjetividade humana
não é um fator que deve ser ignorado no âmbito do marxismo. É o que ocorre neste
filme. São confrontos políticos, mas é uma relação de pai e filho. A greve estava fadada
ao fracasso porque os trabalhadores ainda estavam imersos na serielidade (cena do
refeitório). Santini não possui a sensibilidade da importância do fator subjetivo na luta
revolucionária. É por isso que ele se irrita, agride os seus companheiros, xingando em
altos brados: “Carneirada!”, na porta da fábrica. O filme termina com um elemento que
estava ausente em toda a narrativa: o grupo-em-fusão. É isto que traz o êxito para o
movimento grevista.
195

Conclusão

Estudamos a Moral de Sartre no desenrolar de seu pensamento, das suas obras


fenomenológicas até a sua fase marxista. Privilegiamos o viés da Liberdade e como esta
vai aparecendo em sua obra. Poderíamos ter melhor analisado as suas primeiras obras
para encontrarmos a gênese deste conceito, porém faríamos um trabalho mais voltado
para os princípios fenomenológicos do que para a questão moral. Por outro lado,
poderíamos ter desenvolvido a questão da História em Sartre, realizando um profundo
estudo em seus textos póstumos. Isso sem falar em levantar a questão do caráter
científico da História. Fizemos sua abordagem num aspecto filosófico, onde
encontramos o papel da Liberdade.

Portanto, concluímos que:

Primo, há uma linha básica no pensamento de Sartre que jamais foi


abandonada. O binômio Liberdade-Situação perpassa a sua obra, mas sendo enfocada
de diferentes formas. Definindo “Liberdade” como a ausência de fundamento da
consciência, ocorrida por uma radicalização do conceito de “intencionalidade” sobre o
Ego Transcendental husserliano, e sistematizada por Heidegger, (chegando a uma
“consciência sem sujeito”) não é uma característica ou dom abstrato, mas remete à sua
circunstância concreta: a Situação. Porém, a Liberdade ainda era algo demasiado forte,
gerando uma dificuldade fundamental em compreender a relação entre as consciências,
partindo da pura subjetividade. Sartre irá analisar o seu conceito de “Situação” para
recolocar esta questão, direcionando-se ao marxismo.

Secundo, o conceito de Liberdade alienada é uma delimitação do seu


conceito de “Liberdade”, circunscrevendo-a num campo material forjado por outras
consciências (o Prático-Inerte). Sartre privilegia em Marx o conceito de “Alienação”
(que remete a Hegel) como o falseamento do homem numa condição material baseada
na exploração devido à divisão do trabalho. Desta relação entre o homem e a matéria,
Sartre cria o conceito de “Escassez”, que não se resume a uma necessidade puramente
fisiológica. Se Sartre é extremamente criticado por este conceito, isto se deve a um dos
196

pontos mais delicados no próprio Marx que é o uso do termo “Natureza” e da relação do
homem com esta. Realmente, Marx percebeu o erro do materialismo fisiológico
(Feuerbach) mas é possível a confusão ao uso de conceitos iluministas (a relação
homem-natureza é uma questão kantiana oriunda de Rousseau). Tanto que daí resulta a
crítica feroz de Sartre à “Dialética da Natureza”, culpando Engels por esta leitura
positivista, que deprecia o papel da consciência. Esta é a sombra de Husserl que o
persegue, isto é, Sartre é um filósofo da consciência. É neste viés que aparece a História.

Tercio, o grande problema de Sartre da relação entre Liberdade e Situação


encontra um campo de resposta na História. Marx é o domínio privilegiado, pois a
História é uma ação dos próprios homens que criam e reproduzem o seu meio material.
Marx não encara o homem como um ser estático, mas como quem possui uma ação em
sua base, que é a transformação da matéria, isto é, o “Trabalho”. Sartre analisa o
trabalho dentro do seu conceito de “Projeto”, encontrando um espaço para a
subjetividade, que não encontrávamos em Marx. Assim, a dialética encontra um ponto
de origem, que é a consciência. Vemos uma sutileza entre Marx e Sartre. O primeiro,
encara o movimento dialético nascendo da ação humana sobre a natureza. Já o segundo,
diz que esta transformação para ser realizada necessita da consciência. Porém, a
consciência não precede a matéria (o que seria negar Marx), mas que o subjetivo se
encontra entre dois momentos objetivos. Há uma situação material que é interiorizada,
que é superada em direção à outra situação material. Vemos o movimento dialético,
como superação (aufheben) de um fato objetivo intermediado por um liame subjetivo.
Assim, surge a consciência na História. Sartre consegue resolver o problema da
formação do grupo,através de uma associação prévia, imposta por fora (sendo algo
puramente material), a partir de onde cada consciência totaliza as outras, formando uma
união vindo dos próprios membros. Surge o conceito de “Grupo-em-fusão”, que remete
à ausência de fundamento do Para-si. A História passa a ser encarada como uma
“totalização-em-curso”, ou seja, um movimento puro. Assim, Sartre sofistica o conceito
de “Luta de classes” como motor da História, pois esta se subdivide em vários
segmentos (como Séries e Grupos-em-fusão).

Sartre era avesso a rótulos, mas no fim de sua vida lhe perguntaram se
preferia ser chamado de “existencialista” ou “marxista”. Sartre respondeu preferir o de
197

“existencialista”. Qual é o problema em não se declarar um seguidor do filósofo


alemão? Há uma controvérsia conceitual entre herr doktor Marx e monsieur agregé
Sartre? Muito se discute sobre a “conversão” do último ao marxismo. O que Sartre
critica é um certo tipo de marxismo, com o qual ele não quer ser confundido. O seu
pensamento em relação a Marx parte de uma crítica dos movimentos que se diziam
herdeiros dele (URSS, os PCs, a Terceira Internacional). Sartre sabia que estas
instituições estavam endurecidas e fadadas à morte. Com certeza isto não era uma
novidade dele, pois Trotsky (1879-1940) já havia previsto o fracasso da experiência
soviética e, em menor grau, Rosa Luxemburgo (1870-1919) já havia identificado certos
problemas organizacionais do leninismo. Cabe ressaltar que o leninismo não se resume
à figura de Lênin. A contribuição de Sartre não está neste campo, mas no fato de ter
sistematizado um pensamento filosófico numa releitura de Marx. Uma tarefa semelhante
e tão volumosa quanto é o de Lukács. Porém, não seria o caso (e tampouco tenho a
capacidade) de avaliar quais dos dois filósofos possuem uma maior coerência, em
termos ontológicos, em relação a Marx. Aliás, isto seria até diminuir a própria figura de
Marx, convertendo-o na herança a ser disputada entre um húngaro e um francês! Longe
de criar uma rivalidade entre Sartre e Lukács, trago como verdadeira questão, a
contribuição que ambos trouxeram numa leitura do pensamento marxiano.

Quando o Muro caiu, o momento foi de uma árdua reflexão, sobre saber qual
foi o erro. Não podemos jogar às traças das bibliotecas os livros de Marx, como se os
goulags, as violências da Revolução Cultural, os campos da morte no Camboja ou as
guerras civis na África tivessem sido criados pelo exilado alemão que morreu na miséria
em Londres. Seria o mesmo que culpar Cristóvão Colombo (1450/1-1506) pelos
massacres ocorridos com as populações ameríndias. Ou, se formos mais radicais, dar
uma parcela de responsabilidade a mahatama Mohandas Gandhi (1869-1948) pelo fato
de a Índia possuir armas nucleares! Hoje sabemos a importância e os desvios de regimes
políticos baseados na obra de Marx. Sartre exaltava a figura do “grupo-em-fusão”, pelo
que chegou a ser acusado de anarquista. Lembremos que “A crítica da razão dialética” é
de 1960, mas parece que estamos lendo a descrição das ruas francesas em maio de 1968.
E o despertar desta onda de descontentamento varreu o mundo (tanto no Leste quanto no
Oeste) naquele ano. Portanto, não se tratava de uma mera singularidade do cenário
francês. Havia algo de podre no mundo... Atualmente, a podridão é tanta que o fedor nos
198

deixa pasmados. Como ocorreu o “dessujeitamento do indivíduo” vemos uma


multiplicidade de grupos, subgrupos e ‘tribos’ aparecendo, não havendo uma integração.
Podemos testemunhar isto nas recentes manifestações contra a globalização em
novembro último em Seattle e em abril em Washington, encarnada na “Santíssima
Trindade”: FMI (Fundo Monetário Internacional), BIRD (Banco Internacional de
Reconstrução e Desenvolvimento – “Banco Mundial”) e OMC (Organização Mundial
de Comércio). Vemos centenas de pequenos grupos, que defendem os mais variados
interesses, se manifestarem nestes protestos. Realmente, esta ausência de um
movimento organizado prejudica a organização geral para grandes manifestações.
Porém, apesar de certos grupos duvidosos, esta pluralidade é a expressão de nossos dias
e, creio que possam realizar focos de resistência, numa generalizada corrente de
“desobediência civil” (por falta de termo melhor! – Não confundir com uma ‘tática da
baderna’ como afirmam os reacionários). É o grupo-em-fusão...
199

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204

Apêndice
Sartre em tempo de globalização

Qual é a importância de se estudar Sartre hoje? Apelidado de “o último dos


metafísicos”, é conhecido como o remanescente de um tipo de filosofia que não existe
mais. Preocupado com questões como o humanismo, a existência de Deus e outras que
fogem do pensamento contemporâneo. Ora, será que a enorme e barroca obra de Sartre
está condenada à poeira das bibliotecas? Um dos cérebros mais ativos deste século que
termina, não nos lega nada para o próximo? Devemos enterrá-lo sem piedade ou encará-
lo, de forma exótica, como uma peça de museu? Será apenas uma curiosidade de um
século tão complexo, sendo apenas o nome de uma praça em Saint-Germain-des-Prés,
por onde passo de carro, construído com peças de várias partes do mundo, atendendo o
meu celular, enquanto dirijo?

Para sabermos o que Sartre tem a nos ensinar, devemos entender quais os
problemas que o pressionaram. Ele é de uma geração que viu o mundo se desmoronar
sob seus pés, e toda a sua atividade intelectual (como filósofo, artista e militante) é
resultado disso.

O Iluminismo inaugurou o reino do Homem. Um clima de otimismo


anunciava uma nova era, em que o Homem era o fundamento de tudo, criando um novo
mundo, um novo modo de se organizar politicamente, sustentado pelo império da
Razão. Isto começou com Descartes, que inaugurou, após os cépticos quinhentistas, a
necessidade de se alcançar a Verdade. Fé e Razão começaram a disputar este espaço.
Em Descartes, Deus ainda tinha um espaço, mas após três séculos, perdeu a sua
soberania. A Verdade é buscada na ciência, que dessacralizou o mundo, desfazendo a
tradição ao proclamar as leis ditas pela Razão.

O século XIX se desenvolveu neste inebriante ar de otimismo. Criaram-se


valores absolutos, como a Verdade, a Beleza, o Bem, a Liberdade, o Espírito e,
sobretudo, a Razão. Isto foi reforçado com o culto ao Progresso, fazendo da ciência a
redentora da humanidade.
205

No século XX, isto foi posto em discussão. As duas guerras que assolaram o
mundo, o declínio das democracias frente aos regimes totalitários, o colapso do sistema
financeiro em 1929, lançaram uma geração diante de um vazio, vendo se desfazerem
estes valores absolutos. Sartre é um intelectual que surge neste período. O seu esforço
virá na crítica e recusa aos valores absolutos, na necessidade de se criar novos valores
fundamentados na responsabilidade.

A Guerra Fria criou um quadro nunca antes visto na História. O planeta se


cindiu em ideologias opostas e excludentes, com o risco real de uma destruição
completa graças às armas nucleares. Tanto de um lado quanto do outro, começou uma
onda de descontentamento sem precedentes. Estes jovens se orientavam por uma
geração que contestava a anterior (a de Sartre). O humanismo e a responsabilidade eram
avidamente criticados por Althusser, Lacan, Michel Foucault (1926-1984), Gilles
Deleuze (1925-1995), Jean-François Lyotard (1924-1998), Jacques Derrida (1930- ),
Roland Barthes (1915-1980), Guy Debord (1931-1994), todos relacionados (direta ou
indiretamente) com o marxismo, mas fora dos paradigmas ditados pelos PCs.1

Este pensamento trouxe um novo viés ao marxismo, desviando enfoques que


destoavam com Moscou. Os anos 80 surgiram com um abalo aos regimes socialistas. O
mundo voltou os olhos para a Polônia, que anunciava uma nova ordem do outro lado da
Cortina. E realmente, isto atingiu o próprio centro do sistema com a chegada de Mikhail
Gorbatchev (1931- ) no Kremlin. E subitamente, tudo começou a mudar numa
velocidade incrível!

Pertenço a uma geração que estava na adolescência quando o Muro caiu. Ora,
justamente quando começaríamos a entender o mundo, a buscar nossos valores, o
mundo se desfazia por todos os lados! Já não existia mais referencial para ninguém.
Termos como “Primeiro Mundo”, “Segundo Mundo”, “Terceiro Mundo” ou “países
não-alinhados” foram para o lixo. Não existiam termos ou idéias que expressassem o
que ocorria diante dos olhos de todos.

Em primeiro lugar, Marx se tornou o grande vilão do século! O homem que


enganou gerações inteiras com falsas idéias. O capitalismo foi proclamado como o

1
Outro pensador influente para estes jovens é Herbert Marcuse (1898-1979).
206

sistema mais apropriado à humanidade. Tratava-se de uma “prova histórica”, como


diziam. Vemos uma era dos fins (fim da História, fim da geografia, fim do Estado) e
uma época dos pós (pós-modernidade, pós-industrial, pós-capitalismo (!?)). De repente,
a direita tornou-se internacionalista e a esquerda, internacionalista por tradição, passou a
adotar um discurso nacionalista. Em suma, o mundo virou de pernas para o ar!

Porém, este otimismo momentâneo começou a esfriar. O capitalismo passou a


mostrar por si só que não era tão dourado assim! Os próprios liberais perceberam a
necessidade de um ajuste ao sistema. Isto não é a primeira vez que ocorre. O modelo
keynesiano surgiu com uma crise interna do sistema que precisava se defender de um
modelo melhor ajustado apresentado pelos soviéticos. A existência de uma escolha
concreta preocupava os capitalistas. Porém, foi necessário destruir a Europa duas vezes
para perceberem isto! Realmente, é desalentador imaginar que o neoliberalismo ainda
tem muitos estragos a fazer para que ocorra alguma mudança...

A globalização é uma realidade sem parâmetros no pensamento. Não há


conceitos nas ciências humanas, na economia, na política ou na filosofia para expressá-
la. Existe uma pluralidade de teorias que tentam estudá-la. Isto é bom, pois é o novo, o
estranho que nos faz pensar mas, por outro lado, não existe nenhuma tradição teórica
para nos auxiliar. Justamente, isto é uma das grandes características de nossos dias. A
ausência de ideologias, de sistemas de pensamento. Há um discurso que exalta o valor
pragmático das coisas, dentro de uma valorização da “produtividade”, “qualidade total”.
Isto se espelha no plano político. Perdeu-se o aspecto de espaço de discussão (aliás este
é a origem da política, que remete aos gregos). As campanhas políticas se converteram
em verdadeiros shows de marketing, onde os candidatos são vendidos como produtos.
Isto é tão evidente, no caso brasileiro em relação aos presidentes eleitos, que durante
suas campanhas sempre fugiram dos debates na TV. Valoriza-se o candidato que possui
melhores qualidades técnico-administrativas e não a sua orientação ideológico-
partidário. É o fato de ser um bom administrador e não as suas inclinações ideológicas
que conta. Isto é extremamente perigoso! Ora, é muita ingenuidade acreditar que não há
uma idéia por trás da prática. Não existe neutralidade em política! Este é o teor
malicioso deste discurso de qualidade e produtivo. Este pragmatismo é uma ideologia
que não ousa dizer seu nome!
207

Isso também contagiou certos segmentos ditos de esquerda. Prega-se um nova


forma de administrar a sociedade, ao invés de estar preso a velhos dogmatismos, como
a crítica à sociedade de mercado. Não podemos nos guiar por idéias arcaicas e
reconhecer a necessidade histórica de encontrar uma “terceira via”, em busca de um
capitalismo mais humano (sic). Realmente, um dos saldos (ou será débito?) do século
XX é o advento da social-democracia e o seu direcionamento cada mais para a direita.
Creio que o próprio Eduard Bernstein (1850-1932) se surpreenderia com alguns
discursos de seus seguidores dos dias de hoje. Aliás, isto levanta um dos aspectos mais
controversos para o marxismo atual: qual é a relação entre o processo democrático e a
luta revolucionária? Até onde a Revolução virá dentro ou como uma ruptura do jogo
institucional? A questão da Revolução é algo interessante, pois foi uma idéia que
exerceu grande influência na cabeça de gerações. Nos anos 60, houve uma explosão
neste ideário revolucionário. Urgia uma transformação na sociedade, que somente viria
dentro do paradigma da Revolução. Atualmente, há um mal-estar generalizado que não
tem como se expressar. Existe uma crise da identidade revolucionária, pois não se sabe
mais o que é ser um revolucionário. É um paradigma que vacila sem firmar algum
referencial!

Isto não é uma particularidade da Revolução. Há uma crise geral de qualquer


identidade. É por isso que vemos um estouro de movimentos étnicos, raciais, religiosos,
culturais e lingüísticos como forma de resistência à globalização. Estes provincianismos
buscam manter a sua integridade contra o processo avassalador de uma sociedade que
mistura e privilegia certos hábitos e comportamentos. Esta dissolução do Eu (abordada
pela geração de 68/pós-Sartre) criou um quadro complexo pelo qual o tiro sai pela
culatra. Como não existe mais “eu”, tudo se transforma em estranho e aceitável. Ou seja,
há um aumento do individualismo acarretado pelo crescimento do consumismo. Este,
por sua vez, está associado à prática sistemática e difundida globalmente do hedonismo
comercial. Há um prazer inerente ao consumo, de onde nasce a identificação pelo que
você compra. Isto já ocorria, porém atualmente isto chegou a um grau elevadíssimo.
Portanto, vemos o surgimento de um indivíduo sem sujeito. A noção de sujeito
transcende a de indivíduo, que traz uma identidade a nível de intersubjetividade (eu-
outro). Atualmente, o indivíduo está descolado, pois não possui uma identidade, mas
uma multiplicidade de identidades.
208

Aqui está uma questão em que Sartre pode nos ajudar! A crítica do sujeito, da
dissolução do eu, promovido pela geração de 68, são questões que foram postos na mesa
pelo próprio Sartre. Não há uma ruptura radical entre uma geração e outra. Sartre fala do
indivíduo dentro de um grupo, que é formado por um “Terceiro Mediador”. Porém, o
verdadeiro grupo é aquele que se forma por um “olhar” dos seus integrantes voltados
para eles próprios. Tradicionalmente, o sujeito (não o indivíduo) surge do uso da Razão,
que cria as suas próprias leis, criando uma identidade. Hoje, o indivíduo se descolou do
sujeito, formando uma pluralidade de indivíduos atomizados (que Marx já criticava) que
não possuem nenhuma identidade. Ora, a sociedade não é formada por átomos que se
chocam entre si, mas por relações sociais formadas historicamente. Trata-se de um
processo histórico e, portanto, não é imutável. Sartre nos mostra o grupo surgindo do
próprio grupo, pois este já é uma estrutura ontológica do indivíduo (o Ser-para-Outro).
Porém, não se trata da formação de um sujeito, pois não ocorre a criação de uma
identidade. O grupo é grupo-em-fusão, isto é, um processo constante de inter-relações
dos indivíduos entre e contra si. Portanto, não se trata de um retorno ao sujeito ou algum
elogio à identidade, mas de uma manifestação que está em movimento perpétuo. Esta é
uma das genialidades de Sartre: ele usou um conceito típico da burguesia (o
individualismo) contra a própria burguesia. Com o aumento do individualismo nos dias
de hoje, Sartre se torna uma presença ativa em sua crítica mordaz ao individualismo.

Assim, como o mundo se desmoronou aos pés da geração de Sartre, algo


semelhante ocorre conosco. Isso nas devidas proporções, pois realizar analogias entre
diferentes períodos históricos é algo delicado! O discurso louvatório da tecnologia se
desfez. A ciência, que foi dita que salvaria a humanidade, está cada vez mais sendo
debatida. Na época de Sartre, foram os campos de extermínio e a bomba atômica que
desmentiram este discurso. Porém, isto ocorreu, diziam, por uma falha no campo
informativo. A desconfiança e a ignorância são frutos da carência e manipulação de
informações. Com o fortalecimento das democracias ocidentais, o aumento pela sede de
informação é um dado reconhecido e exaltado. A criação de novas mídias, com
informações em tempo real nos assegura a realização deste paradigma, nos
salvaguardando das negras ameaças de outrora. Mas, vivemos em tempos mais felizes?!
O que ocorre, é uma superabundância de informações. Não é a carência; pelo contrário,
sofremos um excesso de informações. Isto acarreta algo extremamente pernicioso que é
209

a banalização dos temas. Vivemos numa sociedade bombardeada por informações por
todos os lados, alcançando os mais elevados graus de abstração no campo econômico-
social, formando uma sociedade intermediada por imagens.2 Isto criou e privilegiou
certos padrões de comportamentos homogeneizados. Veremos como: em primeiro lugar,
foi dito que a tecnologia, com o surgimento da robótica, diminuiria o trabalho,
aumentando o tempo de ócio. Isto é uma mentira, porque nunca se trabalhou tanto
quanto hoje em dia! Trabalha-se mais do que na Idade Média, cuja economia possuía
atividades sazonais, além de intervalos constantes para as atividades religiosas. Este fato
levanta duas questões. Com o advento dessas novas tecnologias não existe mais um
horário fixo de trabalho. Através de celulares, bips ou lap tops, o trabalhador está 24
horas por dia à disposição do capital. Antigamente, ele estava preso ao tempo em que
permanecia dentro do estabelecimento de trabalho. Atualmente, as paredes deste local
de trabalho desconhecem limites! Portanto, o capital necessita se agilizar cada vez mais
para se acumular no estágio em que se encontra. Isso levanta outra questão. O trabalho
(Marx já havia afirmado) não é uma natureza ou essência humana, ligada a uma
necessidade fisiológica do organismo do homem, como pode aparecer segundo os
economistas liberais. O trabalho é uma expressão histórica e, portanto, não existe
natureza humana. Hoje um homem ocidental médio precisa de mais coisas para viver do
que há cem anos atrás. Isso comprova que não existe um limite orgânico para a
necessidade humana, se relaciona ao caráter de tecnologia com a criação de
obsolescência, e não como saciadora de carências. Neste aumento de trabalho, se
privilegiam-se modelos comportamentais associados à velocidade e à agilidade. Pede-se
ao trabalhador ser uma pessoa dinâmica, ativa, comunicativa e participativa. Este é o
tipo de subjetividade mais apreciada pelo capitalismo contemporâneo.

Uma das doenças que abatem o espírito de minha geração é a apatia. Como
perdemos os nossos valores antes mesmo de criá-los, voltamo-nos cada vez mais para
nós mesmos (individualismo), absorvendo este bombardeio de informações que nos
rodeiam. Não há regras esclarecedoras de como agir no mundo. Que diga querer mudá-
lo! Porém, esse papel messiânico não foi outorgado por nenhuma força externa (Deus ou
História) mas de algo que vem de nós mesmos. Aqui se encontra o importante saldo que
os loucos anos 60 – que para nós parecem tão esdrúxulos como as suas roupas e

2
DEBORD, G. A sociedade do espetáculo trad. Estela Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997
210

comportamentos – nos deixaram. A revolução social e econômica deve ser


acompanhada por uma revolução nos costumes. Essa é a grande herança que os nossos
pais nos deixaram. Para ocorrer uma transformação na sociedade, é necessário uma
mudança comportamental, isto é, em nós mesmos. Sartre, de certa forma, já fazia isso
em plenos anos 40! Não é por acaso que a sua relação com Simone de Beauvoir se
transformou num modelo para os jovens dos anos 60. É impressionante para uma
geração que dizia não confiar em ninguém com mais de trinta anos, exaltar um casal de
jovens sexagenários. Porém, tampouco podemos divinizá-los, pois, como todo
relacionamento também teve seus problemas, desconfianças e discussões. A questão dos
costumes é um dos temas que Sartre abordou aos estudantes em 20 de maio de 1968,
acampados na Sorbonne:

“Vocês têm que reinventar a tradição de vocês”, acrescentou ainda, “uma tradição
que a revolução cultural tem que dar a si mesma.”3

“Vaut-il mieux avoir tort avec Sartre ou raison avec Aron?» (É melhor estar
errado com Sartre ou ter razão com Aron?). Essa perturbadora pergunta que circulava na
época pode soar perversa hoje, após 20 anos da morte de Sartre (e 40 de sua passagem
ao Brasil). É um dos homens que possui uma das obras mais complexas e ricas que este
século já produziu. A verdadeira questão é se preferimos ler autores que não trazem
nada de enriquecedor e perturbador para nós, com idéias inescrupulosamente acabadas,
ou obras plurais, que repercutem em vários campos, levantando questões intrigantes?
Queremos um mestre que diga tudo o que devemos fazer ou um companheiro que nos
pressiona, nos faz pensar e que discutiu suas idéias sem medo, brigou com meio mundo
e reviu seus próprios pontos de vista ao longo da vida?

Com certeza, Sartre não é apenas um nome em algum túmulo no cemitério de


Montparnasse. Ele ainda tem muito a nos dizer...

3
COHEN-SOLAL, A. op. cit p 587. Acerca da opinião de Sartre sobre Maio de 68 ver SARTRE, J.-P.
Situations VIII Paris: Gallimard, 1972
211

Notas biográficas

Jean-Paul-Charles-Eymard Sartre – Nasceu em Paris, em 21 de junho de 1905, filho


do oficial da Marinha Jean-Baptiste Sartre, engenheiro formado pela École
Polytechnique, e de Anne-Marie Schweitzer, de família alsaciana. Em setembro do ano
seguinte morre seu pai, vítima de febres contraídas na Cochinchina (na Indochina
francesa), indo morar com a sua mãe na casa dos seus avós. Sartre foi criado pelos avós
maternos, exercendo grande influência o seu severo avô Chrétien-Charles Schweitzer,
professor de línguas, que despertou uma paixão em Sartre pela volumosa biblioteca de
seu avô. Ingressa, em 1915, como externo, no liceu Henry IV, onde conhece Paul Nizan.
Em 1917, sua mãe se casa em segundas núpcias com o engenheiro naval Joseph Mancy,
ex-colega de faculdade de seu pai, indo morar em La Rochelle. Possui um
relacionamento difícil com o padrasto e com os colegas de escola, retornando a Paris em
1920, para completar seus estudos. Retorna ao liceu Henry IV, onde reencontra Paul
Nizan, formando uma sólida amizade. Obtém o seu baccalauréat em 1921, se
inscrevendo no liceu Louis-le-Grand, para se preparar para o concurso de admissão ao
curso superior. Em 1924, ingressa na École Normale Supérieure (ENS), possuindo
como colegas, além de Nizan, Raymond Aron, Maurice Merleau-Ponty, Georges
Canguilhem, Jean Hyppolite, René Maheu, Pierre Guille e Simone de Beauvoir. Recebe
a sua agrégration em filosofia em 1929. No mesmo ano, inicia 18 meses de serviço
militar como meteorologista em Tours (tendo Aron como sargento instrutor). Em 1931,
é nomeado professor de filosofia no liceu François I, em Havre. No ano de 1933,
consegue uma bolsa de estudos no Instituto Francês em Berlim, estudando
fenomenologia. Testemunha a ascensão do nazismo na Alemanha. Retorna à França,
voltando a lecionar em Havre até 1936, ano em que publica sua primeira obra filosófica
L’imagination. Em 1935, realiza uma experiência com mescalina, resultando em seis
meses de depressão e alucinações. É transferido para um cargo em Laon, onde leciona
até o ano seguinte. No verão de 1937, é transferido para o liceu Pasteur em Neuilly,
redondezas de Paris. No ano seguinte publica seu primeiro romance La nausée. Ao
estourar a guerra, é convocado como soldado de segunda classe na unidade de
meteorologia do regimento de artilharia da 70ª Divisão, sendo mobilizado na fronteira
com a Alemanha. Sem participar de combate, é feito prisioneiro e levado para o Stalag
XII D em Trier (Trèves, para os franceses), cidade natal de Marx, onde adquire uma
212

forte experiência social. Em 1941, consegue ser libertado ao passar por civil, fugindo
para Paris. Retoma o seu posto no liceu e funda um grupo de resistência Socialisme et
Liberté, com amigos, colaborando também com artigos para jornais clandestinos. É
transferido para o liceu Condorcet. Em 1943, monta a sua primeira peça de teatro Les
mouches e publica L’être et le néant. Com a Libertação, viaja para os Estados Unidos
como correspondente do jornal Combat! e funda a revista Les Temps Modernes. Recusa
a Legião de Honra, como Camus. Mundialmente famoso, abandona o magistério,
vivendo de sua carreira de escritor. Nesta condição, passa a viajar para várias partes do
mundo, como a África, a URSS, a Escandinávia, a China, o Japão, Israel, etc. Com seus
problemas com os comunistas, funda em 1948 o partido Ressemblement Démocratique
Révolutionnaire (R.D.R.), abandonando-o no ano seguinte. Em 1952, participa do
Congresso dos Povos para a Paz, em Viena, aproximando-se do PCF. Em 1956, a URSS
invade a Hungria, e Sartre rompe com os comunistas. Passa a tomar doses de
anfetaminas para escrever Critique de la raison dialectique, publicado em 1960. Neste
mesmo ano viaja para o Brasil, após estar em Cuba e Iugoslávia, permanecendo três
meses em nosso país. Neste período, assinou o famoso “Manifesto dos 121” a favor da
independência da Argélia. Em 1964, recusa o Prêmio Nobel de Literatura. No ano
seguinte, inicia o seu pedido de adoção para Arlette Elkaïm, uma judia argelina.
Participa do Tribunal Russel em 1966, julgando os crimes dos norte-americanos no
Vietnã. Devido a problemas políticos, Sartre escreve uma carta ao presidente De Gaulle,
mas o tribunal teve que ser transferido para Estocolmo. Em 1968, participa dos
movimentos dos estudantes, trava uma violenta polêmica com Aron e condena a
intervenção soviética na Tchecoslováquia. Assume a diretoria do jornal maoísta Le
Cause du Peuple, em 1970, emprestando o seu nome para vários jornais militantes como
Révolution!, Tout! e Libération, chegando a ser preso, devido a sua relação com os
maoístas. Em 1972, é filmado o documentário de longa-metragem Sartre par lui-même
(1977) de Alexandre Astruc. Em 1973, inicia o processo de cegueira, devido a
problemas cardiovasculares por uso de anfetaminas e de uma vida desregrada, como
excesso de bebida e tabaco. Junto com Aron e André Glucksman inicia um movimento a
favor dos refugiados vietnamitas em 1979. Vítima de um edema pulmonar, é internado
em 20 de março, morrendo em 15 de abril de 1980. Seu corpo foi cremado e suas cinzas
depositadas no cemitério de Montparnasse, sendo seu funeral acompanhado por um
cortejo de 50 mil pessoas, sobretudo jovens.
213

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. 1948 – Situations II (Situações II)
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.1949 – Situations III (Situações III)
La mort dans l’âme (Com a morte na alma)
.1951 – Le Diable et le bon Dieu (O Diabo e o bom Deus)
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Situations IV (Situações IV)
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neocolonialismo
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.1965 – Les troyennes (As troianas)
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.1972 – Situations VIII – autour de 68
Situations IX – mélanges
.1976 – Situations X – politique et autobiographie (Situações X – política e
autobiografia)

Michelangelo Antonioni – Nasceu em 29 de setembro de 1912, em Ferrara. Diplomou-


se em Economia e Comércio pela Universidade de Bolonha, participando de atividades
214

teatrais neste período estudantil. Voltou-se para o cinema, iniciando como crítico na
revista Cinema, em 1935, trabalhando como assistente de Roberto Rossellini (1906-
1977) e Marcel Carné (1909-1996). Ao retornar da França, inicia as filmagens de seu
primeiro documentário Gente del Pó, que devido à guerra, conseguiu montá-lo e lançá-
lo somente em 1947. Com o fim da guerra, inicia a sua carreira de documentarista em
pleno Neo-realismo. O seu primeiro longa-metragem é “Crônica de um amor (Cronaca
di un amore; 1950), influenciado por Robert Bresson (1907-1999). Passa a chamar
atenção com o seu filme “O grito” (Il grido; 1957), passando à fama mundial com seu
sucesso em Cannes com “A aventura” (L’avventura; 1959). O seu primeiro filme
colorido “Deserto vermelho” (Il deserto rosso; 1964) recebe o Leão de Ouro em
Veneza. Realiza algumas co-produções na Inglaterra. Em 1986, sofre um derrame,
deixando-o parcialmente paralisado e perdendo parte da fala, o que o impede de
continuar filmando. Esteve no Brasil em 1994, sendo homenageado no Festival de
Gramado. Em conjunto com Win Wenders (1945- ), dirige seu último filme “Além
das nuvens” (Al di lá delle nuvolle; 1995).

Filmografia

Curtas-metragens:

.1943/7 – Gente del Po


.1948 – N.U. – Netteza urbana
L’amorosa menzogna
.1949 – Supertizione
La funivia del faloria
Sette canne un vestito
.1950 – La villa di Mostri
.1955 – Uomini in Pigna

Longas-metragens:

.1950 – Cronaca di un amore (Crônica de um amor)


.1952 – La signora senza Camelie
I Vinti (Os vencidos)
.1953 – Tentato suicido – episódio: L’amore in città
.1955 – Le amiche (As amigas)
.1957 – Il grido (O grito)
.1960 – L’avventura (A aventura)
.1961 – La notte (A noite)
215

.1962 – L’eclisse (O eclipse)


.1964 – Il deserto rosso (Deserto vermelho)
Prefazione – episódio: I tre volti
.1966 – Blow-up (Blow-up – depois daquele beijo)
.1969 – Zabrieski point (idem)
.1975 – Professione: reporter (O passageiro: profissão repórter)
.1980 – Il mistério di Oberwald (O mistério de Oberwald)
.1982 – Identificazione di una donna (Identificação de uma mulher)
.1995 – Al di lá delle nuvole (Além das nuvens)

Yasujiro Ozu – Nasceu em 12 de dezembro de 1903, descendente de antigas famílias


nobres e ricas, e se dedicando ao comércio. Seu pai dirigia uma firma de fertilizante,
com várias filiais espalhadas pelo país. Ozu foi criado em Fukugawa, antiga região
comercial de Tóquio, com pequenos restaurantes, estaleiros, mercados e bordéis. Em
1913, muda-se com a mãe e os irmãos para Matsuzaka, grande cidade mercantil em
Honshu, perto de Nagoya, cidade natal de seu pai. Este, como viajava constantemente à
negócios, praticamente não viveu com seus filhos. Ozu sempre foi um péssimo aluno,
relaxando nos estudos para ler literatura moderna e ir ao cinema. Não conseguindo
entrar na Escola Superior de Comércio de Kobe, como conseguira seu irmão mais velho
Shinichi e como sonhava seu pai, volta a morar com a família em Tóquio, em 1923.
Neste ano, ocorre o terremoto de Kanto, destruindo a companhia do pai. Porém, no
verão, ingressa na Shochiku, no estúdio em Kamata, como assistente de fotografia. No
ano seguinte, ocorre uma mudança na filosofia da empresa, estimulando jovens talentos,
o que favorece Ozu. Neste ano, realiza o serviço militar, mas passa maior parte no
hospital do exército, simulando uma doença. Em 1926, é promovido a assistente de
direção, trabalhando com comédias urbanas. No ano de 1927, realiza o seu primeiro
filme “A espada da penitência” (Zange no yaiba), com seu roteiro. Novamente é
convocado pelo exército, mas logo retorna, filmando comédias e gendai-jeki, sua
especialidade. Na década de 30, o Japão adquire uma política militarista e nacionalista.
Em 1933, Ozu se torna famoso em seu país ao ser premiado pela importante revista
Kinema jumpo, por “Eu nasci, mas...” (Seishun no yume ima; 1932). É laureado por três
anos consecutivos (33/34/35) com o Prêmio de Melhor Filme do Ano. Neste período,
volta a ser convocado, treinando em operações de guerra com gás tóxico. Em julho de
1937, deflagra a guerra contra a China, e Ozu é enviado na unidade de guerra química,
participando de combates e testemunha os massacres em Nanquim. Neste período,
216

escreveu cartas sobre a guerra ao jornal Asahi Shimbun. Retorna ao seu país em 1939, e
dois projetos de produção são proibidos pela censura, porém, alcança sucesso de crítica
e público com “Os irmãos da família Toda” (Toda-ke no kyodai; 1941). Devido ao seu
sucesso, é enviado pelo governo, em 1941, à Singapura para realizar filmes de
propaganda de guerra. É feito prisioneiro pelos ingleses, porém, destrói todo o material
filmado antes de cair nas mãos do inimigo. Retorna ao Japão, em fevereiro de 1946,
sendo consagrado com seus filmes. É premiado pela quinta vez com o Prêmio de
Melhor Filme do Ano, em 1949, com “Pai e filha” (Banshun). No final da década de 50,
Ozu alcança ao ápice de sua carreira. Em 1954, recebe vários prêmios outorgados pelo
Ministério da Educação e pelo Imperador e no ano seguinte é o primeiro diretor de
cinema a ser eleito para a Academia Nacional de Arte. A partir de 1959, seus filmes são
premiados, por três anos consecutivos, pela Sociedade Nacional dos Artistas. Em
fevereiro de 1962, morre sua mãe. No ano seguinte, prepara o roteiro de seu próximo
filme e de uma produção para a televisão. Na primavera se submete a uma cirurgia para
tratar de um tumor maligno no pescoço. Retorna a casa, mas as dores continuam, sendo
internado em 12 de outubro. Na tarde seu 60º aniversário (12 de dezembro de 1963),
Ozu morre. Suas cinzas são depositadas no templo de Engaku em Kita-Kamakura. Na
lápide, não possui nenhum nome ou data, apenas a inscrição mu (o nada, o vazio).

Filmografia:

.1927 – Zange no yaiba (A espada da penitência)


.1928 – Wakodo no yume (Sonhos da juventude)
Nyobo funshitsu (Esposa perdida)
Kabocha (A abóbora)
Hikkoshi fufu (Um casal em mudança)
Nikutaibi (A beleza física)
.1929 – Takara no yama (A montanha do tesouro)
Wakaki hi (Dias de juventude)
Wasei kenka tomodachi (Rivais à japonesa)
Daigaku wa detakeredo (Formei-me, mas...)
Kaishain seikatsu (Vida de assalariado)
Tokkan kozo (idem)
.1930 – kekkon-gaku nyumon (Iniciação ao casamento)
Hogaraka ni ayume (Marchar com alegria)
Rakudai wa shitakeredo (Fui reprovado, mas...)
Sono yo no tsuna (Esposa de uma noite)
217

Erogami no onryo (O espírito vingativo de Eros)


Ashi ni sawatta koun (O sopro da sorte)
Ojosan (Senhorita)
.1931 – Shukujo to hige (A bela e a barba)
Bijin aishu (A tristeza da bela)
Haru wa gofujin kara (O coral de Tóquio)
.1932 – Umarete wa mitakeredo (A primavera das damas)
Seishum no yume ima (Eu nasci, mas...)
Izuko (Onde estão os sonhos da juventude?)
Mata au hi made (Até o próximo encontro)
.1933 – Tokyo no onna (Mulher de Tóquio)
Hijosen no onna (Deliqüente)
Dekigokoro (Capricho passageiro)
.1934 – Haha o kowazuya (Mãe tem que ser amada)
Ukigusa monogatari (Uma história de ervas flutuantes)
.1935 – Hakoiri musume (A inocente)
Kagamijishi (idem)
Tokyo no yado (Um albergue em Tóquio)
.1936 – Daigaku yoitoko (A universidade é um bom lugar)
Hitori musuko (Filho único)
.1937 – Shukujo wa nani o wasuretaka (O que foi que a senhora esqueceu?)
.1941 – Toda-ke no kyodai (Os irmãos da família Toda)
.1942 – Chichi ariki (Era uma vez um pai)
.1947 – Nagaya shinshiroku (Relato de um proprietário)
.1948 – Kaze no naka no mendori (A galinha e o vento)
Tokyo no gassho (O coral de Tóquio)
.1949 – Banshun (Pai e filha)
.1950 – Munekata shimai (As irmãs Munekata)
.1951 – Bakushu (Também fomos felizes)
.1952 – Ochazuke no aji (O sabor do chá verde sobre o arroz)
.1953 – Tokyo monogatari (Era uma vez em Tóquio)
.1956 – Soshun (Começo de primavera)
.1957 – Tokyo boshoku (Crepúsculo em Tóquio)
.1958 – Higanbana (Flor de equinócio)
.1959 – Ohayo (Bom dia)
Ukigusa (Ervas flutuantes)
.1960 – Akibiyori (Dias de outono)
.1961 – Kohayagawa-ke no aki (Fim de verão)
.1962 – Samma no aji (A rotina tem seu encanto)

Leon Hirszman – Nasceu em 22 de novembro de 1937, no Rio de Janeiro, filho de


judeus poloneses fugidos da perseguição nazista. Foi criado na Zona Norte carioca (Vila
Isabel e Tijuca). Em 1956, ingressa na Faculdade de Engenharia da Universidade do
Brasil (atual Universidade Federal do Rio de Janeiro), participando ativamente do
218

movimento estudantil e do cineclubismo na universidade e no MAM. Foi assistente de


direção e continuísta em “Juventude sem amanhã” (1957) de Elzevir Pereira da Silva e
João César Galvão. Em 1960, realiza a colagem de filmes projetados na peça “A mais-
valia vai acabar, seu Edgar”, montada em sua universidade. O seu primeiro filme é o
episódio “Pedreira de São Diogo” do filme “Cinco vezes favela” (1962), produzido pela
CPC da UNE. Realiza o curta “Maioria absoluta” (1964), um denso e militante
documentário sobre o analfabetismo. O seu primeiro longa é realizado em 1965, “A
falecida”, adaptação da peça de Nelson Rodrigues. No ano seguinte, compra com
Marcos Faria (1933-1985), a produtora Saga Filmes de Joaquim Pedro de Andrade
(1932-1988), realizando “Garota de Ipanema” (1967), que não consegue sucesso
comercial. Com parcos recursos, filma “São Bernardo” (1972), adaptação do romance
de Graciliano Ramos. Sem o retorno comercial esperado, a sua produtora abre falência.
Para sobreviver, realiza, durante toda a década de 70, curtas documentais no
Departamento do Filme Educativo (DFE) do Instituto Nacional do Cinema (INC),
vinculado ao Ministério da Educação e Cultura (MEC). Também filma peças
publicitárias. Num projeto com a televisão italiana (RAI), realiza um documentário
sobre o Brasil, com o auxílio de vários intelectuais, intitulado “Que país é este?”(1977),
porém o filme foi perdido pelos italianos. Em 1979, realiza “O ABC da greve”,
documentando a greve (sendo finalizado apenas em 1990) que serviria de experiência
para as filmagens de “Eles não usam black-tie” (1981), sendo premiado com o Leão de
Ouro em Veneza. Em 1983, participa como jurado no Festival de Veneza, presidida por
seu amigo Bernardo Bertolucci (1940- ). A partir de 1983, filma em 16 mm a trilogia
“Imagens do inconsciente”, num trabalho em conjunto com a Dra. Nise da Silveira com
os internos do Centro Psiquiátrico Pedro II no Engenho de Dentro, mais tarde o Museu
do Inconsciente. Ainda no ano de 1983, roda junto com Paulo César Saraceni (1933- )
“Bahia de todos os sambas”, documentário sobre um festival de música brasileira em
Roma, que, porém, ficou inacabado por outros projetos de ambos cineastas, e também
por uma questão jurídica com os produtores italianos. Liberado, Saraceni terminou,
lançando-o somente em 1996. No final de 1986, Leon inicia um processo de câncer de
pele, provocado pelo vírus da Aids. Vai a Paris, com recursos de amigos, realizar um
tratamento, porém, já era tarde demais. Volta ao Rio, e falece em 16 de setembro de
1987.
219

Filmografia:

Curtas-metragens:

.1964 – “Maioria absoluta”


.1969 – “Nelson Cavaquinho”
.1975 – “Megalópolis”
“Ecologia”
.1975 – “Cantos de trabalho: mutirão”
“Cantos de trabalho: cacau”
Cantos de trabalho: cana-de-açúcar”
.1976/1982 – “Partido alto”
.1978 – “Rio, carnaval da vida”

Longas-metragens:

.1962 – “Pedreira de São Diogo” – episódio de “Cinco vezes favela”


.1965 – “A falecida”
.1967 – “Garota de Ipanema”
.1969 – “Sexta-feira santa, sábado de aleluia” – episódio de “América do sexo”
.1972 – “São Bernardo”
.1977 – “Que país é este?”
.1979/1990 – “O ABC da greve”
.1981 – “Eles não usam black-tie”
.1983/1986 – “Imagens do inconsciente”
1º Episódio “Em busca do espaço cotidiano”
2º Episódio: “No reino das mães”
3º Episódio: “A barca do sol”
.1983/1996 – “Bahia de todos os sambas”
220

Ilustrações

Movimento de Atores em Ozu

Figura 1

Figura 2
221

Geometrização do Corredor

Figura 3
222

Quadro Geral do Pensamento de Sartre


L
ESTÁGIO DE FORMAÇÃO (1924 - 1936)
I
B 1933 - Encontro com a Fenomenologia PSICOLOGIA
ESTÁGIO FENOMENOLÓGICO (1936-1943) BERGSON
E
R FASE EXISTENCIALISTA desdobramento 1943 - "O Ser e o Nada"
D
A ESTÁGIO ONTOLÓGICO (1943-1952) M
D ONTOLOGIA O
E DESCARTES / HUSSERL-
- HEIDEGGER R
S A
I
T ESTÁGIO COMUNISTA (1952-1956) L
U FASE MARXISTA POLÍTICA
ruptura
A HEGEL/MARX
(REJEIÇÃO A ENGELS/LÊNIN)
Ç ESTÁGIO PÓS-COMUNISTA (1956-1980)
à 1960 - "Crítica da Razão Dialética"
O

222
223

Memorial

Eu, Fabián Rodrigo Magioli Núñez, ingressei na Universidade Federal Fluminense,


através de vestibular, no 2º semestre de 1995, sob a matrícula nº 295.30.229-4. Em
abril do ano seguinte, iniciei o meu trabalho de voluntário no Centro de Pesquisa e
Documentação da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro,
atividade que ainda realizo. Neste ambiente, com outros colegas e sob a curadoria de
Hernani Heffner, adquiri a minha formação cinéfila, direcionando-me à parte teórica
do Cinema. Das atividades técnicas, participei na produção de “O maior” de Luiz
Fernando Petzhold e “O melhor” de Daniel Camargo, no 2º semestre de 1997. Nesta
mesma ocasião, participei da produção de “5 x 1” e atuei em “Origami”, ambos de
Leonardo Pirovani. Em janeiro de 1998, ingressei no grupo de estudos de Filosofia do
prof. Fernando Ribeiro. A partir deste mesmo ano, comecei a seguir, como ouvinte,
disciplinas do Curso de Graduação em História no ICHF. Fui aprovado como monitor
da disciplina “Fundamentos Lingüísticos da Comunicação”, porém abdiquei para
postular uma bolsa de iniciação científica ao CNPq. Participei do VIII Seminário de
Iniciação Científica e do Prêmio UFF Vasconcellos Torres de Ciência e Tecnologia no
projeto “A comunicação para além da representação” do prof. Fernando Ribeiro. O
projeto não foi renovado. Nesta mesma ocasião, entrei no projeto CD-rom “França
Antártica” do prof. Tunico Amâncio. No ano seguinte, em 1999, encaminhamos o
projeto “Para uma crítica da noção contratualista do laço social” ao CNPq, sob a
orientação do prof. Fernando Ribeiro. O projeto não foi aprovado. Em julho,
acompanhei os mini-cursos e os debates do evento “O Marxismo em debate: Teoria e
História”, organizado pelo Laboratório Dimensões da História. No ano 2000, exerço a
monitoria da disciplina “Teoria da Comunicação”.

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