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© Associação Profissional de Arqueólogos

ARQUEOLOGIA PREVENTIVA E LICENCIAMENTO


AMBIENTAL DE PROJETOS NO BRASIL

solange bezerra caldarelli


Scientia, Consultoria Científica Ltda.
solange@scientiaconsultoria.com.br

Resumo: Apresentam-se, aqui, as características principais do licenciamento ambiental de projetos no Brasil


e como a arqueologia preventiva se interliga com todas as suas etapas estratégicas, em prol de uma melhor
eficiência da salvaguarda do patrimônio arqueológico brasileiro. Essa salvaguarda, no Brasil, subentende
também a geração de conhecimentos sobre os bens arqueológicos sobre os quais os impactos físicos não
podem ser evitados, bem como atividades educativas que estimulem o interesse pelo patrimônio arqueológico
e a conseqüente formação de parcerias locais para sua proteção.

Palavras-chave: Arqueologia Preventiva; Licenciamento Ambiental; Brasil.

1. Breve histórico da implementação de uma Constituição da República Federativa do Brasil, por-


política ambiental no Brasil tanto), a Resolução nº 01 do Conselho Nacional do
Meio Ambiente – CONAMA determina, em sua alí-
Não nos debruçaremos, aqui, sobre experiências nea c que o Estudo de Impacto Ambiental conside-
pioneiras de avaliação ambiental no Brasil, mas ape- re, entre outros aspectos, o meio sócio-econômico,
nas ao momento em que efetivamente se instituiu entendido como o uso e ocupação do solo, os usos
uma Política Nacional de Meio Ambiente. Esta se da água e a sócio-economia, destacando os sítios e
dá com a publicação da Lei homônima, em 1981; monumentos arqueológicos, históricos e culturais
regulamentada pela Resolução CONAMA nº 01, de da comunidade [“negrito” da autora], as relações de
1986, e incorporada à nova Constituição Brasileira, dependência entre a sociedade local, os recursos am-
de 1988, a qual, em seu Art. 225, reitera que todos bientais e a potencial utilização futura desses recur-
tem direito ao meio ambiente ecologicamente equi- sos.
librado, e incumbe ao Poder Público a garantia desse
2. Etapas do licenciamento ambiental de projetos
direito, através da exigência de que toda obra ou ati-
no Brasil
vidade potencialmente causadora de significativa de-
gradação ambiental tenha necessariamente de passar As etapas pelas quais passa o licenciamento
por Estudo de Impacto Ambiental. ambiental de projetos, no Brasil, foram definidas pela
Ao regulamentar a Lei da Política Nacional do Resolução CONAMA nº 237, de 1997, conforme
Meio Ambiente, em 1986 (anteriormente à nova transcrito a seguir:

praxis ARCHAEOLOGICA 4, 2009, p. 21-26


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“I - Licença Prévia (LP) - concedida na fase procura compatibilizar as fases de obtenção de licen-
preliminar do planejamento do empreendi- ças ambientais,. com os empreendimentos potencial-
mento ou atividade aprovando sua localização mente capazes de afetar o patrimônio arqueológico,
e concepção, atestando a viabilidade ambiental abaixo reproduzida:
e estabelecendo os requisitos básicos e condi-
cionantes a serem atendidos nas próximas fa- Fase de obtenção de licença prévia (EIA/RIMA):
ses de sua implementação; “Art° 1 - Nesta fase, dever-se-á proceder à
“II - Licença de Instalação (LI) - autoriza a contextualização arqueológica e etnohistórica
instalação do empreendimento ou atividade da área de influência do empreendimento,
de acordo com as especificações constantes por meio de levantamento exaustivo de dados
dos planos, programas e projetos aprovados, secundários e levantamento arqueológico de
incluindo as medidas de controle ambiental campo.
e demais condicionantes, da qual constituem “Art° 2 - No caso de projetos afetando áreas
motivo determinante; arqueologicamente desconhecidas, pouco ou
“III - Licença de Operação (LO) - autoriza a mal conhecidas que não permitam inferências
operação da atividade ou empreendimento, sobre a área de intervenção de empreendimen-
após a verificação do efetivo cumprimento do to, deverá ser providenciado levantamento ar-
que consta das licenças anteriores, com as me- queológico de campo pelo menos em sua área
didas de controle ambiental e condicionantes de influência direta. Este levantamento deverá
determinados para a operação. contemplar todos os compartimentos ambien-
“Parágrafo único - As licenças ambientais po- tais significativos no contexto geral da área a
derão ser expedidas isolada ou sucessivamente, ser im plantada e deverá prever levantamento
de acordo com a natureza, características e fase prospectivo de sub-superfície.
do empreendimento ou atividade.” “I - O resultado final esperado é um relatório
de caracterização e avaliação da situação atual
É importante ressaltar, aqui, que a Licença de do patrimônio arqueológico da área de estudo,
Operação (LO), no Brasil, não é dada em caráter sob a rubrica Diagnóstico.
permanente, mas deve ser renovada periodicamente, “Art° 3 - A avaliação dos impactos do empre-
em períodos que diferem de um tipo de endimento do patrimônio arqueológico re-
empreendimento para outro. gional será realizada com base no diagnóstico
De empreendimentos em operação anteriormen- elaborado, na análise das cartas ambientais te-
te à Política Nacional de Meio Ambiente, datada de máticas (geologia, geomorfologia, hidrografia,
1981, mas efetivada apenas em 1986 (Resolução nº declividade e vegetação) e nas particularidades
01/1986 do Conselho Nacional do Meio Ambiente técnicas das obras.
– CONAMA), têm sido exigidos estudos ambien- “Art° 4 - A partir do diagnóstico e avaliação de
tais para regularização da LO, abrindo-se, assim, a a impactos, deverão ser elaborados os Programas
oportunidade de que seus passivos ambientais sejam de Prospecção e de Resgate compatíveis com o
avaliados e, se possível, corrigidos ou compensados. cronograma das obras e com as fases de licen-
ciamento ambiental do empreendimento de
3. Correspondência dos estudos de arqueologia forma a garantir a integridade do patrimônio
preventiva com as etapas do licenciamento cultural da área.”
ambiental de projetos, no Brasil
Fase de obtenção de licença de instalação (LI):
Em dezembro de 2002, o Instituto do Patrimônio “Art° 5 - Nesta fase, dever-se-á implantar o
Histórico Nacional – IPHAN publicou, no Diário Programa de Prospecção proposto na fase an-
Oficial da União – DOU, a Portaria de nº 230, que terior, o qual deverá prever prospecções inten-

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sivas (aprimorando a fase anterior de interven- de estudo. Assim, a perda física dos sítios
ções no subsolo) nos compartimentos ambien- arqueológicos poderá ser efetivamente
tais de maior potencial arqueológico da área compensada pela incorporação dos
de influência direta do empreendimento e nos conhecimentos produzidos à Memória
locais que sofrerão impactos indiretos poten- Nacional.
cialmente lesivos ao patrimônio arqueológico, “Artº 7° - O desenvolvimento dos estudos
tais como áreas de reassentamento de popula- arqueológicos acima descritos, em todas as
ção, expansão urbana ou agrícola, serviços e suas fases, implica trabalhos de laboratório
obras de infra-estrutura. gabinete (limpeza. triagem. registro, análise,
“§1° - Os objetivos, nesta fase, são estimar a interpretação. acondicionamento adequado
quantidade de sítios arqueológicos existentes de material coletado em campo, bem como
nas áreas a serem afetadas direta ou indire- programa de Educação Patrimonial), os quais
tamente pelo empreendimento e a extensão. deverão estar previstos nos contratos entre os
profundidade. diversidade cultural e grau de empreendedores e os arqueólogos responsáveis
preservação nos depósitos arqueológicos para pelos estudos, tanto em termos de orçamento
fins de detalhamento do Programa de Resgate quanto de cronograma.
Arqueológico proposto pelo EIA, o qual deve- “Artº 8° - No caso da destinação da guarda
rá ser implantado na próxima fase. do material arqueológico retirado nas áreas,
“§2° - O resultado final esperado é um Programa regiões ou municípios onde foram realizadas
de Resgate Arqueológico fundamentado em pesquisas arqueológicas, a guarda destes ves-
critérios precisos de significância científica dos tígios arqueológicos deverá ser garantida pelo
sítios arqueológicos ameaçados que justifique
empreendedor seja na modernização, na am-
a seleção dos sítios a serem objeto de estudo
pliação, no fortalecimento de unidades exis-
em detalhe, em detrimento de outros, e a
tentes, ou mesmo na construção de unidades
metodologia a ser empregada nos estudes.”
museológicas específicas para o caso.”
Fase de obtenção da licença de operação (LO):
Mais recentemente, também por iniciativa do
“Art° 6 - Nesta fase, que corresponde ao pe-
IPHAN, também tem sido solicitada a avaliação de
ríodo de implantação do empreendimento,
passivos arqueológicos de empreendimentos em fase
quando acorrem as obras de engenharia, de-
de regularização ou de renovação de LO que não fo-
verá ser executado o Programa de Resgate
Arqueológico proposto no EIA e detalhado na ram objeto de estudos arqueológicos preventivos an-
fase anterior. teriormente. Se comprovada a existência de passivos
“§1° - É nesta fase que deverão ser realizados arqueológicos, tem sido exigidas medidas tanto cor-
os trabalhos de salvamento arqueológico nos retivas quanto compensatórias.
sítios selecionados na fase anterior, por meio
de escavações exaustivas, registro detalhado de 4. O que se entende, no Brasil, por impacto sobre
cada sítio e de seu entorno e coleta de exem- um sítio arqueológico
plares estatisticamente significativos da cultura
material -contida em cada sítio arqueológico. No Brasil, o entendimento do impacto arqueoló-
“§2° - O resultado esperado é um relatório gico é sempre sobre a unidade básica da arqueologia:
detalhado que especifique as atividades o sítio arqueológico. Ao perturbar parte de um sítio
desenvolvidas em campo e em laboratório arqueológico, é entendido que todo o sítio arqueo-
e apresente os resultados científicos dos lógico sofreu impacto, uma vez que ele não é restri-
esforços despendidos em termos de produção to àquela parte especificamente, mas a uma unidade
de conhecimento sobre arqueologia da área cujo sentido reside em sua totalidade.

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Apresentamos como exemplo uma tribo indígena No Brasil, o impacto não é considerado apenas
de organização dual, de língua Gê, em que a socie- sobre a estrutura habitacional afetada, mas sobre o
dade se estrutura dualmente, dualidade essa que tem sítio arqueológico como um todo. Isto se deve ao fato
reflexo em toda a sociedade, que se identifica por suas de que o entendimento que salvamentos arqueológi-
metades, as quais se dispõem separadamente no espa- cos não podem ser reduzidos a exemplares de cultura
ço da aldeia e onde as famílias produzem uma cultura material, embora esta coleta tenha de ser feita, mas
material distinta entre as duas metades. à geração de conhecimento sobre o sítio que foi afe-
A figura abaixo ilustra os remanescentes de uma tado.
aldeia desse tipo, afetada por um empreendimento Ora, que tipo de conhecimento pode ser gerado
linear. a partir de uma parte de uma estrutura de um todo

Figura 1. Representação de uma aldeia pré-histórica remanescente, afetada por um empreendimento linear, que atinge uma de suas
unidades habitacionais, bem como o pátio central, onde se desenvolvem as atividades coletivas.

muito maior, só inteligível quando se comparam suas amostral mais espaçada no espaço não diretamente
metades, por se tratar de uma sociedade dual? afetado, mas em intensidade suficiente para gerar co-
O IPHAN permite que a pesquisa seja feita com nhecimento sobre o passado representado por aquele
mais intensidade sobre a parte diretamente afetada sítio.
do sítio, mas a totalidade tem de ser pesquisada, Grande parte do sítio, quando a malha é espa-
com métodos sugeridos pelo coordenador autorizado çada, fica registrada e reservada para pesquisa por
pelo IPHAN, os quais podem envolver uma malha gerações futuras, com outras preocupações teóricas,

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outras metodologia e tecnologias mais avançadas dos grama de Educação Patrimonial + implementação de
que as do tempo presente (Caldarelli, 2007). pesquisas de maior âmbito espacial, que permitam
É importante ressaltar, também, que o impacto revelar a função do sítio afetado no contexto socio-
sobre um sítio arqueológico pode, na avaliação de cultural pretérito.
impactos, ser considerado como um impacto sobre
um sistema sociocultural pretérito, uma vez que sí- 5. Considerações finais
tios arqueológicos não são jamais isolados, mas re-
presentam unidades que se interrelacionam entre si e Pelo acima apresentado, depreende-se que a maior
com a paisagem em que se encontram implantadas, preocupação tanto dos profissionais sérios que atuam
já que esta foi escolhida por razões que apenas a pes- em arqueologia preventiva no Brasil quanto do órgão
quisa arqueológica aprofundada pode revelar. gestor (IPHAN), nos estudos arqueológicos realiza-
Quando este impacto é considerado, uma vez que dos em função do licenciamento ambiental de proje-
mitigá-lo não é possível, medidas compensatórias po- tos em território brasileiro, é sempre com a proteção
dem ser exigidas pelo IPHAN, as quais podem variar, e a geração de conhecimento sobre o patrimônio ar-
na dependência do porte do empreendimento, entre queológico nacional, com suas diversas especificida-
um programa de Educação Patrimonial abrangente, des socioculturais e suas variadas cronologias.
que estimule parcerias para a proteção do patrimônio
arqueológico (obrigatório, sempre) e entre um pro-

Bibliografia

CALDARELLI, S. B. (2007) – Pesquisa arqueológica em projetos de infra-estrutura: a opção pela preservação. Revista do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Brasília. 33, p. 153-174.

Resumen: Se presentan las características principales de la concesión de licencias ambientales en Brasil


y cómo la arqueología preventiva se conecta con todas sus etapas estratégicas, en nombre de una mejor
eficiencia de la preservación del patrimonio arqueológico brasileño. De la preservación forma parte también
la producción de conocimiento de los bienes arqueológicos que sufrirán un impacto físico inevitable, así
como actividades educacionales que estimulen el interés por el patrimonio arqueológico y la consecuente
formación de asociaciones locales de cara a su protección.

Palabras-clave: Arqueología Preventiva; Licencia Ambiental; Brasil.

Abstract: We present the main features of environmental licensing in Brazil and how rescue archaeology
connects to all strategic steps on behalf of greater efficiency in the preservation of Brazilian archaeological
heritage. In Brazil, this preservation integrates also the production of knowledge on the archaeological goods
that will inevitably get a physical impact, as well as educational activities that encourage public attention on
the archaeological heritage and the subsequent creation of local groups for its protection.

Keywords: Rescue Archaeology; Environmental Licensing; Brazil.

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