Você está na página 1de 305

A Influenza Espanhola

e a cidade planejada
Belo Horizonte, 1918

Anny Jackeline Torres Silveira

Scientia
U F /I'\ G
A Influenza Espanhola e a cidade planejada
Belo Horizonte, 1918

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 1 19/6/2008, 23:40


Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 2 19/6/2008, 23:40
Anny Jackeline Torres Silveira

A Influenza Espanhola e a cidade planejada


Belo Horizonte, 1918

Belo Horizonte
2020

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 3 19/6/2008, 23:40


Todos os direitos reservados à
Fino Traço Editora Ltda.
© Anny Jackeline Torres Silveira
Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido
por qualquer meio sem a autorização da editora.

As idéias contidas neste livro são de responsabilidade do seu autor


e não expressam necessariamente a posição da editora.

CIP-BRASIL CATALOGAÇÃO-NA-FONTE (SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVRO, RJ)

S586i
Silveira, Anny Jackeline Torres, 1965-
A influenza espanhola e a cidade planejada : Belo Horizonte, 1918 / Anny Jackeline
Torres Silveira. – Belo Horizonte, MG : Argvmentvm : FAPEMIG : CAPES, 2008.
304 p. ; il. – (Scientia ; 9)
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-98885-25-4
1. Gripe espanhola – Belo Horizonte (MG) – História. 2. Saúde pública – Belo Horizonte
(MG) - História. 3. Belo Horizonte (MG) – Condições sanitárias – História. 4. Belo Horizonte
(MG) – História. I. Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais. II. Coorde-
nação de Amparo à Pesquisa de Nível Superior. III. Título. IV. Título: Belo Horizonte, 1918.
V. Série.
08-2126. CDD: 614.5180981511
CDU: 616.921.5(815.11)
28.05.08 30.05.08 006883

CONSELHO EDITORIAL:
Betânia Gonçalves Figueiredo | UFMG
Carlos Alberto Filgueiras | UFRJ
Bernardo Jefferson de Oliveira | UFMG
Gilberto Hochman | Fiocruz
Maria Amélia Dantes | USP
Maria de Fátima Nunes |Universidade de Évora - Portugal
Mauro Lúcio Leitão Condé | UFMG
Olival Freire | UFBA

Fino Traço Editora Ltda.


Rua Dom Braz Baltazar, 209 - Cachoeirinha
Belo Horizonte. MG. Brasil
Telefones: (31) 3212 9444/4197
www.finotracoeditora.com.br

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 4 19/6/2008, 23:40


Para Enio, Lulu e Wilson, que a seu modo
ajudaram a construir a História da Saúde no Brasil,
e para Fábio,
pelo amor e alegria

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 5 19/6/2008, 23:40


Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 6 19/6/2008, 23:40
Agradecimentos

A realização deste trabalho contou com a contribuição de uma


série de pessoas e instituições, para os quais meus agradecimentos serão
sempre pequenos.
Ao André Luiz Vieira de Campos, agradeço a orientação, sempre
generosa e instigante, imprescindível para que minhas questões sobre a
história de uma pandemia de gripe em uma cidade planejada se transfor-
massem nestas páginas. Devo a ele a descoberta de novos caminhos e
possibilidades nesse mundo apaixonante da História.
À Rita, devo a sugestão da gripe como tema de pesquisa. Nesses
últimos anos, temos partilhado uma experiência cheia de descobertas na
História da Medicina, por intermédio das diversas pesquisas e projetos
que temos realizado. Aos Professores Gilberto Hochman e Magali Engel,
pela leitura cuidadosa e pelas sugestões preciosas apresentadas ao texto.
Lizziane, André e Alexander me auxiliaram na pesquisa das fontes, sem
as quais este trabalho não seria possível, e Paulista nas imagens que
ilustram o trabalho.
Os amigos de longa data e aqueles mais recentes auxiliaram no
acesso à bibliografia, descobrindo dados, fazendo sugestões e escutando
minhas histórias de mortos e “encatarrados”: Rita, Chico, Vanda, Bela,
Simone, Laurinda, Ronaldo, Fábio Joly, Rosa, Rosaly, Jaor, Valênio...
Aos amigos que têm participado do GT de História da Saúde e da
Doença – Betânia, Rita, Vanda, Dilene, Adriana, Christiane e tantos
outros – fórum fundamental para o debate, a troca de experiências e a
divulgação de pesquisas que tanto contribuem para a afirmação e fortale-
cimento desse campo de pesquisas.

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 7 19/6/2008, 23:40


Aos colegas do COLTEC-UFMG, que viabilizaram um ano de de-
dicação exclusiva a esse trabalho. Aos funcionários das diversas institui-
ções pesquisadas: Arquivo Público Mineiro; Museu Abílio Barreto; Ar-
quivo Público da Cidade de Belo Horizonte; Biblioteca Estadual;
Bibliotecas da UFMG; Fundação Ezequiel Dias – FUNED; Biblioteca da
Assembléia Legislativa de Minas Gerais; Hemeroteca Estadual; Impren-
sa Oficial de Minas Gerais, Biblioteca da PUC-MG.
Meu pai e minha mãe, Enio e Lourdes, agradeço pelo incentivo,
pelas lutas e renúncias que tornaram possível a realização dos sonhos de
seus filhos. Dirceu esteve sempre presente, solucionando meus impasses
com as máquinas. Ellen me ajudou com suas opiniões e sua disposição
em atender todos os meus pedidos de livros, teses, artigos... Gerson,
pelas dicas da internet. E Carla e Verinha, pelo calor da acolhida.
Fábio fez de tudo, muito. Só quem ama se dedica com tanto cari-
nho. Seu amor e sua alegria tornaram esses anos mais fáceis e felizes.

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 8 19/6/2008, 23:40


Sumário

Prefácio............................................................................... 13

Introdução ........................................................................... 17

CAPÍTULO 1

A gripe espanhola de 1918 ................................................... 27


Origem e expansão da influenza espanhola de 1918. ........................ 30
A espanhola no Brasil: rotas, impactos e respostas. ........................... 36
Perspectivas analíticas: a epidemia como evento e como narrativa ...... 49
Breve historiografia da influenza espanhola. ..................................... 63

CAPÍTULO 2

Cidades, saúde e civilização:


Belo Horizonte, um caso particular .......................................... 79
As cidades e a saúde pública ......................................................... 85
A nova capital mineira: política e higiene. ........................................ 96
Construindo a cidade salubre ....................................................... 112

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 9 19/6/2008, 23:40


CAPÍTULO 3

A crônica da espanhola em Belo Horizonte ........................... 139


A chegada da influenza e os transtornos no cotidiano da cidade ....... 142
A desestruturação da vida social ................................................... 146
As tensões promovidas pela espanhola. ......................................... 149
A Carestia. ................................................................................. 152
As reações das autoridades públicas. ............................................ 157
A sociedade em ação. ................................................................. 177
A cultura revelada pelo impacto da espanhola. ............................... 196

CAPÍTULO 4

A medicina e a influenza ..................................................... 211


A construção da influenza como doença específica. ........................ 216
Notícias sobre a influenza nas terras do Brasil. ............................... 232
Combatendo e explicando a influenza. .......................................... 251

Considerações finais ........................................................... 279

Referências Bibliográficas ................................................... 285


Fontes ....................................................................................... 285
Periódicos ..................................................................................... 285
Documentação Oficial .................................................................. 286
Textos Médicos .............................................................................. 288
Livros e artigos .............................................................................. 291
Sítios da Internet .......................................................................... 293
Obras de referência .................................................................... 293
Bibliografia ................................................................................ 293

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 10 19/6/2008, 23:40


TABELAS

Tabela 1
Mortalidade por Doenças Transmissíveis em
Belo Horizonte –1910-1920 ..................................................... 130
Tabela 2
Mortalidade em Belo Horizonte –1897-1912 ................................. 131
Tabela 3
Notificações e óbitos devidos à gripe em Belo Horizonte,
no último trimestre de 1918. .................................................... 162

IMAGENS

Anúncios: Bota Mineira e Zampironi ........................................ 206

Anúncios: Peitoral Composto de Mel e Jatahy Dória;


Sanahespanha; e Xarope de Famel ....................................... 265

Anúncios: Chloro Quinino; Cognac de Ameixas


e Neo-tônico Rodrigues ........................................................ 267

Anúncios: Biosthenyl .............................................................. 267

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 11 19/6/2008, 23:40


Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 12 19/6/2008, 23:40
Prefácio

Quando a pandemia de gripe espanhola devastou o mundo em


1918, a medicina científica não dispunha de muitas informações sobre a
influenza. Tanto que, num primeiro momento, muitos pensaram que se
tratava de uma nova doença, e mesmo um dos maiores patologistas da
época, William Henry Welch, recorreu a uma velha palavra para definir
o fenômeno: peste. A bacteriologia do início do século, apesar de seu
discurso triunfalista, só desvendaria o mistério da gripe na década de
1930, quando seus vírus causadores foram isolados e identificados e,
finalmente, o microscópio eletrônico permitiu sua visualização.
Facilitada pelo desenvolvimento dos transportes e pela movimen-
tação de tropas motivada pela Primeira Guerra Mundial, a pandemia
atingiu todos os cantos do planeta, chegando mesmo até os mais distan-
tes arquipélagos da Oceania. Ao entrar no Brasil pelos portos, a gripe
rapidamente espalhou-se, atingindo, principalmente, os núcleos de mai-
or concentração populacional. Entre as cidades atacadas pela espanhola,
estava a então jovem capital de Minas Gerais, Belo Horizonte, construída
sob os parâmetros da Higiene e do urbanismo do final do século XIX, e
considerada, portanto, uma cidade “moderna e salubre.”
O belo livro que Anny Jackeline Torres Silveira nos apresenta,
surgiu a partir da seguinte questão: como se deu o encontro entre aquela
moderna cidade com a epidemia de gripe espanhola, que parecia reencenar
uma experiência medieval? Desse ponto de partida, outras questões se-
guem-se: por ter sido Belo Horizonte planejada segundo os princípios da
Higiene, foi sua experiência com a espanhola particular? Como a cidade –
seus administradores, políticos, médicos e cidadãos – respondeu àquela
situação dramática? Qual foi a reação da “ciência médica” quando se

13

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 13 19/6/2008, 23:40


descobriu impotente diante daquele fenômeno inusitado? Como a popula-
ção vivenciou no seu cotidiano a epidemia? Que respostas – religiosas,
científicas, políticas e econômicas – aquela experiência desencadeou? Essas
são algumas das questões que perpassam este livro bem escrito, docu-
mentado e original, e que nos permite “abrir uma janela para o passado”,
identificando na trajetória da gripe espanhola em Belo Horizonte pontos
em comum, bem como particularidades, com outras experiências epidê-
micas na História. Registre-se que, apesar de a autora abordar um tema
particular, ela não se limita a analisar a trajetória da espanhola na capital
de Minas Gerais: em vez disso, contextualiza-a na história mais ampla da
cidade e na história da saúde pública no Brasil.
Outro aspecto que merece ser destacado neste livro é sua impor-
tância para a divulgação de um tema que ainda permanece ignorado por
grande parte da comunidade de historiadores profissionais: a história da
saúde e da doença. Até há pouco tempo considerada como curiosidade
de memorialistas, a história das epidemias cada vez merece mais a aten-
ção de uma nova geração de historiadores no Brasil. Ao mesmo tempo,
as recentes notícias na imprensa sobre doenças emergentes, como a gri-
pe aviária, e o ressurgimento de velhas patologias que pensávamos enter-
radas num passado distante, tornam evidente a atualidade dessa temática,
bem como a oportunidade que este livro nos oferece para refletir sobre
essa questão.
Para realizar o amplo leque de propostas que Anny Torres se
propôs, o livro inicia-se com um vívido relato global da trajetória da
pandemia de 1918, entrelaçado com a dramaticidade da guerra e às
reações ao flagelo. Entre outros aspectos, Anny discorre sobre o porquê
do nome ‘espanhola’, sobre a peculiaridade epidemiológica que fez dos
adultos jovens o grupo de indivíduos que mais pagou vítimas fatais à
epidemia, além de tecer consideraçãoes sobre suas divergentes estatísti-
cas. Ao fazer um balanço da historiografia das epidemias, discute duas
grandes vertentes: a perspectiva de que estas têm uma dramaturgia co-
mum, por meio da qual é possível observar similaridades em sociedades
e tempos diversos; e aquela voltada para os aspectos ecológicos do fenô-
meno, e que enfatiza os elementos singulares de cada experiência. Dian-
te dessas abordagens, a autora conclui que “a história das epidemias
será sempre mais instigante quando ampliar nossas percepções sobre a
interação entre dimensões biológicas, econômicas, sociais, políticas e

14

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 14 19/6/2008, 23:40


culturais, quando de uma visão particular nos fizer mover para perspec-
tivas mais amplas e abrangentes.”
Coerente com suas escolhas, ao fazer a narrativa da espanhola na
capital mineira, a autora buscou nas características da cidade, as possí-
veis diferenças daquela experiência numa capital que se pretendia salu-
bre e higiênica. Assim, Anny Torres buscou as origens da história da
cidade, situando-a nos debates sobre modernização, progresso e civiliza-
ção que marcaram a passagem do final do século XIX para o XX. Ainda
ao abordar os impactos da doença, Anny mapeou a diversidade das
respostas experimentadas pelos contemporâneos – das autoridades civis,
médicas e religiosas aos aproveitadores de plantão – terminando por
descrever o que chamou de uma “cultura da epidemia”. No originalíssimo
quarto capítulo, Anny Torres esmiuça o conhecimento médico sobre a
influenza, suas limitações diante daquela situação, bem como o debate
que a epidemia gerou no meio científico nacional e internacional. Ao
acompanhar esse debate, a autora demonstra claramente que os médicos
brasileiros estavam integrados em uma rede científica internacional, con-
tradizendo assim, a perspectiva de uma história da ciência ainda pautada
pelas noções de “centro” e “periferia”. Ao mesmo tempo, esse original
capítulo é, em si mesmo, um exemplo daquilo que Charles Rosenberg
chamou de “quarto ato” de uma epidemia: o que uma comunidade apren-
de depois de uma epidemia? O que ela ensina aos contemporâneos? Que
lições ela pode proporcionar?
Entre seus diversos méritos, o livro de Anny Torres também evi-
dencia como a história da saúde e da doença está sendo feita por histori-
adores brasileiros, dentro da mais atualizada bibliografia nacional e in-
ternacional. Este belo trabalho é um dos primeiros livros sobre história
da gripe espanhola no Brasil e, certamente, o primeiro de densidade a
ser escrito sobre a história da espanhola em Belo Horizonte.

André Luiz Vieira de Campos


Doutor em História pela Universidade do Texas
Professor do Departamento de História da UFF e da UERJ

15

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 15 19/6/2008, 23:40


Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 16 19/6/2008, 23:40
Introdução

No ano de 2003, dois episódios epidêmicos mobilizaram a im-


prensa e as autoridades científicas e de saúde internacionais.1 No início
daquele ano, ganhava destaque uma “pneumonia misteriosa” que estava
matando diversas pessoas na China: a síndrome respiratória aguda grave
– SARS.2 Em pouco tempo, a moléstia era reportada em 27 países,
infectando mais de 8 mil pessoas e matando cerca de 770 delas. A
epidemia de SARS havia começado em novembro de 2002 na província
de Guangdong, na China, mas apenas em fevereiro do ano seguinte a
Organização Mundial de Saúde seria oficialmente comunicada sobre a
moléstia pelo governo daquele país. Milhares de pessoas foram postas
em quarentena e quem escondesse os sintomas da doença poderia ter
sua prisão decretada. O uso de máscaras se generalizou entre a popula-
ção e algumas cidades registraram revoltas contra a possibilidade de
transferência de doentes para as clínicas locais. A epidemia provocou a
demissão do ministro da saúde chinês e do prefeito da cidade de Pe-
quim. Em Taiwan, o governo fechou teatros, cinemas, cafés e outros

1
O texto aqui apresentado é, originalmente, fruto do trabalho de pesquisa para a
conclusão do curso de doutorado do Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal Fluminense, no ano de 2004. Novos trabalhos vieram a
público no período que separa a finalização do texto e sua transformação em livro.
Optou-se, nessa publicação, pela não atualização das notas e referências bibliográ-
ficas à luz dessas novas contribuições.
2
As primeiras notícias divulgadas em março referiam-se à SARS como uma “pneu-
monia misteriosa”. Somente no mês seguinte, o termo SARS passaria a ser empre-
gado pela imprensa. Folha de São Paulo, 26 de março de 2003, p.A11.

17

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 17 19/6/2008, 23:40


centros de entretenimento públicos, além de banir visitantes procedentes
das regiões infectadas. O premiê canadense criticou a Organização Mun-
dial de Saúde por ter desaconselhado viagens à cidade de Toronto e o
temor dos efeitos da epidemia levou o Banco Mundial a rever suas previ-
sões sobre o crescimento da economia asiática.3
No final do ano de 2003, a Ásia tornou-se palco de uma nova
ameaça, a gripe aviária, obrigando o sacrifício de milhares de aves na
tentativa de evitar a progressão da moléstia. Em janeiro de 2004, foram
divulgados os primeiros casos em humanos e, até o mês seguinte, ela
havia matado 20 das 29 pessoas infectadas. O contágio da gripe aviária
permaneceu circunscrito a pessoas que tiveram contato com os animais
doentes e o maior receio das autoridades era a possibilidade do vírus
adquir a capacidade de passar de uma pessoa para outra. Uma
recombinação genética entre os vírus da influenza humana e aviária po-
deria causar uma verdadeira tragédia, com projeções apontando para 10
a 25% de infectados na população mundial e, desse total, cerca de 30%
de óbitos. A gravidade dessa ameaça pode ser mensurada em função do
apelo conjunto feito pela Organização Mundial de Saúde, a Organização
Mundial para a Saúde Animal e a Organização para Alimentos e Agricul-
tura, no sentido de que os principais laboratórios do mundo se esforças-
sem na tentativa de desenvolvimento de uma vacina contra a moléstia
(COLAVITTI, 2004).
As apreensões e reações despertadas por esses eventos trazem ecos
de outras experiências vivenciadas pela sociedade, ente elas a pandemia
de influenza espanhola. Em fins de 1918, o mundo foi literalmente sur-
preendido pela extensão, virulência e alta letalidade assumidas por aquela
moléstia, ordinariamente tão branda e benigna. Assim como a SARS, a
pandemia de espanhola gerou expectativa e medo pela indefinição sobre
seu agente infeccioso e a sua forma de expansão. Seu reconhecimento foi
protelado em diversos países em função de interesses políticos ditados
pela situação de guerra. Em 1918, como diante da ameaça da SARS,

3
Notícias divulgadas sobre a epidemia de SARS pelo jornal Folha de São Paulo, 7
de maio de 2003, p.A11; 6 de maio de 2003, p.A11; 9 de maio de 2003, p.A15;
21 de abril de 2003, p.A9; 28 de abril de 2003, p.A12; 26 de abril de 2003,
p.A6; 25 de abril de 2003, p.A10.

18

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 18 19/6/2008, 23:40


diversas pessoas saíram às ruas usando máscaras na tentativa de se prote-
gerem do contágio, apesar da polêmica sobre a eficácia dessa prática. As
medidas impostas pelas autoridades durante a influenza espanhola tam-
bém geraram insatisfação e perdas econômicas decorrentes, entre outros
motivos, da suspensão de diversas atividades coletivas.
O estudo das manifestações epidêmicas da influenza é particular-
mente interessante pela constância com que a moléstia tem atingido a
sociedade e pela própria natureza do seu agente patógeno. Na perspecti-
va médica, a doença é sempre a mesma e o que faz com que assuma o
caráter de pandemia, com altos índices de morbidade e mortalidade, é a
natureza de seu agente causal. A influenza é causada por três tipos de
vírus: A, B e C. O tipo A apresenta vários subtipos e cada um deles
possui diversas variantes. Sua estrutura é composta por uma membrana
coberta por duas glicoproteínas: a hemaglutinina (H) e a neuraminidase
(N). Os genes dessas proteínas podem apresentar variações parciais (genetic
drift), dando origem a novas variantes, ou amplas (genetic shift), produ-
zindo novos subtipos (BEVERIDGE, 1978; KILBOURNE, 1991). Além
do homem, a influenza pode infectar alguns animais, como cavalos, por-
cos e aves. A infecção de um mesmo hospedeiro pelos vírus humano e
animal faz dele um verdadeiro “laboratório biológico”, promovendo o
surgimento de novos subtipos virais.
A ampla versatilidade do vírus, isto é, sua alta capacidade de muta-
ção, é o que anula a possibilidade de imunidade por infecções anteriores,
dificultando o seu reconhecimento pelo sistema imunológico. As freqüen-
tes mutações parciais do vírus são responsáveis pelas diversas ocorrências
anuais da moléstia. Em intervalos maiores, essa transformação assume
um caráter radical, originando subtipos completamente novos, produzin-
do epidemias e eventuais pandemias. A possibilidade de uma mutação
dessa natureza tem mobilizado a comunidade científica e as autoridades
de saúde em diversos países por intermédio de uma Rede Mundial de
Vigilância, que monitora o surgimento de novas variantes e subtipos virais
e estabelece medidas para tentar controlar a disseminação das epidemias
de influenza (COLAVITTI, 2004:59; MONTENEGRO, 1998).
Entretanto, quando a pandemia de espanhola eclodiu em fins de
1918, a comunidade científica não dispunha de nenhuma dessas infor-
mações ou instrumentos para fazer frente à doença. Logo que as primei-
ras notícias sobre a espanhola foram divulgadas, muitos pensaram tratar-

19

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 19 19/6/2008, 23:40


se de uma nova moléstia. Os médicos mobilizados em torno da doença
não souberam o que dizer diante daquele insondável mistério. Um dos
mais importantes patologistas da época, William Henry Welch, recorreu
a uma única palavra para defini-la: peste (CROSBY, 1999:7). No Brasil,
houve quem julgasse os primeiros casos de influenza – manifestados
entre fins de setembro e início de outubro de 1918 – como tendo nature-
za diversa daquela observada na Europa, expondo a incredulidade de
que a velha e conhecida gripe fosse capaz de causar tamanho flagelo.
Além de chamar atenção pela sua dimensão trágica, matando em
menos de cinco meses mais pessoas que os quatro anos de guerra, o
desastre da gripe espanhola ganha maior destaque por ter ocorrido em
um momento marcado pelo discurso triunfalista do saber médico. As
sucessivas conquistas da bacteriologia reforçavam a crença no poder do
homem e da ciência, compondo mais um ato da ideologia do progresso e
da civilização que marcou a sociedade ocidental na segunda metade do
século XIX. A guerra e, ao seu término, a gripe eram como um “apagar
das luzes”, uma inflexão nessa crença ilimitada no homem e nas suas
conquistas.
Essa ideologia do progresso é, também, um elemento fundante da
história de Belo Horizonte. Planejada e edificada na última década do
século XIX, a nova capital mineira seguia os preceitos científicos que
informavam a Higiene: ruas amplas e de traçado retilíneo favorecendo a
circulação do ar e a insolação, rede para o abastecimento de água e
esgotamento, posturas que buscavam normatizar as construções públicas
e particulares e a vida dos cidadãos. Moderna e salubre foram dois adje-
tivos conformadores do imaginário tecido sobre a nova capital de Minas,
um símbolo do progresso e do papel político projetados para o Estado,
como também, da razão, da ciência e da civilização dos mineiros.
Nesse livro, examinamos como se processou o encontro da cidade
“moderna e salubre” com uma doença que parecia reeditar a experiên-
cia da peste medieval. De que forma Belo Horizonte reagiu à ameaça de
devastação promovida pela influenza espanhola e em que medida os
fundamentos da ciência e da Higiene contribuíram para fazer dessa ex-
periência uma história particular? A tentativa de responder essa indaga-
ção inicial levou à proposição de outras questões.
Um problema investigado foi a origem da imagem salubre
construída sobre a capital mineira e qual a sua correspondência com a

20

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 20 19/6/2008, 23:40


experiência cotidiana de seus moradores. Como caracterizar a situação
sanitária de Belo Horizonte no período que antecede a pandemia de
espanhola? As primeiras informações sugeriam que a moléstia não teria
provocado na capital mineira os mesmos estragos verificados nas princi-
pais cidades do país, fazendo crer que as autoridades haviam mantido o
controle da situação. Como foi o reinado da pandemia na cidade e que
conseqüências trouxe para a vida social, econômica e política de seus
cidadãos? Quais respostas foram orquestradas diante da moléstia: públi-
cas, particulares, religiosas e científicas?
O saber médico foi outro campo investigado no intuito de enten-
der e descrever o impacto causado pela influenza. O que sabiam e o que
diziam os médicos sobre a doença? Como reagiram diante de sua amea-
ça? Em que medida a experiência da pandemia de 1918 é capaz de
iluminar conflitos entre as diferentes práticas de cura e o que ela revela a
respeito da autoridade e da proeminência social e política atribuída à
medicina durante as primeiras décadas do século XIX? Como se verá, o
pensamento higienista, que orientou a agenda da saúde pública no sécu-
lo XIX e a construção da capital mineira, era claramente limitado para
fazer frente a uma infecção viral. As conquistas da bacteriologia também
se mostraram incapazes de vencer a ameaça da influenza espanhola.
No campo historiográfico, a percepção das similitudes entre dife-
rentes eventos epidêmicos levou à construção de uma perspectiva que
afirma a existência de diversas recorrências nas reações suscitadas por
essas experiências, constituindo uma estrutura que conformaria a histó-
ria das epidemias – uma verdadeira dramaturgia. Outra forma de abor-
dagem sugere que os eventos epidêmicos seriam marcados por particula-
ridades – dadas pela interação entre o agente da infecção, o homem e o
meio ecológico – e que os diversos fatores em ação durante uma epide-
mia deixariam pouco espaço para generalizações. Assim, outra questão
que se buscou responder nesse estudo é se um evento epidêmico apenas
reproduz reações já vistas em outras ocorrências epidêmicas ou se é
possível apreender algo de novo com essa experiência.
O primeiro capítulo contempla a trajetória da pandemia de influenza
espanhola de 1918, as hipóteses sobre o seu surgimento e as rotas de sua
expansão pelas diversas regiões do mundo e do Brasil; algumas das rea-
ções suscitadas pela moléstia e duas de suas características: o fato de ter
atingido especialmente os adultos jovens e as controvérsias sobre as esta-

21

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 21 19/6/2008, 23:40


tísticas produzidas pela doença. Também são discutidas as perspectivas
analíticas propostas pela historiografia das epidemias, com as aborda-
gens que apontam para uma individualização desses fenômenos e aque-
las que defendem a existência de recorrências que comporiam uma es-
trutura narrativa comum aos eventos epidêmicos.4 A última parte é
dedicada a um breve exame da historiografia da pandemia de 1918,
pontuando os aspectos privilegiados nos estudos sobre a espanhola e
algumas das contribuições que ofereceram à nossa análise.
O segundo capítulo é dedicado ao exame da história da capital
mineira, especialmente da imagem salubre construída sobre ela e que,
em muitos momentos, será acionada na tentativa de diferenciar a trajetó-
ria que a pandemia de espanhola teria desenvolvido na cidade. A primei-
ra parte aborda o papel da higiene e salubridade das cidades na consti-
tuição da saúde pública, chamando a atenção, no caso brasileiro, para o
contexto que relacionava república, modernização e nacionalidade. Além
de configurar uma expressão das disputas políticas evidenciadas com a
instituição do novo regime, a mudança da sede do governo estadual
também refletiu todo um imaginário sobre a cidade, informado pelo pro-
gresso científico e pelos ideais de civilização da segunda metade do sécu-
lo XIX. A parte final aponta como, desde a construção da cidade, muitos
dos pressupostos higiênicos presentes no seu planejamento foram sendo
transgredidos nas décadas que antecederam a espanhola.
O terceiro capítulo apresenta os impactos causados pela pandemia
de espanhola na capital mineira, descrevendo a chegada dos primeiros
casos da moléstia à cidade e o modo como o cotidiano da população foi
alterado em função daquela experiência. O capítulo aborda as reações
iniciais das autoridades sanitárias e as medidas postas em prática para
tentar controlar os prejuízos causados pela influenza. Aponta também as
tensões que perpassaram as opiniões relativas à forma de organização dos
socorros implementada pela Diretoria de Higiene. A insuficiência de re-
cursos e o desaparelhamento público foram compensados por uma rede
de caridade e filantropia que mobilizou parte expressiva da população
belorizontina. Os dados sobre essa mobilização foram usados para o esta-

4
A primeira perspectiva é defendida por CROSBY,1999; para a segunda, cf.:
SLACK, 1991; ROSENBERG, 1985; DELUMEAU, 1996, entre outros.

22

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 22 19/6/2008, 23:40


belecimento de uma geografia social da pandemia que, apesar de ter
atingido todas as camadas da sociedade, teve conseqüências mais visíveis
nos bairros menos favorecidos da cidade. A última parte examina alguns
aspectos da chamada “cultura da epidemia”: o papel da igreja e das
crenças religiosas como instrumentos para enfrentar a moléstia, algumas
das práticas de cura acionadas pela população, as explicações levantadas
para o flagelo e as tentativas de tirar proveito da situação por ela criada.
O capítulo final é dedicado ao exame sobre o conhecimento médi-
co em torno da doença: o que a medicina dizia sobre a influenza, a possi-
bilidade de sua prevenção e qual terapêutica indicava contra a moléstia. A
primeira parte aborda o processo de individualização da influenza – por
muito tempo confundida com outras manifestações mórbidas – e as con-
trovérsias que caracterizaram esse refinamento conceitual. A segunda,
apresenta um pequeno retrospecto de algumas manifestações da moléstia
no Brasil e as opiniões construídas sobre sua natureza e modos de trans-
missão, confrontando-as com o que diziam os manuais médicos do perío-
do. A visão então construída sobre a influenza é um dos fatores que expli-
ca a ausência de ações concretas por parte das autoridades sanitárias
diante da ameaça de invasão da pandemia. Porém, tão logo a moléstia foi
oficialmente reconhecida, as autoridades passaram a aplicar medidas que
visavam limitar o intercurso social – isolamento e quarentena – em contra-
dição com o que afirmavam sobre a possibilidade de controle de sua
transmissão. A terceira parte sugere que essa atitude possa ser explicada
pela posição política dos atores envolvidos e pelas expectativas sociais
geradas em torno de sua ciência e de sua intervenção. Essa sugestão leva
a repensar o conceito de medicalização, divulgado na obra de Michel
Foucault, que informou a perspectiva teórica de alguns pesquisadores
brasileiros, propondo a existência de um projeto de disciplinarização soci-
al levado a cabo pelos médicos em consonância com o Estado (FOUCAULT,
1994; 1987; 1991; 1995).5 São apresentadas também algumas das alter-
nativas curativas acionadas durante a pandemia e as pesquisas que tenta-
vam solucionar a controvérsia sobre o agente causal da moléstia. O exame
sobre o modo como a influenza era percebida pela medicina revelou que
os profissionais brasileiros partilhavam as mesmas opiniões e dúvidas de

5
Entre os autores brasileiros, cf.: COSTA, 1999; LUZ, 1982; MACHADO, 1978.

23

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 23 19/6/2008, 23:40


seus colegas estrangeiros, e que também participaram do processo de
refinamento conceitual da moléstia, levado a cabo pelas investigações bac-
teriológicas durante aquela manifestação da influenza.
A memória da pandemia de gripe espanhola em Belo Horizonte
reproduz o discurso oficial. As fontes levantadas para o período de reina-
do da moléstia na cidade são, na sua maioria, oriundas do Estado: rela-
tórios, estatísticas e a própria imprensa. As lembranças individuais, pre-
sentes em livros de memórias, são mínimas, sugerindo um passado que
se queria esquecer.
Entre os periódicos, foram encontradas apenas duas coleções co-
brindo os acontecimentos que tiveram lugar na cidade nos últimos meses
de 1918: o Minas Gerais, diário oficial do governo estadual, e o Diário de
Minas, órgão do Partido Republicano Mineiro. Outros jornais foram con-
sultados, mas a seriação apresenta grandes lacunas. Apesar do grande
movimento da imprensa mineira nas primeiras décadas do século XX, os
jornais eram, no dizer de um cronista, sementes que não vingavam: “fi-
xos mesmo, que não morriam, só havia dois: O Minas Gerais – porque
órgão oficial, e o Diário de Minas – órgão oficioso, mantido pelo governo
por trás da porta” (ANDRADE, 1982b). Por si só, a seleção dos testemu-
nhos preservados a respeito desse passado vem somar no processo de
construção de uma visão sobre a pandemia – e por que não, da própria
salubridade da cidade – constituído pelas autoridades do estado.
Não obstante, os periódicos também deixam pistas para se inves-
tigar outras interpretações além da oficial. A presença da pandemia em
praticamente todas as seções dos jornais – entre elas, a crônica social e
política, as notas relativas à economia, a seção sobre festas e diversões,
os classificados, o obituário – e as sutis mudanças de tom nas reporta-
gens sobre o avanço da influenza pela cidade sugerem uma realidade um
tanto diversa daquela propalada pelas autoridades públicas. As notas
sobre a mobilização da população em torno do socorro às vítimas possibi-
litam avaliar o impacto social da doença, assim como o discurso salubre
construído sobre a capital mineira. As peças publicitárias remetem às
percepções sociais sobre a doença e a cura, à difusão das proposições da
ciência e aos embates da medicina com outras práticas de cuidados com
o corpo e a saúde.
Outro importante conjunto documental usado para analisar a
pandemia de influenza são os relatórios produzidos pelas autoridades

24

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 24 19/6/2008, 23:40


sanitárias estaduais e municipais. Além de informarem as medidas pos-
tas em prática e as opiniões oficiais relativas à moléstia, esses relatórios
também oferecem a possibilidade de acompanhar a construção do dis-
curso da salubridade sobre a capital mineira, expondo, por outro lado,
dados que permitem questioná-la, revelando que os benefícios proporci-
onados pela engenharia e a Higiene estiveram restritos a uma determina-
da região da cidade. Outro aspecto que iluminam é a permanência da
associação entre pobreza, sujeira e doença, tão cara ao sanitarismo do
século XIX.
Os Anais do Congresso Mineiro são fontes privilegiadas para acom-
panhar os embates políticos em torno da mudança da sede do governo e
para mapear alguns dos elementos que conformavam o ideal urbano e de
civilização. Esses elementos também são revelados por meio do conjunto
documental produzido pela Comissão de Estudos e pela Comissão Cons-
trutora da Nova Capital – relatórios, comunicados, cartas, plantas e pro-
jetos entre outros.
As memórias falam dos hábitos e dos lugares e ajudam a compor
o cenário da cidade. Da pandemia dizem pouco, algumas vezes reprodu-
zindo o discurso oficial sobre a atuação do poder público diante do flagelo
da espanhola. O relato de Pedro Nava, mesmo tratando da experiência
da pandemia na cidade do Rio de Janeiro, serve como um exemplo por
meio do qual se torna mais fácil avaliar seu impacto na vida privada.
Periódicos e manuais médicos informam sobre os conhecimentos,
os debates e os limites da medicina das primeiras décadas do século XX,
não apenas aqueles relativos à influenza, mas, também, sobre as teorias –
especialmente a bacteriologia – e a terapêutica. Sobre a influenza de 1918
no Brasil, dois textos são fontes imprescindíveis para o pesquisador: o
livro de Moncorvo Filho – O pandemônio de 1918, publicado em 1924 –
e a compilação de documentos, artigos e estatísticas, elaborada por Carlos
Luiz Meyer e Joaquim Rabello Teixeira – A gripe epidêmica no Brasil e
especialmente em São Paulo, publicado em 1920 (MONCORVO FILHO,
1924; MEYER, 1920). Além de acompanharem a chegada e a expansão
da pandemia nas principais cidades do Brasil, trazem ainda artigos divul-
gados pela imprensa, opiniões médicas, documentos produzidos por auto-
ridades sanitárias e estatísticas para as diversas regiões do país.

25

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 25 19/6/2008, 23:40


Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 26 19/6/2008, 23:40
CAPÍTULO 1

A gripe espanhola de 1918

Nos primeiros dias de agosto de 1918, a imprensa da capital de


Minas Gerais noticiava as homenagens rendidas aos mineiros integrantes
da comissão de médicos brasileiros que se dirigia para a França, a fim de
prestar serviços nos campos de batalha da primeira grande guerra do
século. Faziam parte da comissão os doutores Borges da Costa e Renato
Machado, professores da Faculdade de Medicina, os assistentes de en-
fermaria Tavares de Lacerda e Castro Silva e o chefe de laboratório da
Santa Casa de Misericórdia, Adelmo Lódi.
As manifestações mobilizaram os membros da comunidade médi-
ca e a população em geral. Fora programado pelos membros da Faculda-
de um almoço de despedida em afamado hotel da capital, além da inau-
guração de uma placa de prata no salão de honra da congregação trazendo
o nome de todos os participantes da comissão mineira. À noite, saiu o
“povo” até à casa do Dr. Borges da Costa, a fim de saudar os “destemi-
dos patriotas”, e os membros do Club Acadêmico fizeram um discurso de
despedida. Na manhã seguinte, a comissão mineira partia para o Rio de
Janeiro, integrando-se à missão brasileira.1
Passados quase dois meses desses acontecimentos, novas notícias
davam conta de uma moléstia fulminante que atingira a esquadra brasi-
leira estacionada no porto africano de Dakar. O “terrível morbus”, que se
imaginava originário da Espanha, havia feito milhares de vítimas no exér-
cito e marinha daquele país, propagando-se para as regiões vizinhas. Os
jornais da capital reproduziam as notícias divulgadas pela imprensa cari-
oca, que davam conta do falecimento de três membros da missão médica

1
Diário de Minas, 2 e 3 de agosto de 1918, p. 1.

27

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 27 19/6/2008, 23:40


brasileira. Entre os diversos convalescentes deixados no porto de Oran,
estava o Dr. Borges da Costa.2
As informações então divulgadas enfatizavam a incapacidade da
medicina diante do flagelo que começava a alarmar os brasileiros: “por
mais esforços que faça a ciência médica, ainda não foi descoberto um
remédio bastante eficaz para combatê-la, mesmo para evitá-la”.3 A partir
desse momento, a imprensa e a população da capital passaram a acom-
panhar a expansão da maior e mais devastadora pandemia ocorrida até
então na história da humanidade.4
Conforme o relato de marinheiros que regressavam convalescen-
tes ao Brasil a bordo do Sâmara no final de outubro, a epidemia havia
começado pelo Belmonte, alastrando-se pelos demais navios. No dia 6 de
setembro, a tripulação do Bahia apresentava os primeiros sintomas da
doença. Três dias depois, registrava-se o primeiro óbito. Entre os mem-
bros da missão médica que viajava a bordo do La Plata, o primeiro caso
foi registrado no dia 7 de setembro. Até o dia 18, cerca de 55 brasileiros
haviam morrido nas unidades da marinha na região de Dakar
(RODRIGUES, 1920:505).5

2
Diário de Minas, 24 de setembro de 1918, p. 1. Cf.: MARTINS, 2000:102.
3
Diário de Minas, 24 de setembro de 1918, p. 1.
4
O termo pandemia define o caráter amplamente disseminado alcançado por uma
determinada enfermidade. (HOUAISS, 2001:2116). Atualmente, a Virologia esta-
belece uma distinção mais precisa para o uso dos termos epidemia e pandemia,
relacionando-as com as variações antigênicas dos vírus, que afetam a capacidade
imunológica dos infectados. As novas epidemias seriam eventos decorrentes de
uma mutação nos genes das duas glicoproteínas que revestem o envelope viral
(genetic drift). Por seu turno, as pandemias decorreriam de uma recombinação
desses mesmos genes (genetic shift) (KILBOURNE, 1991). Karl David Patterson
define a pandemia como “uma eclosão generalizada com alta morbidade, que se
difunde rapidamente em um padrão preciso como se tivesse uma origem única, e
que aparece aos observadores contemporâneos como sendo uma epidemia nova e
imprevista (PATTERSON, 1986:3-4).
5
As informações sobre os primeiros casos de vítimas fatais variam. Segundo Pedro
Nava, os primeiros óbitos seriam de membros da missão médica brasileira a bordo
do La Plata, quando este chegou a Freetown, um protetorado britânico em Serra
Leoa (NAVA, 2001). Freetown é apontado como um dos três lugares onde uma
mutação do vírus fez explodir a pandemia de influenza de virulência sem prece-
dentes em toda a história da humanidade (CROSBY, 1999:37).

28

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 28 19/6/2008, 23:40


“Os doentes, além da febre, botavam, às vezes, sangue pela boca e pelo
nariz.
Outros eram atacados no cérebro, como aconteceu com o dr. Cotrim,
que morreu louco no hospital.
Foram muitos para o isolamento de Dakar, mas a sua lotação era de
apenas 400 pessoas e ali já existiam cerca de 800 (...)
Não havia caixões suficientes, internando-se (sic) muitos marinheiros em
macas.
Houve quadros tétricos e dolorosos. De uma feita, reuniram-se tantos
cadáveres, que foi preciso enterrá-los aos 2 e 3 na mesma sepultura”.
(MEYER e TEIXEIRA, 1920:505)
A imagem produzida pelo relato dos marinheiros prognosticava o
que, em poucos dias, estaria ocorrendo em diversas cidades brasileiras.
Tão logo tocou o território brasileiro, a gripe espanhola espalhou-se como
rastilho de pólvora.
Doença de natureza viral, impossível de ser positivamente
diagnosticada e enfrentada com os recursos disponíveis naquele momen-
to, a gripe espanhola se tornaria um dos principais flagelos da história da
medicina. À semelhança da peste – durante a Idade Média – a influenza
de 1918 impôs o caos à vida cotidiana, desorganizando crenças, ritos e
práticas. A doença também abalou as estruturas administrativas voltadas
para a saúde pública e colocou em questão a imagem triunfante trilhada
pela bacteriologia, que, desde a segunda metade do século XIX, revolu-
cionava o conhecimento e a prática médica com a proposição de que a
determinação causal das doenças representava a solução dos problemas
relativos à saúde coletiva.
Neste capítulo, é apresentado um breve histórico sobre o surgimento
e a expansão da pandemia de 1918, no mundo e no Brasil, além das
reações por ela suscitadas. Também se examina algumas questões colo-
cadas pela historiografia das epidemias, em especial a idéia de que os
eventos epidêmicos apresentam uma dramaturgia específica, que seria
possível identificar mesmo diante de contextos e moléstias distintos. Na
última parte, é apresentada uma descrição da bibliografia dedicada à
influenza de 1918, apontando sua contribuição para este trabalho.

29

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 29 19/6/2008, 23:40


Origem e expansão da influenza espanhola de 1918

A influenza espanhola fez sua aparição nefanda no segundo se-


mestre de 1918, durante os últimos meses da I Grande Guerra Mundi-
al.6 À medida que o conflito caminhava para seu fim, o mundo se viu às
voltas com a nova ameaça. Em menos de um mês, a epidemia promove-
ria uma verdadeira calamidade. A forma abrupta e fulminante como a
doença atacava suas vítimas justificava a dúvida de que fosse a tão fami-
liar influenza. Assim, o diagnóstico nos primeiros dias de setembro de
1918 oscilava entre broncopneumonia, infecção respiratória epidêmica,
dengue, meningite cerobroespinal e até cólera ou botulismo. Aqueles
que se referiam à doença pelo termo “gripe” insistiam em usá-lo entre
aspas (KOLATA, 2000:6). Desde sua manifestação e até a atualidade,
diversos pesquisadores buscaram entender o que foi e como surgiu
pandemia tão ampla e letal. Porém, a determinação sobre como e onde
teria ocorrido a mutação que produziu o vírus da influenza é algo que
suscita controvérsias.
Entre os meses de março e abril de 1918, uma epidemia gripal
havia irrompido nos Estados Unidos, disseminando-se em seguida pela
Europa, porém despertou pouca atenção entre as autoridades e a popu-
lação. Para justificar essa indiferença, Alfred Crosby – um dos principais
estudiosos sobre a história da pandemia de 1918 – argumenta ter sido
essa uma manifestação amena da doença, além de ser a gripe moléstia
extremamente familiar, de ocorrência anual. Segundo o autor, houve um
baixo número de óbitos em relação ao de doentes e muitos médicos
atribuíam essas mortes à pneumonia, que, como diz, “era um modo
perfeitamente normal de se morrer antes do advento da sulfa e da peni-
cilina, especialmente no inverno e na primavera” (CROSBY, 1999:18).
Além disso, outros acontecimentos mobilizavam as atenções na-
queles dias. A retirada das tropas russas do campo de batalha estava
fortalecendo as posições dos alemães no front ocidental. França e Ingla-
terra aguardavam impacientes a chegada do reforço americano para con-

6
A onda letal da influenza teria surgido em agosto de 1918, e o armistício pondo fim
à guerra seria assinado em 11 de novembro do mesmo ano (Cf.: CROSBY, 1999).

30

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 30 19/6/2008, 23:40


ter essa ofensiva. As notícias da guerra e dos seus soldados absorviam o
interesse daqueles que ficavam em solo americano e, como afirma Crosby,
“para os médicos e a população leiga, a guerra era muito mais interes-
sante que a influenza” (CROSBY, 1999:28).
Ao lado das informações sobre os campos de batalha, havia ainda
notícias sobre outras doenças epidêmicas, como cólera, tuberculose, tifo
e disenteria que, em vista das ameaças que até então causavam à socie-
dade, mobilizavam as atenções ganhando mais destaque que a velha e
conhecida influenza. Como afirma Bertolli Filho, a multiplicidade de
moléstias que flagelavam a Europa “determinou que a epidemia gripal,
em sua primeira fase, passasse desapercebida, tanto no noticiário sobre a
guerra quanto nas observações médicas feitas por clínicos militares”
(BERTOLLI FILHO, 1986.)
Nos meses seguintes a essa primeira aparição, a gripe atravessaria
os continentes. Ao retornar ao território americano, em agosto de 1918,
a doença tinha se tornado muito mais perigosa. Gina Kolata afirma que a
primeira investida da influenza foi algo banal, logo esquecido, mas, quando
voltou na segunda onda, havia se transformado em “algo monstruoso,
parecendo-se muito pouco com o que é comumente considerado gripe”.
No primeiro semestre de 1918, a doença havia infectado milhares de
indivíduos e, apesar de considerada branda, havia matado aproximada-
mente 10 mil pessoas. Em sua próxima investida, a partir de agosto,
mataria milhões (KOLATA, 2000:8).
Segundo alguns autores, a pandemia de influenza espanhola teria
superado no número de infectados e na sua letalidade qualquer outro
acontecimento até sua aparição: “Nada – nem infecção, nem guerra,
nem fome – tinha jamais matado tantos em tão pouco tempo” (CROSBY,
1999:311). “Ela se tornou a mais devastadora doença que o homem
conheceu, superando a peste bubônica do século XIV, a varíola no sécu-
lo XVII, e o vírus da imunodeficiência humana/pandemia de AIDS que
acontece atualmente” (DANIELS, 1998). A gripe espanhola teria sido
“o maior holocausto médico da história” (GALISHOFF, 1969: 246).
Estudos epidemiológicos mencionam a existência de três ondas
durante a pandemia de 1918. A primeira, classificada como branda e
conhecida como onda da primavera, teria surgido em março no meio-
oeste americano, difundindo-se para a Europa, atingindo o norte da Áfri-
ca, Índia, China e Austrália em julho. A segunda onda, que sobreveio em

31

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 31 19/6/2008, 23:40


fins de agosto, foi fruto de uma mutação viral altamente letal, tendo se
espalhado rapidamente através de todo o mundo. Ao contrário de sua
predecessora, geraria medo e angústia, concentrando as atenções das
autoridades públicas, científicas e da sociedade em geral. Uma terceira
onda foi registrada entre os meses de janeiro e abril de 1919, no entanto
bem mais suave e pouco definida em relação à anterior (PATTERSON e
PYLE, 1991).7
Partindo dos Estados Unidos, a primeira onda chegaria à Europa
no início de abril, junto com as tropas americanas desembarcadas na
França. Em maio, a influenza era relatada em Portugal e, no mês seguin-
te, na Alemanha, Escandinávia, Inglaterra e Polônia. Em maio, chegaria à
Índia, através de passageiros de navios aportados em Bombaim. Em ju-
nho, a doença estava presente na Austrália, Nova Zelândia e na Indonésia
(PATTERSON e PYLE, 1991). Patterson e Pyle chamam a atenção para
a “surpreendente precocidade” de dados relatando a influenza na China,
o que poderia ser um indício da presença de transportes rápidos no Pací-
fico vindos dos Estados Unidos ou, então, a possibilidade do surgimento
de uma epidemia local independente (PATTERSON e PYLE, 1991:8).
Pesquisas mais recentes antecipam o surgimento da primeira onda.
Segundo Gina Kolata, um dos primeiros lugares a relatar casos de influenza
teria sido San Sebastian, cidade turística da costa setentrional da Espanha,
em fevereiro de 1918. Apesar de branda, a gripe apresentava-se alta-
mente contagiosa. Em abril, já parecia espalhar-se por toda parte,
enfermando cerca de oito milhões de espanhóis (KOLATA, 2000:9).8
O fato de a influenza ter sido inicialmente tomada como “um mal
de menor importância” em todos os lugares, provavelmente significou
que manifestações anteriores da doença ficassem sem registros. Talvez,
por essa razão, Gina Kolata afirme que “os primeiros traços da primeira

7
Os termos utilizados na designação das duas ondas de influenza em 1918 tomam
por referência a ocorrência das estações do hemisfério norte.
8
Karl Patterson e Gerald Pyle afirmam a existência de teorias que propõem que a
onda da primavera tenha surgido na China, chegando aos Estados Unidos e França
através dos trabalhadores imigrantes chineses. No entanto, apontam não haver evi-
dências que sustentem essa interpretação, sendo sua origem provável a propaganda
de guerra alemã que, erroneamente, teria associado a influenza com a peste bubô-
nica, presente em algumas regiões daquele país (PATTERSON e PYLE, 1991:8).

32

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 32 19/6/2008, 23:40


onda da gripe de 1918” estejam “perdidos no tempo” (KOLATA, 2000:9-
10). Uma outra explicação para o silêncio em relação aos casos da doen-
ça estaria na própria situação de guerra, que impunha uma censura so-
bre as condições sanitárias, uma vez que elas também integravam o
cômputo do poderio militar de uma nação. A censura também surge
como justificativa para o nome dado à pandemia. Como a Espanha ainda
mantinha neutralidade em relação ao conflito mundial, a gripe não teria
sido objeto de segredo, como em outros lugares. Assim, mesmo tendo
atingido outros países durante a primeira onda, em quase todo o mundo
a doença passaria a ser chamada de gripe espanhola (PALMER e RICE,
1992:560; PATTERSON and PYLE, 1991:7; KOLATA, 2000:10).
Segundo Alfred Crosby, os primeiros casos da segunda onda de
influenza surgiram no final de agosto de 1918, em pontos diversos do
planeta. Em uma mesma semana, uma epidemia de virulência desconhe-
cida explodiu nos portos de Freetown, em Serra Leoa, Brest, na França,
e Boston, nos Estados Unidos, localizados a milhas de distância um do
outro. Como foi possível que lugares tão distantes registrassem uma eclosão
epidêmica simultânea é algo difícil de ser respondido.
Patterson e Pyle acreditam que a hipótese mais provável é a de que
uma mutação ou recombinação genética do vírus tenha ocorrido no oeste
francês, ponto de desembarque das tropas aliadas sendo rapidamente
transportado para os Estados Unidos e a África (PATTERSON e PYLE,
1991:8). Para Crosby, no entanto, a possibilidade de que tais manifesta-
ções fossem resultado de uma única mutação do vírus, ocorrida em um
dos portos e transportada simultaneamente para os outros dois, é uma
hipótese pouco provável. Porém, ele também qualifica de “extremamente
improvável” a idéia de que essas manifestações pudessem representar
três mutações virais diferentes e concomitantes (CROSBY, 1999:37).
Com a entrada dos Estados Unidos no conflito mundial, o porto de
Brest, maior ancoradouro da costa ocidental francesa, havia se tornado o
principal ponto de desembarque dos soldados americanos na Europa. A
movimentação de tropas na região era grande, congregando tanto solda-
dos americanos como de outras nacionalidades. Os militares que passa-
vam por Brest, em fins de agosto e início de setembro, levariam a epide-
mia para outras regiões européias, espalhando-a pelas cidades do
Mediterrâneo, pelo Mar do Norte e pelas montanhas e vales do interior
do continente.

33

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 33 19/6/2008, 23:40


Chegando à Inglaterra no mês de setembro, através de Brest, a
doença difundiu-se para a Escócia e Escandinávia. Ainda em setembro,
partindo do sul da França, a segunda onda de influenza tocou a Itália,
Sicília, Grécia, Espanha e Portugal. Nesse mesmo mês, navios proceden-
tes da costa africana se encarregariam de difundir a moléstia em territó-
rio brasileiro. Em outubro, diversas cidades da Europa central reporta-
ram a existência da epidemia e, no final daquele mês, a doença atingia o
leste europeu, expandindo-se pelo movimento de tropas, prisioneiros e
refugiados. As rotas do avanço da influenza nessa região, no entanto, são
menos claras (PATTERSON e PYLE, 1991:10).
Essa segunda onda da gripe seria notificada em Boston, no dia 27
de agosto, quando dois marinheiros deram entrada em uma enfermaria
militar com sintomas de gripe. Em 3 de setembro, uma parada militar
levava às ruas da cidade cerca de 4.000 soldados e, no dia seguinte, outro
evento reunia milhares de militares e civis contribuindo, sem dúvida, para
a disseminação da doença. Três dias depois, eram registrados os primeiros
óbitos oficialmente atribuídos à influenza (CROSBY, 1999:39-40).
A intensa circulação das tropas e o movimento migratório – verificado
no período anterior e durante a guerra – fizeram da influenza espanhola
uma calamidade mundial. Arquipélagos distantes, como a Oceania, também
não foram poupados, e a influenza irrompeu ainda a bordo dos navios que
singravam os oceanos. A Austrália, único baluarte da resistência, mantido
por uma vigorosa quarentena nos últimos meses de 1918, acabaria
sucumbindo à gripe em janeiro de 1919 (PATTERSON e PYLE, 1991:11).
Dois aspectos chamam a atenção na pandemia de 1918. O pri-
meiro, diz respeito ao grupo de indivíduos que mais vítimas pagou à
moléstia. A influenza espanhola matou mais adultos jovens do que qual-
quer outra pandemia de gripe havia matado antes. Se durante outras
manifestações da doença a curva de mortalidade apresentava o aspecto
de “U”, concentrando suas vítimas entre os dois grupos extremos da
população – crianças e idosos – a curva da pandemia de 1918 apresen-
tava a forma de um “W”, com um número anormal de vítimas entre os
jovens da faixa de 20 a 40 anos. A mesma característica é observada nos
relatos produzidos em diversos lugares atacados pela doença (Ver
GALISHOFF, 1969:257; CROSBY, 1999:21-25).
O segundo, refere-se às estatísticas sobre a pandemia. Os dados
oficiais afirmam que a influenza teria matado cerca de 20 milhões de

34

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 34 19/6/2008, 23:40


pessoas em todo o mundo em 1918. Essas estatísticas, porém, são con-
testadas por diversos autores, entre outros o próprio Crosby, que estima
que os óbitos possam ter alcançado cerca de 30 milhões de pessoas.
Patterson e Pyle apresentam diversas justificativas para uma estimativa
maior de vítimas: a necessidade de incluir-se entre esses dados complica-
ções decorrentes da gripe; as dificuldades de diagnóstico e de atribuição
segura da causa mortis, o que teria levado a identificar como óbitos devi-
dos à pneumonia, diabetes e doenças cardiovasculares ou renais, casos
nos quais a influenza era a causa imediata; a censura do tempo de guer-
ra, que controlava e, muitas vezes, impedia a divulgação de dados; a
desorganização dos sistemas de registro oficial, provocados pela situação
de guerra, como por exemplo na Alemanha, Áustria-Hungria e Rússia; o
fato de, nos países pobres, onde se havia verificado as mais altas taxas de
mortalidade e onde as metodologias de coleta de dados eram inadequa-
das ou insuficientes, os dados oficiais refletirem apenas conjecturas.9
Baseando-se em estimativas referentes aos diferentes continentes,
Patterson e Pyle apontam que a mortalidade da pandemia de 1918 pos-
sa ter atingido ou mesmo ultrapassado aqueles 30 milhões de pessoas.
Para eles, a experiência de 1918 revelava, de forma dramática, que o
mundo havia se tornado uma única unidade epidemiológica. A nova cepa
do vírus foi responsável por uma surpreendente perda de vidas, a uma
taxa sem precedentes nos tempos modernos para qualquer doença
(PATTERSON e PYLE, 1991:19-20).
“Mas os números brutos, não conseguem transmitir as cenas de horror
e sofrimento que varreram o mundo em 1918, que se tornaram parte da
vida cotidiana de cada nação, nas maiores cidades e nos lugarejos mais
remotos”. (KOLATA, 2000:7)

9
Locais onde o Estado era não apenas ineficiente no atendimento à saúde, mas no
próprio conhecimento sobre sua população (Cf. PATTERSON e PYLE, 1991:13).

35

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 35 19/6/2008, 23:40


A espanhola no Brasil: rotas, impactos e respostas

A influenza desembarcou em território brasileiro no mês de se-


tembro, por meio de navios que ancoraram em portos do nordeste e do
Rio de Janeiro. No entanto, é difícil afirmar com precisão onde a pandemia
se manifestou inicialmente, uma vez que os dados divulgados pelos jor-
nais e pelos responsáveis pelo serviço de higiene nos diversos estados
brasileiros são contraditórios, deixando mais dúvidas do que certezas. É
provável que o Recife, primeiro porto de atracamento para a maioria das
embarcações oriundas das regiões européias e africanas mais atacadas,
tenha sido também o primeiro porto atingido pela moléstia.
Conforme as declarações prestadas pelo então diretor de higiene
de Pernambuco, a influenza teria chegado no Recife no dia 25 de setem-
bro, quando embarcações de “procedência suspeita”, em especial de
Dakar, tocaram o porto deixando em terra diversos doentes “que se
internaram em casas de saúde, hospitais, ou se recolheram em casas
particulares” (MEYER e TEIXEIRA, 1920:592).10 Ainda segundo ele,
os trabalhadores das docas e da Recebedoria de Rendas, em contato
direto com as embarcações, teriam disseminado o mal em diferentes
bairros da cidade. Dois dias depois, a 27 de setembro, circulava no Rio
de Janeiro a notícia de que quatro tripulantes de um navio proveniente
de Dakar achavam-se internados no hospital de isolamento da capital
pernambucana.11
Porém, outros dados fazem crer que a influenza tenha chegado
um pouco antes à cidade do Recife. No relato contido em carta dirigida
ao jornal carioca Gazeta de Notícias, o inspetor de profilaxia do porto do
Rio de Janeiro, Dr. Jayme Silvado, afirmava ter aportado na cidade, no
dia 15 de setembro, o navio Demerara, procedente de Liverpool, com
escalas em Lisboa, Dakar e Recife. A embarcação trazia “carta de saúde
limpa” e o atestado do médico de bordo declarando cinco óbitos durante
a travessia, sendo todos por moléstias comuns. Na visita realizada pelo

10
Nesse momento, já era de conhecimento público a situação sanitária da região de
Dakar, onde a moléstia, ainda indefinida, havia atacado a missão brasileira.
11
O País, 27 de setembro de 1918, citado in BRITO, 1997.

36

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 36 19/6/2008, 23:40


inspetor de saúde, foram encontrados dois doentes na enfermaria, um
deles com bronco-penumonia gripal. Considerando não haver motivo
para interditar o navio, o inspetor deu então “livre prática, expressa pelo
arrear da bandeira de quarentena”, tendo o capitão do navio liberdade
para atracar no cais.12
Ainda sobre os doentes do Demerara, o Correio da Manhã publi-
cava, em 23 de setembro, declaração do diretor geral da saúde pública
do Rio de Janeiro, Dr. Carlos Seidl, na qual afirmava não haver até
aquela data casos suspeitos de influenza naquela cidade. Conforme di-
zia, dias antes, havia realizado “pessoalmente” uma inspeção na embar-
cação, examinando livros de registro e conferenciado com o médico do
navio. Seidl ainda informava que, apesar de todas as condições adversas
de viagem, entre os 562 passageiros de terceira classe poucos haviam
enfermado e somente cinco haviam falecido, sendo apenas um com o
diagnóstico de influenza. “Desta vez – dizia – nada houve” (apud MEYER
E TEIXEIRA, 1920:405).
Os relatos de Jayme Silvado e de Carlos Seidl sobre os doentes do
Demerara sugerem que a chegada da influenza no nordeste brasileiro
havia antecedido em vários dias a data divulgada pelas autoridades do
Recife. De modo semelhante ao que se viu em relação à primeira onda da
doença nos Estados Unidos e Europa, o fato de ser a gripe uma moléstia
bastante conhecida e de baixa letalidade talvez explique a pouca importância
dada à doença, não havendo preocupação com a notificação dos casos
chegados aos portos do país já nas primeiras semanas de setembro.
Como veremos no capítulo 4, de forma semelhante a seus colegas
estrangeiros, a classe médica brasileira partilhava a visão de que a influenza
era doença benigna, de freqüência anual e contra a qual pouco havia a
ser feito. O Dr. Olympio Fonseca, secretário geral da Academia de Medi-
cina do Rio de Janeiro, afirmava que durante a última epidemia de gripe,
ocorrida em 1889, raros foram os doentes que pagaram com a vida,
sendo estes, especialmente, “aqueles cuja moléstia se agrava pela idade

12
Essa carta foi publicada pelo jornal A Gazeta de Notícias, no dia 21 de outubro,
como resposta às notícias divulgadas pelo mesmo periódico afirmando ter o capitão
do Demerera entrado na cidade desacatando as ordens em contrário do inspetor de
saúde daquele porto (MEYER e TEIXEIRA, 1929:430-431).

37

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 37 19/6/2008, 23:40


adiantada ou por falta de resistência de um organismo já combalido”.
Segundo ele, a doença nos era familiar, “talvez mesmo familiar demais,
e por isso a atual epidemia hespanhola não nos traz grandes temores”
(MEYER E TEIXEIRA, 1920:407).
A mesma familiaridade era sublinhada por Carlos Arthur Moncorvo
Filho, diretor do Instituto de Proteção e Assistência à Infância do Rio de
Janeiro. Segundo ele, a gripe acometia, “surda e insidiosamente”, todas
as camadas sociais, vindo
“(...) pela sua constância e pela sua freqüência, habituando os médicos
e até o povo a considerá-la uma coisa inerente ao nosso meio, não se a
estranhando mais e registrando-se como fatos vulgares: os resfriamentos
(indevidamente cognominados pelo povo de constipações), as supressões
de transpiração, as anginas, as bronquites, as pneumonias, etc, outra
causa não reconhecendo senão a gripe. (MONCORVO FILHO, 1924:26)
Apesar dessa visão difundida da gripe como uma doença benigna,
logo ela apresentaria outro aspecto, fazendo surgir complicações bronco-
pulmonares, elevando a mortalidade geral e causando pânico entre a
população. Segundo o diretor de higiene de Pernambuco, o medo gera-
do pela moléstia levara a polícia a atestar, sob a rubrica de
“thanatomorbia”, cerca de 642 dos óbitos totais ocorridos no mês de
outubro.13 A pandemia devastou os hospitais de Recife, vitimando aque-
les que se achavam internados de tal forma que na maternidade local não
restou parturiente viva. Entre a população civil gozando de melhor saú-
de, a mortalidade teria sido mais reduzida. Os óbitos atribuídos à gripe
chegaram a 1.893, e o diretor de higiene estimava em cerca de 120.000
os doentes no transcurso da pandemia.
No Rio de Janeiro, após a chegada do Demerara e das afirmações
tranqüilizadoras divulgadas pelos responsáveis pela saúde pública da
capital, foi noticiada a morte de uma das passageiras daquela embarca-
ção, ocorrida no Hospital da Gambôa, região portuária da cidade. A
desinfecção do lugar e a vigilância do domicílio onde se hospedara a
mulher pareciam ter tranqüilizado, ao menos, o diretor geral de saúde
pública Carlos Seidl (MONCORVO FILHO, 1924:40).

13
“Thanatomorbia”, literalmente doença da morte, ou medo doentio da morte
(MEYER e TEIXEIRA, 1920:593).

38

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 38 19/6/2008, 23:40


Considerando a natureza infecciosa da moléstia, Seidl recomen-
dou aos portos da capital federal e aos demais portos do país uma
“profilaxia indeterminada, (...) visando a tudo quanto pudesse ser motivo
de transmissão mórbida” (SEIDL, 1918:435). Em ofícios dirigidos ao
governo, solicitava a aquisição de aparelhamento sanitário flutuante e a
reforma do lazareto. Além da espanhola, Seidl tinha os olhos voltados
para a possibilidade do ataque de outras moléstias:
“Ocorre ponderar ainda que, mesmo no caso de passarmos incólumes
perante o perigo atual da mal definida epidemia de Dakar, que tanto
preocupa a opinião pública neste momento, continuaremos sob a amea-
ça das epidemias de cólera morbus e tifo exantemático que têm sido
assinaladas em cidades e zonas dos países beligerantes e neutros, conosco
relacionados comercialmente”. (SEIDL, 1918:435)
Chegada à capital do país, a influenza se expandiria rapidamente,
desde a região central até aos subúrbios, causando pânico e alterando
por completo a vida da cidade. Os relatos sobre a espanhola no Rio de
Janeiro apontam que essa foi a cidade que maior tributo pagou à pandemia
no Brasil. Conforme os cálculos apresentados pela Diretoria Geral da
Saúde Pública, apenas nos meses de novembro e dezembro, a doença
teria feito cerca de 11.953 óbitos, num total geral de 16.996 mortos na
capital.14 Quando se fala da espanhola, porém, os números serão sempre
objeto de contestação. Cláudio Bertolli Filho afirma que “nunca houve
condições ou mesmo interesse em se contar as mortes causadas pela
gripe de 1918”.15

14
Dados de Ofício dirigido pelo Dr. Teófilo Torres, diretor geral da saúde pública ao
Ministro da Justiça, reproduzindo os dados apresentados pelo Dr. Sampaio Vianna,
médico demografista da mesma Diretoria In: MEYER E TEIXEIRA, 1920:496. A
descrição sobre a pandemia no Rio de Janeiro pode ser acompanhada através do
Minas Gerais, que reproduzia diariamente as notícias divulgadas pela imprensa cari-
oca (Cf. também: MONCORVO FILHO, 1924; BRITO, 1997, e GOULART, 2003).
15
Bertolli Filho apresenta um total de 12.338 óbitos de espanholados para o perí-
odo integral da pandemia na cidade do Rio de Janeiro (BERTOLLI FILHO, 1986:97
e 103). Confrontando relatórios oficiais, cartas pessoais e notas jornalísticas compi-
ladas no relatório do Serviço Sanitário de São Paulo de 1920, Bertolli Filho aponta
a cifra total de 35.240 óbitos gripais em 12 estados brasileiros, dado, segundo ele,
também certamente subestimado.

39

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 39 19/6/2008, 23:40


Durante o mês de outubro, a população carioca pereceu sob a
moléstia. As primeiras informações referiam-se à expansão da gripe nos
quartéis do exército, ficando comprometidos os exercícios militares. Entre
as medidas de controle tomadas, estava a desinfecção dos prédios. Mas,
apesar dos casos notificados na Vila Militar já subirem a cerca de 500, e
da chegada contínua de novos doentes, as autoridades militares informavam
não haver, até então, doentes graves, sendo os sintomas todos benignos.16
Nos dias seguintes, a epidemia ia alastrando-se mais e mais, atin-
gindo também a população civil. Ao mesmo tempo em que se expandia
pelo Rio de Janeiro, a espanhola lançava seus braços ao outro lado da
baía, atingindo a população de Niterói e cidades vizinhas. No dia 2 de
outubro, o jornal O Fluminense informava que, a fim de verificar denún-
cias recebidas pela Inspetoria de Higiene e Saúde Pública do Estado, um
médico daquela repartição havia constatado a existência de casos clíni-
cos de gripe, “sem gravidade”, em São Gonçalo, “sendo que um dos
doentes é pessoa recém-chegada dos portos do norte do Brasil” (apud
MEYER E TEIXEIRA, 1920:599).
O inspetor de higiene declarava terem sido tomadas rigorosas me-
didas de profilaxia, aguardando-se apenas o restabelecimento dos doen-
tes para proceder a desinfecção do lugar, reafirmando ser satisfatório o
estado sanitário de Niterói e São Gonçalo. Porém, no dia 8 de outubro,
era divulgada a presença de uma epidemia entre os trabalhadores das
oficinas da firma Lage & Irmãos, na Ilha do Viana, e que tais casos já
teriam se irradiado pela cidade, atacando parte da população operária
(MEYER E TEIXEIRA, 1920:599).
No final de outubro e início de novembro, as autoridades públicas
e jornais apontavam sinais do declínio da doença na capital federal. Aban-
donando o centro da cidade, a influenza expandia-se pelos subúrbios,
chegando às áreas rurais.17 No dia 7 de novembro, o Jornal do Comércio
divulgava um artigo chamando a atenção para a necessidade de se dirigir
os esforços para o interior do país:

16
Minas Gerais, 11 de outubro de 1918, p. 3.
17
Sobre o declínio no Rio de Janeiro e as novas áreas de expansão da doença ver
Minas Gerais, 25 de outubro de 1918, p. 6; 26 de outubro, p. 2; 3 de novembro,
p. 5 e 8 de novembro de 1918, p. 1-2.

40

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 40 19/6/2008, 23:40


“(...) voltando os nossos pensamentos de misericórdia para as choças
perdidas dos nossos sertões, de onde nem queixumes nos chegam por-
que não permitem o isolamento em que se encontram (...). É esse o
motivo a mais para intensificarmos os nossos movimentos para que, sem
prejuízo da colaboração dos particulares no oferecimento de recursos,
lance mão o Governo de abundantes meios de ação e, por uma organiza-
ção rápida e de larga envergadura, corra em auxílio dos que ignorados,
estão sucumbindo longe de nossas vistas”. (MONCORVO FILHO,
1924:83-84)
Na cidade de São Paulo, logo que as notícias sobre a irrupção da
influenza no Rio de Janeiro foram divulgadas, o diretor do serviço sanitá-
rio, Dr. Artur Neiva, afirmava ser inevitável que a doença se expandisse
para o estado.18 Na impossibilidade de detê-la, restava àquele órgão pre-
venir e orientar a população quanto às precauções a serem seguidas, de
forma a minorar suas conseqüências.
No dia 9 de outubro, a influenza era identificada, num hotel do
Largo de São Bento, entre os membros de uma delegação de futebol
procedente do Rio de Janeiro. Em 13 de outubro, o primeiro doente de
gripe dava entrada no Hospital de Isolamento. A influenza se alastrava
com rapidez. Em 15 de outubro, era declarado pelo Serviço Sanitário o
estado epidêmico da cidade. No dia posterior, contabilizavam-se 29
notificações. No dia 20, já havia 358 casos. Dia 24, as notificações subiam
a 1805. Quatro dias depois, os casos dobraram e, no dia 31, eram superiores
a 5.000. Nas estatísticas do Serviço Sanitário de São Paulo, o dia de maior
registro seria 4 de novembro, contando-se 7.786 notificações. A partir de
9 de novembro, verifica-se uma tendência de queda nos registros.19
Bertolli Filho contesta os dados apresentados pelas autoridades
de higiene do Estado, que apontavam 5.331 óbitos entre as 116.777
notificações de gripe, entre outubro e dezembro de 1918, estimando que

18
Informações detalhadas sobre a pandemia em São Paulo são apresentadas em
MEYER e TEIXEIRA, 1920. Análises acadêmicas sobre a pandemia na capital
paulista foram realizadas por BERTOLLI FILHO, 1986 e BERTUCCI, 2002.
19
Sobre o primeiro caso da influenza em São Paulo ver BERTOLLI FILHO,
1986:196. Os dados diários sobre a expansão da epidemia em São Paulo estão em
MEYER e TEIXEIRA, 1920:48-57.

41

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 41 19/6/2008, 23:40


o número de óbitos tenha alcançado 12.386. Segundo ele, os próprios
responsáveis pela saúde pública em São Paulo afirmavam que a infecção
teria atingido cerca de 350 mil paulistanos, o que significaria aproxima-
damente dois terços da população da capital.20
Da mesma forma como fazem Crosby e Patterson e Pyle no que se
refere às estatísticas mundiais, Bertolli Filho aponta para as falhas pre-
sentes nas informações oficiais sobre a pandemia em São Paulo. Entre
elas incluem-se: o sub-registro de casos, confirmado pelas declarações
públicas de clínicos que diziam não terem enviado ao Serviço Sanitário as
notificações dos doentes sob seus cuidados; as vítimas que não tiveram
acesso aos serviços de socorro público, não sendo, portanto, computadas
nos dados oficiais; a inexperiência e o número deficiente de funcionários
da repartição responsável pela estatística demógrafo-sanitária da capital,
que contou com a colaboração voluntária de escoteiros na coleta de da-
dos (BERTOLLI FILHO, 1986:106-112). Assim, afirma, todo cuidado
é necessário com qualquer estatística sobre a moléstia.
No nordeste do país, partindo de Pernambuco, a influenza espa-
nhola atacava outros estados ainda em setembro. A Paraíba apresentava,
no dia 17 do mesmo mês, 40 casos de influenza entre os policiais e cerca
de 36 na casa de detenção de sua capital. A partir daí, a doença se
expandiria para o interior do estado, manifestando-se com especial inten-
sidade nas localidades servidas pelos ramais da estrada de ferro. No
início de novembro, quando o centro da capital recobrava suas ativida-
des, notícias davam conta que a epidemia ainda grassava com ímpeto
pelos bairros pobres (MEYER E TEIXEIRA, 1920:596-598).
No final do mês de setembro, a pandemia era oficialmente reco-
nhecida na cidade de Salvador, expandindo-se para o resto do estado
entre os meses de outubro e novembro. As informações prestadas pelas
autoridades do governo acentuavam a benignidade com a qual a influenza
teria se revestido na Bahia e as prontas medidas de profilaxia tomadas
pela Diretoria de Higiene – desinfecção de estabelecimentos, locais de
aglomeração e veículos públicos; visitas médicas sistemáticas aos domicí-
lios, especialmente os de moradia coletiva; contratação de um serviço de

20
Os dados e as estimativas apresentados estão em BERTOLLI FILHO, 1986:106-
117.

42

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 42 19/6/2008, 23:40


farmácia; instalação de uma enfermaria para doentes – como fatores de
certa influência nas baixas taxas de mortalidade divulgadas. Segundo
esses dados, numa população de cerca de 320.000 habitantes, “razoá-
veis estimativas” apontavam que mais ou menos 130.000 contraíram a
doença na capital baiana e, entre esses, apenas 339 teriam falecido em
conseqüência da moléstia.21
O mês de outubro traria a espanhola ao Maranhão. Os primeiros
casos notificados teriam chegado ao estado através dos vapores vindos
do Recife, irradiando-se em seguida para o interior. Informações
divulgadas pela imprensa carioca davam conta da falta de médicos para
o tratamento dos enfermos na cidade de São Luiz, uma vez que, dos vinte
existentes, vários se encontravam doentes.22 No mesmo período, a influenza
atingia o Rio Grande do Norte, através do vapor Corcovado. Até o dia 12
de outubro, a moléstia era vista como apresentando um caráter benigno,
tornando-se mais intensa a partir de então, obrigando o governo a sus-
pender as aulas e festas religiosas. A influenza fazia-se “sentir intensa-
mente na capital” ainda em fins de janeiro de 1919, declinando apenas
daquele período em diante (MEYER E TEIXEIRA, 1920:556-557).
As notícias de Alagoas informavam que a pandemia já era intensa
em todo o estado por volta do dia 22 de outubro. Aparentemente benig-
na, parecia circunscrita a certos bairros de Maceió. Porém, logo assumiu
extrema virulência, atacando também as áreas restantes. As medidas
postas em prática repetiam as já vistas em outros estados do país, como
fechamento de locais de aglomeração púbica, abertura de hospitais pro-
visórios e assistência aos pobres. Chama atenção, a informação de que,
durante a noite, grandes fogueiras eram acesas em locais diversos da
cidade, onde se atiravam boas quantidades de enxofre e alcatrão. Uma
explicação possível para essa prática era a crença de que a doença deri-

21
Os dados relativos à Bahia estão em MEYER E TEIXEIRA, 1920:557-562. A
pandemia na cidade de Salvador é objeto da pesquisa de doutorado de Christiane
Maria Cruz de Souza, que está sendo desenvolvida junto ao Programa de Pós-
Graduação em História das Ciências da Saúde, da Casa de Oswaldo Cruz, do
Instituto Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro.
22
Jornal do Comércio, 13 de outubro de 1918, citado in: MEYER E TEIXEIRA,
1920:540.

43

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 43 19/6/2008, 23:40


vava de emanações presentes no ar, que carregava micróbios ou outro
agente patogênico. Assim, a queima daqueles produtos exerceria uma
ação purificadora, desinfetando o ambiente (MEYER E TEIXEIRA,
1920:556).23
Em Sergipe, as notificações começaram após a chegada do Itapacy
em Aracaju, transportando seis pessoas acometidas pela gripe. Apesar
das medidas tomadas pelas autoridades, no mês de novembro a espa-
nhola fazia vítimas em escala crescente por todo o estado. No Piauí,
somente em novembro a gripe atingiria o estado, permanecendo pelos
primeiros meses de 1919.24
Do Ceará, a Diretoria Geral de Higiene informava que, em fins de
setembro, chegavam à capital do estado as primeiras notícias sobre os
brasileiros vitimados em Dakar por uma epidemia de caráter desconheci-
do. Segundo seu diretor, o laconismo das informações enviadas ainda
não havia esclarecido sobre “a verdadeira natureza da moléstia ou sobre
a relação entre ela e a gripe que da Europa ameaçava, como em 1890,
fazer a circunavegação pandêmica” (MEYER E TEIXEIRA, 1920:542).
Imediatamente as autoridades cearenses buscaram precaver-se da
invasão do morbus e, mesmo cientes da divulgação pelo então diretor
geral de saúde pública da capital federal de não haver medida profilática
capaz de impedir a invasão do país pela gripe, “por desencargo de cons-
ciência e pela teimosia que está na nossa índole”, foram estabelecidas
pela Diretoria de Higiene algumas medidas preventivas. Porém, elas não
impediram a explosão da epidemia em Fortaleza, resultando, quando

23
Bertolli Filho também faz referência ao uso de alcatrão e enxofre entre os morado-
res de São Paulo, como substâncias supostamente anti-sépticas, enumerando ainda
o piche, o querosene, folhas de eucalipto e cal virgem como portadores das mesmas
qualidades (BERTOLLI FILHO, 1986:157-160). Jean Delumeau aponta que, até
por volta do século XIX, uma das precauções contra as pestes eram as fogueiras
purificadoras que se acendiam nas encruzilhadas de uma cidade contaminada, e
que, entre os desinfetantes usados em indivíduos, roupas e lugares, estava o enxofre
(DELUMEAU, 1996:110). Vale mencionar que a cultura popular associa o cheiro
do enxofre à presença do demônio, entidade que aflige aos pecadores, o que sugere
a possibilidade de um fundo religioso para tais práticas purificadoras.
24
Sobre Sergipe e Piauí, ver MEYER E TEIXEIRA, 1920, respectivamente p.
635-637 e 541-542.

44

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 44 19/6/2008, 23:40


muito, “em alguns louvores à dedicação, presteza e inteligência das auto-
ridades sanitárias” (MEYER E TEIXEIRA, 1920:543 e 544).25
Os primeiros casos de influenza na capital cearense foram de pas-
sageiros, civis e militares, desembarcados saudáveis, em meados de ou-
tubro, do vapor Pará e que logo manifestaram a doença. Dias depois, a
gripe era reportada entre estivadores do porto e suas famílias, espalhan-
do-se rapidamente por toda a população. A estrada de ferro se encarre-
garia de sua disseminação para o interior do Ceará.
O mesmo modelo de expansão da influenza pelos estados do nor-
deste brasileiro seria reproduzido na região sul: a doença chegava atra-
vés dos portos, alastrava-se pelas cidades e ia se dispersando por todo o
interior seguindo os caminhos de ferro e de terra. Informadas dos acon-
tecimentos na capital do país, as autoridades buscaram precaver-se da
invasão da moléstia através de ações como o isolamento e internação dos
enfermos e a desinfecção de lugares, veículos, embarcações. Havia tam-
bém a ordem de quarentena para os navios que reportassem a presença
de doentes de gripe durante a viagem.
Entretanto, tais medidas não surtiram efeito. As desinfecções eram
ineficazes, uma vez que não tinham ação sobre o vírus da gripe. O isola-
mento e a quarentena não eram rigorosamente observados. Afinal, aque-
les que prestavam os cuidados aos enfermos podiam veicular a doença,
mesmo de forma assintomática, e a invariável classificação – pelas auto-
ridades – dos primeiros casos observados como sendo benignos torna-
vam qualquer das duas medidas sem valor. Conforme declarava o dire-
tor de higiene de Santa Catarina, a espanhola “zombou de todas as medidas
até hoje empregadas proveitosamente contra as outras epidemias” (apud
MEYER E TEIXEIRA, 1920:616).
No Rio Grande do Sul, a doença tocou primeiro a cidade portuária
de Rio Grande, em 9 de outubro, pelo vapor Itajubá, que trazia 38
tripulantes atacados pela influenza. Apesar da quarentena, o inspetor de

25
Entre as medidas estavam o isolamento e proibição do desembarque de passa-
geiros em trânsito de embarcações que reportassem a existência da doença a bor-
do, a instalação de um desinfectório no porto e a vigilância dos passageiros desem-
barcados, especialmente os convalescentes, enviados a uma hospedaria que contava
com vigilância médica e assistência da polícia.

45

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 45 19/6/2008, 23:40


saúde do porto havia declarado serem os casos benignos, não tendo
contaminado nenhum dos demais passageiros. No dia posterior, a im-
prensa noticiava a desinfecção da embarcação e o bom estado dos enfer-
mos, que esperavam as preparações em curso no lazareto, “que há muito
não funciona”, para então serem para lá transferidos (ABRÃO, 1998:63).26
Nos dias que se seguiram, novas embarcações aportaram na cida-
de trazendo tripulantes espanholados, entre elas um vapor que fazia a
linha entre Rio Grande e a capital Porto Alegre. No dia dezoito de outu-
bro, eram notificados os primeiros casos em Porto Alegre. No dia 25
daquele mês, a imprensa divulgava ter a influenza tomado o “aspecto de
uma das maiores epidemias que têm assolado Porto Alegre” (ABRÃO,
1998:64). Farmácias cheias, suspensão das atividades das escolas, das
casas de diversão, das reuniões legislativas, escassez de alimentos, com-
bustível e medicamentos, colapso nos serviços urbanos e no comércio,
famílias inteiras retiravam-se, fugindo da cidade e da peste.27
As autoridades do Paraná e de Santa Catarina também buscaram
impedir que embarcações conduzindo espanholados atracassem em seus
portos. Foi o que ocorreu com o vapor Itaquera, procedente do Rio de
Janeiro com passageiros acometidos de gripe e que teve que permanecer
fundeado para que fossem realizados os trabalhos de desinfecção e isola-
mento. Mas, apesar das medidas, no dia 10 de outubro a gripe era
notificada no porto de Paranaguá e, em 14 de outubro, chegava a Curitiba.
Em Florianópolis, o primeiro caso da moléstia foi oficialmente reconheci-
do no dia 13 de outubro.28
No estado do Mato Grosso, o governo buscou tomar as medidas
habituais em situações de ameaça epidêmica. A capital, Campo Grande,
apresentava uma situação peculiar, uma vez que a única e principal via
de comunicação com o sul do país era o rio Paraguai. Assim, o governo
instalou um posto sanitário para vistoriar as embarcações que pretendi-
am subir o rio e chegar à cidade, de forma a manter a doença afastada da

26
Para cidade do Rio Grande ver também: OLYNTO, 1995.
27
As conseqüências da influenza em Porto Alegre podem ser acompanhadas em
ABRÃO, 1998: 64-72.
28
Os dados sobre Paraná e Santa Catarina são encontrados em MEYER E
TEIXEIRA, 1920:579-582 e 616.

46

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 46 19/6/2008, 23:40


capital e do norte do estado. Tal medida durou até o final de dezembro.
No entanto, já em fins de novembro chegavam à cidade os primeiros
casos de influenza, entre os tripulantes e passageiros de duas embarca-
ções procedentes de Corumbá, alastrando-se a partir de então para toda
a capital matogrossense.
Mais uma vez, segundo as autoridades, os casos iniciais eram con-
siderados benignos e, apenas “vários dias depois dessa notificação, foi
que a gripe se manifestou sob sua forma epidêmica” (MEYER E
TEIXEIRA, 1920:574). É de se questionar a eficácia que teria a vigilân-
cia circunscrita apenas à fronteira sul do estado, uma vez que a pandemia
invadia quase todo o território nacional. Além disso, como se observou, a
identificação equivocada dos chamados “casos benignos” colocava em
questão o sucesso de qualquer tentativa de isolamento ou quarentena.
O mesmo quadro é observado na região norte do país. Em Manaus,
a gripe já teria aportado no último terço de outubro. Segundo os dados
apresentados em relatório pelo chefe da seção de higiene municipal da-
quela cidade, “havia chegado nesse tempo ao porto de Manaus o paque-
te Bahia, sendo este portador dos primeiros casos de gripe benigna intro-
duzidos na cidade” (apud MEYER E TEIXEIRA, 1920:529). No dia
21, o porto recebia o vapor S. Salvador, com destino a Purus e à boca do
Acre, para onde conduziria diversos casos de gripe, manifestados duran-
te a viagem. Nesse mesmo dia, reunia-se no palácio do governo um grupo
de médicos convocados com o intuito de discutir medidas de combate à
epidemia.
No dia 24 de outubro, a doença era oficialmente reconhecida. Na
mesma data, chegava ao porto o Valparaizo, conduzindo passageiros e
tripulantes espanholados provenientes de Belém, onde a epidemia já
estava presente em finais de setembro. Nos dias seguintes, a gripe irrompia,
“rápida e violenta, (...) atacando indistintamente quase toda a população
da cidade” (MEYER E TEIXEIRA, 1920:520). Uma nova onda de
infectados chegaria a Manaus no primeiro terço de fevereiro de 1919,
recrudescendo a moléstia e fazendo reabrir até meados de março o hos-
pital flutuante instalado no vapor Santa Bárbara, e o Maratapá, que
então servia como isolamento.
Em Minas Gerais, a influenza seria notificada na primeira metade
de outubro. Ao contrário da maioria dos demais estados brasileiros, Mi-
nas não possuía fronteira portuária, e os caminhos da moléstia estiveram

47

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 47 19/6/2008, 23:40


circunscritos às ferrovias, que atravessavam áreas importantes do estado,
e às estradas e picadas, que levaram a influenza aos seus diversos rincões.
A crônica mineira da influenza espanhola, porém, é assunto do terceiro
capítulo deste trabalho.
Assim como havia ocorrido em outros países, a entrada da influenza
em território brasileiro fez-se a partir dos portos, por intermédio dos
quais eram mantidos contatos com as regiões onde a epidemia já se
encontrava em curso. Esses mesmos portos serviram para disseminar a
moléstia por praticamente todas as regiões brasileiras, para onde a doen-
ça ainda prosseguia por meio das rotas ferroviárias e terrestres.29 Além
disso, as primeiras notícias sobre infectados no Brasil também estavam
relacionadas às ações ligadas à guerra – a Vila Militar, na cidade do Rio
de Janeiro, foi o primeiro lugar onde a influenza seria oficialmente reco-
nhecida, sucumbindo imediatamente à moléstia – mas não há dados
seguros para se afirmar terem sido os militares o grupo responsável pela
entrada da doença no país.30
A rapidez com que a influenza se expandiu por todas as regiões,
mais as reações das autoridades da saúde nos diversos estados brasilei-
ros – de incredulidade ou negação do flagelo que então se instalava – são
alguns dos aspectos que parecem se repetir nas histórias contadas sobre
a moléstia. Mais que imagens recorrentes de uma crônica da influenza,
certas reações e comportamentos suscitados pela espanhola parecem re-
meter a quadros que, na perspectiva de alguns autores, comporiam um
arcabouço narrativo de toda e qualquer moléstia de natureza epidêmica.

29
Ao examinarmos a rota da influenza pelo Brasil, devemos ter em mente os
problemas de credibilidade dos dados apresentados pelas autoridades de saúde
pública nos diversos estados. Como já ressaltado por Patterson e Pyle e por Bertolli
Filho, as informações oficiais apresentam diversas lacunas e as notícias veiculadas
pela imprensa muitas vezes confundem e embaralham qualquer tentativa de uma
perspectiva mais clara sobre o curso da pandemia. A própria natureza familiar ou
“ordinária” atribuída à doença, muito contribui para tais incertezas. Assim, os
levantamentos realizados e apresentados devem ser relativizados.
30
Os soldados, pelo seu movimento constante e presença disseminada em todo mun-
do, foram considerados os principais responsáveis pela propagação da doença. Segun-
do Alfred Crosby, os militares seriam um dos primeiros elos da longa cadeia que dis-
seminou a influenza espanhola de forma rápida e eficiente (CROSBY, 1999:56-63).

48

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 48 19/6/2008, 23:40


Perspectivas analíticas: a epidemia como evento e como narrativa

A História Social das Doenças tem sido, nos últimos anos, um


campo em expressiva expansão. Esse desenvolvimento muito se benefi-
ciou do alargamento da agenda histórica e de áreas florescentes, como a
história demográfica, a antropologia social e a história da cultura material
e mental (SLACK, 1999:1-2). Seu estudo engloba, entre outros, as do-
enças crônicas, endêmicas e epidêmicas, as implicações sociais e ecoló-
gicas advindas das trocas entre os diversos continentes, os entendimen-
tos sobre saúde e seus cuidados em diferentes contextos sociais, o ponto
de vista dos pacientes, os instrumentos de controle médico e social.
Dentro desse vasto campo, um capítulo especial se abre para o
estudo da História das Epidemias. Com fronteiras bem estabelecidas
tanto no tempo (duração) como no espaço (área geográfica), as epidemias
são episódios de existência breve, mas intensa e arrebatadora, e é esse
caráter de crise, de ruptura com uma determinada estrutura que tem
chamado a atenção dos pesquisadores, uma vez que possibilita iluminar
aspectos diversos da vida humana (ROSENBERG, 1987; EVANS, 1987;
CUETO, 1997).
Os fenômenos epidêmicos podem ser observados a partir de uma
perspectiva natural ou biológica, voltada para características que indivi-
dualizam a enfermidade: a determinação do agente patológico, o meio
ecológico no qual se desenvolve – seu equilíbrio e ruptura – o patrimônio
imunológico e a susceptibilidade de diferentes grupos sociais. A doença,
então, é vista como fruto da interação entre o agente da patologia, o
homem e o meio.31
Essa forma de abordagem pode ser observada no estudo de Alfred
Crosby sobre a pandemia de espanhola nos Estados Unidos. Apontando
a dificuldade em estabelecer correlações entre as experiências vivenciadas
em diferentes regiões do país, afirma que a pandemia teria se caracteri-

31
Autores como William McNeill e Alfred Corsby, argumentam que essa interação
teria influído de modo significativo na história das sociedades, determinando inclu-
sive o declínio de civilizações, como gregos e incas (McNEILL, 1976; CROSBY,
1973 e 1998).

49

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 49 19/6/2008, 23:40


zado mais por particularidades que por generalidades. Essa asserção de
Crosby se justifica uma vez que sua preocupação está voltada para os
aspectos biológicos e ecológicos envolvidos nessa pandemia: o agente
causal da doença e sua mutabilidade, virulência, forma de propagação e
de atuação no interior do organismo; os movimentos populacionais e suas
conseqüências ecológicas; as diferenças culturais e seus impactos sobre
os padrões de higiene.
O que Crosby constata é o fato de que os fatores ecológicos, con-
jugados com as condições de existência social, características físicas indi-
viduais e comportamentos culturais originaram especificidades em dife-
rentes lugares. Apesar de dizer que as experiências epidêmicas podem
indicar uma certa lógica e previsibilidade – na sua duração, forma de
propagação, comunicabilidade entre outros (objetos de exame da
epidemiologia) – afirma que elas seriam fenômenos marcados muito mais
pelo acaso e incerteza. Segundo ele, “os fatores em ação em uma epide-
mia são tão numerosos, e as formas pelas quais são anulados ou tiram
proveito dos demais são tão obscuras, que poucas generalizações podem
ser extraídas” (CROSBY, 1999:64). Então, como um evento singular, as
epidemias dariam origem a histórias particulares.
Uma outra perspectiva privilegia a visão social da enfermidade, ou
o modo como as sociedades reagiram e interpretaram os fenômenos epi-
dêmicos. Como sugerem alguns autores, um breve exame sobre os estu-
dos dedicados ao tema em diferentes contextos deixa perceber diversas
recorrências, ou respostas sociais similares aos impasses impostos pela
crise epidêmica, de modo que experiências entre sociedades distintas
parecem comportar-se como uma história conhecida, compondo uma
narrativa previsível. Essa forma de abordagem é identificada como uma
verdadeira tradição, inaugurada nos anos sessenta, com os estudos de
Asa Briggs e Louis Chevalier sobre as epidemias de cólera na Europa do
século XIX (SLACK, 1999; BRIGGS, 1961; CHEVALIER, 1958).
Em seu trabalho, Asa Briggs apontava que a ameaça da cólera
provocava imediata apreensão social e que o surgimento de uma epide-
mia era capaz de testar a resistência e eficiência das estruturas adminis-
trativas locais, expondo de forma implacável os problemas políticos, soci-
ais e morais. Afirmava, ainda, que a doença atingia de modo mais cruel
os pobres, tirando proveito das más condições em que viviam, induzindo
rumores e suspeitas difusos e, às vezes, violentos conflitos sociais. Por

50

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 50 19/6/2008, 23:40


fim, a cólera também havia inspirado sermões, novelas e obras de arte. A
percepção desses aspectos fez Briggs declarar que a história das epide-
mias de cólera, durante o século XIX, constituía um capítulo “negligenci-
ado da história social” e que o exame das diferentes respostas que lhes
foram interpostas poderiam iluminar diversos problemas no interior de
uma história nacional comparada.32
Em trabalho mais recente, Paul Slack afirma que o efeito de cho-
que produzido pelas epidemias colocaria em evidência as ideologias e
mentalidades sociais, facilitando a abordagem de alguns aspectos recor-
rentes desses eventos. Entre os elementos comuns que caracterizariam
as reações e percepções daqueles que vivenciaram as crises epidêmicas,
Paul Slack elenca: a percepção do contágio direto e a origem da doença
identificada nas condições ambientais; a fuga dos lugares infectados e a
estigmatização e busca de “bodes expiatórios”; a recorrência às explica-
ções religiosas e às práticas rituais (SLACK, 1999).
Na mesma perspectiva, Charles Rosenberg afirma a possibilidade
de se criar uma imagem típica ideal do que seja uma epidemia através do
exame de certos padrões recorrentes em experiências passadas. Esses
padrões comporiam, então, uma estrutura narrativa observável em cada
um dos eventos epidêmicos ou uma dramaturgia das epidemias. O medo
e a rápida expansão da morte, a qualidade episódica, o cunho coletivo, a
necessidade de respostas amplas e rápidas, a visibilidade seriam, segun-
do o autor, aspectos característicos de qualquer fenômeno epidêmico
(ROSENBERG, 1995).33
Para Rosenberg, a presença desses padrões tornaria possível esta-
belecer um enredo, no qual eventos sucessivos iriam compondo uma se-
qüência previsível de atos. Ato 1: a lentidão no reconhecimento e aceita-

32
Entre outros elementos que comporiam essa análise, Asa Briggs sugeria: os
dados demográficos, incluindo informações sobre gênero, raça, idade, ocupação;
elementos da estrutura e das relações sociais e econômicas, entre eles tipo e tama-
nho da sociedade em questão e as relações entre pobres e ricos, ‘autoridades’ e
‘súditos’; o contexto político em que ocorrem os eventos epidêmicos; as estruturas
administrativas do governo e as relações entre os esforços governamentais e volun-
tários, incluindo a caridade e a ajuda externa; a extensão do conhecimento médico
e as atitudes populares diante desse saber (Cf.: BRIGGS, 1961:76 e 89).
33
Especialmente o capítulo 13.

51

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 51 19/6/2008, 23:40


ção da presença da epidemia, justificados pelo medo e por interesses
ameaçados – econômicos, institucionais e sociais. Ato 2: a elaboração de
esquemas explicativos, envolvendo elementos morais, religiosos ou racio-
nais. Ato 3: a negociação de ações coletivas para fazer frente à enfermida-
de e suas conseqüências, impondo a tomada de medidas que são percebi-
das como rituais nos quais crenças e valores – supostamente eficazes no
controle desse momento de crise – são reafirmados. Ato 4: o abrandamento
e o olhar retrospectivo lançado ao episódio, buscando extrair as lições
desse acontecimento (ROSENBERG, 1985:281-287). Dessa forma, as
reações repetidas identificadas em diferentes experiências epidêmicas
marcariam de forma indelével a descrição desses eventos, transformando-
se em motivos – topos – de um verdadeiro gênero narrativo.
De modo similar, Richard Evans diz que, ao escrever sobre as
epidemias de cólera em Hamburgo, havia tomado consciência das for-
mas e convenções que esse gênero impõe. Ele também partilha a idéia de
que essa literatura da peste comporta uma estrutura que obedece a deter-
minada ordem de exposição: a descoberta da negligência e do logro das
autoridades; a lenta enumeração das origens, influências e premonições,
seguidas de uma viva narrativa que se move do coletivo ao individual e
deste de volta ao coletivo; por fim, o inventário catártico pós-evento
(EVANS, 1987:Prefácio, xvii-xviii).
David Steel aponta a vitalidade alcançada pela peste na imaginação
cultural das sociedades explorando obras escritas por diversos autores
(STEEL, 1981; BOCCACCIO, 1979; DEFOE, 2002; CAMUS, 1973).34
Para ele, a idéia da peste teria sido tão poderosa quanto a doença havia
sido virulenta. Além disso, as moléstias epidêmicas pareciam partilhar
com a literatura uma estrutura inerente: etiologia, expansão, clímax, declínio
e fim. Steel chama a atenção para o alcance de certas imagens construídas
pelos cronistas do passado, que continuariam produzindo eco nos escritos
sobre as experiências epidêmicas. Assim, seria possível identificar toda
uma literatura da peste, onde se inclui Boccaccio, Defoe, Camus. Afirma-
ção semelhante é feita por James Longrigg a respeito de Tucídides, de

34
Além dos autores citados, Steel ainda menciona: Francesco Berni, John Wilson,
Alessandro Manzoni, Alexander Pushkin, Harrison Ainsworth, Antonin Artaud
entre outros.

52

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 52 19/6/2008, 23:40


quem vários escritores, poetas e historiadores teriam adotado um “mode-
lo literário para a descrição da peste” (LONGRIGG, 1999:21-44).
Jean Delumeau segue na mesma direção quando aborda o medo e
os comportamentos coletivos da sociedade ocidental, apontando a conti-
nuidade ou permanência em relação às reações e atitudes coletivas dian-
te das ameaças epidêmicas da peste (DELUMEAU, 1996:135). Acom-
panhando diversos relatos sobre epidemias da doença ocorridas entre os
séculos XIV e XVIII, o autor também identifica elementos recorrentes
constituintes dessas atitudes sociais. Para Delumeau, a repetição de ima-
gens, explicações, sentidos e atitudes diante do mal significariam mais
que a existência de um topos recorrente em cada uma das crônicas sobre
a peste. Em sua opinião, essa repetição seria explicada pela existência de
um comportamento arquetípico imposto pelo medo.
Quando examinadas em conjunto, as diversas histórias escritas
sobre a influenza espanhola de 1918 parecem confirmar a existência
desses elementos narrativos. A negação inicial da moléstia foi postura
constantemente observada entre as autoridades de saúde, justificada,
segundo alguns autores, pelos interesses políticos da guerra (CROSBY,
1999; BERTOLLI FILHO, 1986). Mas é possível identificar no depoi-
mento dos contemporâneos da pandemia outras razões para que se pos-
tergasse o reconhecimento da situação epidêmica. A ordem social e os
interesses econômicos, por exemplo, figuravam entre as alegações apre-
sentadas por Carlos Seidl para o fato de não haver determinado o fecha-
mento de teatros, cinemas e outras casas de diversão logo que a epide-
mia foi notificada no Rio de Janeiro (SEIDL, 1918:437).35

35
Essa justificativa de Carlos Seidl será retomada no capítulo 4. Durante o século
XIX, os interesses econômicos e o temor dos distúrbios populares também foram
motivos para que vários governos europeus relaxassem ou suspendessem medidas
como a quarentena ou a hospitalização compulsória. Charles Rosenberg aponta o
mesmo receio como “pano de fundo” da resistência do Conselho de Saúde da
Cidade de Nova York em reconhecer a epidemia de cólera, no ano de 1832
(ROSENBERG, 1987:26-27). A mesma observação pode ser conferida em Jean
Delumeau em relação à peste (DELUMEAU, 1996:117-118). O comportamento
do governo chinês, no caso da SARS (sigla em inglês para síndrome respiratória
aguda grave) e da recente gripe aviária, surgem como novos exemplos desses temo-
res milenares.

53

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 53 19/6/2008, 23:40


Justificativa semelhante é apontada por Richard Evans durante a
epidemia de cólera em Hamburgo, em 1873. Conforme Evans, as auto-
ridades sanitárias da cidade temiam os reflexos que a declaração de uma
epidemia poderia produzir sobre os interesses mercantis, além das ame-
aças que as medidas impostas contra a expansão da doença pudessem
representar para a ordem pública. Os casos registrados eram então apon-
tados como colerine ou chólera nostras, classificada como moléstia de
ocorrência esporádica e de natureza diversa da autêntica cólera asiática
(EVANS, 1987:254-255).36 No Brasil, a negação da presença da até
então indefinida “influenza espanhola” também recorreria a artifícios da
mesma natureza, com a distinção entre o que alguns médicos denomina-
vam influenza nostras e a influenza vera,37 como veremos no capítulo 4.
Em praticamente todas as regiões que tocou, a pandemia de gripe
de 1918 desorganizou completamente a vida cotidiana. O número de
infectados pela doença refletiu nos serviços urbanos que ficaram comple-
tamente desorganizados: bondes deixavam de circular, escolas cerravam
as portas, o comércio ressentia-se de trabalhadores e consumidores. As
farmácias e hospitais abarrotavam-se de doentes, não conseguindo res-
ponder a todos os chamados. Em pouco tempo, escasseavam os remédi-
os e alimentos, pelas dificuldades na produção e no abastecimento ou
por causa da especulação, o que fazia aumentar a angústia e o sofrimen-
to. Era o colapso.38
“Na urbs, como que varrida pela morte, quase que não se via viva alma,
e os poucos transeuntes passavam por esses domínios da epidemia como
fugitivos que quisessem evitar um contágio que parecia existir por toda a
parte” (Rio de Janeiro). (MONCORVO FILHO, 1924)

36
Richard Evans sugere que, durante a epidemia de cólera de 1892, além dos
receios políticos e econômicos, discordâncias teórico-científicas e antipatias pesso-
ais também estiveram envolvidas no atraso do reconhecimento da epidemia (Cf.:
EVANS, 1987:285-286).
37
Cf. adiante o debate médico sobre a influenza no Brasil (Capitulo 4).
38
Os relatos sobre os reflexos da influenza espanhola na vida urbana são explora-
dos em CROSBY, 1999 (especialmente capítulos 5, 6 e 7); KOLATA, 2000 (cap.
1); GALISHOFF, 1969. Para as descrições sobre o cotidiano no tempo da pandemia
no Brasil, cf.: BERTOLLI FILHO, 1986; BERTUCCI, 2002; GOULART, 2003;
ABRÃO, 1998 e BRITO, 1997.

54

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 54 19/6/2008, 23:40


“O povo sofre as aperturas desse aflitíssimo momento – tudo fechado!
Não há pão, não há remédio, não existem os gêneros de primeira neces-
sidade (...)” (Rio de Janeiro).39
“A cidade tem durante o dia um aspecto doloroso e à noite este aumen-
ta, tornando-se fúnebre. (...) os cafés, os bares, tudo escuro, dando à
capital a forma de uma cidade morta e sem vida” (Porto Alegre). (ABRÃO,
1998:67)
As cenas urbanas daqueles dias faziam recordar as imagens terrí-
veis usadas por Daniel Defoe para descrever a peste de 1665 na capital
londrina: as ruas sempre movimentadas estavam desertas, reflexo da fuga
de diversas pessoas e da determinação do governo em proibir o trânsito
dos moradores das casas onde a doença fosse reportada. Quem tinha
condições, armazenava o necessário e fechava-se com a família. Aqueles
que precisavam lutar cotidianamente pela sobrevivência expunham-se aos
perigos da rua, onde a ameaça circulava nos corpos dos vivos e dos mor-
tos. Às vezes, a peste manifestava-se de forma fulminante, enquanto cami-
nhava-se pela rua. “A aparência de Londres ficou assim estranhamente
alterada (...). Como um todo, a aparência das coisas estava muito diferen-
te” (DEFOE, 2002:29). As mesmas imagens se repetem nos relatos e
testemunhos apresentados por Jean Delumeau sobre as epidemias de peste
entre os séculos XIV-XIX (DELUMEAU, 1996:111; 120-125).40
A velocidade de expansão da influenza também fez com que famí-
lias inteiras ficassem prostradas, não havendo quem pudesse atender ou
alimentar os enfermos ou convalescentes. A explosão do número de do-
entes e de mortos inviabilizou o serviço de enterramento. Em muitos
lugares, faltavam caixões e indivíduos que se dispusessem a enterrá-los,
fazendo com que policiais e até condenados da justiça fossem designados

39
A Razão, 23 de outubro de 1918.
40
Segundo Susan Sontag, as doenças epidêmicas “eram comumente usadas em
sentido figurado como designativas de desordem social. De pestilência (peste bu-
bônica) veio ‘pestilento’, cujo sentido figurado (...) é ‘injurioso à religião, à moral ou
à tranqüilidade pública’ (...); e ‘pestilencial’, que significava ‘moralmente nocivo e
pernicioso’ (...) Os sentimentos relacionados com o mal são projetados numa doen-
ça. E a doença (assim enriquecida de significados) é projetada no mundo” (SONTAG,
2002:76).

55

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 55 19/6/2008, 23:40


para executar esse trabalho. As covas coletivas não suportavam a deman-
da de mortos, e muitos corpos ficavam a espera pelas casas e necrotérios,
empesteando o ar.
“(...) freqüentemente os mortos permaneciam insepultos por dias e, às
vezes, semanas, por falta de pessoas para enterra-los.”41
“(...) eles estavam os empilhando em um armazém até que pudessem
lhes dar caixões.”42
“Na minha rua, da janela, se via um oceano de cadáveres. As pessoas
escoravam os pés dos defuntos nas janelas das casas para que a assistência
pública viesse recolher. Mas o serviço era lento (...) era um cenário mefis-
tofélico – cães e urubus roendo os corpos das pessoas jogadas nas ruas.”43
A relação com a morte é um dos aspectos que mais chama a
atenção nos relatos epidêmicos. A vivência da morte, objeto de constru-
ção de imagens edificantes e de atitudes que buscavam tornar essa expe-
riência algo menos traumático para as sociedades, especialmente a partir
do século XIX, retoma seu impacto nos tempos de epidemias. O medo
do contágio e da finitude humana e o número elevado de óbitos levavam
à ruptura dos ritos fúnebres, à abolição da morte personalizada, à perda
da respeitabilidade do corpo morto. Boatos sobre a imolação de defuntos
– roubo, violação de cadáveres virgens – freqüentemente circulavam
durante os episódios epidêmicos.44 A aparência assumida pelos doentes
e as descrições da morte pela cólera no século XIX e pela influenza de
1918 eram imagens impactantes, revelando cenas que chocavam a sen-
sibilidade social:

41
John T. Cunningham (apud, GALISHOFF, 1969:250).
42
Lee Brown Foveary, funcionária da lavanderia do campo de treinamento militar
em Fort Riley, Kansas. In: The Manhatann Mercury, 1918.
43
Nelson Antônio Freire, entrevistado por GOULART (2003:50-51).
44
Segundo Pedro Nava, no Rio de Janeiro, quando os presos foram designados
para ajudar no serviço de enterramento, os boatos descreviam “os criminosos cor-
tando dedos aos cadáveres, rasgando-lhes as orelhas para roubar os brincos, os
anéis, as medalhas e os cordões que tinham sido esquecidos. Às moças mortas,
arrancavam as capelas e levantavam a mortalhas para ver as partes. Que curravam
as mais frescas antes de enterrá-las” (NAVA, 2001, p.212). Procedentes ou não,
os boatos revelam uma forma de percepção da experiência epidêmica que parece

56

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 56 19/6/2008, 23:40


“Os olhos circundados por uma mancha escura estão completamente
afundados nas órbitas, posto que toda a fisionomia está abalada, a pele
está lívida. A superfície [da pele] fica então coberta de suor frio, as
unhas azuis e a pele das mãos e dos pés completamente corrugada (...).
A voz torna-se cavernosa e estranha.”[George Bell, médico da cidade de
Edimburgo em carta sobre a cólera aos seus colegas britânicos].
(KOLATA, 2000:58-59)
“Esses homens começam com o que parece ser um ataque comum de
influenza ou La Gripe, e quando chegam ao hospital rapidamente desen-
volvem o tipo mais vicioso de pneumonia que se tem visto. Duas horas
depois apresentam manchas castanhas nas faces e, pouco mais tarde é
possível ver a cianose espalhando-se de seus ouvidos para todo o rosto,
sendo difícil distinguir brancos e negros. A morte sobrevém em questão
de horas, como uma simples falta de ar que os sufoca. Isso é horrível”
[Carta de Sgt. Roy, médico designado para trabalhar em Camp Devens,
no outono de 1918]. (apud, GRIST, 1979)
Fugindo ao enquadramento das experiências cotidianas da socie-
dade, os episódios epidêmicos geraram explicações de ordens diversas.
Tão logo reconhecida uma epidemia, era necessário decifrá-la, o que
também significava estabelecer parâmetros a partir dos quais seria possí-
vel fazer frente à sua ameaça.45 Justificativas de cunho sobrenatural esti-
veram presentes nos fenômenos epidêmicos desde a Antigüidade. A do-
ença era vista como uma reação dos deuses aos comportamentos dos
homens, um castigo que demandava sacrifícios. Nas representações me-
dievais, a peste surgia como uma “chuva de flechas” enviada dos céus
por um Deus encolerizado. Preces aos santos antipestilenciais – São Ro-
que, São Geraldo, São Sebastião – procissões e ladainhas eram os meios

partilhada por suas vítimas. Bertolli Filho afirma que, durante a influenza, não
importava a veracidade dos fatos, afinal a doença havia alterado os limites entre o
real e o imaginário, bastando um acontecimento trágico ser mencionado na im-
prensa ou nas conversas diárias para que sua existência concreta fosse assumida
pela população (BERTOLLI FILHO, 1986:294-295).
45
Identificar a epidemia é uma maneira de dar inteligibilidade ao fenômeno, en-
quadrando-o dentro das estruturas explicativas partilhadas por uma sociedade.
Mágica ou natural, a tentativa de explicação é uma forma de estabilizar a realidade,
de impor domínio sobre ela (HERZLICH e PIERRET, 1992).

57

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 57 19/6/2008, 23:40


pelos quais se buscava proteção contra a cólera divina (LONGRIGG,
1999:28-29; DELUMEAU, 1996:116;145-150; EGGERICK e
POULAIN, 1988:67-69).
As mesmas atitudes também compuseram o repertório de com-
portamentos em diversas cidades brasileiras durante a pandemia de es-
panhola de 1918. Orações para a cessação da epidemia foram determi-
nadas pelas autoridades eclesiásticas. Em Minas, a imprensa anunciava
as celebrações que seriam realizadas nas diversas paróquias, invocando
a proteção dos santos. E, mesmo que representassem um meio ordinário
para a propagação da influenza pelo grande contato que propiciavam,
procissões e preces contaram com uma ampla participação da sociedade.
Quando a epidemia terminou, novas celebrações foram feitas, agora em
agradecimento à intervenção dos santos e à bondade divina (Cf.:
BERTOLLI FILHO, 1986:308-312; BERTUCCI, 2002:247-253).46
Explicações naturais, como mudanças atmosféricas ou climáticas
e fenômenos celestes – aparição de cometas, conjunções de astros –
também foram referências de largo uso na explicação para o surgimento
das epidemias (DELUMEAU, 1999:138).47 Outro aspecto recorrente
nessa tentativa de decifrar a moléstia era a sua atribuição a determinados
grupos, especialmente aqueles menos integrados à ordem social. Como
aponta Jean Delumeau, “nomear culpados era reconduzir o inexplicável
a um processo reconhecível” e, mais que isso, era responsabilizá-los pe-
los pecados ou pelo rompimento da ordem que teriam originado o mal
(DELUMEAU, 1999:140).48 Os personagens da culpa têm mudado no
tempo: judeus, leprosos, bruxas, homossexuais, miseráveis, imigrantes,
os responsáveis pelo governo e até mesmo os doutores foram, várias
vezes, responsabilizados pelas ocorrências epidêmicas. Em 1918, aos

46
No caso de Belo Horizonte, cf. adiante no capítulo 3.
47
Durante a espanhola de 1918, também houve quem justificasse a doença em
função de fenômenos celestes, como a passagem naquele ano de três cometas:
Faye, Encke e Biela (capítulo 3). Segundo a bibliografia sobre a doença, o próprio
nome “influenza” advinha da idéia de que a moléstia era fruto da influência dos
astros (capítulo 4).
48
Sobre a eleição de culpados em tempos de epidemia, ver também LONGRIGG,
1999:37; EVANS,1999:162-163.

58

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 58 19/6/2008, 23:40


olhos da sociedade ocidental, ninguém assumia melhor esse papel do
que os alemães. Assim, o boato de que a influenza espanhola fosse uma
arma de guerra preparada nos laboratórios germânicos e deliberadamente
disseminada por seus submarinos correu o mundo no último terço de
1918 (Cf.: BERTOLLI FILHO, 1986:156; GOULART, 2003: 28;
CROSBY, 1999:47; KOLATA, 2000:13).49
A medicina também produziu suas explicações para as epidemias
desde os tempos antigos, porém, quase sempre, suas respostas foram
insuficientes diante de tais moléstias. Os relatos sobre a influenza reve-
lam que, com freqüência, os médicos e seus conhecimentos de pouco
valeram naquele momento. Eles não foram capazes de estancar o mal,
que não se detinha diante de nenhuma barreira. Segundo Crosby, “os
doutores se mostraram tão impotentes diante da pandemia de gripe espa-
nhola como Hipócrates e Galeno diante das epidemias de seu tempo”
(CROSBY, 1999:10).50
A insuficiência dos recursos da medicina e dos poderes públicos
diante das doenças epidêmicas era compensada pela mobilização social.
Apesar dos temores impostos pelo contágio, em muitos momentos, a
caridade e a filantropia compuseram o arsenal de práticas pelas quais as
sociedades buscaram vencer os problemas colocados por essas molésti-
as. Em 1918, a situação de emergência imposta pela influenza levou a
um grande movimento de voluntariado. Em praticamente todas as cida-
des, associações leigas e religiosas, clubes esportivos e sociais, grupos
profissionais, estudantes e cidadãos comuns se uniram para tentar mino-
rar o sofrimento das vítimas.51 Como veremos no capítulo 3, além da
dimensão religiosa, essas ações também revelavam a crença de que os
hábitos e o modo de vida dos pobres tinham implicações diretas com o
surgimento e disseminação de várias doenças.

49
Cf. adiante, capítulo 3.
50
Um exame mais detido sobre como a medicina daquele momento enfrentou a
moléstia e seus limites diante da ameaça da influenza serão tratadas no capítulo 4.
51
Sobre a mobilização social durante a espanhola cf.: CROSBY, 1999, capítulos 5,
6 e 7; BERTOLLI FILHO, 1986, capitulo 6; OLYNTO, 1995. Cf. também:
ROSENBERG, 1987:31; 89-92, e EVANS, 1987:75-77 e 478-487, para o movi-
mento filantrópico durante as epidemias de cólera nos Estados Unidos e em Ham-
burgo, respectivamente.

59

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 59 19/6/2008, 23:40


Como outras experiências sociais trágicas – como a guerra, a fome
etc – as epidemias impõem aos homens dilemas comuns: a angústia, o
medo da morte ou da desagregação social, o desejo de salvar-se do peri-
go, as imposições da satisfação das necessidades da sobrevivência cotidi-
ana, a importância da capacidade de entender e explicar (isto é, restituir
a segurança e retomar o domínio sobre) uma experiência que escapa às
estruturas lógicas e emocionais da existência comum. É no interior desse
repertório de atitudes que se revelam situações recorrentes, observadas
em contextos históricos e geográficos diversos.
No entanto, apesar dessas recorrências, a História das Epidemias
não se resume à narração de um desastre urbano ou da desagregação
social. Essa descrição compõe apenas um dos níveis a partir dos quais
esses eventos podem ser analisados: o das respostas sociais aos impactos
da epidemia sobre a vida cotidiana.52 E as respostas e os impactos gera-
dos por uma epidemia podem assumir formas diversas em diferentes
contextos sociais, políticos e culturais. O sentido desses eventos e suas
conseqüências são modulados segundo realidades específicas – ecológi-
cas, políticas, religiosas, sociais, econômicas. Além disso, os problemas
colocados por uma epidemia e o significado por ela assumido na vida das
sociedades também guardam relação com outras variáveis, como: a natu-
reza da moléstia, sua violência, sua incidência geográfica e social, o qua-
dro epidemiológico no qual ela se inscreve (SLACK, 1999:5-6).
A análise de Alfred Crosby revelou diversas singularidades sobre
a experiência da influenza espanhola nos Estados Unidos. Essas particu-
laridades também compõem o estudo de Charles Rosenberg sobre três
epidemias de cólera ocorridas nos Estados Unidos nos anos de 1832,
1849 e 1866. Como afirma Rosenberg, o impacto e as representações
sobre a doença em 1832 estariam indelevelmente marcados por certas
características da sociedade americana daquele período: seu aspecto ain-
da predominantemente rural e o peso da religião como instrumento dire-

52
No prefácio de Morte em Hamburgo, Richard Evans enumera três níveis em sua
análise: 1- uma história política e social da cidade, através da abordagem dos
conflitos de classe e das relações entre estado e sociedade; 2- um estudo de caso da
história ecológica urbana e sua relação com a morte e doença; 3- uma narrativa
detalhada da epidemia de cólera de 1892 (EVANS, 1987, ix).

60

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 60 19/6/2008, 23:40


tor da mentalidade e dos comportamentos dos homens. Naquele momen-
to, a cólera era, antes de tudo, um dilema moral. Porém, por volta de
1866, a cólera havia se tornado um problema social (ROSENBERG,
1987:228).
Conforme Rosenberg, um dos termômetros dessa mudança era o
discurso religioso: se em 1832 a moralidade era recomendada aos fiéis
como uma garantia de saúde, em 1866, os pastores defendiam a reforma
sanitária como um pré-requisito necessário para a reforma moral. Ele
justifica essa alteração na percepção da doença em função de mudanças
mais gerais no circuito das crenças e dos comportamentos daquela soci-
edade. Como afirma: “trinta e quatro anos são um tempo curto na histó-
ria humana. Mas poucos historiadores questionarão o significado e a
magnitude das mudanças efetuadas na sociedade americana entre 1832
e 1866” (ROSENBERG, 1987:4-5).53
Conclusões semelhantes são apontadas por Richard Evans, em
seu trabalho sobre as epidemias de cólera que flagelaram a cidade de
Hamburgo no século XIX (EVANS, 1987). Evans também defende que
a percepção e as reações provocadas pela doença entre cientistas, gover-
no e a população em geral variaram sincrônica e diacronicamente, isto é,
não foram simples repetição do que se verificou em outras regiões, como
também não foram as mesmas no curso dos diversos episódios epidêmi-
cos ocorridos na cidade.
Tratando a doença, Rosenberg nos diz que ela é um amálgama
que envolve tanto sua natureza biológica, como também os sentidos que
lhe são atribuídos pelas sociedades, sendo, por isso, “uma construção
intelectual complexa” (ROSENBERG, 1987:5). Isso também pode ser
dito sobre os eventos epidêmicos: os significados que adquirem emer-
gem do contexto humano em que ocorrem, das transformações e reações

53
Entre outras transformações que teriam mudado a face do país, Rosenberg men-
ciona: a urbanização, a industrialização, as ferrovias e a imigração, que determina-
ram uma crescente complexidade econômica e social que, por sua vez, demandava
uma expansão correspondente na esfera de atuação pública; o materialismo triun-
fante em 1866, que havia erodido o fervor evangélico do período anterior; o empirismo
epidemiológico e as novas teorias sobre a natureza e a causação das doenças
(ROSENBERG, 1987).

61

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 61 19/6/2008, 23:40


que promovem no cotidiano econômico, político, social e cultural. Como
aponta David Arnold em relação à cólera: “como qualquer outra doença,
não tem significado em si mesma: é apenas um microorganismo”. Seu
sentido é dado a partir das “formas pelas quais infiltra a vida das pesso-
as, das reações que provoca e da maneira pela qual dá expressão a
valores culturais e políticos” (apud SLACK, 1999:10).
Essa análise sobre a influenza espanhola em Belo Horizonte pre-
tende contemplar a crônica do cotidiano da cidade sob o impacto da
pandemia com todos os dilemas e o repertório de atitudes que ela susci-
tou: a desordem urbana, a solidariedade, o medo. Porém, também se
buscará evidenciar as especificidades que compõem essa narrativa, inse-
rindo-a num contexto mais amplo da história da própria Belo Horizonte e
da história da saúde pública no Brasil: o que a influenza espanhola repre-
sentou para uma cidade construída na última década do século XIX e
cujo planejamento havia sido informado pelos preceitos da Higiene do-
minantes naquele período? Por outro lado, de que forma esse passado
peculiar da cidade poderia influir a ponto de individualizar a história da
pandemia em Belo Horizonte? Alguns autores defendem que as epide-
mias de cólera do século XIX tiveram influência direta no processo de
organização da saúde pública em diversos países.54 No caso da espanho-
la, é possível apontar repercussões na organização da saúde em Minas?
Se as especificidades dadas pelo contexto ecológico são elementos
importantes para o exame histórico sobre os eventos epidêmicos, sua
validade e interesse não se justificam na individualização ao extremo
dessas experiências, sob pena de uma tal particularização impedir qual-
quer visão de conjunto sobre as mesmas. De modo semelhante, o exame
histórico perderia muitas das suas possibilidades caso se restringisse à
crônica recorrente das reações sociais diante de tais eventos, ou de um
conjunto de reflexos sociais involuntários.

54
George Rosen, por exemplo, defende a existência de uma relação direta entre as
epidemias de cólera e a nascente saúde pública na Inglaterra (ROSEN, 1994).
Outros autores, no entanto, afirmam que a higiene já era um assunto importante
antes mesmo da ocorrência da cólera, e que a doença apenas teria contribuído
para acelerar o processo de organização da saúde pública em diversos países euro-
peus (Cf: BOURDELAIS, 1984).

62

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 62 19/6/2008, 23:40


Para além desse “aparente truísmo”, exames comparativos entre
diferentes estudos podem apontar o que há de diverso nessas respostas,
revelando especificidades de sociedades distintas em contextos históri-
cos distintos (EVANS, apud: RANGER, 1999:3). A nosso ver, a história
das epidemias será sempre mais instigante quando ampliar nossas per-
cepções sobre a interação entre dimensões biológicas, econômicas, soci-
ais, políticas e culturais, quando de uma visão particular nos fizer mover
para perspectivas mais amplas e abrangentes.

Breve historiografia da influenza espanhola

“Me parece notável, hoje, que eu não tenha me dado conta do fato que
uma terrível epidemia tinha varrido o globo em 1918, deixando morte e
devastação em seu caminho e tocando quase todas as famílias com sua
mão gélida. Mas aprendi que não estava sozinha em minha ignorância.
A epidemia de influenza de 1918 é um dos maiores enigmas da história,
apagada da memória dos historiadores, que tradicionalmente ignoram a
ciência e a tecnologia, mas não, na maioria das vezes, as pragas”.
(KOLATA, 2000, Prólogo:X)

Em seu livro sobre a gripe espanhola de 1918, Gina Kolata chama


a atenção para o silêncio que cerca a história desse evento tão dramático.
Segundo a autora, essa ausência é identificada nos historiadores milita-
res, nos biógrafos dos grandes nomes da medicina e, ainda, nos manuais
didáticos. Até mesmo Victor C. Vaughan, epidemiologista que esteve
entre os profissionais enviados pelo governo americano a Fort Devens –
um dos primeiros lugares a reportar a presença da terrível e mortal onda
do outono – havia dedicado em suas memórias um único parágrafo aos
acontecimentos que presenciara naquele campo militar, em setembro de
1918. A influenza deixou poucas referências e, “ao contrário da peste de
Atenas, da Peste Negra, e mesmo da epidemia de cólera (...) a epidemia
de gripe não teve cronistas” (KOLATA, 2000:48-51).
A mesma constatação é apresentada por outros autores que se
dedicaram à história da gripe de 1918. Alfred Crosby afirma que pouco
havia sido escrito sobre a gripe espanhola quando começou suas pesqui-

63

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 63 19/6/2008, 23:40


sas na década de setenta. Segundo ele, a memória da pandemia parecia
reduzir-se às tabelas de dados das publicações estatísticas (CROSBY,
1999:311).55 O próprio título que escolhe para seu livro é revelador
desse silêncio: A pandemia esquecida da América.
O desenvolvimento dessa pesquisa nos leva a concordar com as
afirmações dos dois autores: a dimensão assumida pela pandemia de
1918 nos diversos lugares onde tocou não apresenta correspondência
com o volume de trabalhos a ela dedicados ou com o espaço – e, portan-
to, a importância – que lhe é atribuído nos manuais de história. A bibli-
ografia sobre a espanhola é escassa, e o maior volume de referências
pertencem ao campo dos estudos epidemiológicos. Por cerca de 60 anos,
a espanhola esteve ausente das preocupações dos historiadores, que ape-
nas nas últimas décadas têm voltado seu olhar para a devastação promo-
vida pela moléstia. Como dito anteriormente, essa mudança deve ser
atribuída ao interesse que novos temas e objetos – entre eles, o corpo e
as doenças – passaram a despertar na comunidade dos historiadores.
O livro de Crosby é a principal publicação sobre a experiência da
influenza espanhola entre os estudos dedicados à história da pandemia.
Apresentando uma extensa pesquisa em jornais, documentos oficiais
(militares, administrativos, estatísticos), memórias e publicações médicas
entre outros, Crosby elabora uma análise na qual combina uma aborda-
gem ecológica, social, política e histórica da moléstia. Entre os elementos
que privilegia no entendimento da pandemia estão fatores biológicos,
como as constantes mutações genéticas do vírus, originando cepas alta-
mente virulentas e incapazes de serem reconhecidas pelo organismo e os
intercâmbios entre populações que estavam maximizando a mudança e a
propagação não só de novas cepas do vírus da influenza como dos orga-
nismos que produziam as infecções secundárias que teriam potencializado
o desastre da espanhola.
Os fatores sociais também são explorados, como os problemas
urbanos enfrentados no período, especialmente aqueles ligados à atividade
industrial e à sobrevivência das camadas mais pobres da população,

55
Cf. ainda, p. 312-325. A edição utilizada nessa pesquisa foi publicada pela
Cambridge University Press, no ano 1999. Uma primeira edição havia sido publicada
pela Greenwood Press em 1976, sob o título Epidemic and peace, 1918.

64

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 64 19/6/2008, 23:40


exacerbados pela guerra. O aumento da poluição ambiental, o adensamento,
a insalubridade e a dieta pobre jogaram papel importante na vulnerabilidade
de parte da população em sucumbir a qualquer agressão patogênica. Os
movimentos populacionais do período também evidenciaram diferenças
culturais como, por exemplo, a dificuldade em assimilar princípios de
saúde individual e pública, além de outros problemas de intercâmbio
entre diferentes grupos estrangeiros.
Crosby focaliza sua narrativa sobre a experiência da sociedade
americana, apresentando o surgimento, as reações e as conseqüências
produzidas pela influenza. A situação de beligerância, porém, amplia
sua abordagem para alguns dos cenários da guerra. Entre as questões
que levanta, destacamos as ações e os limites do poder público diante da
ameaça, apontando para o fracasso representado pelo governo das cida-
des e o peso do federalismo americano que impedia uma ação coordena-
da da União contra a pandemia. Apesar da existência de departamentos
de saúde espalhados pelo país, havia dificuldades em organizá-los em
um esforço unificado. Essa observação nos remete à experiência política
da Primeira República no Brasil, também caracterizada como um perío-
do de descentralização por excelência. A segunda questão seria decor-
rência dessa incapacidade do poder público em fazer frente à emergên-
cia imposta pela doença: a mobilização de organismos privados e da
sociedade civil no atendimento à população, que será retomada em pra-
ticamente todos os outros trabalhos consultados.
A impotência dos médicos diante da pandemia é outro aspecto
que sobressai em sua análise. Apesar das conquistas da bacteriologia,
que cada vez mais oferecia controles para as doenças transportadas pela
água, os alimentos e os insetos, a medicina pouco podia fazer contra as
doenças transmitidas pelo ar. Na ausência de aparato técnico para dar
um veredicto sobre a doença, havia a convivência de teorias e práticas as
mais diversas e, freqüentemente, ineficazes na busca da cura ou prote-
ção diante do flagelo.
Crosby apresenta ainda uma discussão sobre as estatísticas da
gripe em diferentes cidades americanas, com tabelas sobre óbitos e sua
distribuição entre as faixas etárias. À luz dessa comparação, conclui que
a pandemia de espanhola teria envolvido fatores os mais diversos, não
sendo possível privilegiar explicações de caráter exclusivamente social,
econômico ou epidemiológico, uma vez que comumente deixavam gran-

65

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 65 19/6/2008, 23:40


des lacunas na tentativa de se entender o que foi aquele evento em sua
totalidade.
Ele finaliza o livro lançando algumas hipóteses no sentido de expli-
car o esquecimento ao qual uma experiência tão catastrófica havia sido
relegada. Essa inaptidão para o assombro, diz, não pode ser atribuída à
falta de informação. Segundo Crosby, ela poderia se justificar pelo fato
de que epidemias letais eram experiências vivas na memória daquela
sociedade, e o contraste representado pela influenza de 1918 teria sido
mais de grau que necessariamente de natureza. Outra explicação possí-
vel era a própria guerra que, além de ter tornado a morte algo familiar,
impunha uma morte “digna” aos homens.56 A natureza da doença e suas
características epidemiológicas também teriam encorajado o esquecimento:
a rapidez com que atacava e desaparecia não era suficiente para que
percebessem o perigo; a disparidade entre a morbidade e a mortalidade
acalmava suas vítimas potenciais.
A doença também era ligeira, ignorava diferenças (rural/urbano,
rico/pobre), não deixava desfigurados, não havia matado nenhuma per-
sonalidade e não fazia parte das experiências emocionais trágicas da
sociedade, como aquelas propiciadas em epidemias de outras doenças.
Se a gripe de 1918 teve alguma influência ou impacto permanente, diz
Crosby, não teria sido sobre o coletivo, mas “sobre os átomos da socieda-
de humana, sobre os indivíduos” (CROSBY, 1999:323).57
Publicado no ano 2000, o livro de Gina Kolata privilegia a história
da “caça” levada a cabo por diversas equipes científicas ao vírus da
pandemia de 1918, e às diferentes teorias que buscaram explicar aquele
fenômeno excepcional (KOLATA, 2000).58 Repórter de ciências do New
York Times, a autora realiza um interessante trabalho de investigação e

56
As considerações sobre o esquecimento da pandemia são apresentadas na última
parte do livro (pp. 311-325). A morte “digna” faz referência à memória criada e
estimulada nos tempos de guerra de se atribuir aos soldados falecidos a distinção
de terem falecido em campo de guerra, honrando seu país (CROSBY, 1999:321).
57
Ao tratar o tema do esquecimento, Bertolli Filho enfatiza que, entre outras expli-
cações possíveis, estaria a pouca atenção dispensada pelos historiadores aos estu-
dos sobre a saúde e a doença (BERTOLLI FILHO, 1986:452).
58
Uma primeira edição foi publicada nos Estados Unidos, pela Farrar, Straus and
Giroux, em 1999.

66

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 66 19/6/2008, 23:40


divulgação científica, levantando novas fontes e produzindo entrevistas
com pessoas envolvidas no estudo e na pesquisa sobre o vírus da influenza.
Os três primeiros capítulos são dedicados a uma descrição do que foi a
pandemia naquele 1918, sua virulência, algumas regiões do mundo ata-
cadas, as transformações da vida cotidiana e as primeiras hipóteses le-
vantadas para explicar seu alto índice de letalidade.
Os capítulos seguintes, em número de 6, relatam diversas tentati-
vas realizadas por patologistas, desde os anos 1950, para se conseguir
exemplares do vírus da pandemia de 1918. Ao mesmo tempo em que
descreve as “viagens exploratórias” em busca de vítimas, a autora nos
leva a uma viagem sobre a construção de teorias científicas que busca-
ram explicar como havia surgido a nova cepa do vírus da gripe espanhola
de 1918. Assim, Kolata amplia a percepção da história da influenza no
interior de uma história das doenças e das teorias que informaram o
campo médico, especialmente o fato de que a solução daquele mistério
quase indecifrável estar além do saber e dos poderes da ciência médica
da época (KOLATA, 2000:84).
Entre os artigos levantados, há o de Stuart Galishoff, dedicado à
história da pandemia na cidade de Newark (GALISHOFF, 1969). A
narrativa de Galishoff aborda temas semelhantes aos explorados por Alfred
Crosby: o primeiro registro da doença e a sua expansão; a desestruturação
da vida cotidiana; a incapacidade da ciência diante da influenza. O autor
aponta que a pandemia expôs a suscetibilidade dos homens a forças que
eles não podiam controlar, explorando a ação fundamental da sociedade
civil na organização dos serviços voluntários de socorro.
Galishoff chama a atenção para o fato de que o desenvolvimento
industrial e as obras portuárias da cidade haviam imposto a necessidade
de recurso à migração de centenas de trabalhadores negros originários
do sul dos Estados Unidos. E, ainda que nenhum grupo étnico tivesse
escapado à epidemia, os negros foram os que mais sofreram, por causa
das condições miseráveis em que viviam e pelos problemas de aclimatação
aos rigores do inverno na região. Galishoff finaliza seu texto afirmando
que a influenza marcaria uma ruptura: último momento de uma era na
qual a saúde pública estava limitada ao recurso ao poder policial do
Estado – em impor o saneamento e o controle das doenças comunicáveis
– para um período no qual a ênfase se transferia para a detecção e
prevenção individual das doenças.

67

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 67 19/6/2008, 23:40


Edwina Parker e Geoffrey W. Rice estudaram a gripe espanhola
no Japão (PALMER e RICE, 1992).59 Os autores apresentam uma com-
paração entre as taxas de mortalidade da pandemia verificadas nesse
país, mais baixas que aquelas predominantes no resto do continente asi-
ático. Além disso, identificam uma diferença expressiva entre as taxas
urbanas e aquelas verificadas nos distritos rurais, sugerindo que as regi-
ões que passaram pela primeira onda de influenza teriam sofrido menos,
apontando para uma possível imunidade por ela conferida: “quanto mais
isolados os casos, mais severos pareciam ser” (PALMER e RICE, 1992,
p 569). A experiência da influenza de 1918 no Japão é explorada atra-
vés dos relatos elaborados pelo médico Ijirô Gomibuchi sobre o recurso
às vacinas como terapêutica contra a doença, revelando a instauração de
um conflito crescente pela profissionalização da medicina naquele país,
com um aumento da influência da moderna medicina ocidental
(laboratorial) sobre as práticas curativas tradicionais da medicina kanpô
(de base herbal).
A medicina também será o objeto privilegiado por Eugênia Tognotti,
em artigo onde discute os debates sobre a etiologia e a tensão que foram
estabelecidos pela influenza espanhola e que marcaram o mundo cientí-
fico (TOGNOTTI, 2003). Esses debates mostram como a doença havia
mobilizado a classe médica, reanimando certas teorias e revelando os
limites da bacteriologia naquele momento. A impossibilidade do labora-
tório em esclarecer aquela ameaça havia interferido de modo significati-
vo nas possibilidades de atuação das autoridades públicas, permitindo
ainda uma desforra dos clínicos, com a reafirmação de suas habilidades
– especialmente no campo do diagnóstico – que haviam sido abaladas
pelas proposições da bacteriologia.
Os estudos e discussões gerados em torno da proposição do bacilo
Pfeiffer como agente responsável pela doença iluminam alguns dos as-
pectos que compõem a história das teorias científicas: o peso da autorida-
de, as resistências no abandono e na aceitação de modelos de explicação
paradigmáticos, o papel da experimentação, os fóruns privilegiados de
debate, a variedade de campos envolvidos nos problemas científicos e

59
Geoffrey Rice publicou ainda Black november: The 1918 epidemic in New Zealand,
1988.

68

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 68 19/6/2008, 23:40


como os “avanços e reversos, esperanças e desapontamentos têm acom-
panhado cada revolução na ciência biomédica” (TOGNOTTI, 2003:110).
Eugênia Tognotti também considera a influenza espanhola um verdadei-
ro tropeço da bacteriologia, além de expor a inconsistência da imagem
triunfalista construída em torno do conhecimento científico. Algumas das
questões abordadas pela autora poderão ser examinadas com mais deta-
lhe no último capítulo deste trabalho.
Referências mais freqüentes à história da pandemia de influenza
espanhola são encontradas entre os epidemiologistas. Provavelmente, a
preocupação com o controle da doença (especialmente com as campa-
nhas de vacinação surgidas a partir dos anos 1970) leve esses estudiosos
a buscar, de forma mais sistemática, respostas para questões atuais sobre
as mutações e a difusão do vírus da influenza nas experiências do passa-
do. Lançado em 1977, o livro de W. Beveridge amplia o olhar sobre a
doença, mapeando outras epidemias de influenza e relacionado-as com
as opiniões e descobertas da ciência sobre o vírus (BEVERIDGE, 1978).
Desvendando a estrutura e a forma de atuação da virose humana,
Beveridge destaca as pesquisas que apontam suas relações com algumas
epizootias – como a influenza dos suínos e das aves – para explicar a
virulência atingida em algumas mutações. Também relata as investiga-
ções levadas a cabo sobre a moléstia, as dificuldades no estabelecimento
de uma terapêutica eficaz e as questões sobre a influenza que ainda
permanecem sem resposta.
Trabalho semelhante é realizado pelo virologista Edwin D.
Kilbourne (KILBOURNE, 1991).60 Dedicado à pesquisa sobre o vírus
da influenza, Kilbourne analisa sua etiologia, mutações, patologia, o qua-
dro clínico da doença, as complicações decorrentes da influenza, os mé-
todos de diagnóstico laboratorial e a profilaxia e tratamento indicados.
Além desses aspectos, ele também se dedicou ao exame da epidemiologia
da influenza, estudando as epidemias e pandemias da moléstia e acom-
panhando os esforços pela busca ao vírus de 1918.
K. David Patterson e Gerald F. Pyle publicaram um importante
estudo mapeando a mortalidade provocada pela espanhola, assim como

60
Alfred Crosby afirma ser de Kilbourne a melhor publicação científica sobre a
doença: Influenza. New York: Plenum, 1987.

69

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 69 19/6/2008, 23:40


a geografia de sua expansão.61 Duas questões dirigem as reflexões dos
autores: quais foram as principais rotas de difusão geográfica das duas
principais ondas da influenza em 1918 (a da primavera e a do outono no
hemisfério norte) e quais as conseqüências demográficas da onda letal do
outono? Segundo eles, a onda da primavera cobriu grande parte do glo-
bo, tendo persistido pelos primeiros meses do verão em certas regiões.
Sua rápida expansão e sua persistência parecem pressagiar os eventos
que caracterizariam a onda do outono: a alta virulência e letalidade, além
do maior espectro de difusão.
No que se refere às conseqüências demográficas da pandemia de
1918, os dados apresentados por Patterson e Pyle constituem o mais com-
pleto levantamento relativo aos diferentes continentes – mesmo consideran-
do-se todos os problemas apresentados pelas estatísticas da doença mencio-
nados anteriormente. Há, para os autores, duas conclusões básicas no
estudo: a de que a pandemia de 1918 havia demonstrado que o mundo ti-
nha se tornado uma unidade epidemiológica no início do século XX, e que
a cepa do vírus do outono era responsável pela mortalidade mais espantosa
e sem precedentes em qualquer outra moléstia nos tempos modernos.
As conseqüências demográficas da influenza espanhola também
foram objeto de estudos publicados por Robert Katz, que associa a mor-
talidade alcançada pela pandemia nos Estados Unidos à presença exten-
sa de imigrantes (KATZ, 1974). Originários de regiões rurais (tanto ame-
ricanas como européias) onde, provavelmente, estiveram menos expostos
ao vírus, esses imigrantes teriam chances mais reduzidas de desenvolver
imunidade. Segundo Katz, a mortalidade inédita da pandemia de 1918
teria sido um produto de aspectos sociológicos, políticos e geográficos
daquele período. Por sua vez, D. I. Pool, tomando o povo maori (Nova
Zelândia) como grupo de controle, analisa aspectos relacionados à idade,
fertilidade e susceptibilidade (POLL, 1973). Seu trabalho reafirma posi-
ções defendidas por outros autores, como a imunidade mais baixa em
grupos sociais isolados e o fato de serem muitas as variáveis que devem
ser consideradas para se entender o curso da pandemia de 1918.

61
Cada um dos autores possui trabalhos individuais dedicados à doença de 1918
(Cf. PYLE, 1986 e PATTERSON, 1986). Patterson é autor de outros dois artigos
sobre a pandemia na África. (PATTERSON, 1983a e 1983b).

70

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 70 19/6/2008, 23:40


Os trabalhos de natureza epidemiológica contribuem para esclare-
cer o historiador sobre as características atribuídas aos eventos epidêmi-
cos, os elementos (biológicos, geográficos, sociais, entre outros) que in-
terferem e determinam seu curso, os mecanismos de atuação dos agentes
neles envolvidos, a maneira como contaminam o organismo e as altera-
ções que promovem, o modelo de expansão e de comportamento desses
eventos. Além disso, a epidemiologia também oferece a possibilidade de
mensurar de forma mais crítica as conseqüências que os eventos epidê-
micos têm sobre o conjunto da população, ampliando nossa percepção
de seus impactos sociais, políticos e econômicos.
No caso do Brasil, apesar de relativamente pequena, a bibliografia
sobre a espanhola se compõe de trabalhos bastante expressivos.62 Pio-
neiro é o estudo de Cláudio Bertolli Filho sobre a pandemia na cidade de
São Paulo (BERTOLLI FILHO, 1986). De caráter interdisciplinar, apre-
senta uma interessante discussão sobre a incorporação das doenças e da
medicina como objetos de reflexão dos historiadores, as questões privile-
giadas e as linhas condutoras dos estudos que vêm sendo produzidos na
área, apontando a importância do recurso às ferramentas conceituais e
analíticas desenvolvidas em outros campos do saber nos estudos dos
problemas biológicos.

62
Nos anos seguintes à pandemia, três importantes obras sobre a influenza no
Brasil vieram a público: A propósito da Pandemia de gripe em 1918, de Carlos Pinto
Seidl (1919); O pandemônio de 1918, de Carlos Artur Moncorvo Filho (1924); A
gripe epidêmica no Brasil e especialmente em São Paulo, organizado por Carlos Luiz
Meyer e Joaquim Rabelo Teixeira (1920). O primeiro livro é uma defesa apresen-
tada pelo ex-diretor geral de saúde pública do Rio de Janeiro contra as acusações
que lhe foram imputadas durante a pandemia. Moncorvo Filho apresenta uma
descrição da pandemia na capital brasileira, com destaque para a mobilização em
torno de seu combate. Também traça um histórico sobre a influenza no país e as
opiniões sobre ela que circulavam entre a classe médica. Seu texto é um relato
vivo, um verdadeiro depoimento sobre a experiência da influenza no Rio de Janei-
ro. O trabalho de Carlos Meyer e Joaquim Rabelo privilegia os dados sobre a gripe
no estado de São Paulo, trazendo ainda uma compilação de relatórios divulgados
pelas autoridades sanitárias de todo o país, assim como notícias publicadas pela
imprensa e alguns documentos administrativos. Essas obras constituem fontes vali-
osas para os estudiosos da pandemia de espanhola no Brasil.

71

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 71 19/6/2008, 23:40


Outro aspecto distintivo de sua análise é o perfil patológico que
traça sobre a cidade de São Paulo, estabelecendo relações entre as doen-
ças e as condições urbanas de existência de diversos grupos sociais.
Discute, assim, a geografia social das doenças na capital paulista, pressu-
pondo que a degradação das condições de existência determinaria uma
maior incidência das doenças entre as camadas desfavorecidas, em meio
às quais suas conseqüências seriam mais evidentes e violentas. Nos capí-
tulos dois e três, dedicados à história da influenza e da pandemia de
1918, Bertolli Filho analisa os quadros estatísticos produzidos pela mo-
léstia na cidade, concluindo que a espanhola não teria nada de democrá-
tica, como fazia crer toda uma memória construída sobre a moléstia.
Essa opinião encontrará eco nas outras pesquisas sobre a espanhola e,
como veremos aqui, é afirmação que tem acompanhado a história da
influenza muito antes da pandemia de 1918.
No restante do texto, o enfoque se desloca para as percepções da
doença, as práticas terapêuticas oficiais e alternativas, as respostas apre-
sentadas pela classe médica, o governo e a população diante do seu
flagelo, com destaque para os serviços de socorro organizados pela soci-
edade civil. Narra, também, as conseqüências da epidemia no cotidiano
urbano e nas relações interpessoais. O último capítulo é dedicado à me-
mória da gripe que, se foi suprimida do discurso médico-administrativo,
ficaria gravada na memória daqueles que a vivenciaram. Compõem o
capítulo as lembranças de antigos moradores sobre a tragédia da influenza
de 1918 na capital paulista.63
Ainda sobre a espanhola em São Paulo, temos o estudo de Liane
Maria Bertucci (BERTUCCI, 2002). Além de recuperar a desestruturação
do cotidiano e a mobilização social diante da epidemia, Liane Bertucci
focaliza, de modo mais detido, o fracasso da medicina oficial em dar
respostas positivas à moléstia e os embates que travou com outras práti-
cas de cura. Homeopatia, charlatanismo, remédios caseiros, mezinhas e
outras diferentes terapias estiveram à disposição da população paulistana
naqueles dias de flagelo da influenza.

63
Um pequeno resumo das questões abordadas nessa pesquisa pode ser consulta-
do no artigo publicado pelo autor na revista Ciência Hoje (Cf. BERTOLLI FILHO,
1989).

72

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 72 19/6/2008, 23:40


Ao recuperar essas práticas curativas alternativas, a autora evi-
dencia a fragilidade do discurso e do saber médico que, naquele momen-
to, buscava impor-se sobre os demais no campo da saúde. Ao contrário
do que deixa supor uma certa imagem do conhecimento científico, o
saber produzido pela medicina acadêmica nem sempre é capaz de apre-
ender o fenômeno da doença ou oferecer soluções contra suas mazelas.
Também não é um saber que se impõe sobre a sociedade e as demais
práticas curativas de forma verticalizada e avassaladora, mas um conhe-
cimento que é gerado na “sociedade e se transforma e sustenta através
da interação social das pessoas (...) com suas críticas e reivindicações, e
dos portadores de outras formas de saber sobre a saúde e a doença, quer
através de discussões e conflitos, quer por meio de aproximações e iden-
tificações” (BERTUCCI, 2002:III). Dessa forma, Liane Bertucci contri-
bui para a construção de uma abordagem e percepção mais críticas so-
bre o papel e o poder que o saber médico teria angariado na passagem
do século XIX e na primeira década do XX.
A experiência da pandemia de espanhola no Rio Grande do Sul
também foi objeto de duas pesquisas. Publicado em 1998, o estudo de
Janete Silveira Abrão examina a difusão da influenza na cidade de Porto
Alegre (ABRÃO, 1998). Sua abordagem divide-se entre o problema da
saúde pública no Brasil e na capital gaúcha, inseridos num discurso de
“modernização urbana”, que dominava diferentes regiões do país duran-
te as duas primeiras décadas do século XX, e as reações e transforma-
ções provocadas pela quadra epidêmica no cotidiano da cidade de Porto
Alegre. Aborda as opiniões e práticas da comunidade médica no desen-
rolar da epidemia, enfatizando as limitações do conhecimento científico
disponível para dar combate à doença. Janete Abrão aponta, ainda, as
ações levadas a cabo pelas autoridades públicas, sugerindo, como faz
Bertolli Filho, que a maior incidência de casos fatais da moléstia seria
decorrente de um modelo de modernização excludente, isto é, de uma
distribuição desigual dos melhoramentos urbanos, especialmente dos
serviços de saneamento.
Beatriz Anselmo Olinto dedica sua pesquisa à gripe na cidade de
Rio Grande (OLYNTO, 1995). A preocupação da autora é decifrar as
práticas e relações de sobrevivência engendradas pelo mundo feminino
frente uma ameaça diante da qual o saber médico foi incapaz de elaborar
respostas. Também relaciona os efeitos da pandemia ao processo de

73

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 73 19/6/2008, 23:40


implantação de um projeto de modernização urbana, especialmente liga-
do ao porto dessa cidade, um dos mais importantes portos do Rio Gran-
de do Sul, sugerindo que a exclusão social na distribuição dos serviços de
saneamento no espaço urbano teriam implicações diretas na geografia
social da pandemia. A autora apresenta ainda um “imaginário” da gripe,
através da recuperação das percepções e das práticas de cura e solidari-
edade coletiva daquela sociedade, recorrendo às proposições de Jean
Delumeau e Philippe Ariès para analisar as reações populares de pânico
diante da magnitude e do inesperado da epidemia, assim como diante da
morte (DELUMEAU, 1989; ARIÈS, 1989).
A pandemia no Rio de Janeiro foi recentemente objeto de pesquisa
desenvolvida por Adriana da Costa Goulart (GOULART, 2003). Além de
descrever os impactos e as respostas orquestradas pela sociedade à
influenza de 1918, a autora centra sua análise nos reflexos que a doença
teve sobre os profissionais da área médica. Em sua opinião, mesmo que a
medicina acadêmica tenha fracassado em seu embate com a espanhola,
os sanitaristas teriam angariado dividendos com o episódio, emergindo
como os únicos atores capazes de regularizar o caos e o desgoverno atri-
buídos à situação epidêmica. Figura paradigmática de sua análise é a do
cientista Carlos Chagas.64 Além de alavancar o poder dos sanitaristas, a
autora afirma que, num âmbito mais geral, a pandemia também daria
respaldo à opinião que defendia a necessidade de maior centralização
dos serviços de saúde e de reforma das instituições e políticas sanitárias,
à medida que colocava em evidência as limitações impostas pelo federa-
lismo ao combate efetivo das epidemias e endemias que assolavam o país.
Adriana Goulart reafirma e aprofunda em seu trabalho as conside-
rações apresentadas por Gilberto Hochman sobre as conseqüências da
pandemia de espanhola no processo de institucionalização da saúde pú-

64
Se Carlos Seidl foi culpado pelas mazelas promovidas pela gripe, Carlos Chagas,
nomeado para organizar o serviço hospitalar durante a pandemia e, posteriormen-
te, como diretor geral de saúde pública do Rio de Janeiro, seria aclamado como a
única pessoa capaz de responder de modo eficiente aos problemas impostos pela
situação epidêmica. A referência da autora aos sanitaristas privilegia aqueles liga-
dos ao Instituto de Manguinhos, e, portanto, à figura de Oswaldo Cruz, de quem
Chagas era considerado herdeiro científico (GOULART, 2003).

74

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 74 19/6/2008, 23:40


blica no país. Segundo Hochman, a influenza representou uma experiên-
cia singular, tendo um “impacto significativo sobre o processo de percep-
ção coletiva das relações entre doença e sociedade e sobre o papel da
autoridade pública”, produzindo “um consenso mínimo sobre a necessi-
dade urgente de mudanças na área da saúde pública” (HOCHMAN, 1998).
A espanhola é apresentada pelo autor como um momento privilegiado no
interior de um processo mais amplo de luta pela centralização e ampliação
da intervenção do Estado nas questões ligadas à saúde pública. Apesar de
não tematizar a pandemia de 1918 como ponto central de seu trabalho –
lugar ocupado pelo “movimento sanitarista” liderado por Belisário Pena –
Gilberto Hochman a insere entre os diversos eventos que compuseram o
processo de construção de uma consciência sanitária entre as elites, ou na
percepção crescente dos efeitos negativos da interdependência social.
A gripe no Rio de Janeiro é abordada ainda em dois outros arti-
gos. Apoiando-se sobre as categorias analíticas da chamada história das
mentalidades, Nara Brito privilegia as representações e atitudes coletivas
diante da doença (BRITO, 1997). Assim, explora o sentimento de inca-
pacidade das autoridades científicas e dos administradores públicos di-
ante da expansão da pandemia; as reações populares a essa “inaptidão”
ou “imobilidade”, além da ameaça de subversão da ordem e de desinte-
gração social, representada pelas experiências epidêmicas. Gestos, ritos,
discursos e imagens coletivamente construídos e vivenciados vão compor
sua narrativa sobre a pandemia no Rio de Janeiro. Luiz Antônio Teixeira
também privilegia o imaginário como elemento de abordagem, voltando
sua análise para o resgate das práticas médicas e culturais durante a
moléstia, consideradas por muitos como ultrapassadas e anacrônicas
(TEIXEIRA, 1993).
Para Minas Gerais, há o artigo de Rita de Cássia Marques, que
trata da gripe espanhola em Belo Horizonte (MARQUES, 1997). A autora
relata algumas reações à ameaça representada pela doença e traça um
histórico da difusão da gripe na cidade e das medidas colocadas em prá-
tica pelas autoridades do governo e da área da saúde, a fim de fazer frente
à sua propagação. Também se debruça sobre as práticas de cura, cientí-
ficas e leigas, propaladas entre a população por intermédio de periódicos.
No campo da epidemiologia, encontramos duas referências mais
específicas à pandemia de 1918 no Brasil. A primeira, em livro recente-
mente publicado por João Toniolo Neto, no qual traça um breve histórico

75

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 75 19/6/2008, 23:40


a respeito da influenza, desde a Antigüidade, passando pela Idade Mé-
dia, as culturas pré-colombianas, até experiências contemporâneas, como
a ameaça de pandemia provocada pela gripe das aves em Hong Kong,
em 1997 (TONIOLO NETO, 2001). Dedica dois capítulos à experiência
da influenza espanhola de 1918, no mundo e no Brasil, apresentando
dados compilados de outros autores. Porém, seu interesse principal é a
instituição, em meados do século, da vigilância epidemiológica do vírus
da influenza pela Organização Mundial de Saúde, enfatizando sua atua-
ção por meio das campanhas de vacinação e das novas pesquisas dedicadas
ao vírus da influenza. Há também um capítulo dedicado à influenza es-
panhola em Belo Horizonte pelo médico Carlos Henrique Mudado Maletta
(MALETTA, 1997). Nele, o autor discute algumas teorias sobre o
surgimento e a expansão da pandemia, apresentando os dados estatísti-
cos da moléstia na cidade e as medidas profiláticas e preventivas divulgadas
pela imprensa mineira.
Nossa análise da pandemia de espanhola na capital mineira reto-
ma muitas das questões examinadas nos trabalhos mencionados acima,
porém, também aponta para aspectos específicos que, em nossa opinião,
individualizaram essa experiência. O processo de modernização, tomado
como pano de fundo de algumas das análises aqui apresentadas, desem-
penha papel importante na vivência da espanhola em Belo Horizonte e,
como em outros lugares, foi fator explicativo da geografia social da
pandemia na cidade. Por outro lado, esse mesmo processo nos ajuda a
entender uma certa indiferença identificada por alguns observadores entre
sua população. Cidade nova, planejada e edificada segundo os preceitos
teóricos da Higiene na última década do século XIX, Belo Horizonte
possuía uma realidade diferente daquela que prevalecia em outros cen-
tros do país, havendo mesmo um discurso que a apresentava como espa-
ço salubre por excelência. Como essa história particular interferiu na
experiência da pandemia na capital mineira é uma das questões que este
trabalho pretende responder.
Outra questão mais geral, e que perpassa a maioria das análises
dedicadas à pandemia, é a que busca responder o que podemos apreen-
der sobre a vida social, política, econômica e cultural de uma sociedade
confrontada com a ameaça epidêmica. O que essa experiência particular
evidencia sobre os sistemas econômicos, a condição de existência, as
mentalidades, crenças religiosas, esforços e carências nos cuidados liga-

76

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 76 19/6/2008, 23:40


dos à saúde coletiva? Como veremos, a espanhola evidencia a permanên-
cia de práticas e percepções julgadas superadas pelo crescente processo
de racionalização da natureza e da experiência humana. Também ilumi-
na os medos e as formas pelas quais a sociedade busca superar os pro-
blemas acarretados pela doença – a desordem da vida cotidiana, a para-
lisação das atividades urbanas essenciais, a carestia entre outros.
Por fim, nossa análise também se volta para o exame dos impactos
da pandemia de 1918 sobre o conhecimento médico. Concordamos com
a idéia defendida por outros autores de que o problema imposto pela
espanhola era algo que estava além das ferramentas e das explicações
oferecidas pela medicina naqueles dias. Examinando o processo de refi-
namento conceitual da influenza, entendemos a pandemia de 1918 como
mais um momento no conjunto de reflexões e atitudes que buscaram
compreender e explicar que doença era aquela. Em nossa opinião, a
ineficácia no combate à influenza espanhola também contribuiu para
estimular e ampliar os estudos dedicados à moléstia, entre eles o de
pesquisadores radicados em terras brasileiras. Como Jaime Benchimol
tem mostrado em relação à febre amarela (BENCHIMOL, 1999), suge-
rimos aqui que, mais que simples promotores de um saber gestado nos
grandes centros de pesquisa mundiais, médicos e cientistas brasileiros
também participaram da revolução promovida pela bacteriologia, e ain-
da contribuíram na produção do conhecimento científico e no refinamen-
to conceitual sobre a influenza.
Retomando as observações de Gina Kolata que abrem esta seção,
podemos dizer que, nos últimos anos, trabalhos importantes têm busca-
do recuperar a memória daquela trágica experiência que foi a gripe espa-
nhola. A história, em associação com outras disciplinas, tem refletido
sobre a influenza de 1918 não apenas como mais uma praga a marcar o
caminho da humanidade, mas ampliando sua abordagem para outras
dimensões como a organização da saúde pública e os caminhos da pes-
quisa médica na identificação e compreensão dos processos mórbidos.
Concordamos, porém, que há ainda um campo inexplorado para novas
pesquisas. As possibilidades de análise na história dessa pandemia são
bastante amplas e promissoras e as ferramentas que cada abordagem
teórica oferece abrem novas perspectivas para a compreensão dos mais
diversos aspectos das práticas culturais em diferentes sociedades, assim
como das relações entre sociedade e natureza.

77

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 77 19/6/2008, 23:40


Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 78 19/6/2008, 23:40
CAPÍTULO 2

Cidades, saúde e civilização:


Belo Horizonte, um caso particular

Em meados de outubro de 1918, a imprensa da capital mineira


informava sobre o receio de seus habitantes em relação à gripe que se
alastrava no Rio de Janeiro. A invasão da cidade pela doença era vista por
alguns como algo inevitável, afinal, a proximidade com o Rio de Janeiro e
a movimentação diária entre as duas capitais, facilitada pela rápida liga-
ção proporcionada pelas linhas férreas, deixavam a cidade em uma situa-
ção vulnerável. Seria praticamente impossível evitar “o desembarque aqui
de algumas dessas pessoas atacadas pela espanhola”, afirmava a primeira
página do Diário de Minas, em sua edição do dia 18 daquele mês.1
Ao mesmo tempo em que se referia aos justificados temores da
sociedade, a imprensa buscava tranqüilizar a população da capital minei-
ra com uma série de argumentos. Um deles era a afirmação, repetida ad
infinitum, sobre a benignidade da moléstia que atingia o país. A epide-
mia era classificada como uma velha conhecida, não apresentando rela-
ção com a doença que havia vitimado a missão médica brasileira em
portos africanos e que estava grassando pelos países beligerantes:

1
Diário de Minas, 8 de outubro de 1918, p. 1. A influenza espanhola chegou à
capital mineira no dia 7 de outubro, por intermédio de passageiros infectados
vindos do Rio de Janeiro. Apesar da publicidade dada ao caso por um periódico da
cidade, o diretor de higiene do Estado, Samuel Libânio, havia declarado que os
gripados apresentavam a forma “benigna” da moléstia. Somente uma semana mais
tarde, as autoridades sanitárias reconheceriam a presença da “influenza espanho-
la” na capital. A Nota, 10 de outubro de 1918, p. 1, e Minas Gerais, 18 de outubro
de 1918, p. 1. Esse tema será tratado mais detidamente no próximo capítulo.

79

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 79 19/6/2008, 23:40


“É pura e simplesmente a gripe ou influenza (...). Cumpre não confundi-
la, portanto, com a gripe pneumônica, de Dakar, que, esta sim, é gravíssima
ameaça à vida, de prognósticos muito sérios (...). Não há, pois, razão
para nos enchermos de terror, como vai acontecendo por aí, confundin-
do uma coisa com outra, pondo em sobressalto toda a gente.”2

Além da benignidade da doença, também era difundida a opinião


de que o pânico provocava mais males que a própria moléstia: o temor da
morte abatia a moral e predispunha o organismo ao ataque da enfermida-
de. Como veremos no capítulo 4, sugestão e medo eram vistos como fato-
res muito mais terríveis para a propagação das moléstias do que os própri-
os micróbios. Essa argumentação era defendida por figuras de expressão
da classe médica brasileira, como o tisiólogo e sanitarista carioca Plácido
Barbosa. Em declarações reproduzidas pela imprensa mineira, Barbosa
dizia ser necessário combater a “influenzaphobia”, tão prejudicial aos
doentes, aos sãos, assim como às atividades essenciais, sentenciando que
“a desordem dos espíritos, gera a desordem das coisas” (BARBOSA,
1918:3-4). Para ele, o maior perigo da moléstia se devia à prostração de
populações inteiras, que promovia a desorganização do cotidiano. Desse
modo, preconizava um pouco de calma e um pouco de juízo a fim de
dissipar a “loucura coletiva” que se instalara em meio à sociedade.
No caso da capital mineira, além dessas justificativas para que a
população evitasse o pânico, ganhava destaque a freqüente referência às
condições de salubridade da cidade, que pareciam capazes de diferenciá-
la das outras no embate com a moléstia. Do início ao fim da pandemia,
essa referência pode ser observada na fala de jornalistas e das autoridades
governamentais e científicas. A nota que a Secretaria do Interior fez publi-
car no Minas Gerais, informando sobre as resoluções tomadas por aquele
órgão a fim de fazer frente à propagação da moléstia, era seguida pela
observação: “(...) sem embargo de ter a nossa cidade condições privilegi-
adas para resistir à invasão (...)”.3 Essa constante referência à salubridade
da capital mineira remetia ao fato de ser ela uma cidade recém-edificada,
seguindo os preceitos sanitários difundidos pela engenharia e a Higiene.

2
Diário de Minas, 18 de outubro de 1918, p. 1.
3
Minas Gerais, 18 de outubro de 1918, p. 1.

80

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 80 19/6/2008, 23:40


O artigo do jornalista Gustavo Pena era ainda mais enfático em
relação a esse aspecto, comparando Belo Horizonte ao Rio de Janeiro,
onde a gripe se alastrava de modo progressivo mas, como dizia, com um
número de vítimas “quase insignificante” em relação ao de doentes. Em
sua opinião, a gripe faria aqui, como em outras cidades, “ampla provisão
de encatarrados e pouca coisa mais”, uma vez que:
“(...) sob o ponto de vista da higiene, Belo Horizonte é uma cidade ideal.
De edificação recente, tendo seus prédios todos separados entre si,
aparelhada pelo seu serviço higiênico para dar o bom combate a qualquer
epidemia que nos venha visitar, parece que a possibilidade de fazer aqui
a influenza espanhola muitas vítimas é ainda muito menor do que se está
dando no Rio de Janeiro (...). Devemos aguardar seu arremesso com a
confiança tranqüila de quem, de posse de um enérgico cacete, espera a
investida de um cão bravio. Devemos (...) prepararmo-nos com tranqüila
resignação para a eventualidade de maior desenvolvimento da epidemia,
sem exageros, e na convicção de que na enorme quantidade de espanho-
lados, como se está dando no Rio de Janeiro (tão inferior a Belo Horizonte
para dar combate a uma epidemia), o caso não há de passar de uns
aborrecidos três dias de febre e inapetência, que se pode, ainda assim,
evitar, ouvindo e obedecendo ao médico da nossa confiança.”(PENA,
1918:3 grifo nosso)
Essa opinião sobre as condições sanitárias da cidade parece ter
sido amplamente partilhada. No dia 26 de outubro, a imprensa divulgava
artigo do clínico e professor da Faculdade de Medicina de Belo Horizon-
te, Otaviano de Almeida, que apontava os benefícios do clima, a “incon-
testável” eficiência anti-séptica do sol e a baixa aglomeração urbana, ca-
racterísticas verificadas na capital mineira, como fatores favoráveis à
condição higiênica da cidade. Dizia, ainda, que a capital havia conhecido
poucas epidemias, todas elas com um caráter de benignidade “que prova-
velmente as nossas condições climáticas explicam” (ALMEIDA, 1918:2).
Porém, apesar de acreditar nessas “boas condições de salubrida-
de” da cidade e no acerto das proposições que aconselhavam calma à
população em momentos de calamidade, ressaltava que, em Belo Hori-
zonte, “a sugestão parece pouco aplicável, talvez mesmo um tanto prejudi-
cial” (ALMEIDA, 1918:2).4 Segundo Otaviano de Almeida, era possível
identificar na capital mineira certa indiferença diante das ameaças epidê-
micas, fruto do número relativamente pequeno de eventos dessa natureza

81

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 81 19/6/2008, 23:40


vivenciados pela cidade e do caráter benigno por eles assumido, acaban-
do por levar ao espírito da população a “falsa idéia de que o perigo nunca
existe e de que não há nenhuma necessidade de se preocupar com o mal,
ficando tal encargo à Diretoria de Higiene do Estado” (ALMEIDA, 1918:2).
Conforme dizia, as epidemias de varíola e difteria, ocorridas pouco tempo
antes, foram tratadas pela população com mansidão e pouco caso.
Essa indiferença popular impunha embaraços à ação das autori-
dades, influindo também na relação entre os doutores e sua clientela.
Otaviano afirmava que em epidemias anteriores alguns pacientes discuti-
am o diagnóstico com seu médico, chegando mesmo a rejeitá-lo. Essa
observação revela que a classe médica tinha dificuldades em impor sua
autoridade sobre a população, colocando-nos na contramão do que aponta
uma determinada perspectiva historiográfica sobre o prestígio e o cres-
cente poder de ingerência da medicina na vida cotidiana da população
no período de transição entre os séculos XIX e XX (COSTA, 1999;
MACHADO, 1978; COSTA, 1985).
Para Otaviano de Almeida, a pandemia de espanhola que então se
difundia na capital mineira parecia produzir a mesma indiferença. Em seu
artigo, dizia que o povo ainda não havia se preocupado com a epidemia e
achava que a gripe valia “tanto quanto uma coriza, senão menos”. Afirmava
estar impressionado com o desassombro e a pilhéria com que a população
tratava o perigo, narrando como exemplo um comentário ouvido no bonde:
“‘a tal gripe é mais uma fita do que outra coisa’. – Isto foi dito por um
moço formado, cujas palavras têm, naturalmente, valor. E eu, (...) não
levei a mal o que casualmente ouvira, porque resumia e sintetizava a

4
Dados publicados no relatório da Diretoria de Higiene, do início de 1918, infor-
mavam que em 1917 foram registrados na cidade, com caráter epidêmico, nume-
rosos casos de difteria, “quase sempre benignos”. Quanto à varíola, há referência
a apenas um caso, importado do Rio de Janeiro. ESTADO DE MINAS GERAIS.
Relatório apresentado ao Secretário do Interior, 1918, p. 17. O Anuário de Estatís-
tica Demografo-Sanitária, publicado em 1921, aponta 7 óbitos atribuídos à difteria
em 1917 e 10 em 1918, não havendo registro de óbitos de varíola no mesmo
período. ESTADO DE MINAS GERAIS. Anuário de Estatística Demografo-Sanitá-
ria, 1921, p. 26. O número reduzido de eventos epidêmicos nesses primeiros anos
da capital mineira também é apontado por Carlos Maletta em estudo que traça a
evolução epidemiológica da cidade (MALETTA, 1997).

82

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 82 19/6/2008, 23:40


opinião de uma grande parte do povo de Belo Horizonte”. (ALMEIDA,
1918:2 grifo nosso)
Por fim, sentenciava que, se as conseqüências da epidemia ultra-
passassem as expectativas, isso se deveria menos ao terror e ao pânico,
como freqüentemente se acreditava, do que àquilo que classificava como
“coragem mal compreendida” – argumento que, como veremos, fazia
parte dos ensinamentos propalados pelos manuais médicos do período.5
As opiniões de Gustavo Pena e de Otaviano de Almeida remetem
a um aspecto recorrente do imaginário construído em torno de Belo Ho-
rizonte: o da salubridade. A nosso ver, as raízes dessa forma de percep-
ção da cidade remontam à época da mudança da capital mineira, no final
do século XIX, cuja construção baseou-se em estudos e projetos que
estiveram a cargo de engenheiros e sanitaristas nacionalmente reconheci-
dos. Essa imagem continuou a ser alimentada durante as primeiras déca-
das do século XX, especialmente através dos relatórios produzidos pelas
autoridades de saúde municipais e estaduais que, mesmo sinalizando
para os problemas de higiene urbana que exigiam a atuação do poder
público, invariavelmente reafirmavam o bom estado sanitário da capital.
Outro exemplo era a imprensa, espaço privilegiado para a denún-
cia de situações que revelavam o descaso das autoridades com as condi-
ções de higiene em que parte da população era obrigada a conviver, mas
que também desempenhava com maestria a função de divulgar esse “ima-
ginário salubre”. O artigo assinado por Gustavo Pena é apenas um caso e,
durante todo o transcorrer da epidemia de espanhola, a salubridade da
cidade foi apontada como um dos fatores determinantes para que não se
repetisse na cidade a desorganização e o obituário elevado verificados na
capital da República.6 Por sua vez, as declarações de Otaviano de Almeida
podem ser tomadas como um indício de como esse imaginário havia sido
assumido por parcela considerável da população da capital mineira.

5
Minas Gerais, 26 de outubro de 1918, p. 2. As opiniões do saber médico sobre os
comportamentos condenáveis durante os episódios epidêmicos serão objeto de exame
no capítulo 4.
6
Cf.: Minas Gerais, 24 de outubro de 1918, p. 3, e 13 de novembro de 1918, p.
2; Diário de Minas, 18 de outubro de 1918, p. 2.

83

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 83 19/6/2008, 23:40


Nesse capítulo, pretendemos examinar como foi sendo tecida essa
“imagem salubre” sobre a capital mineira. Na primeira parte, apresenta-
mos algumas considerações sobre como a higiene e salubridade urbanas
ascendem como problema de saúde pública, exigindo uma atuação efe-
tiva das autoridades. No caso brasileiro, a conformação de uma agenda
pública de saúde esteve relacionada à forma como o poder foi estruturado
a partir do advento da República, às representações de progresso e civi-
lização elaboradas pela elite dominante, à construção da própria nacio-
nalidade, e a uma percepção crescente das interdependências causadas
pela insalubridade e pelas ameaças epidêmicas.
A segunda parte é dedicada ao problema da mudança da capital
mineira. Apesar de antiga, a proposta de transferência da sede do gover-
no estadual só foi concretizada com o advento da República que, em
Minas, foi marcada pelo embate político entre as elites cafeeiras em as-
censão, das regiões da mata e do sul do estado, e os representantes das
áreas localizadas fora do circuito cafeeiro, consideradas como reino do
conservadorismo, do atraso e da decadência. Apesar de não se constituir
no aspecto mais importante dos projetos políticos em disputa, a transfe-
rência da sede do governo se converteu num dos assuntos mais debati-
dos pelo Congresso Constituinte de 1891.
A nosso ver, ao mesmo tempo em que se inscreve nas disputas
políticas regionais, a mudança da capital também remete às representa-
ções construídas sobre o espaço urbano que dominavam o período em
questão, e o problema da salubridade havia se tornado aspecto
indissociável do imaginário sobre a cidade, estabelecido a partir da se-
gunda metade do século XIX. Higiene, civilização e progresso formavam
uma tríade recorrente nos discursos sobre o espaço e a vida urbana. É no
interior desse imaginário que se pode entender os argumentos que con-
denavam Ouro Preto – com uma topografia que favorecia a desordem
nos arruamentos e nos serviços de água e de esgotos, comprometendo a
situação sanitária da cidade – e que condicionavam a escolha do lugar
que deveria abrigar a nova capital à existência de condições higiênicas
adequadas para a instalação de uma grande cidade.
A última parte é dedicada ao exame das condições de salubridade
que caracterizaram Belo Horizonte desde sua fundação. Planejada segun-
do as técnicas da engenharia e dos códigos e normas sanitários prevalentes
na segunda metade do século XIX, a capital mineira parecia corresponder,

84

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 84 19/6/2008, 23:40


do ponto de vista da higiene, à “cidade ideal” proclamada por Gustavo
Pena, especialmente quando contrastada com a realidade urbana prevalente
no resto do país. Porém, a própria edificação e a ocupação da cidade
acabariam subvertendo muitos desses preceitos, interferindo de forma
significativa nas condições sanitárias. No entanto, por mais evidentes que
alguns problemas de higiene se mostrassem, o inusitado de uma cidade
planejada e construída pela moderna engenharia parecia marcar de forma
mais profunda o imaginário da capital. Era exatamente a cidade planejada
por Aarão Reis, de ruas largas, casas separadas e normas que regulavam
a existência cotidiana de cada cidadão, que ressurgia na fala daqueles que
não acreditavam na ameaça da espanhola de 1918.

As cidades e a saúde pública

A experiência social das epidemias remonta aos primórdios da


civilização, o mesmo podendo ser dito quanto à preocupação das socie-
dades em enfrentar essas ameaças. Segundo William McNeill, o
sedentarismo teve várias implicações no surgimento das chamadas “do-
enças da civilização” (McNEILL, 1976).7 A intervenção humana na na-
tureza – especialmente pela agricultura e a domesticação de animais
mais o acúmulo dos refugos de suas atividades de sobrevivência – criou
condições para a reprodução e sobrevivência de diversos parasitos, con-
taminando o ambiente e impondo a exposição e convivência mais fre-
qüente dos homens com afecções diversas.
Apesar de apontar a existência de evidências que sugerem a pre-
sença de “atividades ligadas à saúde comunitária nas mais antigas civili-
zações” – destacando elementos como esgotos, banheiros, ruas pavi-
mentadas e drenadas, aquedutos, entre outros – George Rosen enfatiza
que, até o século XIX, o que vigorava no espaço das cidades eram as
aglomerações, com toda a sua sorte de imundícies, determinando a coe-
xistência quase constante de epidemias as mais diversas: difteria, malá-
ria, varíola, sarampo, influenza e, em especial, a peste (ROSEN, 1994:31).

7
Especialmente o capítulo 2.

85

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 85 19/6/2008, 23:40


Durante o século XIX, o crescimento exponencial da população
das cidades e a centralidade assumida pelas atividades econômicas de-
senvolvidas nesse ambiente, mais o incremento dos instrumentos de con-
trole das populações e de planejamento das atividades produtivas e a
emergência de mobilizações de massa, colocaram a cidade em evidên-
cia. Nas primeiras décadas do século, uma nova ameaça à vida urbana
no ocidente ganha a cena: a cólera. As epidemias da moléstia atravessa-
ram o mundo em grandes ondas pandêmicas, fazendo milhares de víti-
mas nas cidades superpovoadas. As topografias médicas enfatizavam a
influência nefasta e decisiva da insalubridade sobre a aparição da cólera
(BOURDELAIS, 1998:31).8
As populações pobres e os bairros por ela habitados eram vistos
como uma ameaça pela possibilidade de revoltas contra as condições de
existência e por constituírem um foco de emanações miasmáticas
(BOURDELAIS, 1988:34). Os autores que tematizam a vida urbana
européia desse período são unânimes em afirmar a desorganização e a
insalubridade da maioria das grandes cidades, infladas pela migração e
o desenvolvimento fabril que, por sua vez, faziam ampliar os bolsões de
miséria e repercutir as conseqüências do flagelo das doenças. As descri-
ções sobre odores desagradáveis e deletérios, esgotos correndo a céu
aberto, rejeitos de toda espécie espalhados pelas ruas ou no interior de
casas escuras e mal ventiladas se repetem:
“(...) você tem que penetrar becos empesteados por gases envenenados
e mal cheirosos que provêem da acumulação do esgoto e dos refugos
espalhados em todas as direções e freqüentemente correndo por baixo
dos pés; becos em muitos dos quais o sol nunca penetra, que nunca são
tocados por um sopro de ar fresco, e que raramente conhecem as virtu-
des de uma gota de água limpa (...). Você tem que tatear o caminho ao
longo de passagens escuras e sujas, infestadas de vermes.”9

8
Sobre as rotas e as descrições das epidemias de cólera na Europa e nos Estados
Unidos, durante o século XIX, ver: BOURDELAIS e RAULOT, 1987; EVANS,
1987; e ROSENBERG, 1987.
9
Andrew Mearns (1883), citado In: PORTER, 1999:400. Sobre as condições de
existência da pobreza européia, cf.: BRESCIANI, 1984; MARX e ENGELS, s.d;
EVANS, 1987. Para os Estados Unidos, cf.: ROSENBERG, 1987.

86

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 86 19/6/2008, 23:40


A associação entre doença e sujeira perpassava a opinião de médi-
cos e leigos sobre o problema da salubridade, justificando o preconceito
e o temor em relação aos pobres. As soluções surgidas para afastar a
dupla ameaça – das doenças e dos pobres – convergiam para duas linhas
de ação interligadas: intervir no tecido urbano através de reformas e
melhoramentos, como rede de esgotos, fornecimento de água potável,
limpeza e saneamento dos espaços públicos, e intervir nas condições de
vida dos pobres, deslocando-os das regiões centrais e/ou disciplinando
hábitos e comportamentos. Assim, a atuação da saúde pública estaria
pautada no saneamento do meio ambiente, levado a cabo pela engenha-
ria sanitária, e na tentativa de moralização das classes pobres, que mobi-
lizavam o Estado, filantropos e reformadores sociais (PORTER, 1999:398-
405 e 409-415; STARR, 1982:180-181).
O desenvolvimento da bacteriologia nas últimas décadas do século
XIX traria importantes mudanças tanto para a prática como para a teoria
que informavam a saúde pública. Como salienta Paul Starr, ao estabelecer
uma causa específica para cada moléstia, a bacteriologia acenava com a
possibilidade de intervenções mais localizadas, que visavam um agente
patogênico particular em substituição a uma atuação extensiva e
indiscriminada, reduzindo os custos sociais (STARR, 1982:181 e 189-
191). Além disso, também levava a um deslocamento da preocupação
com a limpeza do ambiente para a higiene individual, propiciando a am-
pliação do papel desempenhado pela medicina e seus profissionais. No
entanto, a imposição das noções da bacteriologia não se fez de modo
simples e imediato, e as velhas teorias sobre a origem das moléstias e a for-
ma de combatê-las persistiram como elementos explicativos, especialmen-
te diante de experiências que desafiavam as conquistas da nova ciência.10
O quadro de problemas e temores que a cidade do século XIX
infundia serviu de fundamento para as proposições de George Rosen, um
dos pioneiros da história da saúde pública. Examinando a experiência
inglesa, Rosen afirma que o estabelecimento da agenda de saúde pública
foi uma decorrência da progressiva ação do Estado centralizado e das

10
Segundo Naomi Rogers, os laços metafóricos e a associação entre doença e
sujeira permanecem até os dias atuais como poderoso elemento da retórica da
saúde pública (ROGERS, 1996).

87

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 87 19/6/2008, 23:40


transformações produzidas pelo capitalismo industrial, potencializadas pelas
epidemias que assaltavam a sociedade. A seu ver, a ameaça das epidemi-
as de cólera teria papel decisivo na ampliação e aprofundamento do movi-
mento sanitário inglês, marcando o nascimento do que chama de saúde
pública moderna (ROSEN, 1994). Conjugando Estado centralizado, revo-
lução industrial e grandes epidemias, o modelo proposto por Rosen se
tornaria um verdadeiro paradigma para diversos trabalhos dedicados ao
tema da saúde pública.11
Porém, há quem divirja da proeminência dada às epidemias de
cólera nas reformas e na organização da agenda de saúde naquele perío-
do. Margareth Pelling, por exemplo, contesta a interpretação de Rosen,
dizendo que o movimento dos reformadores ingleses teria sido impulsio-
nado pelas doenças prevalentes no período anterior à primeira epidemia
de cólera – como febre tifóide, sarampo, varíola, escarlatina, tifo, tubercu-
lose, alcoolismo (PELLING, 1978).12 Análises produzidas sobre o mesmo
tema enfocando outros países defendem que as epidemias da doença, no
decorrer do século XIX, não foram a origem, mas um entre outros ele-
mentos influentes nas mudanças de atitude em relação à higiene e à saúde
coletiva, compondo um processo complexo que envolvia aspectos e di-
mensões variadas da vida social (Cf. BOURDELAIS, 1998:33-34; EVANS,
1987:474-478; ROSENBERG, 1987:98, entre outros).
Outros, como Dorothy Porter, denunciam a validade da extensão
do modelo criado por Rosen, apresentando estudos que apontam dife-
rentes processos pelos quais a saúde pública organizou-se em outros
países – como na Suécia, onde a ausência de industrialização não foi
empecilho para a ação do Estado na saúde pública; nos Estados Unidos,

11
Sobre a tradição historiográfica estabelecida pela abordagem proposta por George
Rosen, cf.: PORTER, 1994. No Brasil, as influências da abordagem proposta por
Rosen são claramente percebidas em RIBEIRO, 1993.
12
Segundo a autora, as epidemias de cólera teriam mobilizado as atenções pelos
seguintes fatores, entre outros: o choque provocado por sua aparição ter sido abun-
dantemente registrado naquele momento; o seu surgimento ter coincidido com
outras forças de distúrbio, especialmente políticas e sociais; terem acontecido num
momento de inovações em estruturas institucionais e administrativas; existência de
uma comparativa superioridade dos registros de suas aparições, além da abundân-
cia da literatura sobre a doença.

88

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 88 19/6/2008, 23:40


onde a moral evangélica teve um papel importante no movimento de
saúde pública; ou, ainda, na Índia e certas regiões africanas, nas quais as
relações entre imperialismo-colonialismo e saúde pública não podem ser
desconsideradas.13
O fenômeno do crescimento urbano, verificado na Europa entre
os séculos XVIII e XIX, também será observado em algumas cidades
brasileiras, especialmente na segunda metade do século XIX, momento
marcado por transformações políticas e sociais que redefiniriam a face
do país, como o fim da escravidão e a proclamação da República. O
primeiro recenseamento no Brasil, realizado em 1872, revelava a con-
centração dos principais centros urbanos na grande faixa litorânea. As
condições de salubridade e higiene que caracterizavam o espaço dessas
cidades pouco diferiam quando comparadas entre si:
“Bem maiores em extensão e em população do que no período colonial,
antes mesmo do início da intensa migração européia em 1880, as cida-
des do Brasil imperial impressionavam os viajantes estrangeiros, com o
movimento nas suas ruas, seus sólidos edifícios públicos e os crescentes
serviços públicos. Apesar de alguns desses viajantes reclamarem da su-
jeira das ruas e dos odores desagradáveis (...).” (HAHNER, 1993:15)14
Disenterias, varíola, malária, tifo, febre amarela, cólera e peste,
entre outras, grassavam pelo país de forma endêmica e epidêmica, quer
nas cidades quer nas áreas rurais.15 O adensamento urbano só fazia
aumentar o flagelo, ampliando a percepção das conseqüências negativas
da presença dessas moléstias. Os serviços de saúde estavam a cargo das
municipalidades e, em sua maioria, não passavam de coleções de regula-
mentos. Conforme Licurgo Santos Filho, somente no decurso dos perío-
dos epidêmicos é que os governos provinciais exerciam pressões sobre as
Câmaras Municipais para a adoção de medidas que visassem a higiene e
a saúde da coletividade (SANTOS FILHO, 1991:496 vol.2).

13
Para uma panorâmica sobre autores e abordagens divergentes do modelo pro-
posto por Rosen, cf.: PORTER, 1994, “Introduction”:1-41. Cf. ainda: CAMPOS,
1997 e 2000:196.
14
Uma caracterização dos principais centros urbanos do país é dada no capítulo 1.
15
Sobre doenças e epidemias no Brasil do século XIX, cf. entre outros: SANTOS
FILHO, 1991 (vol.2); STEPAN, 1976; CHALHOUB, 1996.

89

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 89 19/6/2008, 23:40


Segundo o autor, foi a preocupação com a pandemia de cólera
que havia grassado na Europa (1817-1824) que estimulou o governo
imperial a instituir, em 1829, a Inspeção de Saúde Pública do Porto do
Rio de Janeiro, impondo a vigilância de embarcações e o direito de de-
terminação de quarentenas. Mais tarde, em 1849, essa vigilância seria
estendida aos outros portos do país, instituindo-se regulamentos e leis
especiais de saúde nos portos. A partir de 1850, foram criadas as Juntas
de Higiene Pública na corte e nas províncias. Porém, a ação desses
órgãos continuava a se fazer quase que exclusivamente diante da ameaça
de epidemias (SANTOS FILHO, 1991:497-498 vol.2).16
A República retomaria o caráter descentralizado das ações em
saúde pública no Brasil e, até bem entrado o novo regime, a atuação do
Estado continuaria resumida à saúde dos portos e às quadras epidêmi-
cas, não havendo uma política consistente que visasse a resolução dos
problemas dessa natureza em âmbito nacional. Esse quadro seria reflexo
do federalismo que havia marcado a organização do Estado no período
da República Velha.17 Não obstante, como mostram alguns trabalhos
sobre o tema, foi exatamente nesse período que se conformou uma agen-
da de saúde pública no país, a partir de uma percepção crescente quer
das cadeias de interdependências que ligavam as diversas regiões brasi-
leiras, como das conseqüências negativas impostas pela situação sanitá-
ria. Ao avanço gradual dessa consciência teria se seguido uma progressi-
va centralização de ações em âmbito nacional nas mãos do estado (Cf.:
HOCHMAN, 1998, e CASTRO SANTOS e FARIA, 2003).
A necessidade de uma ação coordenada nacionalmente no campo
da saúde pode ser observada por intermédio da experiência paulista,
pioneira na implantação de uma política de saúde pública. Essa política
seria decorrente das exigências impostas pelo problema da mão-de-obra
para a lavoura cafeeira e do crescente processo de urbanização, resultan-
do na criação do Código Sanitário, que ampliava a ingerência e controle
do governo estadual.18 Porém, as medidas implementadas esbarravam

16
Ver também, BENCHIMOL, 2003:238.
17
Massako Iyda (1994) sublinha que, até o período republicano, a saúde pública
no país teria sido marcada por um “caráter eventual” (Especialmente o capítulo 2).
18
Além do Código Sanitário (1894), a organização da saúde pública em São Paulo

90

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 90 19/6/2008, 23:40


na ausência de uma política semelhante nos outros estados, de onde as
doenças continuavam a ser introduzidas no território paulista. Como sali-
enta Gilberto Hochman, o incentivo dado por São Paulo à implementação
de políticas de saúde nacionais a partir da década de 1910 visava redu-
zir os efeitos negativos impostos pela realidade vigente em outros estados
da União (HOCHMAN, 1998:240).
Analisando o movimento pela saúde pública no Brasil, Luiz A. de
Castro Santos afirma que seus contornos seriam definidos segundo uma
ideologia da construção da nacionalidade, dividindo-se em duas fases
distintas correspondentes a duas correntes do pensamento nacionalista. A
primeira fase se caracterizaria por uma visão que vinculava a identidade
nacional a um ideal de civilização européia, defendendo a imigração como
solução para a inferioridade da “raça brasileira”. Por isso, o privilégio
atribuído às condições sanitárias das cidades e dos portos, percebidos
como entraves à atração dos imigrantes europeus e, por conseguinte, à
modernização do país (CASTRO SANTOS, 1985; CASTRO SANTOS e
FARIA, 2003, especialmente os capítulos 1 e 2). Como afirma Sidney
Chalhoub, no Brasil, na passagem dos séculos XIX-XX, o conceito de
civilização “implicava o ideal de embranquecimento”, o que significava a
necessidade de adoção de medidas que estimulassem a entrada desses
estrangeiros, entre as quais estava a melhoria das condições de salubridade
pública (CHALHOUB, 1996:57). Essa fase abarcaria os primeiros anos
do período republicano, sendo seu exemplo paradigmático a reforma sani-
tária da capital federal, levada a cabo por Oswaldo Cruz e Pereira Passos.
A segunda fase do movimento pela saúde pública teria lugar em
meados da década de 1910, e seria tributária de uma corrente que iden-
tificava as raízes da nacionalidade brasileira nas populações sertanejas do
país. Um dos expoentes desse processo de resgate dos sertões foi Euclides
da Cunha, que criticava as elites brasileiras por tomarem de empréstimo à
Europa seu modelo de civilização, ignorando o atraso e o abandono das
populações do interior. O marco fundamental dessa fase foi a publicação

também se pautou no estabelecimento de um aparato institucional (Serviço Geral


de Desinfecção, Laboratório Farmacêutico, Instituto Bacteriológico e Vacinogênico,
comissões de saneamento) e nas intervenções urbanísticas levadas a cabo entre
1899-1914 (RIBEIRO, 1993).

91

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 91 19/6/2008, 23:40


do relatório da viagem científica realizada por Artur Neiva e Belisário
Pena a Goiás e alguns estados do nordeste, no qual denunciavam as pés-
simas condições sanitárias do interior do país. Apesar de reafirmarem a
visão de Euclides sobre as populações sertanejas, Neiva e Pena atribuíam
seu atraso e miséria às doenças endêmicas que as atingiam. Assim, o
atraso brasileiro não era determinado pela inferioridade racial do povo,
como pregavam os partidários do racismo científico do século XIX, mas
pelo desamparo sanitário em que se achava desde sempre relegado o
interior do país. Portanto, ao mesmo tempo em que ofereciam um cami-
nho para a redenção e a civilização do Brasil, Neiva e Pena contribuíam
para deslocar o foco do movimento da saúde pública das reformas urba-
nas para o saneamento dos sertões (CASTRO SANTOS, 1985; CASTRO
SANTOS E FARIA, 2003).19
Entre os exemplos de reformas urbanas que marcaram a primeira
fase do movimento pela saúde pública no país, destacamos as de Santos
e do Rio de Janeiro. O plano de saneamento da cidade de Santos foi
elaborado e implementado pelo engenheiro Saturnino de Brito na segun-
da metade da década de 1900. Suas justificativas refletiam os interesses
econômicos do estado e da elite paulistana: o papel desempenhado pela
cidade como o “escoadouro vital” das exportações paulistas; o fato de
representar um foco irradiador de moléstias para outras cidades do esta-
do; a ameaça para a entrada de imigrantes demandados pela lavoura
cafeeira (ANDRADE, 1991:56).20

19
Sobre as relações entre o movimento do saneamento rural e nacionalismo, cf.
também: HOCHMAN, 1998; LIMA, 1999 especialmente os capítulos 3 e 4; LIMA
e BRITTO, 1991; CAMPOS, 1986 especialmente o capítulo 1; SÁ, 1999.
20
Como aponta Carlos Roberto Andrade, ao lado do interesse de sanear a cidade
santista, Saturnino havia se preocupado em prever a expansão futura do tecido
urbano, o que implicava em um planejamento que resolvesse os problemas pre-
mentes e incorporasse soluções visando o longo prazo. Para o autor, essa visão da
cidade como uma totalidade e a “intervenção urbanística como meio de redefinição
do conjunto da estrutura urbana” e de “previsão do [seu] destino” destacariam o
trabalho de Saturnino de Brito como aplicação pioneira do nascente urbanismo
moderno (p. 55 e 61). No entanto, como veremos adiante, Aarão Reis faria o
mesmo, alguns anos antes, com a construção de Belo Horizonte.

92

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 92 19/6/2008, 23:40


Perspectiva semelhante fundamenta a remodelação da capital fe-
deral, realizada por Pereira Passos nos primeiros anos do século XX.
Além de buscar solucionar as ameaças impostas à [e pela] população
carioca pelo estado sanitário da cidade, por intermédio da ação enérgica
de Oswaldo Cruz, a reforma Passos também visava problemas de ordem
econômica e política. A expansão dos setores produtivos, o papel de
principal “empório comercial e financeiro”, as novas relações sociais e
de trabalho e a recente experiência política da república impunham a
modernização do espaço da cidade (BENCHIMOL, 1990 e 2003).21 As
conseqüências geradas pelo caos urbano no Rio de Janeiro ficam paten-
tes nessa fala do presidente Rodrigues Alves, empossado em 1902, e
responsável pela nomeação de Pereira Passos para a prefeitura carioca:
“Aparelhados por bons elementos naturais, como efetivamente o somos,
não conseguiremos, todavia, o nosso fortalecimento econômico sem o
concurso do braço e do capital, cuja introdução no país convém promo-
ver, afastando com pertinaz diligência todas as causas que puderem
embaraçá-la. (...).
“Aos interesses da imigração, dos quais depende em máxima parte o
nosso desenvolvimento econômico, prende-se a necessidade do sanea-
mento desta capital (...).”22
O problema urbano parecia ter se tornado um verdadeiro entrave
ao desenvolvimento econômico do país. Assim, a salubridade, a funciona-
lidade e a beleza da cidade tornavam-se ingredientes indispensáveis nas
fórmulas para o progresso econômico e a civilização da nação brasileira.
Como aponta a historiografia, a crise sanitária do Rio de Janeiro
era assunto que já preocupava as autoridades do império, sendo que os
debates e a mobilização do Estado na busca de soluções visando o sane-
amento e urbanização carioca estavam presentes desde a segunda meta-
de do século XIX (BENCHIMOL, 1990; ROCHA, 1995; CHALHOUB,
1996; KROPF, 1996). No entanto, o contexto da crise que assolava a
capital do país diferia substancialmente daquele identificado em muitas
cidades européias, uma vez que os problemas urbanos e sanitários da

21
Cf. ainda: ROCHA, 1995.
22
Discurso de posse de Rodrigues Alves, pronunciado em 15 de novembro de
1902. In: ROCHA, 1995:55.

93

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 93 19/6/2008, 23:40


cidade não advinham de uma progressiva intensificação do desenvolvi-
mento do capitalismo industrial. No caso carioca, o crescimento urbano e
os problemas por ele acarretados eram fruto da condição de ser a cidade
o principal centro comercial, financeiro, político e cultural do país, o que
fazia dela “um pólo de atração de uma população originária de outras
províncias e do exterior” (FRITSCH, 1986:76).23
Para além de abranger os interesses sanitários e mercantis, livran-
do o cenário das cidades das ameaças mórbidas e facilitando a circula-
ção de bens e pessoas, as intervenções urbanas no Brasil, entre fins do
século XIX e as primeiras décadas do século seguinte, revelavam tam-
bém um projeto de nação, um desejo de exorcizar o passado colonial e
escravista, de construir uma nova paisagem, que fosse mais adequada à
república e à inserção do país no concerto internacional das nações.24
Conforme nos mostra Simone Kropf, entre os envolvidos nas principais
reformas urbanas do período, destacavam-se os engenheiros originários
da Escola Politécnica e do Clube de Engenharia (RJ), instituições
identificadas com a “promoção do progresso e da modernização da soci-
edade brasileira” (KROPF, 1996).25
Dessa forma, a interpretação sobre os problemas relativos ao sa-
neamento urbano e à saúde pública brasileira, e as soluções propostas
para solucioná-los, estaria relacionada a um conjunto de especificidades
que eram diversas das verificadas em algumas cidades européias. O as-
pecto particular dessa interpretação e de suas soluções seria dado em

23
Cf.: BENCHIMOL, 1990 e 2003
24
Segundo Jayme Benchimol, as representações ideológicas das obras de remode-
lação do Rio de Janeiro opunham dois grandes campos ou princípios: “o progres-
so, a civilização, a regeneração estética e sanitária da cidade; a cidade colonial,
atrasada, anti-estética, suja e doente” (BENCHIMOL, 1990:205). A nosso ver,
essa representação ideológica também informa outras intervenções urbanas ocorri-
das no mesmo período. Sobre a correspondência entre a reforma urbana e civiliza-
ção, cf. ainda ROCHA, 1995; CHALHOUB, 1996 e 1986; CAVALCANTE, 1985.
25
As trajetórias profissionais traçadas por esses engenheiros evidenciavam referên-
cias comuns que estavam indissociavelmente ligadas a seu espaço de origem
institucional. Certamente, este é um elemento que ajuda a entender a similitude de
diagnósticos e das soluções que compunham projetos de intervenções urbanas em
outras cidades do país, como, por exemplo, Santos e Belo Horizonte.

94

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 94 19/6/2008, 23:40


função de um contexto marcado por fatores condicionantes distintos,
onde se destaca a ausência de um efetivo processo de industrialização.
Ao lado dessa ausência, é preciso considerar também o fim da escravi-
dão e a tentativa de atração de mão-de-obra para a lavoura, que revela-
vam o anseio de inserção do Brasil no rol das nações civilizadas (como
projeto elitista e não de inclusão social) e a necessidade de integração e
afirmação da nacionalidade.26
Se não podemos esquecer essas especificidades, sob pena de com-
prometer a análise, por outro lado, acreditamos ser possível estabelecer
alguns elementos de sintonia entre as reformas ocorridas nas cidades
européias e brasileiras. Um deles seria a identificação entre civilização e
salubridade. Outro elemento comum seria a crença expressa no aparato
técnico-científico como um elemento “garantidor do bem-estar e da or-
dem social” (SILVA, 2003:147). O objetivismo atribuído naquele mo-
mento à ciência e à técnica parecia ser um instrumento capaz de oferecer
soluções seguras e legítimas para uma reestruturação não apenas da di-
mensão física da cidade – o saneamento e a produção – mas ainda de
sua dimensão social.
Um bom exemplo do desejo de modernização física do espaço
urbano aos moldes das grandes metrópoles estrangeiras, como forma de
evidenciar a civilização e o progresso da sociedade, pode ser vislumbra-
do no projeto de mudança da nova capital de Minas Gerais, efetivado tão
logo instaurado o novo regime. E a experiência mineira apresenta um
diferencial digno de nota, uma vez que propôs e edificou uma cidade
completamente nova. Os entraves econômicos e as necessidades sanitári-
as estiveram presentes na condenação da velha capital, Ouro Preto, e na
definição e planejamento da cidade desejada. Retificação, embelezamento
e saneamento, no entanto, não incidiram sobre o tecido urbano da velha
Ouro Preto, como seria feito nas outras capitais, mas sim sobre a nature-
za arrasada de um velho povoado dos confins de Minas, chamado, até o
início da República, de Curral del Rei.27

26
Essas observações confirmam as advertências de Dorothy Porter (1994) em
relação à aplicação do modelo interpretativo criado por George Rosen (1994).
27
Em abril de 1890, a pedido dos moradores daquela localidade, o então governa-
dor de Minas Gerais, João Pinheiro, assinava decreto mudando o nome do Curral

95

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 95 19/6/2008, 23:40


A nova capital mineira: política e higiene

A mudança da capital mineira é questão discutida desde a época


colonial.28 Já por volta de 1720 o Conde de Assumar indicaria a conve-
niência da transferência da residência dos governadores e a construção
de uma casa de fundição em Cachoeira do Campo, uma vez que Vila
Rica via-se “sobremodo exposta às arremetidas dos motineiros”
(BARRETO, 1996:281 vol.1). A conjuração mineira de 1789 apresen-
taria nova proposta de transferência da sede do governo, indicando a vila
de São João del Rei, sob o argumento de estar localizada numa região
“mais bem situada e farta de mantimentos”.29 No século seguinte, a mu-
dança da sede do governo seria assunto recorrente.30 Entre as justificati-
vas desse período, destaca-se o papel que então se atribuía a uma capital:

Del Rei para Belo Horizonte (BARRETO, 1996 vol.1). Em 1893, novo decreto
mudava o nome da cidade para Minas. Somente em meados de 1901 a cidade
retomaria a denominação de Belo Horizonte (BARRETO, 1996:723 vol.2).
28
A ocupação e o desenvolvimento urbano na região central do território brasileiro
foram estimulados pela atividade mineradora, influindo inclusive no deslocamento
da capital da colônia de Salvador para o Rio de Janeiro, de forma a facilitar o
controle da metrópole sobre a nova riqueza. A capitania das Minas Gerais, criada
no início do século XVIII, foi fruto de uma reorganização administrativa que visava
ordenar os interesses e conflitos gerados em torno da mineração. A primeira sede
da nova capitania seria instalada na vila do Ribeirão do Carmo, atual Mariana.
Mas, com o desenvolvimento das atividades extrativas, os governadores acabaram
fixando-se na Vila Rica de Ouro Preto.
29
“Autos da Devassa da Inconfidência Mineira”. In: Revista do Arquivo Público
Mineiro, 1982, p. 18. Em 1891, um jornal da cidade de São João del Rei afirmava
que o desejo de mudança da capital já era manifesto desde a época da Revolta de
Felipe dos Santos, ainda na primeira metade do século XVIII. A Pátria Mineira, 23
de março de 1893, p. 2.
30
Abílio Barreto lista quatro propostas de transferência da capital mineira durante o
período imperial: em 1833, quando a sugestão foi apresentada à assembléia provin-
cial; em 1847, por iniciativa do próprio presidente da província, Francisco J. S.
Soares d’Andréa; em 1851, como sugestão do presidente José Ricardo de Sá Rego;
e em 1869, através do deputado provincial Padre Agostinho F de Souza Paraíso
(BARRETO, 1996 vol.1). Cf. também: Revista do Arquivo Público Mineiro, 1982.

96

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 96 19/6/2008, 23:40


o de centro politicamente integrador e economicamente difusor do de-
senvolvimento para toda a província:
“As capitais (...) devem ser nas posições mais vantajosas não só às co-
municações internas e externas dos seus habitantes, como de preferên-
cia nos lugares em que mais interesses se jogarem (...).
Além destas condições, ainda são indispensáveis, localidades aprazíveis,
terrenos férteis e saudáveis (...) abundância de boas águas.
[Ouro Preto] está longe de satisfazer a todas estas exigências, e mal
poderá em qualquer tempo desenvolver-se com aquele esplendor e
acumulamento de interesses que tocam a capital de uma província tão
importante.”31
O isolamento geográfico de Ouro Preto era um reflexo da explora-
ção mineradora, voltada para a metrópole, e da própria lógica da admi-
nistração colonial, preocupada em controlar o movimento da riqueza pro-
duzida em seus domínios. Com o esgotamento da atividade mineradora,
a topografia da cidade se tornava uma barreira ao desenvolvimento de
atividades mercantis e fabris. Encravada numa região montanhosa de
acesso difícil e sem grande lavoura, a capital parecia dormitar nas glórias
passadas da mineração. A prosperidade econômica conhecida pelo im-
pério, especialmente na segunda metade do século XIX, havia passado
ao largo da velha cidade.32
Enquanto isso, as regiões da mata e do sul mineiro floresciam,
capitaneando os lucros gerados pela lavoura do café e os investimentos e
benefícios advindos através da ferrovia, da dinamização do comércio e
da industrialização incipiente. Entre os baluartes desse novo tempo esta-
vam Juiz de Fora e Barbacena (OLIVEIRA, 1995; PIRES, 1993). Tais

31
ANDRÉA, Francisco J. S. Soares. In: Revista do Arquivo Público Mineiro, 1982,
p. 19. Sobre as representações construídas em torno da cidade capital, cf.: SAL-
GUEIRO, 1997:37.
32
Em 1851, o presidente José Ricardo de Sá Rego traduzia o estado de penúria
em que vivia a cidade de Ouro Preto recorrendo aos dados sobre a população
urbana de fins do século XVIII e meados do XIX, que indicavam um declínio
expressivo “de mais de vinte mil para menos de cinco mil almas”. Revista do
Arquivo Público Mineiro, 1982, p. 20-21.

97

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 97 19/6/2008, 23:40


mudanças imprimiam um novo sentido às cidades, que se configuravam
como centros mercantis e de prestação de serviços, nos quais uma nova
camada social encontrava espaço de atuação. A necessidade de reorga-
nizar a velha sociedade escravista engajaria esse grupo na luta pela abo-
lição e pela república, meios possíveis para a modernização, rompendo
com a velha ordem imperial e inscrevendo o país na sociedade civilizada.
Essas mudanças também contribuíram para o surgimento de uma nova
elite, que iria reivindicar para si o controle sobre as forças políticas da
província – efetivas e simbólicas, como era o caso da própria capital.33
Porém, se a atividade cafeeira significava um reflorescimento eco-
nômico de Minas, do mesmo modo que a mineração, ela também estava
voltada para o mercado externo, não contribuindo, portanto, para uma
efetiva integração das suas diversas regiões. Durante todo o século XIX e
nos primeiros anos da república, essas regiões gravitaram em torno de
centros polarizadores exteriores – Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo. Como
afirma Paul Singer, as mudanças econômicas advindas com o café “acen-
tuam as forças centrífugas e reforçam o dilaceramento da província, que
se divide cada vez mais em regiões autônomas, estanques entre si (...)”
(SINGER, 1968:213).
Ao lado dessas áreas em crescimento havia outras, miseráveis e
esquecidas, que também buscavam impor seus pleitos. Entre seus defen-
sores estava o Padre Agostinho Paraíso que apresentou uma proposta de
mudança da sede do governo à Assembléia Provincial em 1869. Parti-
lhando a imagem de que uma capital devia ser um centro de convergên-
cia, um agente de polarização econômico e social, Agostinho dizia ser
essa decisão reclamada por toda a população como uma “medida de
salvação” contra o atraso e a decadência em que se encontravam diver-
sas regiões do estado (BARRETO, 1996:290 vol.1).34

33
A transferência da capital mineira era vista pelas elites emergentes da mata e do
sul como medida imperiosa para os “grandes destinos de civilização e prosperida-
de” da província, representando o “ponto de partida para a consecução de muitos
outros empreendimentos dela decorrentes” (BARRETO, 1996:287 vol.1).
34
A idéia da cidade como agente de polarização de uma região era, segundo
Heliana Salgueiro, um dos princípios da economia política que, a partir de meados
do século XIX, assumiria peso significativo nas justificativas e nas proposições de
racionalização do espaço urbano (SALGUEIRO, 1997:37).

98

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 98 19/6/2008, 23:40


No entanto, o problema somente ganharia solução com a instaura-
ção da República. Entre 1890 e 1893, a transferência seria encampada
pelo estado, incluindo-se na agenda de seus dirigentes e assumindo pla-
no de destaque nas sessões do Congresso Constituinte. Tão logo instala-
do, o novo governo recebia representações de diversas regiões do estado
proclamando-se como local mais apropriado para a edificação da nova
sede do governo.35 Em 1890, ocupando interinamente o governo estadu-
al, Domingos José da Rocha incumbiu o engenheiro Herculano Pena da
realização de estudos sobre algumas localidades que se prestassem à
edificação da futura sede do governo.36
No ano seguinte, outro presidente, Augusto de Lima, tentou editar
um decreto transferindo a capital para Belo Horizonte, na região central
do estado, causando alvoroço entre os contrários à medida, mas também
entre seus defensores, que se viam excluídos de decisão tão importante.
A prerrogativa foi então transferida para o Congresso Constituinte Esta-
dual, que seria instalado no mesmo ano. Porém, o governador fez incluir
no ante-projeto constitucional, um artigo determinando a mudança da
sede do governo para um ponto central no vale do Rio das Velhas. Por
sugestão da comissão nomeada para dar parecer sobre o anteprojeto,
uma equipe de técnicos seria constituída para, no prazo de quarenta e
cinco dias, efetuar o estudo de algumas localidades indicadas para a
transferência da capital.37
Durante as sessões do Congresso o assunto roubaria a cena. A
primazia de abrigar a nova capital era disputada por representantes de

35
Em 1898, o governo estadual recebia as representações da Câmara Municipal
São João del Rei e da população do Curral del Rei (BARRETO, 1996:297-301
vol.1). Novas representações seriam enviadas ao legislativo mineiro em 1891. Cf.:
ESTADO DE MINAS GERAIS. ANNAES, 1896 (Pium-í, p. 152; Itabira, pp.159-
160; São João del Rei, pp. 368-374).
36
Privilegiando a região do Rio das Velhas, na área central do estado, o relatório de
Herculano Pena sugeria a localidade do Curral del Rei, que, além de água abundan-
te, tinha clima temperado e uma “notória salubridade” (afirmada pelos habitantes
da terra e por outras pessoas habilitadas) (BARRETO, 1996: 307-312 vol.1).
37
Essa comissão seria composta pelos engenheiros José Domingos da Rocha, Fran-
cisco Wan Erven, Manuel Pereira Mesquita, G. Howyan, Joaquim Aureliano de
Sepúlveda e Antônio M de O’Connel Jersey (BARRETO, 1996: 322-325 vol.1).

99

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 99 19/6/2008, 23:40


todas as partes do estado. Apesar de ter se tornado artigo constitucional,
as disputas entre cada região fizeram postergar a escolha do local. A
constituição promulgada desdobrava a questão em dois artigos: o primei-
ro decretava a mudança; o segundo estipulava a realização de novos
estudos que seriam apresentados ao Congresso ordinário, a quem cabe-
ria a escolha da nova sede do governo, o que ocorreria somente dois anos
mais tarde, durante o governo de Affonso Pena.38
A nova comissão, constituída em 1892 e chefiada pelo engenheiro
Aarão Reis, realizou estudos em cinco localidades: Barbacena, Belo
Horizonte, Juiz de Fora, Paraúna e Várzea do Marçal. Apresentado em
meados de 1893, o relatório de Aarão Reis oscilava entre duas cidades:
Várzea do Marçal e Belo Horizonte.39 Da primeira, dizia ser “na atualida-
de (...) o centro de gravidade do estado”, observando, porém, que em
pouco tempo, esse posto seria melhor representado por Belo Horizon-

38
Representante da ala conservadora, Affonso Penna foi membro do antigo Parti-
do Liberal e Conselheiro de Estado do Império em 1888, deputado provincial
(1874-1879), Deputado Geral (1878-1889), Ministro da Guerra (1882), Ministro
da Agricultura, Comércio e Obras Públicas (1883-1884) e Ministro da Justiça
(1885). Na República, foi eleito senador à Assembléia Constituinte Estadual de
1891. ESTADO DE MINAS GERAIS. ANNAES, 1896, p. 61. Affonso Penna
também foi presidente da República (1906-1910), substituído por seu vice, Nilo
Peçanha, quando de seu falecimento em 1909.
39
Aarão Reis diplomou-se pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro em 1874.
Teve atuação destacada em sua área profissional, participando das instituições de
referência de sua categoria, assim como de vários projetos de obras públicas na
passagem dos séculos XIX-XX. Sua atuação como engenheiro, publicista e educa-
dor revelam preocupações de ordem social e o engajamento na efetiva construção
de um país moderno. Seria um dos artífices do que Simone Kropf denomina o
processo de constituição de uma identidade específica dos engenheiros – a de
“portadores de uma determinada visão explicativa da sociedade brasileira e de um
projeto próprio no qual se auto-reconheciam como agentes diretos da moderniza-
ção” (KROPF, 1996:76-77). Sobre o pensamento de Aarão Reis cf.: SALGUEI-
RO, 1997 e REIS, 1918. Integravam a Comissão chefiada por Aarão Reis, cinco
engenheiros, encarregados de executar os estudos específicos de cada localidade –
José Carvalho de Almeida, Samuel Gomes Pereira, Manuel da Silva Couto, Eugê-
nio de Barros Raja Gabaglia e Luiz Martinho de Morais – e um médico higienista –
José Ricardo Pires de Almeida.

100

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 100 19/6/2008, 23:40


te.40 A comparação entre as duas localidades apontava variações míni-
mas, mas ao final, Aarão Reis apontava a Várzea do Marçal como aquela
mais indicada para a nova capital.41
O trabalho de Aarão Reis foi objeto de acirrada discussão entre os
membros do Congresso, cuja atividade seria transferida de Ouro Preto
para Barbacena, de modo a evitar pressões de qualquer ordem sobre os
responsáveis pela decisão.42 Mudancistas e anti-mudancistas dissecaram
o relatório e teceram as mais diversas críticas, colocando em questão não
apenas as opiniões, mas também a competência de engenheiros e do
médico-higienista que compunham a comissão. Na votação final, Belo
Horizonte superou por dois votos a Várzea do Marçal.43
A abordagem sobre a mudança da capital mineira tem convergido
para o privilégio dado à dimensão política, na qual a transferência é enten-
dida como resultado de um projeto que buscava imprimir a centralização
administrativa e salvaguardar a unidade do estado, palco de freqüentes
ameaças separatistas (SINGER, 1968, e RESENDE, 1974). Segundo
Maria Efigênia Lage de Resende, a transferência da capital da cidade de
Ouro Preto estava “num plano muito mais complexo que o mero reconhe-
cimento de suas deficiências topográficas e dos sonhos de construir uma
capital, centro de artes, comércio e indústria” – aspectos que seriam am-

40
ESTADO DE MINAS GERAIS. Comissão d’Estudo das localidades..., 1893, p.
76. O texto somava cerca de 420 páginas, incluindo análises, mapas, tabelas e
projetos.
41
Segundo Maria Efigênia L. Resende, ao sinalizar que futuramente Belo Horizonte
assumiria a condição de centro de gravidade do estado, o relatório de Aarão Reis re-
sultava numa definição mais favorável àquela localidade, oferecendo argumento decisi-
vo para aqueles que se opunham à Várzea do Marçal (RESENDE, 1974:144 e 146).
42
Os defensores de Ouro Preto também se mobilizavam, pressionando a classe
política, organizando manifestações públicas ou, ainda, empreendendo melhora-
mentos na tentativa de calar as críticas que eram dirigidas à cidade (Cf. BARRETO,
1996:290-300 vol.1).
43
A vitória de Belo Horizonte contou com o apoio dos representantes do centro,
muitos dos quais, a princípio, contrários à transferência; do norte, que viam a
Várzea do Marçal como a continuidade dos desequilíbrios regionais; além de dois
representantes da mata e do sul, mas que estavam ligados à tradicional política do
centro minerador (RESENDE, 1974:147).

101

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 101 19/6/2008, 23:40


plamente explorados nos debates do Congresso (RESENDE, 1974:140).
Transformada em imposição, era necessário controlar o encaminhamento
da questão, de modo a evitar uma solução favorável à elite política da
mata e do sul, o que, na opinião de muitos, significaria aprofundar ainda
mais o desequilíbrio, o distanciamento e o descontentamento entre as
regiões do estado. Partindo do pressuposto de que o regime instaurado
após o 15 de novembro não havia significado uma ruptura radical com o
passado, Maria Efigênia Resende aponta que a escolha de Belo Horizonte
teria representado uma vitória dos interesses do antigo centro minerador,
em oposição às áreas de economia florescente, dos representantes conser-
vadores sobre as forças emergentes da mata e do sul.
Sem negar a importância dessa perspectiva política que envolve a
mudança da capital, acreditamos que outros elementos possam ser agre-
gados a essa explicação, constituindo novas dimensões de análise por
meio das quais esse episódio pode ser entendido. Um desses elementos
diz respeito às representações construídas sobre o espaço urbano a partir
da segunda metade do século XIX. Progresso e civilização foram dois
emblemas desse ideário sobre a cidade e, como vimos acima, sanear e
reformar o tecido urbano tornaram-se fórmulas amplamente difundidas
para alcançá-los.
O projeto de modernização política e econômica, que caracterizou
a sociedade brasileira a partir da década de 1870, teve como um de seus
cenários o espaço das cidades. É a partir dessa perspectiva que entendemos
a importância assumida por aspectos como topografia, águas, clima e
salubridade no processo que definiu a transferência da capital. Como
veremos a seguir, o problema da salubridade foi um dos fatores usados
na desqualificação de Ouro Preto como capital. Por outro lado, as
instruções que orientaram os estudos de localidades para a edificação da
nova sede do governo estabeleciam a higiene como um dos requisitos
básicos de julgamento. A salubridade seria ainda um dos aspectos mais
privilegiados pelos congressistas nos debates sobre os relatórios
encomendados pelo governo.
Condenável pela decadência econômica e o conservadorismo po-
lítico, Ouro Preto também o era pela ótica da higiene. Na reunião do
Congresso Constituinte, a cidade foi acusada como foco de moléstias,
entre elas o tifo e o beribéri, que grassavam anualmente. Os pobres eram
apontados como os que mais sofriam com as doenças, uma vez que quem

102

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 102 19/6/2008, 23:40


podia retirava-se a passeio, enquanto outros, na impossibilidade de fazer
o mesmo, aí se conservavam sacrificando suas vidas.44 O deputado Gama
Cerqueira afirmava haver uma moléstia que reinava com caráter endêmico
no verão e era chamada “ouropretite”, sendo um dos seus elementos
predisponentes a umidade da região.45
A umidade também causava problemas ao solo, tornando-o incon-
sistente para as construções. Questões econômicas e higiênicas encontra-
vam-se: a necessidade de grandes fundações encarecia qualquer obra,
representando também dificuldade extra a qualquer melhoramento que
se tencionasse realizar na cidade. O deputado Aristides Caldeira criticava
o gasto de dois mil contos para as canalizações de água e esgotos realiza-
das na cidade, dizendo que o primeiro não dava água e o segundo, que
devia servir como escoadouro, não se prestava a este fim. Chegava mesmo
a afirmar que a própria população da cidade reconhecia os problemas
higiênicos, confessando haver certos “incômodos epidêmicos, que atribu-
em ao mau encanamento”.46 Segundo o deputado Monte Razo, o serviço
de esgotos tinha feito recrudescer a manifestação de algumas moléstias.47
Outra acusação à velha capital era a de que predispunha às moléstias
do pulmão. Monte Razo dizia ser procurado por muitos enfermos apre-
sentando doenças dessa natureza, e afirmava ter conhecimento de que
alguns dos seus colegas daquela assembléia também prestavam seus serviços
profissionais a pessoas que apresentavam afecções pulmonares. Essas
opiniões municiavam os favoráveis à mudança, que diziam ser, do ponto
de vista da higiene, “absolutamente necessária” a transferência da capital.
Para desfazer essa imagem pestífera traçada sobre a cidade, os
partidários de Outro Preto recorriam à opinião abalizada de médicos
conhecidos, que diziam serem raros os casos das “febres de mau caráter
que aqui apareciam”.48 O clima era considerado ameno e admirável,

44
ESTADO DE MINAS GERAIS. ANNAES, 1896, p. 95.
45
ESTADO DE MINAS GERAIS. ANNAES, 1896, p170. Não foi encontrada
outra referência sobre essa “enfermidade”, cujo nome parece ser um deboche do
deputado.
46
ESTADO DE MINAS GERAIS. ANNAES, 1896, p. 169.
47
ESTADO DE MINAS GERAIS. ANNAES, 1896, respectivamente p. 95 e 88.
48
ESTADO DE MINAS GERAIS. ANNAES, 1896, p. 99.

103

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 103 19/6/2008, 23:40


contribuindo para “manter os humores internos em equilíbrio”, sendo
pelo mesmo motivo, uma barreira ao desenvolvimento da febre tifóide.49
Ponto de discórdia nas opiniões relativas a Ouro Preto, a salubridade
seria um dos aspectos privilegiados nas instruções elaboradas pelo governo
do estado para orientar o estudo das localidades indicadas para a nova
capital. Topografia, clima e águas tiveram destaque nos relatórios
apresentados pelos engenheiros Herculano Pena e Domingos José da Rocha
(Cf.: BARRETO, 1996:307-312 vol.1).50 Nas instruções recebidas pela
comissão chefiada por Aarão Reis, a higiene era objeto principal de três
dos nove itens de que era composta. Topografia, clima, umidade, pressão,
regime dos ventos, composição e permeabilidade do solo – fatores
analisados pelas topografias médicas dos séculos XVIII-XIX – e nosologia,
qualidade dos mananciais, drenagem, sistema de esgotos, coleta e depósito
de lixo figuravam entre os elementos que deveriam balizar a classificação
das localidades indicadas para a nova capital.51 Dados que seriam, mais
uma vez, profusamente discutidos nos debates entre os congressistas.
O parecer de Domingos José da Rocha, apresentado ainda duran-
te a reunião do Congresso Constituinte de 1891, foi duramente criticado.
Deputados e senadores apontavam contradições e inconsistências nos
dados, levantados em um prazo excessivamente curto e sem o recurso de
equipamentos imprescindíveis. Também condenavam o uso da estatísti-
ca, afirmando a impossibilidade de se confiar nesse serviço, quer pelo
seu pouco tempo de existência como pela inexperiência de seus empre-
gados.52 Ponto polêmico foi a informação sobre a existência de bócio em
Belo Horizonte – explorada em demasia pelos contrários à mudança – e
que lhe valeria o nome de Papudópolis.53

49
A Ordem, 11 de julho de 1891, p. 3.
50
“Parecer da Comissão de Estudos Chefiada por Domingos José da Rocha”,
apresentado na 20ª Sessão do Congresso Constituinte, em 16 de maio de 1891.
ESTADO DE MINAS GERAIS. ANNAES, 1896, p. 280-286.
51
“Instruções”. In: ESTADO DE MINAS GERAIS, Comissão d’Estudo das locali-
dades..., 1893.
52
ESTADO DE MINAS GERAIS. ANNAES, 1896, p. 472.
53
O bócio é uma doença caracterizada pela hipertrofia da glândula tireóide, carac-
terizado pelo crescimento exagerado dos gânglios, originando um tumor no pesco-
ço ordinariamente chamado de papo.

104

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 104 19/6/2008, 23:40


O bócio era uma doença marcada pelo preconceito, uma vez que
era associada ao surgimento de degenerações físicas e mentais, como o
cretinismo.54 O relatório negava a endemia de bócio, dizendo terem sido
encontrados poucos portadores da doença, todos eles pobres ou indigen-
tes. Domingos da Rocha seguia a opinião de que o bócio devia-se a uma
dieta pobre em carne. Essa posição era criticada pelo médico e deputado
Faria Lobato, que dizia ser a etiologia do bócio assunto ainda por ser
estabelecido, havendo quem julgasse ser a doença devida às águas de
cisternas e outros à ausência de iodo na água. Dizia ainda ter sido infor-
mado sobre a existência de uma aldeia com grande número de
“bocelosos”, ou papudos, apesar de sua alimentação rica em carne, colo-
cando em dúvida a opinião emitida pelo engenheiro sobre a causa da
doença em Belo Horizonte.
O problema do bócio seria novamente levantado pelo médico higi-
enista Pires de Almeida, integrante da comissão de estudos chefiada por
Aarão Reis.55 Segundo Pires de Almeida, a proporção de infectados na
população de Belo Horizonte – que apontava ser de mais de 1% da
população – fazia do bócio uma doença endêmica. Além disso, o fato de
ainda não haver sido estabelecida a causa da moléstia e a existência de
outras opções para a escolha da sede do governo, desaconselhavam a
transferência para aquela cidade.56 Seu relatório não apontava outras

54
Sobre as degenerações produzidas pela moléstia, em especial o cretinismo, Baeta
Viana, professor da Faculdade de Medicina de Belo Horizonte, dizia em artigo de
1930: “[os doentes] se revelam somática e intelectualmente como se os caracteres
distintivos da espécie humana, na ausência dos fatores evolutivos, obedecessem às
condições de uma equação reversível com o passado, representado nos seus ante-
cedentes filogenéticos. Efetivamente, no alcance intelectual e, sobretudo, no fácies
o cretino completo assemelha-se ao antropóide em muito das suas atitudes caracte-
rísticas” (VIANNA, 1930:1). Esse assunto foi analisado por MARQUES, 2002.
55
José Ricardo Pires de Almeida era reconhecido como um dos grandes especia-
listas em higiene do país, tendo publicado, em 1887, Higiene e habitações, um
estudo crítico sobre as habitações e as posturas cariocas (SALGUEIRO, 1997:157).
56
Entre a infinidade de causas, Pires de Almeida aponta: o regime dos ventos,
mudanças de temperatura, privação do sol, umidade, miasmas palustres, dieta, a
ausência de determinados elementos químicos no solo, na atmosfera, nas águas ou
nos alimentos – como iodo, bromo, sais calcáreos ou magnesianos. Das diversas
hipóteses levantadas, a que parecia melhor comprovada pela experiência era a que

105

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 105 19/6/2008, 23:40


objeções em relação a Belo Horizonte e, apesar da ameaça do bócio,
classificava a cidade em segundo lugar, logo após Barbacena. Seguiam-
lhes Várzea do Marçal, Juiz de Fora e Paraúna, pesando contra elas a
existência de terrenos alagadiços ou pantanosos, que acenavam com a
ameaça de febres palustres, em especial a febre amarela – um dos prin-
cipais problemas que condenava a salubridade das cidades brasileiras
(BENCHIMOL, 2003e 1990; CHALHOUB, 1996).
As afirmações de Pires de Almeida foram, no entanto, contesta-
das pelo engenheiro Samuel Gomes Pereira, encarregado dos estudos
sobre Belo Horizonte. Segundo ele, o número de infectados era bastante
limitado – cerca de 0,3% dos moradores – e circunscrito à classe dos
indigentes. Além disso, afirmava não se observar na localidade nenhuma
das causas às quais se atribuía a origem da doença, que tenderia a desa-
parecer com a introdução da civilização.57 As mesmas observações seri-
am feitas pelo médico e senador Pedro Drumond, durante a reunião do
congresso ocorrida em Barbacena em 1893.
O problema da higiene também foi fator de peso na classificação
procedida por Aarão Reis. Sobre Barbacena, dizia que, apesar do bom
clima, a topografia não permitia o estabelecimento, em boas condições
técnicas e higiênicas, de uma cidade superior a 50.000 habitantes. A
situação sanitária também não indicava o Paraúna e Juiz de Fora, ainda
que a engenharia moderna oferecesse meios para retificar os problemas
de salubridade encontrados nas duas localidades – a presença de molés-

ligava a doença à natureza das águas, especialmente sua composição química. Con-
cordando ser a água o meio pelo qual se transmitia a doença, o relatório do médico
da comissão consignava a noção de que o bócio era provocado por um microorganismo
em suspensão na água e que, para evitá-lo, era necessário decantá-las e filtrá-las, em
reservatórios duplos e sobrepostos. ALMEIDA, José Ricardo Pires de. “Relatório
dos estudos sobre os climas e as condições higiênicas das cinco localidades mineiras
indicadas para a nova capital desse Estado”. In: ESTADO DE MINAS GERAIS. Co-
missão d’Estudo das Localidades..., 1893. Ainda sobre a natureza da doença, Baeta
Viana ressaltava que, até 1930, contavam-se “como agentes bocigênicos ora causais
ora ocasionais: os cósmicos – atmosféricos, hídricos, telúricos; os alimentares – deficiên-
cia de iodo, de vitaminas, alimentação excessivamente gordurosa” (VIANA, 1930:4).
57
Cf. Relatório apresentado pelo engenheiro Samuel Gomes Pereira, In: ESTADO
DE MINAS GERAIS, Comissão d’Estudo das Localidades..., 1893, p. 26.

106

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 106 19/6/2008, 23:40


tias palustres.58 Quanto a Belo Horizonte e Várzea do Marçal, Aarão Reis
não levantava qualquer objeção de natureza higiênica.
Os debates em torno do relatório de Aarão Reis estiveram polari-
zados entre essas duas localidades. Os partidários da Várzea do Marçal
foram os únicos a defender inconteste o parecer. As opiniões de Aarão
Reis divergiam, porém, daquelas do médico higienista, que apontava
problemas em relação à salubridade do local: existência de terrenos
alagadiços, baixa declividade para o escoamento das matérias e águas
servidas, risco de enchentes entre outros. Essa discordância chamou a
atenção dos congressistas, que a exploraram exaustivamente.59 Os defen-

58
ESTADO DE MINAS GERAIS. Comissão d’Estudo das Localidades..., 1893, p.
75-76. O relatório da comissão geraria a publicação de artigos e estudos contestan-
do as opiniões de seus integrantes. Cf.: O Contemporâneo, 1 de outubro de 1893,
p. 3; BRAGA, 1894. Na justificativa de seu trabalho, Vieira Braga dizia: “De
conhecimentos banais nestas questões telúricas e de atmosferologia, que prendem-
se ao clima e ao saneamento de uma localidade qualquer, melhor fora conserva-me
afastado. Trata-se porém da cidade de Juiz de Fora, difamada no Congresso Minei-
ro (...) como foco de paludismo, como conquista aos pântanos do rio Paraibuna,
graças às apreciações exageradas, gratuitas e precipitadas do médico higienista
que veio estudar as localidades indicadas para a Capital (...)”. Segundo o autor,
quem compulsasse o relatório de Pires de Almeida, especialmente na parte refe-
rente “às condições higiênicas e as moléstias reinantes das localidades indicadas
como as melhores para sede da capital”, e que estivesse desprevenido das “imper-
feições” do mesmo, quisesse tirar conclusões, “naturalmente se convencerá de que
no Estado de Minas, será perigoso habitar qualquer região que não esteja (...) a
mais de mil metros acima do nível do mar” (BRAGA, 1894:5 e 17).
59
Aarão Reis elogiava a solicitude e o sincero empenho de Pires de Almeida no
cumprimento das atividades e, como convicto adepto da ciência, chegou mesmo a
salientar o pioneirismo em nosso país do processo de investigação dos germes
patogênicos aplicado pelo médico, envolvendo análises bacteriológicas das poeiras
atmosféricas das diversas localidades. No entanto, dizia também que sua “respon-
sabilidade profissional” o impedia de aceitar certas opiniões de Pires de Almeida
que, segundo ele, aventurava-se equivocadamente em relação a certos assuntos
técnicos de higiene, fazendo afirmações sem fundamento e contradizendo fatos e
observações “registrados e consignados” pelos engenheiros por períodos superio-
res a três meses. ESTADO DE MINAS GERAIS. Comissão d’Estudo das Localida-
des..., 1893, p. 41. Sobre o papel de médicos e engenheiros no Brasil do século
XIX, cf.: COELHO, 1999.

107

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 107 19/6/2008, 23:40


sores da Várzea do Marçal afirmavam que o parecer de Pires de Almeida
havia gerado acusações e anedotas sobre o lugar, inventando
“(...) ali focos de miasmas pestíferos, alagados e paúes, onde embrulha-
dos em lençóis d’água, habitam às macejas os fabulosos monstros que
fabricam febres e epidemias, que naquele deserto inabitável estão à
espera de vítimas para devorarem.”60

Por outro lado, os contrários à Várzea do Marçal apoiavam-se


nessas mesmas afirmações, mostrando estranhamento em relação à deci-
são apresentada pelo engenheiro-chefe. O deputado Augusto Clementino
dizia ter a Várzea do Marçal os quatro elementos necessários à formação
de pântanos: subsolo impermeável, alagadiços, calor e substâncias orgâ-
nicas, formando um caldo de cultura onde se desenvolveriam “não só os
plasmódios de Laverian, mas principalmente (...) os micróbios produto-
res da febre tifóide e da febre amarela”.61
Para resolver as contradições apontadas, alguns congressistas visi-
taram o lugar, entre eles o deputado e engenheiro Costa Sena, que con-
firmava alguns aspectos condenados pelo médico higienista em relação
àquela localidade. Além disso, Costa Sena contestava diversas afirma-
ções constantes do relatório, apontando divergências teóricas em relação
ao que dizia o chefe da comissão de estudos e o engenheiro responsável
pelos estudos da Várzea do Marçal, José Carvalho de Almeida.62
Segundo Costa Sena, ao contrário do “belíssimo e encantador su-
búrbio”, como era apresentada pelo relatório de Reis, a Várzea era for-
mada por terrenos encharcados, bastando para isso ver a abundante
vegetação própria dos lugares muito úmidos e pantanosos. Discordava
do engenheiro que afirmava a possibilidade de cheias excepcionais na
localidade, dizendo que ela seria certamente inundada durante chuvas
abundantes. Afirmava o inconveniente de se lançar os produtos dos es-
gotos urbanos num rio que apresentava pequena vazão para arrastá-los.

60
ESTADO DE MINAS GERAIS. ANNAES, 1894, p. 67.
61
ESTADO DE MINAS GERAIS ANNAES, 1894, p. 126.
62
ESTADO DE MINAS GERAIS ANNAES, 1894, p. 114. O senador era profes-
sor de Geologia na Escola de Minas, em Ouro Preto. ASSEMBLÉIA Legislativa de
Minas Gerais, 1889, p. 64.

108

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 108 19/6/2008, 23:40


Questionava ainda as conclusões sobre a permeabilidade do terreno,
baseada no estudo da composição do solo e subsolo, e a inexistência de
lençol d’água subterrâneo: “Singularíssima geologia! Não foi isto que
aprendi, não é isso que ensino aos meus discípulos”.63
Pela natureza e sobreposição das camadas de materiais de que
era formado o solo, afirmava o senador haver na Várzea do Marçal um
lençol superficial, o que condenava a salubridade do lugar. Segundo ele,
à mesma conclusão havia chegado Pires de Almeida e Cícero Ferreira,
“ilustrado e distinto médico” que o acompanhara na viagem feita a Vár-
zea do Marçal. As afirmações feitas sobre o clima também denunciavam,
em vista das variações bruscas do termômetro e do barômetro, a insalu-
bridade do lugar. Dizia, então, não ser possível mandar os funcionários
do estado para aquela localidade, fundando aí a nova capital, “porque
não tem ela as precisas condições higiênicas”.64
Outros congressistas também apontaram suas artilharias para as
afirmações de Aarão Reis, discutindo acirradamente conceitos e proce-
dimentos relatados em seu parecer. Condenando a escolha de Reis, o
deputado Augusto Clementino apelava aos médicos congressistas contra
a Várzea do Marçal:
“E, tratando-se de edificar uma grande cidade em perfeitas condições
higiênicas, nos termos da constituição, pergunto eu: o congresso de Mi-
nas, em cujo seio existem 22 médicos, ou mais creio eu, pode mudar a
capital do Estado para uma localidade de tal ordem, cujo terreno tem as
condições para o desenvolvimento de todos os micróbios?”65

Entre os ataques dirigidos à Várzea do Marçal, restava Belo


Horizonte como opção. Apesar de preterida pelo chefe da comissão e da
acusação sobre a infecção do bócio, a cidade ganharia defensores
importantes nas sessões do congresso. Um deles foi o médico e senador
José Pedro Drumond, que ocupava a vaga de Affonso Pena, agora
Presidente do Estado. Drumond afirmava que os dados apresentados
pelo engenheiro Samuel Gomes Pereira – que negava a endemia de

63
ESTADO DE MINAS GERAIS. ANNAES, 1894, p. 116-117.
64
ESTADO DE MINAS GERAIS. ANNAES, 1984, p. 111-123.
65
ESTADO DE MINAS GERAIS. ANNAES, 1894, p. 127.

109

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 109 19/6/2008, 23:40


bócio – eram mais confiáveis que os de Pires de Almeida, visto serem
fruto de mais de 150 dias de observação.66 Drumond também dizia que,
em visita feita a Belo Horizonte, havia percorrido a localidade examinando
seus moradores, tendo encontrado apenas quatro doentes com bócio,
entre os quais, duas mulheres que pediam esmolas.67 Em sua opinião,
esses dados provavam que a restrição levantada pelo médico da comissão
em relação a Belo Horizonte não era verdadeira.
Além disso, Pedro Drummond informava ser perfeitamente sabi-
do por todos os membros do congresso que o bócio era uma enfermidade
comum em Minas Gerais. Até mesmo em Barbacena, que tinha sua salu-
bridade por todos reconhecida, ele próprio, em poucos dias, já havia
avistado nove “papudos”. Considerando tal fato, perguntava “se,
porventura, poderia alguém acusar o clima ou as águas da cidade de
serem os condutores do ainda ignorado agente daquela moléstia”.68 Di-
ante desses dados, e considerando que Pires de Almeida ajuizava da
possibilidade de desenvolvimento do impaludismo na Várzea do Marçal
(em função dos alagadiços ali existentes) propunha a transferência da
capital para Belo Horizonte.
Assim, a afirmação por diversos congressistas da existência de
brejos e pântanos na Várzea do Marçal; as imputações efetuadas às afir-
mações de Aarão Reis sobre a salubridade da região, contraditadas in
visu pelos congressistas que lá estiveram, em especial pelos argumentos
apresentados pelo também engenheiro e professor Costa Sena; os dados

66
Segundo Drumond, Pires de Almeida baseava suas afirmações sobre Belo Hori-
zonte em informações prestadas por terceiros e em observações realizadas numa
estadia de menos de 24 horas. Outros congressistas também se apoiariam na ques-
tão do tempo para criticar as opiniões de Pires de Almeida, dizendo ser impossível
ajuizar-se da salubridade de uma região baseando-se em observações realizadas
em prazo tão exíguo. ESTADO DE MINAS GERAIS. ANNAES, 1894, p. 78-79.
67
Retomando a explicação social da moléstia, o deputado Teixeira da Costa dizia
que “a moléstia só tem atacado a classe dos indigentes, e não se pode citar um
único caso entre os indivíduos que se alimentam regular e suficientemente”. ES-
TADO DE MINAS GERAIS . ANNAES, 1894, p. 104.
68
“Pode alguém diante deste fato acusar o clima de Barbacena ou suas águas de
condutoras do quid ignotum papogeno (...)?” In: ESTADO DE MINAS GERAIS.
ANNAES, 1894, p. 86.

110

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 110 19/6/2008, 23:40


oferecidos pelo senador Pedro Drummond, negando a existência de uma
endemia de bócio em Belo Horizonte; e a própria consideração do enge-
nheiro chefe de que o lugar seria, em alguns anos, o ponto de gravidade
do estado, acabaram contribuindo na decisão de mudar-se a nova capital
mineira para essa localidade. Em 17 de dezembro de 1893 era promul-
gada a lei que determinava a transferência da sede do governo mineiro
para a cidade de Belo Horizonte.69
Certamente as opiniões relativas à salubridade de Várzea do Marçal
e Belo Horizonte foram perpassadas pelos interesses dos grupos que
disputavam a hegemonia política no estado, e esses interesses provavel-
mente contribuíram para que os aspectos negativos apontados nas duas
localidades fossem reforçados com tintas ainda mais negras. Porém, a
eleição da questão da higiene como campo desse embate não parece
feita ao acaso. A nosso ver, ela reflete a primazia assumida pelo proble-
ma do saneamento nas experiências e nos discursos elaborados sobre a
vida urbana e a saúde pública na segunda metade do século XIX.
Essa visão marcadamente ambientalista da higiene que orientou a
escolha da nova sede do governo, e que privilegiava aspectos como a dre-
nagem do solo, o abastecimento de água, esgotamento, circulação do ar,
luminosidade e clima como elementos definidores da salubridade, permane-
ceria como um dos principais pilares do planejamento da capital de Minas.70
A planificação das ruas, construção dos prédios públicos e particulares,
localização do cemitério, mercado, matadouro, e até mesmo o uso feito do
espaço público foram pensados e definidos segundo as normas propaladas
pelo urbanismo e o higienismo da segunda metade do século XIX.
O exame da história da capital mineira nos revela que, se nesse
primeiro momento a concepção de salubridade determinou a forma da
capital, nos momentos seguintes, com o crescimento da cidade, “os ser-

69
Como afirmado anteriormente, a votação que aprovou a escolha de Belo Hori-
zonte teve resultado apertado: 30 votos favoráveis a Belo Horizonte, e 28 contra
(BARRETO, 1996:426 vol.1).
70
Vale ressaltar que Aarão Reis destacava o emprego do “processo moderno” de
análise bacteriológica das águas e poeiras atmosféricas das cinco localidades indicadas
para estudo, levadas a efeito pelo Dr. Pires de Almeida. No entanto, esse procedimento
teria pouca influência nas considerações finais apresentadas no Relatório de Aarão
Reis. ESTADO DE MINAS GERAIS. Comissão d’Estudo das Localidades..., 1893.

111

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 111 19/6/2008, 23:40


viços de saneamento tiveram de, permanentemente, correr atrás de uma
demanda sempre crescente e extrapoladora das previsões de planos e
projetos”.71 Porém, ainda que a dinâmica urbana impusesse a transgres-
são dos desígnios da higiene, a capital mineira cresceria embalada por
um discurso que a apontava como uma cidade salubre por excelência e
que vimos reproduzido nas opiniões dos médicos sobre as reações da
população diante da ameaça da influenza espanhola de 1918.

Construindo a cidade salubre

Ao contrário das principais reformas urbanas do final do século


XIX e início do XX, caracterizadas pela remodelação física, a construção
de Belo Horizonte fez-se pelo modelo de “terra arrasada”: o antigo arrai-
al seria destruído dando lugar a uma nova e distinta cidade.72 A edificação
da capital, patrocinada pelo governo do estado, ficou a cargo do próprio
Aarão Reis. O regulamento da Comissão Construtora determinava que a
organização dos projetos devia “obedecer às mais severas indicações e
exigências modernas da higiene, conforto, elegância e embelezamento
(...)” (BARETO, 1996:32 vol.2).
O projeto concebido por Aarão Reis era perpassado pelos códigos
modernos, que condenavam as cidades coloniais como “filhas do acaso”,
das “circunstâncias comerciais”, obrigadas às determinações da nature-
za. Na planta traçada pelo engenheiro-chefe, os caminhos e becos do
velho arraial do Curral del Rei, forjados por uma ocupação aleatória,
foram sobrepostos pelas ruas e avenidas retas de uma cidade moderna e
civilizada:

71
FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Saneamento básico em Belo Horizonte ..., 1997,
p. 20.
72
Segundo alguns cronistas, o único vestígio remanescente do arraial do Curral del
Rei seria a Matriz da Boa Viagem, que também não perduraria muito tempo, sendo
demolida aos poucos para a construção do templo atual, finalizado na década de 30
(BARRETO, 1996: 605 vol.2). Apesar das afirmações dando conta ser a Matriz o
único edifício remanescente do antigo arraial, veremos adiante que outras construções
também permaneceram, tanto na zona urbana como na suburbana da nova capital.

112

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 112 19/6/2008, 23:40


“Às ruas fiz dar a largura de 20 m., necessária para a conveniente
arborização, a livre circulação dos veículos, o tráfego dos carris e os
trabalhos de colocação e reparações das canalizações subterrâneas. Às
avenidas fixei a largura de 35 m, suficiente para dar-lhes a beleza e o
conforto que deverão, de futuro, proporcionar à população. Apenas a
uma das avenidas - que corta a zona urbana de norte a sul, e que é
destinada à ligação dos bairros opostos – dei a largura de 50 m, para
constituí-la em centro obrigado da cidade e, assim, forçar a população,
tanto quanto possível, a ir-se desenvolvendo do centro para a periferia,
como convém à economia municipal, à manutenção da higiene sanitária
e ao prosseguimento regular dos trabalhos técnicos.”73
A cidade divida-se em três zonas com funções e usos definidos. A
zona urbana era o lugar destinado à edificação pública e privada, con-
centrando os serviços, comércio, residências, parques e jardins. A zona
suburbana, separada da primeira por uma larga avenida de contorno,
formaria vários bairros a serem ocupados conforme o crescimento da
cidade. Por fim, uma terceira zona envolvendo as anteriores, era destina-
da aos sítios e pequenas lavouras, voltados para o abastecimento da capi-
tal. O projeto previa condições para um crescimento populacional proje-
tado em 50 anos, revelando que, ao contrário do que afirma Carlos Roberto
Andrade sobre a primazia de Saturnino de Brito e seu plano de sanea-
mento da cidade de Santos na aplicação do urbanismo moderno no país,
Aarão Reis os havia antecipado em quase uma década.74
A Comissão Construtora incumbia-se do planejamento dos servi-
ços públicos – água, esgotos, eletricidade, limpeza urbana – ruas, pra-
ças, pontes, obras artísticas, prédios públicos e demais edificações con-

73
ESTADO DE MINAS GERAIS. Revista Geral dos Trabalhos, 1985, vol.2, p 59.
74
“O projeto geral da nova Capital será delineado sobre uma população de 200.000
habitantes, e sobre esta mesma base será efetuada a divisão e demarcação dos
lotes; as obras, porém, a executar desde já, serão projetadas e orçadas sobre a base
de uma população de 30.000 habitantes; devendo, entretanto, os respectivos pro-
jetos serem organizados de forma a permitirem o natural desenvolvimento das
obras executadas à proporção que for aumentando a população” (BARRETO,
1996:32 vol.2). Vale lembrar também que Saturnino de Brito integraria a Comis-
são Construtora da Nova Capital de Minas, como chefe da seção de abastecimento
de água, entre os anos de 1894-1895, a convite do próprio Aarão Reis.

113

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 113 19/6/2008, 23:40


tratados pelo governo. Além disso, devia exercer a fiscalização de toda e
qualquer construção particular realizada na nova capital, sendo necessá-
rio submeter a planta à aprovação dos engenheiros da Comissão.75 O
governo buscava sujeitar a venda e posse dos lotes às regras de higiene.
Um decreto de 1895 obrigava o adquirente a fazer o passeio e o
cercamento do lote dentro do prazo irrevogável de um ano, e o não
cumprimento dessa cláusula implicava a caducidade da negociação.76
Todos os aspectos envolvidos nas obras públicas e particulares
deviam obedecer aos regulamentos técnicos, que definiam desde o roçado
e limpeza dos terrenos para construção, passando pela fundação, alvenaria,
vidraças, esquadrias, até os materiais e revestimentos a serem utilizados
nas edificações. Atenção especial era dada às canalizações de água e
esgoto, feitas em cobre ou ferro, tendo os diâmetros indicados pelo
engenheiro responsável. Mesmo as louças sanitárias e seu assentamento
deviam ser submetidas à aprovação dos funcionários da Comissão.77
Das seis divisões que compunham a Comissão Construtora, duas
estavam diretamente relacionadas à higiene. A 4ª Divisão, responsável
pelos serviços de geodésia, topografia e nivelamento, foi incumbida da
construção do matadouro, forno de incineração, cemitérios, mercados e
lavanderias, além dos calçamentos e do parque. Todos esses serviços,
exceto o parque e o mercado, deviam ser instalados na área suburbana,
a fim de não comprometer a salubridade da cidade. O mercado, construído
num dos extremos da área urbana, facilitava o abastecimento, evitando o
trânsito de mercadorias pelas ruas centrais.

75
Ver por exemplo: “Solicitações de aprovação de plantas residenciais”, in: “Co-
municados Internos da Comissão Construtora”. ESTADO DE MINAS GERAIS.
CCNC/MHAB, 1895.
76
Decreto n.840, 9 de julho de 1895. BARRETO, 1996, vol.2:406-407. Seu
cumprimento, porém, parece não ter sido seguido à risca. Em 1906, um periódico
da capital conclamava a prefeitura a estimular novas construções, concedendo
favores aos proprietários ou impondo a pena de desapropriação dos terrenos. Dizia
“impressionar mal ver, ao lado de lindos e confortáveis prédios, terrenos servindo
de viveiros de cobras e capinzal comprometendo a saúde pública”. A Vanguarda,
4 de fevereiro de 1906, p. 1-2.
77
Minas Gerais. Decreto n.680, de 14 de fevereiro de 1894; BARRETO, 1996:203-
229 vol.2.

114

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 114 19/6/2008, 23:40


A 5ª Divisão tinha sob sua responsabilidade os estudos e execu-
ção das obras de abastecimento de água – captação, canalização e distri-
buição – e do sistema de esgotos de edifícios públicos e particulares,
canalização das águas pluviais e drenagem do subsolo. Os trabalhos de
abastecimento estavam sob a direção do engenheiro Saturnino de Brito.78
Na opinião de Aarão Reis, esse era o primeiro problema a ser resolvido,
não podendo surgir uma cidade sem antes estar ela habilitada a um
abastecimento de água conveniente.79
Buscando dar visibilidade e transparência aos trabalhos realizados
sob sua administração, Aarão Reis faria publicar uma Revista Geral dos
Trabalhos, apresentando estudos, projetos, correspondência e balancetes
da comissão. Essa iniciativa seria louvada em seu meio profissional. No
entanto, apesar desse cuidado, o engenheiro sofreria denúncias de
favorecimento. Em maio de 1895, pressionado pela crescente ingerência
política nos trabalhos, Aarão Reis renunciava à chefia da Comissão.80 Em

78
Formado em 1886 pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro, Francisco Saturnino
Rodrigues de Brito era outro representante da geração de “engenheiros intelectu-
ais” das décadas finais do século XIX. Foi indicado para a Comissão Construtora
por Aarão Reis, da qual se demitiu em 1895, por divergências com o próprio Reis.
Após essa data, trabalhou na elaboração de projetos e nas obras de saneamento em
outras cidades brasileiras: Vitória (ES); Santos, Campinas, Ribeirão Preto, Limei-
ra, Sorocaba e Amparo (SP); Petrópolis, Paraíba do Sul, Itacoatiara e Campos (RJ);
Recife (PE). Foi responsável pelo projeto de abastecimento de água da capital
paulista, pelo projeto de saneamento da Lagoa Rodrigues de Freitas e da Bahia da
Guanabara (BARRETO, 1996:121 vol.2).
79
Segundo Aarão Reis, a repetição de estudos e culturas de microorganismos,
realizadas por meio de novas análises químicas e bacteriológicas dos mananciais
de Belo Horizonte, poderia levar à descoberta do “pretendido micróbio papogêneo,
que tanto amedronta os que acreditam ser ele conseqüência de germes organiza-
dos das águas e não do modo de alimentação, agasalho, higiene e afecções heredi-
tárias dos antigos habitantes do lugar”. ESTADO DE MINAS GERAIS. Revista
Geral dos Trabalhos, 1895, vol II, p. 243. Não há, porém, referências a estudos
dessa natureza nos documentos da Comissão Construtora.
80
Em maio de 1985, um jornal da cidade de Sabará publicava carta de Aarão
Reis, na qual informava de seu pedido de exoneração e repudiava com veemência
as acusações do ex-presidente do estado, Cesário Alvim, de que era sócio de olari-
as que forneciam material de construção para a nova capital. O Contemporâneo, 23
de maio de 1895, p. 1. Cf.: BARRETO, 1996:262-266 vol.2.

115

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 115 19/6/2008, 23:40


seu lugar, assumia o engenheiro Francisco de Paula Bicalho.81 Achavam-
se finalizados os estudos de campo, o plano geral da cidade e os projetos
de saneamento e de diversos edifícios públicos. A missão do novo enge-
nheiro-chefe era fazer brotar no solo do antigo arraial a capital projetada
pela equipe de Aarão Reis.
Nessa nova fase, a questão da salubridade continuou a presidir as
preocupações sobre os rumos da cidade. Uma reformulação promovida
pelo novo engenheiro-chefe atribuía à 3º Divisão a responsabilidade por
todos os serviços de ordem municipal, entre os quais as posturas e polícia
municipal e a salubridade pública, incluindo entre elas: “velar pela assis-
tência pública, protegendo a população contra as moléstias, fornecendo
medicamentos e amparando os operários desprovidos de recursos nos
casos de moléstias graves e de acidentes de trabalho, a inspeção dos
gêneros alimentícios, a administração do matadouro, do serviço de imi-
gração, limpeza pública, cemitério, iluminação, extinção de incêndios e
higiene pública” (BARRETO, 1996: 342 e 583 vol.2).
Segundo Francisco Bicalho, durante o período de obras era indis-
pensável todo o cuidado, uma vez que os trabalhos afetavam as “condi-
ções telúricas e climatéricas” da cidade. A terraplanagem revolvia o solo
e colocava a descoberto matérias orgânicas acumuladas ao longo dos
anos que, ao entrarem em “putrefação”, favoreciam o desenvolvimento
de “todos os germes patogênicos, que levavam sua ação deletéria a gran-
des distâncias, transportados pelo ar no tempo seco e pelas águas nos
meses chuvosos” (BARRETO, 1996:598 vol.2).
Além das febres de mau caráter originárias das condições do solo,
havia o medo de outras epidemias, que se alastravam com facilidade
pelas regiões vizinhas.82 A varíola era preocupação constante, tendo sido,

81
Francisco de Paula Bicalho, natural de São João del Rei, diplomou-se pela
Escola Politécnica do Rio de Janeiro em 1871. Chefiou a Comissão Construtora da
Nova Capital entre os anos de 1895 e 1898, quando a cidade foi inaugurada. Em
1901 assumiu o cargo de Inspetor Geral das Obras Públicas da Capital Federal.
Em 1903, foi nomeado chefe da Comissão de Obras de Melhoramentos do Porto
do Rio de Janeiro, delineando o plano de intervenções no porto, cais e armazéns,
o prolongamento do canal do mangue e o arrasamento do Morro do Senado
(BARRETO, 1996:775 vol.2).
82
O descaso das autoridades estaduais com relação à saúde pública seria objeto de

116

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 116 19/6/2008, 23:40


para isso, criado um serviço de vacinação e revacinação que, pela relu-
tância, fora estendido “quase violentamente” ao maior número dos ope-
rários. Práticas comuns em situações assim eram o isolamento e a desin-
fecção. Os doentes mais graves eram enviados à Santa Casa de Sabará,
uma vez não existirem hospitais na cidade em construção. Em virtude de
uma epidemia de varíola, em 1896, a Comissão se viu forçada a erguer
um hospital de isolamento provisório no bairro do Calafate. Segundo
Pedro Salles, a edificação nada mais era que “um simples barracão feito
de pau-a-pique e coberto de zinco” (SALLES, 1997).83
Os assuntos dessa ordem ficavam a cargo do médico Cícero Ferreira,
membro da Comissão Construtora desde seus primeiros dias, e futuro di-
retor de higiene de Belo Horizonte. O serviço de assistência pública atendia
trabalhadores que careciam de recursos, marcando consultas, fornecendo
medicamentos e dietas aos indigentes. Segundo Abílio Barreto, tais medidas
sanitárias contribuíam para cercear “em sua nascença qualquer moléstia
que apresentasse tendência a propagar-se epidemicamente” (BARRETO,
1996:590 vol.2). Essa imagem de uma ação pronta e eficaz das autoridades
diante das ameaças epidêmicas que rondavam a cidade continuaria a ser
alimentada pela imprensa e pela fala oficial, tornando-se um dos elementos
conformadores do discurso sobre a salubridade da capital.
Em 1889-1890, por exemplo, o governo do estado convocava o
Dr. Cícero Ferreira para organizar o combate à peste bubônica que havia
irrompido no porto de Santos, estendendo-se para São Paulo, Rio de Janeiro
e outras cidades do país. O estado providenciou a distribuição de remédios
para extinção dos ratos e folhetos com os preceitos higiênicos recomendados
pelas autoridades. Além disso, em acordo com os governos do Rio e de
São Paulo, foram estabelecidos postos de desinfecção – compostos de
estufas, pulverizadores e vaporizadores – nos entroncamentos ferroviários
com destino a Minas, que acabaria não registrando casos da doença.84

denúncia em diversos artigos escritos por Belisário Pena – liderança do movimento


sanitarista da década de 1910 – posteriormente reunidos em livro (PENA, 1918).
83
Não foi encontrada nenhuma informação que esclareça sobre o destino dado ao
“hospital” após terminada aquela epidemia.
84
PREFEITURA DE BELO HORIZONTE. Mensagem ao Conselho Deliberativo
da Cidade de Minas, 1900, p.41. Cf.: MARQUES e CARVALHO, 1996.

117

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 117 19/6/2008, 23:40


Outro foco de preocupação da Comissão foram as cafuas e barra-
cões edificados por toda a cidade para o abrigo dos operários. Sem con-
dições de receber número tão elevado de pessoas, e com o aumento dos
aluguéis, a Comissão viu-se obrigada a permitir a construção provisória
dessas habitações, enquanto a capital não fosse inaugurada.85 Em janeiro
de 1896, foi publicado um edital cassando as concessões e determinan-
do a desocupação de prédios velhos e barracões até o mês de agosto, a
fim de proceder a sua demolição (BARRETO, 1996:584 vol.2). A medi-
da, porém, resultou inócua, e a questão da habitação popular tornaria-se
um problema permanente para a municipalidade (GUIMARÃES, 1991).
Apesar dos problemas surgidos com a construção e a ocupação da
cidade, sua salubridade era constantemente exaltada e, para tanto, muito
contribuía o bom clima da nova capital, afirmado desde os velhos tempos
do arraial. Diante das supostas ameaças impostas pelas obras de
terraplanagem e construção, ou pela varíola, Francisco Bicalho afirmava
que, “mesmo sitiada por devastadora epidemia, em más condições de
higiene, em relações diárias e imediatas com focos epidêmicos, conser-
vou imune a sua população”. Tributava esse estado de coisas à ação
preventiva do médico da Comissão, assim como à “excelência do clima
da localidade, que naquele período anormalíssimo, pode conservá-la
perfeitamente sadia” (BARRETO, 1996:591 vol.2). Em março de 1897,
A Capital afirmava que o estado sanitário da cidade era excelente, não se
encontrando no quadro de mortalidade nenhuma doença epidêmica, o
que tributava ao excelente clima que imperava naquela localidade:

85
“Foi verdadeira torrente que se despenhou, dando lugar a um aumento brusco e
considerável de população, sem que tivéssemos casas confortáveis para abrigá-la,
levantando-se, por toda parte, pequenas cafuas e ligeiros ranchos cobertos de sapé,
cujo número crescia dia a dia, representando verdadeiros simulacros de abrigo
hipotético”. Francisco Bicalho. Relatório, 1896 (In: BARRETO, 1996:598 vol.2).
Segundo Berenice Guimarães, a lei que designara Belo Horizonte como a nova sede
do governo previa a construção, pelo poder estadual, de casas com condições higi-
ênicas que seriam alugadas a preços baixos para os operários, o que, no entanto,
não foi contemplado no plano elaborado por Aarão Reis (GUIMARÃES, 1996:133).

118

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 118 19/6/2008, 23:40


“(...) fossem outras as condições climatéricas locais, não seria para ad-
mirar que, com tantos elementos morbígenos, Belo Horizonte se achasse
a braços, não com uma, porém com diversas epidemias, sem que se
pudesse, mesmo assim, acoimar de mau clima, porque essas circunstân-
cias anômalas seriam, por isso mesmo passageiras, transitórias, e não
poderiam influir na constituição médica da localidade.”86
A mesma afirmação seria feita três anos depois por Bernardo Pin-
to Monteiro, prefeito de Belo Horizonte. Em seu relatório, Monteiro apon-
tava que os dados e mapas estatísticos organizados pela Seção de Higie-
ne evidenciavam a “superioridade, a excelência e a pureza” do clima da
capital, uma vez que, desde o período da construção – quando foi ocupa-
da por uma “aglomeração de operários, em época que ainda não existi-
am condições higiênicas estabelecidas – nenhuma epidemia de caráter
infecto-contagioso havia conseguido implantar-se na capital”.87
A imagem de cidade salubre ultrapassava as fronteiras de Minas.
Em 1894, o jornalista francês Arthur Thiré dizia estar Belo Horizonte
situada “em local excepcional do ponto de vista do clima, da salubrida-
de”, e que, utilizando os recursos e progressos dos diversos ramos da
“ciência, da indústria e da arte da engenharia”, seria uma “mostra notá-
vel do que seja uma cidade moderna” (THIRÉ, Arthur. In: ARAÚJO,
1996:61).88 Anos mais tarde, em 1911, o arquiteto francês Joseph Antoine
Bouvard dizia de sua agradável surpresa com a capital mineira, onde
tudo fora “sábia e artisticamente disposto para que ela realizasse todas as
condições da vida urbana, como exige a civilização”. Nada lhe faltava:
“avenidas, praças e ruas, as excelentes instalações sanitárias, a arborização
soberba (...) [e] a doçura de um clima temperado”.89 As benesses do
clima e da salubridade eram atestadas pelo próprio Cícero Ferreira, que
predizia sobre Belo Horizonte:

86
A Capital, 29 de março de 1896, p. 1
87
PREFEITURA DE BELO HORIZONTE. Mensagem ao Conselho Deliberativo
da Cidade de Minas 1900, p. 39.
88
Publicando suas impressões sobre o país, o italiano Alessandro D’Atri, afirma
ser o nome Belo Horizonte o próprio retrato da cidade: “a beleza do solo, o sorriso
da natureza, a salubridade do clima, o frescor do ar, o azul do céu” (In: BARRETO,
1996:641-642 vol.2).
89
Joseph Antoine Bouvard visitou Belo Horizonte em 1911. Cf.: ARAÚJO, 1996:66.

119

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 119 19/6/2008, 23:40


“É um lugar de altitude moderada, de clima quente, variável, seco,
largamente ventilado pelas correntes alísias que tornam agradabilíssimas
as diferentes estações, onde não existem moléstias endêmicas, abundan-
temente iluminado e nas condições de se tornar uma cidade digna de
nota pela sua salubridade e por suas condições higiênicas.”90
A notoriedade do clima acabou transformando a cidade em um
dos destinos procurados pelos doentes de tuberculose no país. A desco-
berta do bacilo responsável pela doença, feita por Robert Koch em 1882,
não foi acompanhada por uma solução terapêutica para curar ou deter o
seu avanço e, apesar dos esforços da medicina, o tratamento da tubercu-
lose nas primeiras décadas do século XX ainda seguia a velha prescrição
de repouso, dieta e climatoterapia (BERTOLLI FILHO, 2001:38-42).
Entre os diversos doentes que se transferiram para Belo Horizonte, esta-
vam Hugo Werneck, Borges da Costa, Marques Lisboa, Ezequiel Dias e
o próprio Cícero Ferreira, todos profissionais da área médica. Atraídos
pelo clima e pelas possibilidades profissionais da jovem capital, esses
homens participariam da construção das principais instituições científi-
cas do estado (MARQUES e CARVALHO, 1996:6-7).
Belo Horizonte foi inaugurada entre festas e discursos no dia 12
de dezembro de 1897. Era considerado acontecimento verdadeiramen-
te assombroso fazer surgir praticamente do nada e em espaço de tempo
tão curto uma cidade moderna, grande e bela, observando os preceitos
da ciência e as regras da arte. A maior obra do gênero no Brasil, a mais
grandiosa em toda Minas. Descrevendo a empresa que havia mobilizado
tantas inteligências e braços, a imprensa saudava:
“Foi a vitória do progresso contra a rotina; da razão contra o preconcei-
to; da inteligência contra a obsecação; dos que procuravam alargar os
horizontes da pátria mineira contra os que tentavam conservá-los adstritos
às montanhas que cercam a vetusta Ouro Preto, (...) incapaz, pelas suas
condições de clima e topografia, de ser um foco de progresso em todas
as suas largas manifestações, de desempenhar, enfim, a elevada missão
que se destina a uma capital.”91

90
FERREIRA, Cícero. “Higiene”. In: A Capital, 20 de junho de 1896, p. 1.
91
A Capital, 21 de dezembro de 1897, p 1.

120

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 120 19/6/2008, 23:40


No entanto, o monumento que se inaugurava não estava de todo
concluído. Muitas obras restavam por serem feitas. Ruas, pontes, canali-
zações, calçamentos e vários dos edifícios projetados permaneciam
inacabados ou sequer iniciados. O próprio Palácio Presidencial, signo
maior da condição de capital, também estava por ser terminado. Várias
obras projetadas por Aarão Reis ainda continuariam sendo executadas
30 ou 40 anos depois de inaugurada a cidade.
Os problemas econômicos enfrentados em todo o país, durante as
primeiras décadas do século XX, refletiram nas obras públicas, impedin-
do que prosseguissem no mesmo ritmo que era demandado. Esse
descompasso pode ser observado nos relatórios da prefeitura, que afir-
mavam as dificuldades em estender os serviços básicos a toda área urba-
na da cidade. Bairros pobres como Barro Preto, Quartel (Santa Efigênia),
Lagoinha, Floresta, Calafate, que ocupavam as franjas entre as zonas
urbana e suburbana, eram então praticamente ignorados.92
Assim como na maioria das grandes cidades brasileiras, onde a
modernização do espaço não significou a extensão dos benefícios por ela
gerados a toda população, na capital mineira os influxos do progresso
estiveram limitados a determinadas áreas, especialmente aquelas ocupa-
das pelas camadas mais favorecidas. A realidade cotidiana dos pobres
da cidade era marcada pela precariedade, exclusão e controle. Sobre-
posta ao plano de Aarão Reis, as fronteiras sociais traçavam uma outra
geografia, onde não havia melhorias como abastecimento de água, luz,
calçamento, esgotos, e onde a população se aglomerava em casebres e
cafuas, dispostas em ruas tomadas de lama ou poeira, percorridas por
águas servidas e animais de toda espécie.93
Como mencionado anteriormente, o problema da habitação popu-
lar estava dado antes mesmo de inaugurada a capital, persistindo por
toda a história da cidade. A existência de barracões e cafuas na região
central era criticada e atacada pelo poder público sob o argumento da

92
Cf. por exemplo, relatórios apresentados ao Conselho Deliberativo da Capital
pelos prefeitos Bernardo Pinto Monteiro, 1902, p. 5-6, 112-122; Olynto Deodato
dos Reis Meireles, 1911, p. 4-7; Afonso Vaz de Melo, 1919, p. V-X.
93
Para as condições de vida nos bairros populares da cidade ver: JULIÃO, 1992;
LE VEN, 1997; SOMARRIBA, 1984.

121

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 121 19/6/2008, 23:40


higiene: abrigavam uma população heterogênea, de preferência inclina-
da à transgressão da moral, dos bons costumes e dos hábitos saudáveis,
favorecendo o surgimento e disseminação de moléstias epidêmicas e
transmissíveis. A opinião das autoridades mineiras em nada diferia do
diagnóstico elaborado pelos higienistas da segunda metade do século
XIX, que afirmava serem os “hábitos de moradia dos pobres (...) nocivos
à sociedade”, visto serem as habitações coletivas “focos de irradiação de
epidemias, além de, naturalmente, terrenos férteis para a propagação de
vícios de todos os tipos” (CHALHOUB, 1996:29). Segundo Sidney
Chalhoub, essa condenação à moradia e aos hábitos da população pobre
como barreiras à civilização e progresso do país era um dos pressupostos
da higiene como ideologia.94
No entanto, essas mesmas moradias eram aceitas quando localizadas
fora da área urbana. Em 1900, a prefeitura providenciou a remoção de
um núcleo de cafuas do centro da cidade e, para solucionar as dificuldades
dos operários em construir as casas adotadas na zona urbana, o prefeito
Bernardo Pinto Monteiro informava ter cedido terrenos na região do
Calafate, em ponto afastado da cidade, onde “as cafuas são todas alinhadas
e guardam entre si certa distância”.95 O problema parecia ser não a habitação
insalubre dos pobres, mas o lugar que ela ocupava no espaço da cidade.96
Outro exemplo de como a exclusão era legitimada pelas autorida-
des nos é dado por relatório do prefeito Olinto Meireles. Em 1911, ele

94
A higiene conformaria um conjunto de princípios técnico-científicos capazes de
conduzir o país à civilização que, segundo Chalhoub, “implicam a despolitização
da realidade histórica, a legitimação apriorística das decisões quanto às políticas
públicas a serem aplicadas no meio urbano”, tornando “possível imaginar que
haveria uma forma científica – isto é, neutra, supostamente acima dos interesses
particulares e dos conflitos sociais em geral – de gestão dos problemas da cidade e
das diferenças sociais nela existentes” (CHALHOUB, 1996:35 grifos do autor).
95
PREFEITURA DE BELO HORIZONTE. Mensagem ao Conselho Deliberativo
da Cidade de Minas, 1900, p. 19.
96
A mudança do foco de preocupação da forma, ou qualidade – condições da mora-
dia – para o espaço – o local da habitação – é apontada por Sidney Chalhoub como
um dos aspectos que contribuíram na conformação do discurso sobre a salubridade
urbana na segunda metade do século XIX, assim como da “ideologia da higiene”
(CHALHOUB, 1996:33). Essa mudança é objeto de estudo de ABREU (1986).

122

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 122 19/6/2008, 23:40


declarava que a solução para coibir a aglomeração dessa população na
área central era o estabelecimento de uma pesada taxação sobre as mo-
radias populares, forçando os proprietários a convertê-las em habitações
aceitáveis e, conseqüentemente, inacessíveis aos bolsos dos pobres, ou
“se possível, transportando-as para os subúrbios”.97 No ano seguinte,
após a instituição da taxa de 5 mil reis sobre os barracões erguidos na
zona urbana, Meireles dizia:
“A medida era, pois, necessária a bem da conservação das nossas boas
condições sanitárias, da moral e do conforto a que tem direito os habitantes
da área urbana, onde a vida é muito mais cara que nos subúrbios. Será
sempre preferível uma população menos numerosa na área urbana, porém
saudável e cercada de todas as garantias de higiene, habitando prédios
que tenham o conjunto harmônico e perfeito ideado pela Comissão
Construtora, a vermos mesmo no coração da cidade, verdadeiros bairros
chineses, habitat predileto de todas as moléstias infecto-contagiosas.”98

Além da exclusão social, a fala do prefeito revela ainda a perma-


nência da velha identidade entre sujeira e doença, pobreza e perigo, que
marcaram os discursos e as ações da nascente saúde pública, quer na
Europa ou no Brasil. A solução sugerida também repetia antigas receitas:
intervir nas condições de vida da pobreza, deslocando-a para outras áreas
da cidade e buscando controlar hábitos e comportamentos. Higiene e
salubridade tornavam-se instrumentos habilmente manipulados no confli-
to entre ricos e pobres. Como veremos no capítulo seguinte, essas identida-
des e soluções ainda continuavam a compor as concepções sobre as doen-
ças quando a pandemia de influenza espanhola varreu a capital mineira.
A regulamentação das atividades e o controle dos usos destinados
ao espaço urbano constituíam outros meios através dos quais se buscou
conformar a imagem da capital salubre. Ainda no período da construção,
Alfredo Camarate, engenheiro da Comissão Construtora e cronista dos
primeiros tempos da cidade, afirmava a necessidade de medidas regula-

97
PREFEITURA DE BELO HORIZONTE. Relatório apresentado ao conselho
Deliberativo ..., 1911, p. 16.
98
PREFEITURA DE BELO HORIZONTE. Relatório apresentado ao conselho
Deliberativo..., 1912, p. 26.

123

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 123 19/6/2008, 23:40


doras, “marcando lugares para cada coisa” e limitando as excessivas
liberdades das gentes.99 A polícia sanitária havia se convertido em um
importante instrumento na tentativa de disciplinar e controlar a popula-
ção, afastando atitudes e costumes que pudessem colocar em risco a
higiene urbana e a saúde da sociedade.
O serviço sanitário do estado, regulamentado no ano de 1895,
compunha-se de um Conselho de Saúde Pública, órgão consultivo para
questões relativas à higiene e salubridade, uma Diretoria de Higiene,
encarregada da execução do regulamento sanitário, e por delegacias de
higiene e vacinação instaladas nos municípios. À Diretoria de Higiene
cabia a inspeção sanitária de habitações, escolas, fábricas, oficinas, ce-
mitério, matadouro, mercado; a fiscalização do exercício das profissões
médica, farmacêutica e odontológica e da comercialização de gêneros
alimentícios; a organização da polícia sanitária, da estatística demógrafo-
sanitária e da instalação de hospitais; além da execução de obras de
saneamento e da adoção de meios preventivos e do combate a epidemi-
as, endemias e outras doenças transmissíveis.100
Porém, em 1898, o serviço sanitário estadual seria desativado, ten-
do parte de suas atribuições transferidas para a prefeitura da nova capital.
Apenas em 1910 a Diretoria de Higiene seria novamente reorganizada e,
segundo Pedro Salles, durante este “longo interregno”, a atuação do esta-
do no campo da saúde esteve limitada à contratação de médicos para
tarefas esporádicas, como vacinação e combate a epidemias, como de
resto na maior parte dos estados do país.101 A nova organização, porém,
parece não ter produzido mudanças significativas na atuação do governo
estadual no campo da saúde. Nem mesmo a campanha pelo saneamento
dos sertões, iniciada por Belisário Pena e Artur Neiva, que angariava cada
vez mais a atenção do país, havia sensibilizado as autoridades mineiras e,

99
Minas Gerais, 25 de outubro de 1894, p. 2.
100
Decreto 876, de 30 de outubro de 1895. ESTADO DE MINAS GERAIS.
Coleção de Leis e Decretos ..., 1896, p. 311-313.
101
A reorganização do Serviço de Higiene do Estado seria aprovada através da Lei
452, de 9 de outubro de 1906, porém, somente em 1910 ela seria cumprida pelo
governo mineiro, através do Decreto 2.733, de 11 de janeiro de 1910 (SALLES,
1997:117).

124

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 124 19/6/2008, 23:40


até os anos de 1917-1918, a agenda de saúde pública em Minas esteve
praticamente restrita à fiscalização de gêneros, fornecimento de soros e
vacinas e do socorro público em tempos de epidemias.102
Em meados de 1918, com o apoio do governo federal e da Fun-
dação Rockfeller, era criado o Serviço de Profilaxia Rural do Estado de
Minas Gerais, visando o combate das endemias que grassavam no interi-
or, em especial a uncinariose, o paludismo, a doença de Chagas e a
lepra.103 Essa mudança refletia a nova orientação inaugurada em âmbito
federal, que acenava para uma maior centralização das políticas de saú-
de e saneamento e que, como salientado anteriormente, guardava rela-
ção com o discurso nacionalista propagado pelo movimento sanitarista da
década de 1910, como se percebe nessa fala de Samuel Libânio sobre a
criação do Serviço de Profilaxia:
“A norma de conduta que então nós traçamos era o fruto de convicções
de há muito arraigadas em nosso espírito e adquiridas no trato dos traba-
lhos dos cientistas que se devotaram à nobilíssima tarefa de elucidar
assuntos de tão grande monta para o progresso do País e futuro de nossa
gente. Realmente, demonstrado como o foi exuberantemente, que a in-

102
Sobre a saúde pública em Minas Gerais, cf.: SALLES, 1997:117-119, e MAR-
QUES e CARVALHO, 1996. A necessidade de uma intervenção sanitária mais
efetiva dos poderes públicos era assunto em voga nos meios médicos desde o início
da década de 10. No VII Congresso Brasileiro de Medicina e Cirurgia, ocorrido em
Belo Horizonte no ano 1912, o problema da insalubridade que caracterizava as
zonas rurais era objeto do discurso pronunciado por Carlos Chagas: “em alguns
estados da União grassam endemias facilmente combatíveis pelos processos
profiláticos definitivamente estabelecidos (...). Nem precisamos transpor os limites
deste próspero Estado para exemplificar o que afirmamos”. Citando o vale do rio
São Francisco, Carlos Chagas apontava a contradição entre a natureza rica e a
“população de definhados, anêmicos e caquéticos”, que não conhecia os benefíci-
os de uma assistência médica regular. Cf.; Discurso pronunciado pelo dr. Carlos
Chagas (orador oficial) na sessão solene inaugural do VII Congresso Brasileiro de
Medicina e Cirurgia, 1912, p.8-9. Porém, apesar do interesse e dos comentários
que havia despertado, “a momentosa questão ia sendo relegada ao esquecimento”
pelas autoridades estaduais (TAVARES, 1920).
103
Decreto 5.019, de 8 de junho de 1918, cria o Serviço de Profilaxia Rural em
Minas Gerais. Minas Gerais,19 de junho de 1918, p. 1-4.

125

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 125 19/6/2008, 23:40


ferioridade orgânica de grande parte de nossas populações não é uma
fatalidade ligada a terra, mas o produto da ignorância e da doença (...)”104

Segundo Libânio, então à frente da Diretoria de Higiene do Estado


e responsável pela elaboração dos regulamentos pertinentes àquele serviço,
era “tempo de sairmos dessa apatia com que, de braços cruzados,
assistíamos ao estiolar da nossa raça nos produtos degeneres das populações
do interior”.105 Reconhecendo a ação nefasta das várias endemias nos
sertões mineiros – o “Estado da doença”, no dizer de Belisário Pena – e
a importância e a complexidade assumidas pelos serviços sanitários nos
anos seguintes, Samuel Libânio se esforçaria para que os trabalhos de
profilaxia fossem estendidos ao maior número de municípios e que o governo
estadual diversificasse seu campo de atuação, aparelhando, reformulando
e ampliando as atribuições da Diretoria de Higiene do Estado.106
Ao contrário do que se observa na órbita estadual, a higiene man-
teve-se como problema que deveria ser administrado de perto pelas auto-
ridades da capital mineira. Em 1898, quando foi extinta a Diretoria de
Higiene do Estado, o governador Silviano Brandão nomeou Cícero Ferreira
para o posto de médico da capital, que passou a incorporar algumas das

104
ESTADO DE MINAS GERAIS. Relatório apresentado ao Exmo Sr.Dr. Affonso
Penna Júnior ..., 1920, p. 3.
105
ESTADO DE MINAS GERAIS. Relatório apresentado ao Exmo Sr. Secretário do
Interior ..., 1918, p. 3. A fala de Samuel Libânio reforça a imagem de que a
reorganização da Diretoria de Higiene em 1910 não havia significado mudança
efetiva na política sanitária levada a efeito pelo estado.
106
“Dadas as condições epidemiológicas de Minas, infelizmente um dos Estados da
União onde mais intensa se faz sentir a ação nefasta de várias epidemias”. ESTA-
DO DE MINAS GERAIS. Relatório apresentado ao Exmo Sr. Secretário do Interi-
or..., 1918, p. 6 (PENA, 1918). Entre as demandas relativas à saúde apresentadas
por Samuel Libânio à administração estadual, destacam-se: a inspeção médica
escolar, a reforma e reaparelhamento do desinfectório e do Hospital de Isolamen-
to, a organização do serviço de estatística do estado, o estímulo à criação do Serviço
Permanente de Higiene Municipal nas diversas cidades do estado, a implantação
de leprosários e da assistência aos alienados entre outros. Cf. Relatórios da Direto-
ria de Higiene, referentes aos anos de 1919 (publicado em 1920), 1921 (publica-
do em 1922), 1923 (publicado em 1924).

126

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 126 19/6/2008, 23:40


funções antes atribuídas ao diretor de higiene. Vale dizer que o decreto
que havia criado a Prefeitura Municipal da Cidade de Minas determina-
va que essa fosse controlada pela Presidência do Estado, que tinha a
prerrogativa do exercício das funções deliberativas. Ao prefeito, nomea-
do livremente pelo presidente estadual, cabia executar e fazer cumprir as
leis municipais e os atos do presidente.107
Em 1900, Cícero Ferreira assumia a recém-criada Seção de Higi-
ene e Assistência Pública da Prefeitura.108 No mesmo ano, foram editados
os decretos que regulamentavam as instalações sanitárias, as atividades do
matadouro, cemitério e a polícia sanitária da cidade.109 A atenção dispen-
sada ao assunto era assim justificada pelo prefeito Bernardo Pinto Monteiro:
“Não há serviço mais importante para uma cidade do que o da sua
higiene. Todos os povos cultos procuram seguir rigorosamente os seus
sábios preceitos. (...) e há os que fazem mui legitimamente da higiene
uma verdadeira religião.
Sob tal inspiração lavrou o governo o decreto nº 1358, de 6 de fevereiro
de 1900, criando a Diretoria de Higiene e entregando-a ao médico da
prefeitura, sr. Dr. Cícero Ferreira Rodrigues.” 110
A Seção de Higiene ficava responsável pela fiscalização e aplicação
de toda legislação referente à salubridade e à saúde pública. Limpeza
urbana, fiscalização das habitações particulares, coletivas e estabeleci-
mentos comerciais, inspeção da carne, leite e outros alimentos, adminis-

107
Decreto n.1.088, de 29 de dezembro de 1897. ESTADO DE MINAS GERAIS.
Coleção de Leis e Decretos, 1898. Tão logo instalada a sede governo, a capital
mineira seria chamada Cidade de Minas. Porém, pouco tempo depois retomaria o
antigo nome de Belo Horizonte (BARRETO, 1996).
108
Decreto 1.358, 6 de fevereiro de 1900 (Cria Sessão de Higiene e Assistência
Pública da Cidade de Minas). Minas Gerais, 7 de fevereiro de 1900, p. 1.
109
Decreto n.1.366, de 14 de fevereiro de 1900 (Instalações Sanitárias). Minas
Gerais, 25 de fevereiro de 1900, p. 1-2; Decreto n.1.367, de 2 de março de 1900
(Polícia Sanitária). Minas Gerais, 3 de março de 1900, p.1-4; Minas Gerais, Decre-
to n.1.368 e 1369, de 5 de março de 1900 (Cemitério e Matadouro). Minas
Gerais, 6 de março de 1900, p.1-3
110
ESTADO DE MINAS GERAIS. Mensagem ao Conselho Deliberativo da Cidade
de Minas ...,, 1900,

127

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 127 19/6/2008, 23:40


tração do cemitério, vacinação e revacinação e a vigilância e controle so-
bre qualquer manifestação epidêmica, com autoridade para determinar
desinfecções e isolamento dos doentes. Até mesmo a mendicância havia
sido objeto de controle, por intermédio de um decreto no qual eram defi-
nidas as condições para a obtenção do reconhecimento oficial dos mendi-
gos e as regras que regulariam o exercício da mendicância na cidade.111
Em 1923, um novo acordo entre a prefeitura e o governo do estado trans-
feria as atribuições da Seção de Higiene da capital para a Diretoria de
Higiene estadual.112
Analisando a legislação sanitária da capital mineira, Letícia Julião
aponta que essa visava mais “impedir que a pobreza se alastrasse, conta-
minado a cidade com suas doenças e hábitos condenáveis, que, de fato,
oferecer soluções concretas” para a dimensão que o problema da higiene
assumia nos bairros populares – a preocupação era o espaço e não a
qualidade da moradia operária (JULIÃO, 1992:38). De tal forma, se-
gundo Julião, se a fama de cidade salubre era procedente, ela estava
restrita aos bairros nobres da capital, servidos por melhorias como esgo-
to, água encanada, calçamento e limpeza urbana entre outros, e garanti-
da pela exclusão e controle impostos à pobreza.
As diretrizes da legislação sanitária municipal tinham um caráter
essencialmente normativo e fiscalizador, pouco fazendo para uma ampli-
ação dos serviços prestados e a melhoria das condições dos bairros po-
bres, constantemente reclamadas nos periódicos da capital: “os subúrbi-

111
Seria considerado mendigo todo aquele que não tivesse meios de fortuna ou pa-
rente que o pudesse assistir, vivendo por isso a implorar esmolas. O exercício de tal
prática, porém, era vedado a quem que não estivesse inscrito como tal no livro de re-
gistros da prefeitura, onde, a cada um, seria dado um bilhete de identidade, assinado
pelo diretor de higiene, com número de inscrição, constando ainda nome, idade,
residência e designação do local destinado a estacionar, além de uma placa com a
inscrição Mendigo, que devia ser trazida de forma visível no peito. Cf.: Decreto n.
1435, de 27 de dezembro de 1900. Entre setembro de 1901 e agosto de 1902 fo-
ram matriculados 43 mendigos, sendo negados vários pedidos para aqueles que não
apresentavam os requisitos legais para mendigar na cidade. PREFEITURA DE BELO
HORIZONTE. Relatório apresentado ao Conselho Deliberativo..., 1902, p. 160.
112
ESTADO DE MINAS GERAIS. Relatório apresentado ao Exmo Sr. Dr. Ferando
de Mello Vianna..., 1924, p.18.

128

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 128 19/6/2008, 23:40


os pagam tantos impostos quanto à zona urbana, donde se infere mais
uma falta de equidade por parte da administração no critério que adotou
para a distribuição e execução de obras e serviços urbanos”.113 Segundo
Letícia Julião, as demandas e queixas da população revelavam a consci-
ência dos direitos de cidadania que lhes eram negados. Assim, a incor-
poração da higiene como uma referência para as reivindicações dirigidas
ao poder público constituía uma das frentes na luta pelo reconhecimento
desses mesmos direitos.
Sobre esse aspecto, Sidney Chalhoub argumenta que essas reivin-
dicações não significam que as camadas pobres da população partilhas-
sem a ideologia da higiene. Como afirma, a “incorporação de significa-
dos sociais gerais caros à ideologia da Higiene ocorria num contexto de
crítica social permeada pela luta de classes, promovendo deslocamentos
sutis de ênfase e sentido político” (CHALHOUB, 1996:192 nota 56).
Em direção oposta ao que Chalhoub estabelece como pressupostos dessa
ideologia – a despolitização da realidade e a legitimação apriorística das
decisões relativas à saúde pública –, as reivindicações populares apon-
tam exatamente para a politização, o reconhecimento e extensão dos
direitos de cidadania às camadas pobres da cidade. Percebemos, ainda,
que essa incorporação revela a força que o ideal da higiene havia alcan-
çado em meio à sociedade. Como afirma Letícia Julião, “nesses momen-
tos, o discurso sanitarista deslocava-se de seu eixo impositivo e normativo
e se tornava uma fonte de expectativas de melhoria das condições de
vida” (JULIÃO, 1992:133).
Outro elemento que ajudava a compor o discurso da salubridade
da capital mineira era a ausência das principais moléstias epidêmicas e
contagiosas que tanto preocupavam a população e os administradores de
outras cidades brasileiras. Os dados estatísticos relativos às moléstias

113
As Alterosas, 1916. In: JULIÃO, 1992:134. A autora lista uma série de recla-
mações que abrangiam o fornecimento de água, luz elétrica, rede de esgotos, varrição
de ruas, calçamento entre outros. Essas reclamações podem ser conferidas em:
“Lixo nos subúrbios”. A Nota, 9 de setembro de 1915, p. 1; “Falta de luz”. Diário
de Minas, 16 de outubro de 1914, p. 1; “O Calafate e a prefeitura”. A Capital, 25
de outubro de 1913, p. 1; “Ao sr. Prefeito”. Diário de Minas, 1 de novembro de
1899, p. 1; “Reclamações”. Diário de Notícias, 26 de setembro de 1907, p.2.

129

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 129 19/6/2008, 23:40


transmissíveis divulgados pela Diretoria de Higiene para os anos de 1910-
1920 revelam que doenças como cólera, peste e febre amarela – que
tanto depunham contra a salubridade urbana – não tinham impacto na
taxa de mortalidade da capital mineira.114

Tabela 1: Mortalidade por Doenças Transmissíveis em Belo Horizonte


– 1910-1920

(*) Confrontados como Anuário de 1932-1933, o cálculo sobre a população da


capital parece superestimado. Em 1918, por exemplo, a população era apon-
tada em 55.790 habitantes. ESTADO DE MINAS GERAIS. Anuário de
Estatísitica Demógrafo-Sanitária..., 1938, p.11.
Fonte: ESTADO DE MINAS GERAIS. Anuário de Estatísitica Demógrafo-Sa-
nitária..., 1921.

Uma doença de incidência considerável era a tuberculose. Segun-


do a estatística elaborada pela Diretoria de Higiene do Estado, a moléstia
surgia como principal causa anual de óbitos no grupo das doenças infecto-
contagiosas. Apenas nos anos de 1911 e 1918 a tuberculose perderia
sua liderança, em função das epidemias de sarampo e influenza. O alto
índice de vítimas da tuberculose na cidade era justificado pela grande

114
ESTADO DE MINAS GERAIS. Anuário de Estatística Demógrafo-Sanitária ...,
1921, p. 26. Na tabela apresentada, cólera e febre amarela apresentam um único
óbito cada entre 1910-1920; a peste, nenhum óbito.

130

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 130 19/6/2008, 23:40


contribuição de elementos estranhos à população local, que se dirigiam
para a capital, quer “pelo melhor aparelhamento de suas instituições
hospitalares, elevação do nível cultural médico, bem como pela indica-
ção de seu clima para determinadas moléstias”.115
A ausência de moléstias epidêmicas e contagiosas que grassavam
em outras regiões, também é atestada por Carlos H. Mudado Maletta no
histórico epidemiológico que realiza sobre a cidade. Os dados levantados
pelo autor apontam que, até pelo menos a década de 20, uma das prin-
cipais causas de óbito entre a população da capital eram as doenças
gastrointestinais, que se caracterizavam como infecções de origem
bacteriana, transmitidas por alimentos e água contaminados, causando
febres e dores abdominais (MALETTA, 1997).116 Provavelmente, um
maior número de vitimas estava entre a população carente daquelas
melhorias que pontuavam o espaço urbano da capital. Maletta também
aponta que a percentagem de óbitos atingia maior cifra entre os menores
de cinco anos de idade.

Tabela 2: Mortalidade em Belo Horizonte – 1897-1912

Fonte: MALETTA, 1997

Em março de 1918, o diretor de higiene do estado Samuel Libânio


informava sobre as condições sanitárias da capital:

115
ESTADO DE MINAS GERAIS. Anuário de Estatística Demógrafo-Sanitá-
ria...,1921, p. 12. Pedro Salles também afirma a artificialidade da elevada inci-
dência de tuberculose como resultado de ser a cidade considerada lugar favorável
para o tratamento dos doentes (SALLES, 1997, p.90).
116
Os dados relativos à mortalidade entre 1897 e 1920 encontram-se nas p. 44-
114. Sobre doenças gastrointestinais cf.: HAMMERLI, s/d.:572-573 vol.1.

131

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 131 19/6/2008, 23:40


“Foi lisongeiro o estado sanitário de Belo Horizonte onde apenas com
caráter epidêmico foram registrados numerosos casos de difteria, quase
sempre benignos. Um caso de varíola vindo do Rio determinou prontas
medidas de modo a limitar a manifestação mórbida ao caso único que
aqui aportou. Nenhuma outra moléstia transmissível assumiu caráter
epidêmico em Belo Horizonte, justificando a merecida fama de cidade
salubre de que goza a capital do Estado.”117
Por essa época, a capital mineira dispunha de uma assistência
hospitalar ainda modesta, com apenas três instituições do gênero em
funcionamento.118 Criada em 1889, a Santa Casa de Misericórdia era
uma instituição particular de cunho caritativo e que recebia subvenções
do estado e da sociedade em geral.119 Em tempos normais, respondia
por praticamente todo o atendimento hospitalar dispensado à população
da capital, excetuando-se os portadores de alienação mental e de molés-
tias infecto-contagiosas de notificação compulsória. O Dr. Hugo Werneck,

117
ESTADO DE MINAS GERAIS. Relatório apresentado ao Secretário do Interi-
or..., 1918, p. 17. Afirmações da mesma natureza são encontradas nos relatórios
dos prefeitos Bernardo Pinto Monteiro, publicado em 1902, p. 150; Benjamin
Brandão, publicado em 1910, p. 21; Olynto Deodato dos Reis Meireles, publicado
em 1911, p. 12.
118
A Comissão Construtora havia destinado lugar específico para a construção de
um hospital na zona suburbana, constando em sua documentação uma planta com
quatro amplas enfermarias. Porém, esse seria mais um dos projetos não executados.
Como foi dito, durante o período de construção da cidade, a assistência médica aos
operários era feita pela própria Comissão ou, quando necessário, na Santa Casa de
Sabará, com a qual o governo havia estabelecido contrato. Em 1896, a epidemia de
varíola obrigou o engenheiro Francisco Bicalho a autorizar a instalação, em caráter
provisório, de um hospital para doentes de moléstias contagiosas e infecciosas. A
instalação de isolamentos provisórios parece ter sido prática nos momentos de ame-
aça, como, por exemplo, o da peste bubônica nos anos de 1899/1900. Cf.: PRE-
FEITURA DE BELO HORIZONTE. Mensagem ao Conselho Deliberativo..., 1900,
p. 41. Cf. também: ESTADO DE MINAS GERAIS. CCNC/MHAB; BARRETO,
1996:589-594 vol.2; SALLES, 1997:39-48; MARQUES e CARVALHO, 1996.
119
Em 1899, a Santa Casa de Misericórdia era instalada em barracas de lona tipo
Docker, cedidas pelo governo mineiro. A construção da primeira enfermaria seria
finalizada em fevereiro de 1901, e novos pavilhões foram edificados até os anos 20
(SALLES, 1997:40).

132

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 132 19/6/2008, 23:40


diretor do serviço clínico da instituição, esclarecia que os doentes de
moléstias de “marcha-aguda, tais como a varíola, a escarlatina, o sarampão,
a peste, etc” – isto é, aquelas de caráter epidêmico – eram encaminha-
dos ao Hospital de Isolamento. Por outro lado, dizia que os portadores
de “moléstias infecto-contagiosas crônicas, como a lepra e a tuberculose,
estão quase por completo ao desamparo”. Para esses, a Santa Casa dis-
punha de alguns leitos no Pavilhão Roberto Koch que, no entanto, era
destinado somente à observação dos casos suspeitos.120
Durante as duas primeiras décadas de existência, a Santa Casa
foi ampliando e diversificando sua capacidade de atendimento, com a
inauguração de diversos pavilhões destinados à cirurgia de homens,
mulheres, maternidade, policlínica, asilo e serviço de radiologia. Até 1914,
um convênio com o governo estadual determinava a manutenção de uma
enfermaria especial para os militares. Naquele ano, porém, em vista das
constantes “queixas formuladas pelos praças enfermos contra a Santa
Casa”, era inaugurado o Hospital Militar, destinado ao atendimento de
todos os oficiais e praças da Força Pública do Estado.
Um Hospital de Isolamento definitivo seria construído somente
em 1910, no bairro do Cardoso, zona suburbana da cidade. Segundo
Pedro Salles, a localização e planejamento do prédio teriam recebido
sugestões de Oswaldo Cruz, de modo a satisfazer as necessidades nos
cuidados aos doentes e afastar a ameaça das moléstias contagiosas do
convívio da população (Cf.: SALLES, 1997:41-48).
A cidade possuía, ainda, outras duas importantes instituições da
área médica: a Faculdade de Medicina e a filial do Instituto de Manguinhos,
mais tarde Fundação Ezequiel Dias. A criação de uma escola médica em
Minas era sonho antigo, sendo discutida em 1902 pela Sociedade de
Medicina, Cirurgia e Farmácia, fundada em Belo Horizonte quatro anos
antes.121 Somente em 1911, com o apoio do governo estadual, a Facul-

120
ESTADO DE MINAS GERAIS. Álbum Médico de Belo Horizonte. 1912, s.p.
121
A Sociedade de Medicina, Cirurgia e Farmácia foi criada em 1899, fruto da
iniciativa dos médicos Cícero Ferreira, Olynto Meireles e Salvador Pinto. Em suas
sessões, que tinham o resumo publicado no órgão oficial do Estado, eram discuti-
das questões científicas, casos médicos e as epidemias. A sociedade funcionou até
agosto de 1902. Em 1908, era criada a Associação Médico-Cirúrgica de Minas
Gerais (SALLES, 1997:148-149).

133

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 133 19/6/2008, 23:40


dade seria criada. Inicialmente a escola manteve os cursos de Farmácia
e Odontologia, mais tarde desativados. Seu corpo docente contava com
os mais renomados representantes da classe médica, entre eles Cícero
Ferreira, Alfredo Balena, Otávio Machado, Samuel Libânio, Ezequiel
Dias. Seus membros gozavam de ampla reputação na sociedade da capi-
tal pelas atividades filantrópicas, políticas, econômicas e científicas, sen-
do reconhecidos como agentes formadores da elite cultural da cidade.
A instalação da filial do Instituto de Manguinhos também contaria
com o suporte financeiro do governo estadual. A tuberculose havia feito
Ezequiel Dias, um dos mais importantes colaboradores de Oswaldo de
Cruz, transferir-se para Belo Horizonte no final de 1905, onde viviam
alguns de seus parentes. A perda do grande pesquisador seria, porém,
compensada pelo projeto de Oswaldo Cruz em difundir o modelo de
medicina experimental implantado com o instituto em Belo Horizonte.
Com o apoio de Cícero Ferreira, intermediário das negociações com o
governo mineiro, a filial de Manguinhos era instalada em 1907. O acor-
do previa que o instituto devia se dedicar ao estudo das epizotias das
áreas pastoris e à produção de soros e vacinas. A filial de Manguinhos
desempenhou importante papel no estado, especialmente como apoio à
Diretoria de Higiene, sendo demandada para a solução de diversas ques-
tões de natureza sanitária (MARQUES e CARVALHO, 1996:22-25;
MAGALHÃES, 1956; MAGALHÃES, 1976).
Um dos problemas eleitos pela filial de Manguinhos foi o estudo do
escorpionismo, que havia se tornado um flagelo para a população da capi-
tal. A região assinalava presença de uma espécie bastante perigosa que,
com a construção da cidade, passou a invadir as residências. Por intermé-
dio da colaboração com pesquisadores da sede do Rio de Janeiro e dos
institutos Butantan e Vital Brasil, de São Paulo, foi possível também con-
trolar a invasão e desenvolver soros mais eficientes no combate à picada
dos barbeiros (SALLES, 1997, 131-132, e MARQUES, 1997b:484-488).
Cumprindo o projeto de Oswaldo Cruz, a filial mineira havia se transfor-
mado num centro de difusão e produção da pesquisa científica, integran-
do-se com os principais institutos nacionais, e congregando uma elite de
profissionais em medicina experimental de grande reconhecimento.
Como se viu, a imagem salubre construída sobre a capital mineira
fundamentava-se especialmente no fato de ter sido ela um centro urbano
planejado e edificado seguindo os preceitos da engenharia sanitária esta-

134

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 134 19/6/2008, 23:40


belecidos na segunda metade do século XIX. Nesse momento, o sanea-
mento urbano havia se tornado um importante problema que, para além
da saúde coletiva, afetava a economia, a vida social e o progresso das
nações. Enquanto muitas cidades viam-se às voltas com a necessidade de
custosas reformas para reverter um quadro sanitário amplamente reco-
nhecido como negativo, Belo Horizonte nascia sem qualquer passado.
Do velho arraial do Curral del Rei, a cidade herdara o bócio e a fama do
bom clima. O primeiro quase não era mais mencionado, e sua presença
em extensas regiões do estado parecia ter arrefecido a condenação e as
resistências ao lugar. Do clima, ao contrário, tirou-se todo proveito, não
havendo referência à salubridade da capital que não a justificasse, entre
outros, pelas características climáticas da região.
A própria maneira pela qual se decidiu a transferência da capital,
baseando-se em estudos científicos levados a cabo por profissionais aba-
lizados, também influiu na constituição desse imaginário salubre. As con-
tradições e discordâncias identificadas nas opiniões desses profissionais
foram esmaecidas, permanecendo na memória social apenas o fato de
que a cidade nascera sob as precisas indicações da medicina e da enge-
nharia sanitária – sob as bênçãos prodigiosas da ciência.
A ausência das principais moléstias que afligiam outros centros
urbanos e que denegriam a reputação de cidades importantes, como o Rio
de Janeiro, foi outro elemento do qual se valeu o discurso que se construía
sobre a capital. Efetivamente, Belo Horizonte não assinalava epidemias de
cólera e peste, facilmente disseminadas nas grandes aglomerações. Até a
década de vinte, a população da capital mineira avançava pouco além da
casa dos 60.000 mil habitantes, cifra pouco significativa quando compa-
rada à população do Rio de Janeiro, q ue contava com cerca de 910.710,
ou a cidade de São Paulo, com uma população estimada em 523.196, ou
mesmo de Porto Alegre, que somava 163.500 habitantes.122
Como vimos, porém, a capital mineira apresentava outros proble-
mas sanitários, como a gastroenterite, o escorpionismo e a tuberculose.

122
Os dados apresentados são relativos ao ano de 1918 e foram retirados respecti-
vamente: ESTADO DE MINAS GERAIS. Anuário de Estatística Demografo-Sanitá-
ria, 1921, p. 11; GOULART, 2003:23; BERTOLLI FILHO, 1986:117; ABRÃO,
1998:154.

135

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 135 19/6/2008, 23:40


As moléstias gastrointestinais, relacionadas à qualidade da água ou dos
gêneros alimentícios, não eram exclusividade da população de Belo Ho-
rizonte, sendo um problema enfrentado pela maioria das cidades brasi-
leiras naquele momento, não representando, portanto, algo que pudesse
definitivamente macular a imagem da cidade. Por seu lado, o veneno dos
escorpiões não figurava entre os principais problemas de saúde pública
do país, não tendo a visibilidade de doenças como malária, febre amare-
la ou varíola. Quanto à tuberculose, a alta incidência de óbitos era perce-
bida muito mais como resultado do clima salubre, que atraía os infectados,
do que propriamente um retrato das condições de vida na capital.
Da mesma forma, a existência de serviços públicos sanitários tam-
bém auxiliava na constituição do discurso salubre sobre a capital, e seu
caráter normativo e fiscalizador contribuía na tarefa de circunscrever a
pobreza e seus hábitos em fronteiras definidas no espaço da cidade. As
outras instituições ajudavam a compor um cenário favorável: os benefíci-
os do atendimento hospitalar, a pesquisa científica, a difusão das opini-
ões e dos mais recentes conhecimentos da área médica.
Se a higiene e a salubridade não foram uma realidade tão efetiva
como buscaram fazer crer algumas falas sobre a cidade, elas foram aspi-
ração de toda a população: das autoridades municipais, dos que ocupa-
vam os decantados espaços civilizados do centro da cidade, como daque-
les que eram considerados excluídos, que viviam à margem dos benefícios
por ela oferecidos. As reivindicações manifestadas pelas camadas popu-
lares em relação às condições de vida nos bairros pobres e subúrbios da
cidade, reclamando esgotos, água encanada, coleta de lixo, luz, calça-
mento, entre outros, podem ser analisadas como uma luta pelo reconhe-
cimento e a extensão de seu direito à cidadania, como propõe Letícia
Julião. Mas elas também revelam, a nosso ver, o poder, as representa-
ções e a aceitação que os ideais da higiene haviam alcançado durante o
período em exame. Ao mesmo tempo em que o discurso da higiene pode
ser tomado como um campo de luta que opunha ricos e pobres, acredita-
mos poder afirmar que os benefícios gerados pela higiene haviam se
transformado em aspiração de toda a sociedade.
Mesmo que os relatos benfazejos daqueles responsáveis pela ad-
ministração sanitária em Belo Horizonte não correspondessem literal-
mente à realidade vivenciada por sua população, ainda assim, a idéia de
uma cidade salubre perseguiu a história da capital mineira durante anos,

136

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 136 19/6/2008, 23:40


incorporando-se à imagem da cidade. Em nossa opinião, a difusão e
incorporação dessa crença são, em certa medida, um dos aspectos capa-
zes de explicar as reações, apontadas no início desse capítulo, a respeito
da ameaça que a pandemia de influenza espanhola de 1918 representa-
ria para os moradores da cidade. No capítulo seguinte, veremos como
essa “cidade salubre” se comportou diante do flagelo da pandemia.

137

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 137 19/6/2008, 23:40


Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 138 19/6/2008, 23:40
CAPÍTULO 3

A crônica da espanhola em
Belo Horizonte

O ano 1918 havia começado sob o impacto da declaração do


estado de guerra entre o Brasil e a Alemanha, feita em outubro de 1917.
Diariamente, a imprensa mineira divulgava notícias sobre a movimenta-
ção nas frentes de batalha. Em Belo Horizonte, como em todo o país, o
prolongamento do conflito teve reflexos importantes na administração
pública, nas atividades econômicas e na sociedade civil.
Em duas décadas, a cidade havia crescido de modo significativo,
passando de pouco mais de 2 mil habitantes, quando do início de sua
construção em 1894, para uma população de cerca de 55 mil pessoas
em 1918. As principais atividades econômicas se concentravam nos se-
tores terciário e secundário, em especial o funcionalismo público, o co-
mércio e o setor fabril, no qual se destacavam as indústrias têxteis, ali-
mentícias e de construção civil. Desde cedo, porém, a ocupação urbana
havia transgredido o planejamento elaborado por Aarão Reis, fixando na
periferia da cidade uma população crescente de operários que buscavam
na capital emprego e melhores condições de vida.
O preço elevado dos lotes na zona urbana resultava no contraste
entre os grandes vazios que pontilhavam a área central, cuja ocupação se
faria apenas nas décadas de 1930-1940, e o adensamento da periferia,
que havia feito surgir os bairros do Quartel, Floresta, Lagoinha e Barro
Preto. O traçado geométrico que imperava na zona urbana era subverti-
do tão logo ultrapassada a avenida que contornava a cidade. Nessas
regiões, imperavam problemas de toda ordem, como a ausência de abas-
tecimento de água, de rede de esgotos, de calçamento.

139

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 139 19/6/2008, 23:40


Em meados da década de dez, o crescimento de Belo Horizonte
estancara. Em relatório apresentado ao Conselho Deliberativo da Capital,
o prefeito Afonso Vaz de Mello afirmava que a cidade havia atravessado
cinco anos de “apatia”. Prova disso era o movimento de construções par-
ticulares que havia diminuído gradativamente, chegando mesmo à “com-
pleta paralisação”, além do elevado número de casas desocupadas,
justificadas como reflexo da emigração verificada entre os trabalhadores.
Conforme afirmava o prefeito, somente a partir do ano 1919 é que a
capital pareceu animar-se, reassumindo a atividade dos idos de 1912 e
1913, “época da sua maior prosperidade”. Tais condições refletiam-se
nas rendas públicas da cidade, insuficientes para custear todas as despe-
sas “(...) que a tornem, pelo conforto, higiene, embelezamento e originali-
dade, a capital modelo, tal qual delinearam os seus ousados planejadores”.1
Por todo o ano 1918, a população se viu às voltas com problemas
de ordem econômica, especialmente a alta crescente dos preços e as
irregularidades no abastecimento dos gêneros de primeira necessidade.
Conseqüência dos anos de guerra, a carestia era sentida em todo o país,
levando o governo federal a instituir, em finais de agosto, um Comissariado
de Alimentação Pública. Esse novo organismo seria responsável pelo
controle dos preços, organizando para tanto, uma tabela com o valor
máximo no varejo dos produtos de primeira necessidade, podendo a
mesma ser estendida e adotada em qualquer ponto do país. O decreto
presidencial justificava essa medida como forma de evitar perturbações
da ordem pública, uma vez que a carestia agravava ainda mais a situação
da classe trabalhadora.2
Se a vida cotidiana na capital mineira já se encontrava alterada
pela situação imposta pela guerra, a chegada da pandemia potencializaria
ainda mais os problemas vivenciados pela população. Durante pouco
mais de dois meses em que perdurou, a espanhola provocou o caos:
casas comerciais fechadas, serviços públicos paralisados, carestia de
gêneros e ruas praticamente desertas, tornadas ainda mais lúgubres pela
visão das procissões diárias de enterros a caminho do cemitério municipal.

1
PREFEITURA DE BELO HORIZONTE. Relatório apresentado ao Conselho
Deliberativo..., 1919, p. VI.
2
Diário de Minas, 1° de setembro de 1918, p. 1.

140

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 140 19/6/2008, 23:40


A natureza e rapidez de expansão da pandemia colocaram em ques-
tão a capacidade de ação das autoridades públicas e científicas e, apesar
de todas as medidas propaladas, a moléstia ampliaria cada vez mais o seu
raio de ação, alterando profundamente a vida cotidiana da cidade. A
impotência das autoridades fazia a população apelar para outros meios no
intuito de afastar o mal ou dar solução aos problemas e embaraços por ele
trazidos. Durante o reinado da influenza, Belo Horizonte veria repetirem-
se muitas das cenas verificadas em outras cidades e dadas à publicidade
pela imprensa mineira. Assim, é possível identificar nos relatos produzi-
dos sobre a moléstia na capital vários dos aspectos apontados pela
historiografia das epidemias como elementos recorrentes nesses episódios
– negação, medo, estigmatização, práticas rituais, colapso da vida urbana,
entre outros – que comporiam a estrutura narrativa “dramatúrgica” dos
eventos epidêmicos (SLACK, 1999; ROSENBERG, 1995; EVANS, 1990;
STEEL, 1981; LONGRIGG, 1999; DELUMEAU, 1996).3
Mas, para além dessa dramaturgia, nossa análise também preten-
de iluminar algumas das particularidades da trajetória e das visões elabo-
radas sobre a pandemia de influenza de 1918 em Belo Horizonte. Entre
elas, a mais importante seria a idéia de que a cidade não se renderia à
doença, quer pelo discurso que se construía em torno das “acertadas
medidas” postas em prática pela Diretoria de Higiene Estadual ou pela
imagem salubre partilhada por uma parcela expressiva da população da
capital e que persistia mesmo diante dos problemas econômicos então
vivenciados e dos seus reflexos nas obras e nos serviços públicos. Com
apenas vinte anos, Belo Horizonte era ainda quase um arraial se compa-
rada a centros como São Paulo ou Rio de Janeiro, que contavam com
uma complexidade econômica, social e urbana muito mais expressiva.
Até mesmo Juiz de Fora, na Mata mineira, proclamava-se – e era –
maior que a capital.
As páginas seguintes são dedicadas a examinar como esse evento
epidêmico pode desvendar aspectos sobre a vida da capital mineira e a
de seus habitantes. De que forma as autoridades da capital reagiram à

3
As proposições sobre a “literatura da peste” elaboradas por esses autores foram
objeto de discussão no capítulo 1 (seção III – Perspectivas analíticas: a epidemia
como evento e como narrativa).

141

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 141 19/6/2008, 23:40


invasão da pandemia? O que ela nos revela sobre a salubridade da cida-
de planejada? Como a sociedade se posicionou diante daquela ameaça?
Como se deu sua expansão e quais relações podemos estabelecer entre a
influenza e a geografia social da cidade? Que conseqüências a moléstia
trouxe para o cotidiano da cidade e que tipo de reações populares a
pandemia suscitou? Quais foram os impactos da influenza nos serviços
de saúde municipal ou do estado? Essas são algumas das questões que
têm informado a crescente historiografia das epidemias e para a qual este
trabalho pretende ser mais uma contribuição.

A chegada da influenza e os transtornos no cotidiano da cidade

As primeiras referências à epidemia de influenza espanhola che-


garam a Belo Horizonte por meio dos jornais. Em fins de agosto, a im-
prensa divulgava a estranha moléstia que havia atacado os navios brasi-
leiros a caminho da Europa e, no início de outubro, dava conta da chegada
da influenza aos portos do país.4 As primeiras notícias informavam a
irrupção de uma epidemia de gripe nos quartéis do Rio de Janeiro, atin-
gindo proporções tais que levaram as autoridades militares a tomarem
urgentes medidas sanitárias.
Segundo o Minas Gerais, já no dia 8 de outubro, as enfermarias do
Hospital Central do Exército abrigavam militares atacados pela gripe,
para onde, desde então, continuamente se dirigiam novos gripados. O
estado dos doentes era considerado satisfatório e os sintomas “benig-
nos”. Um dos funcionários da profilaxia do Corpo de Saúde do Exército
havia afirmado que, todos os anos, durante o mês de outubro, eram
observados casos de gripe entre a tropa. Segundo ele, certa vez a molés-
tia havia atacado a fortaleza de Santa Cruz, infectando todos os soldados,
assim como presos e famílias inteiras de oficiais:
“Entretanto, tudo isso passou despercebido, porque não tínhamos a pre-
ocupação da tal influenza espanhola.

4
Diário de Minas, 24 de setembro de 1918, p. 1, e Minas Gerais, 10 de outubro de
1918, p. 4.

142

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 142 19/6/2008, 23:40


Já vê, portanto, que se não fosse essa única circunstância da preocupa-
ção do público e dos jornais com a influenza espanhola, a nada seria
levado ao alarme que se está fazendo infundadamente.
São simples casos de gripe, muito naturais no atual período do ano, os
que agora se manifestam”.5
Nos dias que se seguiram, a imprensa noticiava a expansão da
epidemia entre a população civil. Começava, assim, um desfilar diário de
imagens que se tornariam a cada dia mais negras e funestas sobre a
precária situação instalada pela terrível pandemia na capital do país.
A divulgação dessas notícias teve repercussão quase imediata no
espírito da população, alarmada com a possibilidade de invasão da doen-
ça, tendo em vista as constantes relações entre o Rio de Janeiro e a
capital mineira. Partia, todos os dias, de Belo Horizonte para a capital do
país um trem noturno, atravessando a região central e a Mata mineira até
chegar à baixada fluminense e, finalmente, à Central do Brasil. O cami-
nho inverso também era feito diariamente. E foi por esse modo que a
moléstia tocaria a cidade.
Os primeiros casos de influenza espanhola aportaram incólumes
na capital mineira no dia 7 de outubro. Eram um oficial e sua família,
procedentes da Vila Militar do Rio de Janeiro, onde a gripe causava
transtornos consideráveis. Instalados em um hotel da cidade, teriam se
transferido no dia seguinte para uma casa do bairro da Floresta. Tendo
manifestado sintomas de gripe dois dias após a chegada, seriam trans-
portados para o Hospital de Isolamento. A casa e o hotel em que estive-
ram hospedados foram, então, submetidos a uma rigorosa desinfecção
pelos funcionários da Diretoria de Higiene.
No dia seguinte, 10 de outubro, o caso era noticiado na primeira
página do jornal A Nota, com uma pergunta bombástica: “Influenza Es-
panhola? Estará entre nós o terrível morbus?”.6 Conforme a matéria, os
moradores do bairro da Floresta teriam ficado “aterrorizados” ao verem
sair o oficial, mulher e filhos no carro da assistência.7 Consultado sobre o

5
Minas Gerais, 11 de outubro de 1918, p. 3.
6
A Nota, Belo Horizonte, 10 de outubro de 1918, p. 1.
7
O terror dos moradores provavelmente seria reflexo do medo que a confirmação
da presença daquela moléstia ainda desconhecida causava entre a população. Po-

143

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 143 19/6/2008, 23:40


fato, o diretor de higiene do Estado Samuel Libânio declarou ao jornalis-
ta serem mesmo casos de gripe, mas de “caráter benigno”, afirmando
ser “lisonjeiro” o estado dos doentes.8 A alta estava prevista para um ou
dois dias e as medidas tomadas por aquela Diretoria tiveram um caráter
apenas preventivo. Diante dessas informações, o redator finalizava a no-
tícia dizendo confiar nas palavras do “abalizado” clínico, não havendo,
“por enquanto, motivo para recear”.9
Entre os dez dias que separam a chegada dos gripados e o reco-
nhecimento da moléstia na cidade, não há novas declarações de nenhum
dos responsáveis pela saúde pública, nem menção ao assunto nos perió-
dicos consultados. Novas notícias surgiriam apenas no dia 18 de outu-
bro, quando o Minas Gerais publicava matéria afirmando não mais haver
dúvidas sobre a existência da gripe epidêmica na cidade. Declarava,
ainda, que a Diretoria de Higiene já havia determinado medidas para o
isolamento e o expurgo dos focos, o que, porém, não era suficiente para
assegurar que a epidemia não se desenvolveria na cidade, uma vez que
entre suas características estava a “notável capacidade de propagar-se”.10
O primeiro óbito por influenza ocorreria no dia 21 de outubro. Segundo
a imprensa, a vítima, Teófilo Esquibel, durante anos funcionário dos
telégrafos na capital mineira, teria contraído a gripe em sua passagem
pelo Rio de Janeiro.11 Em pouco tempo, Belo Horizonte estaria rendida

rém, também poderia apontar para os receios provocados pelas medidas impostas
pela Diretoria de Higiene, especialmente a prática do isolamento, que não parecia
contar as simpatias populares, como veremos mais adiante.
8
Mineiro de Pouso Alegre, Samuel Libânio diplomou-se em 1905 pela Faculdade
Nacional de Medicina. Em 1910, assumiu o cargo de médico-auxiliar da Diretoria
de Higiene do Estado de Minas Gerais, reorganizada naquele mesmo ano. De 1917
a 1926 assumiu o cargo de Diretor de Higiene do Estado, sendo responsável pela
criação e implantação do Plano de Profilaxia e Saneamento Rural do Estado de
Minas Gerais, com o apoio do governo federal e da Fundação Rockfeller. Foi professor
da Faculdade de Medicina e membro da Liga Anti-Tuberculose de Minas Gerais.
9
A Nota, 10 de outubro de 1918, p. 1.
10
Minas Gerais, 18 de outubro de 1918, p. 5. A primeira notícia afirmando a
existência de casos na cidade também seria publicada no Diário de Minas, nesse
mesmo dia 18 de outubro, na primeira página. Não há registros anteriores sobre a
doença em nenhum dos dois jornais.
11
Diário de Minas, 24 de outubro de 1918, p. 1.

144

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 144 19/6/2008, 23:40


pela influenza, vivendo uma experiência que, dias antes, lhe chegava
apenas pelas páginas dos jornais.
Como vimos, as notícias que circularam na capital mineira sobre a
epidemia no Rio de Janeiro na primeira quinzena de outubro davam
conta ser aquela uma moléstia benigna e aparentemente circunscrita à
Vila Militar. Somente em meados do mês, quando a influenza rompia
seus limites, alastrando-se pelo centro e pelos subúrbios da capital da
república, é que os mineiros começaram a ser confrontados com os da-
dos de uma realidade que parecia absurda. Ausência de empregados no
comércio, ponto facultativo nas repartições públicas, perturbação no
movimento de trens e bondes, farmácias lotadas, aumento de preços e
ausência de certos produtos, ataques súbitos da doença, loucura, suicídi-
os, óbito de médicos que participavam no socorro aos enfermos, cente-
nas de mortos e pilhas de cadáveres insepultos.
“Agora eis aqui a cidade sitiada pela doença (...) obrigada a um estilo de
existência em ruptura com aquele a que se habituara. (...) A insegurança
não nasce apenas da presença da doença, mas também de uma
desestruturação dos elementos que construíam o meio cotidiano. Tudo é
outro”. (DELUMEAU, 1996:120)
Um dos aspectos mais marcantes das pesquisas e da literatura
sobre as epidemias é aquele que nos fala das transformações operadas
por esses episódios na experiência diária dos indivíduos e das coletivida-
des. A instalação de uma epidemia, com todo o seu séqüito de mortos e
enfermos, determina mudanças significativas na vida urbana, desorgani-
zando os serviços, promovendo a fuga e o isolamento da população,
impondo o silêncio aos ruídos cotidianos, intervindo nas relações, nos
hábitos e nas crenças humanas. Desse modo, durante uma epidemia, os
fazeres, as imagens, os sons, os comportamentos, as percepções e inter-
pretações que marcam, orientam e dão sentido ao dia a dia na cidade ou
são substituídos, ou adquirem outros significados. A doença rompe, abo-
le, “re-significa”. Assim fez a peste na Idade Média, a cólera no século
XIX, em Nova York e na Europa, assim também faria a espanhola, por
quase todo o mundo, em 1918 (DELUMEAU, 1996; ROSENBERG,
1987; EVANS, 1990; BOURDELAIS, 1988).

145

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 145 19/6/2008, 23:40


A desestruturação da vida social

O cenário que a pandemia ia compondo no Rio de Janeiro acabou


tornando-se um espelho para a descrição do que ocorreu em muitas
cidades brasileiras. Como mostram as pesquisas sobre a influenza de
1918, as cenas de horror e desordem social, então verificadas na capital
do país, foram repetidas nos relatos dos contemporâneos que se dedica-
ram à crônica da espanhola em São Paulo, em Porto Alegre ou na cidade
de Rio Grande (BERTOLLI FILHO, 1986; BERTUCCI, 2002; ABRÃO,
1998; OLYNTO, 1995). Porém, não só as imagens deixadas pelos que
vivenciaram a moléstia, mas também aquelas construídas por nossos con-
temporâneos, remetem ao mesmo modelo narrativo identificado por
Charles Rosenberg e Richard Evans na literatura sobre as epidemias.12
Modelo que, segundo James Longrigg, teria suas raízes na tradição
discursiva iniciada com Tucídides e seu relato da peste de Atenas, que
revelaria, ainda hoje, toda a sua vitalidade simbólica (LONGRIGG, 1999).
No caso de Belo Horizonte, as notícias divulgadas pela imprensa
parecem fazer da capital da república um contraponto, de modo a apoiar
uma avaliação segundo a qual, na cidade mineira, as coisas teriam trans-
corrido de forma menos trágica. Apesar da tentativa, não havia como
ocultar as mudanças que a pandemia havia provocado no cotidiano da
cidade. A primeira delas viria como decorrência da determinação do
Secretário do Interior para o fechamento das escolas públicas da capital,
levando à diminuição do movimento nas ruas. Logo após essa medida, os
responsáveis pelas escolas particulares também fecharam suas portas:
“Colégio Cassão – Como medida preventiva contra a epidemia, que ora
se alastra pelo país, ficam fechadas, de hoje em diante, até nova comu-
nicação, as aulas do curso externo deste estabelecimento”.
“Ensino primário – O Colégio S. José, à Rua dos Tamoyos, suspendeu
ontem suas aulas, por oito dias, como medida preventiva contra a epide-
mia que ameaça invadir esta capital”.13

12
Cf. capítulo 1, seção “Perspectivas analíticas: a epidemia como evento e como
narrativa”.
13
Minas Gerais, 18 de outubro, p. 4 e 19 de outubro de 1918, p. 5.

146

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 146 19/6/2008, 23:40


Nos dias subseqüentes, seriam fechadas as faculdades de Direito
e Medicina, e as escolas de Odontologia e Farmácia e de Agronomia e
Veterinária. A imprensa afirmava que a situação da cidade não era de
natureza a provocar alarmes injustificados, “contudo, está a reclamar a
perfeita observância das medidas higiênicas aconselhadas”.14 Cinemas,
clubes e outras casas de diversão também foram fechados ou passavam o
tempo praticamente “às moscas”, sem clientes. Os encontros e eventos
promovidos pelas diversas associações eram cancelados ou adiados, e
algumas entidades informavam pelos jornais que apenas retomariam suas
atividades quando cessasse a ameaça imposta pela epidemia. Até mesmo
as manifestações programadas para celebrar a capitulação alemã, come-
morada de modo efusivo no Rio de Janeiro no mês de novembro, seriam
“adiadas sine die”, uma vez “continuar alarmante o estado sanitário da
capital” mineira.15
Os bondes circulavam com poucos passageiros e se alguém “es-
pirrasse, todos tratavam logo de se afastar ou mesmo descer” (MIRAGLIA,
1990:17). Assim, já na primeira semana após ser declarada a presença
da influenza, a cidade ressentia-se de seu movimento habitual:
“Belo Horizonte perdeu nestes dias de epidemia a sua vida agitada. As
ruas estão desertas (...). Todos fugiram dos lugares mais freqüentados e
os cafés e restaurantes estão inteiramente abandonados, sendo raros os
fregueses que neles penetram. Todos se retraem, receosos do contágio
do mal”.16
Agitação só era vista nas farmácias, com a multidão que ia em
busca de purgativos e das receitas prescritas para os doentes ou conva-
lescentes: “nas farmácias da cidade o movimento continua a ser intenso,
notando-se já a falta de alguns medicamentos”.17 Também não paravam

14
Minas Gerais, 21 e 22 de outubro, p. 5.
15
“Carta do deputado Nelson de Senna, Presidente da Comissão de Festejos”.
Minas Gerais, 20 de novembro de 1918, p. 2. Na capital federal, as ruas estiveram
repletas em comemoração ao armistício, havendo desfiles de bandas e corso de
automóveis. Outras festividades eram programadas para breve. Cf.: Minas Gerais,
13 de novembro de 1918, p. 4.
16
Minas Gerais, 9 de novembro de 1912, p. 1.
17
Minas Gerais, 11 e 12 de novembro de 1918, p. 2.

147

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 147 19/6/2008, 23:40


os hospitais e os postos de socorro, a todo momento demandados por
novas vítimas da influenza.
A permanência da pandemia nas semanas seguintes fez aumentar
essa sensação de desolação na cidade. As escolas tiveram que prolongar
a suspensão das aulas e o mesmo acontecia com outras atividades que
demandavam a reunião de pessoas. Nos jornais, a seção Festas e Diver-
sões era mais um termômetro das mudanças no cotidiano. Informando o
programa dos cinemas e de outros eventos em cartaz na cidade, a seção
acabou por desaparecer das páginas no correr da pandemia. Além da
crise do papel – decorrente da guerra – a imprensa enfrentava as baixas
provocadas pela influenza e, com vários de seus funcionários gripados,
era obrigada a reduzir as páginas diárias, ficando impossibilitada de pu-
blicar editoriais, artigos, colaborações e editais diversos.
Outra dimensão da vida cotidiana a ressentir-se das conseqüênci-
as da moléstia foi a vida religiosa da cidade. A Igreja manteve suas ativi-
dades nos primeiros dias da influenza. Mas, a partir de novembro, viu
por bem suspender ou adiar os encontros de associações e grupos católi-
cos, assim como as aulas de catequese, uma vez continuar “o terrível
alastrim da gripe”.18 As obras da matriz da Boa Viagem, que vinham
sendo realizadas com o intuito de comemorar o centenário da indepen-
dência, também foram prejudicas. Afinal, a pandemia desaconselhava a
realização dos festejos projetados para arrecadar contribuições junto à
população.19 Padres e outros religiosos passavam a concentrar suas for-
ças nas ações de caridade e socorro aos pobres. Os reverendos contribu-
íam para o amparo material e espiritual às vítimas, anunciando estarem
de prontidão para atender, a qualquer hora do dia ou da noite, os chama-
dos para as confissões dos enfermos das diversas freguesias.
As conseqüências e prejuízos decorrentes da pandemia eram par-
tilhados entre doentes e sãos, uma vez que as alterações provocadas no
cotidiano da cidade atingiam a todos. Os serviços prestados a domicílio,
por exemplo, eram perturbados ou paralisados pela falta de pessoal. A
partir do dia 8 de novembro, os fregueses da Empresa de Laticínios eram
informados de que deveriam dirigir-se ao prédio central para a aquisição

18
Minas Gerais, 10 de novembro, p. 6, e de novembro, p. 5
19
Minas Gerais, 11 e 12 de novembro, p. 6.

148

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 148 19/6/2008, 23:40


de seus produtos, uma vez não ser mais possível manter a entrega diária
como de costume. A repartição telegráfica era alvo de várias reclamações
provocadas pelos atrasos na entrega de despachos. O diretor justificava a
anormalidade pela falta de prática dos novos funcionários, contratados
para substituir os mensageiros atacados pela espanhola.20
A desorganização infligida à cidade pela moléstia repetia-se no
universo doméstico. Os jornais informavam que em praticamente todas
as casas havia pelo menos um caso de espanhola, havendo aquelas em
que caía doente toda a família. O socorro vinha pelas mãos dos amigos,
vizinhos e pela caridade: “os vicentinos prosseguem na sua campanha de
amparo aos pobres (...) além dos alimentos e medicamentos, estão mui-
tos deles em casebres humildes, prestando serviços de enfermeiros a
famílias inteiras de gripados”.21
Em situações como esta, um dos problemas a ser enfrentado era a
convalescença, que era caprichosa e exigia repouso e dieta adequada,
portanto, alguém em boas condições físicas para o cuidado com os doen-
tes. Conforme a imprensa, o socorro prestado pelas associações de cari-
dade fora de valia inestimável nessa hora, não apenas pelo alimento ou
remédio, mas pelo carinho e amparo dedicado àqueles que não tinham
mais a quem recorrer.

As tensões promovidas pela espanhola

À medida que a pandemia ampliava seu raio de ação, o comércio


via-se mais prejudicado. No início de novembro, auge do período epidê-
mico, a Empresa Gomes Nogueira anunciava, por meio dos jornais, a
reabertura de algumas de suas salas de cinemas e a programação a ser
exibida. Essa atitude era justificada pela opinião que a influenza não teria
se alastrado na capital mineira com a mesma força como havia feito no
Rio de Janeiro, dispensando, por isso, medidas radicais como o fecha-

20
Minas Gerais, 6 de novembro de 1918, p.2; 8 de novembro, p.1; 5 de novem-
bro, p.1; 10 de novembro, p.4.
21
Minas Gerais, 14 de novembro de 1918, p. 2.

149

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 149 19/6/2008, 23:40


mento das casas de diversão ou estabelecimentos de ensino. Verdadeira
ou não, certamente essa justificativa encobria outras razões, como os
prejuízos econômicos que as medidas indicadas pelas autoridades repre-
sentavam para o tipo de serviço oferecido pela empresa.
Criticando abertamente essa atitude e contradizendo o que afir-
mava o proprietário da empresa, o Diário de Minas declarava que o fato
de Belo Horizonte não haver repetido os horrores da capital federal devia
ser atribuído a ações “precisas e decisivas” como as que foram postas em
prática pela Diretoria de Higiene Estadual. Sugeria que a Empresa Gomes
Nogueira mantivesse suas salas fechadas por mais alguns dias, o que
seria “um testemunho bem alto de que se acha identificada com o inte-
resse coletivo, ao qual não superpõe o interesse individual”22.
Apesar de tentar explicar-se diante da opinião pública, o proprie-
tário da empresa acabaria acatando as determinações da Diretoria de
Higiene, adiando para outro momento a reabertura das salas. Porém,
eram significativas as justificativas que arrolava para aquela atitude, e
que eram compreensíveis, considerando-se as crenças e os conhecimen-
tos dominantes na época. A primeira, já mencionada, por lhe parecer
que a pandemia não se desenvolvia em Belo Horizonte com a mesma
violência que em outras cidades – o que era sugerido pela leitura dos
próprios jornais mineiros. A segunda, pelo fato de “todas as sumidades
médicas” apontarem não haver nenhuma profilaxia para a gripe espa-
nhola – o que, como veremos no próximo capítulo, era postura defendida
por vários dos manuais médicos da época, assim como pelas declarações
de muitas autoridades profusamente divulgadas pela imprensa. A tercei-
ra, por ter lido em periódico de grande circulação da capital federal,
sugestão de que, naquele momento tão doloroso, a abertura das casas de

22
Diário de Minas, 1° de novembro de 1918, p. 1. O Minas Gerais também
criticava a atitude da empresa e de quem se dispusesse a freqüentar suas salas,
aconselhando a população a observar as determinações divulgadas pela Diretoria
de Higiene em favor da coletividade, mas também do próprio indivíduo: “Faz-se
mistér, portanto, que essas acertadas providências não sejam anuladas pelos
freqüentadores de cinemas e outras casas de diversões, que, além do risco pessoal
que correm, contribuirão para a agravar a situação, aumentando o número de
casos da importuna, e não raro, perigosa enfermidade”. Minas Gerais, 4 e 5 de
novembro de 1918, p. 4.

150

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 150 19/6/2008, 23:40


diversão impunha-se como forma de levantar o “ânimo abatido do povo
flagelado e dar-lhe confortante espairecimento”.23 Por fim, citava seus
operários e suas respectivas famílias, que viviam exclusivamente dos “par-
cos” rendimentos da empresa.24
Para além de todas as justificativas apresentadas pela Empresa
Gomes Nogueira, esse episódio coloca em evidência um dos problemas
acarretados pelo impacto das experiências epidêmicas e das disposições
ordenadas pelas autoridades para fazer frente à sua ameaça: o confronto
entre a liberdade individual e o interesse público. As restrições impostas
por medidas como isolamento e quarentena eram percebidas como uma
invasão da vida privada, um cerceamento do direito primordial de liber-
dade. Como mostram Richard Evans e Patrice Bourdelais, o estabeleci-
mento das quarentenas para fazer frente às epidemias de cólera, no sécu-
lo XIX, era duramente criticado pelos mercadores, revelando o
antagonismo entre a ideologia liberal e os poderes médicos. Durante
todo aquele século, o debate entre as teorias contagionistas e miasmáticas
que buscavam explicar a cólera sofreu influência decisiva dos interesses
comerciais, revelando que nem sempre é a lógica médica que informa o
entendimento e as atitudes tomadas diante das ameaças epidêmicas
(EVANS, 1987:231-254, 270-272, 476; BOURDELAIS, 1988:19-29).
Abordar a doença e as reações que ela suscita enquanto fenômenos soci-
ais implica estar atento para outras formas de racionalidade: econômicas,
sociais, culturais.
O conflito entre a liberdade individual e os interesses coletivos
gerado pelas medidas sanitárias fica explícito nas palavras usadas pelo
proprietário para justificar-se diante da população da capital:

23
A sugestão de que o divertimento e o bom humor eram remédios eficazes na
batalha contra as ameaças epidêmicas também é apontada por Delumeau, desde o
século XVI: “é preciso manter-se alegre, em boa e pequena companhia e às vezes
cantores e instrumentos musicais, e algumas vezes ler e ouvir alguma leitura agra-
dável” – A Paré, citado em DELUEMAU, 1996:125-127. Desregramentos tam-
bém são relatados durante os episódios epidêmicos da antiguidade, porém, são
tratados mais como um desejo de se aproveitar os últimos momentos de vida, que
conselho para manter o equilíbrio saudável da mente e do corpo. Cf.: DELUMEAU,
1996:128.
24
Minas Gerais, de 7 de novembro de 1918, p. 5.

151

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 151 19/6/2008, 23:40


“Assim os reabri, certo de que me saberiam todos compreender e não
me julgariam capaz de pospor o interesse geral ao meu interesse comer-
cial numa época desoladora como a atual, conhecido que sou aqui há
muitos anos de todo mundo, como homem que absolutamente não é dos
mais interesseiros.
Seja porém como Deus quiser, e ficarei com minha consciência tranqüi-
la, lavando, como Pilatos, as minhas mãos”.25

A Carestia

Além das imposições da Diretoria de Higiene, os interesses co-


merciais eram afetados também pela privação de uma parcela da cliente-
la, temerosa do contágio da influenza, e pela ausência dos empregados
que caíam doentes, o que forçava o fechamento de diversos estabeleci-
mentos e prejuízos para quem dependia dessa atividade para sua sobre-
vivência.26 As dificuldades geradas por esses problemas podem ser per-
cebidas no aviso mandado publicar em finais de novembro pela viúva
Santina Gagiglio, proprietária do Panifício Modelo, no qual se desculpa-
va por continuar não podendo fornecer seus pães aos fregueses que sem-
pre honraram sua casa com toda a “solicitude nos pagamentos”. Essa
situação devia-se ao fato de todos os seus empregados encontrarem-se
atacados pelo mal que assolava a capital. Ela própria guardava leito por
causa da moléstia e, por isso, apelava aos fregueses para que saldassem
seus compromissos, em benefício de suas “cinco crianças órfãs”. Infor-
mava ao final que, tão logo estivesse restabelecida, retomaria o forneci-
mento com a “prontidão de costume”.27

25
Minas Gerais, de 7 de novembro de 1918, p. 5.
26
“Várias casas comerciais, entre as quais as dos srs. Oliveira & Vianna, Samuel
Ribas e Lunardi & Comp. tiveram que fechar as suas portas, devido a se acharem
atacados todos os seus empregados, tendo a última se reaberto anteontem, após
oito dias de forçada interrupção”. Minas Gerais, 6 de novembro de 1918, p. 2.
27
Minas Gerais, 27 de novembro de 1918, p. 7.

152

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 152 19/6/2008, 23:40


Sem clientes ou empregados, o comércio ainda era prejudicado
pelo abastecimento irregular, conseqüência, entre outras, da desordem
na produção e nos transportes e das medidas restritivas impostas pelas
autoridades. Isso resultava em carestia e especulação. Tão logo a pandemia
de influenza explodiu no país, os jornais começavam a divulgar os abusos
no preço de medicamentos e de alguns gêneros indicados na dieta de
doentes e convalescentes. Um dos principais objetos de reclamação era o
valor do quinino – medicamento indicado para o tratamento da influenza,
como o de outras moléstias. O problema relativo ao abastecimento e ao
valor cobrado pelo quinino chegou a tal ponto que o governo federal viu-
se obrigado a considerá-lo produto de primeira necessidade, fixando o
preço para o varejo, requisitando serem entregues às autoridades públi-
cas qualquer quantidade encontrada daquele produto.28
Em Belo Horizonte, a Farmácia Mineira anunciava vender não
apenas o quinino, mas também outros específicos “preconizados na
debelação da terrível epidemia de influenza espanhola (...) por preços de
épocas normais”.29 A sugestiva chamada do anúncio dizia: “Quinino de
Graça”. Dados como esse apontam para o fato de que, também na capi-
tal mineira, o comércio de medicamentos aproveitou o momento atípico
da pandemia para majorar seus preços.
No intuito de regular o valor e contornar a falta dos remédios, o
diretor de higiene propôs a uniformização dos preços dos produtos mais
urgentes, medida que seria acatada por diversos farmacêuticos da capital
nos primeiros dias de novembro.30 Mas, conforme o Minas Gerais, a
intensa procura, assim como os atrasos no transporte das mercadorias
pela estrada de ferro da Central, acabaram determinando que alguns
medicamentos entrassem em falta na cidade.31

28
O preço fixado pelo governo federal era de 600 réis para cada 100 gramas.
Antes da pandemia, o produto era adquirido por 400 réis nas farmácias cariocas,
enquanto em meados de outubro o valor chegava a mil e seiscentos réis. Minas
Gerais, 18 de outubro de 1918, p. 5. As requisições incidiam sobre os estoques
existentes e mesmo sobre as encomendas que acabavam de chegar à alfândega do
Rio de Janeiro. Minas Gerais, 25 de outubro de 1918, p. 6.
29
Minas Gerais, 21 e 22 de outubro de 1918, p. 8 (grifo nosso).
30
Minas Gerais, 4 e 5 de novembro de 1918, p. 4.
31
Minas Gerais, 11 e 12 de novembro de 1918, p. 2.

153

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 153 19/6/2008, 23:40


O problema do abastecimento de gêneros, por seu lado, já era
prenunciado antes mesmo da chegada da pandemia de influenza espa-
nhola, como uma das conseqüências do conflito que se estendia por
quatro longos anos. Preocupadas com as dificuldades enfrentadas pela
população desde o mês de junho, as autoridades federais aventavam a
possibilidade de criação de uma junta, encarregada de tomar as provi-
dências necessárias para corrigir a alta crescente dos preços.32
Temendo que o problema pudesse acarretar “perturbações da or-
dem pública”, em 29 de agosto, o governo federal decretava a criação do
Comissariado de Alimentação Pública, cuja presidência estaria a cargo do
Sr. Leopoldo de Bulhões, então Ministro da Fazenda. O Comissariado
deveria arbitrar os preços máximos do comércio a varejo de gêneros de
primeira necessidade para a cidade do Rio de Janeiro. O controle seria
feito pela publicação de tabelas e os recalcitrantes poderiam ser multados
ou terem cassadas as licenças para comerciar.33 O decreto afirmava, ain-
da, que as mesmas tabelas poderiam ser estendidas a qualquer ponto do
país e, assim, nos primeiros dias de setembro, o governo mineiro empossava
na capital os membros da Junta de Alimentação Estadual.34
Em Belo Horizonte, o tabelamento levado a efeito pelas autorida-
des federais provocou a reação de produtores e comerciantes. Uns recla-
mavam do valor arbitrado para seus produtos e outros dos preços cobra-
dos pelos fornecedores, que inviabilizavam o cumprimento dos valores
para o varejo.35 Mas, se havia quem se sentia prejudicado, também havia
quem quisesse especular com a situação. Em alguns casos, as conseqü-
ências da ausência de determinado produto eram ampliadas ao máximo
pelos boatos que circulavam pela cidade, especialmente fomentados pe-
las partes interessadas. No final de setembro, corria entre a população da
capital mineira a notícia de que nos dias seguintes haveria falta de pão,
por causa da ausência de trigo no comércio. Diversas comissões de pa-
deiros dirigiram reclamações à Junta de Alimentação que, no entanto,

32
Diário de Minas, 1° de julho de 1918, p. 1
33
Decreto publicado no Diário de Minas, 1° de setembro de 1918.
34
Os membros da Junta de Alimentação Pública Estadual, seriam empossados no
dia 8 de setembro. Diário de Minas, 10 de setembro de 1918, p. 2
35
Diário de Minas, 17 de setembro de 1918, p. 1; 21 de setembro de 1918, p. 1.

154

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 154 19/6/2008, 23:40


verificou haver apenas duas panificadoras com problemas de abasteci-
mento, tomando então as providências para regularizar o fornecimento
do produto e barrar a especulação dos comerciantes.36
A chegada da pandemia só fez recrudescer os problemas e muitos
produtos, como o leite, a carne verde e as galinhas, desapareceram das
mesas, em especial das camadas mais pobres da população. Dados di-
vulgados pelo Mercado Municipal da capital apontam para o aumento no
valor pago por vários produtos e a ausência de outros. Entre os dias 10
de outubro e 16 de novembro, o preço de frangos e galinhas acusava alta
de mais de 20%. Também subiam o feijão, a rapadura e os tomates. Em
novembro, faltavam queijos, açúcar mascavo, arroz, carne-seca, café e
peixe fresco. Quem possuía recursos pagava o preço pedido, porém muitas
famílias não dispunham do necessário para manter o consumo básico.37
Além de estimular o interesse em tirar proveito da situação anor-
mal criada pela pandemia – considerando-se que a observância de die-
tas, quer para os convalescentes quer para aqueles que ainda resistiam à
investida da doença, era uma das medidas mais enfatizadas pelos médi-
cos e autoridades da higiene – a influenza também provocou alterações
na produção e nos transportes. No dia 8 de novembro, o Diário de Minas
fazia eco aos receios expressos pelas folhas cariocas, que precaviam seus
leitores para um aumento ainda maior dos preços. Segundo o jornal, a
propagação da gripe pelo interior do país acabaria por determinar a
interrupção das relações comerciais entre produtores e consumidores.
Por isso, aconselhava à população “toda a economia no gasto dos gêne-
ros e produtos indispensáveis à sobrevivência da cidade. (...) antes pre-
venir do que remediar”.38
Em Belo Horizonte, o problema mais evidenciado pela imprensa
referia-se ao fornecimento do leite. Havia uma intensa procura pelo pro-
duto, que era um dos “carros-chefes” das dietas, provocando sua falta
nos estabelecimentos comerciais e levando uma romaria diária à Empre-
sa de Laticínios:

36
Diário de Minas, 27 de setembro de 1918, p. 1
37
Tabelas do Mercado Municipal publicadas pelo Minas Gerais, em 10 de outubro
de 1918, p. 6 e 17 de novembro de 1918, p. 5.
38
Diário de Minas, 8 de novembro de 1918, p. 1.

155

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 155 19/6/2008, 23:40


“(...) pela manhã e à tarde, o seu edifício é invadido por inúmeras pes-
soas a procura do precioso líquido, que desaparece logo, tal o número
elevado de fregueses. (...) são inúmeros [aqueles] que não o tem tido
nesses últimos dias, ficando assim obrigados a empregarem outros ali-
mentos, que nem sempre o substituem.”39
A ausência do leite era justificada pelo fato da pandemia também
estar grassando entre os trabalhadores dos sítios vizinhos responsáveis
pelo abastecimento da cidade. Além disso, havia o problema da febre
aftosa, que atingia o rebanho. Segundo declarações do gerente da Em-
presa de Laticínios, apesar de todos os esforços, o estabelecimento não
conseguia aumentar seu fornecimento na proporção alcançada pelo con-
sumo.40 O desequilíbrio entre oferta e procura levou algumas casas co-
merciais a majorar o preço do produto. A denúncia por venderem o leite
acima da tabela rendeu a alguns comerciantes dos bairros da Floresta e
do Calafate multas que alcançavam duzentos mil réis.41
Mesmo após ter seu declínio anunciado, a pandemia continuaria a
produzir seus reflexos no aumento dos preços. Em meados de dezem-
bro, os varejistas da cidade participavam que deixariam de fornecer açú-
car, milho, fubá, manteiga e álcool. Os comerciantes justificavam essa
medida pela interrupção do abastecimento e, também, pela “insistência
das praças do Rio e São Paulo em resistirem aos preços da tabela do
Comissariado”. Novamente a Junta de Alimentação Estadual era aciona-
da e, após algumas “modificações e alterações na tabela”, um novo co-
municado dos varejistas anunciava a revogação da decisão anterior.42
A permanência dos transtornos no abastecimento fica ainda sugerida
nas notícias que informavam sobre a falta de braços na lavoura. A morte
e o adoecimento de diversos lavradores prejudicava a produção e estimu-
lava a migração de trabalhadores rurais mineiros para as lavouras do
interior paulista, só fazendo piorar a carestia em Belo Horizonte.43 Al-
guns comerciantes aproveitavam os efeitos nefastos da pandemia para

39
Minas Gerais, 14 de novembro de 1918, p. 2.
40
Minas Gerais, 15 de novembro de 1918, p. 3.
41
Minas Gerais, 10 de novembro de 1918, p. 5.
42
Minas Gerais, 13 de dezembro, p. 4, e 20 de dezembro de 1918, p. 4.
43
Minas Gerais, 1 de dezembro de 1918, p. 2.

156

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 156 19/6/2008, 23:40


divulgar seus negócios, como foi o caso do Beliche Mineiro. No dia 5 de
dezembro, a casa publicava uma nota sob o título “Anarquia”, chaman-
do atenção para a desordem provocada pela epidemia entre os trabalha-
dores da lavoura, prevendo por isso “(...) fome e muita fome se não
forem feitas grandes hortas.”. Em seguida, completava, “(...) para isto é
preciso comprar sementes, e para as ter boas, resta comprar no Beliche
Mineiro”.44
Os reflexos da moléstia entrariam o ano 1919. Em janeiro, duran-
te uma viagem pelo sul de Minas, o cronista Álvaro da Silveira havia
ficado instigado com a presença de vastas áreas não cultivadas nos cam-
pos daquela região. Fora então informado que aquelas eram as “roças
gripadas”:
“Não se admire, é o termo que aqui empregamos para defini-las. São
roças que sofreram os efeitos da gripe. Quando deviam ser capinadas, o
pessoal caiu doente com a gripe, e ficamos sem ter quem as tratasse
convenientemente. Umas se acham em convalescença, pois não se per-
deram de todo; outras, porém, são casos fatais.”45

As reações das autoridades públicas

A chegada dos primeiros espanholados à capital passaria total-


mente despercebida não fosse a notícia publicada pelo jornal A Nota.
Como se viu, no dia de 10 de outubro, quando consultado pelo jornalista
sobre a família transferida do bairro da Floresta para o Hospital de Isola-
mento com suspeitas de contaminação pela gripe espanhola, Samuel
Libânio, diretor de higiene do estado, afirmava que os casos verificados
eram benignos.46 A informação sobre o estado “lisonjeiro” dos doentes e
sua previsão de alta, revestia-se de um sentido de prova de que a molés-
tia então verificada não era da mesma natureza daquela que se observa-

44
Minas Gerais, 5 de dezembro de 1918, p. 4.
45
“Roças gripadas”. Diário de Minas, 3 de janeiro de 1919, p. 1.
46
A Nota, 10 de outubro de 1918, p. 1.

157

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 157 19/6/2008, 23:40


va no Rio de Janeiro, ou mesmo da influenza espanhola que atacara os
navios brasileiros.47
Coincidentemente, nesse mesmo dia, o Minas Gerais divulgava
opinião de algumas autoridades federais que afirmavam ser de natureza
comum os casos de influenza notificados na capital do país. Em reunião
com o ministro do interior, o diretor geral de saúde pública Carlos Seidl
havia esclarecido sobre as medidas postas em prática pelos inspetores de
saúde dos portos concernentes à vigilância de todos os navios chegados
de Dakar. O ministro havia declarado aos jornais que a Saúde Pública
não tomaria medidas excepcionais em relação aos casos de gripe que
estavam ocorrendo naquela cidade,
“(...) por se tratar de um mal que nos visita periodicamente, de forma
benigna, sem caráter grave, mas [continuará] agindo permanentemente
contra os casos importados de Dakar, cujo mal veio, ao que parece, em
forma mais grave.”48
Porém, enquanto as autoridades discorriam sobre a pandemia que
grassava nos portos europeus e africanos e insistiam na natureza diversa
dos casos aqui notificados, a espanhola começava a se alastrar pelas duas
capitais. Logo, suas funestas conseqüências iriam contrariar os prognós-
ticos otimistas das autoridades de ambas as cidades.
A insistência na afirmação sobre a benignidade da moléstia nos
remete a um dos aspectos recorrentes apontados pela historiografia so-
bre os episódios epidêmicos, qual seja, o da negação inicial da ameaça, o
que também pode ser dito da ausência de ações efetivas para tentar
barrar sua expansão (DELUMEAU, 1996:117-119; ROSENBERG,
1995:281-282; EVANS, 1987:VII e 285-292). Em Minas, apesar dos
receios causados pela confirmação da espanhola no Rio de Janeiro, e da
real possibilidade de invasão da doença pelo trânsito diário entre as duas
cidades, nenhuma medida especial havia sido tomada para evitar ou
controlar o perigo da influenza.49

47
Ainda no dia 10 de outubro, havia muitas dúvidas entre as autoridades e o corpo
médico sobre a verdadeira natureza dos casos de gripe então verificados na capital
do país.
48
Minas Gerais, 10 e outubro de 1918, p. 4.
49
Como veremos, a natureza da moléstia e o desconhecimento de seu agente

158

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 158 19/6/2008, 23:40


Tão logo instalada, a pandemia abriria seus braços sobre a capital
mineira. Outros casos de influenza foram verificados após a publicação
dos primeiros suspeitos pelo jornal A Nota, mas o reconhecimento oficial
da pandemia em Belo Horizonte ocorreu apenas no dia 17 de outubro.
Por intermédio de decreto, o secretário do interior, Raul Soares de Moura,
determinava a notificação compulsória de todos os casos identificados na
cidade e estabelecia a suspensão das atividades nas escolas públicas por
oito dias. Conforme informava o secretário, a medida era sugestão da
Diretoria de Higiene, uma vez que a experiência em outras cidades indi-
cava que a moléstia atacava preferencialmente as coletividades e aglome-
rações. O decreto dizia, ainda, da impossibilidade de se isolar a capital
mineira do Rio de Janeiro, “de onde têm vindo vários indivíduos conta-
minados pelo mal”. Porém, reafirmava o caráter benigno com que a
doença se apresentava naquela cidade e as “privilegiadas” condições
sanitárias de Belo Horizonte:
“(...) a despeito de apresentar a moléstia no Rio forma benigna, o que se
vê do número reduzido de falecimentos em relação ao número conside-
rável de casos, e sem embargo ter a nossa cidade condições privilegia-
das para resistir à invasão, tudo aconselha a tomar as medidas de pre-
venção ao alcance dos poderes públicos.”50
Na manhã do dia 18, a imprensa proclamava: “A nossa capital já
não se pode declarar isenta da gripe espanhola”. Até o reconhecimento
oficial da moléstia, já teriam sido notificados 22 casos de “espanholados”
na cidade. Ainda segundo os jornais, a Diretoria de Higiene dispensava
o “máximo cuidado e atenção” à epidemia, tomando medidas diversas a
fim de “circunscrevê-la energicamente”.51 Entre elas, incluía-se a trans-
ferência para o Hospital de Isolamento de todas as pessoas que, sendo

deixavam dúvidas sobre o sucesso de qualquer medida que pudesse ser posta em
prática naquele momento, o que seria observado pelos próprios responsáveis pela
saúde pública de então. No entanto, as práticas de isolamento, desinfecção e a
divulgação de conselhos à população, implementadas num segundo momento, su-
gerem que tais aspectos não seriam explicações suficientes para a ausência comple-
ta de qualquer ação preventiva.
50
Decreto de 17 de outubro de 1918. Minas Gerais, 18 de outubro de 1918, p. 1.
51
Diário de Minas, 18 de outubro de 1918, p. 1.

159

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 159 19/6/2008, 23:40


residentes em casas de habitação coletiva, manifestassem a doença. Nos
casos verificados em residência particular, o isolamento podia ser feito
no próprio domicílio, observando-se as precauções necessárias e rece-
bendo visitas freqüentes dos médicos da higiene.52 Se o isolamento dife-
renciado dos residentes em habitação coletiva pode ser pensado como
um resultado da exclusão social – uma vez que tal medida era justificada
pelas precárias condições de existência dessa camada da população –
também sinalizava que a política de saúde adotada pela Diretoria de
Higiene continuava sendo perpassada pela distinção social, buscando
um controle mais efetivo sobre a população desfavorecida.
A Diretoria de Higiene divulgava, ainda, que os serviços do
desinfectório estariam disponíveis aos chamados noite e dia. Um médico
da repartição havia sido designado para percorrer os estabelecimentos
de ensino particular, observando a seus diretores a conveniência da sus-
pensão temporária das atividades. Além disso, aconselhava-se a popula-
ção sobre a necessidade de abster-se de freqüentar pontos de reunião,
cinemas, teatro e outras casas de diversão, ou visitar os enfermos e con-
valescentes, e recomendava medidas de profilaxia individual:
“(...) gargarejos com soluções anti-sépticas, como sejam água oxigenada,
biborato de sódio, phenosalyl etc; anti-sepsia das fossas nasais com óleo
gomentolado, lavagem dos olhos com água boricada etc; tomar diaria-
mente 0,25 centigrs. de cloridrato de quinino (dose para adultos).”53

52
Em suas memórias, o médico Carlos Caiafa Filho relembra o isolamento devido
à espanhola: “Como era costume da época prender os doentes no quarto e não
deixá-los comer ‘alimentos pesados’, sofremos esta tortura por muitos dias. Fica-
mos nos dois quartos do alpendre, os últimos do fim do imenso corredor de uns
quinze metros ou mais de comprimento, portanto, longe do corpo central da casa,
completamente isolados. Mas logo que passou a crise inicial e entramos em conva-
lescença, passamos a roubar biscoitos de polvilho, suspiros de clara de ovo batida
com açúcar, tarecos etc., lá do armário da sala de jantar, onde nossa mãe os
guardava. Passávamos o dia lendo revistas, principalmente o Tico-Tico ou o Malho,
a Careta etc, e vendo também revistas em italiano, francês e inglês, que meu pai
recebia” (CAIAFA 1986:67). Bem diversos deviam ser os dias dos enfermos po-
bres, isolados nos hospitais.
53
Minas Gerais, 17 de outubro de 1918, p. 5.

160

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 160 19/6/2008, 23:40


Nos dias que se seguiram, os jornais continuariam a reafirmar que
o governo do estado havia tomado “todas as precauções para a eventua-
lidade de um alastramento inesperado da epidemia (...), estando apare-
lhado para atender a qualquer número de casos que se notificarem”.54
No entanto, apesar das “boas intenções e dos esforços encetados” pela
Diretoria de Higiene, a cidade acabou sucumbindo à doença. A própria
natureza da influenza, propagada de pessoa a pessoa por meio do ar,
tornava ineficaz qualquer daquelas medidas, uma vez que, até ser devi-
damente notificado, o doente já podia ter contaminado diversas pessoas.
E isso não era ignorado pelo diretor de higiene. No relatório dirigido ao
secretário do interior, em 1919, Samuel Libânio afirmava: “a noção
epidemiológica adquirida da extrema difusibilidade da moléstia não era
de feitio a deixar ilusões sobre a eficácia das medidas tendentes a impe-
dir a sua disseminação pelo nosso Estado”.55
Assim, de meados de outubro em diante, o número de infectados
só fez crescer. Conforme os dados apresentados por Carlos Maletta, uma
semana depois de reconhecida a presença da espanhola na cidade, eram
computadas 179 notificações; ao final de outubro, elas chegavam a 779.
O mês de novembro passaria com altas taxas diárias, esboçando uma
queda a partir do dia 22, atingindo no fim de novembro um total de
3.877 notificações. Somente na segunda metade de dezembro as notifi-
cações recuaram aos patamares de costume (MALETTA, 1997:97).
Sem desconhecer os problemas envolvidos nas estatísticas apre-
sentadas sobre a pandemia de espanhola, apresentamos a seguir um
levantamento sobre as notificações dirigidas às autoridades, elaborado
por Carlos Maletta com base nos dados divulgados pela Diretoria de
Higiene. Também é apresentado o número de enterramentos diários
atribuídos à pandemia inscritos no Livro de Enterramentos do Cemitério
do Bonfim, relativos aos últimos três meses do ano 1918.

54
Diário de Minas, 22 de outubro de 1918, p. 1.
55
ESTADO DE MINAS GERAIS. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Secretário do
Interior..., 1919, p. 15.

161

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 161 19/6/2008, 23:40


Tabela 3: Notificações e óbitos devidos à gripe em Belo Horizonte, no
último trimestre de 1918.

(*) Casos já existentes no dia 17 de outubro, dia do reconhecimento oficial da


presença da pandemia na capital mineira. (**) Inclusão de notificações recebi-
das tardiamente. (***) Último caso notificado à Diretoria de Higiene.
Estão computados os enterramentos cujos óbitos foram declarados como sendo
de gripe, gripe epidêmica, gripe pneumônica, influenza, influenza espanhola,
pleuris gripe e pneumonia gripal, somando 206 enterramentos naquele período.
Fontes: Notificações: MALETTA, 1997:97. Óbitos: PREFEITURA DE BELO
HORIZONTE. Livro de Enterramentos do Cemitério Municipal do Bonfim – 01/
08/1912 a 29/02/1920.

162

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 162 19/6/2008, 23:40


O confronto entre as informações divulgadas pela Diretoria de
Higiene e o Livro de Enterramentos exemplifica o problema da confiança
nos dados relativos à pandemia. Segundo o último boletim divulgado
pela Diretoria de Higiene sobre as notificações e óbitos registrados na
cidade, a moléstia havia feito até o dia 15 de dezembro um total de 230
óbitos (ou 199, conforme o Livro de Enterramentos). Considerando os
problemas relativos ao diagnóstico – confusão entre a influenza e outras
doenças do aparelho respiratório; atribuição do óbito a complicações
causadas pela moléstia; a impossibilidade em proceder o diagnóstico,
quer pelo estado em que o doente foi admitido ou pelo falecimento sem
assistência; a resistência em admitir a moléstia, o que poderia significar a
intromissão do poder público por meio de medidas como o isolamento –
e examinando as causas de óbito registradas desde o reconhecimento da
pandemia, não é difícil imaginar que os falecimentos devidos à influenza
foram superiores aos apontados naqueles dois registros. A uremia, o
catarro/asma sufocante e o edema agudo – complicações relacionadas à
influenza – somaram 11 óbitos nos últimos três meses de 1918; bronqui-
te, broncopneumonia e pneumonia foram responsáveis por um total de
41 óbitos no mesmo período. Nos hospitais, foram registrados 8 óbitos
de doentes que já deram entrada agonizantes; na Faculdade de Medici-
na, 3 óbitos foram registrados como “causa ignorada”. Foram registrados,
ainda, 20 falecimentos “sem assistência” – ou sem causa declarada –,
sendo 15 deles ocorridos em regiões que concentravam a população
mais pobre da capital. Se somarmos esses números ao total de óbitos
atribuídos à influenza desde o dia 20 de outubro, teremos um total de
282 óbitos. Em nossa opinião, se não atingiram esse total, os falecimen-
tos provocados pela pandemia na capital mineira também não ficaram
reduzidos ao número apresentado pelas autoridades.
O problema das estatísticas será apontado pela própria imprensa.
Apesar de ressaltar de forma recorrente a “enérgica e incansável” ação
das autoridades, os jornais divulgavam diversas notas que sugeriam as
dificuldades enfrentadas pela Diretoria de Higiene. Em novembro, o
Minas Gerais informava que os boletins divulgados por aquela repartição
podiam ser exatos quanto ao número de mortos, mas subestimavam os
casos verificados, uma vez que só uma parcela desses eram notificados.
No início daquele mês, declarava, logo abaixo da publicação dos boletins
da Diretoria de Higiene:

163

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 163 19/6/2008, 23:40


“(...) os dados acima se referem aos casos notificados à Diretoria de
Higiene; entretanto uma inspeção geral, feita em diversos bairros, espe-
cialmente no Barro Preto, veio mostrar que ali existem doentes não
notificados, cujo número eleva-se a cerca de 1.000.”56
Em fins de novembro, o mesmo jornal estimava, “sem exagero
algum”, que o número de infectados girava em torno de 15.000 pessoas,
completando: “o nosso cálculo pecará, talvez, por ficar aquém da reali-
dade”.57 Essa cifra representava cerca de 27% da população total da
cidade naquele ano 1918.58
A imprensa também afirmava que a Diretoria de Higiene estava
“confiante” de que os médicos informariam os casos que ocorressem em
suas clínicas. Mas, apesar da determinação de notificação compulsória,
não havia nenhuma segurança de que todos os casos fossem relatados. O
próprio Samuel Libânio enfatizava, em reunião com seus colegas da Fa-
culdade de Medicina, a necessidade de se fazer a notificação, sem o que
seria impossível ajuizar-se da marcha e do declínio da moléstia. Certa-
mente Libânio não desconhecia o fato de que, por motivos variados,
pobres e ricos apresentassem resistência em admitir a existência de de-
terminadas moléstias em suas famílias, o que podia significar desde a
estigmatização de amigos e vizinhos até a invasão e o controle da vida
privada pelos poderes da ciência e do Estado. O medo e o ressentimento
da intervenção que medidas como isolamento e quarentena representa-
vam é outro tema amplamente apontado pelos autores que se dedicam a

56
Minas Gerais, 9 de novembro de 1918, p. 2.
57
Minas Gerais, 30 de novembro de 1918, p. 3. O último boletim divulgado pelo
governo, em 15 de dezembro, informava terem sido verificadas 3.877 notifica-
ções. Cf.: Minas Gerais, 15 de dezembro de 1918, p. 2.
58
Em 1918, a população total da cidade era estimada em 55.709 habitantes.
ESTADO DE MINAS GERAIS. Anuário de Estatística Demógrafo-Sanitária, 1938,
p. 11. Em São Paulo, Cláudio Bertolli Filho afirma que os dados oficiais apontavam
que cerca de 22% da população havia sido infectada. O autor, porém, indica que
a proporção dos atingidos tenha chegado a dois terços da população da cidade,
estimada em 528.295 habitantes (BERTOLLI FILHO, 1986:106-107). A mesma
proporção de infectados, isto é, dois terços, foi apresentada para o Rio de Janeiro,
por Teófilo Torres, Diretor Geral de Saúde Pública do Distrito Federal, ao final da
epidemia (TEIXEIRA E MEYER, 1920:496-497).

164

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 164 19/6/2008, 23:40


examinar as reações sociais diante das experiências epidêmicas (EVANS,
1990:243-244; BERTUCCI, 2002:112-113; DEFOE, 2002:62-72).
Além dos casos não declarados, a Diretoria se defrontava com
notificações incompletas, o que prejudicava sua atuação, dificultando o
controle relativo ao isolamento dos pacientes em domicílio e a desinfec-
ção dos focos. Essa situação acabou gerando um apelo das autoridades
para que os médicos observassem a necessidade de registrar o endereço
dos doentes nas informações dirigidas àquela repartição.59 Conforme a
imprensa, essa sub-notificação seria agravada ainda pelo “hábito, que
perdura entre as camadas inferiores do nosso meio social, de não recor-
rer a médicos”.60
Outro problema enfrentado pela Diretoria de Higiene era a insufi-
ciência do corpo clínico e o desaparelhamento dos órgãos envolvidos no
combate à moléstia.61 No primeiro terço de novembro, isto é, um mês
após o início da epidemia, as autoridades de saúde informavam que os
pedidos dirigidos ao desinfectório não podiam ser atendidos “com a pres-
teza necessária” em função do “acumulo de serviço” então verificado,
tendo em vista o aumento das notificações e as solicitações daqueles que,
sem casos efetivos, eram movidos pelo medo da doença.62
Certamente, a emergência representada por certas situações epi-
dêmicas, como a influenza de 1918, está além de qualquer possibilidade
de intervenção ou controle e, como aponta Alfred Crosby, naqueles dias,
nenhum serviço de saúde teria condições de fazer frente à situação extre-

59
Ao contrário de Minas, em São Paulo a Diretoria de Higiene dispensava a decla-
ração do local da ocorrência dos casos e a relação nominal dos atacados do mal.
Segundo Artur Neiva, responsável por aquela diretoria, esperava-se apenas que os
médicos declarassem o número de casos atendidos, “e isso sem a superveniência
do menor incômodo aos doentes por parte da administração sanitária” (Cf.:
BERTUCCI, 2002:113).
60
Minas Gerais, 11 e 12 de novembro de 1918, p. 2.
61
“(...) a deficiência (...) de corpo clínico mesmo em épocas normais e agora
agravada pela moléstia que o não poupou, constituíram outros tantos entraves e
obstáculos quase insuperáveis à ação pronta e eficaz das autoridades sanitárias do
Estado”. ESTADO DE MINAS GERAIS. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Secre-
tário do Interior..., 1919, p. 20.
62
Minas Gerais, 19 de novembro de 1918, p. 2.

165

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 165 19/6/2008, 23:40


ma imposta pela pandemia de influenza (CROSBY, 1999:19;31;93). No
entanto, a necessidade de melhoramentos nos órgãos da Diretoria de
Higiene já era reclamação antiga, como comprova o relatório apresenta-
do em março de 1918 por seu diretor, que demandava a aquisição de
equipamentos, a substituição da tração animal em suas viaturas, além de
reformas no edifício-sede.63 Os problemas também atingiam o Hospital
de Isolamento que, segundo o Dr. Castilho Júnior, responsável por sua
direção, era insuficiente para o atendimento à população, necessitando
da construção de novos pavilhões.64
Desde o dia 17 de outubro, a capacidade de hospitalização dos
infectados pela influenza começava a se desenhar como um dos sérios
obstáculos a serem enfrentados pela Diretoria de Higiene. Nessa data, a
Santa Casa de Misericórdia havia se recusado a receber em suas enfer-
marias um indigente suspeito de estar atacado pela moléstia e que aca-
bou tendo de ser recolhido ao Hospital de Isolamento. Como informou
mais tarde Samuel Libânio, “essa atitude inesperada da Santa Casa veio
precipitar a organização do serviço de hospitalização da pobreza da capi-
tal”.65 Esse serviço contaria com o apoio da Faculdade de Medicina,
transformada em hospital provisório, e dos diversos segmentos da socie-
dade que, como veremos adiante, se mobilizaram para contribuir no
atendimento aos pobres e enfermos.
A impotência das autoridades de saúde diante da epidemia come-
çava a ser perscrutada por algumas mudanças sutis no noticiário dos jor-
nais.66 Diversamente do ocorrido no Rio de Janeiro e em São Paulo, onde

63
ESTADO DE MINAS GERAIS. Relatório apresentado ao Exmo sr Secretário do
Interior..., 1918, p. 21.
64
ESTADO DE MINAS GERAIS. Relatório apresentado ao Exmo sr Secretário do
Interior..., 1918, p. 34. Essa observação era feita considerando-se o movimento
anual de 1917, que somava 90 internações. Em 1918, desde o início da pandemia
(10 de outubro) até o dia 16 de novembro, isto é, em pouco mais de um mês, o
Hospital de Isolamento computava 78 internações.
65
ESTADO DE MINAS GERAIS. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Secretário do
Interior..., 1919, p. 16.
66
Como apontado na Introdução deste trabalho, apenas duas coleções de periódi-
cos cobrem todo o período da pandemia em Belo Horizonte: Diário de Minas,
órgão do PRM, e Minas Gerais, órgão oficial do governo do estado. A forma como

166

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 166 19/6/2008, 23:40


a imprensa criticava abertamente os responsáveis pela saúde pública, os
jornais mineiros foram só elogios à atuação da Diretoria de Higiene duran-
te todo o reinado da influenza.67 Avaliando a situação da capital nos pri-
meiros dias da pandemia, o Diário de Minas dizia que, ao contrário do
que previam os “espíritos pessimistas”, a moléstia não se propagava da
forma assustadora como fazia em outras cidades. E, apesar do seu caráter
altamente contagioso e das dezenas de casos notificados, o número de
vítimas era praticamente nulo.68 O jornal afirmava que essa situação favo-
rável era resultado da prontidão da Diretoria de Higiene, implementando
medidas eficazes contra a propagação da moléstia, que eram “coroadas
do mais franco êxito, a ponto de levarem ao espírito da coletividade uma
confiança segura no resultado da ação daquele departamento”.69
Essa avaliação, porém, tomava por base a experiência carioca –
presença cotidiana nas páginas locais – onde a epidemia parecia resistir
a toda e qualquer medida anteposta pelas autoridades. No Minas Gerais,
por exemplo, até o final de outubro havia poucas referências sobre a
expansão e as conseqüências da moléstia na capital mineira. Os dados
divulgados quase que se resumiam aos boletins da Diretoria de Higiene,
às medidas implementadas pelas autoridades e aos conselhos divulgados
à população. Ao contrário, as notícias sobre o Rio de Janeiro ocupavam
muito mais espaço e desciam a minúcias sobre como a doença afetava a
vida cotidiana daquela cidade.
Entretanto, esse otimismo e confiança na atuação da Diretoria de
Higiene começariam a dar lugar à constatação de que a influenza não se
detinha mesmo diante de todos os esforços daquele órgão. Até mesmo a
imagem salubre da cidade já não representava anteparo para as mazelas
da moléstia. A situação que antes parecia estar sob domínio das autorida-
des, mostrava-se, então, fora de qualquer controle, apesar da atuação da

trataram o episódio reproduz em boa medida o discurso oficial; no entanto, tam-


bém apontam indícios que possibilitam a construção de interpretações distintas
daquela.
67
Para as críticas em São Paulo e Rio de Janeiro, Cf: BERTOLLI FILHO, 1986,
BERTUCCI, 2002, GOULART, 2003.
68
O primeiro óbito por influenza na cidade ocorreria no dia 21 de outubro. Diário
de Minas, 22 de outubro de 1918, p. 1.
69
Diário de Minas, 24 de outubro de 1918, p. 1.

167

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 167 19/6/2008, 23:40


Diretoria de Higiene e das condições sanitárias da própria cidade. Essa
mudança de tom é percebida em matéria publicada no mesmo Diário de
Minas, no dia 26 de outubro:
“A epidemia irrompida nesta capital a cerca de 15 dias, vai se alastran-
do, apesar da enérgica e pronta ação da Diretoria de Higiene do Estado e
das condições maravilhosas do nosso meio. Ontem foi o dia em que maior
número de notificações se registrou”.70
Nos dias subseqüentes, foram aventadas algumas hipóteses para
explicar essa resistência da moléstia. Uma delas era a própria crença na
salubridade da capital, que levava muitos a duvidarem da possibilidade
da influenza fazer aqui grandes estragos. O sol, o clima, a baixa densida-
de populacional, o próprio planejamento combinavam-se num escudo
poderoso, resultando, como apontava Otaviano de Almeida, na indife-
rença de uma grande parte da população.71 A essa crença, Antônio Aleixo
agregava o fato de que muitos ainda “tinham a gripe epidêmica por
duvidosa”, estimulando comportamentos e atitudes marcados pelo que
classificou como um “otimismo condenável”.72
Considerações semelhantes são encontradas no Diário de Minas,
que apontava o “inconveniente” hábito, agora “triunfante” entre a popula-
ção da capital, de não dedicar importância alguma às epidemias, especial-
mente àquelas que surgem com um caráter benigno, chegando mesmo “a
zombar das medidas postas em prática pela Higiene”. O jornal informava
que havia muitas pessoas que, mesmo tendo casos notificados em suas
residências, descumpriam as sugestões da Diretoria, andando por toda
cidade, como se ignorassem levar consigo o “gérmen” que seria transmi-
tido a outros indivíduos, o que julgava como ato reprovável, e mesmo
“criminoso”, pelo desprezo com que tratava a saúde e vida alheias.73

70
Diário de Minas, 26 de outubro de 1918, p. 1 (grifo nosso).
71
Minas Gerais, 26 de outubro de 1918, p. 2. O otimismo e a imprevidência
assinalados como reações da população da capital mineira em relação à influenza,
e mesmo a outras moléstias epidêmicas, também podem ser analisados como um
dos aspectos que comporiam as atitudes coletivas diante dessas ameaças: qual seja,
a da sua negação.
72
Minas Gerais, 28 e 29 de outubro de 1918, p. 3.
73
Diário de Minas, 27 de outubro de 1918, p. 2.

168

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 168 19/6/2008, 23:40


Quando a culpa não era imputada às crenças ou à imprevidência
dos próprios indivíduos era, então, devida aos desígnios da natureza. No
início de novembro, o constante aumento de casos era justificado pelos
dias de chuva que sobrevieram na capital: “reinou um tempo impiedoso,
propício a resfriados, isto é, favorável à difusão da influenza”.74 O retor-
no do sol era esperado como remédio para um recuo nas notificações.
Outra linha explicativa apoiava-se no caráter “altamente contagioso” da
moléstia. Se num primeiro momento, essa contagiosidade foi tomada
como elemento que evidenciava as boas condições sanitárias da cidade e
a enérgica ação das autoridades – afinal, apesar dela, a influenza apre-
sentava um curso bastante brando – a partir de então, a mesma
contagiosidade surgia como empecilho irredutível a qualquer medida da
Diretoria de Higiene, nem mesmo respeitando as localidades mais salu-
bres, como Belo Horizonte. Essa reavaliação é mais um exemplo das
mudanças sutis que se verifica no julgamento da imprensa.
Não conseguindo barrar a invasão da moléstia, as autoridades
sanitárias continuariam a divulgar novas medidas durante o transcorrer
da pandemia. Seguindo a sugestão do diretor de higiene, a prefeitura da
capital mineira determinou, no dia 27 de outubro, a proibição de roma-
rias ao cemitério municipal entre os dias 1° e 5 de novembro, evitando
o “inconveniente” da multidão de pessoas de todas as classes sociais
que lotava o lugar na época de finados (2 de novembro), situação propí-
cia à difusão da influenza.75 O aumento de casos levaria a Diretoria de
Higiene a realizar a desinfecção diária de bondes e pontos de aglomera-
ção nas ruas, além de reforçar os conselhos aos particulares nos cuida-
dos com os doentes e sãos. Por outro lado, ela também buscou suprir as
demandas pela cura, solicitando remessas e disponibilizando medica-
mentos que estavam sendo usados “vantajosamente” em outras cidades
– caso, por exemplo, do extrato tonsilar do Dr. Érico Coelho, solicitado
ao Instituto Butantã na capital paulista, ou a solução de Bacelli, adquiri-
da para uso nos hospitais e que se prontificava a fornecer aos médicos

74
Diário de Minas, 2 de novembro de 1918, p. 1.
75
Diário de Minas, 31 de outubro de 1918, p. 2. Esse decreto reeditava medida
tomada pelo Ministério do Interior para a capital federal, conforme noticiado pelo
Diário de Minas, 27 de outubro de 1918, p. 1.

169

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 169 19/6/2008, 23:40


interessados.76 Além dessas ações específicas, a Diretoria de Higiene
também buscou atuar junto às diversas associações engajadas no socor-
ro às vítimas.77
Um aspecto chama a atenção quando examinamos as reações das
autoridades mineiras diante da influenza: a ausência de críticas à sua
atuação. Como aponta a historiografia das epidemias, um dos atos que
marcam os eventos epidêmicos é a busca pelos culpados, entre os quais,
freqüentemente encontram-se as autoridades públicas, acusadas de cruzar
os braços diante da ameaça ou, ainda, pela própria existência da moléstia.
Em Nova York, durante a epidemia de cólera de 1832, os responsáveis
pela saúde pública foram amplamente criticados por nada terem feito pa-
ra proteger a cidade contra a doença, enquanto em diversos países europeus,
durante a primeira epidemia da moléstia, em 1830-1831, a população
responsabilizou o governo pela epidemia, e o acusou de envenenamento
do povo (ROSENBERG, 1987:20 e 90; BOURDELAIS, 1988:37).
Nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, à medida que a influenza
espanhola disseminava-se, crescia na imprensa a censura às autoridades
sanitárias (BERTUCCI, 2002:260-263; BERTOLLI FILHO, 1986:205-
206; BRITO, 1997:21; GOULART, 2003:41-42, 95-100). Apesar de
se manter à frente da Diretoria de Higiene de São Paulo, Artur Neiva
veria as suas atribuições serem assumidas por outros grupos e profissio-
nais (BERTUCCI, 2002:283-292). No Rio de Janeiro, a campanha leva-
da a cabo pelos jornais, com críticas contundentes dirigidas a Carlos
Seidl, acabou levando ao seu afastamento da Diretoria Geral de Saúde
Pública. Como mostra Adriana Goulart, Seidl se tornaria um verdadeiro
“bode expiatório”, sendo condenado pela inação diante da invasão da
moléstia. Sua exoneração foi saudada pela imprensa como a única possi-

76
Minas Gerais, 26 de outubro de 1918, p. 2 e Diário de Minas, 1° de novembro
de 1918, p. 1. Sobre o extrato tonsilar, de Érico Coelho, cf.:, 25 de outubro de
1918, p. 1
77
“Diretoria de Higiene auxilia fundação de postos de socorro pela Damas da
Caridade”. Minas Gerais, 10 de novembro de 1918, p. 4; O Minas Gerais de 15 de
dezembro de 1918, p. 2, informa que, durante a epidemia, a Diretoria de Higiene
havia destacado um de seus médicos para atender aos doentes socorridos pelas
Conferências de São Vicente de Paulo.

170

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 170 19/6/2008, 23:40


bilidade para se ordenar o caos em que havia mergulhado a capital do
país: “Carlos Seidl, que o diabo o conserve sempre em guarda (...)”.78
Em Belo Horizonte, não se lê na imprensa uma palavra de acusa-
ção à Diretoria de Higiene. Durante todo o transcorrer da pandemia, os
jornais louvaram a atuação das autoridades, mesmo quando a expansão
das notificações e dos óbitos e a desorganização da vida urbana revela-
ram estar a moléstia além do alcance de qualquer das medidas
implementadas pela Diretoria de Higiene. Uma justificativa para essa
particularidade da experiência mineira poderia estar no caráter oficial
dos periódicos analisados – órgão oficial do governo do estado (Minas
Gerais) e do partido republicano mineiro (Diário de Minas). Entretanto, a
mesma ausência de críticas é verificada, por exemplo, nas poucas e cur-
tas lembranças recolhidas sobre a pandemia na cidade (BRANDÃO,
1977. MIRAGLIA, 1990 e 1975. MARTINS, 2000).
Porém, se a Diretoria de Higiene não enfrentou as acusações da
imprensa, é possível identificar algumas tensões e discordâncias no que se
refere à forma de organizar os socorros diante daquela emergência. Logo
após o reconhecimento oficial da epidemia, o diretor de higiene, Samuel
Libânio, encaminhou à congregação da Faculdade de Medicina, da qual
também era professor, uma solicitação no sentido de que a instituição
facilitasse que os alunos interessados pudessem prestar seus serviços àquela
Diretoria. Na reunião em que se debateu a solicitação de Libânio, Cícero
Ferreira, diretor da faculdade, apesar de considerar não haver “ainda
uma verdadeira epidemia”, posicionou-se favoravelmente à solicitação.
Porém, afirmava que os serviços da instituição deveriam ser oferecidos ao
povo da cidade e não ao governo, de modo a evitar acusações de
favorecimento político. Além disso, sugeria que o socorro fosse organiza-
do em vários postos com atendimento gratuito que ficariam a cargo dos
professores da Faculdade, contando com a colaboração dos alunos.79
Em resposta, Samuel Libânio dizia que, apesar de apenas inicia-
da, a epidemia podia e tendia a alastrar-se, não sendo lícito à Faculdade
“contemplar impassível essa cena de angustias e dores dispondo (...) de

78
Correio da Manhã, 20 de outubro de 1918, p. 1, apud: GOULART, 2003:97.
79
FACULDADE de Medicina de Belo Horizonte. Ata da 12ª Sessão da Congrega-
ção, 1918.

171

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 171 19/6/2008, 23:40


poderosos elementos para combater o mal”. Contestando a opinião de
Cícero Ferreira, dizia que a manutenção de postos isolados seria medida
sem resultados. Defendendo a “unidade de critérios”, parecia-lhe prefe-
rível que a Faculdade unisse seus esforços junto ao governo, acordando
um “plano uniforme de combate” à ameaça epidêmica. Argumentava
ainda que as provações impostas pelo momento eram impedimento sufi-
ciente a qualquer maledicência que atribuísse “propósitos menos dig-
nos”, desvirtuando o sentido de uma cooperação “abnegada e humanitá-
ria” daquela instituição.80
As ponderações de Samuel Libânio repercutiram positivamente
entre os membros da Congregação da Faculdade, que aprovaram a pro-
posta de instalação de um hospital provisório nas dependências da insti-
tuição, como havia sido feito na Faculdade de Medicina de São Paulo. As
aulas estariam suspensas enquanto durasse a epidemia, e todo o corpo
de professores, funcionários e alunos interessados prestaria atendimento
à população. O Dr. Cícero Ferreira ficaria encarregado da direção dos
serviços do novo hospital, que seria aberto no dia 23 de outubro. A
rapidez com que esse hospital era instalado é mais uma sugestão de
como a Diretoria de Higiene não tinha o controle da situação como a
imprensa tentava fazer acreditar.
A divergência em relação à forma de organizar-se os socorros,
tornada explícita entre Cícero Ferreira e Samuel Libânio, não é aborda-
da em nenhum dos jornais consultados e pareceu mesmo sepultada dias
depois. No início do mês de novembro, Samuel Libânio havia convocado
um encontro a fim de expor o plano de ação da Diretoria e discutir a
sugestão de novas medidas. Entre outros participantes, encontravam-se,
além do próprio Cícero Ferreira, os doutores Ezequiel Dias, Antônio
Aleixo, Alfredo Balena, Otaviano de Almeida, Marques Lisboa, Davi
Rabelo e Levy Coelho, que manifestaram concordância integral com a
orientação definida pela Diretoria de Higiene.81

80
FACULDADE de Medicina de Belo Horizonte. Ata da 12ª Sessão da Congrega-
ção, 1918.
81
Minas Gerais, 3 de novembro de 1918, p. 5. Essa reunião é mencionada no
relatório apresentado pelo diretor de higiene em 1919: “Os presentes deram seu
pleno assentimento à orientação do Diretor de Higiene, (...) manifestando a convic-
ção de que nada mais poderiam alvitrar, além do que já estava sendo posto em

172

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 172 19/6/2008, 23:40


A única contestação pública à atuação da Diretoria de Higiene
seria feita pelo Dr. Hugo Werneck, diretor da Santa Casa de Misericór-
dia. Em matéria divulgada no início de dezembro pelo Minas Gerais,
quando a pandemia estava praticamente em retirada, Werneck comenta-
va a atuação daquela instituição, em associação com a Sociedade São
Vicente de Paulo e as Damas da Caridade. Segundo ele, o trabalho dos
membros dessas associações assemelhava-se ao dos enfermeiros distritais
– “dos países em que está organizada a assistência pública” – descobrin-
do os doentes e levando-lhes o atendimento diário, requisitando a
internação dos mesmos quando necessária. Ao hospital cabia a institui-
ção do tratamento e do fornecimento dos medicamentos.82
Hugo Werneck dizia ainda que o atendimento em emergências
como aquela não podia resumir-se à remoção dos indigentes para as
enfermarias, sendo necessário socorrer as famílias material e moralmen-
te. Afirmava também a necessidade de amparar viúvas e órfãos, grávidas
celibatárias, inválidos e incuráveis. Ainda segundo Werneck, a mesma
forma de atuação poderia dar bons resultados na assistência à infância,
“hoje impiedosamente sacrificados pela ignorância dos pais, pela miséria
e pela falta absoluta de qualquer socorro”.83 Na verdade, ele apontava
para outro modelo de organização da saúde pública, que se propunha
atender demandas específicas – o socorro durante a epidemia – por
meio de uma ação abrangente – o amparo moral e material do doente e
de sua família. A perspectiva de Werneck sobre a saúde pública parece
imbuída de uma lógica arcaica – da tradição assistencialista, ancorada
no discurso e na atuação religiosa – na qual cabia à elite prover e ao
pobre receber, em oposição à de Samuel Libânio, que apontava para um
ganho organizativo do Estado.

execução (...)”. ESTADO DE MINAS GERAIS. Relatório apresentado ao Exmo. Sr.


Secretário do Interior..., 1919, p. 19. Os profissionais presentes à reunião eram
todos professores da Faculdade de Medicina, Ezequiel Dias era também diretor da
filial do Instituto de Manguinhos em Belo Horizonte; Marques Lisboa havia traba-
lhado junto a Oswaldo Cruz no combate à peste bubônica no Maranhão, transferin-
do-se em 1911 para a capital mineira, onde assumiu a direção do Posto de Obser-
vação e Medicina Veterinária (SALLES, 1997: 137-139).
82
Minas Gerais, 6 de dezembro de 1918, p. 2.
83
Minas Gerais, 6 de dezembro de 1918, p. 2.

173

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 173 19/6/2008, 23:40


Sobre a forma de atuação da Santa Casa, Hugo Werneck afirmava
que todo o serviço havia sido prestado valendo-se exclusivamente de
seus próprios recursos, sem qualquer necessidade de “auxílio ou esmo-
la”. Também não fazia qualquer menção à Diretoria de Higiene ou à
coordenação que ela teria exercido em relação aos socorros prestados
pelas diversas associações civis e religiosas.
Porém, apesar das críticas de Werneck e da tensão entre Cícero
Ferreira e Samuel Libânio sobre a forma de organização do socorro às
vítimas da epidemia, a memória que se construiu sobre o episódio da
gripe espanhola em Belo Horizonte seria marcada pelo elogio à atuação
da Diretoria de Higiene. Como havia feito durante todo o transcorrer
daqueles últimos meses de 1918, os jornais afirmavam que, se a influenza
não havia reproduzido na capital o “teatro de horrores” acontecido no
Rio de Janeiro, isso se devia em grande parte à atividade levada a cabo
por aquela Diretoria:
“As acertadas e oportunas providências tomadas pelos poderes públicos
em geral, e pela Diretoria de Higiene, em particular, quando se deu a
irrupção da epidemia entre nós, produziram os melhores resultados e
foram de decisiva importância no combate à insidiosa moléstia.” 84

Samuel Libânio permaneceria à frente da Diretoria de Higiene até


meados da década de 1920. Durante esse período, levaria adiante os
projetos de saneamento rural do estado e de reorganização da Diretoria
de Higiene, com a centralização e ampliação de suas atividades e o
reaparelhamento das unidades que a compunham (Desinfectório, Labo-
ratório de Análises e Hospital de Isolamento). Como vimos, o saneamen-
to rural seria implantado ainda antes da chegada da pandemia de espa-
nhola.85 Quanto ao problema da reorganização e reaparelhamento daquela

84
Minas Gerais, 2 e 3 de dezembro de 1918, p. 2.
85
O decreto de criação do Serviço de Profilaxia Rural do Estado de Minas Gerais
foi promulgado no dia 18 de junho de 1918, sendo publicado juntamente com o
seu regulamento naquela mesma data. O primeiro posto de saneamento rural foi
inaugurado no dia 19 de agosto do mesmo ano na cidade de Leopoldina. ESTADO
DE MINAS GERAIS. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Secretário do Interior...,
1919, p. 3 e 4.

174

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 174 19/6/2008, 23:40


Diretoria, ainda continuaria sendo mencionado como necessidade obser-
vada nos relatórios seguintes apresentados por Samuel Libânio.86
Nesse sentido, acreditamos poder afirmar que, no caso de Minas,
a pandemia de gripe não teria repercussões imediatas na forma de orga-
nização dos serviços sanitários no Estado. A principal novidade, o Servi-
ço de Profilaxia Rural, já estava em curso, sendo decorrência da campa-
nha pelo saneamento que havia mobilizado parte expressiva da classe
médica do país durante a década de 1910. Avaliação semelhante é en-
contrada nos estudos dedicados às epidemias de cólera no continente
europeu, onde a moléstia aparece como tendo impacto indireto nas polí-
ticas de saúde, sendo apenas mais uma entre um amplo espectro de
influências (EVANS, 1987:475-476).87
A proposta de criação de um Ministério da Saúde Pública, apre-
sentada ao legislativo federal em agosto pelo deputado Azevedo Sodré,
havia repercutido na imprensa mineira naquele meados de 1918. O Di-
ário de Minas, órgão do Partido Republicano Mineiro, apesar de concor-
dar com a afirmação de que o saneamento era problema que demandava
soluções nacionais, dizia que tal iniciativa era desnecessária, e mesmo
perigosa num momento de incertezas econômicas. Dizia ainda que a
doença e o raquitismo que dominavam alguns núcleos da população ser-
taneja eram fruto da falta de trabalho, da deficiência alimentar e da
carência de ensino. Por fim, declarava que higiene e aparelhamento sa-
nitário tinham, na verdade, um papel subsidiário no engrandecimento do
país.88 Na segunda metade de outubro, diante das desordens provocadas
pela epidemia no Rio de Janeiro, o Diário de Minas retornaria ao tema,
afirmando que o país que se preocupava com o “saneamento do seu
interior imenso, do seu sertão tenebroso, nem ao menos dispõe de recur-
sos para enterrar os mortos na sua capital fulgurantíssima (...).”89

86
Relatórios apresentados ao Secretário dos Negócios do Interior nos anos de
1919, 1920, 1921, 1924.
87
Ver também: EVANS, 1999:153; SLACK, 1999:13; BOURDELAIS, 1988:33;
PELLING, 1978:3-5.
88
Diário de Minas, 26, 27 e 28 de agosto de 1918, p. 1. O jornal voltaria à carga
contra o projeto de Azevedo Sodré no mês seguinte. Diário de Minas, 6 e 27 de
setembro de 1918.
89
Diário de Minas, 22 de outubro de 1918, p. 1.

175

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 175 19/6/2008, 23:40


A partir de dezembro, porém, é possível identificar no mesmo
Diário de Minas uma mudança no que se refere à campanha pelo sanea-
mento dos sertões, “que se traduzia no pensamento generoso de dar
alegria e saúde às populações que apodrecem Brasil adentro”, e que
surgia como iniciativa meritória e inadiável.90 Essa nova perspectiva era
reflexo da importância assumida pelo tema no programa e na propagan-
da de governo do novo presidente eleito, Rodrigues Alves – paulista
apoiado pelas elites do estado à sucessão do mineiro Wenceslau Braz.
Apesar de não tomar posse por causa da epidemia de espanhola – que o
vitimaria em janeiro de 1919 – Rodrigues Alves acenava que o problema
do saneamento seria enfrentado em seu novo governo, como o havia sido
feito com a ajuda de Oswaldo Cruz nos primeiros anos do século XX.91
Conforme aponta Gilberto Hochman, a pandemia de espanhola
teve “impacto significativo sobre a percepção coletiva das relações entre
doença e sociedade e sobre o papel da autoridade pública”, contribuin-
do para uma maior consciência das interdependências sociais e da ne-
cessidade de mudanças na área da saúde pública (HOCHMAN,
1998:131-132). Porém, Hochman afirma que esse impacto isolado não
seria suficiente para determinar “nem o conteúdo nem a direção da re-
forma, nem mesmo garantiria o crescimento do poder público. Isso seria
definido não apenas pela experiência da tragédia, mas, e principalmente,
pela política”( HOCHMAN, 1998:136).
Em Minas, à medida que a pandemia de influenza retirava-se,
tornavam-se mais constantes as manifestações de reconhecimento e o
agradecimento a todos que se mobilizaram naqueles dias marcados por
apreensão e medo. Se havia muitos a quem agradecer, o primeiro lugar
continuava parecendo pertencer à Diretoria de Higiene:
“Na campanha travada contra o terrível e traiçoeiro inimigo, todos os
médicos da Higiene foram de uma dedicação sem limites (...) sob a
superintendência esclarecida do sr. dr. Samuel Libânio, diretor de higi-
ene do Estado, empenharam os melhores dos seus esforços no combate

90
Diário de Minas, 6 de dezembro de 1918, p.1 e 2. Rodrigues Alves era o
presidente da república quando da reforma urbana do Rio de Janeiro, tendo no-
meado e apoiado as ações de Pereira Passos.
91
Minas Gerais, 15 de novembro de 1918.

176

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 176 19/6/2008, 23:40


ao mal (...). Por outro lado, a Diretoria de Higiene estimulou a caridade
particular, dando unidade de ação aos valiosos serviços prestados por
várias associações (...).”92
Embora essa memória construída sobre a influenza espanhola pro-
curasse transmitir uma imagem de que a Diretoria de Higiene tivesse
mantido o controle no combate e no socorro à população, vimos que a
realidade enfrentada pelas autoridades sinalizava num sentido um tanto
diverso. Poucos dias após o reconhecimento da epidemia, o poder públi-
co se viu forçado a buscar o apoio de entidades civis, que desempenha-
ram um papel de destaque durante a quadra epidêmica. A participação
desses outros personagens na luta contra a moléstia e na tentativa de
minorar os sofrimentos dos enfermos e seus familiares, e o que ela nos
revela sobre as atitudes e as diferenças sociais, são os objetos que anali-
saremos a seguir.

A sociedade em ação

“O tempo da peste é o tempo da solidão forçada”. É dessa forma


que Jean Delumeau se refere à crescente desordem da vida cotidiana
imposta pelas epidemias da moléstia durante os séculos XIV-XVIII. De-
corrência do medo diante de uma ameaça que parecia fora de qualquer
controle, o isolamento mostrava-se por meio das quarentenas, das ruas
desertas, do fechamento do comércio, da reclusão das famílias, da fuga
das cidades. As pessoas tinham medo dos defuntos, dos vivos e de si
mesmas, recusando toda piedade, “já que toda piedade é perigosa”
(DELUMEAU, 1996:121-125).93 Mas, contraditoriamente, ao lado des-
se sentimento, também é possível identificar durante esses eventos uma
mobilização social que busca fazer frente às ameaças representadas pela

92
Minas Gerais, 2 e 3 de dezembro de 1918, p. 2.
93
Reações semelhantes são apontadas nos estudos sobre as epidemias de cólera na
Europa durante o século XIX. “A impotência da ciência e dos homens em geral em
debelar o contágio quebrava as solidariedades tradicionais. Em certas localidades,
os doentes estavam abandonados à própria sorte” (VINCENT, 1988:65).

177

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 177 19/6/2008, 23:40


moléstia e à insuficiência da ação do poder público (Cf.: ROSENBERG,
1987; EVANS, 1887; BOURDELAIS, 1987; EVANS, 1999).
A participação da sociedade no socorro às vítimas da influenza é
aspecto marcante na experiência mundial da pandemia, sendo enfatizado
na maior parte dos trabalhos dedicados ao tema. Por todos os lugares, o
envolvimento de associações de caridade, sociedades de imigrantes, co-
merciantes, profissionais da saúde e mesmo dos cidadãos comuns, consti-
tuiu-se iniciativa e apoio fundamental para que as cidades atendessem às
necessidades dos seus doentes, evitando o caos e a desagregação social
(Cf.: BERTOLLI FILHO, 1986:225-258; BERTUCCI, 2002:132-138;
ABRÃO, 1998:112-116; OLYNTO, 1995:66-67; CROSBY, 1999:78-
82 e 115-116). Na cidade americana de Boston, um contemporâneo da
pandemia descrevia a mobilização diante da moléstia como “uma extraor-
dinária evidência da capacidade do povo se organizar diante de uma emer-
gência” (Cf.: CROSBY, 1999:116).
Em Belo Horizonte, o envolvimento da sociedade no socorro aos
atingidos pela moléstia já era ensaiado antes mesmo de oficialmente re-
conhecida a presença da pandemia na cidade. No dia 12 de outubro,
realizava-se no Clube Acadêmico um chá-dançante em benefício das fa-
mílias dos marinheiros brasileiros vitimados pela influenza. A festa de
caridade seria organizada como um “minuto literário”, onde tomariam
parte, entre outros, o poeta Abílio Barreto e a senhorita Cândida de
Oliveira, havendo ainda um pequeno concerto.94 O evento reproduzia a
tradição de muitas ações filantrópicas: de caráter festivo, distraía e diver-
tia a sociedade e, ao mesmo tempo, recolhia fundos para um fim previa-
mente determinado.
A chegada da influenza em Belo Horizonte daria a essas ações um
aspecto distinto, com o engajamento de diversos indivíduos na rede de
solidariedade social que se construiu como resposta à epidemia. Várias
entidades da sociedade civil – associações, clubes, comunidades de imigran-
tes, entre outras – mobilizaram-se para prestar socorro às vítimas da doença
em iniciativas que iam do atendimento hospitalar e domiciliar, consultas
aos doentes, transporte, recolhimento de doações, subscrições, distribuição
de remédios, alimentos e roupas, além do conforto espiritual aos doentes.

94
Diário de Minas,12 de outubro de 1918, p. 1.

178

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 178 19/6/2008, 23:40


Os médicos tiveram atuação fundamental no socorro à população.
Como mencionado, quatro dias após o reconhecimento oficial da
pandemia, a Faculdade de Medicina recebia solicitação do diretor de
higiene para a liberação dos alunos dispostos a trabalhar naquela emer-
gência. A resposta seria a transformação da Faculdade em um hospital
provisório, aberto para atendimento das camadas mais necessitadas no
dia 23 de outubro. O novo hospital contava com uma capacidade de 100
leitos, e o serviço clínico distribuía-se em sete enfermarias, cada uma
chefiada por professores da Faculdade, auxiliados pelos alunos e, mais
tarde, pelas enfermeiras da Cruz Vermelha.95 Além do atendimento aos
internos, seus profissionais também realizavam visitas domiciliares em
diversos pontos da cidade e, muitos deles, prestavam seus serviços nos
vários postos de socorro que foram abertos na capital.96
O serviço de farmácia, tanto interno como a distribuição de medi-
camentos aos doentes pobres, estava a cargo do professor Aurélio Pires,
contando com a participação de estudantes de farmácia, medicina e de
alguns farmacêuticos e práticos que se colocaram à disposição da Direto-
ria de Higiene. Para atender aos que contraíram a moléstia no exercício
dessas atividades, uma outra enfermaria seria instalada no prédio da
Diretoria de Higiene, no início do mês de novembro. O atendimento
estava confiado aos doutores Cícero Ferreira, Samuel Libânio e Alexan-
dre Drumond.97
Alguns cidadãos, de forma espontânea, também ofereciam os seus
serviços ao hospital da Faculdade de Medicina. Foi o caso de José e
Manoel Lopes Guimarães, formados pelo curso para enfermeiros e

95
ESTADO DE MINAS GERAIS. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Secretário do
Interior, 1919, p. 17.
96
Diário de Minas, 26 de outubro de 1918, p. 1. No mesmo dia, o diário oficial
publicava como estavam organizados os serviços das diversas enfermarias e os
professores e alunos responsáveis pelos plantões em cada uma delas. Minas Gerais,
26 de outubro de 1918, p. 2 e 3, e 11 e 12 de novembro de 1918, p. 3.
97
ESTADO DE MINAS GERAIS. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Secretário do
Interior..., 1919, p. 17. Já no dia 6 de novembro, dos 17 funcionários que presta-
vam serviços desde a instalação do Hospital da Medicina, achavam-se “em pé
apenas 2 cozinheiros e um auxiliar de farmácia”. Minas Gerais, 6 de novembro de
1918, p. 2.

179

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 179 19/6/2008, 23:40


padioleiros de guerra oferecido pela Faculdade, visando possíveis emer-
gências provocadas pelo conflito mundial. A senhorita Alice Neves, além
dos serviços de enfermeira, comprometeu-se em confeccionar roupas aos
doentes necessitados. Após receber alta, uma doente que havia sido reco-
lhida àquele hospital ofereceu seus serviços como auxiliar de lavanderia.98
O hospital da Medicina também recebia doações, como a realiza-
da pelo coronel Artur Vianna – “fubá, sal, farinha e frutas de gentio que,
com fundamento, reputa medicamento poderoso para a influenza”.99 A
Companhia de Eletricidade e Viação Urbana havia dispensado a Facul-
dade do pagamento das despesas de luz e telefone, enquanto funcionas-
se como hospital provisório. Além disso, instalou, no início do mês de
novembro, um foco de 1.000 velas nos jardins da Faculdade, de modo a
facilitar a movimentação noturna de ambulâncias e demais veículos.100
Os jornais lembravam as iniciativas e ações beneméritas que esta-
vam sendo implementadas por diferentes associações civis e religiosas, e
se colocavam à disposição da população para receber as doações que
seriam encaminhadas à Diretoria de Higiene, hospitais e postos de socor-
ro abertos na ocasião. Como ocorreu em outras cidades do país, as associ-
ações religiosas estiveram entre os mais ativos grupos no socorro aos doen-
tes necessitados (ABRÃO, 1998:115-116; BERTOLLI FILHO,
1986:236-244; BERTUCCI, 2002:272-273).

“Deve entrar em campo, hoje, nesta capital, perfeitamente mobilizada


para mais uma campanha sagrada, a admirável Associação das Confe-
rências São Vicente de Paulo. (...) reunidos ontem, em assembléia geral,
(...) resolveram aplicar a sua atividade jamais descontinuada, à assistên-
cia metodizada dos indigentes, vítimas da terrível epidemia que come-
çou a assolar os bairros mais necessitados da capital”.101

98
Minas Gerais, 27 de outubro de 1918, p. 4. O curso de enfermeiros e padioleiros
de guerra começou a funcionar na Faculdade de Medicina em dezembro de 1917.
Os diplomas da primeira turma seriam entregues em sessão solene no mês de
agosto de 1918 (PENNA, 1997:166).
99
Minas Gerais, 27 de outubro de 1918, p. 4.
100
Minas Gerais, 2 de novembro de 1918, p. 2.
101
Minas Gerais, 9 de novembro de 1918, p. 1.

180

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 180 19/6/2008, 23:40


Segundo a matéria publicada, naquela reunião os confrades das
Conferências de São Vicente de Paulo buscaram regularizar as ações que
já vinham sendo implementadas por diversos membros, de forma a in-
tensificar os socorros e ampliar os beneficiados. Para isso, resolveram
dividir a cidade em quatro distritos, correspondentes aos bairros da zona
suburbana – Floresta, Lagoinha, Quartel e Barro Preto/Barroca – entre-
gando os trabalhos em cada um deles aos cuidados dos confrades. Deci-
diu-se ainda que cada conferência teria autonomia para escolher sobre
os melhores meios de agir, devendo amparar indistintamente a todos os
necessitados.102
No dia 12 de novembro, as conferências abriam sete postos de
socorro, atendendo à população dos bairros da Floresta, Lagoinha, Bar-
ro Preto, Quartel e Cardoso; um deles instalado no edifício da Assistên-
cia à Pobreza, à rua Bernardo Guimarães, região central da cidade. Do-
tados de uma cozinha, distribuíam caldos, pães e medicamentos, levando
conforto material e moral aos enfermos e suas famílias.103
Além do atendimento realizado nos postos, os vicentinos também
percorriam os bairros, prestando atendimento em domicílio, identifican-
do as famílias necessitadas e os enfermos a serem transferidos para os
hospitais. Como mencionado anteriormente, a Sociedade São Vicente de
Paulo havia estabelecido entendimentos com o Dr. Hugo Werneck, dire-
tor da Santa Casa de Misericórdia, para que recorressem à farmácia da
instituição e pudessem requisitar a hospitalização dos casos mais graves.
Conforme Hugo Werneck, os vicentinos agiam “descobrindo os doentes,
levando-lhes, com o conforto da assistência diária, o remédio, o alimen-
to, o agasalho e, quando preciso, o conselho salutar e convincente da
hospitalização.”104

102
Associação de leigos católicos tradicional; sua atuação no estado foi inicialmente
estimulada pelos padres lazaristas. Em Belo Horizonte, os vicentinos compunham-
se de várias associações menores formadas nas diversas paróquias da capital mi-
neira, cada uma delas recebendo um nome distinto, como Conferência de Santa
Ana, do Santíssimo Sacramento, de Santo Antônio, de São Luiz Gonzaga, entre
outras. Minas Gerais, 10 de novembro de 1918, p. 4 e 6, e 11 e 12 de novembro
de 1918, p. 2; e Diário de Minas, 15 de novembro de 1918, p. 6.
103
Minas Gerais,13 de novembro de 1918, p. 2.
104
Minas Gerais, 6 de dezembro de 1918, p. 2.

181

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 181 19/6/2008, 23:40


Nessa atividade, os vicentinos tiveram a companhia de outra asso-
ciação religiosa, as Damas de Caridade, que se engajaram no socorro aos
doentes desde o início da pandemia. Convocadas por uma comissão,
composta entre outras pela esposa do governador do estado Clélia
Bernardes, e com a aprovação do vigário da freguesia de São José, anga-
riavam donativos e esmolas a serem encaminhados aos hospitais e postos
de socorro e distribuídos entre as famílias dos bairros pobres. Contando
com o apoio do diretor de higiene, abriram dois postos de socorro nos
quais ofereciam alimentos e remédios, sendo auxiliadas pelos padres
redentoristas. Outras contribuições vinham da Santa Casa, no forneci-
mento dos medicamentos necessários, e do Dr. Cornélio Vaz de Mello,
médico e ex-prefeito da capital, que diariamente atendia aos doentes no
posto do Barro Preto.105
Os padres também desempenharam papel significativo nesses dias
de pandemia. Ao lado do socorro espiritual, confortando doentes, mori-
bundos e suas famílias, os párocos da cidade engajaram-se ainda no
trabalho de coleta e distribuição das doações feitas aos necessitados. Não
é difícil supor que em suas idas e vindas pela cidade para distribuir os
sacramentos, aproveitassem para divulgar entre as camadas pobres e os
miseráveis os conselhos então sugeridos pela Diretoria de Higiene.
Outra associação destacada no socorro aos gripados foi a Cruz
Vermelha. Ainda no mês de outubro, as senhoritas diplomadas pelo cur-
so de enfermeiros de guerra, colocaram-se à disposição do Dr. Cícero
Ferreira para auxiliar no atendimento prestado pelo hospital provisório
instalado na Faculdade de Medicina. Considerando desnecessário tal
oferecimento e temendo pela propagação da moléstia, o diretor havia
dispensado o serviço das “gentis senhorinhas”. Segundo a imprensa,
diante dos protestos e da insistência das enfermeiras, Cícero Ferreira
acabaria convocando-as para novo encontro no prédio da Faculdade de
Medicina.106
A atitude do diretor da faculdade era um reflexo da expansão da
moléstia e do aumento das internações, além da necessidade de mão-de-

105
Minas Gerais, 10 de novembro de 1918, p. 4, e 11 e 12 de novembro de 1918,
p. 2.
106
Minas Gerais, 26 de outubro de 1918, p. 3

182

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 182 19/6/2008, 23:40


obra para substituir aqueles que caíam doentes no atendimento às víti-
mas. Por causa desses problemas, Cícero Ferreira viu-se obrigado a
incorporá-las ao atendimento das enfermarias daquele hospital. Esse fato
evidencia que a pandemia estava promovendo um realinhamento dos
papéis sociais definidos pelo gênero, uma vez que aquela atividade signi-
ficava a exposição do “sexo frágil” à dura batalha contra a ameaça epidê-
mica. Além disso, era também mais uma sugestão de que nem tudo
estava sob controle. Afinal, se já havia exposto a impotência das autorida-
des e os limites da louvada salubridade da capital diante de sua invasão,
a gripe espanhola estava ultrapassando também os prognósticos e os
esforços dos médicos, estudantes e funcionários da faculdade que havi-
am se incorporado no socorro às vitimas. No dia 2 de novembro, o dire-
tor da Faculdade divulgava o seguinte comunicado:
“Às Enfermeiras da Cruz Vermelha
A diretoria do Hospital e Posto de Assistência da Faculdade de Medici-
na julga de seu dever comunicar às exmas. senhoras enfermeiras da
Cruz Vermelha que o Hospital precisa de seus serviços profissionais, con-
siderando-os preciosos e muito importantes, mas não é isento de perigos
sérios esse ato de abnegação de sua parte.
Em tais condições, pensa que devem refletir muito antes de comparece-
rem ao serviço e se absterem dele caso tenham receio do contágio”107.
Além do trabalho nas enfermarias, a Cruz Vermelha manteve um
posto de assistência no bairro da Floresta, onde fornecia gêneros, dietas e
vestimentas arrecadados por meio de doações e das diversas subscrições
abertas. Dois médicos, Alfredo de Paiva e Alcides Prado, atendiam os
doentes que procurassem o posto em horários definidos pela manhã e à
tarde, respondendo ainda aos chamados que fossem feitos em domicílio.108

107
Minas Gerais, 2 de novembro de 1918, p. 2 (grifo nosso).
108
Minas Gerais, 9 de novembro de 1918, p. 5. Informação sobre as atividades
desenvolvidas pelo posto da Floresta, entre os dias 13 e 15, apontava: Dia 13 –
visitas médicas em domicílio: 40; gêneros e dietas fornecidos a 60 pessoas. Dia 14
– visitas médicas em domicílio: 20; gêneros e dietas fornecidos a 65 pessoas. Dia
15 – visitas médicas em domicílio: 35; gêneros e dietas fornecidos a 143 pessoas.
Minas Gerais, 16 de novembro de 1918, p. 3.

183

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 183 19/6/2008, 23:40


A comunidade italiana, cuja presença era marcante na capital mi-
neira desde o período de sua construção, também participou de forma
ativa no atendimento às vítimas. Por intermédio da Cruz Vermelha Italia-
na, organizou um posto de socorro na Escola Italiana, desempenhando a
mesma atividade dos demais. As visitas realizadas eram acompanhadas
pelo Dr. Antônio Aleixo, que havia se colocado à disposição da associação
até que cessasse a moléstia, e o serviço médico interno era desempenhado
pelo doutorando Oscar Negrão e pelo acadêmico Álvaro Camargos.
A Sociedade Italiana de Mútuo Socorro, “desejosa de auxiliar na
debelação da epidemia”, ofereceu um automóvel durante duas horas por
dia à comissão dirigida pela condessa Provana109. Além de amparar os
patrícios que adoeceram durante a pandemia, a Sociedade Italiana tam-
bém contribuiu ativamente no auxílio aos enfermos da capital: os donativos
angariados por seus membros eram distribuídos entre os pobres “sem
consideração de nacionalidade, (...) de acordo e sob a fiscalização da
Diretoria da Cruz Vermelha Mineira”110.
A colônia espanhola foi outra a participar nos socorros. Além de
uma doação de 135$000 entregue ao Diretor de Higiene para o auxílio
aos necessitados, havia colocado à disposição das autoridades sanitárias
o prédio onde funcionava o grêmio espanhol, abrindo ainda nova subs-
crição entre seus membros em favor dos gripados da cidade111. A União
dos Moços Católicos e a Liga Contra a Tuberculose também se engajaram
na cruzada pelo combate á moléstia. Outras associações e clubes partici-
param por meio de doações: a Associação Beneficente Typográphica
havia doado 200$000 às Conferências de São Vicente de Paulo. Os
associados do América Foot-Ball Club enviaram à redação do Minas
Gerais 53$000 para serem entregues aos vicentinos112.
Além das sociedades e associações, o socorro aos doentes mobili-
zou praticamente toda a população. Já no dia 25 de outubro, qualquer
indivíduo podia concorrer no auxilio aos indigentes que caíssem vítimas
da moléstia, assinando as listas de subscrição disponibilizadas em diver-

109
Minas Gerais, 11 e 12 de novembro de 1918, p. 6.
110
Minas Gerais, 10 de novembro de 1918, p. 4.
111
Minas Gerais, 4 e 5 de novembro de 1918, p. 4.
112
Minas Gerais, 11 e 12 de novembro de 1918, p. 3.

184

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 184 19/6/2008, 23:40


sas casas comerciais da cidade. Pessoas conhecidas e bem situadas na
sociedade sempre figuravam nessas subscrições, às vezes, em mais de
uma, como o senador Virgílio de Mello Franco, o Dr. Baeta Neves, os
coronéis Adolfo Magalhães e Dario Mascarenhas. Quantias mais expres-
sivas eram apresentadas separadamente nas longas listas publicadas pe-
los jornais, que informavam o balanço das doações. De uma só feita, o
coronel Arthur Vianna doava, juntamente com seu irmão, a importância
de 1:000$000 para os postos da Cruz Vermelha.113 Em caso de erro na
impressão dos valores, esse era prontamente corrigido, de modo a evitar
comentários e constrangimentos.114 Dados como esses nos remetem à
análise de Norberto Elias, ao afirmar que as imagens e opiniões que os
indivíduos e grupos sociais constroem de si e dos outros são pautadas,
entre outros elementos, pelas intrigas e comentários – elogiosos ou de-
preciativos – que circulam em sua sociedade. Esses julgamentos, muitos
vezes, criam identidades que acabam influindo no destino dos indivíduos
(ELIAS e SCOTSON, 2000:121 e 131).
As listas publicadas pelos jornais exibiam, ao lado das grandes
doações, contribuições mais singelas 5, 2, 1 mil reis. E doava-se de tudo:
litros de arroz, feijão, fubá; sacas de açúcar, farinha, batatas; pacotes de
maisena, macarrão, sabão; pães, rapaduras; dúzias de colchetes, carre-
téis, botões, fazendas, roupas usadas; carroças de lenha, vidros vazios... O
Sr. João Bueno da Costa Macedo ofereceu uma casa no bairro do Quartel
para a instalação de um posto de socorro aos doentes pobres e o coronel
Arthur Vianna, além da vultosa doação à Cruz Vermelha, disponibilizou
suas carroças para recolherem as doações apuradas.115 A Farmácia Ame-
ricana colocava à disposição dos hospitais 200 ampolas de óleo canforado.116

113
Minas Gerais, 11 e 12 de novembro de 1918, p. 6. Doações como a do coronel
Vianna não eram a regra. Contribuição de igual valor foi dirigida anonimamente
aos vicentinos, e a Companhia de Tecidos doaria a mesma quantia em fazendas de
algodão. Minas Gerais, 11 e 12 de novembro de 1918, p. 3. Outras doações
pessoais expressivas giravam em torno d e 100 a 200$000.
114
“Na lista de ontem, onde se lê que o deputado Bressane assinou 2$000 leia-se
a quantia de 20$000”. Minas Gerais, 20 de novembro de 1918.
115
Minas Gerais, 11 e 12 de novembro de 1918, p. 3 e 6, e 16 de novembro de
1918, p. 3.
116
Minas Gerais, 4 e 5 de novembro de 1918, p. 4.

185

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 185 19/6/2008, 23:40


Entre os assinantes das subscrições havia de tudo: gente anônima;
os que se intitulavam católicos, caridosos, um “coração bem formado”;
os espanholados e ex-espanholados; um candidato, um eleitor; os que
doavam em intenção de quem já havia morrido. De tal modo, a caridade
parece ter um caráter ambíguo, assumindo faces diversas, podendo sig-
nificar um desejo de exibição aos olhos da sociedade, uma forma de
capitalização política, ou a incorporação de certas expectativas sociais,
afinal a filantropia também é uma forma de capitalizar atenção e reco-
nhecimento social e político. Por outro lado, também podia revelar o
espírito de altruísmo, o agradecimento de graças alcançadas, a crença
nos castigos e nas recompensas dos céus, remetendo a comportamentos
e crenças enraizados na cultura e no imaginário social.
Muitas vezes, a caridade nem sempre era fruto de uma atitude
espontânea e generosa, mas de pressões que perpassavam as relações
sociais e políticas. Richard Evans e Patrice Bourdelais revelam que, du-
rante as epidemias de cólera, as autoridades hamburguesas e francesas
estimulavam a mobilização na busca de doações entre as classes mais
favorecidas da sociedade (Cf.: EVANS, 1987:478-481).117 Um caso inte-
ressante envolvendo a colônia síria – que havia se fixado em Belo Horizon-
te nos primeiros anos da cidade, sendo reconhecida desde então pela forte
presença no comércio da capital – era dado à publicidade pelo Diário de
Minas, em 17 de novembro. Nesse dia, o jornal publicou uma carta na
qual alguns membros da sociedade Nova Síria eram acusados pelo sr.
Miguel Abras de terem se oposto à doação de um pecúlio aos indigentes.
Por não haver concordado com aquela posição e buscando justificar-se pe-
rante a população da capital, que sempre o havia “distinguido e honrado
com sua estima e consideração”, é que tornava público aquele ocorrido.118
Dois dias depois, Khalil Bedran e Jorge Salomão, citados na carta
de Abras, enviaram comunicado ao mesmo jornal, afirmando que a inten-

117
Na França, durante a epidemia de 1832, uma circular aos prefeitos trazia uma
instrução informando que “havia de se abrir em sua comuna uma subscrição que
deveria ser levada de casa em casa, por uma ou duas pessoas notáveis do lugar, a
todos os habitantes que por sua posição, tivessem condições de colaborar”
(BOURDELAIS, 1987:189).
118
Diário de Minas, 17 de outubro de 1918, p. 2.

186

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 186 19/6/2008, 23:40


ção daquele era apenas intrigá-los com os mineiros. Em sua defesa, dizi-
am que o objetivo da associação era o socorro aos patrícios, sendo impos-
sível destinar à renda existente em seus fundos outro fim sem a anuência
dos demais associados, ainda que fosse para mais elevada e nobre
destinação. Informavam também terem promovido uma subscrição entre
os membros da colônia, cuja quantia fora entregue ao Dr. Cícero Pereira.
A importância, diziam, não era grande, mas dada com satisfação e, prin-
cipalmente, “sem lesar o direito de terceiros e nem ir de encontro às
disposições dos estatutos”.119 A publicidade dada ao caso impôs uma
retratação dos imigrantes envolvidos, que, provavelmente, também viram
no ocorrido uma possibilidade de grandes prejuízos financeiros.
Sobre os sentidos assumidos pela caridade e filantropia, Richard
Evans mostra que, durante as epidemias de cólera em Hamburgo, mais
de uma vez as autoridades públicas lançaram mão dessa mobilização soci-
al para demonstrar a solidariedade e o humanitarismo da burguesia e a
“superação das barreiras e divisões de classe face uma ameaça comum”.
Mas, segundo ele, “as legitimações desses esforços caritativos eram bem
mais complexas e muito menos tranqüilizadoras do que essa descrição fa-
vorável do espírito comunitário poderia sugerir” (EVANS, 1987:478-481).
Como mostra sua análise, na sociedade hamburguesa a filantropia serviu
para legitimar a desigualdade social, tornando-se um instrumento de auto-
defesa das classes dominantes contra possíveis acusações e hostilidades.
Além de contribuir para legitimar a desigualdade e manter a es-
trutura social dominante, a caridade podia revelar uma face ainda mais
obscura, significando uma tentativa de manter afastado o perigo repre-
sentado pelos pobres. Suavizar o sofrimento dos miseráveis era também
uma forma de proteger-se contra aqueles que, naquele momento, pareci-
am incorporar uma verdadeira ameaça. A mesma opinião é partilhada
por Liane Bertucci, que afirma serem as ações para prover o socorro às
vítimas “impulsionadas não apenas pelo altruísmo (...) mas também por
aspectos egoístas, que o medo da gripe espanhola despertava, [e] que
poucos tinham a ousadia de explicitar” (BERTUCCI, 2002:123).120

119
Diário de Minas, 19 de novembro de 1918, p. 2.
120
Nesse sentido, é expressiva a citação que a autora faz de uma nota publicada no
jornal O Estado de São Paulo, de 27 de outubro de 1918: “Urge, pois, que todas

187

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 187 19/6/2008, 23:40


A mobilização levada a efeito pela sociedade civil ainda expõe,
muito claramente, o fato de que foram as camadas mais pobres as que
maior tributo pagaram à espanhola. Podemos dizer que, enquanto entida-
de biológica, a influenza nada mais é que uma virose transmitida pelo ar
por meio das secreções das vias respiratórias. Isso a tornaria distinta de
outras moléstias, como a peste e a cólera, relacionadas às condições de
salubridade. Nesse sentido, a natureza da influenza faria dela uma amea-
ça a qualquer classe social, característica que seria intensamente explora-
da pelos contemporâneos.121 No entanto, para a história social das doen-
ças, uma enfermidade não é determinada exclusivamente por suas
características biológicas, não sendo possível analisá-la descolando-a da
realidade social. Dessa forma, as condições de existência dos homens
também são elementos pertinentes a qualquer análise sobre os eventos
epidêmicos, tornando, em grande parte dos casos examinados, os pobres
ainda mais vulneráveis à ação das doenças.
A geografia da pandemia traçada nas páginas dos periódicos mi-
neiros segue aquela verificada nas cidades examinadas em outros traba-
lhos: os bairros que concentravam a população mais pobre da cidade
foram também os mais atingidos pela moléstia122. A faina cotidiana dos
agentes das associações de caridade e de socorro desenrolava-se princi-
palmente pelo Barro Preto, Barroca, Lagoinha, Floresta, Quartel e Car-
doso, áreas de exclusão social da chamada “capital planejada e higiêni-
ca”. Nessas regiões, é que foram instalados os postos de assistência, com

as pessoas se prontifiquem a dar o que puderem. Note-se, mais uma vez, que não
vai nisto um simples movimento de filantropia, mas também de defesa própria. É
interesse de todos os habitantes da cidade que haja dentro desta quanto menos
miséria, desocupação, orfandade e doença. O saudável equilíbrio da vida urbana
resulta em benefício direto de cada família, de cada indivíduo, por mais altamente
colocado que esteja. Cooperar para restabelecer esse equilíbrio ameaçado não é
grande virtude, é quase apenas um ato de egoísmo esclarecido” (BERTUCCI,
2002:123-124). Apesar de não contarmos com exemplo tão expressivo, não é
difícil supor que pensamento dessa natureza também estivesse presente entre a
população da capital mineira.
121
Cf. capítulo 1.
122
Veja por exemplo os dados sobre São Paulo, Porto Alegre e Rio Grande, exami-
nados por BERTOLLI FILHO, 1986; ABRÃO, 1998; e OLINTO, 1995.

188

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 188 19/6/2008, 23:40


distribuição de caldos, roupas e medicamentos, e foi também para elas
que se dirigiram os olhares das autoridades municipais:
“Nessa hora sombria, o sr. dr. Afonso Vaz de Mello, prefeito da capital,
vai desenvolvendo a maior atividade a fim de suavizar a situação dos
flagelados pela gripe e pela falta de recursos. (...) percorrendo os bairros
onde o mal mais intensamente atacou os pobres, providenciando no
sentido de serem melhoradas as suas condições higiênicas e suavizadas
as suas condições de miserabilidade. Ontem pela manhã o dr. Afonso
Vaz de Mello esteve no Barro Preto, na Barroca e na Lagoinha (...).”123
A mobilização em torno dos pobres e indigentes foi acontecimento
de primeira hora. Segundo o Minas Gerais, a primeira subscrição foi
aberta no dia 25 de outubro, quando a epidemia, “felizmente”, ainda
não havia atingido os bairros pobres da cidade, sendo por isso, uma
medida de “previdência”.124 No entanto, até o final do mês de outubro,
o movimento de doação aos pobres só fez crescer e, nos primeiros dias
de novembro, a Diretoria de Higiene já considerava a necessidade de
criação de um hospital ou posto de socorro no populoso bairro da
Lagoinha.125 No dia 5 daquele mês, o Diário de Minas divulgava que os
bairros mais distantes, “que até a dias se achavam isentos da influenza já
foram alcançados pela moléstia”.126 Nos dias seguintes, as notas relativas
à atuação das diferentes associações de assistência repetiam a mesma
informação pelas páginas do Minas Gerais:
“A Barroca, o Barro Preto e outros bairros habitados por gente pobre
são os teatros onde se desenvolve a atividade desses legionários do bem”.
“Os vicentinos [se mobilizam para socorrer as] vítimas da terrível epide-
mia que começou a assolar os bairros mais necessitados da capital”.
“Ontem foi grande o número de pobres socorridos pelo posto [da Cruz
Vermelha no bairro da Floresta] tendo havido distribuição de caldo aos
pobres.”127

123
Minas Gerais, 10 de novembro de 1918, p. 4.
124
Minas Gerais, 25 de outubro de 1918, p. 6. Os grifos são nossos.
125
Minas Gerais, 3 de novembro de 1918, p. 5.
126
Diário de Minas, 5 de novembro de 1918, p. 1.
127
Minas Gerais, respectivamente 7 de novembro, p. 5, e 9 de novembro de 1918,
p. 2 e 5.

189

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 189 19/6/2008, 23:40


No início de novembro, a pandemia tomava incremento chegan-
do, então, os dias de altas taxas de notificações e óbitos. As seções
necrológicas traziam diariamente os nomes daqueles que pagaram com a
vida – moradores da capital ou mineiros ilustres residentes em outras
cidades. A fatalidade, diziam, abatia-se sobre todos, mas nos periódicos
quase sempre figuravam as pessoas conhecidas: comerciantes, profissio-
nais liberais, industriais, fazendeiros, coronéis, políticos, jovens acadêmi-
cos, senhoras mães de família e senhoritas. Só gente de posses, “gente de
bem”. Apesar desses óbitos pranteados, os dados levantados apontam
que morreu-se muito mais entre os pobres, miseráveis e desconhecidos,
que não freqüentavam as páginas dos jornais. O levantamento realizado
no Livro de Enterramentos do cemitério do Bonfim aponta que dos 206
óbitos atribuídos à influenza espanhola, 92 (44,66%) ocorreram nos
hospitais – espaço, como vimos, destinado especialmente aos enfermos
que não tinham recursos para observar o isolamento na própria residên-
cia. Nos bairros localizados fora da área central da cidade, ocorreram 67
óbitos (32,52%). A região central computava 47 óbitos (22,81%), entre-
tanto 11 deles foram registrados na área ocupada pelo Barro Preto, que
concentrava a população operária da capital mineira.128 Esses dados não
deixam dúvidas sobre o fato de ter sido a população menos favorecida da
capital mineira a que maior tributo pagou à pandemia.
Um aspecto que chama a atenção nas notícias então divulgadas é
o de que a expansão da moléstia pelas regiões mais carentes era fato
esperado. Não causava estranheza que a epidemia se mostrasse mais
avassaladora em determinadas regiões, em especial aquelas onde condi-
ções múltiplas – como a carência alimentar, a ausência de saneamento, a
inacessibilidade ao atendimento médico e aos medicamentos – favoreci-
am sua atuação e tornavam “mais intenso o sofrimento dos desgraçados
flagelados pela peste e pela fome”.129 O Minas Gerais afirmava que: “em
alguns bairros, como é natural, a gripe tem atacado quase todos os seus
moradores, muitos dos quais, além da enfermidade, lutam com as mais

128
PREFEITURA DE BELO HORIZONTE. Livro de Enterramentos do Cemitério
Municipal do Bonfim – 01/18/1912 a 29/02/1920.
129
Minas Gerais, 10 de novembro de 1918, p. 4.

190

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 190 19/6/2008, 23:40


sérias dificuldades para a sua alimentação”,130 ou ainda, “a pobreza,
como soe sempre acontecer, é a que mais tem sofrido”.131 Além de per-
mitir avaliar as condições de vida das camadas mais pobres da cidade,
essas afirmações sugerem que parecia ser algo aceitável e justificável a
maior exposição dos pobres às doenças.
Tais afirmações nos remetem ainda a algumas das percepções
sobre a doença prevalentes naqueles tempos. Miséria e sujeira insinuam-
se aqui como sinônimos de doença, reeditando velhas imagens que o
desenvolvimento da bacteriologia pretendia ter sepultado. Como aponta-
do no capítulo anterior, na segunda metade do século XIX, os hábitos de
moradia da pobreza eram diagnosticados pela Higiene como “nocivos” à
sociedade, por serem vistos como “focos de irradiação de vícios” e, tam-
bém, de epidemias (CHALHOUB, 1996, especialmente o capítulo 1).
As relações entre sujeira-pobreza-doença foram amplamente exploradas
durante as diversas epidemias de cólera do século XIX, fazendo parte do
discurso político e científico sobre a moléstia (EVANS, 1987:118-120;
BOURDELAIS, 1988:32-35).132 Segundo Patrice Bourdelais, os médi-
cos ingleses, franceses e alemães contribuíam para a crença que, graças
ao nível de vida e higiene de suas populações – “ao alto grau de civiliza-
ção” – seus países não deviam temer a moléstia, que atingia sobretudo as
populações miseráveis e pouco esclarecidas (BOURDELAIS, 1988:19).133
Transposta para o contexto em análise, diríamos que as condições de
existência das populações que ocupavam os bairros pobres da capital
mineira também eram vistas como uma ameaça à “cidade salubre”. Nes-
se sentido, assistir à pobreza era, de certa forma, proteger a si mesmo, e
quanto mais cedo melhor.
Se nos tempos da peste a sociedade elegia e perseguia seus suspei-
tos – judeus, leprosos, feiticeiros – durante a pandemia de influenza os
pobres pareciam ocupar essa posição de “bodes expiatórios”. Não que
fossem considerados os culpados pela doença, como nos casos anterio-

130
Minas Gerais, 7 de novembro de 1918, p. 5.
131
Minas Gerais, 11 e 12 de novembro de 1918, p2.
132
Veja ainda; PICKSTONE, 1999:125-148.
133
Noção semelhante é trabalhada por Charles Rosenberg para os Estados Unidos
(ROSENBERG, 1987).

191

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 191 19/6/2008, 23:40


res, mas porque contribuíam para que ela se expandisse, permanecendo
por mais tempo como uma ameaça à cidade (DELUMEAU, 1996:138-
144).134 Era difundida a noção de que as condições de vida da pobreza
eram fator que debilitava o organismo, tornando-a por isso mais vulnerá-
vel às doenças. Como veremos no próximo capítulo, a extrema fragilida-
de física, decorrente de moléstias pré-existentes, assim como das condi-
ções miseráveis de existência, era uma das justificativas apresentadas
pelo Dr. Cícero Ferreira para o número de óbitos verificados no hospital
da Faculdade de Medicina.135 Além disso, os pobres eram vistos como
refratários à hospitalização, partilhando ainda o hábito de não recorre-
rem aos médicos, comportamentos que numa situação como aquela re-
presentavam uma ameaça, uma vez que ocultavam os focos da moléstia,
impedindo a ação das autoridades136. É intrigante a forma como a maté-
ria abaixo relatava a ação dos grupos envolvidos no socorro aos
espanholados pobres em Belo Horizonte – uma missão de captura:
“[As] diversas associações, notadamente, as Damas de Caridade, das
Cruzes Vermelhas e as Conferências de S. Vicente de Paulo (...) vão por
toda à parte a procura dos doentes necessitados (...) Numa verdadeira
batida pelos lares pobres (...).”137

Ainda no mês de novembro, as agitações operárias verificadas no


Rio de Janeiro potencializaram ainda mais a imagem de ameaça assumi-
da pela pobreza. Segundo avaliava a imprensa mineira, o desequilíbrio

134
Para a gripe em São Paulo, cf.: BERTUCCI, 2002:120-121.
135
Minas Gerais, 8 de novembro de 1918, p. 1.
136
Em relatório apresentado no ano 1913, o diretor do Hospital de Isolamento
informava que o baixo movimento naquela instituição devia-se à “repugnância”
existente entre a população em hospitalizar qualquer pessoa. ESTADO DE MINAS
GERAIS. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Américo, Ferreira Lopes, Secretário
de Estado de Negócios do Interior..., 1913, p. 31. Em novembro de 1918, o Minas
Gerais informava que a epidemia continuava a alastrar-se nos bairros pobres, e que
as estatísticas, baseadas em notificações, não refletiam a realidade, uma vez perdu-
rar entre as camadas inferiores da sociedade o “hábito” de não recorrer a médicos.
Minas Gerais, 11 e 12 de novembro de 1918, p. 2.
137
Minas Gerais, 13 de novembro de 1918, p. 2 (grifo nosso).
138
Minas Gerais, 21 de novembro de 1918, p. 1

192

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 192 19/6/2008, 23:40


econômico gerado pela guerra havia imposto às classes menos favorecidas
uma situação de “angústia penosíssima”. A pandemia de influenza, com
seu caráter ubíquo e fulminante, teria agravado sobremodo sua já precá-
ria situação. Em vista disso, podia-se compreender “perfeitamente o alto
grau de receptividade para as sugestões anarquistas existentes nessas
massas populares abatidas pela miséria”.138 Como se vê, a situação de
crise econômica aliada à exploração social e às conseqüências produzi-
das pela epidemia eram percebidas então como mistura explosiva, po-
dendo resultar em tumulto e revolta.
Esse medo era procedente, refletindo um dos temores provocados
pelas devastadoras experiências epidêmicas: os distúrbios populares. Como
revela a historiografia das epidemias, o impacto social produzido por
esses eventos, cujos efeitos mais desoladores são sentidos entre as cama-
das desfavorecidas da população, é um elemento estimulador das ten-
sões sociais. Na Europa, segundo Richard Evans, as epidemias de cólera
foram seguidas de diversos tumultos, que tinham o Estado e a sua buro-
cracia entre seus objetos de agressão, responsabilizados quer pela doen-
ça como pela situação de penúria em que viviam.139 O receio de ações
dessa natureza ajudaria a explicar medidas como o tabelamento de pre-
ços ou a suspensão de normas restritivas, como as quarentenas. No en-
tanto, essas novas medidas sempre geravam outros descontentes.
Quando, em meados de novembro, a imprensa começava a notici-
ar que a pandemia parecia dar sinais de declínio, a pobreza ainda conti-
nuava presa fácil da moléstia. Um decréscimo no número de notificações
e óbitos na área central da cidade era motivo de alvíssaras. Porém, nos
bairros pobres da capital a situação permanecia a mesma e a “preocupa-
ção máxima” das autoridades sanitárias era impedir que a peste se pro-
pagasse “desabaladamente (...) onde os conselhos higiênicos não podem

139
Richard Evans discorda da proposição de que as epidemias de cólera tenham
tido papel fundamental nas revoluções políticas e sociais ocorridas no continente
europeu no correr do século XIX. Também critica a perspectiva que analisa os
impactos da moléstia como um “teste de coesão social”, de cooperação entre dife-
rentes estratos sociais. Porém, não questiona a existência de diversos distúrbios
como conseqüência da moléstia (EVANS, 1987:243-244, 367, 477 e 1999:152-
153, 157-162). Sobre os tumultos em tempos de epidemia ver também: SNOWDEN,
1991; BOURDELAIS, 1987:222-225; VINCENT, 1988:54-55.

193

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 193 19/6/2008, 23:40


ser observados com rigor, devido ao desconforto das habitações e à falta
de recursos da população”.140
Nos dias que se seguiram, reafirmavam-se os sinais do declínio. O
movimento nas farmácias diminuía de modo sensível, assim como o nú-
mero de pedidos de socorro dirigidos à Diretoria de Higiene e às associ-
ações de assistência. O obituário ainda continuava elevado, o que era
atribuído à disseminação da moléstia e a gravidade de alguns casos,
especialmente aqueles nos quais se verificava uma reincidência ou recaida,
justificadas pelo fato das vítimas não haverem observado as recomenda-
ções da Diretoria de Higiene. Outra explicação era a existência dos casos
“rebeldes” ao tratamento, isto é, as chamadas “formas complicadas” da
doença, ou, ainda, pelo estado de indigência e “depauperamento orgâni-
co” de muitos enfermos – especialmente os pobres – que, nas palavras
de Cícero Ferreira, ao começarem o tratamento já apresentavam “extre-
ma miséria fisiológica”.141
Em 20 de novembro, noticiava-se um pequeno recrudescimento
da epidemia, que parecia atingir especialmente a área central da cidade.
Alguns casos novos foram notificados, mas o fato era tomado como natu-
ral, não devendo, portanto, impressionar a população. A explicação mé-
dica apontava para aqueles que haviam resistido à primeira investida da
influenza, e que, pela continuação dos focos, acabaram sucumbindo so-
mente naquele momento. Contudo, eram casos simples, de evolução rá-
pida, e terminando sempre pela cura do doente. Voltava-se então ao
discurso da benignidade da moléstia, que, mesmo tendo atacado, segun-
do projeções da imprensa, mais de 15 mil pessoas na capital mineira, era
novamente considerado “um fato que não sofre contestação”.
No último terço de novembro, alguns postos de socorro já estavam
sem trabalho. Em 24 do mesmo mês, era fechado o hospital da Faculda-
de de Medicina e esperava-se que a doença deixasse a cidade em breves
dias. Defendia-se, porém, a permanência, por mais algum tempo, da atu-

140
Diário de Minas, 13 de novembro de 1918, p. 1. Certamente, como veremos no
próximo capítulo, a observância dos conselhos da Diretoria de Higiene não surti-
ram muitos efeitos diante da natureza viral da influenza.
141
Cf.: ESTADO DE MINAS GERAIS. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Secretá-
rio do Interior..., 1919, p. 18.

194

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 194 19/6/2008, 23:40


ação das associações de caridade no atendimento aos pobres. Afinal, eram
pessoas que viviam exclusivamente do seu trabalho diário e que, colhidas
pela epidemia muitas vezes com toda a família, ficavam em “situação
precaríssima”, por não disporem de nenhum recurso. Cortar aquele auxí-
lio em plena convalescença podia ter conseqüências desastrosas, “obri-
gando-os a penoso esforço para o qual os seus organismos ainda não estão
preparados”.142 Por isso, apelava-se para a continuidade da contribuição
de toda população, a fim de manter-se obra tão meritória e necessária. No
início de dezembro, diante da solicitação de muitos indigentes convales-
centes para a continuação do serviço de distribuição de alimentos, os
vicentinos se viram forçados a reabrir alguns dos seus postos.143
E a pobreza ainda seria lembrada durante todo mês de dezembro.
Era a campanha pelo “Natal dos Pobres”, evento que naquele 1918
deixaria expostas as marcas da pandemia:
“O Natal dos Pobres é uma dessas festas cujo seu nome é bastante para
em todos nós despertar profundos sentimentos de simpatia. (...) E se em
tempos normais não há quem se recuse a depositar (...) uma esmola (...),
com mais forte razão agora, que a gripe dizimou impiedosamente e com
grande predileção aqueles em cujos lares o pão já é escasso, é que a
sociedade deve amparar a feliz idéia de ser feita este ano, com maior
brilho e mais afã, essa festa da caridade.”144

Se a terrível experiência da gripe espanhola havia contribuído para


unir a população em torno da assistência e do amparo àqueles enfermos
mais necessitados, como afirmava o discurso oficial, serviu ainda mais
para evidenciar as diferenças e a exclusão social no interior da proclama-
da “cidade salubre”. Apesar dos cuidados e preocupações com o sanea-
mento e a higiene, expressos desde o seu planejamento, e do imaginário
construído sobre a salubridade de Belo Horizonte, a capital mineira ja-
mais os havia realizado de forma efetiva para todos os seus moradores.
Como revelou a epidemia, parte considerável de sua população tinha que
lutar cotidianamente contra a miséria, evidenciada na exploração e na

142
Minas Gerais, 22 de novembro de 1918, p. 2.
143
Minas Gerais, 4 de dezembro de 1918, p. 3.
144
Minas Gerais, 6 de dezembro de 1918, p. 3.

195

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 195 19/6/2008, 23:40


falta de perspectiva econômica, como também na ausência do usufruto
das comodidades e do conforto da cidade moderna.
Também podemos afirmar que foi exatamente essa camada da
população, excluída daquela “modernidade”, que sofreu de forma mais
evidente as conseqüências da doença. Foi entre os chamados “desampa-
rados da sorte” que se repetiram de modo recorrente as cenas de dor e
desconsolo descritas nos jornais, negando também para Belo Horizonte a
visão democrática da pandemia, definida como uma “ilusão” por Bertolli
Filho ao analisar a pandemia na cidade de São Paulo (BERTOLLI FI-
LHO, 1986:119-125).

A cultura revelada pelo impacto da espanhola

Além da mobilização da comunidade em busca do socorro mate-


rial de suas vítimas, as doenças epidêmicas também mobilizam um am-
plo repertório de representações e atitudes, que ajudam a iluminar uma
outra dimensão da vida humana: o imaginário social. O medo e a angús-
tia provocados pela ameaça de ruptura da própria existência e a insufici-
ência revelada pelas explicações e ações das autoridades diante de mo-
léstias dessa natureza levam a população a acionar outros meios e
intermediários para entender, explicar e fazer frente a essa ameaça. Pre-
ces, procissões, amuletos, superstições, fenômenos naturais, curandei-
ros, ervas e outras práticas curativas tradicionais que atravessavam gera-
ções são, assim, elementos sempre presentes na narrativa das grandes
epidemias.
Na capital mineira, como de resto em outras cidades do país, a
religião transformou-se em apoio fundamental para a população, ajudan-
do a suportar as perdas e transformações impostas pela pandemia e ace-
nando com uma possibilidade de intervir no curso daquele flagelo que
parecia fora do alcance dos homens. Rezas, procissões e invocações aos
santos revelam que a religião continuava exercendo um papel importante
na intermediação entre os homens e as doenças, independente das con-
quistas e das explicações da ciência.
A percepção religiosa das doenças atribui sua existência a uma
vontade divina, como resposta a comportamentos e atitudes que transgri-

196

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 196 19/6/2008, 23:40


dem as normas e os desejos dos deuses. Assim, a doença é uma punição,
um castigo que exige expiação e desagravo. Como mostra François Lebrun,
aos olhos da Igreja as doenças se combatiam pelas preces e penitências,
sendo a cura do corpo identificada com a purificação dos pecados
(LEBRUN, 1995:113). Na capital mineira, nos dias 23, 24 e 25 outu-
bro, foram feitas preces públicas para a cessação da epidemia na Matriz
de São José, com a realização da Via Sacra, como havia sugerido o
cardeal brasileiro D. Joaquim Arcoverde. Em meados de novembro, o
suplemento especial do “Boletim Eclesiástico” da arquidiocese de Mariana
determinava que os sacerdotes observassem orações especiais durante
os ritos, além de recomendar que fossem realizadas preces públicas, “na
forma do ritual romano”, para “implorar da misericórdia divina” o fim
do flagelo provocado pela epidemia145.
Os santos eram verdadeiros intermediários nessas celebrações de
desagravo e, segundo Lebrun, havia aqueles especialistas, com poderes
de intervir sobre doenças específicas: São Lourenço para as queimadu-
ras; São Vicente para as entranhas; Santo Apolônio para os dentes; Santa
Odile, São Sebastião e São Roque eram os santos antipestilenciais. Essa
especialização guardava relação com circunstâncias da vida particular de
cada santo. No caso de São Sebastião, por exemplo, porque as feridas
provocadas pelas flechas assemelhavam-se aos bubões provocados pela
peste. Para outros, a habilidade nascia de uma simples associação entre
seu nome e aquele que designava a doença; Santa Clara, para os olhos,
São Aurélio, para as orelhas. A Virgem, por outro lado, era uma generalista,
sendo invocada para qualquer mal ou ameaça (LEBRUN, 1995:113-
114). Delumeau aponta que a inquietude e o fervor popular acrescentou,
ao lado de São Roque e São Sebastião, cerca de mais cinqüenta santos
antipestilenciais, “de menor envergadura, mas particularmente venera-
dos aqui ou ali” (DELUMEAU, 1996:149).
Durante a pandemia de influenza, a população mineira também
apelaria à intercessão dos santos. A Matriz de São José anunciava para o
dia 26 de outubro uma procissão de penitência em honra a São Geraldo

145
As orações indicadas eram as mesmas propostas pelo cardeal do Rio de Janeiro,
Pro perigrinantibus e Pro vitanda mortalitate del tempore pestilentiae. Minas Gerais,
14 de novembro de 1918, p. 6.

197

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 197 19/6/2008, 23:40


e São Sebastião. Os habitantes do bairro do Quartel convidavam todos os
interessados a participarem da missa que teria lugar naquele mesmo dia,
a fim de se colocarem sob a proteção e o amparo “valioso” de São
Sebastião. Ao final da tarde, seria realizada uma procissão em honra ao
santo para, por intermédio dele, conseguir-se de Deus a preservação
“contra o horrível mal da epidemia de influenza” que, de modo
“assombroso”, percorria o país.146 No dia seguinte, era a vez da missa
que a União dos Moços Católicos havia mandado celebrar “implorando a
proteção de São Sebastião” a fim de preservar a cidade do “flagelo da
peste”.147 Durante todo o mês de novembro, as preces e ladainhas pelo
fim da pandemia continuaram constantes. Em meados do mesmo mês, a
paróquia do bairro do Quartel programava uma solene procissão em
louvor a Santa Efigênia, São Sebastião, São Roque e São Benedito, tão
logo se extinguisse a moléstia.
Porém, se a população encontrava conforto espiritual nas rezas e
procissões, também se arriscava a encontrar a gripe. Afinal, como outros
eventos, essas reuniões representavam uma ameaça para a disseminação
da doença. A crença de que aquele momento de contrição funcionasse
como um escudo de proteção contra o mal, ou que o seu sentido de
comunhão com o sagrado pudesse minimizar quaisquer outras conseqü-
ências dele advindas – como da comunhão entre doentes e sãos – expli-
cavam a concorrência popular a essas preces. Qualquer proposta que
ajudasse a combater ou afastar o mal parecia bem vinda, fosse ela
justificada pela racionalidade da ciência ou pela fé religiosa. Assim, no
dia de finados, a população seguiu os conselhos da Diretoria de Higiene,
evitando a tradicional romaria ao cemitério da cidade a fim de impedir a
propagação da moléstia, no entanto, marcou presença nas diversas mis-
sas celebradas nas igrejas e capelas da cidade que, segundo o Diário de
Minas, foram “muito concorridas”.148

146
Minas Gerais, 23 de outubro, p. 4 e 24 de outubro de 1918, p. 3.
147
Minas Gerais, 26 de outubro de 1918, p. 4
148
Diário de Minas, 5 de novembro de 1918, p. 1. Vale lembrar que, assim como
as promessas aos santos, outra prática comum ao catolicismo era pedir a interces-
são das almas para alcançar determinadas graças.

198

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 198 19/6/2008, 23:40


As fontes disponíveis nada afirmam sobre outras formas de socor-
ro – espirituais ou não – durante os dias da pandemia, mas deixam
sugestões. Quando a imprensa denunciava que um dos problemas en-
frentados pela Diretoria de Higiene na capital mineira era o “hábito” que
“perdurava” entre as camadas inferiores da sociedade em não recorrer a
médicos, nem mesmo nas épocas normais, deixa no ar a pergunta: a
quem ou a quê essas pessoas recorriam quando precisavam de cuidados
ligados à saúde? Com certeza, a resposta estaria em outros hábitos e
práticas que, como aquele, também deviam perdurar: curandeiros, ben-
zedeiras, amuletos, mezinhas e antigas práticas de cura caseiras, entre
outros. Como mostra Betânia Figueiredo, o hábito de recorrer ao médico
não existia de modo generalizado, quer em Minas ou no Brasil, durante
o século XIX. Entre outras justificativas para esse fato, estavam a persis-
tência de outras práticas populares, a ausência de profissionais, o preço
dos serviços especializados, a desconfiança popular em relação ao saber
dos médicos e as limitações desse conhecimento acadêmico. Assim, os
principais agentes e intermediários da cura eram boticários, práticos,
curadores, benzedeiras, raizeiros e feiticeiros (FIGUEIREDO, 2002).
A persistência dessas práticas pode ser comprovada através dos
processos criminais movidos contra mezinheiros, curandeiros e charlatães,
além de algumas notícias que eram divulgadas pela própria imprensa
(MARQUES, 2003). Em janeiro de 1919, um inflamado artigo do jornal
O Festim clamava às autoridades policiais da capital uma rigorosa
sindicância no sentido de apurar-se os fatos ocorridos em um centro
espírita situado à rua dos Carijós, região central da cidade. Segundo dizia
o artigo, um senhor, “vindo em busca de saúde, teve a infelicidade de
procurar o ridículo pagode onde se praticam sessões espíritas. Ali, o
infeliz (...) envolvido nas trevas da noite, emaranhado na ignorância dos
que o ladeavam, sucumbiu misteriosamente”.149 Mas, se o autor do arti-
go considerava o espiritismo uma “seita malsinada e diabólica”, não pa-
recia ser essa a opinião de toda a gente, como deixa supor o malogrado
doente e os outros “ignorantes” que o rodeavam.
Ainda na primeira metade de 1919, a imprensa mineira publica-
va anúncio do Dr. Moura Lacerda informando ter estabelecido seu con-

149
O Festim, 26 de janeiro de 1919, p. 1.

199

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 199 19/6/2008, 23:40


sultório na cidade e prometendo a cura de diversas doenças pelo recurso
à medicina naturista e a auto-cura física. Denunciado por exercício ilegal
da medicina pela Diretoria de Higiene, Moura Lacerda foi advertido pela
justiça mineira e acabou sendo preso por continuar a prática ilícita, que
lhe rendia contratos de tratamento na importância de um a dois contos
de reis, como apontavam as investigações da polícia mineira.150 Em no-
vembro de 1917, o jornal A Nota publicava anúncio de Mozart Dias
Teixeira, que se intitulava “professor de Ciências Ocultas – “Hermetismo,
Magnetismo e Psicografia”. O “conhecido e reputado” professor era en-
contrado à Rua do Ramal número 773, onde dava consultas das 7 às 10
horas da manhã, nas segundas, quartas e sextas-feiras.151 Considerando
esses dados, não nos parece absurdo afirmar que essas e outras práticas
de cura tenham sido acionadas pela população da capital mineira nos
dias de reinado da pandemia, ainda que não figurassem na memória
“oficial” preservada sobre a gripe.
O impacto da gripe fez dela “artigo de primeira”, assumindo, jun-
to com as notícias da guerra, o destaque dos jornais e povoando o imagi-
nário da cidade. Esse impacto pode ser avaliado nas mudanças operadas
em algumas seções da imprensa. As Notas Sociais do Minas Gerais, que
informavam sobre as festas, enlaces e outros eventos do gênero, resumi-
ram-se, durante a pandemia, a prantear o falecimento de conhecidas
figuras da sociedade. No Diário de Minas, a seção Crônica Social deixava
em evidência a relação particular entre o gênero literário e a experiência
cotidiana da cidade:
“De que há de tratar hoje esta secção, senão da influenza hespanhola? É
ela que está na ordem do dia, pelas desordens que tem provocado no Rio
e que tenta provocar nessa capital, onde já fez o seu aparecimento (...).
“A hespanhola foi o assunto forçado de todas as rodas ontem, como na
véspera. Nem o boato da abdicação do Kaiser conseguiu arredá-lo do
primeiro plano entre os mais palpitantes assuntos”.152

150
ESTADO DE MINAS GERAIS. Arquivo de Processos do Fórum Lafayette.
Maço 25. 1919.
151
A Nota, 6 de novembro de 1917.
152
Diário de Minas, 18 de outubro de 1918, p. 2.

200

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 200 19/6/2008, 23:40


Boatos diversos circulavam pela cidade e as folhas diárias alimen-
tavam o imaginário popular com histórias verdadeiramente macabras.
Do Rio de Janeiro, chegavam notícias de que um homem, querendo fugir
da epidemia, havia lançado mão de uma navalha ferindo-se mortalmente
no pescoço, enquanto o árabe Gaby Moisés, sentindo-se atacado pela
espanhola, embriagou-se de parati e limão e, chegando em casa, ingeriu
forte dose de remédios vindo a falecer pouco depois. Em Goiás, a esposa
do conhecido clínico Jayme Carvalho suicidou-se após o falecimento do
marido. Em São Paulo, um velho “gripado e demente” teve a cabeça
decepada pela mulher e o filho, porque acreditavam estar ele possuído
pelo demônio.153 Ao lado dessas notas, a imprensa insistia em divulgar
que pessoas “autorizadas” afirmavam não existir justificativa para o pa-
vor que tomava conta dos espíritos. Mas, quem não havia de assustar-se
diante do relato de tragédias de toda sorte?
Ao lado das explicações emanadas pelo discurso médico, que se-
rão tratadas no próximo capítulo, outras conjecturas foram levantadas
para explicar aquela catástrofe. Em finais de outubro, o cronista Abílio
Barreto afirmava, pelas páginas do Diário de Minas, que aquela formidá-
vel desgraça dava a pensar a toda gente e trazia ao espírito de cada
pessoa as mais “esdrúxulas idéias”. Enumerando as formas aventadas
para explicar a epidemia, dizia haver quem acreditasse estar-se vivendo
o fim do mundo, sob o domínio da peste, da fome e da guerra “como
prediziam nossos avós”. Outros viam a doença como o “Apocalipse” e a
humanidade recebendo o merecido castigo pelos inumeráveis erros, a
falta de religião e o materialismo. Havia ainda quem justificasse as des-
graças vividas como conseqüências naturais de mudanças climáticas, que
teriam alterado o funcionamento da vida universal.154
Bastante popularidade alcançou a versão de que a moléstia era
responsabilidade da Alemanha, produto da “química diabólica da Kultur”.
Segundo a versão corrente em muitas cidades, embarcações alemãs teri-
am levado em seus porões “conservados quimicamente, viveiros de mi-

153
Diário de Minas, 22 de outubro de 1918, p. 2; Minas Gerais,17 de outubro, p.
4 e 11 e 12 de novembro de 1918, p. 2 e 3; Diário de Minas, 7 de dezembro de
1918, p. 2.
154
Diário de Minas, 29 de outubro de 1918, p. 2.

201

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 201 19/6/2008, 23:40


cróbios”, espalhados depois por intermédio de seus espiões em diversas
regiões. Após repetir o que havia lido sobre a hipótese germânica e con-
siderando todos os prodígios que já havia realizado a ciência e o século
XX, Abílio Barreto concluía: “Assim raciocinando, não creio nem des-
creio a respeito dessa macabra suposição (...). Por isso mando a interro-
gação para frente: Quem sabe?”.155
Outra explicação surgida em fins de dezembro relacionava a espa-
nhola com o movimento dos cometas. Conforme artigo assinado pelo Sr.
Luiz Pessanha, muitos acontecimentos de “notória e extraordinária rele-
vância” coincidiam ordinariamente com a passagem desses astros. Em
seu texto, apresentava uma nova conjectura “como contribuição a ser
adicionada à soma já não pequena das que têm sido até agora aventadas
em face do tríplice flagelo: a guerra, a fome e a peste”. Segundo dizia,
esses três elementos perturbadores da ordem social atingiram sua máxi-
ma intensidade a partir do último terço de 1918, coincidindo precisa-
mente com a passagem de três cometas periódicos: o Faye, o Encke e o
Biela. Para confirmar suas suposições, Pessanha apresentava vários cál-
culos sobre aparições anteriores, mostrando como os três astros traça-
vam voltas completas em suas órbitas naquele fatídico ano.156 Explica-
ções como essa nos remetem a velhas crenças que associavam a aparição
dos cometas com o anúncio de castigos divinos ou o próprio apocalipse,
e ainda, com antigas teorias médicas que atribuíam as doenças à influên-
cia de eventos celestes (DELUMEAU, 1996:112).157
Se o imaginário popular era estimulado com as mais variadas ex-
plicações sobre a origem da influenza, o era também quanto às possibili-
dades de evitá-la ou mesmo curá-la. Além de vacinas, purgantes, tônicos
e outros remédios da alopatia, uma grande variedade de plantas medici-
nais freqüentou o repertório da cura da epidemia. Flor de mamão ma-
cho, cipó chumbo, camará de lixa, melão de São Caetano, macaé, raiz de
baroa, assa-peixe, noz-moscada, fel da terra, mulungu e outras tantas de

155
Diário de Minas, 29 de outubro de 1918, p. 2.
156
Diário de Minas, 22 de dezembro de 1918, p. 2.
157
Como veremos no próximo capítulo, uma das explicações levantadas para o
termo “influenza” estava relacionado à idéia de que a moléstia era devida a influ-
ência celeste.

202

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 202 19/6/2008, 23:40


perder-se a conta, eram indicadas em artigos que discorriam sobre a
terapêutica aplicada por diversos naturalistas.158 As bebidas alcoólicas
eram consideradas preservativos privilegiados e muitos usavam bolsi-
nhas de naftalina dependuradas no pescoço (MIRAGLIA, 1990:178).
Do estrangeiro vinha outra indicação valiosa: suco de cebola, sorvido
pelo nariz, curava quase que instantaneamente a influenza, fosse “russa,
espanhola, italiana ou alemã, pouco importa”. Era o que atestava aos
oitenta anos a senhora Hetty Green, que dizia dever a elas a saúde que
ostentava, conforme lia-se no Mercury de France.159
Os comportamentos sociais também eram alvo de constante vigi-
lância, revelando um imaginário sobre as doenças especialmente alimen-
tado pela popularização da “teoria dos germes”. Nos meses de novem-
bro e dezembro, um arraigado costume seria alvo de calorosa campanha
do Diário de Minas: o aperto de mão. Conforme publicava o jornal, na
Argentina, os responsáveis pela saúde pública tinham condenado o velho
hábito como veículo de contágio perigoso, indicando sua supressão como
meio profilático para se evitar a influenza. Dizendo ser o Brasil a “terra
clássica das imitações”, o jornal sugeria que a população seguisse o exem-
plo oportuno e salutar do país vizinho. Duas poderosas justificativas eram
apresentadas em favor da tese defendida: a ciência e o progresso. Por
um lado, dizia-se que cientistas “de valor” já tinham provado que aquele
meio de saudação facilitava a propagação de moléstias “as mais conde-
náveis”. Completando o argumento, informava que, independente do
perigo, o aperto de mão era uma “complicação inútil e uma perda de
tempo no meio da agitação e da intensidade da vida moderna”, sendo
por isso um costume roceiro, revelando absoluta falta de distinção e
atraso. Sugeria então como novo hábito de cortesia a ser adotado a con-
tinência militar, “tão elegante (...) mais simples e rápida”.160
Além de revelar a persistência de velhas noções e comportamen-
tos relativos à doença, e a apropriação das novas descobertas realizadas

158
Minas Gerais, 21 e 22 de outubro de 1918, p. 4; 25 de outubro de 1918, p. 6
159
Minas Gerais, 7 de novembro de 1918, p. 5. Cf.: Diário de Minas, 12 de
novembro de 1918, p. 2.
160
Ver: Diário de Minas, 6 de novembro, p. 1; 13 de novembro, p. 2; 1° de
dezembro, p. 2; e 8 de dezembro de 1918, p. 1.

203

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 203 19/6/2008, 23:40


no campo da medicina, a pandemia de 1918 também estimulou uma
cultura sobre a gripe de gosto muitas vezes discutível e interesses pouco
louváveis. No dia 6 de novembro, o Diário de Minas publicava na seção
Crônica Social um soneto de Benedito Lopes, escrito no leito onde se
recuperava da espanhola. A moléstia era apresentada como algo satânico
e maldito, um mistério que varria o mundo inteiro espalhando o luto e a
desolação. Dias depois, a mesma seção era ocupada por uma prosa açu-
carada, mas seu autor negava à influenza qualquer apelo romântico, como
aquele que era associado a outras doenças, entre elas a tuberculose.161
Havia também notícias de que no Rio preparava-se uma revista
para teatro, “metendo a ridículo” a epidemia de gripe espanhola. Indig-
nado, o cronista maldizia infeliz idéia de querer fazer rir sobre experiên-
cia tão desoladora e cruel como fora a epidemia. Classificava a iniciativa
como “borracheira literária” e seu idealizador como um “escrivinhador
qualquer”, um “literato de quiosques”, e finalizava afirmando que “como
de asa fétida nenhum fabricante de perfumaria seria capaz de preparar
um fino extrato para lenços, também de assunto tão triste e pungente
nem um escritor de raça (...) poderia compor uma revista de pilhéria”, a
menos que fosse levada por pataqueiros e mambembes, “mestres em
puxar o freio às bestas de carroça”.162
Se a revista renderia ou não a seu autor alguns parcos mil-réis, não
ficamos sabendo, mas outros tiveram a mesma idéia de tirar proveito da
doença. Na capital mineira, mais de uma casa comercial usou a epidemia
como mote para propagandear suas mercadorias. Como já mencionado,
o Beliche Mineiro aproveitava a ameaça do aprofundamento da carestia
com as desordens causadas pela gripe, para vender seus produtos de
horticultura. Outro conhecido estabelecimento, que tinha por hábito as-
sociar seu comércio aos assuntos em evidência, fazia publicar a seguinte
peça:

161
Diário de Minas, 6 de novembro, p. 2, e 13 de dezembro de 1918, p. 2. Sobre
o apelo literário da tuberculose, David Steel afirma que, no século XIX, a doença
revestia-se de um “glamour mórbido” (STEEL, 1981). Para o mesmo assunto, cf.:
SONTAG, 2002.
162
Diário de Minas, 5 de novembro de 1918, p. 1.

204

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 204 19/6/2008, 23:40


“Influenza Espanhola.
Para Evitar o Contágio!
Está provado e cientificamente verificado que o melhor preservativo para
a propagação da misteriosa epidemia é comprar e usar os magníficos
calçados que a Bota Mineira está vendendo por preços de verdadeiro
reclame.
Evitam a epidemia e saram a algibeira.
Rua dos Caetés, n.380."163

Analisando os reclames publicitários publicados durante a epide-


mia de espanhola, Janete Abrão e Liane Bertucci defendem uma distin-
ção entre anúncios de medicamentos e de outros produtos, como cigar-
ros e chocolates, uma vez que, embora ambos se caracterizem pelo apelo
ao lucro, os primeiros seriam “indicativos dos conhecimentos científicos
e tecnológicos da época” (ABRÃO, 1998:23-24, e BERTUCCI,
2002:167). A nosso ver, apesar do marcado oportunismo comercial re-
velado no segundo tipo de anúncio, muitos deles não deixam de remeter,
mesmo que de forma oblíqua, a esses mesmos conhecimentos e
tecnologias. Evidentemente, os calçados da Bota Mineira não iriam pre-
venir a influenza, mas seu reclame apropriava-se da proposição de que o
hábito de calçar os pés poderia surtir efeito para muitas doenças. Isso
pode ser percebido de forma ainda mais clara no anúncio do Zampironi
– apresentado como um eliminador de mosquitos e “ótimo desinfectante
das habitações” – que dizia estar “definitivamente comprovado” serem
os mosquitos os maiores transmissores da influenza.164 A mesma obser-
vação é válida também para mercadorias como o Filtro Fiel ou os papéis
cata-moscas, apresentados no trabalho de Bertolli Filho (BERTOLLI
FILHO, 1986:163-168).

163
Minas Gerais, 6 de novembro de 1918, p15.
164
Minas Gerais, 21 e 22 de outubro de 1918.

205

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 205 19/6/2008, 23:40


Fonte: Minas Gerais, 26 de outubro de 1918, p.4 e 23 de outubro de 1918,
p.8.

Como mostra Nancy Tomes, foram vários os produtos que utiliza-


ram os conhecimentos divulgados pela “ciência” da higiene como apelo
comercial nas últimas décadas do século XIX. Certamente, muitos deles
distorciam as afirmações científicas e exageravam nos perigos cotidianos
e nos benefícios oferecidos pelo uso de seus produtos. Nancy Tomes
também revela que o sucesso da campanha popular levada a cabo pelos
sanitaristas teria como corolário a perda do controle estrito de seu con-
teúdo científico (TOMES, 1990 e 2002). Seguindo essas proposições da
autora, acreditamos poder dizer que as imbricações entre esse tipo de
publicidade e os avanços da ciência e da tecnologia são complexas, reve-
lando algumas formas pelas quais esses avanços foram incorporados pela
sociedade, apontando para a popularização dos conhecimentos científi-
cos e tecnológicos.
Mas, não foi somente o comércio que buscou tirar proveito do
flagelo da influenza. Se, como diz o ditado, “a ocasião faz o ladrão”, ainda
durante a epidemia houve quem propusesse processar o Estado em fun-
ção dos prejuízos por ela causados. Conforme notícia divulgada pelo Diá-
rio de Minas, um bacharel carioca havia publicado nos diários daquela
cidade uma convocação aos negociantes para reclamarem uma indeniza-
ção, uma vez serem esmagadoras as provas da negligência oficial. Essa
atitude era criticada pela imprensa mineira, sendo atribuída à ausência de
espírito cívico entre os brasileiros, que viam o governo como entidade

206

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 206 19/6/2008, 23:40


abstrata, “coisa à parte e com fortuna própria”, de tal forma que, quando
alguém rouba ou dilapida o Estado, “não frauda a nação, mas o governo,
coisa muito diferente da nação, feita para isso mesmo, enriquecer os par-
ticulares, quando lhes acontece montarem guarda a ela”.165
Um grupo que acabaria beneficiado pela epidemia foi o dos estu-
dantes. A permanência da espanhola nos meses de outubro e novembro
de 1918 acabou tornando praticamente impossível a retomada das ativi-
dades letivas naquele ano. Como a pandemia era um problema nacional,
foi apresentado ao Congresso um projeto propondo a aprovação dos estu-
dantes segundo critérios específicos. Acatando a proposta, no dia 14 de
novembro o Presidente Delfim Moreira baixava decreto determinando a
“promoção à série imediatamente acima daquela em que se encontram
matriculados” os alunos dos grupos escolares que tivessem reunido ao
menos três pontos de média geral naquele ano.166
A comunidade acadêmica movimentava-se, pleiteando a mesma
promoção para os alunos dos cursos secundário e superior. Havia quem
considerasse que a concessão de promoção imediata deveria ser feita
apenas aos estudantes de medicina que comprovadamente tivessem pres-
tado serviços aos gripados. Um deputado mineiro defendia que a medida
fosse estendida aos demais estudantes, mas segundo critérios justos, de
forma a impedir que “graça igual” fosse concedida a alunos que não
freqüentassem as preleções ou participassem dos trabalhos escolares,
acrescentando que:
“Os excessos de tolerância e benevolência, em que é tão fértil o nosso
exagerado sentimentalismo, têm, condenavelmente, embaraçado a solu-
ção de nossos grandes problemas, como o da organização do ensino
público, de cujo definitivo e acertado norteamento tanto depende o futu-
ro do Brasil.”167

A imprensa criticava os rumos tomados pelo projeto original, mas


apesar de todas as condenações, o governo acabaria determinado a
promoção global dos alunos de todos os cursos superiores, além do direito

165
Diário de Minas, 27 de outubro de 1918, p. 1.
166
Minas Gerais, 17 de outubro de 1918, p. 5.
167
Minas Gerais, 6 de dezembro de 1918, p. 1 e 2.

207

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 207 19/6/2008, 23:40


de qualquer pessoa, estudante ou não, requerer a aprovação em até quatro
disciplinas.168 Em suas memórias, o ex-governador de Minas, Affonso
Silviano Brandão confessa que muitos aproveitaram aquela “dádiva insólita”
mesmo sem que freqüentassem escolas. Ele próprio, que financiava os
estudos que o habilitariam ao vestibular, também requereu seus certificados
eliminando as disciplinas nas quais se considerava menos apto. “Exames
por decreto, assim foi apelidado o ato” e, em vista das dificuldades
financeiras que sempre havia atravessado, afirmava: “(...) em verdade,
não fosse essa resolução governamental, repito, assombrosa, talvez não
estivesse eu aqui, agora, médico, a contar minhas estórias. Foi aquilo uma
coisa estranha somente acontecida no Brasil” (BRANDÃO, 1977:46-47).
A memória da influenza parece ter seguido de perto os passos de
seu reinado. Se a marcha da doença completava-se entre seis, oito ou dez
semanas, as lembranças que deixava também parecem ter tido vida cur-
ta. Na imprensa, onde se perseguia a notícia do dia, à medida que dimi-
nuíam as referências sobre a gripe, outras catástrofes tomavam a diantei-
ra da cena. Durante o mês de dezembro, as folhas mineiras davam
destaque ao “horrível acidente” acontecido no quilômetro 175 da Cen-
tral do Brasil, onde o noturno mineiro que se dirigia para a capital federal
descarrilou, incendiando-se em seguida sobre as águas do Paraíba. As
páginas do Diário de Minas informavam que o assunto do dia tem sido a
catástrofe da Central, “desde sábado nossa cidade não fala de outra
coisa, de manhã à noite.”169 Dias mais tarde, era Olavo Bilac, “o grande
morto de ontem”, que passava a mobilizar atenções.170 Em 1919 e 1920,
a lembrança da gripe surgira mais de uma vez como ameaça, para logo
mergulhar no esquecimento.171

168
A questão dos exames pode ser acompanhada pelo Diário de Minas durante o
mês de novembro, nos dias: 9, 13, 19, 21, 22, 23, e 17 de dezembro de 1918.
169
Diário de Minas, 10 de dezembro de 1918, p. 1. Cf.: Minas Gerais, 13 de
dezembro de 1918, p. 2; 14 de dezembro p.2; e 15 de dezembro, p. 2; Diário de
Minas, 8 de dezembro de 1918, p. 1; 9 de dezembro, p. 2; 11 de dezembro, p. 2;
13 de dezembro, p. 2
170
Minas Gerais, 29 de dezembro de 1918, p. 1
171
A Notícia, 14 de fevereiro de 1920, p. 4.

208

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 208 19/6/2008, 23:40


Para a memória individual e privada, as lembranças da pandemia
talvez tenham durado mais tempo. A perda de entes queridos, a orfanda-
de, a desestruturação do cotidiano e os dias difíceis vividos naquele final
de 1918, com certeza, alojaram-se na memória de muitos, acompanhan-
do-os por quase toda a vida.172 Mas essas memórias são mais difíceis de
se recuperar e não figuram entre boa parte dos testemunhos escolhidos
para serem preservados. Das poucas lembranças pessoais recuperadas
sobre aquele tempo, a gripe espanhola ocupa um lugar reduzido, como
de uma experiência ímpar, a qual se quer esquecer (BRANDÃO, 1977;
SALLES, 1997; CAIAFA FILHO, 1986; MIRAGLIA, 1990 e 1975;
MARTINS, 2000).
No soneto publicado pelo Diário de Minas no início de novembro,
Benedito Lopes vaticinava que espanhola teria dos homens a maldição
“por toda a vida, na mais escura página da História”.173 Concordando
com vários pesquisadores do tema, reafirmamos que, apesar de continu-
ar sendo uma das mais pungentes catástrofes de todo o século XX, a
pandemia de influenza de 1918 ficou praticamente esquecida em meio
às diversas histórias que se contaram de sua época.

172
Apesar da tentativa de encontrar depoentes que pudessem contribuir com o
levantamento de informações sobre a pandemia na cidade de Belo Horizonte,
praticamente todos afirmaram não ter recordações que pudessem auxiliar essa
pesquisa.
173
Diário de Minas, 6 de novembro de 1918, p. 2.

209

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 209 19/6/2008, 23:40


Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 210 19/6/2008, 23:40
CAPÍTULO 4

A medicina e a influenza

“E não nos sobraria o direito de embaraçar a marcha do flagelo


epidêmico, porque a gripe é uma moléstia infecciosa, de ex-
trema difusibilidade (...), apresentando-se freqüentemente sob
a forma epidêmica, ferindo quase que simultaneamente um
grande número de habitantes de uma mesma localidade, atra-
vessando em semanas um país e mesmo um continente intei-
ro; sua contagiosidade, que foi negada por alguns autores,
parece hoje admitida pela grande maioria dos observadores,
que acreditam que ela se efetua com uma rapidez de difusão
que não se encontra em outra moléstia. Uma vez introduzida
em uma localidade, a gripe pode propagar-se, não somente
pelo contágio direto, mas ainda pelo ar, pela água, pelos obje-
tos, pelos animais.” (Cícero Ferreira)1

Apesar dos quinze anos que separam a pandemia de 1918 e essa


declaração feita pelo Dr. Cícero Ferreira, então diretor de higiene da
capital mineira, logo após uma epidemia de influenza que havia grassado
na cidade no ano 1903, pouca coisa havia mudado no que se refere ao
conhecimento que a medicina tinha sobre a moléstia. Como veremos, as
afirmações de Cícero Ferreira quase não diferem das declarações que as
principais autoridades médicas fizeram sobre a espanhola de 1918.
O caráter contagioso e rápida generalização da doença eram dois
aspectos amplamente reconhecidos pela classe médica havia anos. Tal-
vez, a única distinção entre as opiniões expressas durante esses dois even-
tos esteja nos meios de propagação da moléstia enumerados por Cícero

1
ESTADO DE MINAS GERAIS. Relatório apresentado ao Conselho Deliberativo...,
1903, p. 40.

211

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 211 19/6/2008, 23:40


Ferreira. A suposição de que a transmissão da influenza se fizesse por
meio da água esteve ausente do repertório de explicações oferecido pelos
médicos em 1918. Em relação à possibilidade de sua transmissão por
intermédio de animais, a única referência encontra-se em uma entrevista
do Dr. Carlos Seidl ao Jornal do Comércio, ainda em setembro de 1918,
enumerando as correntes de opinião relativas à moléstia. Ente elas, apon-
tava aqueles que acreditavam ser a doença verificada na Espanha uma
manifestação da febre dos três dias – também chamada influenza estival –
causada por um agente invisível e filtrável, transmitido pela fêmea do
mosquito da espécie Phlebotomus papatassi (SEIDL, 1918:455-456).
Ainda segundo as declarações de Cícero Ferreira, a possibilidade
de interpor qualquer medida preventiva contra a influenza era especial-
mente inviabilizada pelo seu caráter proteiforme – que se apresenta sob
formas variadas – determinando a ausência de uma sintomatologia pró-
pria. Essa característica dificultava a percepção e a identificação clara
dos primeiros casos da moléstia, quer pelos médicos como pela popula-
ção em geral. Quando o alarme era dado e as autoridades começavam a
tomar providências, a influenza já estava amplamente disseminada entre
a população.2
Conforme veremos adiante, o problema da identificação da influenza
seria um dos elementos que ajudariam a explicar o fato das autoridades
sanitárias brasileiras não terem agido imediatamente para tentar impedir
a invasão do país pela moléstia. Se a censura e os interesses estratégicos
determinados pela guerra impediam informações mais detalhadas sobre
a doença, que começava a dizimar as tropas e a população civil na Euro-
pa, o escasso conhecimento sobre a natureza da influenza permanecia
praticamente o mesmo, deixando de mãos atadas os responsáveis pela
defesa sanitária. O insólito daquela manifestação da moléstia faria com
que as dúvidas sobre sua verdadeira natureza ainda perturbassem médi-
cos e cientistas mesmo muito tempo depois de passado o tormento.3

2
ESTADO DE MINAS GERAIS. Relatório apresentado ao Conselho..., 1903, p.
40-41.
3
Como mostra Gina Kolata, desde 1930 até a década de 1990, vários cientistas
ainda buscavam determinar o que havia feito da pandemia de influenza de 1918
uma manifestação tão mortal (KOLATA, 2000).

212

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 212 19/6/2008, 23:40


Da mesma forma como o reconhecimento da identidade da molés-
tia dificultava a ação dos responsáveis pela defesa sanitária, a ignorância
sobre seu agente patogênico e sua forma de disseminação e atuação eram
outros elementos determinantes para a ausência de medidas profiláticas
mais efetivas. A pandemia de influenza espanhola teve lugar em um mo-
mento em que a comunidade científica e a sociedade em geral comemora-
vam os triunfos alcançados pelas descobertas bacteriológicas. O pressu-
posto da bacteriologia de que cada doença tinha uma causa específica, e
que o seu estabelecimento permitiria o desenvolvimento de estratégias
mais adequadas para o seu combate, levava à crença que, em breve tem-
po, a humanidade se veria protegida de qualquer moléstia, especialmente
aquelas de caráter contagioso (ROSEN, 1994; PORTER, 1998).
Porém, o vírus responsável pela influenza só seria conhecido na
década de 30. Sua alta capacidade de mutação torna seu controle e
profilaxia, ainda hoje, uma empresa complicada e nem sempre exitosa.
Dessa forma, a influenza espanhola seria percebida entre muitos de seus
contemporâneos e os estudiosos que a ela se dedicaram, como um gran-
de tropeço e, para alguns, como o maior “fracasso” da bacteriologia (Ver
TOGNOTTI, 2003, CROSBY, 1999, KOLATA, 2000, entre outros).
Nas paginas seguintes, buscamos examinar de que forma a medi-
cina construiu o seu entendimento sobre a moléstia. Alguns autores afir-
mam que a influenza seria conhecida desde a antiguidade, sendo por
muito tempo confundida com outras doenças, gerando grandes contro-
vérsias sobre sua natureza e forma de propagação (ROSEN, 1994:44).4
Há, entretanto, quem afirme não haver evidências de sua difusão entre
os homens até a época moderna (CROSBY, 1993:808-809).
As transformações das teorias médicas que buscavam explicar o
surgimento e desenvolvimento das doenças foram elementos fundamentais
para o refinamento conceitual sobre a gripe. Papel importante nesse processo
é atribuído aos inquéritos médicos, que tiveram lugar a partir dos séculos
XVII e XVIII, e que possibilitaram individualizar e estabelecer determinadas
características e os sintomas específicos da influenza (DeLACY, 1993). E,
como veremos, apesar do seu “tropeço” em 1918, a bacteriologia foi
determinante para o processo de refinamento conceitual da influenza.

4
Cf. também DRIGALSKI e LOT, 1964:260-261; BEVERIDGE, 1978:24.

213

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 213 19/6/2008, 23:40


As referências feitas à moléstia no Brasil apontam ser a influenza
mais uma herança dos colonizadores.5 Suas irrupções no país tiveram um
caráter às vezes brando, às vezes mais severo, mas com uma caracterís-
tica comum em todas elas: a rápida e ampla difusão entre a população.
As opiniões que os médicos brasileiros emitiam sobre a doença acompa-
nhavam, de forma muito próxima, o que dela diziam seus colegas estran-
geiros. Em 1918, as mesmas controvérsias que animaram o círculo cien-
tífico internacional também marcaram os debates no seio da classe médica
do país.
O episódio de 1918 revela ainda como as opiniões e ações das
autoridades médicas diante das ameaças sanitárias nem sempre são co-
incidentes. Como veremos, a crença difundida entre o círculo médico de
que era impossível antepor qualquer barreira à invasão da influenza du-
rante a pandemia de 1918 contrasta com as medidas de isolamento e
restrição dos contatos sociais implementadas por seus representantes. A
nosso ver, a adoção dessas medidas deveram-se, entre outros motivos, às
pressões impostas pela posição de autoridade ocupada por seus repre-
sentantes – rituais simbólicos – e às expectativas e demandas da socieda-
de, refletindo mais uma postura de caráter político que as crenças cientí-
ficas das autoridades sanitárias, ou, nas palavras de Cícero Ferreira, um
“desencargo de consciência”.6
Nesse aspecto, acreditamos que a pandemia de 1918 oferece ele-
mentos para uma reavaliação do conceito de medicalização, difundido
pelos estudos de Michel Foucault e, no Brasil, também por autores
foucaultianos como Roberto Machado e Jurandir Freire Costa. Estes au-
tores, utilizando o conceito de medicalização, enfatizam o poder e o con-
trole exercidos pelo saber médico, na passagem dos séculos XIX-XX,
sobre a vida social, por meio da apropriação, do esquadrinhamento e da
normatização dos problemas sociais (FOUCAULT, 1991, 1995, 1987,
1994; MACHADO, 1978; COSTA, 1989).

5
Essas opiniões, como veremos adiante, remetem à teoria das trocas biológicas,
desenvolvida nos trabalhos de McNEILL, 1976, e CROSBY, 1973.
6
ESTADO DE MINAS GERAIS. Relatório apresentado ao Conselho Deliberativo...,
1903, p. 40-41.

214

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 214 19/6/2008, 23:40


Na primeira parte deste capítulo, abordaremos o processo de cons-
trução da influenza como uma doença específica, apontando as contro-
vérsias que as diferentes teorias das doenças geraram nesse processo de
individualização da moléstia. Além disso, examinamos ainda como os
avanços da bacteriologia influíram no refinamento conceitual da influenza.
Esse olhar sobre a bacteriologia revela que nem sempre as proposições
científicas aceitas em determinado momento correspondem a uma corre-
ta explicação dos eventos examinados – como, por exemplo, a teoria de
F. Pfeiffer apontando o Haemophilus influenzae como agente causal da
influenza – podendo, algumas vezes, funcionar como um verdadeiro
embaraço à própria atividade científica.
A segunda parte examina a história da influenza nas terras brasi-
leiras, acompanhando as primeiras referências relativas à presença da
moléstia no país e as opiniões difundidas pelos representantes da classe
médica local a respeito da sua natureza e das suas formas de propaga-
ção. Como veremos, essas opiniões acompanhavam as teorias médicas
em voga e revelavam o quanto a influenza era pouco conhecida. Em
1918, além das incertezas que caracterizavam o saber médico, havia
também muitas dúvidas sobre a verdadeira natureza da moléstia, ampli-
ando as dificuldades no estabelecimento de uma agenda para combatê-
la. Essas dúvidas que povoavam o pensamento médico em relação à
influenza são percebidas como justificativas para as reações que as auto-
ridades de saúde tiveram diante da pandemia de 1918.
A última parte do capítulo é dedicada ao exame de como a medi-
cina buscou explicar e agir diante daquela ameaça. Consideramos que o
contraste entre o discurso médico – sobre a impossibilidade de se ante-
por barreiras à disseminação da doença – e a imposição de medidas de
isolamento e quarentena por aqueles que ocupavam a direção dos órgãos
de saúde pode ser tomado como indicador de que não são apenas as
teorias médicas que informam as ações no campo da saúde pública, mas
também, que elas são perpassadas por questões de ordem econômica,
social, cultural e política. É a constatação dessas múltiplas percepções,
necessidades e expectativas que envolvem a saúde pública que nos pos-
sibilita colocar em questão a difundida tese da medicalização da socieda-
de. A percepção social a respeito de algumas moléstias, consideradas
ordinárias e benignas, e as alternativas curativas oferecidas à população,
não chanceladas pela medicina ou que se aproveitavam das explicações

215

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 215 19/6/2008, 23:40


emanadas pela própria ciência, são outros elementos que possibilitam
questionar a tese da medicalização. Se durante as primeiras décadas do
século XX, os doutores ainda buscavam impor-se diante dessas outras
alternativas curativas, veremos que no interior de sua própria ciência
também havia conflitos. Por fim, apontamos que o processo de refina-
mento conceitual da influenza, levado a cabo pela bacteriologia nos mais
importantes centros de pesquisa da época, contaria com a colaboração
de estudiosos brasileiros, que também se mobilizaram na tentativa de
explicar o flagelo da espanhola.

A construção da influenza como doença específica

A influenza, também conhecida pelo termo gripe, é, segundo al-


guns autores, moléstia milenar, considerada como causa possível de di-
versas epidemias ocorridas no mundo antigo, mas cuja natureza seria
difícil precisar pela ausência de descrições claras a respeito de suas ma-
nifestações (ROSEN, 1994:44; DRIGALSKI e LOT, 1964:260-261;
BEVERIDGE, 1978:24). A imprecisão sobre a natureza da moléstia
pode ser percebida pelo hábito freqüente – entre médicos e leigos – de
referir-se a qualquer doença contagiosa como peste: “Quando uma mo-
léstia, assumindo uma feição de alta gravidade e enorme difusão, atacava
grande número de pessoas e determinava considerável mortandade, re-
cebia dos antigos a designação de peste” (ALMEIDA, 1921).
Alfred Crosby afirma que a influenza poderia estar entre as anti-
gas doenças da civilização, adquiridas através do contato humano com
animais domesticados, tais como porcos, patos e outras aves, não haven-
do, porém, evidência clara de sua difusão entre os humanos nos séculos
XV e XVI. A partir de então, “a doença tem sido nossa familiar compa-
nheira, nunca estando ausente por mais que poucas décadas, se tanto”
(CROSBY, 1993:808-809). No século XVI, três epidemias de influenza
teriam atravessado a Europa – em 1510, 1557 e 1580, a última assu-
mindo a forma pandêmica, atingindo também os continentes africano e
asiático. No século seguinte, a doença manifestou-se em epidemias apa-
rentemente de caráter regional. Outras três pandemias de influenza tive-
ram lugar no século XVIII: 1729-1730, 1732-1733 e 1781-1782. Con-

216

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 216 19/6/2008, 23:40


forme Crosby, as referências sobre a expansão geográfica e o número de
infectados indicam a pandemia de 1781-1782 como uma das maiores
manifestações da doença em toda sua história (CROSBY, 1993:809)7.
Nos séculos seguintes, a transmissão da influenza – como de resto
a de outras doenças de causa microbiana – seria facilitada pelo cresci-
mento populacional, pela urbanização e pelo progresso nos transportes.
O século XIX assistiria a diversas epidemias da moléstia, além de três
pandemias: 1830-1831, 1833 e 1889-1890. Um aspecto destacado pelos
estudiosos da doença é a grande distância que separa a pandemia de
1889-1890 de sua predecessora, hiato que para Crosby teria feito com
que muitos profissionais tivessem pouca familiaridade com a moléstia em
1889-1890 – em alguns casos, dada apenas através dos manuais médi-
cos (CROSBY, 1993:809; PATTERSON, 1986:47 e 50-51).8
Durante todo o século XIX, a influenza havia matado mais que a
cólera. Entretanto, suas vítimas estavam concentradas entre os velhos, o
que criou a reputação da doença como uma “infecção desagradável,
porém pouco perigosa” (CROSBY, 1993:809). Essa observação confir-
ma algumas afirmações da historiografia das epidemias, segundo as quais
a natureza das reações sociais diante de tais moléstias variam conforme
sua violência, familiaridade e incidência geográfica, demográfica e social
(SLACK, 1999:5-6). Um dos aspectos mais marcantes da influenza de
1918, quer para seus contemporâneos como para aqueles que se dedica-
ram a pesquisá-la, foi o fato de ter feito suas vítimas preferencialmente
entre os adultos jovens (Carta do Dr. Roy, de setembro de 1918, In:
GRIST, 1979; VAUGHAN, 1926, apud KOLATA, 2000; POOL, 1973;
PATTERSON e PYLE, 1991; CROSBY, 1999).
A origem do termo influenza é atribuída aos italianos e refletiria as
crenças sobre sua própria etiologia. Segundo uns, a moléstia era resulta-
do da influência exercida pelos astros:

7
Sobre as pandemias entre 1700-1900, cf. também: PATTERSON, 1986.
8
No Brasil, como se lê em W. Bernardinelli, quando da epidemia de 1989-1890,
muitos médicos pensaram tratar-se de uma “doença nova, por que se tinham es-
quecido da gripe” (BERNARDINELLI, 1933:41).

217

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 217 19/6/2008, 23:40


“Quando a astrologia tomou a dianteira à verdadeira ciência, e as pesso-
as começaram a imaginar que todas as coisas terrestres eram governa-
das pelos céus, alguns médicos italianos propuseram que essa desordem
provinha da influência das estrelas, e então deram a ela o nome de
influenza.” (Robert Johnson. In: CAMPBELL, 1943)9
Outros sugerem que aquela desordem devia-se à influência do frio
– sur l’influenza di freddo. William Beveridge aponta que o termo italiano
havia surgido durante uma epidemia ocorrida em 1504, enquanto Wilhelm
Drigalski e Fernando Lot recuam essa origem a outro episódio da molés-
tia, que teria ocorrido em Florença no ano 1387 (BEVERIDGE, 1978:24;
DRIGALSKI e LOT, 1964:261). Segundo Eugene Campbell, mesmo
tendo uso corrente na Inglaterra desde a epidemia de 1742-1743, so-
mente após a pandemia de 1918, o Royal College of Physicians confirma-
ria o uso do termo influenza em substituição ao de catarro epidêmico
(CAMPBELL, 1943:391). O termo gripe, de origem francesa, havia se
difundido no mesmo período, sugerindo também duas possíveis etimologias:
a referência a uma praga de insetos, que teria coincidindo com o apareci-
mento de uma epidemia, ou ao verbo gripper, isto é, agarrar.10
Apenas a partir do final do século XVIII, a influenza começaria a
ser definida nos estudos médicos como uma doença específica e, mesmo
após essa época, ainda seria confundida com outras moléstias, como
resfriados e febres de natureza diversa, além de ser nomeada por termos
diversos: febre catarral, catarro epidêmico, destempero, entre outros.
Margaret DeLacy aponta que esse refinamento conceitual – isto é, o uso
de um determinado termo como instrumento para designar um grupo
distinto de sintomas, por conseguinte, uma doença específica – seria
resultado da prática de investigações coletivas levadas a cabo durante as

9
Segundo Campbell, diversos acontecimentos foram tomados como causa ou como
tendo ascendência sobre a origem da doença, entre os séculos XVI e XVIII: os
cometas, as erupções vulcânicas, os meteoros, os meteoritos, a aurora boreal, as
rápidas mudanças climáticas e as pragas de insetos (CAMPBELL, 1943:392).
10
“A moléstia agarra o futuro enfermo que até então gozava de boa saúde sem
qualquer aviso prévio, e o doente dificilmente se livraria do mal à custa de seus
próprios esforços” (Georges Werner. In: BERTOLLI FILHO, 1986:90). A refe-
rência à praga de insetos é feita por BEVERIDGE, 1978:25.

218

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 218 19/6/2008, 23:40


diversas epidemias ocorridas naquele século. Segundo a autora, essas
investigações constituíram-se verdadeiros inquéritos epidemiológicos que
buscavam examinar as relações entre algumas variáveis, como a incidência,
expansão, taxas de mortalidade e as condições atmosféricas durante os
diferentes episódios epidêmicos.11 Apesar de aparentemente branda e
de apresentar uma baixa taxa de mortalidade, a influenza mobilizou o
interesse médico pela sua prevalência nos anos considerados epidêmicos.
Conforme DeLacy, outro aspecto influente nesse refinamento
conceitual foi a transformação processada no entendimento e na
conceituação das doenças, ocorrida entre os séculos XVII e XVIII. A
teoria galênica, prevalente até então, considerava a doença como um
processo e não uma entidade. Isso porque o estar doente refletia o
desequilíbrio interno de um dos quatro humores do corpo. Assim, cada
manifestação mórbida era uma manifestação particular, porque ocorrida
em pacientes distintos.12 Essa percepção de que cada caso era, por
definição, diferente de qualquer outro, era incompatível com a
identificação de doenças específicas, tornando impossível qualquer
exercício de comparação.
A expansão do “neo-hipocratismo” ou ambientalismo, a partir da
segunda metade do século XVII, significou a possibilidade de uma outra
percepção sobre o fenômeno da doença, pelo valor que atribuía aos fato-
res externos ao indivíduo, isto é, as condições geográficas e atmosféri-
cas.13 Segundo DeLacy, essa outra forma de entendimento também não

11
Segundo DeLACY, a prática desses inquéritos epidemiológicos seria uma ferra-
menta importante no desenvolvimento da medicina e nas transformações operadas
no entendimento e na definição de outras doenças no decorrer do século XVIII –
o levantamento e a troca de informações possibilitaria aos médicos perceberem
estar falando de uma mesma doença; por seu lado, a comparação exigia uma
particularização dos objetos que estavam sendo examinados (DeLACY, 1993, p74).
12
“A teoria humoral não concebia a doença como o objeto, mas como expressão de
uma certa relação entre objetos, a saber, os humores e suas qualidades” (Walter
Pagel. In: DeLACY, 1993:77-78). Mas o galenismo e, especialmente a terapêutica
dele derivada, subsistiriam até o século XIX (Cf.: BYNUM, BROWNE e PORTER,
1985:159-169).
13
Recuperando a antiga noção hipocrática de que certas doenças estavam relaci-
onadas a determinadas condições climáticas e circunstâncias locais, em meados

219

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 219 19/6/2008, 23:40


encorajava a distinção entre as diversas moléstias, uma vez que o foco de
interesse estava em responder como diferentes doenças prevaleciam ao
mesmo tempo num mesmo lugar, e não quais as diferentes doenças que
estavam presentes.14 No entanto, ao buscar responder como muitas pes-
soas podiam exibir sintomas idênticos de forma simultânea, essa nova
visão levava ao desenvolvimento de uma etiologia que dependia de fato-
res externos, transferindo o foco de atenção do paciente para a própria
doença, o que abria a possibilidade para que essa fosse percebida como
uma entidade, algo objetivo em si mesmo (DeLACY , 1993:79).
Ainda segundo DeLacy, a idéia de que os fatores atmosféricos
contribuíam no surgimento das moléstias, teria impulsionado as chama-
das topografias médicas – voltadas para o estudo do clima, da tempera-
tura, do regime dos ventos, das condições topográficas entre outras –
ampliando as informações relativas a diferentes manifestações mórbidas.
E a comparação dos dados sistematizados nesses inquéritos, apontava a
existência de doenças que se repetiam, independente das condições at-
mosféricas. Já a partir do século XVIII, essas investigações epidemiológicas
passaram a incorporar o estudo de episódios epidêmicos de doenças
particulares, além do exame do clima e das condições geográficas de
áreas específicas (DeLACY, 1993:79-81).15
A difusão da prática da inoculação contra a varíola, fundada no
princípio de que uma matéria específica produzia uma doença específica

do século XVII, o médico reformador Thomas Sydenham – juntamente com o


químico Robert Boyle – propunha que as epidemias eram fruto de emanações
telúricas de minúsculas partículas que poluíam a atmosfera. A cada ano, essas
partículas imperceptíveis criavam novas “constituições epidêmicas”, que governa-
vam todas as epidemias que ocorriam naquele ano. Essas emanações interagiam
com as qualidades físicas da atmosfera e das estações – quente, frio, úmido e seco
– que, por sua vez, afetavam os humores do corpo (DeLACY , 1993:79). Cf.:
ROSEN, 1994:88-89.
14
“Se a própria atmosfera causava as doenças, então quem respirasse o mesmo ar
deveria ter a mesma doença, cuja manifestação seria afetada apenas pelas diferen-
ças de constituição individual. Inversamente, se o ar ou o vento mudassem, então
a doença também mudaria” (DeLACY, 1992:83).
15
Sobre essas topografias médicas, cf. LINDEMANN, 1999, p.180-181;
HANNAWAY, 1993:300-302; e ROSEN, 1994:137-139.

220

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 220 19/6/2008, 23:40


e conferia uma imunidade específica, representou outro passo decisivo
no processo de individualização das moléstias e na afirmação da hipótese
de que as doenças transmitiam-se através do contato entre os indivíduos
– contagionismo. Como observavam seus praticantes, a matéria infectante
retirada das pústulas dos variolosos podia ser transportada para os mais
diversos lugares e sua inoculação produzia sempre os mesmos sintomas
da doença, independente das condições atmosféricas (DeLACY, 1993:81-
82). 16 Em fins do século XIX, a bacteriologia, associando um
microorganismo a uma doença específica, tornou-se o novo corolário desse
processo de individualização das doenças.
Na segunda metade do século XVII, as pesquisas relativas à influenza
estiveram inscritas em um amplo debate acerca da natureza e das causas
das epidemias de febres, que eram tomadas como entidades nosológicas,
mais do que um signo ou sintoma da doença. A própria influenza era
identificada como um tipo particular de febre (BYNUM et al, 1985:149;
DeLACY, 1993:93-94). A confusão com outras moléstias, a sutileza dos
sintomas e os casos simples, normalmente não relatados, dificultavam o
entendimento da doença. A realização dos inquéritos durante o século
seguinte, entretanto, passou a oferecer a oportunidade de se trabalhar
com diversos casos individualizados, que evidenciavam as características
particulares da moléstia: sintomas como calafrios, dor de cabeça e, nos
músculos, lacrimejamento, tosse, prostração e transpiração; sua incidên-
cia sobre diferentes grupos etários e as complicações dela decorrentes
(DeLACY, 1993:88-95).
Essas investigações também possibilitaram um mapeamento das
rotas seguidas pela doença em determinadas regiões. Conforme revela-
vam os dados, cidades localizadas numa mesma região e sob as mesmas
condições de tempo eram atingidas pela epidemia em momentos distin-
tos. Por outro lado, a mudança das condições atmosféricas em vilas mais
distantes de um foco da doença não impedia que ela se desenvolvesse
nesses mesmos lugarejos algumas semanas depois. Essas observações
sugeriam que a expansão da moléstia não estaria relacionada com a
prevalência dos ventos, mas sim com as rotas da migração humana, o
que apoiava as proposições de que a doença difundia-se pelo contágio

16
Cf.: BYNUM, BROWNE e PORTER, 1985:149.

221

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 221 19/6/2008, 23:40


direto – isto é, de pessoa para pessoa, entre doentes e sãos (DeLACY,
1993:96).17
No entanto, essas comparações também podiam levar a outras
inferências. Contrapondo-se às evidências do contágio, a existência de
pessoas que contraíam a influenza sem que, aparentemente, reportassem
o contato com os doentes fazia que muitos rejeitassem essa proposta,
afirmando que a moléstia devia-se a alguma qualidade particular do ar
(DeLACY, 1993:95-96).
A controvérsia entre os defensores da “teoria dos miasmas”, ou
infeccionismo, e os partidários do contagionismo, marcaria a história da
medicina desde a época moderna. Conforme salientam alguns autores, o
exame mais circunstanciado entre essas formas explicativas revela “múltiplas
relações e confluências” (CAPONI, 2002).18 Um exemplo é o fato de as
noções de miasma e contágio não serem conflitantes no âmbito das teorias
hipocráticas e galênicas, uma vez que ambas entendiam que o ar corrompido
influía sobre o organismo, degenerando seus humores.19 Retomando as
proposições de Charles Rosenberg, é possível perceber que essas teorias,
ou “estilos explicativos alternativos”, oferecem ferramentas que foram sendo
apropriadas e rearticuladas de modos distintos, em cada época histórica,
pelos esforços explicativos sobre a origem das doenças (ROSENBERG,
1995).20 Exemplos dessas confluências e rearticulações também são
percebidos entre as teorias médicas divulgadas sobre a influenza.

17
Cf. PATTERSON, 1986:21-22. “O fato de que a influenza freqüentemente
avançasse contra os ventos dominantes e parecesse irradiar-se das cidades, prova-
velmente contribuiu para a ascensão do pensamento contagionista por volta de
1780”. Ainda segundo o autor, as especulações sobre a origem asiática da doença
viriam reforçar a xenofobia de europeus e americanos, “acostumados à noção de
que coisas perigosas como a peste e os turcos provinham do leste misterioso”
(PATTERSON, 1986:p. 26).
18
Como salienta Patterson, “a posição de compromisso – ou seja, um espaço de
consenso – entre miasmatistas e contagionistas era comum” (PATTERSON,
1986:12).
19
Para um exame mais detido sobre essas formas de entendimento das moléstias,
cf.: CZERESNIA, 1997, e também: PELLING, 1993.
20
Essas relações e rearticulações entre os conceitos e sentidos expressos por essas
teorias foram objeto de observação por Afrânio Peixoto em 1913. Segundo dizia,

222

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 222 19/6/2008, 23:40


Segundo DeLacy, ao final do século XVIII, o acúmulo de informa-
ções propiciado pelas investigações fazia que a controvérsia sobre a for-
ma de expansão da influenza pendesse favoravelmente para o lado dos
partidários do contágio direto.21 No entanto, um levantamento dos inqu-
éritos realizados durante a epidemia de 1803 revelaria que os defenso-
res do aerismo, ou neo-hipocratismo, haviam recuperado terreno. Em
sua opinião, a visão contagionista da influenza havia decrescido até a
metade do século, porém sem ser inteiramente abandonada.22
Mas, se a proporção dos anticontagionistas havia aumentado em
relação a inquéritos precedentes, o mesmo verificava-se em relação aos
que se diziam indecisos entre as duas alternativas explicativas da doença.
E vale ressaltar que, mesmo em meio aos que acreditavam que as epide-
mias de influenza originavam-se de uma combinação entre as condições
atmosféricas e geográficas, havia aqueles que consideravam o contágio
direto como um modo, entre outros, de propagação da moléstia
(PATTERSON, 1986:111). A análise proposta por Margaret DeLacy
encerra-se com a epidemia de 1803. Segundo a autora, mesmo que
comparativamente a teoria contagionista tenha perdido terreno, ela havia
deixado duas importantes contribuições: o encorajamento a uma classifi-
cação apropriada das doenças e o otimismo quanto à possibilidade de
entendê-las e preveni-las.

termos como contágio, infecção e desinfecção, entre outros, “não podem ser toma-
dos pelo seu significado estrito; mas os velhos termos continuam com a acepção
nova que os nossos conhecimentos lhes vão transferindo. (...) Antes da época atual,
em que se precisaram as noções etiológicas, todos esses termos fizeram correr rios
de tinta, para os definir e discutir. Só a noção da causa e do meio de transmissão
pode fazer a paz entre os grupos debatentes” (PEIXOTO, 1913:501-503).
21
Além dos resultados apontados por meio de alguns inquéritos realizados durante
as epidemias na segunda metade do século XVIII, a autora lista vários autores que
partilhavam a mesma opinião, entre os quais William Cullen, que havia identifica-
do a influenza como um catarro contagioso, classificando-a entre as diversas clas-
ses de febres (DeLACY, 1993:106). Segundo Patterson, a expansão geográfica
das epidemias de influenza era tão óbvia no final do século XVIII que mesmo os
anticontagionistas tiveram que reconhecê-las (PATTERSON, 1986:27).
22
A mesma avaliação é encontrada em PATTERSON, 1986:29.

223

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 223 19/6/2008, 23:40


Sinalizando na mesma direção apontada pela autora, outras fontes
revelam que, durante a epidemia ocorrida na Inglaterra no ano 1837,
uma nova investigação apontaria, como resultado “unânime”, a opinião
de não haver qualquer indício que justificasse a afirmação da
contagiosidade da moléstia (DOCUMENTA GEIGY, 1964:3). Ao lado
daqueles que defendiam que a gripe originava-se em condições atmosfé-
ricas especiais, havia vozes que atribuíam a doença às condições de tra-
balho prevalentes em determinadas atividades – especialmente aquelas
desenvolvidas em ambientes pouco ventilados e quentes.
Mesmo com o crescente avanço dos partidários da noção do con-
tágio na segunda metade do século XIX, durante a epidemia de 1889-
1890 houve quem se expressasse sobre a moléstia da seguinte forma:
“Não estamos em condições de elucidar taxativamente se a gripe é con-
tagiosa ou não; em caso afirmativo, tampouco podemos esclarecer se o
vírus se transmite pelo ar, pela água, ou por outro portador”.23 Como
veremos, a controvérsia sobre a origem e o modo de expansão da doença
perduraria ainda por todo o século XIX e mesmo já entrado o século XX.
Os caminhos seguidos pela pesquisa científica, na segunda meta-
de do século XIX, levariam a balança das opiniões pender novamente
para a explicação contagionista. Isso se deve especialmente ao avanço da
teoria dos germes que, durante essa época, agregaria um novo elemento
ao processo de refinamento conceitual das doenças: a determinação de
um agente específico causador das moléstias. Segundo essa teoria, toda
infecção poderia ser explicada por meio de uma causa extrínseca, repre-
sentada por um determinado microorganismo (ROSEN, 1994).
A partir de análises microscópicas realizadas no correr do século
XIX, diversos pesquisadores relataram a observação da presença de pe-
quenos “germes” nos tecidos ou no sangue de organismos afetados por
algumas doenças.24 Foi, porém, por intermédio das pesquisas de Louis
Pasteur e Robert Koch que, finalmente, tornou-se possível evidenciar e
esclarecer a relação entre organismos específicos e doenças específicas.

23
Thompson, Symes. “Influenza (Londres, 1890)”. In: DOCUMENTA GEIGY,
1964:3.
24
Inicialmente essas observações estiveram relacionadas a fungos: Agostinho Bassi
relaciona a doença do bicho-da-seda (muscardine) à ação de um fungo parasitário;

224

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 224 19/6/2008, 23:40


Então, nas duas décadas finais do século XIX, os agentes patogênicos de
diversas moléstias começaram a ser identificados – difteria, tuberculose,
febre tifóide, tétano, peste, botulismo, entre outras (ROSEN, 1994:232).
A última grande pandemia de influenza ocorrida no século XIX
(1889-1890), que foi, ao mesmo tempo, a primeira pandemia da moléstia
durante a chamada “era bacteriológica”, pareceu ter oferecido a solução
para o problema da identificação de seu “germe específico”. Em 1892, o
bacteriologista alemão Friederich Pfeiffer declarava ter observado, em
amostras de secreções do aparelho respiratório de alguns doentes, uma
bactéria que então nomeara como Haemophilus influenzae – mais tarde
conhecida como bacilo de Pfeiffer. Em seguida, Pfeiffer teria isolado essa
bactéria em cultura e administrado o microorganismo em animais saudá-
veis. Ainda que por esse tempo não houvesse nenhuma cobaia reconheci-
damente capaz de contrair a moléstia, ele conseguiu produzir uma doença
respiratória em macacos, que ocasionava lesões muito parecidas com aque-
las observadas em doentes da influenza (CROSBY, 1999:270).
No entanto, as experiências realizadas por Pfeiffer não o deixavam
afirmar de modo inconteste que a doença então produzida fosse a influenza.
Apesar disso, e das reservas do próprio Pfeiffer, muitos passaram a to-
mar sua descoberta como o estabelecimento definitivo do agente causa-
dor da moléstia. Mesmo não tendo se tornado consenso entre a comuni-
dade científica, a proposição de Pfeiffer pareceu confortar parte da
comunidade médica e da opinião pública, num período em que se assis-
tia ao que parecia ser o verdadeiro triunfo da teoria bacteriológica25.
O avanço da bacteriologia, porém, não significou a derrocada de-
finitiva das velhas concepções sobre a causa das doenças. Em 1894, dois
anos após a “descoberta” de Pfeiffer, o epidemiologista britânico Charles

Cassimir Davaine e Pierre Rayer relatam a descoberta de pequenos organismos,


em forma de bastão, no sangue de carneiros mortos por antraz, mais tarde nome-
ados por Robert Koch como Bacillus do antraz. Sobre outras observações cf.:
ROSEN, 1994:219-230.
25
Segundo Eugênia Tognotti, o clima científico triunfante da bacteriologia deixou
poucas dúvidas sobre a descoberta do cientista alemão (TOGNOTTI, 2003:103).
Cf.: CROSBY, 1999, 269-270; KOLATA, 2002, 83-84. Na verdade, o bacilo de
Pfeiffer era responsável por várias das infecções secundárias que atingiram as
vítimas da influenza naquele ano de 1918, mas não pela própria influenza.

225

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 225 19/6/2008, 23:40


Creighton declarava discordar completamente das proposições de que a
origem e a expansão da influenza se devessem a qualquer forma de
contágio. Conforme dizia, as experiências anteriores da moléstia, que
atingiam partes distintas de um país ou região de forma simultânea, eram
provas incontestes da fragilidade desse argumento. Essas mesmas expe-
riências, segundo ele, apontavam o conceito de miasma como melhor
forma de explicar a moléstia (BEVERIDGE, 1978:2).
As principais contestações à proposição de Pfeiffer, entretanto, não
seriam lançadas pelos defensores do miasmatismo. Elas viriam do interior
da própria corrente dos bacteriologistas. Segundo Alfred Crosby, confron-
tadas com os postulados estabelecidos por Henle e Koch, as experiências
realizadas por Pfeiffer apresentavam determinadas falhas que inviabilizavam
a afirmação sobre ser o bacilo por ele descoberto o agente responsável
pela doença.26 Em primeiro lugar, não era possível declarar de forma
inequívoca, que as lesões produzidas nos macacos eram as mesmas que a
doença causava em suas vítimas. Também não havia explicação para a
ausência de lesões típicas da influenza no trato respiratório dos coelhos,
que adoeceram ou morreram após serem infectados com o bacilo. Por
fim, Pfeiffer havia começado suas pesquisas depois que a grande onda
epidêmica havia passado, o que levantava dúvidas sobre o fato de os
organismos por ele observados serem, realmente, os mesmos que estive-
ram presentes durante a pandemia (CROSBY, 1999, 269-270).27
Os debates em torno da teoria de Pfeiffer sobre a influenza atra-
vessariam as três primeiras décadas do século XX. Durante uma epide-
mia da moléstia em 1905, diversos pesquisadores que tentaram repetir
sua experiência relatavam terem encontrado os referidos bacilos em ape-
nas certa porcentagem dos casos examinados, havendo outros nos quais

26
Os postulados de Henle e Koch estabeleciam as condições necessárias para
provar que um organismo particular era a causa de uma determinada moléstia.
Entre tais postulados, estavam a presença constante do parasita e a possibilidade
de reprodução da doença pela sua inoculação em organismos sãos (ROSEN,
1994:221-222; 230).
27
Crosby afirma que, mais tarde, os estudos sobre a moléstia apontaram que os
coelhos – usados naquele experimento realizado por Pfeiffer – não apresentavam
qualquer susceptibilidade à doença, não sendo por isso capazes de desenvolver a
moléstia produzida pelo vírus da influenza.

226

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 226 19/6/2008, 23:40


eles estavam ausentes. Além disso, algumas vezes os bacilos de Pfeiffer
eram detectados nas vítimas de outras moléstias, como sarampo, coque-
luche, bronquite crônica e escarlatina (TOGNOTTI, 2003).28
As investigações que foram levadas a cabo durante e após a
pandemia de 1918 chegaram às mesmas conclusões. Segundo Richard
Shope, a crença de que o Haemophilus influenzae era o agente responsá-
vel pela moléstia fez com que muitos pesquisadores direcionassem suas
investigações na busca do bacilo.29 Alguns estudos revelavam que o bacilo
estava ausente, ou em concentrações extremamente baixas, durante a
onda de gripe ocorrida em março. Porém, as vítimas atingidas entre
outubro e novembro acusavam uma incidência em taxas altamente consi-
deráveis, alimentando ainda mais as controvérsias. Também chamava a
atenção, a presença freqüente de outros germes, com destaque para os
estreptococos e os pneumococos (TOGNOTTI, 2003:103-104).
Em um relato publicado em março de 1919, Ralph Kinsella, mé-
dico do exército americano, informava que as experiências realizadas
com doentes em dois campos militares revelaram que a maioria das cul-
turas elaboradas com secreções das vias respiratórias e com lâminas do
tecido dos pulmões das vítimas da doença não acusavam a presença do
bacilo de Pfeiffer e, além disso, em vários casos, outros microorganismos
foram observados. Em suas conclusões, o autor afirmava que as evidên-
cias de que o bacillo de Pfeiffer fosse o agente causal da influenza eram
claramente insuficientes, dizendo ser a origem da doença algo ainda
desconhecido.30 Segundo divulgava a revista Lancet, até mesmo Pfeiffer
teria admitido que, nos exames por ele realizados em Breslau, apenas

28
Especialmente a página 103. A autora apresenta uma extensa pesquisa a respeito
das investigações e dos debates sobre a doença ocorridos até a descoberta do vírus
da influenza, em 1933. Cf. também: BILLINGS, Molly. “The influenza pandemic of
1918”, junho 1997. www.satanford. edu/group/virus/uda/fluresponse.html>.
29
O cientista norte-americano Richard Shope dedicou-se às pesquisas sobre a
gripe suína desde finais da década de 20, tendo mais tarde proposto sua relação
com a pandemia de 1918 (SHOPE, 1958).
30
Entre eles: pneumococos, estreptococos, diplococos, bacilo de Friedländer, além
de vários tipos de bactérias não identificadas (KINSELLA, 1919). Opiniões seme-
lhantes podem se consultadas em outros artigos publicados no mesmo número da
revista: MacCCALLUM, 1919 e GOODPASTURE, 1919. De modo semelhante,

227

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 227 19/6/2008, 23:40


51,6% dos casos acusavam a presença do microorganismo por ele des-
coberto.31
Como aponta Eugenia Tognotti, a tese de Pfeiffer contava com o
apoio da influente “escola alemã”, além do prestígio do próprio bacteriolo-
gista.32 Seus partidários justificavam os resultados negativos nas investigações
sobre a presença do bacilo argumentando que os responsáveis por aquelas
pesquisas haviam cometido algum erro durante o isolamento do germe, ou
porque desconheciam suas características morfológicas, o que os levaria a
confundi-lo com outros microorganismos (TOGNOTTI, 2003:105).
Porém, as negativas sobre a presença do bacilo continuavam a
surgir, mantendo a discussão sobre o agente específico da moléstia em
aberto. Em um estudo sobre a epidemia de 1918, um patologista do
Instituto de Medicina Clínica da Universidade de Roma observava:
“Abordando o problema serenamente, e ponderando os elementos prós
e contra a importância de outros germes patogênicos, podemos dizer
que o bacilo de Pfeiffer teve a honra de ser considerado um germe especí-
fico por causa da originalidade daquela situação e por causa da autorida-
de do seu descobridor, porém, sólidas razões estabelecidas pelos
bacteriologistas, com a aprovação de Koch, não favoreciam a manuten-
ção da noção de que o germe tivesse papel específico. O bacilo de Pfeiffer
certamente acompanhou a influenza de 1890, mas nós estamos longe
de poder demonstrar que ele foi o agente da doença.”33

em reposta a uma circular enviada por periódico médico alemão (Deutsch


Medizinische Wochenschrift) diversos bacteriologistas foram unânimes em afirmar
que o bacilo estava presente apenas em um número limitado de casos, sempre
combinado com outros “germes” (TOGNOTTI, 2003, p.105).
31
“Bacteriology of The Spanish Influenza”. Lancet, 10 de agosto de 1918, p.177.
In: TOGNOTTI, 2003:103.
32
A partir de meados do século XIX, a geografia dos desenvolvimentos na ciência
médica havia se deslocado da França para a Alemanha, onde a pesquisa em ciên-
cias básicas florescentes, como a fisiologia e a química orgânica, contava com os
maiores e mais bem montados laboratórios, além do apoio das universidades e dos
institutos de pesquisa independentes, atraindo estudantes de todo o mundo e pro-
duzindo os mais eminentes pesquisadores da segunda metade do século XIX
(PORTER, 1998:528-529; 2001:177-181).
33
T. Pontano. “Note Cliniche, epidemiologiche ed etiologiche sull’attuale epidemia
d’influenza”. In: TOGNOTTI, 2003:104-105 (grifo nosso).

228

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 228 19/6/2008, 23:40


Essa “autoridade” de Pfeiffer – “um dos principais bacteriologistas
do mundo” – é apontada por Alfred Crosby como um dos inconvenientes
com os quais a comunidade científica teve que lutar naquele 1918.34
Assim vários pesquisadores gastaram um tempo precioso para descobrir
a “insignificância” do bacilo de Pfeiffer na etiologia da influenza. Outras
desvantagens apontadas pelo autor eram a crença difundida de que a
influenza era uma moléstia exclusivamente humana, o que trazia emba-
raços para as pesquisas de laboratório, e a ausência de tecnologia que
possibilitasse aos pesquisadores ver algo tão pequeno como a verdadeira
causa da moléstia – o vírus (CROSBY, 1993:810).35
Além desses problemas, que diziam respeito especificamente à
presença ou ausência do microorganismo isolado por Pfeiffer, outras
observações viriam lançar ainda mais dúvidas sobre ser ele o verdadeiro
agente específico da influenza. Muitos cientistas começaram a verificar
que era impossível reproduzir a doença através da inoculação da suspen-
são de uma cultura pura do bacilo e, ainda antes de 1918, pesquisadores
europeus afirmavam que soluções ultrafiltráveis do material retirado da
garganta de pacientes doentes, das quais o bacilo estava completamente

34
Fato semelhante pode ser observado em relação ao modelo científico proposto
por Simon Flexner para a poliomielite, no início do século XX, e que privilegiava a
investigação virológica, em detrimento das características clínicas e epidemiológicas
da moléstia. Sua proposição de que a pólio era uma doença neurológica de origem
viral e contágio respiratório perduraria até o final da década de 1940, quando
passou a ser classificada como doença entérica, determinando mudanças significa-
tivas no entendimento e na possibilidade de controle da moléstia (Cf. ROGERS,
1996).
35
A existência de algumas doenças causadas por organismos ainda menores que as
bactérias, os chamados vírus, já era reconhecida desde o final do século XIX. Até
1930, a proposição da existência desses vírus filtráveis baseava-se na observação
de que certas culturas consideradas “estéreis” – isto é, que haviam sido submeti-
das a sucessivas filtragens capazes de reter todas as bactérias – ainda continuavam
mantendo a capacidade de provocar reações similares às moléstias estudadas nos
organismos inoculados. Assim, durante os primeiros trinta anos do século XX, as
viroses só podiam ser estudadas por meio de seus efeitos patogênicos nos organis-
mos infectados. Somente com a criação do microscópio eletrônico, na década de
1930, foi possível observar e estudar a estrutura dos vírus em detalhe. LYONS e
PETRUCELLI, 1978:579.

229

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 229 19/6/2008, 23:40


ausente, eram capazes de reproduzir a moléstia. Em vista desses resulta-
dos, ia ganhando força a suposição de que a doença poderia ser causada
e transmitida por organismos ainda menores que as bactérias, conheci-
dos como “vírus filtráveis” (SHOPE, 1958:171).36 Porém, ninguém ha-
via conseguido, até então, isolar e identificar esse novo microorganismo.
A opinião de que a pandemia de influenza espanhola era um ver-
dadeiro tropeço da bacteriologia era partilhada pelos próprios contempo-
râneos. Após um longo período de sucesso, os seguidores da nova ciên-
cia eram criticados pela incapacidade de oferecer respostas para aquela
tragédia inclassificável. Eugenia Tognotti afirma que os ataques mais
incisivos vinham da clínica, que havia sido “destronada” pela
microbiologia. Segundo a autora, diante das incertezas a respeito da de-
terminação da causa necessária da doença, teria havido um retorno à era
pré-bacteriológica, uma “reafirmação das habilidades dos clínicos”, com
o resgate de seus meticulosos conhecimentos a guiá-los no emaranhado
misterioso do diagnóstico.37
A controvérsia sobre a determinação do agente causador da
influenza iria perdurar até os anos 30. Conforme declarava José Paranhos
Fontenelle, no seu Compêndio de Higiene Elementar, no ano 1925, a
causa específica da moléstia ainda era bastante discutível:
“Antes de 1918, todos acreditavam que a doença fosse causada pelo
cocobacilo de Pfeiffer (...). A pandemia de 1918 levou muitos
microbiologistas a duvidarem do valor etiológico do bacilo de Pfeiffer,
por ser esse micróbio encontrado, além da influenza, muitas vezes, em
casos de sarampo, de escarlatina, de pneumonia, de bronquite, etc. (...)

36
Entre os diversos pesquisadores que sugeriram essa hipótese em artigos publica-
dos naquele mesmo ano, estavam o cientista alemão H. Selter, os ingleses H. G.
Gibson, F. B. Bowman e J. L. Connor, os franceses Charles Nicolle, Charles Lebailly.
Cf.: TOGNOTTI, 2003:107-108.
37
Entre as críticas dirigidas aos bacteriologistas, a autora transcreve um trecho do
artigo publicado por V. Scoccia na revista Il Policlínico, em 1918: “Os bacteriologistas
estão sempre fazendo pesquisas, mas nunca chegam a um consenso. Talvez, exata-
mente como o problema ficou sem solução após a epidemia de 1889-90, temos
todos os motivos para acreditar que, nessa ocasião – a qual tem também (infeliz-
mente) gerado uma grande quantidade de material de estudos – eles acabarão
chegando a conclusão nenhuma” (In: TOGNOTTI, 2003:106).

230

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 230 19/6/2008, 23:40


Nicolle e Lebailly, na França, Selter, na Alemanha, e Arthur Moses e
Henrique de Aragão, entre nós, acreditam ter verificado a transmissão da
influenza epidêmica por meio de um micróbio filtrável. Muitas outras au-
toridades nesses assuntos não aceitam esses micróbios filtráveis como cau-
sa da influenza, de modo que nada está decidido a tal respeito”.
(FONTENELLE, 1925:427-428 grifo nosso)
A descoberta do vírus da gripe seria feita durante uma epidemia
ocorrida na Inglaterra em 1933. Depois de procederem à filtragem de
material nasofaringeano colhido em indivíduos doentes, e à inoculação de
animais de laboratório (furões), os cientistas Wilson Smith, Christopher
Andrewes e Patrick Laidlaw conseguiram reproduzir a doença. O agente
causador seria definido como vírus influenza “A”. A partir da década de
40, foram identificados dois novos tipos, “B” e “C”, associados com epi-
demias esporádicas, e outros diversos subtipos e suas variantes originados
pela mutação genética (VERONESI, 1969:19; KILBOURNE, 1991:10;
BEVERIDGE, 1978:68-71).38
Na segunda metade do século XX, os avanços da virologia leva-
ram ao estabelecimento da estrutura genética do vírus, esclarecendo seu
mecanismo etiológico. A ampla capacidade de mutação, gerando dife-
rentes recombinações genéticas, revelava-se como a origem das novas
cepas virais responsáveis por outras epidemias e pandemias. Isso escla-
recia por que um ataque da doença não determinava uma imunidade
permanente ou mais longa, como ocorria no caso de outras moléstias, e
por que em alguns momentos – pandemias – a influenza apresentava
uma taxa de morbidade tão elevada (VERONESI, 1969:19-28;
KILBOURNE, 1991:10-12; BEVERIDGE, 1978:68-79).
Porém, o mistério daquela onda de influenza tão trágica e letal
continuaria controverso, instigando a curiosidade de vários pesquisado-
res. Ainda na década de 30, Richard Shope e Patrick Laidlaw levantaram
a hipótese de que a moléstia pudesse estar relacionada com a influenza
suína, que fora observada nos Estados Unidos naquele mesmo ano (SHOPE,
1958:173). Atualmente, sabe-se que aves e alguns mamíferos são reser-

38
A experiência dos cientistas ingleses repetiu os procedimentos e resultados obti-
dos por Richard Shope em relação à gripe suína, no ano 1928 (Cf.: BEVERIDGE,
1978:4-5; SHOPE, 1958, p.172).

231

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 231 19/6/2008, 23:40


vatórios animais do vírus tipo “A”, que, eventualmente, podem infectar
humanos. Discute-se, no entanto, se o homem pode transmitir esse vírus
animal a outro homem. Porém, a infecção de um hospedeiro com os vírus
humano e animal pode levar a uma recombinação genética, dando origem
a uma nova variedade, altamente letal, capaz de contaminar humanos.39
Desde a década de 1950, a Organização Mundial de Saúde conta
com um serviço de vigilância epidemiológica da influenza que monitora
as manifestações da doença na tentativa de precaver-se diante das ame-
aças de novas variantes virais. Em janeiro de 2004, foram noticiados os
primeiros casos de infecção humana pela Gripe Aviária, que atingiu o
continente asiático em fins de 2003, mobilizando organismos internacio-
nais para monitorar a doença e controlar a ameaça por meio da extinção
das aves (BEVERIDGE, 1978, TONIOLO NETO, 2001; COLAVITTI,
2004). Porém, em 1918, nem esses conhecimentos científicos nem as
instituições internacionais estavam disponíveis para aqueles que tiveram
que fazer frente à pandemia de espanhola.

Notícias sobre a influenza nas terras do Brasil

A presença da influenza nas Américas é considerada por alguns


autores como fato que teria ocorrido após a colonização. A possibilidade
de que a doença tivesse chegado ao continente por intermédio dos ances-
trais das populações ameríndias é contestada por David Patterson, sob o
argumento de que a existência e expansão da influenza estão intimamen-
te relacionadas à densidade de vítimas potenciais e à capacidade de
mobilidade que elas apresentam (PATTERSON, 1986:6). Para ele, a
influenza figuraria entre outras doenças infectocontagiosas introduzidas
pelo intercâmbio entre nativos, europeus e africanos a partir do século
XVI. Ao lado de moléstias como tifo, varíola, sarampo e outras, a influenza
teria contribuído para o desaparecimento de diversas tribos nativas, uma

39
Esse “laboratório biológico” do vírus da influenza pode estar no próprio homem,
ou nos suínos, espécie capaz de contrair a influenza humana e também aviária
(BEVERIDGE, 1978; KOLATA, 2002; TONIOLO NETO, 2001; COLAVITTI,
2004:53-59).

232

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 232 19/6/2008, 23:40


vez que os antigos habitantes dessas terras não apresentavam imunidade
em relação a elas40. Alfred Crosby acredita que a doença esteve restrita
ao velho mundo até o final do século XV, apoiando sua afirmação na
associação entre a influenza e os animais domesticados, e na extrema
vulnerabilidade de populações isoladas, como os ameríndios. Segundo
Crosby, em pequenas populações, a moléstia poderia extinguir-se, pela
morte ou pela imunidade das vítimas (CROSBY, 1993:808).
No Brasil, as primeiras referências sobre a doença remetem ao
período colonial. Emanuel Araújo e Lycurgo Santos Filho apontam que
epidemias de influenza teriam grassado em várias capitanias já no pri-
meiro século da colonização41. As referências à doença iriam se avolumar
durante os séculos XVIII e XIX. Por volta de 1771, o Rio de Janeiro
seria atingido por uma epidemia de “gripe nervosa”, originária de Lis-

40
Tais interpretações seguem as proposições formuladas por McNeill relativas à
noção de “nicho ecológico”, relacionando a ausência de imunidade a determina-
das doenças infecciosas em certas regiões ao fato de estas terem permanecido
isoladas, impedindo o contato com os agentes patógenos por elas responsáveis e,
por conseguinte, o desenvolvimento da capacidade de reação à sua presença e
proliferação no interior do organismo (McNEILL, 1976). A mesma linha de análi-
se fundamenta as afirmações de Alfred Crosby sobre as transferências patológicas
que tiveram lugar entre Europa e América após a “descoberta” e colonização
desse último continente (CROSBY, 1998 e 1973).
41
Em 1552, o padre Vicente Rodrigues informava que, entre os índios de
Pernambuco, houve uma “tosse geral de que muitos morriam”. Antes de termina-
da aquela década, a doença também seria reportada no Rio de Janeiro e no Espí-
rito Santo, causando grandes prejuízos nessa última capitania, uma vez ter matado
número significativo de escravos: “foi tão grande a mortandade (...) e tão acelerada
que do dia em que lhes dava, até o sexto os levava (...) em breve tempo achamos
por conta a seiscentos escravos serem mortos” (In: ARAÚJO, 1993:56). Cf.: SAN-
TOS FILHO, 1977:182 vol.1. Em Minas Gerais, um dos primeiros registros escri-
tos sobre a doença se daria na Comarca do Serro Frio. No ano 1792, em requeri-
mento enviado ao almotacé da Vila do Príncipe pelo escrivão do Senado da Câmara,
afirmava-se ser “público e notório” existir naquela vila “a Epidemia dos Povos em
defluxoins perigosas”. Por isso, requeria o Senado, em nome de seu presidente e
demais vereadores, que os moradores de todas as ruas fossem interpelados a faze-
rem diariamente “fogueiras de ramos e ervas aromáticas para purificarem o ar”.
VICTOR, 1925:526. O defluxo é identificado como uma “inflamação catarral da
membrana mucosa das fossas nasais” (CHERNOVIZ, 1908:1574).

233

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 233 19/6/2008, 23:40


boa, onde recebera o nome de uma cantora lírica, Zamperini. Segundo o
Barão de Lavradio, a doença teria se caracterizado por sintomas como a
diarréia, “seguida de fenômenos paralíticos” (ALMEIDA, 1921:453).
No ano 1786, um clínico fazia referências a “algumas catarrais (...) acom-
panhadas de tosses convulsivas” (ARAÚJO, 1993:56).
Em 1826, uma nova epidemia atingia a capital brasileira, ficando
conhecida pelo nome de “A corcunda”, visto os acessos de tosse que
provocava fazerem as vítimas apresentar um aspecto curvado (ALMEIDA,
1921:453).42 Essa epidemia parece ter se estendido a várias outras pro-
víncias, inclusive Minas Gerais. Em carta escrita no arraial de Conquista,
o padre Bento Alves Gondim descrevia a atuação da moléstia em algu-
mas localidades mineiras naquele ano:
“Fui ter os dias santos no arraial da Conceição, por ser capelão e tesou-
reiro da Irmandade do Rosário e querendo me recolher no dia 2 do
corrente mês foi toda a família atacada de epidemia deefluxionária que
tanto grassou a ponto de ser necessário buscar a quem nos servisse.
Só no dia 9, a muito custo, regressei deixando ainda lá alguns bem
atacados e aqui tem passado a quase toda a Fábrica; caem uns, levan-
tam-se outros. E mesmo no Condonga Grande, e nos Córregos, segundo
me consta tem grassado a tal peste. Dos Córregos sei não ter perigado
pessoa alguma (...).” (ALMEIDA, 1921:453)43
A epidemia ocorrida em 1835, no Rio de Janeiro, seria classificada
por Joseph Sigaud como uma epidemia de febre catarral, cuja sintomatologia
era caracterizada por vertigens, dores de cabeça e febres violentas. Segun-
do Sigaud, no caso de prolongar-se por mais de uma semana, a doença
poderia provocar muitas mortes entre a população infantil, em função de
possíveis complicações pneumônicas. Ele afirmava também que a molés-
tia era causada pelas condições atmosféricas: a seca prolongada e os gran-
des calores do final do verão (BERTOLLI FILHO, 1986:91).

42
Como se vê, o hábito freqüente de se nomear as epidemias de gripe recorrendo
a assuntos que se inscrevem e impregnam o cotidiano em determinadas ocasiões,
tem raízes profundas na cultura popular.
43
Condonga Grande e Córregos eram, respectivamente, uma lavra de ouro distan-
te cerca de 270 km, e um povoado a cerca de 20 km do arraial de Conceição.

234

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 234 19/6/2008, 23:40


Sobre essa epidemia, o Barão de Lavradio informava ter sido de-
nominada como grippe e cholerina, havendo quem a considerasse pre-
cursora da cólera morbus (In: MONCORVO FILHO, 1924:15).44 Seu
reinado, caracterizado por uma ampla extensão, simultaneidade de ata-
ques e o acometimento de forasteiros, parece ter levado o terror à popu-
lação, sendo esse potencializado pelas diferentes opiniões emitidas pelos
membros da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro. Em função das
divergências sobre a natureza da doença e do pânico popular, foi nome-
ada uma comissão de estudos – formada pelos doutores Silva Maia, Paula
Candido, Valladão e Guissart – que daria parecer afirmando que, naque-
le ano de 1835, a doença teria grassado de forma mais grave que nos
anteriores, especialmente pelo maior grau de malignidade que podia as-
sumir, tendo por isso merecido uma maior atenção da população
(MONCORVO FILHO, 1924:15-17).
O parecer dessa comissão trazia também um pequeno resumo de
outras aparições da moléstia, cada uma delas apresentando sintomas
bastante singulares: reações no sistema locomotor, em 1780; afecções
nos olhos, levando a “inflamações terríveis” e mesmo à cegueira, em
1801; caráter pneumônico, no ano 1816. As demais manifestações da
doença, intercaladas no mesmo período, teriam se revestido de um cará-
ter benigno (MONCORVO FILHO, 1924:17). A comissão classificava a
moléstia como uma epidemia de bronchitis, originada pelas
“(...) variações súbitas de temperatura, em virtude de chuvas escassas,
alterando com altos graus de temperatura e reinado de ventos contrários
do quadrante norte, quentes e secos, e do quadrante sul, frios e úmidos,
sendo certo que tão notável foi a influência dos ventos na produção dessa
epidemia que as casas situadas na direção norte a sul foram as que deram
maior número de doentes”. (apud MONCORVO FILHO, 1924:15)

Mudadas as condições atmosféricas, desaparecia a epidemia de


gripe para dar lugar às febres intermitentes e outras moléstias. Como se

44
A antiga noção de que uma moléstia pudesse se transformar em outra com a
mudança das condições atmosféricas, examinada na seção anterior desse capítulo,
encontraria defensores até a segunda metade do século XIX (PATTERSON,
1986:29).

235

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 235 19/6/2008, 23:40


vê, a comissão partilhava a noção de que cada nova caracterização das
condições climáticas favorecia o surgimento de determinadas afecções e,
ainda, a idéia da transformação das doenças reinantes em determinado
período em outras moléstias. Retomando o que foi visto na seção anteri-
or, essa forma de percepção, que relacionava as doenças às condições
atmosféricas, foi bastante difundida entre os séculos XVII-XIX, remeten-
do ao conceito de constituição epidêmica proposto pelo médico inglês
Thomas Sydeham – “um estado da atmosfera propício a certas doenças
capazes de se espalharem enquanto persistir a constituição particular”
(Cf.: ROSEN, 1994:88).45 Exemplo dessa forma de pensamento nos é
dada pelo mesmo Barão de Lavradio, ao referir-se a uma das aparições
dessas epidemias de catarraes:

“(...) caracterizada em seu princípio por sintomas mui benignos, (...)


passou depois a tomar caráter mais sério complicando-se com pneumo-
nias e pleurizes que não deixavam as vezes de ser graves e fatais, de
febres intermitentes mais ou menos violentas, enfim da febre amarela
cuja manifestação se revelava depois pelo aparecimento dos sintomas
aterradores”. (In: MONCORVO FILHO, 1924:19)46

Durante todo o século XIX, outras epidemias de influenza atingi-


riam o país. Acompanhando as informações sobre as aparições da doen-
ça arroladas por Moncorvo Filho, é possível notar que a influenza havia
se tornado uma doença comum em terras brasileiras, não havendo déca-
da que se passasse sem o registro de uma ou mais epidemias, brandas ou
não: “de então para cá (...) a legítima influenza tornou-se endêmica em
nosso meio”, dizia Moncorvo (MONCORVO FILHO, 1924:22). Tam-
bém pareciam constantes as relações entre o surgimento da moléstia e as
mudanças climáticas. Febres, anorexia, prostração e um incômodo
indefinível e duradouro eram outras características que se repetiam.
Quando os sintomas envolviam fenômenos diversos – nervosos,
gastrointestinais – apresentando complicações mais ou menos graves,

45
Como veremos, a noção de que condições climáticas distintas poderiam influir no
caráter ou malignidade das doenças ainda estaria presente no início do século XX.
46
A epidemia assim mencionada por Lavradio teve lugar no ano de 1852, no Rio
de Janeiro.

236

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 236 19/6/2008, 23:40


estimulava-se o debate sobre a natureza da moléstia, havendo quem du-
vidasse ser gripe a doença então manifestada.47 Os casos fatais pareciam
atingir preferencialmente crianças e idosos e, especialmente, aqueles nos
quais a doença provocava o agravamento de padecimentos anteriores
(CHERNOVIZ, 1908:1749-1754; OSLER, 1908:161-165; DUFOURT,
1926:141-145; DUPRAT, 1918).
Vale mencionar ainda outros dois aspectos que pareciam marcar
as diversas incursões da moléstia: a morbidade e o amplo espectro social
atingido – “muito geral e extensa” eram adjetivos comuns atribuídos às
epidemias de influenza. O Barão de Lavradio e Joseph Sigaud apontam
para a ampla disseminação verificada durante diversas manifestações da
doença, invadindo a um só tempo quartéis, hospitais, domicílios urbanos
e chácaras vizinhas aos centros atacados (MONCORVO FILHO, 1924:16
e 19). O Dr. De Simoni assim descrevia uma epidemia ocorrida na déca-
da de 1840, conhecida como polka: “os hospitais cheios... atacava famí-
lias inteiras em poucos dias, e tendo havido casas em que não ficou de pé
uma só pessoa e foi preciso serem socorridas por alguém da vizinhança
ou de amigos e parentes de fora” (De Simoni, citado por MONCORVO
FILHO, 1924:23).48
Essa generalização contribuía para a difusão de uma percepção
de que não havia privilegiados diante da moléstia. Conforme as várias
referências à influenza feitas pelo Barão de Lavradio e outros autores

47
Na verdade, nada garante que essas manifestações epidêmicas não pudessem
ser devidas a outras moléstias, na medida em que, como se viu na seção anterior,
mesmo no século XIX, a influenza era confundida com outras doenças.
48
Polka era a denominação “plebéia” da influenza: “...o povo a denominou de
Polka, querendo dizer com esse nome a moléstia da moda, ou antes aludir ao jeito,
que tomam, no andar, as pernas de algumas pessoas que a sofreram, as quais, por
causa das dores com que ficam nas pernas parecem andar executando certos mo-
vimentos dos que dançam este bailado de última moda” (De Simoni). “No Brasil
quanto à terminologia da gripe, o zamparinismo epidêmico foi importado pelo
lisboeta. Os espanhóis e argentinos abusavam do trancazo, os franceses de mil
nomes populares, os portugueses... da zamparina e os brasileiros... da zamparina
mais da polka” (José Novaes de Souza Carvalho Neto) (In: MONCORVO FI-
LHO,1924, respectivamente, p. 24-25 e p. 23-24). A mesma informação é dada
por CHERNOVIZ, 1908:1749.

237

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 237 19/6/2008, 23:40


citados em Moncorvo Filho, ela não poupava classe social, idade, sexo ou
raça. Todos sucumbiam à gripe, diferentemente de outras doenças, que
pareciam atingir as áreas mais insalubres das cidades e, em decorrência,
as camadas mais pobres da população. A mesma afirmação podia ser
confirmada em diversos manuais médicos. Segundo Chernoviz, tão logo
irrompe em uma dada localidade, a influenza acomete, em pouco tempo,
“a maior parte da população e arrebenta quase simultaneamente em
todos os bairros de uma cidade. Geralmente ataca a todas as classes da
sociedade sem distinção de idade, de sexo, nem de condição social”
(CHERNOVIZ, 1908:1750). Propondo uma comparação entre a influenza
e a cólera, R. J. Graves dizia: “A gripe não é nem tão grave nem tão
rapidamente fatal como a cólera, mas ela leva a uma mortalidade mais
considerável, porque afeta indiferentemente todas as classes da sociedade,
enquanto as incursões da doença asiática são relativamente mais limitadas”
(GRAVAS, 1871:500-501).
Assim, a idéia de que não havia privilegiados diante da influenza
era noção generalizada no século XIX. Portanto, o que Bertolli Filho cha-
mou “ilusão democrática” em relação à espanhola de 1918 – isto é, a
memória criada a respeito da epidemia afirmando que a doença havia
atingido pobres e ricos sem distinção – parece ter raízes mais remotas,
sendo expressão do que era considerada uma característica distintiva da
moléstia e, também, elemento constituinte das opiniões médicas e, por
que não dizer, de um imaginário social criado em torno da própria influenza.
Em fins do século XIX, uma nova epidemia atingiu o país (1889-
1890). Mais que a mortalidade gerada pela doença, chamaria atenção a
ampla difusão por ela alcançada. Tendo se originado na Rússia, grassou
pela Europa, Américas, Ásia e Austrália, assumindo o caráter de verda-
deira pandemia (BEVERIDGE, 1978:30). Chegada em Salvador por
meio de uma embarcação holandesa, deixaria enferma metade de sua
população (BERTOLLI FILHO, 1986:92). No Rio de Janeiro, conforme
diziam os médicos, a doença teria assumido caráter grave sem, no entan-
to, apresentar um número elevado de óbitos, quase todos vítimas de
complicações agravadas por causa de moléstias pré-existentes ou da ida-
de avançada (MONCORVO FILHO, 1924:25; MEYER e TEIXEIRA,
1920:407). A pandemia de 1889-1890 marcaria a memória médica e
popular, sendo constantemente usada como referência, especialmente
pelos clínicos que discorreram sobre a epidemia de 1918.

238

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 238 19/6/2008, 23:40


Durante o século XX, a influenza continuaria a fazer suas incur-
sões por terras brasileiras. Ela ressurgiu no Rio de Janeiro em 1903,
juntamente com o aparecimento da peste bubônica, mobilizando as auto-
ridades sanitárias. Porém, como vimos no segundo capítulo, se as autori-
dades lograram conter a expansão da peste, o mesmo não se verificou em
relação à gripe, que se difundiu pela capital federal e por outros estados
(MONCORVO FILHO, 1924:26).49
Em Belo Horizonte, o Dr. Cícero Ferreira, então diretor de higie-
ne da capital, dizia ter sido a epidemia de influenza de 1903 menos
intensa, porém mais extensa que a de sarampão, verificada naquele mes-
mo ano. Segundo ele, não era possível precisar o número de atacados,
mas não relutava em afirmar que, entre a população adulta, “poucas,
bem poucas mesmo foram aquelas pessoas que de uma forma ou de
outra não pagaram o seu tributo”50. Sua extrema difusibilidade,
contagiosidade e seu caráter proteiforme, que dificultava a observação
de uma sintomatologia específica especialmente no início dos eventos
epidêmicos, determinavam que qualquer medida de profilaxia, agressiva
ou defensiva, se revelasse “absolutamente ineficaz”.51
Sobre essas manifestações da influenza nos primeiros anos do sé-
culo XX, Garfield de Almeida afirmava que os dados demográficos não
precisavam com certeza “as datas em que a doença com esse nome haja
sido registrada”. No entanto, desde 1900, ela já figurava “de modo apre-
ciável” no obituário da capital do país, contando naquele ano 88 óbitos,
cifra que, segundo ele, representava cerca “do dobro da maior até então
consignada. Desde então, ela ascende sempre a muitas centenas até cul-
minar na grande pandemia de 1918” (ALMEIDA, 1921:454). O mes-
mo podemos dizer em relação à capital mineira. Desde 1897, ano de sua
fundação, a gripe já figurava entre as principais causas de óbito da popu-
lação por moléstias transmissíveis e, apesar de não atingir a casa das

49
Cf. também capítulo 2.
50
PREFEITURA DE BELO HORIZONTE. Relatório apresentado ao Conselho
Deliberativo..., 1903, p. 40.
51
ESTADO DE MINAS GERAIS. Relatório apresentado ao Conselho Deliberativo...,
1903, p. 40.

239

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 239 19/6/2008, 23:40


centenas – a não ser no ano 1918 – ela suplantava os óbitos anuais de
outras moléstias como a varíola, peste, febre amarela e o paludismo.52
De todas as aparições da influenza, a que maior repercussão provo-
cou foi, sem dúvida, a pandemia de 1918. Por essa época, a visão sobre
a doença já havia incorporado muitas das chamadas conquistas da bacte-
riologia, sendo que um número considerável de doutores acreditavam ser
a gripe devida à ação de um microorganismo específico. Alguns critica-
vam a velha equação que ligava os “insultos epidêmicos” a uma determi-
nada “fórmula meteorológica”. Sobre isso afirmava Moncorvo Filho:
“É verdade que, com o correr dos tempos e as grandes conquistas da
ciência do microscópio, sofreram completo desprestígio as arcaicas dou-
trinas hipocráticas e galênicas das chamadas constituições médicas na
dependência dos agentes cósmicos, do ar, da temperatura, das estações,
emprestando às doenças certa forma e predominância”. (MONCORVO
FILHO, 1924:137)
Porém, apesar dessa propensão às afirmações da bacteriologia
sobre o contágio e os agentes específicos causadores das moléstias,
Moncorvo Filho parece vacilar diante de alguns exemplos que registra-
vam o ataque da doença, independentemente do fato de suas vítimas
terem observado um isolamento estrito, ou daqueles nos quais a moléstia
parecia não acompanhar as rotas naturais do deslocamento humano.
Apresentando outros estudiosos que opinavam por um papel influente
das condições meteorológicas no aparecimento da influenza, dizia con-
cordar com os que julgavam ainda “misteriosa” a solução desse proble-
ma (MONCORVO FILHO, 1924:140).53 As dúvidas de Moncorvo Fi-
lho, porém, não foram exclusivamente suas. Toda comunidade científica
se veria sem respostas diante daquele pandemônio que marcou os últi-
mos meses de 1918. Na verdade, a imposição de uma nova nomeclatura
não é um processo imediato, mas sim negociado.

52
ESTADO DE MINAS GERAIS. Anuário de Estatística Demógrafo-Sanitária...,
1921, p. 26, e MALETTA, 1997. Confira os dados apresentados na Tabela 1, no
capítulo 2.
53
Ainda na década de 1930, encontramos médicos fazendo referência à influência
das condições atmosféricas ou telúricas para explicar a contaminação por determi-
nadas moléstias. Um exemplo são os comentários do Dr. Décio Parreiras, diretor

240

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 240 19/6/2008, 23:40


Quando a pandemia de espanhola chegou a Belo Horizonte, en-
controu os médicos da capital em uma posição bastante semelhante àque-
la em que estavam os profissionais da saúde de outras cidades do país,
isto é, quase nada se sabia sobre a influenza. Segundo Bertolli Filho, entre
as doenças epidêmicas, a influenza era “uma das patologias menos conhe-
cidas e estudadas pela medicina das primeiras décadas deste século, tan-
to no Brasil quanto nos principais centros de pesquisa da Europa”
(BERTOLLI FILHO, 1986:132). Tal afirmação pode ser confirmada por
meio da consulta a alguns manuais médicos do período, nos quais a mo-
léstia era tratada de forma generalizante ou, muitas vezes, sequer menci-
onada, como se verifica, por exemplo, no Compêndio de higiene, de Afrâ-
nio Peixoto, ou no manual de Desinfecção e profilaxia individual contra as
doenças infectuosas, de Sternberg, nos quais não há menção à influenza.54
Naquela época, os conhecimentos relativos à influenza apontavam
ser ela uma moléstia infecciosa de rápida propagação, mas de caráter
geralmente brando. Sua ampla contagiosidade evidenciava a ineficácia
da maior parte das medidas preventivas então indicadas contra moléstias
da mesma natureza. Além disso, a freqüente benignidade de suas mani-
festações justificava a ausência de maiores preocupações em relação à
evolução dos casos (OSLER, 1908:160-164; CHERNOVIZ, 1908:1750;
ROUSSY, 1919; ANDRÉ, 1918).
Essas considerações propaladas sobre a doença, ajudam a enten-
der o pouco alarde produzido pelas primeiras notícias sobre a gripe que
grassava em alguns países da Europa em 1918. A “distância de um oce-
ano”, como aponta Nara Brito, e os problemas gerados pela carestia e as
informações sobre a guerra, segundo Liane Bertutti, faziam da influenza
espanhola um acontecimento longínquo e de menor importância para gran-

do Serviço de Saúde do Distrito Federal, que, apesar de aceitar a hipótese corrente


da contaminação da poliomielite pelas vias aéreas superiores, chamava a atenção
para outros fatores, como a umidade do ar, a eletricidade atmosférica, as variações
da estação e do campo magnético. Parreiras atribuía o declínio de uma epidemia
da doença em 1939, não às medidas de ordem sanitária, mas às alterações atmos-
féricas ambientais (Cf.: CAMPOS, NASCIMENTO e MARANHÃO, 2003).
54
PEIXOTO, 1913, ver: Infecções, p. 501-615 passim. Cf. ainda: STERNBERG,
1889.

241

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 241 19/6/2008, 23:40


de parte da população brasileira (BRITO, 1997; BERTUCCI, 2003).
Além disso, naquele momento não havia ainda uma definição clara sobre
qual doença era aquela. A variedade de sintomas fazia alguns suspeita-
rem de um ataque de dengue, tifo, cólera, influenza maligna; outros supu-
nham ser uma patologia desconhecida; a imprensa referia-se a ela como
“peste de Dakar” – em referência ao porto no qual os navios brasileiros
foram infectados. “Sei apenas que se diz ser uma gripe ou influenza malig-
na (...) [mas cuja natureza] está, porém, ainda envolta em dúvidas”, era o
que declarava a principal autoridade de saúde do país, o diretor geral da
saúde pública do Rio de Janeiro Carlos Seidl (SEIDL, 1918:436).
Ainda no mês de setembro, o chefe do Corpo de Saúde do Exér-
cito, Almirante Lopes Rodrigues afirmava:
“Não é fácil, com os dados que possuímos sobre a epidemia que acome-
teu as guarnições de nossos navios da Divisão de Guerra, fazer juízo
seguro sobre ela. É, entretanto, fácil conjeturar que a influenza espanho-
la tenha se modificado com a alta temperatura do Senegal, complican-
do-se com as doenças ali reinantes, de cuja marcha e modalidades
comparticipará, despertando-a de sua esporadicidade. Nossa gente, não
aclimada, sofreu, por isso, as primeiras investidas. Não estou longe mes-
mo de supor que a epidemia atual seja Dengue, que tem por vezes
precedido a influenza, como foi em 1889, em Santa Catarina e, no
mesmo ano, em Beirute.” (In: MEYER e TEIXEIRA, 1920:502).
Nos debates sobre a moléstia ocorridos em outubro na Academia
Nacional de Medicina, o almirante Lopes Rodrigues continuava susten-
tando que a doença observada no Rio de Janeiro parecia ter uma nature-
za completamente diversa daquela que grassava em Dakar: “Não creio
(...) que a epidemia que atacou a nossa esquadra em Dakar seja de modo
algum a influenza que reina entre nós (...). Não pode ser a gripe que nós
conhecemos porque não mata desta maneira”.55 Mais uma vez, sugeria
relações entre o caráter assumido pela moléstia e o clima da região,
trazendo de volta velhas noções sobre a origem e a propagação das doen-

55
Segundo Lopes Rodrigues, a doença de Dakar havia vitimado mais de 90 entre
os 1.500 homens da esquadra brasileira, proporção que, segundo ele, não se
observava em relação à epidemia reinante no Rio de Janeiro. Ver: Revista Médico-
Cirúrgica do Brasil, Ano XXVI, n.11, pp. 476-486, 1918, p. 480.

242

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 242 19/6/2008, 23:40


ças, discutidas na secção anterior desse capítulo. Ao dizer que as condi-
ções climáticas do Senegal poderiam ter modificado a natureza da
influenza, Lopes Rodrigues parece retomar o que postulava a idéia da
constituição epidêmica: que a natureza das doenças variava conforme o
meio e as condições meteorológicas prevalentes. Também chama a aten-
ção, sua proposição de que a moléstia tivesse se tornado mais grave em
função de outras doenças que grassavam na região de Dakar.
Apesar das várias declarações feitas no decorrer da epidemia, as
dúvidas sobre a verdadeira identidade da moléstia ainda atormentariam
os médicos mesmo depois de passado o evento. Cotejando as divergentes
doutrinas e opiniões emitidas sobre doença em seu relatório de 1919, o
diretor de higiene de Minas Gerais, Samuel Libânio, enumerava as se-
guintes posições: a corrente que afirmava ser ela uma gripe banal, que
teria sua difusibilidade e contagiosidade aumentadas, mercê das circuns-
tâncias especiais advindas da guerra; os que a consideravam uma gripe
anômala; um terceiro grupo, que filiava a moléstia à febre dos três dias,
causada por agente invisível e filtrável e transmitida por uma espécie de
mosquito; por fim, havia quem a considerasse uma entidade nosológica à
parte, portanto distinta da velha e conhecida influenza. Expondo sua
opinião sobre posições tão heterogênas, Libânio dizia: “no momento pre-
sente, não obstante a faina de milhares de pesquisadores, perdura a
ignorância com referência ao assunto de que tratamos.”56
As posições enumeradas por Libânio podem ser identificadas em
alguns dos periódicos médicos em circulação no país. A Revista Médico-
Cirúrgica do Brasil, de setembro de 1918, trazia artigo do Dr. Frank
Duprat, no qual afirmava que a epidemia que então grassava nos países
europeus apresentava muitas semelhanças com a sua antecessora, de
1889/1890. Entretanto, enumerava algumas características particulares
da epidemia de espanhola que sugeriam a presença de um novo micró-
bio – ou, pelo menos, a “exaltação da virulência do antigo” – entre elas:
a freqüência das complicações pulmonares, as complicações cardíacas e
o fato de atacar preferencialmente jovens fortes, sendo rara entre as
crianças (DUPRAT, 1918:418-419). No mesmo número da revista, era

56
ESTADO DE MINAS GERAIS. Relatório apresentado ao Exmo Sr. Secretário do
Interior..., 1919, p. 14.

243

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 243 19/6/2008, 23:40


possível ler as considerações do Dr. Noël Fiessinger, da Faculdade de
Paris. Fiessinger afirmava que a onda benigna, surgida em março de
1918, assumira a forma da febre dos três dias, sendo análoga à dengue;
em agosto e setembro, porém, tornara-se grave e fulminante, fazendo
lembrar a cólera e a peste (FIESSINGER, 1918).
O Dr. Henrique de Beauperaire Aragão, assistente do Instituto
Oswaldo Cruz, discordava das opiniões que apontavam ser a epidemia
de 1918 uma nova “entidade mórbida ou então uma forma de gripe
diversa”. Ao contrário, dizia ser a gripe de 1918 a mesma influenza
pandêmica de outros tempos que, em conseqüência das profundas alte-
rações nas condições de vida provocadas pela guerra, havia “exaltado-se
extraordinariamente” (ARAGÃO, 1918). Comparando a pandemia de
1918 com outras manifestações da gripe na capital federal, o Dr. Bulhões
de Carvalho chegava a conclusão oposta, dizendo ser a forma pandêmica
observada naquele ano “muitíssimo mais letífera do que a grippe nostras”,
habitualmente observada na estatística demógrafo-sanitária da capital
federal. Ao final de seu artigo, afirmava que “a verdadeira gripe” era
uma doença contagiosa e mortífera, apresentando uma gravidade bem
mais elevada do que a “afecção de caráter endêmico que, com o mesmo
nome, figura no obituário do Rio de Janeiro” (CARVALHO, 1919:204 e
206). Em 1919, em artigo transcrito na mesma revista, o Dr. B Roussy
informava haver na Faculdade de Medicina de Paris um professor que
criticava a origem microbiana da doença, sustentando ser ela determina-
da por fatores físicos e meteorológicos. Afirmava ainda haver pesquisa-
dores que, após longos estudos, colocavam em dúvida a especificidade
da gripe (ROUSSY, 1919).
Os artigos publicados pelo Brasil-Médico e pela Revista Médico-
Cirúrgica do Brasil revelam que os profissionais brasileiros acompanha-
vam de perto as pesquisas e os debates realizados pela comunidade cien-
tífica internacional em torno da pandemia, reproduzindo aqui muitos dos
experimentos que estavam sendo realizados em diversos países. Além
disso, a controvérsia verificada entre os médicos brasileiros em relação à
natureza da influenza em nada diferia do que era observado entre os
pesquisadores estrangeiros.
Essa controvérsia sobre a natureza da moléstia é aspecto funda-
mental para entender-se a postura das autoridades sanitárias brasileiras
diante da ameaça de disseminação da moléstia. Como vimos nos capítu-

244

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 244 19/6/2008, 23:40


los anteriores, no dia 10 de outubro, quando a doença já fazia centenas
de espanholados no Rio de Janeiro, avançando também sobre outras
cidades do país, as autoridades sanitárias afirmavam que os casos então
verificados eram de gripe benigna, informando que nenhuma medida
excepcional seria tomada, visto tratar-se de “um mal que nos visita peri-
odicamente, (...) sem caráter grave”, sendo mantida vigilância perma-
nente em todos os portos da União das embarcações procedentes de
Dakar.57 A mesma postura é verificada na capital mineira, onde o diretor
de higiene do estado Samuel Libânio declarava serem realmente, como
então se dizia, casos de gripe, a doença manifestada por uma família
recém-chegada do Rio de Janeiro, enfatizando, porém, o “caráter benig-
no” da moléstia e afirmando que as medidas postas em prática – isola-
mento, desinfecção e expurgo dos focos – tinham apenas um caráter
preventivo.
Essa ausência inicial de ações mais específicas contra a ameaça
representada pela influenza, entre fins de setembro e início de outubro,
parece comportar ao menos cinco possibilidades de explicação, não
excludentes. Uma delas era a própria desinformação a respeito da natu-
reza da moléstia, afinal a decisão sobre como fazer frente ao mal depen-
dia, em primeiro lugar, de saber-se o que se estava combatendo. Era isso
que dizia Carlos Seidl ao Jornal do Comércio, no último terço de setem-
bro: “(...) o serviço sanitário que dirijo fará tudo quanto puder para evitá-
la. Para fazê-lo é preciso antes do mais saber, porém, positivamente o
que é essa chamada influenza espanhola”.58 Opinião semelhante era de-
fendida pelo Dr. Artur Moses, para quem a ausência de uma definição
sobre o agente causador da moléstia dificultava a defesa sanitária do
país, uma vez que a “base de toda a profilaxia racional é o conhecimento
do germe, das propriedades biológicas da imunidade pelo mesmo
conferida e das condições em que se mantém no organismo e no meio
externo” (MOSSES, 1919:37).
Em segundo lugar, essa ausência de ações públicas refletiria a
opinião partilhada por alguns representantes da classe médica de que a
moléstia verificada no país não era a mesma que havia atacado os brasi-

57
Minas Gerais, 10 de outubro de 1918, p. 4.
58
Jornal do Comércio, 22 de setembro de 1918, In: SEIDL, 1918:455.

245

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 245 19/6/2008, 23:40


leiros em Dakar. Como foi dito, havia quem acreditasse que a doença
aqui chegada apresentava um caráter mais brando em relação àquela
que grassava nos portos europeus e africanos. O recurso aos termos gripe
nostras e gripe (ou influenza) vera é um exemplo dessa forma de percep-
ção. O primeiro era identificado ao que muitos médicos acreditavam
tratar-se de simples e corriqueiro resfriado, enquanto o segundo remetia
aos episódios epidêmicos e pandêmicos, quando a influenza parecia re-
vestir-se de um caráter mais sério. Segundo Moncorvo Filho, era essa
distinção que explicava o nome influenza espanhola – “como se preten-
dendo diferenciá-la da gripe, por muitos denominada nostras e desde
tempos idos já aclimada em nosso meio e com a qual tão familiarizados
se mostravam os médicos” (MONCORVO FILHO, 1924:30). Em La
Pratique de la médicine, William Osler informava que essa denominação
era tributária de Leichtenstern, que distinguia a moléstia por meio das
seguintes categorias:
“influenza vera epidêmica, causada pelo bacilo de Pfeiffer; influenza
vera endêmica-epidêmica, que se manifesta sobretudo durante os anos
que se seguem a uma pandemia, e é causada pelo mesmo bacilo; influenza
nostras endêmica, ou pseudo-influenza, ou ainda febre catarral, como se
chama comumente a gripe, que é uma doença especial de causa ainda
desconhecida, sendo uma variação da influenza como a cólera nostras o
é da cólera asiática.” (OSLER, 1908:161)

Essa distinção parecia contar com a aceitação de muitos represen-


tantes do meio médico – como pode ser percebido na fala de Bulhões de
Carvalho, citado anteriormente – havendo, entretanto, aqueles que dela
discordavam. Em artigo publicado pelo Brasil-Médico no ano 1919, o
Dr. Ribeiro da Silva afirmava que muitos clínicos recusavam-se a admitir
que a moléstia verificada em 1918 não passasse de um “surto epidêmi-
co, de caráter excepcional, da nossa tão comum, banal e trivial gripe ou
influenza”. Segundo Ribeiro da Silva, parecia realmente difícil aceitar
que aquela moléstia grave, perigosa e misteriosa, nada mais fosse que a
velha e conhecida gripe, que anualmente originava dezenas de casos,
sendo marcada por uma “indiscutível benignidade”. Além disso, essa
postura também era justificada pelo fato de que a pandemia de 1918
havia apresentado certas particularidades que “entravam em franco con-
flito com todos os ensinamentos clássicos respeitantes à velha e conheci-

246

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 246 19/6/2008, 23:40


da gripe. Daí, ser o espírito clínico levado a concluir em favor do dualismo
das moléstias em questão” (SILVA, 1919:44).59
Essa mesma familiaridade em relação à influenza indica uma terceira
possibilidade de explicação para a reação inicial das autoridades sanitárias.
Afinal, como revelavam os conhecimentos da época, uma doença tão
ordinária e corriqueira não era vista como ameaça que merecesse maiores
atenções – a não ser entre velhos, crianças e indivíduos já enfraquecidos
por causas anteriores, em meio aos quais comumente fazia seu maior
número de vítimas. Como se lia no Dicionário médico de Littré, a gripe era
doença comum, caracterizada por uma invasão súbita, febres e constipação,
com duração entre cinco a dez dias, quadro clínico variável e evolução
quase sempre favorável. O enfraquecimento geral e a convalescença lenta
eram outra marca da doença, exigindo como terapêutica apenas repouso,
dieta, sudoríficos, febrífugos e laxativos, evitando-se, porém, as sangrias
(LITTRÉ, 1908:754).60 Essa observação acompanha as proposições de
Paul Slack sobre algumas variáveis que influem nas reações diante das
ameaças epidêmicas: a familiaridade/novidade da moléstia em questão.
Segundo Slack, doenças familiares apresentam sempre um impacto menos
expressivo quando comparadas a moléstias de natureza desconhecida,
como a peste no século XIV ou a AIDS no século XX (SLACK, 1999:5).
Por outro lado, a relativa inércia das autoridades pode ser enten-
dida, ainda, em função de outra característica que era comumente atri-

59
Entre as particularidades arroladas por Ribeiro da Silva, estavam: o fato da
epidemia de 1918 atingir de forma intensa as pessoas jovens; a curiosa benignida-
de com que acometia os velhos; a presença nos esputos dos doentes de uma varia-
da flora de estafilococos, estreptococos e outros germes de natureza indeterminada,
e a raridade de diplococos, geralmente os únicos organismos encontrados em abun-
dância nos doentes de gripe “tipo nostras”.
60
Ao contrário do que se lia no Dicionário de Littré, o Dr. Joseph Chalier, da Univer-
sidade de Lyon, apontava a sangria como uma das indicações mais seguras e bené-
ficas nos casos de influenza: “Ninguém lhe pode contestar a utilidade nos estados
asfíxicos, em que a cianose adquire uma intensidade ameaçadora. Numerosos médi-
cos há, todavia, muito tímidos, que se satisfazem com as ventosas escarificadas: não
é o bastante, é preciso agir por uma depleção brusca do sistema circulatório e
somente uma sangria a assegura, retirando sem receio pelo menos 500 gramas de
sangue (...) É preciso ter a sangria fácil” (CHALIER, 1919 grifo do autor).

247

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 247 19/6/2008, 23:40


buída à doença: sua extrema capacidade de difusão entre a população.
Os manuais de Higiene do período afirmavam que, apesar de relativa-
mente pouco grave, a influenza caracterizava-se por uma grande difusão,
diante da qual “as medidas de quarentena ou de desinfecção nas frontei-
ras, aplicáveis a outras moléstias, seriam injustificáveis e inúteis” (Jules
Renault. In: MONCORVO FILHO, 1924:33). Eram a familiaridade, a
difusibilidade e a freqüente benignidade com as quais se apresentava
que determinavam que a influenza não figurasse entre as doenças que
mobilizavam a atuação das autoridades sanitárias, não se inserindo, por
isso, entre aquelas apontadas pelos convênios assinados entre diferentes
países como objeto de profilaxia internacional – isto é, pelas medidas de
isolamento e quarentena.61
Vale mencionar, entretanto, que, apesar da grande maioria de
fontes consultadas apontarem a ineficácia de isolamentos e quarentenas,
havia aqueles que discordavam dessa posição. Em meados de outubro, o
Minas Gerais divulgava a opinião do Dr. Plácido Barbosa, que defendia a
adoção daquelas medidas e criticava as autoridades sanitárias do país:
“A empresa seria difícil, atendendo aos interesses do comércio marítimo
e dos passageiros, mas se a doença era julgada temerosa, as medidas
necessárias deveriam ser aplicadas. Fora horrível que as organizações
humanas só se atrevessem às coisas fáceis”.62
A fala do Dr. Plácido Barbosa aponta uma quinta possibilidade de
explicação para a ausência de medidas mais concretas diante da ameaça
da influenza: o descontentamento que uma política de restrição do
intercurso social poderia originar. Como revela a historiografia das epide-
mias, medidas como isolamento e quarentena impostas durante os even-
tos dessa natureza normalmente contrariam os interesses econômicos e
os pressupostos da ideologia liberal, causando embaraços à atuação das
autoridades sanitárias. Richard Evans mostra que, no século XIX, du-
rante as epidemias de cólera em Hamburgo, a validade dessas medidas

61
Segundo informava Carlos Seidl, vigoravam no Brasil dois convênios internacio-
nais: o de Paris, de dezembro de 1903, ratificado em abril de 1907, e o de
Montevideo, de 21 de abril de 1914, e “por nenhum desses convênios é lícito
considerar a gripe objeto de medidas de profilaxia internacional” (SEIDL,
1918b:461).
62
Minas Gerais, 19 de outubro de 1918, p. 3.

248

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 248 19/6/2008, 23:40


era debatida e, muitas vezes, elas acabaram sendo suspensas devido às
pressões dos grupos que se sentiam prejudicados, ou do medo de que
pudessem estimular a revolta da população (EVANS, 1987).63
No caso da gripe espanhola, o receio diante das possíveis reações
sociais frente a medidas restritivas é claramente destacado nas justificati-
vas apresentadas por Carlos Seidl à imprensa carioca, para o fato de não
haver determinado o fechamento dos teatros e cinemas como ação pre-
ventiva contra a disseminação da epidemia. Segundo dizia, essa determi-
nação só seria coerente se pudesse abranger “toda e qualquer reunião,
festa ou aglomeração de pessoas (...), o que importaria na cessação, tem-
porária embora, do movimento social” (SEIDL, 1918:437). Em sua ava-
liação, essa medida serviria muito mais para aumentar o pânico já exis-
tente entre a população, levando mesmo à sua contestação: “acredito
que os lesados com tal medida organizariam ensurdecedora orquestra de
protestos, justificável à luz de nossas leis liberais” (SEIDL, 1918:437).64
Assim, acreditamos que a posição das autoridades médicas brasi-
leiras em relação à influenza deve ser analisada dentro de um contexto
amplo, que congregava quer o universo de entendimento da doença, que
informava a ciência médica do período em questão, como também os
interesses materiais e políticos. São esses aspectos que balizam as seguin-
tes considerações sobre a profilaxia da moléstia, apresentadas pelo pro-
fessor G. André, da Universidade de Toulouse, transcritas na Revista
Médico-Cirúrgica do Brasil, ainda em setembro de 1918:
“Poder-se-á, porventura, alguém glorificar-se de conseguir por medidas
internacionais como para o cólera, a peste, o tifo, etc., impedir a propa-
gação da gripe epidêmica? (...) Tentar pôr obstáculo à invasão de uma
região, de uma cidade, pela influenza, é procurar resolver um problema
insolúvel; é um sonho, uma utopia científica; em sua marcha caprichosa

63
Sobre as reações contrárias à quarentena e isolamento, cf.: BOURDELAIS,
1988:21-28; ROSENBERG, 1987:79-81. Cf. ainda o episódio da Empresa Go-
mes Nogueira no capítulo precedente (capítulo 3, seção I: A chegada da influenza
e os transtornos no cotidiano da cidade).
64
O receio de Carlos Seidl traz à lembrança as reações da população carioca em
resposta à vacinação obrigatória contra a varíola, no episódio conhecido como a
Revolta da Vacina (1904).

249

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 249 19/6/2008, 23:40


e vagabunda, a gripe frustrará todos os regulamentos sanitários, todas as
medidas administrativas e todas as quarentenas (...).
O isolamento, tão eficaz para todas as moléstias contagiosas, em geral, é
na gripe irrealizável, a menos de interromper, durante um tempo deter-
minado, as relações sociais e os contatos que elas necessitam. (...) Além
disso, uma epidemia de algum modo planetária e ubiqüitária como é a
da gripe, balda todas as medidas profiláticas internacionais; somente a
profilaxia individual pode ter algumas probabilidades de alcançar resul-
tados positivos.” (ANDRÉ, 1918:394)65
Essas opiniões continuariam a informar a postura dos médicos
mesmo depois de passada a pandemia. Não há diferença entre o que
diziam as autoridades internacionais e as palavras que Samuel Libânio
usaria para caracterizar a moléstia, no relatório apresentado ao Secretá-
rio do Interior, no início de 1919. Nele, o diretor de higiene de Minas
Gerais afirmava que: “a noção epidemiológica adquirida da extrema
difusibilidade da moléstia não era de feitio a deixar ilusões sobre a eficá-
cia de medidas tendentes a impedir sua disseminação pelo nosso Esta-
do”. E nem mesmo a reconhecida deficiência sanitária do país podia
servir de argumento a quem criticava as autoridades, afinal, conforme
apontava Libânio, até mesmo naqueles países “dotados do melhor apare-
lhamento higiênico”, as ações implementadas nesse sentido havia “resul-
tado inúteis”.66
As declarações apresentadas acima não deixam dúvidas sobre o
fato de que um número significativo de representantes da classe médica
brasileira – em especial, aqueles que eram responsáveis pela administra-
ção sanitária – partilhava a opinião de ser praticamente impossível impe-
dir que a influenza penetrasse e se propagasse por todo o país. Sendo
realmente ela a mesma moléstia que então devastava os países europeus
e que havia atingido a esquadra brasileira em Dakar, não restava muito a
ser feito, como bem ensinavam os manuais dos grandes mestres da Higi-

65
Considerações praticamente idênticas eram apresentadas por Carlos Seidl, por
sinal, proprietário do mesmo periódico, diante da Academia Nacional de Medicina,
no dia 10 de outubro de 1918. Cf.: Minas Gerais, 12 de outubro de 1918, p. 4.
66
ESTADO DE MINAS GERAIS. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Secretário do
Interior..., 1919, p. 15.

250

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 250 19/6/2008, 23:40


ene. Somente após a constatação da presença da pandemia, as autorida-
des públicas e científicas passaram a indicar ações preventivas e terapêu-
ticas.67 A partir de então, como veremos, o isolamento e a quarentena
tornaram-se duas medidas recorrentes. Para os críticos, entretanto, elas
vieram tarde, quando a doença já havia se instalado na cidade.
Nas páginas seguintes, iremos discutir as ações postas em prática
para combater a moléstia, as explicações que buscavam responder à
tragédia causada pela gripe espanhola e a participação de alguns pesqui-
sadores brasileiros em uma nova fase do processo de refinamento
conceitual da influenza estimulado pela pandemia de 1918.

Combatendo e explicando a influenza

Mesmo que o saber médico apontasse a ineficácia de qualquer


ação de profilaxia coletiva contra a influenza, chama atenção o fato de
que tanto Samuel Libânio como as autoridades médicas responsáveis
pela saúde pública em outras cidades do país acabassem implementando
aquelas medidas desacreditadas. Como foi visto, uma semana após a
divulgação dos primeiros casos da moléstia na capital mineira, o diretor
de higiene determinava a notificação compulsória, a desinfecção dos fo-
cos e o isolamento de todos os doentes. A população era aconselhada a
evitar aglomerações, abstendo-se de freqüentar cinemas, casas de diver-
são e pontos de reunião, além de observar medidas de profilaxia indivi-
dual. Os doentes também não deviam ser visitados. Todos esses conse-
lhos visavam limitar o intercurso entre as pessoas, fundamento base do
isolamento e da quarentena.

67
“Por essa ocasião, entre os dias 10 e 12 de outubro, os casos de morte, que no
início da pandemia eram raros, começaram a ser assinalados em maior escala, até
que em 14 de outubro era verdadeiramente desesperadora a situação de nossa
população (...) o governo, atarantado ante a gravidade que se lhe deparava, só
então procurou estabelecer as primeiras medidas práticas (...)” (MONCORVO FI-
LHO, 1924:53). Cf. também p.31-32, 47. Para São Paulo, cf. BERTOLLI FI-
LHO, 1986:196. Na capital mineira, as primeiras medidas contra a influenza só
seriam tomadas uma semana depois de notificados os primeiros casos. (Cf. capítulo
3, seção II – As reações das autoridades públicas).

251

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 251 19/6/2008, 23:40


A mesma atitude seria observada em outras cidades brasileiras,
onde os departamentos de higiene divulgavam conselhos idênticos, além
de isolar os doentes e promover desinfecções (BERTOLLI FILHO, 1986;
ABRÃO, 1998; OLINTO, 1995). Alguns lugares buscaram mesmo im-
por a quarentena por meio dos lazaretos, da interdição ou impedimento
de atracação de embarcações e do controle sobre os viajantes68. Se não
acreditavam na eficácia dessas medidas para barrar a invasão da molés-
tia que visivelmente já se instalara no país, por que então as autoridades
passaram a implementá-las?
Mais que uma contradição entre pensamento e ação, essa atitude
pode ser interpretada a partir de outras perspectivas. Por um lado, ela
aponta para a ausência de um conhecimento mais refinado sobre a natu-
reza da doença que então se expandia: “dada a extraordinária dissemi-
nação da moléstia, o impreciso do seu modo de contágio e, portanto o
indeterminado de sua profilaxia, a nenhuma autoridade sanitária teria
sido possível, como de fato não foi, evitar a invasão do citado mal (...)”.69
O desenvolvimento da bacteriologia preconizava medidas específicas para
agentes/moléstias específicas, mas, diante daquela ameaça misteriosa,
que deixava dúvidas sobre a natureza da moléstia a ser combatida, as
autoridades lançaram mão das velhas práticas impostas às doenças epi-
dêmicas: isolamento e quarentena.
Apenas quando deu mostras do seu grau de virulência e difusibilida-
de, principiando por desorganizar a vida urbana, é que a espanhola passa-

68
Como vimos no primeiro capítulo, apesar de considerar benignos os casos de
gripe verificados no vapor Itajubá, o inspetor do porto de Rio Grande havia deter-
minado a quarentena da embarcação, que trazia a bordo 38 tripulantes atacados
pela moléstia. Além disso, providenciava para que os doentes fossem removidos
para o lazareto da cidade. Na primeira quinzena de outubro, as autoridades sanitá-
rias de Santa Catarina e do Paraná proibiram que o vapor Itaquera atracasse em
seus portos, devendo manter-se fundeado longe dos mesmos para desinfecção e
isolamento dos doentes (ABRÃO, 1998:62-63). Em Mato Grosso, tentou-se isolar
a capital por meio de um posto sanitário no rio Paraguai, onde embarcações, tripu-
lantes, passageiros e bagagens eram inspecionados e desinfectados (MEYER e
TEIXEIRA, 1920:573).
69
“Moção de apoio a Carlos Seidl”, apresentada por Garfield de Almeida à Acade-
mia Nacional de Medicina. In: SEIDL, 1918:444.

252

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 252 19/6/2008, 23:40


ria a ser alvo de ações mais concretas pelos médicos da saúde pública. Na
cidade de Porto Alegre, as medidas sanitárias contra a epidemia iam sen-
do aplicadas “calma e paulatinamente, seguindo os trâmites da enfermi-
dade” (ABRÃO, 1998:96). Mesmo já prevendo a invasão da moléstia na
capital paulista desde que a doença fora notificada no Rio, nos primeiros
dias de outubro, o médico Artur Neiva, diretor do Serviço Sanitário de São
Paulo, não havia tomado qualquer medida preventiva até o dia 15 daque-
le mês, quando foi declarado o estado epidêmico na capital (BERTOLLI
FILHO, 1986:195-196).70 O mesmo comportamento adotado por Carlos
Seidl, no Rio de Janeiro, e Samuel Libânio, em Belo Horizonte.
Outra possibilidade de entendimento do descompasso entre as ações
e opiniões daqueles médicos seria dada pela própria posição político-ad-
ministrativa que ocupavam. Apesar de partilharem as proposições
propaladas pela ciência médica, que indicavam não haver como conter a
invasão da influenza, Libânio, Seidl e Neiva desempenhavam funções
públicas, que exigiam respostas imediatas a qualquer ameaça, indepen-
dente de apresentarem ou não resultados positivos. Como salienta Charles
Rosenberg, as ações tomadas diante de uma epidemia não precisam, ne-
cessariamente, ser eficazes. Vivendo sob a pressão gerada pela experiên-
cia epidêmica, a população já parece confortada apenas em saber que não
está largada à sua própria sorte. Assim, algumas vezes, as medidas oficiais
são “rituais” que têm eficácia apenas simbólica. É preciso mostrar à opi-
nião pública que as autoridades estão agindo (ROSENBERG, 1995:285).71
Por outro lado, esses rituais também faziam parte da própria pro-
fissão. Segundo Ervin Goffman, para manter expectativas coletivamente
forjadas, os atores sociais desempenham certos papéis que, muitas vezes,
representam mais uma projeção dos desejos de seus interlocutores (ou
de sua platéia) do que o que realmente acreditam ou planejam realizar
(GOFFMAN, 1975). Na medicina, como mostra Colin Jones, os compor-
tamentos e atitudes dos doutores nem sempre se pautavam exclusiva-

70
Os debates sobre a natureza da moléstia podem ser acompanhados em artigos
publicados pelo Brasil-Médico, Ano XVII, n.45, 1918, e pela Revista Médico-Ci-
rúrgica do Brasil, Ano XXVI, n.11, 1918, e ANO XXVII, n. 2 e n.5, 1919.
71
A imposição de medidas restritivas parecia mais uma resposta política à pressão
social que uma resposta científica acreditada pelos atores que as punham em prática.

253

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 253 19/6/2008, 23:40


mente por princípios médicos, sendo determinados também pelas expec-
tativas da sua própria clientela (JONES, 1987). Dizendo que a infecção
da gripe penetrava pelas vias respiratórias, o Professor G. André prescre-
via inalações, gargarejos e vaporização. Afirmava fazer isso sem se iludir
quanto a sua eficácia, completando, porém, que “numa certa clientela, o
médico nunca deve estar desprevenido se lhe pedem regras de prescri-
ção”. Dizia ainda: “prescrevemos porque se deve sempre receitar ao
menos para a tranqüilidade moral do cliente” (ANDRÉ, G. 1918:421).72.
Como temos visto, a historiografia tem ressaltado que os fenômenos epi-
dêmicos comumente geravam reações populares de insatisfação diante
da imposição de controles e regulamentos pelas autoridades sanitárias.73
O caso da pandemia de 1918 no Brasil, em certa medida, parece ser um
evento na contra-mão. Pela leitura de outros estudos dedicados à influenza
espanhola no país, é possível perceber que a tomada de medidas sanitá-
rias mais restritivas já no transcurso da epidemia seria, em parte, fruto
das pressões de certos grupos sociais. Se, como vimos no capitulo anteri-
or, havia quem se sentisse prejudicado com essas medidas – como o
diretor da Empresa Gomes Nogueira ou outros agentes com interesse mais
direto na manutenção da rotina urbana – também havia quem as defen-
desse. Um evento epidêmico envolve interesses múltiplos, não havendo
uma sociedade homogênea contraposta a ele, mas diversos grupos que
reagem e interagem com a moléstia segundo perspectivas diferenciadas.

72
Em Minas, o cronista José Clemente comentava sobre as expectativas dos doen-
tes: “O povo gostava de receitas longas. Não havia fé em receitas curtas. Coisas do
povo (...). Qualquer um achava ruim, depois de examinado, receber do médico só
o nome de um preparado escrito em uma única linha (...). Queriam ver o médico,
compenetradíssimo, calado, de óculos, numa mesa a meditar para escrever a recei-
ta do xarope, poção, pílula ou cápsula, que deveria curá-los (...). Remédio assim é
que incutia fé na sua eficiência (...). Ai do médico que não formulasse e se limitasse
a receitar preparados fabricados! Podia contar com a desconfiança coletiva em sua
ciência (...). Estava desmoralizado... E os médicos sabiam também que as receitas
compridas tinham muito prestígio (...). Diversos deles eram conhecidos pelo cum-
primento de seu receituário” (ANDRADE, 1982a).
73
Sobre as reações populares frente às medidas sanitárias em tempos de epidemia
ver, entre outros: EVANS, 1999; CHANDAVARKAR, 1999; SNOWDEN, 1991:67-
103; CUETO, 1997. Para o Brasil cf.: CARVALHO, 1987; SEVCENKO, 1984.

254

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 254 19/6/2008, 23:40


A campanha realizada contra Carlos Seidl no Rio de Janeiro nos
parece um exemplo claro de como a mudança na agenda de combate à
moléstia guarda relação íntima com a opinião e as demandas de certos
grupos sociais (GOULART, 2003).74 Apesar de todas as declarações
prestadas pelo diretor geral de saúde pública – dando conta das opiniões
científicas sobre a impossibilidade de barrar o caminho da moléstia, da
sua busca por informações sobre a natureza do mal, das medidas toma-
das e das demandas dirigidas às autoridades federais – a imprensa cari-
oca não se cansou de dirigir críticas ácidas à atuação de Seidl, acusando-
o da invasão da capital do país pela espanhola.75 A crescente pressão da
opinião pública acabaria levando à exoneração de Carlos Seild, no dia
17 de outubro de 1918. As críticas feitas a Carlos Seidl iam no sentido
das que citamos a seguir:
“(...) há muitos dias o mal lavra e a população (...) é afrontada pela
inércia deste funcionário estranho.” (apud BRITO, 1997:20).

“(...) a gripe irrompeu encontrando as sentinelas da defesa sanitária a


dormir a sono solto, e quando o clamor público as despertou desse sono
criminoso, a estremunhar, não se lembraram nem de dar o alarme, nem
de bradar as armas, só abrindo a boca para enganar o público, com
publicações e reptos pueris, como as do Sr. Seidl (...).” (apud
MONCORVO FILHO, 1924:32)

74
Especialmente os capítulos 2 e 3. Vale ressaltar que o próprio Seidl havia apon-
tado não ter implementado medidas de fechamento e controle das casas de diver-
são e de outras instituições em função de reações negativas por parte da população.
Cf. acima, nota 64 SEIDL, 1918:437.
75
“(...) Venceslau Brás tomou providências enérgicas. Demitiu – a meu ver injus-
tamente – o diretor de Saúde Pública, dr. Carlos Sidl, que nada pudera fazer pela
indiferença com que haviam sido tratados os seus sucessivos pedidos de recursos”.
CHAGAS FILHO, 1993:150. Sobre as ações de Carlos Seidl, cf.: Revista Médico-
Cirúrgica do Brasil, Ano XXVI, n.10, pp. 435-453, 1918. As críticas dirigidas a
Seidl e sua exoneração da Diretoria Geral de Saúde Pública seriam motivos de
outros diversos artigos e notas publicados na mesma revista. Cf.: Ano XXVI, n.10,
pp. 454-471; n.11, pp. 473-503; n.12, pp. 517-558; ANO XXVII, n. 4, 130-
133; n.7, pp. 253-258. Cf. também: MONCORVO FILHO, 1924:29-45; MEYER
e TEIXEIRA, 1920:405-422; GOULART, 2003:92-100; BRITO, 1997:21.

255

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 255 19/6/2008, 23:40


“Enquanto isso, o diretor de higiene pública, com uma inépcia definiti-
va, marcada e desenhada para nossa formal vergonha, declarava que
não era possível a notificação compulsória da influenza vera, que o porto
e a cidade eram indefensáveis a esse contato e a esse contágio, porquan-
to o morbus se comunicava pelo ar.”76
Em São Paulo, como mostra Liane Bertucci, a imprensa dividia-se
entre o apoio e as críticas a Artur Neiva. Quando os primeiros óbitos
começaram a ser divulgados, alguns órgãos da imprensa passaram a
cobrar de modo mais enfático um maior rigor do serviço sanitário e,
conforme afirma a autora, Artur Neiva acabaria sendo “discretamente”
alijado das funções de comando no combate à pandemia: “o discreto
afastamento (...) concorreu para poupar a imagem do homem público e
cientista em um momento de muitas críticas e particularmente delicado”
(BERTUCCI, 2002:256).77
Em Minas, como apontado no terceiro capítulo, não há referências
condenando a atuação do Diretor de Higiene ou de outras autoridades
estaduais, exceto uma – algo velada – promovida por Hugo Werneck.78
De forma semelhante aos seus colegas, a atitude de Samuel Libânio
diante dos primeiros casos de influenza na cidade parece ter se pautado
pelas suas convicções científicas – medidas puramente preventivas. Po-
rém, os receios gerados pela disseminação da doença e pelos aconteci-
mentos que tiveram lugar no Rio de Janeiro, aliados às críticas e pressões
envolvendo Carlos Seidl, parecem-nos elementos decisivos para a ado-
ção de medidas mais concretas. Na ausência de “uma orientação defini-
da pela amarga experiência alheia” e, apesar de, como confessara, não
ter ilusões sobre a possibilidade de conter a doença, Libânio determina-
va a suspensão das aulas em escolas públicas e de outras atividades que
propiciassem o intercurso social. A nossa sugestão é de que essa mudan-

76
Nicanor Nascimento. In: BRASIL. ANNAIS 1918, p. 610.
77
Sobre as críticas e cobranças a Artur Neiva, cf. p. 117-118, 135-136.
78
A crítica de Werneck talvez não fosse mesmo dirigida à atuação da iniciativa
pública ou de suas autoridades, sendo possível pensá-la como um apontamento dos
limites intrínsecos da ação do Estado como saneadora das necessidades humanas.
Vale relembrar, também, o caráter oficial das fontes sobre o período da epidemia
na capital mineira.

256

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 256 19/6/2008, 23:40


ça na orientação do combate à moléstia seria muito mais o reflexo de
uma pressão política e social – um ritual simbólico – fruto do temor
diante do flagelo que a doença impunha à capital do país, diariamente
exposto à população pelas folhas mineiras.
Isso nos possibilita repensar o controverso conceito de medicalização,
significando a capacidade do saber médico de se apropriar de problemas
cotidianos revestindo-os de um significado e explicações oriundos da me-
dicina, isto é, enquadrando-os como questões a serem refletidas e resolvi-
das por esse saber. Esse conceito foi popularizado através da obra de
Michel Foucault e amplamente utilizado por alguns autores brasileiros nos
anos de 1970-1980, envolvendo dois elementos-chave do modelo de in-
terpretação elaborado por Michel Foucault: saber e poder (FOUCAULT,
1991, 1994, 1995; MACHADO, 1978; COSTA, 1989; LUZ, 1982).
Entre as principais obras que inauguraram essa perspectiva analítica
no Brasil, estão Danação da norma, de Roberto Machado, que destaca o
papel da medicina acadêmica como agente fundamental de um projeto
de disciplinarização da sociedade urbana durante o período do Império,
e Ordem médica e norma familiar, de Jurandir Freire Costa, que analisa
o processo de normatização da família brasileira por meio de um discurso
sobre a higiene do espaço e das relações sociais (MACHADO, 1978;
COSTA, 1989). Essas abordagens propõem uma interação entre o discurso
médico-higienista, o aparato estatal e as elites nacionais, visando uma
política de ordenação social. Apoiados nos conhecimentos propalados
pela medicina e pela Higiene, as instituições do Estado foram vistas como
incentivadoras e produtoras, ao lado daqueles profissionais, de uma
pedagogia de padrões de moralidade e higiene coletivas. Nessa perspectiva,
o processo de medicalização reveste-se de um caráter imperativo, não
havendo ponto de fuga possível ao esquadrinhamento e à normatização
emanados do saber médico. Esse seria, ainda, um projeto imposto pelo
alto, pelo saber médico científico aliado ao Estado sobre a sociedade em
geral, “um sistema de controle social imposto de cima, com maior ou
menor sucesso, sobre uma população inconsciente do fato de estar sendo
objeto de um enquadramento médico” (JONES, 1987:58).
Entretanto, o episódio da gripe espanhola nos sugere que, se real-
mente a sociedade incorporou normas e integrou percepções e explica-
ções oriundas do saber médico ao seu comportamento cotidiano, esse
processo não parece ter se dado de uma forma linear e em um sentido de

257

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 257 19/6/2008, 23:40


mão-única, como fica sugerido a partir das análises de tradição foucaultiana.
Como têm mostrado trabalhos recentes, essa forma de abordagem apre-
senta limites, não podendo ser aplicada em tempos e realidades sociais
distintas (PORTER, 1994; CARVALHO e LIMA, 1992). Além disso,
nem a medicina é um saber homogêneo ou consensual, nem a sociedade
se comporta como um objeto inerte diante dele (Cf.: EDLER, 1992;
WEBER, 1999; THOMES, 1998). Se a medicina tem assumido um pa-
pel central na vida social e se ela tem sido um instrumento importante nas
relações de poder, como afirma Charles Rosenberg, não devemos perder
de vista as conexões e as interferências que sofre de outras dimensões
sociais (ROSENBERG, 1987).79 Segundo Colin Jones, essa centralidade
assumida pela medicina deve ser percebida menos como “uma imposição
de estruturas pré-definidas sobre uma população passiva, e sim como um
processo dinâmico e dialético, envolvendo tanto padrões variáveis de de-
mandas quanto de provisão de serviços e de estabilização de normas mé-
dicas” (JONES, 1987:58).80
Nessa perspectiva, se, por um lado, as reclamações e exigências
da opinião pública, com relação às medidas a serem tomadas pelas auto-
ridades sanitárias, revelam que é possível identificarmos uma incorpora-
ção dos preceitos divulgados pela ciência médica – isolamento em rela-
ção às doenças infecciosas – por outro, elas mostram que essa mesma
população também participava (ou interferia) de alguma forma na deter-
minação das práticas que seriam efetivadas pelos representantes desse
saber. Nesse sentido, inscrito num contexto social que envolve relações
diversas, o saber médico está longe de poder ser considerado uma ver-
dade inexorável que dita normas inapeláveis. Ao contrário, ele tem, a
todo tempo, que negociar com outras instâncias.
Como vimos no início deste capítulo, discorrendo sobre a epide-
mia de influenza de 1903 na capital mineira, Cícero Ferreira dizia da
impossibilidade de interpor-se barreiras à sua marcha. A rapidez de sua
expansão e a falta de uma sintomatologia própria, que deixava passar
“completamente despercebidos os primeiros casos”, impunham os maio-
res embaraços à profilaxia. Em seguida, completava:

79
Especialmente: Afterword.
80
Para a discussão sobre a validade e correção do conceito de medicalização cf.,
entre outros: EDLER, 1992; SAMPAIO, 1995; ANTUNES, 1999.

258

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 258 19/6/2008, 23:40


“É certo que, assim como um desencargo de consciência, fala-se no iso-
lamento dos doentes, na desinfecção das roupas e dos objetos; basta,
porém, atender-se que estas medidas poderiam talvez ser de algum pro-
veito, quando aplicadas com o aparecimento dos primeiros casos, para
compreender-se imediatamente que, aconselhá-las é estabelecer princí-
pios platônicos, inexeqüíveis (...).”81
Pelo que temos visto, além da própria consciência, é possível dizer
que outros aspectos também pesavam para esse tipo de atitude: entre eles,
os interesses econômicos e políticos, as demandas e pressões de alguns
grupos sociais, as expectativas em relação à atuação de atores, como mé-
dicos e administradores. Bastante elucidativa sobre esse aspecto é a postu-
ra tomada por Carlos Chagas, então à frente da Diretoria Geral de Saúde
Pública, diante das ameaças de retorno da influenza, reeditando o isola-
mento e a quarentena para as embarcações chegadas à cidade do Rio nos
anos 1919 e 1920. A decisão de Chagas produziu inúmeras críticas entre
seus colegas de profissão, que buscavam entender como um cientista de
renome nos meios internacionais recorria a práticas “totalmente desacre-
ditadas” pelo círculo médico (GOULART, 2003:121). Em janeiro de 1920,
um editorial do Brasil-Médico afirmava:
“(...) Ora, a confiança que depositamos no saber e inteligência do dr.
Carlos Chagas nos leva a descrer da sinceridade com que esse ilustre
profissional ordena aquelas medidas. (...)
Fazer, portanto, quarentena e desinfecção (...) para impedir que se pro-
pague no Rio de Janeiro uma doença que aqui se desenvolve
endemicamente, é um absurdo de tal ordem que não acreditamos possa
ser mantido algum tempo mais.
Para esse absurdo procedimento (...) só encontramos uma explicação –
o receio do julgamento da opinião pública (...).
Acreditamos que o dr. Carlos Chagas tem prestígio bastante para desfa-
zer o erro em que labora o nosso público, dizendo-lhes (...) que a qua-
rentena e a desinfecção (...) representam um absurdo de tal ordem, que

81
Apud ESTADO DE MINAS GERAIS. Relatório apresentado ao Conselho
Deliberativo..., 1903, p. 40 (grifo nosso). Justificativa semelhante foi apresentada
pelo diretor de higiene de Fortaleza. Confira no capítulo 1.

259

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 259 19/6/2008, 23:40


praticá-las seria ele próprio desmerecer gravemente o alto conceito em
que é tido, como higienista no Brasil e no estrangeiro.”82
Como salienta Adriana Goulart, a postura de Chagas certamente
não revelava suas convicções de médico-sanitarista, mas as de um buro-
crata. Afinal, atender às expectativas da sociedade era uma forma de
angariar apoio e legitimidade para implantar outras mudanças no âmbito
dos serviços sanitários daquele período. As medidas e as políticas de
saúde pública não são pautadas exclusivamente pelas teorias que domi-
nam o saber médico em um determinado período, mas envolvem tam-
bém questões de ordem econômica, sociais, as percepções culturais so-
bre a doença e a cura, interesses e projetos políticos. Ampliando a
afirmação de Charles Rosenberg, podemos dizer que, não apenas as
doenças, mas também suas respostas são “socialmente construídas den-
tro de uma configuração particular de necessidades, percepções e expec-
tativas” (ROSENBERG, 1987:238).
Diante da crença na ausência de uma solução coletiva para a ame-
aça da influenza, o saber médico defendia que a profilaxia individual era
a alternativa mais eficaz. Concordando com a proposição de que a causa
da moléstia penetrava no organismo por meio do ar – fosse pelas emana-
ções venenosas do corpo dos doentes e das correntes atmosféricas, fosse
pelos germes presentes nas secreções dos atacados –, os conselhos da
classe médica à população enfatizavam os cuidados com as vias respira-
tórias. Os jornais se encarregavam de divulgar as medidas necessárias
para evitar o ataque do mal:
“Lavar a boca e gargarejar com uma solução de sal de cozinha na pro-
porção de 1 colher de sopa para um litro de água fervida. Fazer diaria-
mente uso de uma solução de essência de canela (...).
Tomar cuidados higiênicos com o nariz e a garganta: inalações de vase-
lina mentolada com água iodada, com ácido cítrico, tanino e infusões
contendo tanino, como as folhas de goiabeira e outros.

82
Editoriais. Brasil-Médico, Ano XXXIV, n. 5, p. 69, 1919. Cf. no mesmo perió-
dico: “Notificação obrigatória dos casos de influenza” (Editoriais), n.6, p. 89; “As
vantagens da quarentena na gripe” (Correspondências), n.7, p. 103; “O regime
das quarentenas e a desmoralização da Higiene brasileira” (Editoriais), n.8, p.
124-125; “Ainda a questão das quarentenas na profilaxia da gripe”, n.11, p. 174.

260

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 260 19/6/2008, 23:40


Tomar como preventivo, internamente, qualquer sal de quinino (...).”83
Pela imprensa, o Dr. Antônio Aleixo declarava que cuidados anti-
sépticos, bastante luz e ar, asseio pessoal e um comportamento modera-
do compunham as atitudes necessárias para se precaver contra a molés-
tia. Qualquer tipo de excesso era apresentado como elemento facilitador
para a invasão da doença: “serão igualmente evitados todos os excessos
de qualquer ordem, os desvios de regime alimentar, as emoções, os
resfriamentos e tudo o que for capaz de enfraquecer a mola de resistên-
cia do organismo”, dizia Aleixo.84
A coragem demasiada era outro comportamento condenado. Os
destemidos acabavam expondo-se a diversas circunstâncias que favoreci-
am o contágio, colocando em risco a própria vida como a do resto da
população. Contra a infecção, em especial daquelas moléstias das quais
não se conhecia o agente, não havia armaduras, e “cautela e caldo de
galinha nunca fizeram mal a ninguém”. Como vimos, essa regra seria
lembrada por dois médicos da capital mineira, Otaviano de Almeida e
Antônio Aleixo, espantados diante da indiferença que parte da população
devotava à gripe.85
O pânico também não era a melhor opção em época de epidemi-
as. Os doutores Plácido Barbosa e Teófilo Torres – este substituto de
Seidl após seu afastamento da Diretoria Geral de Saúde Pública do Rio
de Janeiro – afirmavam que a auto-sugestão e o medo demasiado concor-
riam para piorar o estado moral dos indivíduos, facilitando o ataque da
moléstia. A imprensa mineira divulgava que alguns médicos cariocas
estavam convencidos de que muita gente havia enfermado em conseqü-
ência do alarme e da desorientação produzidos pela doença e pelo “no-
ticiário sensacional” que, além da depressão física e moral, acabavam
levando ao uso exagerado dos mais “variados e esquisitos preservati-
vos”.86 Como dizia Sternenberg, vinte anos antes da espanhola:

83
Diário de Minas, 27 de outubro de 1918, p. 2.
84
Minas Gerais, 29 e 29 de outubro de 1918, p. 3.
85
Minas Gerais, 26 de outubro de 1918, p. 2; Minas Gerais, 28 e 29 de outubro de
1918, p.3.
86
Minas Gerais, 20 de outubro de 1918, p. 11. Sobre as opiniões de Plácido
Barbosa e Teófilo Torres, cf.: Minas Gerais, respectivamente, 23 de outubro de
1918, p. 3-4 e 19 de outubro de 1918 p. 3.

261

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 261 19/6/2008, 23:40


“Se a coragem não premune contra a infecção, não se pode negar que o
terror, em presença do agente infeccioso, é uma causa predisponente
para o ataque e capaz de favorecer a terminação fatal; e tudo quanto
tende a abater a resistência vital do indivíduo cria uma predisposição
mórbida em época epidêmica.” (STERNENBERG, 1898:39).
À medida que a influenza propagava-se, os conselhos sobre como
evitar a doença davam lugar àqueles que se propunham a tratar a enfer-
midade. Os médicos lançavam mão dos mais diversos recursos. Além
das desinfecções com lysol, creolina, leite de cal, água fervente, havia
outros preparados: purgativos, quinino, essência de canela, injeções de
sublimado (método de Bacelli) ou de arsênico, extrato de amigdalas de
carneiro (extrato tonsilar Érico Coelho), fermentos coloidais, auto-
hemoterapia, vacinas...87
A constância e a freqüente benignidade com as quais a gripe havia
se manifestado até 1918, aliadas aos parcos conhecimentos médicos sobre
a moléstia, faziam que sua terapêutica estivesse restrita a práticas simples:
repouso, purgativos, antitérmicos, analgésicos e tonificantes, além de uma
dieta leve e rica em líquidos. Medidas assim tão vulgares muitas vezes
dispensavam a ação do médico, que normalmente era procurado apenas
quando a doença prolongava-se ou assumia um caráter mais grave – os
chamados casos complicados, acompanhados de infecções secundárias.
Contrariando a velha prática, Antônio Aleixo dizia que, ligeira ou
grave, a gripe era sempre perigosa, e o tratamento, sempre que possível,
devia ser instituído pelo médico (ALEIXO, 1918). Sua posição faz pen-
sar sobre os embates entre médicos e sociedade no estabelecimento e
reconhecimento do domínio sobre o campo da doença e da cura. Desde
os tempos coloniais, a medicina disputou espaço com agentes e práticas
de cura diversos: feitiços, ungüentos, rezas, amuletos, curandeiros, e
toda uma cultura de como utilizar com proveito ervas, raízes e outras
substâncias. A ampla gama de recursos e de percepções culturais sobre

87
Essas indicações eram propaladas através dos manuais médicos ou em notícias
veiculadas pela imprensa. Ver entre outros: STERNBERG, 1889; CHERNOVIZ,
1908; HUCHARD, 1911; ANDRÉ, 1918; DUPRAT, 1918; Minas Gerais, 21 e 22
de outubro de 1918, p. 3; 23 de outubro de 1918, p. 4; 25 de outubro de 1918, p.
5; 26 de outubro de 1918, p2; 3 de novembro de 1918, p. 5.

262

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 262 19/6/2008, 23:40


a doença e o estar doente, além das dificuldades financeiras e do medo
e desconfiança em relação ao saber médico, contribuíam para o
distanciamento entre doutores e doentes.88
Entre as alternativas, a população contava ainda com os formulá-
rios farmacêuticos e manuais de medicina destinados a leigos e uma
variedade de almanaques que proclamavam oferecer a solução para qual-
quer tipo de necessidade.89 O Formulário e guia médico, de Chernoviz,
por exemplo, declarava que “o tratamento da influenza é dos mais sim-
ples e se reduz a pouca coisa” (CHERNOVIZ, 1908:1752).90 E se era
“coisa tão banal”, não seria de estranhar-se que a população acreditasse
que o tratamento da moléstia dispensasse qualquer doutor – o que pode
ser observado ainda nos dias de hoje.
Charlatães, espíritas, curadores, raizeiros, remédios secretos e a
homeopatia também figuravam entre as alternativas de cura contra as
quais a medicina acadêmica brasileira buscava impor-se nas primeiras
décadas do século XX. A análise de Liane Bertucci sobre a influenza na
cidade de São Paulo revela como o impacto da epidemia e os limites da
ciência médica em prover uma solução contra sua ameaça contribuíram
para deixar essas práticas alternativas em maior evidência (BERTUCCI,
2003). No caso de Belo Horizonte, não encontramos referências sobre
essas práticas durante a pandemia, mas como vimos no capítulo anterior,
elas não estiveram ausentes do repertório curativo utilizado pela popula-
ção da cidade.91 Durante a gripe, houve um único caso de charlatanismo
divulgado pela imprensa, o de Olimpyo Abreu Leite, um “perigoso scroc”
que havia se passado por médico da Diretoria de Higiene na Estação
Central, recebendo passe livre para viajar ao interior do estado. Olimpyo,

88
Sobre a medicina e outras práticas de cura no Brasil durante a colônia e o
Império, cf.: RIBEIRO, 1997; WITTER, 2001; WEBER, 1999; FIGUEIREDO,
2002.
89
Entre ensinamentos sobre como cultivar plantas, ler a sorte, preparar refeições,
garantir o asseio e a conservação de “alimentos alteráveis”, um anúncio de almanaque
publicado no Diário de Minas também prometia “revelar receitas para a cura de
qualquer enfermidade e se manter a boa saúde”. Diário de Minas, 9 de novembro
de 1918, p. 2.
90
Sobre as fórmulas populares contra a gripe cf: BERTUCCI, 2002:222 e seg.
91
Ver seção 3 do capítulo anterior. Ver também: MARQUES, 2003.

263

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 263 19/6/2008, 23:40


porém, desapareceu sem deixar rastros para a justiça e a imprensa mi-
neiras.92
Uma das frentes de luta estabelecidas pela medicina, mais emba-
raçosa e difícil que coibir a ação dos curandeiros e dos falsos médicos,
era o controle sobre as terapias e os medicamentos oferecidos à popula-
ção. Liane Bertucci aponta que, durante a epidemia, a imprensa paulista
fora inundada por uma profusão de anúncios, nos quais “remédios ofici-
almente aprovados pelas autoridades sanitárias apareciam lado a lado
com poções, fórmulas e inventos milagrosos das mais diversas, e obscu-
ras, autorias” (BERTUCCI, 2002:148).93 Na capital mineira, os jornais
também divulgavam diversos produtos indicados contra a moléstia.
A linguagem e as propriedades enfatizadas pelos reclames muitas
vezes faziam confundir o que era alopatia, homeopatia e simples embus-
tes. Muitos produtos destacavam seus poderes microbicidas e
desinfectantes, numa referência direta às proposições da bacteriologia,
sendo, ao mesmo tempo, instrumento de difusão das noções emanadas
pela ciência médica e termômetro da incorporação ou apropriação des-
sas mesmas noções pela sociedade (TOMES, 1990 e 2002). O Donol, o
“rei dos dentifrícios”, desinfectava a boca, enquanto o Sabão Aristolino
Oliveira era “essencialmente higiênico, anti-séptico e microbicida”.94 O
Sabonete Rifger, que frisava ser aprovado pela Inspetoria de Higiene, era
anunciado como um “seguro preservativo de todas as moléstias contagi-
osas e epidêmicas”.95
Fórmulas naturais e produtos da homeopatia pareciam ter aceita-
ção ampla entre a população. O Específico do Dr. Reyngate, “composto
exclusivamente de vegetais”, era indicado para asmas, influenzas, bron-
quites, catarraes, coqueluches, tosses rebeldes, cansaço e sufocações:
“Não é xarope, não contem ioduretos, nem morfina e outras substâncias
nocivas à saúde dos asmáticos”.96 Desenganado pelos médicos e já resig-

92
Minas Gerais, 22 de novembro de 1918, p. 2 e Diário de Minas, 22 de novem-
bro de 1918, p. 2, e 30 de novembro de 1918, p. 2.
93
Sobre esses produtos cf.: p. 163-184.
94
Diário de Minas, 14 de novembro de 1918, p. 2 e 3.
95
Diário de Minas, 29 de outubro de 1918, p. 3.
96
Diário de Minas, 28 de setembro de 1918, p. 4.

264

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 264 19/6/2008, 23:40


nado com sua moléstia, um doente afirmava dever sua vida a Deus e ao
abençoado Remédio Vegetariano de Orhmann.97 Com um só vidro, o Pei-
toral Marinho prometia curar todas as moléstias dos brônquios e pul-
mões.98 E o Peitoral Composto de Mel e Jatahy Dória era apresentado
como um “precioso específico” para o combate à influenza.99
O quinino, amplamente indicado na terapia de diversas moléstias,
foi um dos medicamentos heróicos durante a pandemia. O comprimido
de Chloroquinino era anunciado como um específico “infalível” contra a
gripe epidêmica.100 Ainda em outubro, a Farmácia Conceição anunciava
que, em vista dos inúmeros pedidos daquele produto, resolvera produzir
cápsulas de bromhydrato de quinino, com ação preventiva e curativa
sobre a gripe, a que deu o nome de Sanahespana. Dias depois, um novo
reclame afirmava que, em seis dias, o estabelecimento havia vendido
“quatorze mil, duzentas e noventa e oito capsulasinhas deste racional e
verdadeiro específico contra a Influenza Hespanhola”.101

Fonte: Minas Gerais, 23 de outubro de 1918, p.8; 26 de outubro de 198, p.4,


e 23 de outubro de 1918, p.8.

97
Diário de Minas, 16 de outubro de 1918, p. 2.
98
Diário de Minas, 2 de novembro de 1918, p. 4.
99
Minas Gerais, 23 de outubro de 1918, p.8.
100
Minas Gerais,3 de novembro de 1918, p.8.
101
Minas Gerais, 20 de outubro de 1918, p.16 e 26 de outubro de 1918, p.4.

265

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 265 19/6/2008, 23:40


Defluxo, catarro e influenza cediam imediatamente ao uso das
Pílulas contra Constipação de Oliveira Júnior, e para a tosse havia o
Contratosse, expectorante e anti-séptico, apresentado como “sedativo
heróico” e “remédio salvador”, trazendo em seus anúncios vários “ates-
tados de cura” assinados por pessoas de norte a sul do país. O Xarope de
Grindelia, de Oliveira Júnior, chamava a atenção em suas propagandas
“para o pouco caso que comumente ligamos aos resfriados e tosses, que
sempre julgamos um mal passageiro, de pouca ou nenhuma importância,
sem pensarmos nas suas terríveis conseqüências”, numa referência clara
ao que se verificava em relação à epidemia de influenza daquele 1918.102
Bons resultados contra a influenza era o que prometia o “afamado” Xa-
rope de Famel.103
A fraqueza e apatia, apontadas como características da influenza,
eram combatidas com tônicos e fortificantes, como a Emulsão Scott, “for-
tificante de fama mundial” e, ao mesmo tempo, “expectorante e recons-
tituinte”, sendo indicado para todas as “afecções pulmonares” e como
“grande alimento medicinal para os convalescentes da gripe espanho-
la”.104 O Neo-Tônico Rodrigues garantia uma convalescença rápida e efi-
caz, sugerindo que seu uso também protegia o indivíduo contra o ataque
da moléstia.105 Outra opção era o Cognac de Ameixas. Diluído juntamen-
te com a água de Syphão, prometia abrir o apetite, evitando a “persegui-
ção” da espanhola.106 O Iodolino de Orh proclamava sua superioridade
ao conhecido Óleo de Fígado de Bacalhau, “sem ter os inconvenientes do
mesmo, cujo uso em nosso clima prejudica o estômago”.107

102
Diário de Minas, 29 de outubro, p. 1; 2 agosto, p. 2; 6 de novembro, p. 2.
103
Minas Gerais, 23 de outubro de 1918, p.8.
104
Diário de Minas, 14 de novembro de 1918, p. 2; 24 de outubro de 1918, p. 2.
105
Minas Gerais,3 de novembro de 1918, p.8.
106
Minas Gerais, 3 de novembro de 1918, p.8.
107
Diário de Minas, 28 de novembro de 1918, p. 3.

266

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 266 19/6/2008, 23:40


Fonte: Minas Gerais, 3 de novembro de 1918, p.8.

Alguns desses remédios contavam com a aprovação dos clínicos


da cidade – caso do Biostenyl, indicado para evitar as recaídas e apre-
sentado como fórmula de um conhecido professor da Faculdade de Me-
dicina, o Dr. Alfredo Balena.108 Certamente, porém, havia preparados e
fórmulas que não eram bem vistos pela classe médica. Anúncios de pro-
dutos salvadores, que acabavam colocando em questão a habilidade e
competência médica em dar solução aos problemas que afligiam seus
clientes – como aqueles que apelavam para expressões como “desenga-
nado pelos médicos”, “os remédios tomados a conselho destes [médicos]
nada resolveu”, “resultados insignificantes”, “tratamentos sem esperan-
ça” – desempenhavam papel bastante indesejado em um período em
que a profissão lutava por sua afirmação.109

Fonte: Minas Gerais, 13 de dezembro de 1918, p.8.

108
Minas Gerais, 13 de dezembro de 1918, p.4.
109
Diário de Minas, 6 de novembro de 1918, p. 2; 22 de novembro de 1918, p. 2.

267

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 267 19/6/2008, 23:40


Apesar da “concorrência” e da pouca importância destinada às
“doenças ordinárias”, os doutores trabalharam sem descanso quando a
influenza revelou sua face trágica. Como foi visto no capítulo anterior, a
classe médica esteve fortemente envolvida no combate à pandemia, além
disso, muitos pobres recorreram aos postos de assistência não apenas em
busca da ajuda material, mas também da cura. Assim, ao mesmo tempo
em que, por um lado, tendemos a acreditar, como salientam alguns traba-
lhos, que a ciência médica foi de certa forma desacreditada pela sua
impotência diante dos aspectos inexplicáveis daquela moléstia, por outro,
é difícil negar que ela também foi vista e demandada como uma esperan-
ça de solução do problema.110 A nosso ver, essa constatação vem reafir-
mar a perspectiva apontada acima, de ser o combate pelo domínio sobre
a doença e a cura um processo dinâmico, dialético, de direções múltiplas.
Além de revelar os embates da medicina com outras práticas de
cura nas primeiras décadas do século XX, a epidemia de influenza tam-
bém evidenciava disputas que se davam no interior da própria ciência
médica. O desenvolvimento e os sucessos obtidos com a pesquisa
laboratorial tinham promovido a bacteriologia ao primeiro plano das ci-
ências médicas desde fins do século anterior. Mas, como aponta Eugênia
Tognotti, seus insucessos diante da epidemia de 1918 levariam a uma
revanche da clínica e seus ensinamentos sobre como perscrutar variados
sintomas na elaboração do diagnóstico (TOGNOTTI, 2003:105).
Vivendo o mesmo processo de afirmação e disputas no interior do
seu campo profissional, os clínicos do país também buscaram enfatizar a
validade de suas habilidades.111 Em dezembro de 1918, o professor de
Clínica Médica da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Artur
Vasconcellos, fazia uma enfática defesa da clínica. Dizia ser preciso afas-
tar-se “das bitolas que os tratados nos traçam”, e que eram seguidas,
muitas vezes, sem a consideração de “nossa própria experiência”. Afir-
mava apresentar em seu trabalho “as impressões colhidas em numerosas

110
Sobre o fracasso da medicina, cf.: BERTUCCI, 2002:181; BERTOLLI FI-
LHO, 1986:148, 155.
111
André Pereira Neto identifica uma disputa entre três perfis profissionais –
generalista, especialista e higienista – durante o Congresso dos Práticos, ocorrido
em 1922 (PEREIRA NETO, 2001).

268

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 268 19/6/2008, 23:40


observações” que havia feito durante a epidemia, registrando apenas
aquilo que seus “sentidos, livres de sugestões”, apreenderam nos casos
examinados, completando: “Nem por isso se desmerece o valor dos con-
ceitos emitidos; porque é nos fatos esparsos, colhidos na clínica que se
fundamentam os melhores e mais notáveis estudos”. Ainda segundo o
autor, a epidemia de influenza havia sido objeto de vários estudos cientí-
ficos, cujos comentários, porém, mantiveram-se “em terreno de absoluta
improficuidade” (VASCONCELLOS, 1918).
Outros, como o Dr. Ribeiro Silva, apesar de partilharem os pressu-
postos da bacteriologia, não desconsideravam as contribuições da clínica:
“Se a clínica, só por si, é incapaz de desincognitar o problema etiológico
de uma moléstia infectuosa, problema a que, pela sua natureza mesma,
só a bacteriologia consegue dar plena solução, ela pode, contudo, forne-
cer elementos subsidiários para a elucidação do assunto, dada a cone-
xão íntima existente entre as ramificações múltiplas dos conhecimentos
médicos.” (SILVA, 1919:44).
Entretanto, fosse partidário da clínica ou da bacteriologia, o círcu-
lo médico continuava imerso em incertezas, então multiplicadas diante
de um número de óbitos jamais imaginado:
“Por mais que se diga que se trata agora, como sempre, da gripe dos
antigos, do velho catarro que outrora foi francês, foi russo, foi italiano,
por mais que os demógrafos se dêem pressa em atirar a água fria dos
seus cálculos na fervura da insânia coletiva, o que não padece dúvida é
que a toda a gente impressiona a difusão desse morbus, de virulência
inédita, desse mal epidêmico que (...) agora se expande agressivo por
toda a parte (...). A toda a gente não pode deixar de causar temores essa
gripe que, sem ser mortífera, agora ceifa 300 vidas por dia, em Barcelo-
na, em Lisboa, que (...) mal acaba de fazer no Rio de Janeiro a mortan-
dade que se viu.”112
Esse espanto diante das conseqüências provocadas pela moléstia,
expresso por Antônio Aleixo, foi compartilhado por toda a classe médica.
Avaliando a epidemia no início de 1919, Samuel Libânio dizia que “to-
das as mais pessimistas previsões foram excedidas (...)”, completando

112
Minas Gerais, 28 e 29 de outubro de 1918, p. 3.

269

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 269 19/6/2008, 23:40


não haver registros anteriores de manifestação tão violenta da influenza
que, naquele 1918, havia elevado o “coeficiente de mortalidade a um
nível até então desconhecido nos anais demográficos (...)”. Partidário da
bacteriologia, Libânio confiava nas possibilidades da ciência: “somente o
laboratório poderá resolver o problema, quando conseguir, senão isolar,
pelo menos caracterizar o agente causal da moléstia, determinando-lhe
os caracteres biológicos”.113
Ainda atônitos e sem que pudessem, com as ferramentas ofereci-
das por sua ciência, fazer compreender as conseqüências inesperadas
impostas pela influenza, os médicos lançaram mão das diversas “moda-
lidades clínicas da gripe” para explicar a taxa de óbitos incomum em
epidemia de moléstia tão ordinária. Afinal, os que morriam eram sempre
aqueles que apresentavam as ditas “formas complicadas”, definidas ou
pela localização dos sintomas – forma respiratória, forma gastrointestinal,
forma nervosa – ou pela associação da gripe com outras afecções.114
A existência de doenças precedentes era meio caminho para um
desfecho trágico.115 O primeiro óbito de influenza ocorrido no Hospital
da Faculdade de Medicina de Belo Horizonte era apresentado pelo Dr.
Cícero Ferreira como de “um tuberculoso, que, tendo entrado em estado
grave, afetado de influenza, fora mesmo vitimado pela tuberculose”.116 O
mesmo argumento apoiava o balanço apresentado por Ferreira sobre as
mortes verificadas naquele hospital.117
As infecções secundárias que acompanharam a gripe e as doenças
pré-existentes muito provavelmente mascararam a verdadeira taxa de pes-
soas que morreram devido à pandemia, como já foi discutido no capítulo
anterior. Segundo os dados divulgados pelo Minas Gerais, dos 70 óbitos
registrados entre os dias 17 e 23 de novembro na capital mineira, apenas
45 eram atribuídos à gripe. Entre os restantes, havia 4 de tuberculose

113
ESTADO DE MINAS GERAIS. Relatório apresentado ao Conselho Deliberativo...,
1903, p. 14-16.
114
Cf.: OSLER, 1908; OLIVEIRA, 1919; “A gripe espanhola: suas formas, profilaxia
e terapêutica” (Transcrição de artigo do Dr. Rubião Meira no Diário Popular, São
Paulo). Minas Gerais, 28 e 29 de outubro de 1918, p. 5.
115
Plácido Barbosa, Minas Gerais, 23 de outubro de 1918, p. 3-4.
116
Minas Gerais, 27 de outubro de 1918, p. 4.
117
Minas Gerais, 15 de dezembro de 1918, p. 2.

270

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 270 19/6/2008, 23:40


pulmonar, 4 de broncopneumonia, 1 de asma tuberculosa, 1 de edema
pulmonar, 1 de catarro sufocante, 1 de uremia, 1 de asma essencial.118
Ou seja, 13 casos que poderiam representar manifestações relacionadas
com complicações decorrentes da influenza ou de seu tratamento, ou de
doenças precedentes que teriam evoluído para óbito sob o impacto da
gripe, ou mesmo de erro de diagnóstico. Se esses outros óbitos também
fossem atribuídos à pandemia, a taxa de mortalidade pela influenza so-
mente naquela semana saltaria de 64,2% para cerca de 82,7% do total.
Além das doenças precedentes, a miséria orgânica dos pacientes
hospitalizados era outra justificativa para o número de falecimentos: “o
material humano recolhido ao hospital é física e materialmente deplorá-
vel, oferecendo resistência mínima à ação do agente infectante”119. O
perigo da doença, especialmente entre esses organismos mais fragilizados,
era lembrado pelo Dr. Antônio Aleixo:
“Também os velhos, as crianças e os miseráveis – por miséria orgânica
ou de pecúnia – devem ser postos a coberto da infecção. Não que neles
o contágio seja sempre temeroso, senão porque a gripe pode se declarar
com uma feição mais grave, nessas pessoas que nas demais. Sobretudo
os tuberculosos, os cardíacos devem ser subtraídos ao foco contagionante.
Também os nervosos não devem se achar em promiscuidade com os
doentes”120.
Dessa forma, a fala médica explicava a tragédia ou por suas próprias
vítimas – que já se encontravam debilitadas por doença anterior ou pela
pobreza, e, também, por sua negligência – ou então pela explicação das
“associações microbianas”, que se havia tornado uma posição corrente

118
Minas Gerais, 25 e 26 de novembro de 1918, p. 3.
119
Minas Gerais, 8 de novembro de 1918, p. 1.
120
Minas Gerais, 28-29 de outubro de 1918, p. 3. Observação semelhante era
feita pelos membros de uma comissão nomeada pela Academia Paulista de Medi-
cina, a fim de elaborar um estudo clínico sobre a gripe: “Convém salientar também
que toda gripe que evolui em indivíduo anteriormente doente não pode deixar de
ser considerada séria, de prognóstico reservado. Assim os diabéticos devem ser
olhados com atenção, assim os nefréticos correm risco de irrupção da uremia,
assim os fracos de forças ficam grandemente debilitados, e do mesmo modo os
tuberculosos ficam na iminência de ver reacender o mal, que então corre parelha
com a gripe (...)”(Idem).

271

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 271 19/6/2008, 23:40


nos meios médicos para justificar a violência daquela manifestação da
influenza. Esta se baseava na ampla sintomatologia apresentada pelos
doentes e nos relatos indicando a presença de diversos germes, encontrados
em exames microscópicos, como apontado na primeira seção deste capítulo.
A diversidade de opiniões também se repetia quando o assunto
eram as causas e o modo de transmissão da moléstia, deixando clara a
ausência de qualquer consenso no meio médico. Apesar de uma certa
preponderância dos partidários da ação dos microorganismos, a imprensa
médica publicava opiniões bastante contraditórias, que relacionavam no-
ções da bacteriologia – elementos vivos e extremamente tênues – com
termos como emanações infecciosas, venenos voláteis, ar confinado, vici-
ado ou de qualidades especiais, cheiros indeterminados e desagradáveis.
O Dr. B. Roussy destacava a necessidade de dispensar-se mais atenção ao
papel patogênico desempenhado pelo ar, “carregado de emanações volá-
teis, saídas das vias respiratórias do doente, e que envolvem seu corpo,
impregnam suas vestes, seu leito etc”. Também dizia haver quem susten-
tasse ser a doença determinada pelos fenômenos físicos e meteorológicos
da atmosfera (ROUSSY, 1919:167).121 Por seu lado, o Dr. Luiz Rodrigues
afirmava que a meteorologia era um dos elementos que regulava a distri-
buição das epidemias. Segundo ele, condições como temperatura, pres-
são, umidade, vento e eletricidade determinavam modificações, combina-
ções e decomposições, tanto no ar como nas emanações “estranhas” da
atmosfera, que pareciam exercer influências quer sobre o homem fisioló-

121
O autor enfatizava que a história das principais epidemias de gripe, observadas
desde 1580, ensinava que, “entre os numerosos observadores que as descreve-
ram, aqueles que a atribuíram ao contágio são em número muito menor que os que
as atribuíram à circunstâncias metereológicas e atmosféricas, tais como o frio e a
umidade, sucedendo ao calor e à seca, o nevoeiro espesso, a mudança rápida de
temperatura, a neve, os tremores de terra, as erupções vulcânicas, a diminuição do
ozone, etc” (ROUSSY, 1919:162, grifos nossos). Após as pesquisas que havia
realizado entre 1889-1894, a fim de identificar o micróbio patogênico da influenza,
Roussy levantava a hipótese de que o agente causador da gripe deveria ser um
“elemento vivo, (...) tão subtil, que seu estado molecular parece vizinho do estado
de vapor ou gasoso, o que lhe permitiria infeccionar o organismo, por assim dizer
instantaneamente, pelas vias respiratórias. Este agente seria então uma espécie de
vapor animado” (ROUSSY, 1919:172-173).

272

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 272 19/6/2008, 23:40


gico como sobre o homem patológico. Acrescentava, porém, que os meios
de investigação disponíveis ainda não permitiam caracterizar claramente
o seu modo de ação e sua natureza (RODRIGUES, 1919).122
Ao contrário dessas opiniões, o Dr. Plácido Barbosa afirmava que
a doença era transmitida de pessoa a pessoa, pelo contato direto ou
indireto dos sãos com doentes. Apontava ser o ar um péssimo veículo
para a disseminação dos micróbios, servindo apenas para transportar as
“poeiras microbíferas” e, a pequena distância, “gotículas de saliva ou
escarro, em que os micróbios podem estar; mas por si mesmo não trans-
mite a doença, sem o germe patogênico, e este não anda, sozinho, como
os pássaros voam”.123
Mais enfático, o Dr. Antônio Aleixo dizia que a moléstia era causa-
da pelo bacilo da influenza, ou bacilo de Pfeiffer. Dessa opinião, decorria
a atenção especial que a população devia dispensar às mucosidades na-
sais, “porta de entrada do bacilo”, e aos preceitos de profilaxia, repeti-
dos ao infinito durante o curso da epidemia. Aleixo afirmava a necessida-
de de evitar-se o contato muito estreito com os doentes por ocasião da
tosse, dos espirros e da própria conversação. Da mesma forma, devia-se
observar todo o cuidado com excreções do aparelho respiratório, assim
como objetos usados pelos doentes, mesmo que o micróbio causador da
moléstia fosse considerado pouco resistente:
“(...) os doentes serão prevenidos de não escarrar nas roupas e pelo
chão, devendo fazê-lo em escarradeiras ou em urinóis providos de uma
solução de lysol ou outra qualquer (...) se servirão de utensilhos que lhes
sejam exclusivos (...) as roupas serão fervidas e a desinfecção domiciliar
deverá ser requisitada.”124
Os mesmos cuidados seriam dispensados quando da convalescen-
ça, “pois que o micróbio pode permanecer nas secreções por muitos
meses depois do ataque da moléstia”. Tais regras eram ainda mais ne-
cessárias em caso de tuberculose e das cáries, afecções indicadas por
Aleixo como “verdadeiras sucursais dos bacilos da influenza”.125

122
Artigo transcrito do Jornal do Comércio.
123
Minas Gerais, 19 de outubro de 1918, p. 3.
124
Minas Gerais, 28-29 de outubro de 1918, p. 3.
125
Minas Gerais, 28-29 de outubro de 1918, p. 3.

273

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 273 19/6/2008, 23:40


Entretanto, assim como no cenário científico internacional, a opi-
nião sobre ser o bacilo de Pfeiffer o agente causador da influenza tam-
bém não era consenso no país, havendo quem questionasse o papel por
ele desempenhado. Samuel Libânio, diretor de higiene de Minas Gerais,
por exemplo, dizia que:
“(...) desde alguns anos, a doutrina da solução de causa para o efeito
entre a gripe e o bacilo de Pfeiffer tem sofrido rudes embates que a
deixam gravemente combalida, de sorte, na atualidade, a presença ou
ausência deste germe oferecer bem precário interesse.”126
A opinião de Samuel Libânio fundamentava-se no trabalho de
diversos pesquisadores que, como vimos na seção anterior, desde o final
do século XIX colocavam em questão a proposição de Pfeiffer sobre o
agente causador da influenza. Ainda durante o reinado da pandemia,
vários estudos foram realizados e, nos diversos países – incluindo o Bra-
sil – os debates concentraram-se em torno do bacilo de Pfeiffer. As con-
clusões apontavam, na sua maioria, que a doença devia-se a um agente
filtrável, afirmando também a ação acessória do bacilo, que contribuía
para aumentar a gravidade das complicações, não sendo, porém, capaz
de isoladamente reproduzir a moléstia.127
No início de novembro, Henrique de Beauperaire Aragão, assis-
tente do Instituto Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro, contestava o papel
atribuído por parte da comunidade científica nacional e internacional ao
bacilo de Pfeiffer, afirmando que a moléstia devia ser classificada entre
aquelas produzidas por “micróbios bastante diferentes das verdadeiras
bactérias (...) os chamados vírus”. Destes, completava, “alguns são com-
pletamente desconhecidos e talvez nunca possam ser vistos devido ao seu
tamanho diminuto”. Segundo dizia, a pandemia estava sendo exaustiva-

126
ESTADO DE MINAS GERAIS. Relatório apresentado ao Conselho Deliberativo...,
1903, p. 14.
127
Notas e referências aos estudos realizados durante os anos de 1918-1919 po-
dem ser consultados nos periódicos nacionais e internacionais: Brasil-Médico; Re-
vista Médico-Cirúrgica do Brasil, Gazeta Clínica, Lancet, Journal of American Medical
Association – JAMA, Il Policlínico, Bulletin de L’Intitut Pasteur, Presse Médicale,
entre outros.

274

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 274 19/6/2008, 23:40


mente estudada pela bacteriologia nos países onde grassava e tais pesqui-
sas pareciam confirmar o declínio do prestígio até então atribuído ao bacilo
de Pfeiffer. Afirmava ainda que as inoculações de expectorações de doen-
tes que havia realizado em animais como macacos, cães e coelhos, tinham
resultado negativas e as observações microscópicas revelaram a presença
de outros organismos distintos do bacilo de Pfeiffer (ARAGÃO, 1918).
Também na matriz do Instituto Oswaldo Cruz, o bacteriologista
norte-americano Bowman Corning Crowell desenvolvia outra pesquisa
por meio da qual classificou aquela manifestação da influenza como um
“estado mórbido de etiologia complexa”, no qual um determinado orga-
nismo era responsável pela manutenção da moléstia, enquanto outros
levavam às infecções subsidiárias que, algumas vezes, assumiam impor-
tância maior que a moléstia original (CROWELL, 1919).128 Entre os
organismos encontrados nos estudos anatomo-patológicos que realizou,
Crowell apontava o bacilo da influenza, o pneumococo e o estreptococo.
Quanto ao agente responsável pela introdução da doença, afirmava pare-
cer acertado admitir ser ele o “bacilo da influenza ou um outro organis-
mo causal desconhecido”, não se podendo, porém, “absolutamente”
admitir ser o mesmo bacilo responsável “por todos os casos de afecções
respiratórias” observados, uma vez que, “em alguns lugares praticamen-
te toda a epidemia era ocasionada por algum outro tipo de organismo
predominante” (CROWELL, 1919:133-134).
Em Belo Horizonte, a filial do Instituto Oswaldo Cruz participava
ativamente do esforço coordenado por sua matriz para identificar a
“etiologia da moléstia e, basear no conhecimento dela, processos racio-
nais de profilaxia e tratamento”. Um dos envolvidos nessa tarefa foi Otá-
vio Magalhães, pesquisador da filial de Manguinhos e professor da Fa-
culdade de Medicina de Belo Horizonte, que, juntamente com Aristides
Marques da Cunha e Olympio da Fonseca, publicaria os dados levanta-
dos por suas investigações em fins de novembro de 1918 (CUNHA,
MAGALHÃES e FONSECA, 1918a).

128
Os estudos de Crowell contaram com a colaboração dos doutores Oscar D’Utra
e Silva, Magarinos Torres e Cássio Miranda, também do Instituto Oswaldo Cruz.
Ver: Brasil-Médico, Ano XXXIII, p. 21-22, 1919.

275

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 275 19/6/2008, 23:40


Segundo os autores, os estudos etiológicos sobre a moléstia inicia-
ram-se tão logo surgida a pandemia e foram, em grande parte, orientados
para a pesquisa do bacilo de Pfeiffer ou de outra bactéria que pudesse ser
classificada como o agente causal da influenza. A pesquisa que então
apresentavam havia sido iniciada por Carlos Chagas entre os casos mani-
festados nas tropas militares do Rio de Janeiro. O trabalho apontava que,
desde os primeiros dias da pandemia, algumas das mais importantes au-
toridades científicas do país postulavam que a moléstia era reconhecida-
mente produzida por germes filtráveis.129 Partindo do mesmo pressupos-
to, os autores concluíam, após vários experimentos bacteriológicos e com
o apoio do resultado de observações clínicas, que a causa específica da
moléstia não era o bacilo de Pfeiffer – por vezes ausente nas culturas
realizadas – mas um vírus filtrável, capaz de provocar reação experimen-
tal quer em seres humanos como também em animais de laboratório.
Em nota adicional, os autores afirmavam que o prosseguimento de
suas pesquisas reforçava a suposição de ser o agente causal da influenza
um organismo filtrável. Diziam também que um dos macacos reinoculados
com filtrado de escarro não havia apresentado reações, o que era inter-
pretado como “exprimindo um estado de imunidade”, conferido pela
primeira inoculação. Apesar do pequeno número de experiências não
permitir ainda um juízo definitivo, os resultados pareciam sinalizar para a
possibilidade futura de elaboração de uma vacina contra a moléstia. Fi-
nalmente, a nota dizia que estudos recém publicados por cientistas euro-
peus e americanos que também estavam estudando a pandemia – Nicolle,
Lebailly, Violle e Selter – apresentavam resultados que seguiam as mes-
mas conclusões por eles defendidas.130
Outro pesquisador que havia se dedicado ao estudo bacteriológico
da moléstia durante a pandemia, o Dr. Artur Moses, também se posicionava

129
São citados como defensores dessa opinião os patologistas Alcides Godoy, Mar-
ques Lisboa, Eurico Villela e Astrogildo Machado.
130
“Já estava no prelo a nossa comunicação preliminar... quando chegaram ao
nosso conhecimento pesquisas nesse sentido realizadas em França, por Nicolle e
Lebailly, as quais vêm confirmar os nossos resultados” (CUNHA, MAGALHÃES e
FONSECA 1918a:378). O mesmo trabalho seria publicado com acréscimos em:
Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, fasc.2, tomo 10, p.174-191, 1918b.

276

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 276 19/6/2008, 23:40


contra a atribuição da etiologia da gripe ao bacilo de Pfeiffer, uma vez
haver observado em suas pesquisas que, em amostras de cultura de mais
de 40 doentes, apenas 7 denunciaram a presença do bacilo.131 Nos anos
seguintes, novos trabalhos seriam publicados relatando experiências rea-
lizadas com culturas de secreções de gripados e, cada vez mais, seus
autores tendiam a posicionar-se favoravelmente à hipótese do vírus
filtrável.132
Os estudos realizados pelos pesquisadores brasileiros foram cita-
dos em alguns dos debates internacionais travados em torno da moléstia.
Em abril de 1919, foi realizada em Milão uma reunião para discutir a
pandemia de influenza. Seus participantes referiram-se a experiências
realizadas por institutos dos mais diversos países – Estados Unidos, França,
Itália, Alemanha, Inglaterra e Brasil. Reportando-se às discussões que
tiveram lugar naquele encontro, Ferdinando Micheli afirmava que, no
vasto complexo de pesquisas então realizadas, diante do “contraste de
opiniões e da grande divergência de observações e resultados, a possibi-
lidade de síntese parecia à primeira vista impossível”. Entretanto, opina-
va que o bacilo de Pfeiffer devia ser considerado apenas um germe asso-
ciado capaz de sustentar a moléstia, mas não de originá-la, apontando
que estudos experimentais realizados nos Estados Unidos e no Brasil não
haviam conseguido reproduzir a moléstia em cobaias por meio da
inoculação (MICHELI. 1920:47-48 e 55). Apesar de não termos reali-
zado um levantamento mais detalhado de outras referências aos estudos
brasileiros na literatura científica internacional sobre a pandemia, sugeri-
mos que as investigações realizadas por esses pesquisadores contribuí-
ram para o debate internacional sobre a natureza da influenza.
Assim, como foi visto, as experiências e declarações a respeito da
natureza da moléstia e as atitudes tomadas pelos profissionais da saúde
na capital mineira e no resto do país, durante a pandemia de 1918,
estiveram em consonância com aquelas de seus colegas de outras partes
do mundo. Também as medidas profiláticas indicadas para proteger a
população contra o ataque da moléstia não diferiam sobremodo do que

131
MOSES, Artur. “Bacteriologia da gripe”. Brasil Médico, no XXXIII, n.5, p. 37-
39, 1919.
132
Cf., entre outros: PARANHOS, 1919; COSTA, 1920.

277

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 277 19/6/2008, 23:40


havia sido feito, ou fora sugerido, em outras regiões atacadas. As dúvidas
e controvérsias geradas pela influenza em meio à comunidade científica
internacional eram outro aspecto partilhado pelo círculo médico do país,
e parte expressiva dos doutores brasileiros acompanhava de perto e par-
ticipava dos desenvolvimentos científicos – especialmente da chamada
medicina experimental – que se operavam nos principais centros estran-
geiros. Na capital mineira, a filial do Instituto Oswaldo Cruz foi mais um
instrumento a contribuir na produção do conhecimento científico sobre a
moléstia. Assim, acompanhando os debates, declarações e pesquisas le-
vados a cabo pelos representantes da classe médica brasileira, acredita-
mos poder afirmar que eles também desempenharam seu papel no pro-
cesso de refinamento conceitual da influenza.

278

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 278 19/6/2008, 23:40


Considerações finais

A História das Epidemias é um campo de investigação que acena


com amplas possibilidades para o trabalho do historiador, agregando
novas ferramentas e perspectivas de análise. O caráter de crise assumido
pelos eventos epidêmicos – de existência breve, mas intensa, e que esca-
pa às estruturas lógicas e emocionais da existência comum – coloca em
evidência opiniões, comportamentos, crenças, conflitos que muitas vezes
passariam desapercebidos na análise sobre determinada sociedade. O
estudo dessas experiências pode auxiliar na percepção das estruturas
administrativas, da agenda de políticas públicas e da capacidade de inge-
rência do Estado na sociedade; dos embates entre interesses coletivos e
individuais; da organização da vida cotidiana e das relações que a per-
passam e sustentam; das percepções e visões de mundo que buscam
explicar e dar sentido à existência humana; entre outras.
Como aponta a historiografia anteriormente examinada, é possível
identificar diversos elementos recorrentes na narrativa sobre as reações
sociais frente às epidemias – uma verdadeira dramaturgia. Entretanto,
essa é apenas uma dimensão possível de análise desses eventos. As im-
plicações e os significados atribuídos à experiência epidêmica também
são modulados segundo outras variáveis e contextos que são específicos.
Assim, ao lado desse repertório de elementos recorrentes, é possível
identificar particularidades que vão marcar cada um desses eventos. A
experiência examinada neste trabalho é um bom exemplo.
Acompanhando a crônica da influenza espanhola na cidade de
Belo Horizonte, podemos perceber algumas reações e atitudes diante da
moléstia que remetem a histórias traçadas pela pandemia em outras cida-
des e, também, a histórias de outros eventos epidêmicos, como a peste

279

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 279 19/6/2008, 23:40


durante a Idade Média e as epidemias de cólera que atingiram os países
ocidentais no decorrer do século XIX ou, ainda, as ameaças recentes da
AIDS e da SARS. O medo, a alteração no curso da vida cotidiana, as
expectativas geradas em torno das soluções do saber médico, os descon-
tentamentos diante de medidas impostas pelo poder público, a mobilização
social para o socorro às vítimas, os rituais – científicos e religiosos – são
aspectos que compõem os relatos dessas experiências sociais.
Não obstante, apesar dessas similitudes, a narrativa da pandemia
de espanhola na capital mineira também apresenta particularidades que
guardam relação com a história da própria cidade. Como foi visto, a
crença na salubridade de Belo Horizonte era elemento conformador das
percepções que parte de sua população devotava às doenças e foi mesmo
motivo de preocupação de alguns representantes da classe médica em
relação às reações diante da influenza. Além disso, serviu de instrumento
para o discurso do poder público em relação à moléstia: a população
devia tranqüilizar-se, uma vez que as condições sanitárias da capital mi-
neira eram bastantes diversas daquelas que caracterizavam o Rio de
Janeiro, não devendo a espanhola repetir na cidade o flagelo verificado
na capital da república.
Como vimos, esse discurso sobre a salubridade de Belo Horizonte
foi sendo conformado desde o período em que se discutia a necessidade
de transferência da sede do governo estadual. Se esse debate remete à
dimensão política, por meio do confronto entre projetos distintos das
elites de diferentes regiões do estado – desenvolvimento, unidade, mo-
dernização – também não deixa de estar inscrito nas representações e
nos ideais de progresso e civilização que informavam a sociedade da
segunda metade do século XIX, dos quais a salubridade do espaço urba-
no fazia parte. Para além de referir-se à saúde coletiva, o saneamento
urbano também dizia respeito à economia, à vida social e ao futuro das
nações. Nesse sentido, os problemas relativos a higiene, nosologia, regi-
me de águas, clima e topografia, quer de Ouro Preto quer da localidade
escolhida para nova sede do governo – tão evidenciados nos debates do
Congresso mineiro – assumem papel de destaque, contribuindo tanto
para a definição como para a compreensão do processo que resultaria na
transferência da capital do estado.
O discurso da salubridade permaneceria como emblema da capi-
tal mineira durante seu planejamento e construção. E, apesar das evi-

280

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 280 19/6/2008, 23:40


dências de os benefícios gerados pela Higiene não terem sido estendidos
a toda cidade, esse discurso continuaria sendo alimentado e incorporado
por parte significativa da população, constituindo-se em aspiração de
todos e revelando-se, mais tarde, como um dos elementos a conferir
especificidade na experiência vivenciada pela cidade de Belo Horizonte
durante a pandemia de influenza espanhola.
O impacto da influenza espanhola serviu para tornar mais eviden-
te a exclusão social que marcava a cidade planejada, já revelada por
intermédio de outras fontes. Durante toda a história da cidade, o avanço
da urbanização superou o movimento de oferta dos serviços sanitários,
que estiveram concentrados em determinadas regiões da área central.
Assim, a decantada salubridade, se havia, estava circunscrita aos espa-
ços ocupados pela camada mais privilegiada da sociedade. E, apesar da
moléstia ter atingindo todos os estratos sociais, foram os pobres os que
mais sofreram as conseqüências da espanhola. Suas condições materiais
– a densidade dos bairros, a precariedade das habitações, as necessida-
des impostas pela sobrevivência – os tornavam mais vulneráveis, quer na
exposição à doença como na possibilidade de reagir de forma mais posi-
tiva ao seu ataque – dieta, acesso às terapêuticas indicadas, observância
da convalescença entre outros.
A pandemia de influenza também serviria para aprofundar a crise
econômica instalada com a guerra, aumentando a carestia e as tentativas
de exploração por parte dos comerciantes, desorganizando as atividades
produtivas, especialmente nas áreas rurais, o que refletia na vida da
capital. Além disso, mostrou como permaneciam presentes certas per-
cepções sobre a doença e práticas acionadas pela sociedade desde longo
tempo para contrapor-se a essas ameaças: o apego à religião, a mobilização
pela caridade, as práticas de cura populares, entre outros.
Assim como havia ocorrido em outras cidades, na capital mineira
o poder público também não foi capaz de enfrentar a moléstia apenas
com seus recursos, apesar de afirmar com constância seu controle sobre
a situação. Entretanto, diversamente do que fora observado nos casos
carioca e paulista, as autoridades sanitárias mineiras revelaram uma ra-
zoável capacidade de coordenação dos serviços prestados à população –
pelas associações religiosas e civis, profissionais e estudantes de medici-
na, instituições ligadas à saúde, o comércio e a população em geral –
conseguindo impor um relativo consenso no que diz respeito à forma de

281

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 281 19/6/2008, 23:40


socorro prestado às vítimas. A voz dissonante do Dr. Hugo Werneck
surgiu apenas quando o tormento havia passado, e não parece ter alcan-
çado repercussão entre as autoridades ou a população. Em nossa opi-
nião, o Dr. Samuel Libânio foi relativamente mais feliz que os doutores
Carlos Seidl e Artur Neiva no seu diálogo com a sociedade, não se obser-
vando em Belo Horizonte a culpabilização do Estado pela moléstia ou o
questionamento de suas responsabilidades. A própria natureza oficial da
memória que seria preservada sobre a pandemia também pode ser toma-
da como mais um elemento a compor esse “consenso” ou “habilidade”
das autoridades mineiras.
Quanto aos efeitos da pandemia de espanhola na agenda da saúde
pública em Minas, tendemos a concordar com parte da historiografia que
afirma que os eventos epidêmicos – agressivos, mas também eventuais –
costumam ter pouco efeito sobre as estruturas administrativas ou sobre
as atitudes relativas à saúde, a curto prazo. A longo prazo, porém, contri-
buem para encorajar campanhas sanitárias e uma maior consciência a
respeito das interdependências que caracterizam os problemas sanitári-
os. Por si só, a influenza não levou a mudanças efetivas na política de
saúde pública em Minas.
Como vimos, já estava em curso um processo de maior interven-
ção do Estado nos assuntos relativos à saúde pública, com a adesão do
governo estadual ao acordo celebrado entre a União e a Fundação
Rockfeller para o saneamento rural. Essa cooperação havia sido decidi-
da em 1917 e, em agosto de 1918, era inaugurado o primeiro posto do
Serviço de Profilaxia Rural em Minas. A mudança de atitude do governo
mineiro em relação à saúde pública seria fruto da ampla mobilização
pelo saneamento do interior do país, capitaneada por Belisário Pena e
outros importantes representantes da classe médica brasileira durante o
chamado “movimento sanitarista”. A pandemia de espanhola certamen-
te contribuiu para impulsionar a construção do consenso sobre o caráter
coletivo do problema das doenças – epidêmicas e endêmicas – e a neces-
sidade de uma ação coordenada para fazer frente às suas ameaças, mas
certamente não foi o motivo gerador de tais mudanças.
Ainda no se que refere à saúde pública, o exame da pandemia de
1918 aponta que não foram apenas as teorias médicas que informaram
as reações das autoridades frente à moléstia. Ao contrário, as medidas
impostas pelos doutores pareceram, em grande parte, contrárias às suas

282

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 282 19/6/2008, 23:40


convicções científicas sobre a influenza. As ações oficiais foram perpas-
sadas por questões de natureza econômica, social e política, tendo, mui-
tas vezes, uma eficácia apenas simbólica. O estudo da experiência da
gripe espanhola oferece argumentos que possibilitam questionar as abor-
dagens que destacam o êxito alcançado pela medicina como agente de
um processo de disciplinarização da sociedade brasileira, na passagem
dos séculos XIX-XX. Ao mesmo tempo em que o saber e a prática médi-
ca sofrem interferência de outras dimensões da vida social, a incorpora-
ção de normas e percepções oriundas da medicina pela sociedade não é
um processo passivo. Como revela Nancy Tomes, o sucesso alcançado
pelas proposições da Higiene acabou levando à perda do controle estrito
do seu conteúdo científico.
No campo da medicina, a pandemia de influenza revelou a
inadequação do saber higienista que havia informado o planejamento e a
edificação da nova capital mineira. Porém, se aquele saber não tinha
respostas diante da moléstia, o mesmo foi observado em relação à bacte-
riologia, que também se mostrou impotente para barrar ou controlar a
expansão da moléstia e mesmo para explicá-la de forma satisfatória a
uma população ansiosa em escapar do mal. Como vimos, a influenza
serviu para expor as limitações da nova ciência, funcionando como um
elemento de distúrbio no interior do discurso triunfalista da ciência. En-
tretanto, apesar de suas limitações, a bacteriologia desempenharia papel
importante no processo de refinamento conceitual da influenza e, como
sugerimos, os pesquisadores brasileiros também contribuíram na produ-
ção do conhecimento científico sobre a moléstia.
Os debates que a pandemia de 1918 propiciou nos círculos cien-
tíficos ajudam a revelar, também, que a construção do conhecimento
científico é um processo complexo, que nem sempre é determinado pelas
evidências do laboratório. As discussões travadas em torno do modelo
teórico estabelecido por Pfeiffer para explicar a influenza apontam para a
existência de outras variáveis no estabelecimento e na aceitação das pro-
posições científicas. Por outro lado, a história da influenza deixa claro
que o avanço de novas teorias não significa a supressão de velhas con-
cepções que informavam o saber científico. As noções científicas não são
necessariamente noções hegemônicas.
Como ressalta a bibliografia, a pandemia de espanhola ainda é
tema pouco explorado pela historiografia, e a realização de novos traba-

283

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 283 19/6/2008, 23:40


lhos será sempre bem-vinda. Além de agregar novos dados sobre o im-
pacto da espanhola em outras regiões, também irão contribuir na avalia-
ção e no desenvolvimento das perspectivas analíticas propostas pela His-
tória das Epidemias.

284

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 284 19/6/2008, 23:40


Referências Bibliográficas

Fontes

Periódicos

A Capital – 1896; 1897; 1913.


O Contemporâneo – 1893; 1895.
Correio da Manhã – 1918.
Diário de Minas – 1899; 1914; 1916; 1918.
Diário de Notícias – 1907.
O Estado de São Paulo – 1918.
A Farpa – 1918.
A Folha – 1892; 1894.
Folha de São Paulo – 2003.
O Festim – 1919.
Jornal do Comércio – 1918.
Minas Gerais – 1894; 1897; 1900; 1910; 1918.
A Notícia – 1919.
A Nota – 1915; 1917; 1918.
A Ordem – 1891.
A Pátria Mineira – 1893.
A Razão – 1918.
O Serro – 1981.
A Tarde – 1914.
A Vanguarda – 1906.
Annais da Faculdade de Medicina de Minas Gerais – 1930.
Annais da Policlínica Geral do Rio de Janeiro – 1918.
As Alterosas – 1916.

285

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 285 19/6/2008, 23:40


Brasil-Médico – 1918; 1919; 1920.
Bulletin de l’Institute Pasteur – 1918; 1919.
Lancet – 1918; 1919.
Journal of American Medical Journal [JAMA] – 1918; 1919.
Memórias do Instituto Oswaldo Cruz – 1918.
Il Policlínico – 1918; 1919; 1920.
Presse Medicale – 1918; 1919.
Radium – 1920.
Revista do Arquivo Público Mineiro – 1982.
Revista do Brasil – 1918.
Revista Médico-Cirúrgica do Brasil – 1918; 1919.

Documentação Oficial

BRASIL. Annais da Câmara do Congresso Nacional. Vol.X, sessão de 17 de outu-


bro de 1918.
ESTADO DE MINAS GERAIS. Documentos da Comissão Construtora da Nova
Capital – Belo Horizonte, 1894-1897 (CCNC/MHAB). Acervo do Museu His-
tórico Abílio Barreto.
ESTADO DE MINAS GERAIS. Álbum Médico de Belo Horizonte. Belo Horizonte:
Imprensa Oficial, 1912.
ESTADO DE MINAS GERAIS. ANNAES da Assembléia Constituinte do Estado de
Minas Gerais – 1891. Ouro Preto: Imprensa Oficial, 1896.
ESTADO DE MINAS GERAIS. ANNAES da Assembléia Constituinte do Estado de
Minas Gerais – Sessão Extraordinária em Barbacena, 1893. Ouro Preto: Im-
prensa Oficial, 1894.
ESTADO DE MINAS GERAIS. Anuário de Estatística Demografo-Sanitária de
Belo Horizonte. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1921.
ESTADO DE MINAS GERAIS. Anuário de Estatística Demografo-Sanitária de
Belo Horizonte e de algumas cidades do Estado, organizado pela Inspetoria de
Demografia e Educação Sanitária – 1932-1933. Belo Horizonte: Imprensa
Oficial, 1938.
ESTADO DE MINAS GERAIS: Arquivos de Processos do Fórum Lafayette (Maço
25). Belo Horizonte, 1919.
ESTADO DE MINAS GERAIS. Coleção de Leis e Decretos do Estado de Minas
Gerais, 1895. Ouro Preto: Imprensa Oficial, 1896.
ESTADO DE MINAS GERAIS. Coleção de Leis e Decretos do Estado de Minas
Gerais, 1897. Ouro Preto: Imprensa Oficial, 1898.

286

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 286 19/6/2008, 23:40


ESTADO DE MINAS GERAIS. Comissão d’Estudo das Localidades Indicadas para
a Nova Capital - Relatório apresentado ao Exmo. Sr. o Dr. Affonso Penna (Presi-
dente do Estado) pelo Engenheiro Civil Aarão Reis - janeiro a maio de 1893. Rio
de Janeiro: Imprensa Nacional, 1893.
ESTADO DE MINAS GERAIS. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Américo
Ferreira Lopes, Secretário de Estado de Negócios do Interior, pelo Dr. Zoroastro R.
Alvarenga, Diretor Geral de Higiene em 1912. Belo Horizonte: Imprensa Ofici-
al, 1913.
ESTADO DE MINAS GERAIS. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Secretário do
Interior do Estado de Minas pelo Dr. Samuel Libânio, Diretor de Higiene do
mesmo Estado [Exercício de 1917]. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1918.
ESTADO DE MINAS GERAIS. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Secretário do
Interior pelo Dr. Samuel Libânio, Diretor Geral de Higiene [Exercício de 1918].
Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1919.
ESTADO DE MINAS GERAIS. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Affonso
Penna Júnior, Secretário de Estado de Negócios do Interior do Estado de Minas
Gerais, pelo Dr. Samuel Libânio, Diretor Geral de Higiene, em 1919. Belo Hori-
zonte: Imprensa Oficial, 1920.
ESTADO DE MINAS GERAIS. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Affonso
Penna Júnior, Secretário de Negócios do Interior do Estado de Minas Gerais, pelo
Dr. Samuel Libânio, Diretor Geral de Higiene. Belo Horizonte: Imprensa Ofici-
al, 1921.
ESTADO DE MINAS GERAIS. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Fernando
de Mello Vianna, M.D. Secretário de Negócios do Interior do Estado de Minas
Gerais, pelo Dr. Samuel Libânio, Diretor Geral de Higiene. Belo Horizonte: Im-
prensa Oficial, 1924.
ESTADO DE MINAS GERAIS. Revista Geral dos Trabalhos da Comissão Constru-
tora. Rio de Janeiro: H. A. Lombaerts, 1985 [2 vol.].
FACULDADE de Medicina de Belo Horizonte. Ata da 12ª Sessão da Congregação
da Faculdade de Medicina. Belo Horizonte, 21 de outubro de 1918 [Livro 2].
PREFEITURA DE BELO HORIZONTE. Livro de Enterramentos do Cemitério
Municipal do Bonfim – 01/08/1912 a 29/02/1920.
PREFEITURA DE BELO HORIZONTE. Mensagem ao Conselho Deliberativo da
Cidade de Minas, apresentada em 19 de setembro de 1900 pelo Prefeito Dr.
Bernardo Pinto Monteiro. Cidade de Minas: Imprensa Oficial, 1900.
PREFEITURA DE BELO HORIZONTE. Relatório apresentado ao Conselho
Deliberativo pelo Prefeito Dr. Bernardo Pinto Monteiro em 19 de setembro de
1900. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1900.
PREFEITURA DE BELO HORIZONTE. Relatório apresentado ao Conselho
Deliberativo pelo Prefeito Dr. Bernardo Pinto Monteiro, 12 de setembro de 1889
– 31 de agosto de 1902. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1902.

287

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 287 19/6/2008, 23:40


PREFEITURA DE BELO HORIZONTE. Relatório apresentado ao Conselho
Deliberativo pelo Prefeito Dr. Francisco Bressane de Azevedo, em 16 de setembro
de 1903. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1903.
PREFEITURA DE BELO HORIZONTE. Relatório apresentado ao Conselho
Deliberativo pelo Prefeito Dr. Benjamim Brandão, em janeiro de 1910. Belo
Horizonte: Imprensa Oficial, 1910.
REFEITURA DE BELO HORIZONTE. Relatório apresentado ao Conselho
Deliberativo pelo Prefeito Dr. Olyntho Deodato dos Reis Meirelles, em 16 de
setembro de 1911. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1911.
PREFEITURA DE BELO HORIZONTE. Relatório apresentado ao Conselho
Deliberativo pelo Prefeito Dr. Olyntho Deodato dos Reis Meireles, em setembro de
1912. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1912.
PREFEITURA DE BELO HORIZONTE. Relatório apresentado ao Conselho
Deliberativo da Capital pelo Prefeito Dr. Affonso Vaz de Mello. Belo Horizonte:
Imprensa Oficial, 1919.

Textos Médicos

ALEIXO, Antônio. “Profilaxia da gripe”. Minas Gerais, 28 e 29 de outubro de


1918.
ALMEIDA, Garfield. “Doenças epidêmicas e sua representação no Rio de Janeiro
– Nosso problema sanitário”. Revista Médico-Cirúrgica do Brasil. Ano XXIX,
n.8 e 11, pp.319-475, 1921.
ALMEIDA, Otaviano. “A gripe”. Minas Gerais, 26 de outubro de 1918.
ANDRÉ, G. “Profilaxia e tratamento da gripe ou influenza”. Revista Médico-Cirúr-
gica do Brasil, Ano XXVI, n.9, pp.394-418, 1918.
ARAGÃO, Henrique de Beauperaire. “A propósito da gripe” (Trabalhos do Insti-
tuto Oswaldo Cruz). Brasil-Médico, Ano XXXII, n.45, pp.353-356, 1918.
BARBOSA, Plácido. “Influenzaphobia”. Minas Gerais, 23 de outubro de 1918.
BERNADINELLI, W. Clínica médica – aulas práticas e elementares. Rio de Janei-
ro: Livraria Francisco Alves, 1933.
BRAGA, Ambrozio Vieira. Questões de Higiene. O clima de Juiz de Fora segundo o
parecer do médico higienista da comissão técnica que estudou as localidades
indicadas para a Capital de Minas. Considerações sobre este parecer. Juiz de
Fora: Tipografia do Farol, 1894.
BRASIL-MÉDICO. Editorial. Ano XXXIV, n. 5, p.69, 1919.
BRASIL-MÉDICO. Editorial: “Notificação obrigatória dos casos de influenza”. Ano
XXXIV, n.6, p.89, 1919.

288

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 288 19/6/2008, 23:40


BRASIL-MÉDICO. Editorial: “O regime das quarentenas e a desmoralização da
Higiene brasileira”. Ano XXXIV, n.8, pp.124-125, 1919.
BRASIL-MÉDICO. Editorial - “Ainda a questão das quarentenas na profilaxia da
gripe”. Ano XXXIV n.11, p.174, 1919.
BRASIL-MÉDICO. Correspondências - “As vantagens da quarentena na gripe”.
Ano XXXIV, n.7, p.103, 1919.
CAMPBELL, Eugene P. “The epidemiology of influenza”. Bulletin of History of
Medicine, vol.3, n.4, pp.389-403, 1943.
CARVALHO, Bulhões. “Epidemia de gripe”. Brasil-Médico, Ano XXXIII, n.26,
pp.202-207, 1919.
CASTRO, Aloísio de. “Considerações em torno da gripe”. Annaes da Policlínica
Geral do Rio de Janeiro, Ano III, n.4, pp.350-361, 1918.
CHAGAS, Carlos. Discurso pronunciado pelo dr. Carlos Chagas (orador oficial) na
sessão solene inaugural do VII Congresso Brasileiro de Medicina e Cirurgia. Belo
Horizonte: Imprensa Oficial, 1912.
CHALIER, Joseph. “Tratamento da gripe”. Brasil-Médico, Ano XXXIII, n.26,
pp.212-214, 1919.
CHERNOVIZ, Pedro Luiz Napoleão. Formulário e guia médico. 18ª ed. Paris:
Livraria de R. Roger e F. Chernoviz, 1908.
COSTA, Nery. “Notas sobre a profilaxia da gripe”. Brasil-Médico, Ano XXXIV,
n.10, pp.157-158, 1920.
CROWELL, Bowman Corning. “Anatomia patológica da pneumonia causada pela
influenza, que grassou no Rio de Janeiro, em 1918”. Annaes da Faculdade de
Medicina do Rio de Janeiro, Ano III, pp.132-142, 1919.
CUNHA, Aristides Marques, MAGALHÃES, Otávio e FONSECA, O. “Estudos
experimentais sobre a influenza pandêmica”. Brasil-Médico, Ano XXXII, n.48,
pp.377-378, 1918 (a).
_________. “Estudos experimentais sobre a influenza pandêmica”. Memórias do
Instituto Oswaldo Cruz, fasc.2, tomo 10, pp.174-191, 1918 (b) [publicado com
acréscimos].
DOCUMENTA GEIGY. “La gripe: en el passado y en el presente”. Basiléia: J.
R.Geigy S.A., 1964.
DUFOURT, André. Trataiment des maladies infectieuses, intoxications, vacines et
séruns. (Les consultations Journalièries). Paris: Librairie Octave Doin, 1926.
DUPRAT, Frank. “A gripe espanhola e seu tratamento”. Revista Médico-Cirúrgica
do Brasil, Ano XXVI, n.9, pp.419-424, 1918.
ENCICLOPÉDIA Familiar da Medicina e Saúde. São Paulo: Enciclopédia Britâni-
ca do Brasil; Cia Melhoramentos de São Paulo, 1978.
FERREIRA, Cícero: “Higiene”. A Capital, 20 de junho de 1896, p.1.
FIESSINGER, Noël. “A epidemia atual de gripe”. Revista Médico-Cirúrgica do
Brasil, Ano XXVI, n.9, pp. 425-431, 1918.

289

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 289 19/6/2008, 23:40


FONTENELLE, José Paranhos. Compêndio de Higiene Elementar. Rio de Janeiro:
s.n, 1925.
FORTES, Hugo e PACHECO, Genésio. Dicionário Médico. Rio de Janeiro: s.n.,
1968.
GOODPASTURE, Ernest W. “Bronchopneumonia due to hemolytic streptococci
following influenza”. Journal of American Medicine Association - JAMA, vol.72,
n.10, pp.724-725, 1919.
GRAVAS, R.J. Leçons de clinique médicale. Paris: Adrien Delahaye Libraire-Editeur,
1871.
GRIST, N.R. “Pandemic influenza – 1918” [Carta do Sgt. Roy]. In: British Medical
Journal, 22 a 29 de dez, pp.1632-1633, 1979.
HAMMERLI, Marcelo A. Novo Tratado Médico da Família. 2ª ed. Santo André:
Casa Publicadora Brasileira, s.d, [vol.1].
KINSELLA, Ralph A. “The bacteriology of epidemic influenza and pneumonia”.
Journal of Americam Medicine Association - JAMA, vol.72, n.10, pp.717-720,
1919.
LITTRÉ, Émile. Dictionnaire de médicine, de cirurgie, de pharmacie et des sciences
que se rapportent par E. Litrré. 21ª ed. Paris: Librairie J. B. Bailliére et Fils,
1908.
MacCCALLUM, W.G. “Patology of the pneumonia following influenza”. Journal of
Americam Medicine Association - JAMA, vol.72, n.10, pp.720-724, 1919.
MEYER, Carlos Luiz e TEIXEIRA, Joaquim Rabello. A gripe epidêmica no Brasil
e especialmente em São Paulo. São Paulo: Casa Duprat, 1920.
MICHELI, Ferdinando. “Sull’influenza – eziologia e patogenesi”. Il Policlinico,
Ano XXVII, vol. XXVII-M, fasc.2, pp.45-74, 1919.
MONCORVO FILHO, Carlos Arthur. O Pandemônio de 1918: subsídio histórico da
epidemia de gripe que em 1918 assolou o território do Brasil. Rio de Janeiro:
Departamento da Criança do Brasil, 1924.
MOSES, Artur. “Bacteriologia da gripe”. Brasil-Médico, Ano XXXIII, n.5, pp.37-
39, 1919.
OLIVEIRA, José D. “Formas clínicas e terapêuticas da gripe”. Revista Médico-
Cirúrgica do Brasil, Ano XXVII, n.8, pp.342-352, 1919.
OSLER, Willian. La pratique de la medicine. Paris: G Steinheil, 1908.
PARANHOS, Ulysses. “Ensaios da esputo-vacinação anti-gripal.” Brasil-Médico,
Ano XXXIII, n.3, pp.20-21, 1919.
PEIXOTO, Afrânio. Elementos de Higiene. Rio de Janeiro: Francisco Alves & Cia,
1913.
PENA, Belisário. Min as e Rio Grande do Sul – Estado da doença, Estado da saúde.
Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 1918.
PENA, Gustavo. “Contágio do pânico”. Minas Gerais, 26 de outubro de 1918, p.2.

290

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 290 19/6/2008, 23:41


REVOREDO, Galeno, MEIRA, Rubião e MONTEIRO, Eduardo. “A gripe e o seu
tratamento”. Revista do Brasil, Ano III, n.35, vol. IV, pp.351-359, novembro
de 1918.
RODRIGUES, Lopes. “Influenza na Marinha”. In: MEYER, Carlos Luiz e
TEIXEIRA, Joaquim Rabello. A gripe epidêmica no Brasil e especialmente em
São Paulo. São Paulo: Casa Duprat, 1920.
RODRIGUES, Luis. “A pandemia de gripe sob o ponto de vista metereológico”.
Revista Médico-Cirúrgica do Brasil, Ano XVII, n.2, pp.63-67, 1919.
ROUSSY, B. “Natureza e modos de ação do agente patogênico infeccioso da gripe
ou influenza. Revista Médico-Cirúrgica do Brasil, Ano XVII, n.5, pp.162-175,
1919.
SEIDL, Carlos. “A pandemia de Gripe e o ex-Diretor Geral de Saúde Pública”.
Revista Médico-Cirúrgica do Brasil, Ano XXVI, n.10, 1918.
_________. “A pandemia de gripe e a sua repercussão no Brasil – A minha defesa
na imprensa”. Revista Médico-Cirúrgica do Brasil, ano XXVI, n.10, 1918 (b).
SILVA, Ribeiro da. “Gripe pandêmica e gripe nostras”. Brasil-Médico, Ano XXXIII,
n.6, pp.44-45, 1919.
SHOPE, Richard E. “Influenza: history, epidemiology, and speculation”. Public
Health Reports, vol.73, n.2, pp.165-178, 1958.
STERNBERG, G.M. Desinfecção e profilaxia individual contra as doenças infectuosas.
Rio de Janeiro: Laemmert & Cia, 1889.
TAVARES, Casimiro Laborne. “O saneamento rural em Minas”. Radium, n.1,
pp.14-15, setembro de 1920.
VASCONCELLOS, Artur. “Considerações em torno da gripe”. Annais da Policlí-
nica Geral do Rio de Janeiro, Ano III, n.4, pp.350-357, 1918.
VAUGHAN, Victor C. A doctor’s memories. Indianapolis: Bobbs-Merril, 1926.
VIANNA, J. Baeta. “Bócio endêmico em Minas Gerais”. Separata dos Annaes de
1930 da Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais (Brasil). Rio
de Janeiro: Tipografia Americana, 1930

Livros e artigos

ANDRADE, Moacyr. “Coisas da medicina no início de BH”. Revista do Arquivo


Público Mineiro, Ano XXXIII, pp.215-239, 1982 (a).
_________. “A maneira de fazer jornal”. Revista do Arquivo Público Mineiro, Ano
XXXIII, pp.255-257, 1982.
ARAÚJO, Laís Corrêa (Org). Sedução do Horizonte. Belo Horizonte: Fundação
João Pinheiro, 1996.

291

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 291 19/6/2008, 23:41


ARRUDA, Rogério Pereira (Org). Álbum de Belo Horizonte (Edição fac-similar
com Estudos Críticos/ Publicação original de 1911). Belo Horizonte: Autênti-
ca; Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, 2003.
ASSEMBLÉIA Legislativa de Minas Gerais. As Constituintes Mineiras de 1891,
1935 e 1947: uma análise histórica. Belo Horizonte: Assembléia Legislativa do
Estado de Minas Gerais, 1989.
BARRETO, Abílio. Resumo Histórico de Belo Horizonte (1701-1947). Belo Hori-
zonte: Imprensa Oficial, 1950.
_________. Belo Horizonte. Memória histórica e descritiva. Belo Horizonte: Funda-
ção João Pinheiro, 1996 [2 vol.].
BRANDÃO, Affonso Silviano. Na vivência do meu tempo. Belo Horizonte: s.n., 1977.
CAIAFA FILHO, Carlos. Vida de menino antigo – histórias da minha infância.
Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1986.
CEMIG. Belo Horizonte; do Curral del Rei à Pampulha. Belo Horizonte: Editora
Ibérica, 1982.
FUNDAÇÃO João Pinheiro. Belo Horizonte & o Comércio. Belo Horizonte: 100
anos de História. (Coleção Centenário). Belo Horizonte: Fundação João Pinhei-
ro, 1997.
FUNDAÇÃO João Pinheiro. Omnibus – uma história dos transportes coletivos de
Belo Horizonte. (Coleção Centenário). Belo Horizonte: Fundação João Pinhei-
ro, 1996.
FUNDAÇÃO João Pinheiro. Saneamento básico em Belo Horizonte: trajetória em
100 anos – os serviços de água e esgoto. (Coleção Centenário). Belo Horizonte:
Fundação João Pinheiro, 1997.
MARTINS. Beatriz Borges. A vida é esta. Belo Horizonte: B.B. Martins, 2000.
MAGALHÃES, Otávio. Ensaios. Belo Horizonte: Faculdade de Direito da UMG,
1956.
MAGALHÃES, Vanda. Otávio Magalhães – um pouco do que ele foi. Belo Horizon-
te: Cordel, 1976.
MIRAGLIA, Sylvio. Serra do Curral: recordações. Belo Horizonte: Imprensa Ofici-
al, 1990.
_________. Páginas vividas. Belo Horizonte: Ingabras, 1975.
NABUCO, Joaquim. Mudança da capital: apontamentos históricos. Belo Horizonte:
Imprensa Oficial, 1905.
NAVA, Pedro. Chão de ferro. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.
PENNA, Otávio. Notas cronológicas de Belo Horizonte. Belo Horizonte: Fundação
João Pinheiro, 1997.
SALLES, Pedro. Notas sobre a história da medicina em Belo Horizonte. Belo Hori-
zonte: Ed. Cuatiara, 1997.
VICTOR, Silveira (Org./Ed.). Minas Gerais em 1925. Belo Horizonte: Imprensa
Oficial, 1926.

292

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 292 19/6/2008, 23:41


Sítios da Internet:

<http://www.2.okstate.edu/ww1hist/flu.html>
<http://www.stanford.edu/group/virus/uda/fluresponse.html>

Obras de referência

BYNUM, W.F., BROWNE, E.J. e PORTER, R. Dictionary of The History of Science.


Princeton: Princeton University Press, 1985.
BYNUM, W.F. e PORTER, R. Companion Enciclopedia of History of Medicine.
Vol.1, Londres: Routledge, 1993.
FORTES, Hugo e PACHECO, Genésio. Dicionário Médico. Rio de Janeiro: s.n.,
1968.
ENCICLOPÉDIA Familiar da Medicina e Saúde. São Paulo: Enciclopédia Britâni-
ca do Brasil; Cia Melhoramentos de São Paulo, 1978.
HAMMERLI, Marcelo A. Novo Tratado Médico da Família. 2ª ed. Santo André:
Casa Publicadora Brasileira, s.d, [vol.1].
HOLANDA, Aurélio Buarque de F. Novo Aurélio Século XXI. 3ª ed. (rev. e ampl.).
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:
Instituto Antônio Houaiss; Objetiva, 2001.

Bibliografia

ABRÃO, Janete Silveira. Banalização da morte na cidade calada: a hespanhola em


Porto Alegre, 1918. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998.
ABREU, Maurício de A. “Da habitação popular: a questão da habitação popular
no Rio de Janeiro e sua evolução”. Revista Rio de Janeiro, vol.1, n.2, pp.47-58,
1986.
ANDRADE, Carlos Roberto M. “O plano Saturnino de Brito para Santos e a cons-
trução da cidade moderna no Brasil”. Espaço & Debates, n.34, pp.55-63, 1991.
ANTUNES, José Leopoldo Ferreira. Medicina, leis e moral: pensamento médico e
comportamento no Brasil (1870-1930). São Paulo: UNESP, 1999.
ARAÚJO, Emanuel. O teatro dos vícios: transgressão e transigência na sociedade
urbana colonial. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993.

293

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 293 19/6/2008, 23:41


ARIÈS, Philippe. O homem diante da morte. 2ª ed. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1989.
BARDET, Jean Pierre, BOURDELAIS, Patrice et al. Peurs et terreurs face à la
contagion: chólera, tuberculose, syphilis – XIXe-XXe siècles. Paris: Fayard, 1998.
BENCHIMOL, Jayme Larry. Pereira Passos: um Haussmann tropical – a renova-
ção urbana do Rio de Janeiro no início do século XX. Rio de Janeiro: Secretaria
Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, 1990.
_________. “Reforma urbana e Revolta da Vacina na cidade do Rio de Janeiro”.
In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucília de Almeida Neves. O Brasil
republicano.Vol.1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
_________. Dos micróbios aos mosquitos: febre amarela e a revolução pasteuriana
no Brasil. Rio de Janeiro; Editora da Fiocruz; Editora da UFRJ, 1999.
BERTOLLI FILHO, Cláudio. Epidemia e sociedade: a gripe espanhola no municí-
pio de São Paulo. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1986 (Dissertação de
Mestrado). Publicada sob o título: A gripe espanhola em São Paulo: epidemia e
sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2003.
_________. “A gripe espanhola em São Paulo”. Ciência Hoje, vol.10, n.58, pp.31-
41, 1989.
_________. História social da tuberculose e do tuberculoso: 1900-1950. Rio de
Janeiro: Editora da Fiocruz, 2001.
BERTUCCI, Liane Maria. Influenza: a medicina enferma. Campinas: Universidade
de Campinas, 2002, (Tese de Doutorado). Publicado sob o título: Influenza, a
medicina enferma. Campinas: UNICAMP, 2004.
BEVERIDGE, W.I.B. Influenza: the last great plague. New York: Prodist, 1978.
BILLINGS, Molly. The Influenza Pandemic of 1918. 1997. <www.satnford.edu/
group/virus/ uda/fluresponse.html>.
BOCCACCIO, Giovanni. Decamerão. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
BOURDELAIS, Patrice, e RAULOT, Jean-Yves. Une peur bleue: histoire du choléra
em France – 1832-1854. Paris: Payot, 1987.
BOURDELAIS, Patrice. “Presentation”. In: BARDET, Jean-Pierre, BOURDELAIS,
Patrice et al. Peurs et terreurs face à la contagion. Paris: Fayard, 1988.
BRESCIANI, Maria Stella M. Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobre-
za. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1984.
BRIGGS, Asa. “Cholera and Society in 19th Century”. Past and Present, n.19,
pp.76-96, 1961.
BRITO, Nara de Azevedo. “La dansarina: a gripe espanhola e o cotidiano na
cidade do Rio de Janeiro”. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, vol. IV,
n.1, pp.11-30, mar/jun de 1997.
CAMPBELL, Eugene P. “The epidemiology of influenza”. Bulletin of History of
Medicine, vol.3, n.4, pp.389-403, 1943.

294

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 294 19/6/2008, 23:41


CAMPOS, André Luiz Vieira de. International health politics in Brasil: The Serviço
Especial de Saúde Pública, 1942-1960. Austin: The University of Texas at
Austin, 1997 (PhD Dissertertion). Publicado sob o título: Políticas internacio-
nais de saúde na Era Vargas: O Serviço Especial de Saúde Pública, 1942-1960.
Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2006.
_________. A República do Picapau Amarelo: uma leitura de Monteiro Lobato. Rio
de Janeiro: Martins Fontes, 1986.
_________. “Políticas internacionais de saúde na Era Vargas: o Serviço Especial
de Saúde Pública”. In: GOMES, Ângela de Castro (Org). Capanema: o ministro
e o seu ministério. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000.
_________. André Luiz V. de, NASCIMENTO, Dilene R. e MARANHÃO, Eduar-
do. “A história da poliomielite no Brasil e seu controle por imunização”. Histó-
ria, Ciências, Saúde – Manguinhos, vol.10, suplemento 2, pp.573-600, 2003.
CAMUS, Albert. A peste. 14ª ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2003.
CAPONI, Sandra. “La generación espontánea y la preocupación higienista por la
diseminación de los gérmenes”. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, vol.9,
n.3, pp.592-608, 2002.
CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que
não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
CASTRO SANTOS, Luiz Antônio e FARIA, Lina Rodrigues de. A reforma sanitá-
ria no Brasil: ecos da Primeira República. Bragança Paulista: EDUSF, 2003.
CASTRO SANTOS, Luiz A. “O pensamento sanitarista na Primeira República:
uma ideologia de construção da nacionalidade”. Dados - Revista de Ciências
Sociais, vol.28, n.2, pp.193-221, 1985.
CAVALCANTE, Berenice O. “Beleza, limpeza, ordem e progresso: a questão da
higiene na cidade do Rio de Janeiro”. Rio de Janeiro, vol.1, n1, pp.95-103,
1985.
CHAGAS FILHO, Carlos. Meu pai. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz, 1993.
CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. São
Paulo: Companhia das Letras, 1996.
___. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da
Belle Époque. São Paulo: Brasiliense, 1986.
CHANDAVARKAR, Rajnarayan. “Plague panic and epidemic politics in Índia,
1896-1914”, In: RANGER, Terence and SLACK, Paul (Ed.). Epidemics and
ideas: essays on the historical perception of pestilence. Cambridge: Cambridge
University Press, 1992.
CHEVALIER, Luis. Le chólera: La première épidémie du XIXe siècle. Le Roche-sur-
Yon: Impr. Centrale de l’ouest, 1958.
COELHO, Edmundo Campos. As profissões imperiais: medicina, engenharia e ad-
vocacia no Rio de Janeiro – 1822-1930. Rio de Janeiro: Record, 1999.
COLAVITTI, Fernanda. “A grande gripe vem aí?” Galileu, n.152, pp.53-59, 2004.

295

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 295 19/6/2008, 23:41


COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. 4ª ed. Rio de Janeiro:
Graal, 1999.
COSTA, Nilson do Rosário. Lutas urbanas e controle sanitário: origens das políticas
de saúde no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1985.
CROSBY, Alfred. America’s forgotten pandemic: The influenza of 1918. Cambridge:
Cambridge University Press, 1999.
_________. The columbian exchange: biological and cultural consequences of 1492.
Westport, Connecticut: Greenwood Press, 1973.
_________. Ecological imperialism: The biological expansion of Europe, 900-1900.
Cambridge: Cambridge University Press, 1998.
_________. “Influenza”. In: KIPLE, Kenneth F (Ed). The Cambridge World History
of Human Disease. Vol.II. Cambridge: Cambridge University Press, 1993.
CUETO, Marcos. El regreso de las epidemias: salud y sociedad en el Perú del siglo
XX. Lima: IEP, 1997.
CZERESNIA, Do contágio à transmissão: ciência e cultura na gênese do conheci-
mento epidemiológico. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1997.
DANIELS, Rod. In: “Search of an enigma: The Spanish Lady”. Mill Hill Essays
1998. National Institute for Medical Research, 1998, http://www.nimr.mrc.ac.uk/
mhe98/ influenza.1918.htm
DEFOE, Daniel. Diário do ano da peste. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2002.
DeLACY, Margaret. “The conceptualization of influenza in eighteenth-century
Britain: specificity and contagion”. Bulletin of History of Medicine, vol.67, n.1,
pp. 74-118, 1993.
DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente: 1300-1800. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 1996.
DRIGALSKI, Whillem vom e LOT, Fernando. O homem contra os micróbios. 3ª
ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1964.
EDLER, Flávio Coelho. As reformas do ensino médico e a profissionalização da
Medicina na corte do Rio de Janeiro, 1854-1884. São Paulo: Universidade de
São Paulo, 1992 (Tese de Doutorado).
EGGERICK, Thierry e POULAIN, Michel. “L’epidemie de choléra em 1866: le
cas de la Belgique”. In: BARDET, Jean Pierre, BOURDELAIS Patrice et al.
Peurs et terreurs face à la contagion: chólera tuberculose, syphilis – XIXe-XXe
siècles. Paris: Fayard, 1998.
ELIAS, Norberto e SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.
EVANS, Richard J. Death in Hamburg: society and politics in the cholera years
1830-1910. London: Penguin Books, 1987.
_________. “Epidemics and revolutions: cholera in nineteenth-century Europe”, In:
RANGER, Terence and SLACK, Paul (Ed.). Epidemics and ideas: essays on the
historical perception of pestilence. Cambridge: Cambridge University Press, 1992.

296

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 296 19/6/2008, 23:41


FIGUEIREDO. Betânia Gonçalves. A arte de curar: cirurgiões, médicos, boticários e
curandeiros no século XIX em Minas Gerais. Rio de Janeiro: Vício de Leitura,
2002.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 8ª ed.
Petrópolis: Vozes, 1991.
_________. Microfísica do poder. 11ª reimpressão. Rio de Janeiro: Graal, 1995.
_________. O nascimento da clínica. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1994.
_________. História da loucura. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1987.
FRITSCH, Lílian. “Palavras ao vento: a urbanização do Rio Imperial”. Rio de
Janeiro, vol.1, n.3, pp.75-85, 1986.
GALISHOFF, Stuart. “Newark and the great influenza pamdemic of 1918”. Bulletin
of History of Medicine, vol.XLIII, n.3, pp.246-258,1969.
GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes,
1975.
GOULART, Adriana Costa. Um cenário mefistofélico: a gripe espanhola no Rio de
Janeiro. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2003 (Dissertação de
Mestrado).
GUIMARÃES, Berenice Martins. “A concepção e o projeto de Belo Horizonte: a
utopia de Aarão Reis”. In: RIBEIRO, Luiz César e PECHMAN, Robert (Org).
Cidade, povo, nação: gênese do urbanismo moderno. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1996.
___. Cafuas, barracos e barracões: Belo Horizonte, cidade planejada. Rio de Janei-
ro: IUPERJ, 1991 (Tese de Doutorado).
HAHNER, June E. Pobreza e política: os pobres urbanos no Brasil – 1870-1920.
Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1993.
HANNAWAY, Caroline. “Enviromental and miasmata”. In: Bynum, W.F. e
PORTER, R.. Companion Enciclopedia of History of Medicine. Vol.1, Londres:
Routledge, 1993.
HERZLICH, Claudine e PIERRET, Janine. “Uma doença no espaço público: a
AIDS em seis jornais franceses”. Physis – Revista de Saúde Coletiva, vol.12,
n.1, pp.7-35, 1992.
HOCHMAN, Gilberto. A era do saneamento: as bases da saúde pública no Brasil.
São Paulo: HUCITEC/ANPOCS, 1998.
IYDA, Massako. Cem anos de saúde pública: a cidadania negada. São Paulo: Unesp,
1994.
JONES, Colin. “Montpellier medical students and the medicalisation of 18th-century
France”. In: PORTER, Roy e WEAR, Andrew. Problems and methods in the
history of medicine. London: Croom Helm, 1987.
JULIÃO, Letícia. Belo Horizonte: itinerários da cidade moderna (1891-1920). Belo
Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 1992 (Dissertação de Mestrado).

297

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 297 19/6/2008, 23:41


KATZ, Robert. “Influenza 1918-1919: a study in mortality”. Bulletin of History of
Medicine, vol.XLVIII, n.4, pp.416-422, 1974.
KILBOURNE, Edwin D. “Influenza”. In: VERONESI, Ricardo (Org). Doenças
infecciosas e parasitárias. 8ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1991.
_________. Influenza. New York: Plenun, 1987.
KOLATA, Gina. FLU: The history of the great influenza pandemic of 1918 and the
search for the virus that caused it. London: Macmillan, 2000.
KROPF, Simone. “Sonho da razão, alegoria da ordem: o discurso dos engenheiros
sobre a cidade do Rio de Janeiro no final do século XIX e início do século XX”.
In: HERSCHMANN, Micael et all. Missionários do Progresso: médicos, enge-
nheiros e educadores no Rio de Janeiro – 1870-1937. Rio de Janeiro: Diadorim,
1996.
LEBRUN, François. Se soigner autrefois; médicins, saints et corciers aus XVII et
XVIII siècles. Paris: Editons du Seuil, 1995.
LE VEN, Michel. Classes sociais e poder político na formação espacial de Belo Hori-
zonte (1893-1914). Belo Horizonte: C/Arte, 1997.
LIMA, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil: intelectuais e a representação
geográfica da identidade nacional. Rio de Janeiro: Revan; IUPERJ; UCAM,
1999.
LIMA, Nísia Trindade e BRITO, Nara. “Saúde e nação: a proposta do saneamento
rural. Um estudo da Revista Saúde – 1918-1919”. Estudos de História e Saú-
de, vol.3, maio de 1991.
LINDEMANN, Mary. Medicine and society in early modern Europe. Cambridge:
Cambridge University Press, 1999.
LYONS, Albert e PETRUCELLI, R. Joseph (Org). Medicine: an illustrated history.
New York: Abradale Press, 1978.
LONGRIGG, James. “Epidemics, ideas and classical Athenian society”. In: Terence
and SLACK, Paul (Ed). Epidemic and ideas: essays on the historical perception
of pestilence. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.
LUZ, Madel Terezinha. Medicina e ordem política brasileira: políticas e instituições
de saúde (1850-1930). Rio de Janeiro: Graal, 1982.
MALETTA, Carlos Henrique Mudado. A cidade e os cidadãos: Belo Horizonte –
100 anos. Belo Horizonte: s.n., 1997.
MACHADO, Roberto et al. Danação da norma: Medicina social e constituição da
psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978.
MARQUES, Rita de Cássia. “Baeta Vianna e o bócio endêmico em Minas Gerais”.
Trabalho apresentado durante o X Encontro Regional da ANPUH-RJ. Rio de
Janeiro, outubro de 2002 (datiloscrito).
_________. “A pandemia gripal de 1918 em Minas Gerais”. Revista Médica de
Minas Gerais, vol.2, n.4, jan-mar, 1997.

298

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 298 19/6/2008, 23:41


_________. “Ezequiel Dias e a filial de Manguinhos de Belo Horizonte”. Anais do
VI Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia. Rio de Janeiro:
Sociedade Brasileira de História da Ciência, 1997.
_________. “Assistência punida: farmacêuticos, curandeiros e charlatães nos pro-
cessos judiciais de Belo Horizonte (1911-1927). Trabalho apresentado no XXII
Simpósio Nacional de História – ANPUH. João Pessoa, 2003 (datiloscrito).
MARQUES, Rita de Cássia e CARVALHO, Roberto B. “A gênese da ciência em
Belo Horizonte: 1894-1920”. Belo Horizonte: s.n., 1996 (datiloscrito).
MARX, Karl e ENGELS, Friederich. Obras escolhidas. Vol.2. São Paulo: Editora
Alfa-Ômega, s.d..
McNEILL, William. Plagues and peoples. New York: Anchor Books, 1976.
MONTENEGRO, Tito. “Perigo mutante”. Saúde, pp.49-53, dez. 1998.
OLINTO, Beatriz Anselmo. Uma cidade em tempo de epidemia: Rio Grande e a
gripe espanhola (R.S.- 1918). Florianópolis: Universidade Federal de Santa
Catarina, 1995 (Dissertação de Mestrado).
OLIVEIRA, Mônica Ribeiro. “As origens da expansão cafeeira na Zona da Mata
Mineira”. Locus, vol.1, n.1, pp.9-22, 1995.
PALMER, Edwina and RICE, Geoffrey W. “A japanese physician’s response to
pandemic influenza: Ijiro Gomibuchi and the Spanish Flu in Yaita-Cho, 1918-
1919". Bulletin Of History of Medicine, vol. 66, n.4, pp.560-577, 1992.
PATTERSON, K.D. Pandemic influenza 1700-1900: A study in historical
epidemiology. Totowa: Rowman & Littlefield, 1986.
_________. “The influenza epidemic of 1918-19 in the Gold Coast”. Journal of
African History, v.24, n.4, pp.485-502, 1983.
_________. “The Diffusion of influenza in Sub-Saarian África during the 1918-
1919 pandemic”. Social Science and Medicine, vol.17, pp.1299-1307, 1983.
PATTERSON, K. David and PYLE, Gerald F. “The geography and mortality of
the 1918 influenza pandemic”. Bulletin of History of Medicine, vol. 65, n1, pp.
4-21, 1991.
PELLING, Margaret. Cholera, fevers and English medicine – 1825-1865. Oxford:
Oxford University Press, 1978.
_________. “Contagion/Germ teory/Especifiy”. In: BYNUM, W.F. e PORTER,
R.. Companion Enciclopedia of History of Medicine. Vol.1, Londres; Routledge,
1993.
PEREIRA NETO, André. Ser médico no Brasil: o presente no passado. Rio de
Janeiro: Editora Fiocruz, 2001.
PICKSTONE, John. “Death, dirt and fever epidemics: rewriting the history of British
public health”. In: RANGER, Terence and SLACK, Paul (Ed.). Epidemic and
ideas: essays on the historical perception of pestilence. Cambridge: Cambridge
University Press, 1999.

299

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 299 19/6/2008, 23:41


PIRES, Anderson. Capital agrário, investimentos e crise na cafeicultura de Juiz de
Fora: 1870-1929. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 1993 (Disserta-
ção de Mestrado).
POLL, D. I. The effects of the 1918 pandemic of influenza on the maori population
of New Zealand. Bulletin of History of Medicine, vol. XLII, n. 2, pp.273-281,
1973.
PORTER, Doroty. The history of public health and the modern state. Amsterdan:
Rodolpi B. V., 1994.
PORTER, Roy. The greatest benefit to mankind: A medical history of humanity.
New York: Norton, 1999.
_________. Cambridge – História ilustrada da medicina. Rio de Janeiro: Revinter,
2001.
PYLE, Gerald F. The diffusion of influenza: patterns and paradigms. Totowa: Rowman
& Littlefield, 1986.
RANGER, Terence and SLACK, Paul (Ed). Epidemic and ideas: essays on the
historical perception of pestilence. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.
RESENDE, Maria Efigênia L. “Uma interpretação sobre a fundação de Belo Hori-
zonte”. Revista Brasileira de Estudos Políticos, vol.39, pp.129-161, jul, 1974.
RIBEIRO, Maria Alice Rosa. História sem fim ... inventário da saúde pública. São
Paulo: EdUNESP, 1993.
RICE, Geoffrey W. Black november: The 1918 epidemic in New Zealand. Wellington:
Allen and Unwin, 1988.
ROCHA Oswaldo Porto A era das demolições: cidade do Rio de Janeiro - 1870-
1920. 2ªed. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1995.
ROGERS, Naomi. Dirt and disease: polio before FDR. New Brunswick: Ritgers
University Press, 1996.
ROSEN, George. Uma história da saúde pública. 2ªed. São Paulo: HUCITEC;
Editora da Universidade Estadual Paulista: Rio de Janeiro: Abrasco, 1994.
ROSENBERG, Charles E. Explaining epidemics and other studies in the history of
medicine. Cambridge, Cambridge University Press, 1995.
_________. The cholera years: The United States in 1832,1849 and 1866. Chica-
go: The University of Chicago Press, 1987.
SÁ, Dominichi Miranda de. O Brasil modelado na obra de Belisário Pena – 1916-
1935. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1999 (Disser-
tação de Mestrado).
SALGUEIRO, Heliana Angotti. La casaque d’Arlequin: Belo Horizonte, une capitale
ecletique au 19 sìècle. Paris: Éditions de l’École des Hautes Études en Sciences
Sociales, 1997.
_________. Engenheiro Aarão Reis: O progresso como missão. Belo Horizonte: Fun-
dação João Pinheiro, 1997.

300

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 300 19/6/2008, 23:41


SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Nas trincheiras da cura: as diferentes medicinas no
Rio de Janeiro Imperial. Campinas: UNICAMP, 1995.
SANTOS FILHO, Licurgo C. História geral da medicina brasileira. São Paulo:
HUCITEC; Editora da Universidade de São Paulo, 1991 [2 vol.].
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na
Primeira República. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1999.
_________. A revolta da vacina: mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo:
Brasiliense, 1984.
SILVA, Regina Helena Alves da. “Belo Horizonte; o que marca a sua singularida-
de”. In: ARRUDA, Rogério Pereira (Org). Álbum de Belo Horizonte (Edição
fac-similar com Estudos Críticos). Belo Horizonte: Autêntica; Prefeitura Muni-
cipal de Belo Horizonte, 2003.
_________. A cidade de Minas. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas
Gerais, 1991 (Dissertação de Mestrado).
SHOPE, Richard E. “Influenza: history, epidemiology, and speculation”. Public
Health Reports, vol.73, n.2, pp.165-178,
SINGER, Paul. Desenvolvimento econômico e evolução urbana. São Paulo: Editora
Nacional, 1968.
SLACK, Paul. “Introduction”. In: RANGER, Terence and SLACK, Paul (Ed.).
Epidemic and ideas: essays on the historical perception of pestilence. Cambridge:
Cambridge University Press, 1999.
SNOWDEN, Frank M. “Cholera in Barletta, 1910”. Past and Present, n.132, pp.67-
103, 1991.
SOMARRIBA, Maria das Mercês Gomes et al. Lutas urbanas em Belo Horizonte.
Petrópolis: Vozes, 1984.
SONTAG, Susan. A doença como metáfora. 3ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 2002.
SOURNIA, Jean-Charles e RUFFIE, Jacques. As epidemias na história do homem.
Lisboa: Edições 70, 1986.
STARR, Paul. The social transformation of American medicine. New York: Basic
Books, 1982.
STEEL, David. “Plague writing; from Boccaccio to Camus”. Journal of European
Studies, vol.XI, pp.88-110, 1981.
STEPAN, Nancy. Gênese e evolução da ciência brasileira. Rio de Janeiro: Funda-
ção Oswaldo Cruz; Artenova, 1976.
TEIXEIRA, Luiz Antônio. “Medo e morte; a epidemia de gripe espanhola de
1918”. Estudos de Saúde Coletiva, n.59, 1993.
TELAROLLI JÚNIOR, Rodolpho. Poder e saúde: as epidemias e a formação dos
serviços de saúde pública em São Paulo. São Paulo: Unesp, 1996.
TOGNOTTI, Eugenia. “Scientific tiunphalismo and learning from facts: bacteriology
and the spanish flu challenge of 1918”. Social History of Medicine, vol.16, n.1,
pp.97-110, 2003.

301

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 301 19/6/2008, 23:41


TOMES, Nancy. “The private side of public health: sanitary science, domestic
hygiene, and the germ theory, 1870-1900”. Bulletin of History of Medicine,
vol.34, n.4, pp.509-539, 1990.
_________. The gospel of germs: men, women, and the microbes in American life.
Cambridge: Harvard University Press, 2002.
TONIOLO NETO, João. A história da gripe: a influenza em todos os tempos e agora.
São Paulo: Dezembro Editorial, 2001.
VERÍSSIMO, Francisco Salvador, BITTAR, William Seba Mallmann e ALVAREZ,
José Maurício. Vida Urbana: a evolução do cotidiano na cidade brasileira. Rio
de Janeiro: Ediouro, 2001.
VINCENT, Bernard. “La choléra en Espagne ao XIXe siècle”. BARDET, Jean-
Pierre, BOURDELAIS, Patrice, et al. Peurs et terreurs face à la contagion.
Paris: Fayard, 1988.
WEBER, Beatriz T. As artes de curar; medicina, religião, magia e positivismo na
República Rio-Grandense, 1889-1928. Santa Maria: Ed. da UFMS; Bauru:
EDUSC, 1999.
WITTER, Nikelen Acosta. Dizem que foi feitiço; as práticas de cura no sul do Brasil
(1845-1880). Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001.

302

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 302 19/6/2008, 23:41


Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 303 19/6/2008, 23:41
2ª EDIÇÃO: Abril, 2020
FORMATO: E-book, 304 p.
TIPOLOGIA: Bodoni
CAPA & PROJETO GRÁFICO: Milton Fernandes
REVISÃO: Célia Regina de Carvalho
FOTO DA CAPA: Vista do Desinfectório (1905)
Bairro de Santa Tereza, BH, MG
Acervo: APCBH/Coleção José Góes

Influenza-Espanhola-Miolo-NOVO.pmd 304 19/6/2008, 23:41

Você também pode gostar