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RELATOS DE EXPERIENCIA RELATOS DA (CON)VIVENCIA: CRIANGAS E MULHERES DA VILA HELENA NAS FAMILIAS E NA ESCOLA Sylvia Leser de Mello a Universidade de Séo Paulo Madalena Freire Professora da Pré-Escole de Vila Helena -SP Reunidos sob um mesmo titulo, apresentam-se aqui dois relatos distintos®. Sua reunigo tem contudo, uma forte razio de ser pois, de perspectivas diversas, eles constituem aproximardes de uma mesma realidade: 0 Povo de um bairro — as famfias, as mulheres e 2s crian {635 — da Vila Helena, no municipio de Carapicuiba, na ‘grande Séo Paulo. A presentacdo dos textos como um conjunto deveria facilitar, para o leitor,a recomposi¢o do todo que os trabalhos individuais fragmentam. Nao fizemos nenhum esforco para que of textos $8 unissem por meio de artificios. Cada uma das autoras softeu 0 seu proprio pracesso de compreensso do povo 82 da Vila e trabalhou-o segundo sua formargo, inclinagées € interesses tecricos. Nem mesmo os objetivos iniciais, aqueles que nos levaram até a Vila, eram comuns. Mas gostariamos que as leituras diferentes que fizemos de ‘uma s6 realidade enriquecessem uma a outra, como se 0 real se fosse desdobrando e, a0 revelar novos dngulos, rmultiplicasse os detalhes precisasse @ forma de uma ccondigo, um modo de viver, um limite — a pobreza. +O primeiro dos relatos ¢ de Syvia Leser de Mello @ o segundo de Macalena Freire (nota da editors Cad. Pesq., Séo Paulo (56): 82-105, fev. 1986 Sylvia Leser de Mello Desde 1982 tenho freqiientado a Vila Helena, mantendo intenso contato com algumas familias e con- versando longamente com at mulheres que, nas catas bburguesas e abastandas dos bairros vizinhos, executam as, tarefas essenciais do servigo doméstico. Minha inteng#o ‘erarevelar a diversidade de experiéncias que se oculta sob ‘a nogao de trabalho, indicando um dos trapos fundamen- tais que tende a ser obscurecido pela glorificago ideol6: gice do trabalho. Se a sociedade no chega a considerar ‘como infamantes certos tipos de tarefas, tais como aque- las que a doméstica desempenha, néo deixa, entretanto, de desvalorizé-las em extremo, chegando mesmo a estig: mmatizar certas classes de trabalhadores. Havia, ainda, a intenco de aproximar-me dos te- mas da liberdade e da opressio nas suas relardes com 0 trabalho, procurando compreender como e onde opres: so ¢ liberdade manifestam-se na percepeo das mulheres sobre 2 sua propria vida. Ou melhor, queria compreen: der, no interior da vida de individuos reais, o que Han: nah Arendt chama de “diferenca tangivel e abjetiva en te ser livre e ser forcado pela necessidade.""* Nos depoi mentos das mulheres esta necessidade esté identificada ‘com a sobrevivéncia mais estrita:o limite da simples exis- tincia e da possibilidade de producdo e reproducdo da Vida dentro desse limite. O que as mulheres, e as fami- lias, obtém com o maximo de trabalho 6 0 minimo da sobrevivéncia, o que significa que a miséria total — impli- cando 0 aniquilamento fisico ~ esté a espreita e pode ‘ceorrer de um dia para outro. Embora nos depoimentos das mulheres sobre 0 seu trabalho nem mesmo aflore a questéo politica, pois esto distantes de qualquer mengéo a vida politica da na- ‘980, nem por isso deixam de possuir um valor politico intrinseco, pois revelam como estas mulheres interpre- tam a vida social pela via do seu trabalho e como, em. Conjunto, os depoimentos descrevem as condig6es histé- ricas de vida do segmento da sociedade brasileira a que pertencem. ‘A sugestdo que iniciava e mantinha nossas conver- sas era de que as mulheres falassem sobre o seu trabalho. Desse modo os roteiros das conversas, mais do que entre- vistas, foram elaborados segundo a compreensio que ti nham da sugestio recebida. Os depoimentos, pois, va- iam tanto quanto as entonacées de vor e as disposic&es das narradoras para a conversa, ou as expressGes facials @ corporais. que acompanham 0 desenrolar dos depoi rmentos. Essa variacdo individual, contudo, 6 faz valori- zar a riqueza dos dados comuns encontrados em todas as narrativas. Estas, aparentemente fragnentarias, possuern uma seqiéncia muito ldgica de temas a impregnd-las, Eles so os temas da sobrevivéncia: alimentaedo, mora aide, sociabilidade e, de modo nao isento de contli- 10, a familia, 05 filhos @ seu futuro que compreende, in- Variavelmente, 0 desejo de uma escolaridade prolongada. Relatos da (con|vivéncia:. .. ‘As mulheres compe as historias com extrema cle- reza, marcam com a sua originalidade experiéncias que ossuem, quando tomadas em conjunto um fundo co- mum: s80 todas migrantes, todas mineiras, todas mora- doras, agora, de um mesmo bairro, ¢ todas orlundas de familias de pequenos proprietarios rurais. Elas, enquanto vio se constituindo em personagens muito particulares, vio emprestar também as suas casas e barracos, as ruas @ a0 bairro, uma feicdo Unica, de modo que, aocabo de algum tempo, jé ndo estou em qualquer bairro da perife- tia mas nesta inconfundivel Vila Helena. E possivel, e muito provével, que este bairro tenha grande semelhana com outros bairros — Vilas e Jardins, segundo o eufemis- mo dos loteadores ~ deste imenso cinturdo de miséria ‘que circunda Sio Paulo. Mas, assim como as mulheres — Maria, Emflia, Veronica, Vanda, Nilza, Loura, Odil Maria José, D. Cristina e D. Mari Sinica, Hd uma grande dose de peciéncia e de humildade no trabalho de campo que deve ser aprendida na rus, ‘90 nem sempre agradével, nem sempre fécil. Eis a pri- meira: 0 visitante na Vila é visto com desconfianga (0 Visitante também & desconfiado, mas esse & um outro problema), com muitareservae, ao par deste fechamento 2 estranhos, hé uma intensa sociabilidade de rua, de por- ‘Ho, de quintal, pois as ruas da Vila ndo se assemelham as ras dos bairros de So Paulo, invadidas pelos automé- veis, esvaziadas de pessoas, onde as calcadas néo serve sendo de passagem apressada para alguns pedestres, estra- ‘nhos uns aos outros, que vo aos seus afazeres. Essas ruas so apenas corredores, onde 6 se passa, como se Id.nin- quém pudesse, de fato, morar. Na Vila isso nfo ocorre. ‘As ruas esto sempre vivas, com as pessoas prontas @ um encontro, uma conversa, quando secruzam ese recruzam. Para o visitante, essa atividade dé uma impresséo inicial cca6tica de muita poeira ou muito barro, uma infinidade de criangas e muitas pessoas paradas ou andando, sozi- inhas e em grupos. Compreende-se que para 0s morado- res, em sua quase absoluta maioria migrantes de origem rural recente, 0 bairro, e a sociabilidade que ele favorece, seja um pouco como a recuperacdo de rafzos, de solidez, de permanéncia ‘A Vila nfo tem um aspecto bonito, Mesmo as construgées de alvenaria exibem as paredes nuas, sem re- toques e sem pintura: so casas sempre por acabar. A to- pografia do bairro é irregular: um pequeno vale entre ele- vardes. As elevares e 0 sopé delas correspondem a0 ‘terrenos do loteamento original. No fundo do vale hé um cérrego. Esses terrenos muito baixos so, no loteamento, 2as-dreas chamadas “da prefeitura’” Atualmente algumas fencostas muito ingremes, nas obras das elevacdes, ¢ 05 terrenos mais baixos, na vérzea, foram ocupados por fa velas. As favelas formam um aglomerado da cor da ma- dera exposta ao tempo, escuro e sujo. Aqui e ali uma té- bua colorida destaca-se do conjunto. A cor deliberada, posta para enfeitar, ou disfarcar a madeira e o cimento apagado dos blocos, quase ndo existe na Vila. Os ter- = Vila Helena & 1 Arendt, Hannah. A Condigfo Humana. Rio de Janel ro, S80 Paulo ~ Forense — Universit ~ Salemandra, Edusp, 1861. p. 81 83 renos néo tém cobertura vegetal cultivada. O mato e uma ou outra érvore, uma ou outra “planta de flor’ onstituem a vegetacdo. As casas parecem ser as Gnicas coisas plantadas nos terrenos. Hortas ralas, algumas plantas medicinais que crescem nas hortas mas tam- bbém a0 acaso, nos regos, das équas servidas que correm rentes aos terrenos, © estado permanente das ruas é de abandono ¢ com 0 tempo chuvoso pioram muito. O barro que se for- ma 6 uma mistura de vérias sujeiras. Hé um intenso chei- ro de fossa e de decomposi¢éo. A agua da chuva escorre livremente, ¢ junta-se as équas servidas que saem das ca- sas. © aspecto do bairro, com a chuva, 6 desolador. Al: guns barracos nio oferecem abrigo suficiente contra @ chuva e umidade. Dentro e fora sfo a mesma coisa, vive- se dentro o mesmo desconforto da sujeira e do cheiro, da gua e do barro. Também as casas de alvenaria revelam, ‘no tempo frio e chuvoso, a pobreza da sua construgdo, @ insuficiéncia do abrigo que oferecem. A chuva torna vis - veis © mais agudas as condi¢des de subhabitacgo do povo da Vila e faz ressaltar uma das caracter{sticas que mai chamam a atencdo: o lixo. Tomada no seu conjunto a Vila é um grande despejo de lixo. Nas casas, quase todo (© mobiliério é constituido de restos das casas abastads. Camas, colchdes, armérios, mesas, cadeiras, poltronas, sofés s80 velhos méveis usados, sem um pé ou com pé uebrado, sem uma porta, o encosto solto, molas des: pontando dentre o forro, As préprias casas tém janelas e Portas herdadas de outras construgGes @ do lado de fora restos de tudo: pequenas tébuas, latas vazias, panelas, baldes e bacias amassados e furados, pedacos de méveis, ppedagos de cano e uma escéria variada de plésticos rotos. No hé nenhuma ordem aparente, nem mesmo um lugar determinado para amontoar essa tralha, Ali onde é joga- da, ali fica & espera de ser til novamente, Os barracos ‘80 a expresso mais concreta desse reaproveitamento de sucata. No bom tempo, com o sol, a Vila tem um aspecto melhor e, acima de tudo revela sua mais notével face: 6 lum bairro cheio de vida, buligoso, ruidoso. € um bairro cheio de criancas que brincam soltas nas ruas, nos quin- tais sem limites muito definidos, que circular de um bbarraco para outro, de uma casa para a outra. E um bair ro de criancas © esse 6 0 segredo da sua vitalidade. A Vila tem, pois, para o observador, duas faces 20 menos: 0 aspecto visual mais imediato, felo e sujo, de lum bairro abandonado, deixado aos cuidados dos par- 60s recursos de seus moradores que solucionam, como oder, os problemas mais agudos das ruas. Mas a outra face da Vila, sua face humana, é mais complexa e de mais dificil compreensio. Nao faltam as brigas, 0 maldi zer, as inimizades, mas ha um forte sentimento de farf- lia, ha a amizade e 0 interesse pelos amigos e conhecidos © a solidariedade surge quando é necesséria. A face hu- mana da Vila é densa e calorosa. O grande nimero de ccriangas, uma constante nas casas, as conversas de quin: tal para quintal e a contigiidade dos barracos impedem qualquer sentimento de solidéo. Os problemas domésti- cos graves como o desemprego, a doenga, 0 alcoolismo, so, em pouco tempo, do conhecimento de todos. A po: breza é comum a todos. ‘Quando os ha ;ntes falam da Vila Helena o qua: 84 dro que tracam é diferente do meu. Falam com orgulho de um lugar que ajudaram a construire que é parte muito profunda de sua vida afetiva. Falam da urbaniza- 30, da luz que agora todos tém em casa e da luz que vai ‘chegar as ruas. Falam da équa encanada,da farmacia, do Snibus, do orelhlo e do supermercedo. Falam da vida que ficou mais fécil para os moradores. Mas falam tam- bém dos habitantes, dos lugares bons e dos lugares ruins, ddas brigas, das armas, das desordens e arruagas. Toda @ insidiosa violéncia da opressio e da extrema explorapio a ‘que 0 povo ¢ submetido podem ser retratadas nas hist6- rias da Vila. Os depoimentos afirmam que ha pobres, ‘mais pobres no bairro. Para os que possuem um pequeno Tote © uma casa as favelas sio turbulentas, hd brigas, dis- ccérdia, barulho. A policia ronda as favelas 8 capa de mar ginais. Os favelados no concordam. Reconhecem que 2 precariedade da moradia na favela traz problemas mas ndo é seu privilegio o banditismo. A presenca permanent te da policia, agindo as vezes com extrema brutalidade, se no controla a expresso da malandragem, solidifica, ‘nas consciéncias, as divisbes dos espagos da Vila e de sous habitantes de tal modo que, em escala reduzida, reprodu- zemn-se aqui as desigualdades da sociedade mais ampla. ‘Ao se organizarem em torno da sobrevivéncia, os relatos parece que se afastam, quando lidos pela primeira ‘vez, do tema do trabalho. A narra¢go do trabalho pro- priamente dito & pobre, é rala e rara. No entanto, nessas historias que se organizam em tomo da sobrevivénci rndo hé nenhuma em que o trabalho nfo seja a condico permanente, As mais antigas memérias esto jé impreg- \exordvel contrapartida: 0 uinhdo de trabalho que cabe a cada um para suprir 0 alimento cotidiano. Se desde pequeninas sao levadas com 0s pais para a ropa ou tém que ajudar nas tarefas domés- ticas aprendem por imitacdo, reproduzindo os gestos ¢ movimentos dos mais velhos, essencialmente ligados 20 ‘trabalho. Quando, num primeiro movimento migrat deixam os sitios para irem morar nos vilarejos, os pai continuam sua faina no campo, jé agora como assalaria- dos, as meninas vdo trabalhar na “casa dos outros". Mas 2 troca da casa paterna pela “casa dos outros” nio é diff cil: assim como cuidavam dos irmlos menores, assim camo sabiam providenciar algum alimento para a fami lia, assim também vo cuidar de criangas e fazer pequ nos servicos domésticos em casa alheia. Elas tim, em mé- dia, de sete a nove anos quando assumem essa nova res- ponsabilidade. Recebem pouco: a alimentapac vezes, 0 material e a possibili hguma roupa ve- jade de irem & es- tha, cola. Nenhum dinheiro ou muito pouco que, de qualquer modo, nunca chega as suas mdos. Nem sempre as tarefas ‘que devem realizar so leves ou compativeis com as suas orcas. Porém, mesmo que as tarefas estejam além do seu alcance nem a pouca idade, nem a fragilidade thes se vern de desculpa. Methor aprenderem a fazer o que thes ‘ordenam do que serem repreendidas com aspereze. Me- hor obrigar 0 corpo a0 esforco enorme do que esperar or conseqitincias no minimo dolorosas. Rigorosa ou ‘ado, a labuta ¢ imposta a corpos e mentes infantis, exi sgindo que amadurecam répido, a dura maturidade gera- dda pela dura necessidade. Aprendem que tém que contar apenas com 06 seus pés e mos para ganharem a vida, & Cad. Pesq. (56) fev. 1986 aprendem a sentir, no céncavo do corpo pequenino, a arbitrariedade do mundo adulto onde sfo atiradas sem escolha e sem saida, Os relatos do trabalho doméstico daquelas meni- nas, revivido aqui pelas mulheres, contém sempre a lem- branga do esforco do cansaro do corpo. Mesmo as me morias prazeirosas, engraradas e boas do trabalho infan- |, possuem qualquer coisa de corpéreo: a comida mais variada e abundante da casa dos patrées; as roupas ve- thas que jd nfo sio do grosseiro tecido das camisolas da roa; a cama que, as vezes, tem colchdo e nfo somente a esteira sobre as varas; um doce; um refrigerante. E assim, retrospectivamente, néo hé quaixas. Sa/das do trabalho da roca, 0 servico doméstico e a vida na cidadezinha ps- rece-thes, j, uma ante-sala do para(so. E podem, ainda, ir & escola! Ir a escola é comecar um novo tempo, apro~ ximar-se do povo da cidade, assemelhado & esperteza do comerciante e do patréo, que sabem ler e marcar na caderneta os nimeros do haver e, sobretudo, do dever. ‘Nem todas conseguem ‘‘tirar 0 primério"” mas todas !éem @ escrevem um pouco. Estéo alfabetizadas, dominam simbolos que seus ancestrais desconheceram ou até mesmo julgaram indteis. Elas astdo prontas para a vinda definitiva para a cidade grande. Mas nesse trajeto, de Minas para So Paulo, o trabalho é a marca da continul: dade. Ele no muda. Do mesmo modo vlo prestar seus servigos nas “‘casas dos outras”, fazendo que, com o tem o, 0 relato do trabalho confunda-se com o relato da vi dda. Assim como thes fol dada vida, o trabalho também ‘no constitui uma op¢éo. Embora haja sonhos —e qual a menina que no sonha — o trabalho no faz parte deles: to ou aquilo, trabalhar desta ou daquela maneir Aceitam o que tém & mo, o que Ihes cabe na partlha in justa de esforgo e recompensa. Elas tém histérias pa Ccontar @ respeito do trabalho na “casa dos outros”. As ‘casas variam, variam os patrées e as exigéncias. A partir dat as mulheres tém relatos diversos, lembrancas tristes ‘ou engracadas, lembrancas de humilhagdes ou de bonda: de. Pontuam suas historias com acontecimentos pessoal que marcam definiticamente a rotina: mortes @ nasci mentos, casamentos e doengas. Quando nasce um filho (u quando morre um filho, esses acontecimentos séo absorvidos pela rotina, onde o trabalho 6 essencial. Vi- ver 0 dia de amanh3 depende da labuta do dia de hoje, no apenas porque a sobrevivéncia depende dessa labu ta mas porque 0 trabalho coloca as coisas no lugar, orde- 1a a vida, dé ordem as circunstancias que, de outra ma nneira, seriam devastadoras. Uma das entrevistadas, Van- da, formula com tal clareza esse pensamento expresso por todas, que néo creio que seja possivel explicé-lo melhor: “Eu, pra mim, 0 meu servigo, eu adoro, gosto do ‘meu trabalho . . . eu gosto muito de Sio Paulo é por conta que s6 a lei que eu tenho de levantd de ‘mani, minha marmita dorme pronta, eu pego & 78 vou embora pro meu trabalho, id é uma boa pra ‘mim. Eu sei que eu tando trabalhando dé dia 10 eu tenho pagamento, dé dia 25 eu tenho vale. Eu re- ccebo aquilo 14, trago, pego, pago os compromissos . passo sdbado e domingo em casa, tudo bem. En: 1 para mim & uma boa, no tem tempo ruim.” Relatos da (con|vivéncie ‘A labuta difria e incessante, entretanto, nunca deu mais do que 0 pouco necessério para suprir a fome de to- do dia. Quando, 20, término da travessia pelos temas da sobrevivéncia, chegam aos filhos, é um novo tema que tem principio: 0 vir-eser do futuro, construfdo com a matéria inefavel da esperanca. A introduedo do tempo futuro nos depoimentos modifica seu ritmo. A seguranca @ 2 fluidez com que as mulheres narram 0 passado e 0 presente no comparece nas avaliagdes do futuro. Nesse tuniverso em que reina 0 desejo as mulheres titubeiam, hesitam, no sabem ou no ousam avancar demasiado. Ha uma vida melhor, mais bem estar, & espera delas e de sua prole? Como seré essa vida melhor? Que esperam da Vida? Qual € a forma do seu desajo? A formulario de Maria inclui todos os elementos comuns aos desejos das mulheres: “Entio, sei Id, eu acho que . . . eu espero da vida ‘assim, ensind os meus filhos 0 melhor e.. . @ eu es- ‘pero melhord minha vida assim. . . mais que eu te- ‘nho. Qué dizé, Deus me dando tudo aquilo que eu tenho, d. Sylvia, sempre assim pra mim comé, be- +66, @ 0s meus filhos tando na escola, eles vio indo bem, entéo eu t6 satisfeita.”” ‘Acesperanga de uma vida melhor, do bom trabalho, para 0s filhos, organiza-se em torno de um centro s escola. Véem a sua prépria vida segundo 0 binémio da pobreza e daignorancia, gerando-se mutuamente, um cfr- ‘culo trégico. A escola é, na percep¢o delas, acunha que Permite romper a viciosidade do cfrculo, pois sentem que, com 0 trabalho de toda uma vida, ndo puderam veneer a pobreza. Esse destino thes pesa @ nfo o desejam para seus filhos. Querem que eles sejam diversos do que ‘las so, almejam, difusamente, um outro destino para a ‘ua prole. Se o trabalho esté presente no futuro dos Thos, que ele soja mais leve, mais limpo, mais fécil, co- mo nos depoimentos de Nilza e de Verénica: “Eu sb espero um futuro melhor, com 0 estudo, 1né, desde que tem estudo tem um futuro melhor. Tém uma profissé0 boa, mais elegante que sé le vadera, 56 faxineira, assim, com um estudo e tudo eles tem 2 possibilidade de um trabalho melhor, ‘mais fino.” “Bom, porque o objetivo 6 esse, né, que elas estu- dem mais um pouco, pra vé se mais tarde também clas no vém a trabalhd como a gente trabalha mes- ‘mo, como eu trabalho, né, que elas venham a tra- balhar num servico mais fécil, né, mais leve. En- tio a gente tem uma proposta assim de aguentd os ‘estudos delas até onde dé, até onde a gente aguen 14... 0 trabalho € duro, qualquer que seja 6 duro.” A escola é um elemento a mais nos temas da sobre Vivencia na cidade, desenvalvido como um desejoe uma ‘esperanga. Envolve, de certo modo, problemas de iden- tidade, no s6 das mulheres, mas de todo o grupo social. A esperanca @ 0 desejo referem-se &s criancas e a0 tempo futuro, a.um ser-outro do que elas sé. Este projeto para of filhos, t30 bem descrito nos 85 depoimentos citados, no exclui o trabalho, apenas modifica a sua qualidade e afesta-o para um futuro im- preciso. As mulheres nem por um momento pdem em duvida 0 futuro de trabalho dos seus filhos. Mas querem no outro. Esse ser-outro, virtualmente embutido nos es- tudos, deve consolidar o processo de transformacio que teve infcio na roga, com a enxada na mo. E a metamor- fose final: a feia, a pesada lagarta presa a terra, serd @ borboleta bela, limpa, leve e colorida que nunca suja suas mos. Madalena Freire HISTORIA QUE COMEGA Este é 0 primeiro relatério da minha p: a Helena. Minha ligaco institucional 6 com a paréquia local. ‘Meu trabalho esté dentro de outros que a igreja de: senvolve junto 4 comunidade: clube de jovens, grupos de catecismo, etc. ‘A proposta é atender ac colar, dos 3 aos 6 anos. ‘Trabalhamos com 35 eriangas, num espaco amplo, que é 0 saldo da paréquia, em construgio ainda nfo aca. ada. Nosso hordrio é das 14 4s 17 horas. Contocom 2 ajuda de uma pessoa da comunidade, @ qual inicia seu processo de formaeo como professora. A Vila Helena pertence 20 municipio de Cara- picuiba, com as mesmas caracteristicas de qualquer bai ro da periferia de Sao Paulo. Sem esgotos, iluminacio ‘apenas numa parte de sua rua principal, duas grandes fa velas incrustadas numa ribanceira, com suas criangas perambulando, barrigudas de vermes. A grande maioria de sua populacéo é mineira e nordestina. Os homens tra bathadores de construcdo civil, metalirgicos e atualmen- te muitos desempregados. As mulheres algumas traba tham em casa e a maioria so empregadas domésticas. Depois de muito rolar, rasgar, duvidar, procurar sem encontrar uma forma adequada, que exprimisse 0 vivido nesses 5 meses, decidi estruturé:-lo em historias. Historias do meu pracesso, histérias do grupo, histor das criangas, historias dessa paixio que comeca. na Vie Incas na faixa do pré-es- HISTORIA PRIMEIRA Refletir sobre a pritica na Vila Helena nesses 5 m ses de trabalho, é falar sobre algo ainda frégil, em gesta- que vem me questionando em todos os aspectos da minha pessoa, do meu “'sou"” professora. Sangue novo, calor gostoso, morno, quente, vitalizando 0 corpo in: teiro. Mas também sono, sonho agitada com as caras, os alhos, 0s gritos de uma “multidio” de 35 criangas! na 86 minha frente. Durante as primeiras semanas processo in- ‘tenso de inser¢o, em esparo novo ainda nfo vivido por —como vou saber os nomes de cada uma? —como vou ver 0s olhos de cada uma? como vou escuté-las? — como vou saber, ver onde @ o que cada uma esté fazendo, trabathando? No primeiro dia, as mesas e as carteiras estavarn ar- rumadas do modo como geralmente a tradi¢o concebe a escola ¢ a relario professor-aluno. As carteiras enfileira das, a lousa a0 lado da mesa, distante da professora. E interessante salientar que apesar do esforco feito antes do primeiro dia de aula, nas visitas que fiz ao salo, no sentido de mudar, de reorientar a arrumacdo dasala, nada, ‘ou quase nada, consegui no princ{pio das atividades. As- sim, no primeiro dia de aula, 1é estavam as carteiras en- fileiradas, a lousa 20 lado da mesa distante da professo- ra. Percebi que de nada adiantava partir daminha com. preenso da escola, do seu arranjo, separada da deles, ‘mas sim, juntamente com eles, tentar na pratica diéria, superar aquela viséo tradicional do espaco escolar. Por isso mesmo, © ponto de partida s6 poderia ser da com- preensfo que tinham da escola, de que a organizacdo das cadeiras ¢ lousa 6 uma parte. Neste inicio, choros, mies entrando junto com as. criangas, pai mandando prender o filho que chorava de- sesperado, “pra ele no fugir”, menino com medo trans- bordando, marcado por trés rugas na testa, menino ater- rorisado, de chegar porto de mim. Foram sentando nas ccadeiras?, distante da “minha mesa” . . . e logo comecei a escutar: —""Meu menino & muito pequeno, ele té Id atrés, como vai ver a senhora?’”? — “Ah! Nio td certo, oia aquele muleque grande bem na frente! = “Ela é ruim da vista, num té vendo nada da V6. ‘Aproveitei a oportunidade vara, concordando com elas sobre 0 que me diziam em torno da m4 coloca- ¢80 em que se achavam seus filhos na sala, comecar @ ropor novamente, agora en momento adequado, a reor- ganizaedo, 0 rearranjo da sala. Fui, entéo, perguntando: = Como a gente pode arrumar, pra que todo mun- do se veja, me veja, ¢ eu fique mais perto doles? E assim as cadeiras comecaram a compor o art dondamento que eu sonhera . .. Com a preocupargo de ver a todos, escutar a to- dos, saber o nome de todos, iniciei jé no primeiro dia, a istribuigdo de “crachés” que cada um pendurava no escogo com seu nome. Fui de cadeira em cadeira per- guntando 0 nome de cada uma e escrevendo na frente de- "e306 ance! essa cadeiras com um braze fazendo meta. Me chamavam de senhora no i patroa Cad. Pesq. (56) fev. 1986

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