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eS EDU Cy oe oe parno® CENTRO BRASILEIRO DE FILOSOFIA PARA CRIANCAS l|apacidade de maravilhar-se com o mundo." M. Lipman O CENTRO BRASILEIRO DE FILOSOFIA PARA CRIANCAS P romover a divulgagao e o desenvolvimento de programas de Educagao para o Pensar, que possam contribuir para a formacao da autonomia de individuos atuantes numa comunidade, so os objetivos do Centro Brasileiro de Filosofia para Criangas Desde 0 seu inicio, o CBFC vem oferecendo as escolas e professores um grande diferencial na area educacional: o Programa Filosofia para Criangas, que cultiva as condigées ou instrumentos do pensamento, isto é, as habilidades cognitivas por meio do didlogo investigative. Os resultados da aplicacao do Programa Filosofia para Criangas em sala de aula sao perceptiveis em poucos meses, ima maior autonomia de pensamento, uma percepgao ética mais agucada, o respeito pelo pensamento e opinides de outras pessoas, a capacidade de aprofundar e melhorar seu conhecimento do mundo por meio do didlogo, s4o apenas alguns exemplos destes resultados. ‘A demanda de implantagées em escolas e de apoio pedaggico aos professores ~ atualmente sao 2400 professores habilitados a trabalhar com 0 Programa em sala de aula, representando um universo de 34000 alunos ~ tém crescido muito nestes dl- timos anos. Por esta azo, o CBFC conta com uma rede de coordenadores e moni- tores permanentemente atualizada mediante encontros nacionais, regionais e internacionais, a fim de garantir a manuten¢ao da qualidade dos programas desen- volvidos e oferecidos as escolas e as comunidades. Além do trabalho com as escolas, 0 CBFC e sua equipe de coordenadores regionais desenvolvem varias pesquisas pedagégicas e teéricas na area de Educagao para o Pensar, resultando em cursos de aperfeigoamento e aprofundamento cada vez mais atualizados. F cogni uma ia) og © QUE E FILOSOFIA PARA CRIANCAS ilosofia para Criangas @ um programa de Educagao para o Pensar, porque cultiva as condigdes ou instrumentos do pensamento que so as habilidades ‘ivas. Desenvolve essas habilidades por meio do didlogo investigativo, com metodologia especifica e oferece materiais de apoio aos alunos e professores. As habilidades cognitivas sao os instrumentos ou pré-requisitos para 0 “pensar bem" e, portanto, a base para qualquer aprendizagem. Precisam estar disponiveis antes e durante os varios momentos da aprendizagem No didlogo investigativo sobre a experiéncia humana em geral (incluindo a das criangas e jovens) é que podemos expor nossas idéias, escutar as idéias dos outros, comparé-las e, assim, melhorar, completar ou mesmo modificar nossos pontos de vista. E isso implica o uso das habilidades cognitivas. Tradicionalmente temos oferecido as criancas e jovens respostas prontas, isso tem se mostrado inadequado e improdutivo, social e eticamente falando, nas sociedades em proceso rapido de mudangas. O Programa Filosofia para Criangas trabalha com uma metodologia especifica voltada para o desen- volvimento do pensar e que promove um verdadeiro processo de construgao coletiva do conhecimento. A metodologia do Programa Filosofia para Criangas, com 0 auxilio de materiais especialmente elaborados, procura fazer os alunos falarem, cada um na sua vez € sobre 0 assunto em pauta; ouvirem e comentarem atentamente 0 que os outros dizem; e apresentarem suas razes. Os alunos, dispostos em circulo para facilitar o dialogo, trabalham os temas levantados a partir da leitura dos textos e podem ser provocados a discutir idéias ilos6ficas se forem apresentadas em historias, de modo que eles mesmos possam selecionar, para discussao, aquelas que Ihes parecem mais relevantes de acordo com suas experiéncias cotidianas. Os professores contam com algumas orientacées, contidas nos manuais, e com cursos especificos, que os auxiliam a provocar e aprofundar as discussdes em torno de temas ou conceitos e a desenvolver as habilidades cognitivas. A HISTORIA DO PROGRAMA FILOSOFIA PARA CRIANCAS N © final da década de 60, 0 Professor norte-americano Dr. Matthew Lipman, preocupado com 0 desempenho insuficiente de seus alunos, concebeu 0 Programa Filosofia para Criangas, visando cultivar o desenvolvimento das habili- dades cognitivas mediante discussdes de temas filoséficos. Alguns anos mais tarde, auxiliado pela Dra. Ann Margareth Sharp, fundou o Institute for the Advancement of Philosophy for Children (IAPC), localizado em Montclair, New Jersey - EUA. Ja na década de 70, 0 Programa Filosofia para Criangas demonstrou ser a abordagem mais promissora para o aprimoramento das habilidades cognitivas e, a partir de 1976, espalhou-se pelo mundo, sendo traduzido e trabalhado em varios paises: Chile, México, Argentina, Austria, Canada, Taiwan, Islandia, Franca, Alemanha, Colémbia, Australia, Havai, Espanha, Portugal, entre outros. No Brasil, o Programa Filosofia para Criangas foi trazido pelas maos da Profes- sora Catherine Young Silva que fundou 0 Centro Brasileiro de Filosofia para Criangas (CBFC), em janeiro de 1985, como uma sociedade sem fins lucrativos, com sede em Séo Paulo. O Brasil tornou-se um importante pélo difusor do método do Dr. Lipman, tendo, até agora, mais de 2800 professores habilitados a trabalhar em sala de aula, envolvendo cerca de 34 mil criangas. © CBFC, juntamente com os Centros Regionais, e uma equipe de monitores, especialmente formada para habilitar e acompanhar os professores que desejam trabalhar com o programa, vem trabalhando a implantagao do programa nas escolas de 12 grau, tanto da rede publica como da rede particular, contando com alguns dos curriculos traduzidos e adaptados a cultura brasileira: 7 Issao e Guga, destinado as 1? e 22 séries do 1° grau; (7 Pimpa, para criancas de 32, 42 e 52 séries do 1° grau; (0 Adescoberta de Ari dos Telles, para 52, 62 e 78 séries do 1° grau; (1 Luisa, para 8% série do 12 grau e para 0 22 grau. Alem desses materiais didaticos, ha também materiais complementares - textos curtos que priorizam um determinado tema e reforgam algumas habilidades previa- mente desenvolvidas pelos curriculos do Programa Filosofia para Criangas. ISSAO E GUGA Issao visita a fazenda de seus avés e torna-sé amigo de Guga, que mora com sua familia ali perto. Guga ajuda Issao a ter consciéncia do mundo que um deficiente sual vivencia e de algumas diferengas que caracterizam a atividade criativa de um cego. Oavé de Issao, que jé foi marinheiro, conta um encontro que teve com uma baleia e diz que gostaria de visitar um lugar onde pudesse, novamente, observar as baleias. Issao 0 convence a ire levar junto a familia da Guga. O enorme interesse mostrado por Issao e Guga em animais, em espaco e tem- po e em muitos outros aspectos da natureza, faz deste texto uma introdugao ideal 20 estudo das ciéncias e das relagées entre a linguagem e o mundo. O texto completo de Issao e Guga possui Introdugao e mais dez capitulos. CAPITULO DOIS - EPISODIO 1 — Mie, algumas pessoas podem ouvir melhor do que outras? — Sim, Gussi — E existem pessoas que nao conseguem ouvir nada? — Acho que sim. — Ev escuto bem, nio escuto, mae? — A, escuta sim! Muitas vezes vocé ouve coisas que eu nio consigo escutar Ela se abaixa, me dé um beljo de boa noite e diz: — Agora, vé se dorme. Mas ainda no estou pronta pra dormir — Também tenho bom tato, consigo cheirar e sentir bem o gosto, né? — Claro, querida, vocé faz essas coisas tdo bem! Algumas pessoas no conseguem fazer essas coisas to bem quanto vocé, nem de longe. — Mie, além de ver, tem mais alguma coisa que eu niio consiga fazer? — Nio, Gussi — Mamie, tem coisas que eu faco bem de verdade? — Deixe-me ver ... vocé se dé bem com as pessoas, vocé pensa bem. E tenho a im- pressio de que sé posso dizer que vocé é simplesmente uma crianga linda. — Todas as mies dizem que seus filhos sio lindos, mae? — Acredito que sim. a — An.. — O que foi? — Voeé ia dizer isso, mesmo se eu ndo fosse? — Nao, Gussi, nio. Isso no é verdade. — E verdade, sim. E ndo é justo! Voce sabe que eu mesma nio posso ver como eu sou. — Se vocé nao acredita em mim, Gussi, em quem vocé acreditaria? — diz mamae. Nio respondo, porque peso sentir meus olhos ficarem cheios dégua e nfo quero comecar a chorar: — Vocé acreditaria no papai? — Se todas as mies dizem aos seus filhos que eles sto bonitos, entiJo todos os pais também fazem isso. Entdo, o que & que adianta se for o papai? — Bom, Gussi, existe alguém em quem vocé acreditaria? Fico chateada e no respondo. — Por favor, Gussi, diga, jf que isso parece significar muito para vocé: em quem vocé acreditaria? — No |ssao, talvez — falo, quase num murmtrio, — Issao?- mame parece um pouco chocada — Isso mesmo, talvez se 0 Issao disser, eu acredite .. Mamie faz carinho no meu cabelo e fala: — Sempre tento Ihe dizer a verdade, Gussi. — Nio adianta se nio é realmente a verdade. Mamie tenta me abracar mas eu nido deixo. Escondo a cara no travesseiro. IDEIAS PRINCIPAIS: 1. Graduar e diferengas de grau 2. Sobre ser incapaz de ver Os cinco sentidos O que somos capazes de fazer? Fazer e fazer bem Lindo Verdade . Justo . Acreditar 10. O que a Guga quer dizer com “realmente a verdade"? 11. Qual é a vantagem da verdade? i 12. O que é uma pergunta? 13. Raciocinio hipotético Peneuae 2° IDEIA PRINCIPAL: Sobre ser incapaz de ver Até este episédio, nao havia nenhuma indicagao de que a Guga é cega. Mas, quando ela diz “Mae, além de ver, tem mais alguma coisa que eu nao consigo fazer?”, essa é uma frase ambigua. Pode dar a entender que Guga vé e que ela apenas esta perguntando se ha algo que ela nao é capaz de fazer. O professor pode encorajar seus alunos a investigarem as maneiras através das quais os sentidos interagem ou se alternam. como fonte primaria de conhecimento sobre 0 mundo. Algumas pessoas afirmam que 0 tato nos coloca em contato direto com a natureza real das coisas e que a visio revelaria apenas aparéncias. A cegueira levanta temas genuinamente filoséficos, tais como: a contribuigao da visdo para a compreensao do mundo; a inter-relacao da viséo com os outros sentidos; se devemos considerar, ou nao, a visao como critério primario da existén PLANO DE DISCUSSAO: Sobre a cegueira Alguém pode ver em completa escuridao? .A luz é necessaria para se ver? A luz é necessaria para se ouvir? As pessoas podem ver se seus olhos nao funcionam? As pessoas podem ouvir se seus ouvidos ndo funcionam? As pessoas podem pegar coisas se suas maos nao funcionam? ”. Seria posstvel, para alguém que ndo pudesse usar as mos, segurar um lapis ou pincel na boca? . Se uma pessoa nao pudesse escutar, que métodos ela usaria para descobrir 0 que as pessoas dizem? 9. Quando as pessoas nao podem ver, como podem usar seus outros sentidos para ajudé-las? 10, Pessoas cegas sao ouvintes atentos? 11. Pessoas surdas so observadores atentos? NOVABNS © 12. Se algumas pessoas sao privadas de um de seus sentidos, entdo precisam ser mais alentas? 13. E importante que essas pessoas pensem sobre o que os seus sentidos thes dizem? 14. E mais importante que essas pessoas aperfeigoem seu pensar sobre o que seus sentidos Ihes dizem? - 15, Mesmo se vocé tem todos os sentidos, é importante ser capaz de pensar bem sobre o que seus sentidos the dizem? 3° IDEIA PRINCIPAL: Os cinco sentidos Os sentidos so as avenidas ou canais através dos quais mantemos contato com 0 mundo. Eles nos fornecem sensacées e percepcoes. O contato se da em di- ferentes graus de esforco. Quando usamos os sentidos com atengao ou os direcionamos e focalizamos seletivamente, temos uma percepcao. Entretanto, os sentidos sao es- wulados de inimeras maneiras, algumas bastante sutis. Dificilmente percebemos uma brisa mais suave, ou sentimos passo a passo, 0 contato com o chao ou o barulho das Tuas. Essas so sensacoes. Mas, tornam-se percepgées se estivermos atentos a elas. Sensacées e percepsées diferem apenas quanto ao controle exercido sobre elas. Ou seja, a percepcao implica numa espécie de pensar visual ou auditivo; a sensa¢ao im- plica numa experiéncia mais passiva e menos consciente. PLANO DE DISCUSSAO: Ver, tocar, cheirar e saborear 1. Se voce tampa o nariz enquanto come para nao sentir 0 cheiro da comida, da para sentir 0 sabor? Se voce toca alguma coisa sem vé-la, voce pode dizer de que cor ela 6? Vocé pode saborear algo sem tocé-lo? Se vocé cheira uma coisa deliciosa, vocé também pode sabored-la? Se uma coisa pode ser tocada, isso significa que também pode ser vista? Se uma coisa pode ser saboreada, isso significa que também pode ser tocada? DMAwWN a A aor ISSAO E GUGA Habilidades Cognitivas Basicas Tatas oll ss aA PIMPA © programa Pimpa procura fornecer as criangas exercicios seqiienciados que Ihes dardo pratica em fazer comparagées tanto entre coisas, como entre termos e entre relagdes. O objetivo é a competéncia em perceber e expressar semelhangas e diferengas, pois a pratica em fazer comparagées abre novas perspectivas na descrigao e explicagao do mundo. O texto completo de Pimpa possui 11 capitulos. CAPITULO UM - EPISODIO 1 ‘Agora é minha vez! Tive que esperar tanto até que os outros contassem suas histérias! Comecarei dizendo meu nome. Meu nome é Pimpa. Pimpa ndo é o meu nome verdadeiro. Meu nome verdadeiro é o nome que meus pais me deram. Pimpa € 0 nome que eu me dei Quantos anos eu tenho? Tenho a mesma idade que vocé. Eu sei cruzar as per- nas e andar apoiada nos joelhos. Meu pai diz que eu pare¢o feita de borracha. On- tem noite, eu cruzei os pés em volta do pescoco e andei apoiada nas maos. No, ndo se consegue cruzar as pernas e colocé-las em volta do pescogo ao mes- mo tempo. Uma coisa ou outra, mas no as duas. O que vocé quer fazer, transfor- marse numa rosquinha? Minha mie diz que eu pareco feita de vinagre. Eu ndo sei o que é vinagre. Provavel mente é alguma coisa gostosa como sorvete, Minha histéria é muito comprida. Por isso, se vocé quiser, pode se sentar: Este | ano estou muito mais calma com as pessoas do que no ano passado. Hé um ano atris eu teria dit: — Senta! Eu no vou contar nada enquanto vocé nao se sentar. Enquanto espero, ‘tenho muito em que pensar E engragado! Nao gosto mais de falar desse jeito. $6 quero mesmo é comecar logo a minha histéria. IDEIAS PRINCIPAIS: - Nomes + Comparagées - Analogias - Similes Para comegar, ha a questao do nome da Pimpa, isto é, a diferenca entre o nome que os pais Ihe deram (seu nome verdadeiro) e o nome que ela se deu. Por que um nome é dito verdadeiro e 0 outro ndo? Seré que ela quis dizer que o nome que os pais Ihe deram é 0 seu nome legal? E essa seria uma maneira bastante curiosa de definir a palavra verdadeiro. PLANO DE DISCUSSAO: Nome 1, Vocé tem mais de um nome? Explique. 2, Os seus pais the chamam pelo mesmo nome que seus amigos? 3. Vocé usa sett nome quando vocé conversa consigo mesmo? 4. Se vocé ndo tivesse um nome, vocé se importaria com isso? 5. Se voce tivesse um nome diferente, vocé se Importaria com isso? 6. Se vocé tivesse um nome diferente, voce seria uma pessoa diferente? 7. Vocé consegue imaginar que nome vocé preferiria ter em lugar do nome que vocé tem? EXERCICIO: O que é verdadeiro e o que apenas parece verdadeiro. Prepare 4 cartazes com os seguintes dizeres: + Coisas que parecem ser verdadeiras, mas ndo sao. - Coisas que parecem ser verdadeiras, e sao. ~ Coisas que nao parecem ser verdadeiras, mas sao. - Coisas que nao parecem ser verdadeiras, e nao sao, Cada aluno deve trazer um objeto, e colocar diante de um dos cartazes e dizer a razo pela qual 0 colocou ali. Eis algumas sugestées: ~ Uma flor artificial - Um livro de contos de fada - Uma garrafa de refrigerante chela de agua - Um aviao de papel = Uma fotografia 10 Pimpa nos diz que tem a mesma idade que nés: esse é o primeiro exemplo de uma comparacao exata. Como isso é possivel? Sera que a idade é algo irrelevante no ni- vel em que Pimpa esta se dirigindo & audiéncia? Nesse sentido, a propria filosofia ndo conhece diferengas de idade. A observagao de que Pimpa age como se fosse feita de vinagre € 0 primeiro exemplo de uma analogia. Ainda nao é uma analogia precisa- mente formulada: podemos dizer que a Pimpa age do mesmo modo como agem as coisas feitas de vinagre, mas isso esta longe de ser satisfat6rio. O que sera que a mae da Pimpa quer dizer? Provavelmente ela est tentando exprimir, mediante a semelhanca mencionada, algo da disposigao azeda da Pimpa. EXERCICIO: Comparagées exatas Diga se so comparagées exatas ou se apenas estabelecem uma semelhanga. Marcio ¢ téo velho quanto seu irmao gémeo, Marcelo. Dirigir é tao seguro quanto voar. A luz do fogo, seus cabelos castanhos brilhavam como o sol. Joaquim é tao alto e magro como um varapau. O tomate verde estava duro como uma pedra. O mar estava [rio como 0 gelo. Balancei alé que subi tdo alto quanto uma pipa. Quando se tem sede, nada é tao gostoso quanto agua. Quando passaram em frente ao cemitério, as duas criangas ficaram téo nervosas quanto dois gatos assustados. 10. Uma linha reta é a distancia mais curta que vocé pode encontrar entre dois pontos. SONABAWNS i te, at CENTRO BRASILEIRO DE FILOSOFIA PARR CRIANCAS PIMPA Raciocinio Analogico 2 A DESCOBERTA DE ARI DOS TELLES O texto de A Descoberta de Ari dos Telles fornece um modelo de didlogo tanto de criancas entre si como de criancas com adultos. A histéria se desenrola dentro de uma sala de aula em que os alunos comecam a pensar sobre o pensar e, durante 0 processo, descobrem os principios do raciocinio. E elas também descobrem que po- dem aplicar seus raciocinios a situac6es da vida real. A Descoberta de Ari dos Telles 6, também, um modelo de educagao ndo-autoritaria e anti-doutrinaria. Salienta o va- lor da investiga¢o, encoraja o desenvolvimento de modelos alternativos de pensar e imaginar, e mostra como as criangas e jovens sao capazes de aprender uns com os outros. O texto completo de A Descoberta de Ari dos Telles possui 17 capitulos. CAPITULO UM Provavelmente nada disso teria acontecido se, naquele dia, Ari nio tivesse fica- do distraido na aula de Ciéncias. O professor Batista estava falando do sistema so- lar e de como todos os planetas giram em torno do Sol, Ari simplesmente parou de escutar porque surgiu em sua cabeca a imagem de um grande Sol ardendo em chamas com todos os pequenos planetas girando, sem parar, 4 sua volta. De repente, Ari percebeu que © professor Batista estava olhando para ele. Ari tentou livrar-se daquelas imagens para poder prestar atengo na pergunta. — O que é que tem uma cauda comprida e dé uma volta em torno do Sol a cada 77 anos? ‘Ari percebeu que nao tinha a menor idéia da resposta que o professor esperava. — Cauda comprida? Por um momento Ari brincou com a idéia de dizer que era uma estrela cachorro (ele tinha lido em algum lugar sobre a constelagdo do Cio Maior) mas teve medo que o professor achasse que nao era uma resposta Id muito engracada. O profes- sor Batista no gostava desse tipo de brincadeira, mas era muito paciente. ‘Avi sabia que tinha alguns instantes para pensar antes de dizer alguma coisa. Ele lembrou que 0 professor tinha dito “Todos os planetas giram em volta do Sol”. E es- sa coisa com cauda, seja Id 0 que for, também gira em torno’do Sol. Ser que tam- bém é um planeta? Talvez valesse a pena tentar — Um planeta? .. — perguntou ele, meio em duivida. 13 ‘Ari no esperava as risadas da classe. Se estivesse prestando atensao, teria ou- vido o professor dizer que aquilo a que se referia era o cometa Halley, e que os cometas giram em torno do Sol exatamente como os planetas, mas nao sao planetas. Felizmente tocou o sinal. Mas Ari voltou para casa chateado por niio ter conseguido dar a resposta ao pro- fessor Batista. Além disso, estava intrigado. Onde ele tinha errado? Procurou lembrar- se de como tinha tentado encontrar a resposta. O professor Batista tinha dito que todos os planetas giravam em torno do Sol. Essa coisa com cauda também girava em torno do Sol, sé que no era um planeta — Portanto existem coisas que giram em torno do Sol € que nao sao planetas. Entdo Ari teve uma idéia. — Uma frase no pode ser invertida. Se vocé coloca a ultima parte no comeso, ela no serd mais verdadeira. Se vocé inverter a frase “Todas as mangueiras sdo drvores", ficard: “Todas as drvores so mangueiras”... E isso € falso! ‘Todos os planetas giram em torno do Sol” é uma frase verdadeira, mas se vocé inverte e diz que "Todas as coisas que giram em tomo do Sol so planetas” ento niio & mais verdadeira; é falsa! Essa idéia deixou-o tio fascinado que decidiu tentar com outros exemplos. A primeira frase em que pensou foi: “Todos os carrinhos sio brinquedos": Parecia que aquela frase era verdadeira. Entao tentou inverté-la. Ari estava encantado! A frase, quando invertida, era falsa. “Todos os brinquedos sdo carrinhos”, era uma frase falsa. Resolveu tentar outra frase: “Todos os tomates so vegetais" (Ari adorava tomates), mas 0 inverso nio dava certo. Todos os vege- tais so tomates? E claro que nao! ‘Ari estava vibrando com sua descoberta. Se soubesse disso, naquela mani, teria evitado aquela situacdo embaracosa, Foi entdo que viu Luisa. Luisa também estava na classe de Ari mas, por alguma razdo, achava que ela no tinha rido dele. Ari achou que se contasse 0 que tinha descoberto ela seria capaz de entender! — Luisa, acabei de ter uma idéia engracadal Luisa sorriu esperando 0 resto. — Quando vocé vira as frases ao contrério, elas nio sto mais verdadeiras. Luisa torceu o nariz, . — Eo que tem isso de engracado? — Me dé uma frase, qualquer frase, e eu mostro pra vocé. 14 — Mas que tipo de frase? Eu n’io consigo inventar uma frase assim do nada. — Uma frase com dois tipos de coisas, como cies e gatos, sorvetes e comidas ou astronautas e gente. Luisa pensou um pouco. E, quando ia dizer alguma coisa, balangou a cabeca e pen- sou mais um pouco. — Vamos ld! Qualquer coisa — pediu Ari Finalmente Lutsa se decidiu. — Nenhum ledo & uma guia. Imediatarnente Ari rebateu a frase como seu gato teria feito com um novelo de la — Nenhuma dguia é um ledo. Ele ficou atordoado. A primeira frase “Nenhum ledo é uma guia” era verdadeira, mas “Nenhuma aguia é uma ledo” também era. Ari ndo podia entender por que nao tinha funcionado. — Funcionou antes ...— comesou a dizer, mas no péde terminar a frase. Luisa olhou para ele, intrigada. Por que ela tinha dado uma frase tio boba? — pensou Ari um pouco ressentido. Mas entiio lhe passou pela cabeca que, se realmente tivesse descoberto uma regra, ela também deveria funcionar com frases bobas. Portanto nao tinha sido culpa de Lufsa. Pela segunda vez, naquele dia, Ari sentiu que, por alguma raz4io, havia falhado. Seu Unico consolo era que Luisa ndo estava rindo dele. — Eu pensei que tinha descoberto alguma coisa. Realmente pensei que tinha. — Vocé experimentou para ver se funcionava? — perguntou Lu‘sa. seus olhos ver- des estavam brilhantes e sérios. — E claro, Peguei frases como “Todos os planetas giram em torno do Sol’, "Todos 08 carrinhos so brinquedos'’, “Todos os tomates so vegetais” e descobri que, quan- do colocdvamos a Ultima parte no comeco, as frases no eram mais verdadeiras. — Mas a frase que eu dei no era igual as suas. Todas as suas frases comecavam com todos e a minha comegou com nenhum, Luisa estava certa! Mas serd que aquilo fazia alguma diferenca? O nico jeito era tentar com mais algumas frases que comecassem com nenhum. — A frase "Nenhum submarino € canguru” é verdadeira. E "Nenhum canguru € submarino”.. — comecou Ari. 15, — Também é verdadeira, E se "Nenhum mosquito é pirulito” é verdadeira, também 6 verdadeira a frase “Nenhum pirulito € mosquito”. — Elissol E isso! Se uma frase verdadeira comega com nenhum entdo a frase invertida também é verdadeira. Mas se comeca com todos a frase invertida se torna falsa ~ disse Axi todo agitado. Ariestava tio agradecido a Luisa pela sua ajuda que nao sabia o que dizer: Ele que- ria agradecer, mas, 20 invés disso, resmungou alguma coisa € saiu correndo para casa. Ele (01 dreto para a cozinha mas, quando chegou ld, encontrou sua mae conversando com a vizinha, dona Odete. Ari ndo quis atrapalhar e entdo ficou esperando, owindo a conversa — Vou he contar uma coisa, dona Silvia. Sempre vejo a dona Beti, aquela que se mudou para a casa da esquina, entrar no bar, e vocé sabe como me preocupo com essas pessoas que nfio conseguem parar de beber: Sempre vejo essas pessoas en- trando no bar e isso me faz pensar se a dona Beti . — Se a dona Beti é como elas? — perguntou educadamente a mie de Ari Dona Odete fez que sim. De repente, deu um clique na cabeca de Ari. — S6 porque a senhora diz que todas as pessoas que no conseguem parar de be- ber sfio pessoas que vio ao bar, isso no quer dizer que todas as pessoas que vio a0 bar so pessoas que no conseguem parar de beber: — Ari, isso no é da sua conta! E, além disso, vocé esté interrompendo a conver- sa disse sua mae. Mas Ari podia advinhar; pela expresso do seu rosto, que sua mae estava con- tente com o que ele tinha dito. ‘Ari pegou um copo d'égua e sentou, feliz como hd muito tempo nao se sentia IDEIAS PRINCIPAIS: . O processo de investigacao . Descoberta e invengao . O que é pensamento? . Aestrutura das proposigées légicas . Invertendo sujeitos e predicados . Uma excegio a regra: “proposigdes de identidade” . Como a regra de inversao se aplica as frases que comecam com “nenhum” . Ariutiliza sua regra numa situagdo pratica ~ Ressentimento Verdade 16 4° IDEIA PRINCIPAL: A estrutura das proposigées ldgicas As crianeas precisam compreender que a regra de raciocinio descoberta por Ari nao é valida para qualquer frase do cotidiano, S6 é possivel quando as frases so de tal forma simplificadas que se enquadrem nos padrées légicos da linguagem de ra- ciocinio légico. Uma frase logica consiste de apenas 4 partes: a) Termo Quantificador ~ somente as palavras todos, algum e nenhum b) Termo Sujeito - deve ser um substantivo ou uma expressao substantivada ¢) Verbo - deverd sempre estar no presente do Modo Indicativo d) Termo Predicado ~ deverd ser um substantivo ou uma expressao substantivada EXERCICIO: A estrutura das proposigées Iégicas Construa uma proposicdo a partir destas palavras: - sao, cavalos, animais, todos, os. = nenhum, gato, cachorro, é - avides a jalo, todos, transportes, répidos, sao, os. 5? IDEIA PRINCIPAL: Invertendo sujeitos e predicados Numa frase que esta na forma légica correta, isto é, numa proposicao do tipo “To- dos (...) so (...)", est sendo afirmado que os itens do termo sujeito fazem parte da totalidade do conjunto do termo predicado. Por exemplo: “Todos os gatos sao animais” afirma que os gatos fazem parte do conjunto dos animais. Quando uma frase desse tipo é invertida, algo acontece ao valor-verdade da proposigao. Se a proposi¢ao original ~ que se inicia com todos - é verdadeira, entéo a proposigao com o sujeito e o pre- dicado invertidos, geralmente, se apresentaré como falsa EXERCICIO: Invertendo sujeitos e predicados 1, Tente inverter os sujeitos e os predicados, e veja o que acontece, - Todas as galinhas sao aves. - Todos os carros sao vetculos. 2. Estas proposicées, quando invertidas, sdo verdadeiras? Veja o que vocé descobre. - Todas as raposas so mamiferos. Todas as bonecas sao brinquedos. - Todas as plantas sao coqueiros. - Todos os cachorros sao peixes. - Todo lixo é copinho de papel usado. - Todas as tortas de galinha sao hamburgers. 17 0 246 ayo EENTRO BRASILEIRO be vitgsorA PARA CHIANGAS A DESCOBERTA DE ARI DOSTELLES Raciocinio Logico RSA INS a7 18 LUISA O Programa Luisa é uma introducao a Investigagao Etica. Fornece os conceitos basicos (bem, justo, direitos, etc.) e os pré-requisitos do bem pensar (coeréncia, verdade, relagées logicas, etc.) téo necessérios para o pensar auténomo sobre as ques- toes éticas. © texto completo de Luisa possui 11 capitulos subdivididos em 29 episédios. EPISODIO TRES - 0 JOGO DA TROCA — Ei, Ari, quer ir comigo a reunio do clube de selos? — gritou Toninho. Ati jé ja dizendo nao, mas lembrou-se que nio tinha mesmo nada para fazer , como também nao queria ser chato, concordou. Ari nao fazia colegio de selos, e nado achou a reunido Id muito interessante, mas gostou de ficar vendo Toninho trocar seus selos. Uma garota disse: — Troco esse selo da Itélia pelo seu da India. — Vocé deve estar brincando! O da India vale o dobro do italiano, Que tal dar de lambuja aquele seu selo da Albania? A garota concordou e a troca — dois por um — foi concluida. — Foi uma troca justa — comentou Toninho. Depois da reuniao, Toninho e Ari foram descendo a rua até chegarem a lanchonete da esquina. — Que tal a gente dar uma paradinha? Estou com vontade de tomar um sorvete — sugeriu Toninho. — Ta bom — concordou Ari. — Espera um pouco — disse Toninho enquanto remexia os bolsos- Estou sem um centavo. — Tudo bem! Ontem eu lavei 0 carro para o meu vizinho, entiio eu pago pra vocé, — Depois eu devolvo. — Deixa pra lé! Da préxima vez vocé me paga um sorvete. — Legal! E uma troca justa — disse Toninho. 19 Quando eles iam saindo da lanchonete, passaram por uns garotos conhecidos. Um deles esticou © pé. Toninho rapidamente se virou, empurrou os livros do garoto de cima da mesa e saiu correndo com Ari logo atrds. — Eu nfo podia deixar por menos — comentou Toninho quando viu que nao estavam sendo seguidos e pdde ir mais devagar: — Ele n’io tinha nada que esticar 0 pé. E claro que eu também nio precisava fazer 0 que fiz. "Nao € bem a mesma coisa!" — pensou Ari, Mas ele no conseguia saber por que e, finalmente, disse para Toninho: — Nio sei nao! O objetivo do seu clube de selos é a troca de selos. Quando vocé dé alguns selos pra alguém, vocé espera receber alguns em troca. Do mesmo jeito que quando me emprestam algum dinheiro esperam que eu devolva. Mas se fazem alguma sujeira com vocé, serd que vocé deve dar o troco? Nao sei nao! — Mas eu tinha que ficar quite — protestou Toninho. — Eu nao podia deixar por menos. Ele no tinha nenhum motivo pra me fazer tropecar. Logo adiante encontraram Lua e Laura, Ari foi logo contando © que tinha acontecido e porque estava intrigado. — Isso parece quando nés est4vamos tentando descobrir como algumas frases per maneciam verdadeiras quando invertidas € outras se tornavam falsas — comentou Luisa. — Isso mesmo! — concordou Ari, - Mas daquela vez encontramos uma regra. Qual é a regra nesse caso? Luisa jogou seu longo cabelo para trds e comentou: — Parece que as vezes é certo devolver o que recebemos e as vezes € errado. Mas como podemos saber quando é, e quando nao é? E como parecia que ninguém tinha nada para dizer, Luisa resolveu ir para casa e, com isso, 0 grupo todo foi embora. Naquela noite, depois do jantar, Laura foi para o quarto e encontrou sua irma Maria se arrumando na frente do espelho. — Vocé vai sair, Maria? — Vou sair com o Gil. — Onde vocés vio? — Vamos ao cinema. — Ele é barbaro! * — Ele é bem bacana. $6 gostaria que ele niio se achasse tao bacana assim. A campainha tocou e Maria disse: 20 — Laura, diz que eu j4 vou. — Ta bom! ~ Mas antes de ir atender a porta, Laura escovou cuidadosamente os cabelos. Era quase meia-noite quando Maria voltou. Laura jé estava dormindo mas acor- dou quando Maria acendeu a luz e atirou a bolsa na cadeira. — E vocé? — Laura perguntou meio dormindo — Quem mais pocia ser? — Pela voz de Maria, Laura percebeu que ela estava furiosa. — O que aconteceu? — EoGil. — O que houve? O que ele fez? - disse Laura ainda meio zonza. — Niko foi o que ele fez. Foi o que ele quis. S6 porque me levou ao cinema, ele disse que tinha direito a algo em troca, Laura acordou de vez. — Ah! Mas vocé no ligou pra isso, ligou? — riu Laura. — No é isso — retrucou Maria com a voz tremida. — O problema foi ele achar que tinha direito. Quando a gente dé alguma coisa, a gente nfo tem direito a nada em ‘troca. — Mas as pessoas costumam trocar presentes. — Foi isso que ele disse, mas eu nao penso assim. $6 porque me levou ao cinema eu no sou obrigada a trocar alguns carinhos com ele. Seu eu quisesse, teria sido diferente — teriamos trocados alguns carinhos independentemente de ele ter ou ro me dado alguma coisa. Mas uma coisa niio tem nada a ver com a outra, Naquela noite, Laura custou muito a dormir novamente. No dia seguinte, ela contou 0 que tinha acontecido a Ari e Luisa. — E engracado! — ela comentou. ~E igual ao que nés estavamos conversando. Ari queria saber se era correto fazer uma maldade com alguém que nos tinha feito uma maldade. E a Maria ver me dizer que se alguém nos faz uma coisa boa nao tem 0 direito de esperar que a gente faga algo de bom em troca. — Ari, lembra do ano passado, quando nés est4vamos falando sobre as relagdes que podiam ser invertidas? ~ comentou Lutsa. — E claro! Relagdes como “Toninho tem 0 mesmo peso que Roberto” per- manecem verdadeiras quando invertidas, mas relagdes como "Luis é mais alto que ‘Toninho” se tornam falsas — retrucou Ari. Luisa concordou. . — Isso mesmo! E lembra que tinha aquele terceiro tipo em que nao acontecia nem uma coisa nem outra? 2 Ari e Laura se olharam e Laura comentou: — A gente devia fazer coisas boas para as pessoas sé porque a gente quer e nao Porque queremos algo em troca? E Ari perguntou: — E quando as pessoas fazem coisas que nos chateiam, nao temos que fazer 0 mesmo a elas? — Acho que assim — respondeu Luisa dando uma piscadinha. — Se a gente esti colecionando selos ou lidando com dinheiro, tudo bem em dar algo em troca. Mas deve ter uma porgio de ocasiées em que isso nio é assim. Laura suspirou. — Caitado do Gil, Como ele ia saber disso? Provavelmente ele no achou que estava tentando comprar amor da minha irma. Ele s6 estava tentando seguir as regras do jogo. — Talvez ele consiga que Ihe devolvam o dinheiro das entradas — Luisa sugeriu. IDEIAS PRINCIPAIS 1. Fazer trocas 2. Emprestar e pedir emprestado 3. Trocas envolvendo dinheiro 4, Revanche (dar 0 troco) 5. Liberdade para agir de outro modo 6. Relagées ldgicas, 7. Regras 8. O jogo da troca 9. O que é um presente 10. Sempre somos obrigados a retribuir afeto? 11.0 que é uma pessoa? 12.Sempre deve haver reciprocidade? 1? IDEIA PRINCIPAL: Fazer trocas Fazer negocios base de trocas é muito natural para as criangas. Trocar é uma forma de reciprocidade. Tentando explicitar a transagao concluida por Toninho na reuniao do clube de selos, em que foi feita uma troca “dois por um", podemos fazer com que os alunos percebam que uma troca justa em termos de valor, pode ser Injusta em termos de quantidade. 22 EXERCICIO: Relagdes pessoais reciprocas e nao-reciprocas Uma relacao pessoal é reciproca quando a pessoa sente obrigagao de retribuir 0 que foi feito. Uma relagao pessoal ndo-reciproca é aquela que achamos que nao requet retribuigdo. Diga se estas relagées sao reciprocas ou nao-reciprocas. 1. Um policial 0 repreende por vocé nao atravessar a rua na faixa de pedestre. 2. Seu melhor amigo diz algo amavel para vocé. 3. Sem querer vocé dé um encontrao em alguém. 4, Propositalmente alguém dé um encontréo em vocé. 5. Sua mae the dé um beijo. 6. Uma garota e um rapaz, muito amigos, vdo tomar um sorvete. Ela insiste em pagar. 4? IDEIA PRINCIPAL: Revanche (dar 0 troco) Toninho derruba de propésito os livros de cima da mesa Porque acha que o garoto tentou Ihe passar uma rasteira. A acao de Toninho é uma simples revanche, e isso é uma forma de reciprocidade como a troca ou a compra. E uma troca de ofensas. Se a revanche é uma forma de reciprocidade, entao sera que é justa? Deveriamos trocar ofensas do mesmo modo que trocamos coisas ou dinheiro? PLANO DE DISCUSSAO: Ficar quite * Se vocé empresta dinheiro a um amigo e ele depois the devolve, vocés esto quites? * Se sua mae bate em vocé e, mais tarde, vocé bate nos seus filhos, vocés esto quites? * Se seu amigo é ruim com voeé e, depois, é atropelado por uma bicicleta, voces esto quites? * Se seu pai o repreende e, enldo vocé nao Ihe da um recado, vocés estao quites? 23 0 26 yo CENTRO BRASILEIRO DEFLOSOFA PAA ERIANEAS LUISA ; Ferramentas da Investigacao Etica = 5 g é 3 3 g 3 8 s é a 2 g 8 O DESENVOLVIMENTO DAS HABILIDADES COGNITIVAS S € a racionalidade é necessaria, e se constatamos que nem sempre esta presente nas pessoas, devido ao seu nao-desenvolvimento, podemos afirmar que o caminho é procurar, de alguma forma, desenvolvé-la. Pressupomos que o ser humano é um ser dotado de racionalidade e que o com- Portamento dos individuos e das sociedades nao tem sido conduzido por ela. Pressupomos também, que a racionalidade pode ser desenvolvida e que isso pode ser feito desde a Infancia. De modo geral, as pessoas cobram, umas das outras, a racionalidade a0 dizerem: pensa, use a cabeca, isso nao é légico, isso nao é racional e assim por dian- te, Nessas expressdes podemos visualizar algumas caracteristicas da racionalidade. Ser racional € gular-se pelas “luzes"da razao - dai as expressées Iticidoe lucidez— ou guiar-se por aquelas qualidades que costumamos atribuir & raz4o: clareza, coeréncia, posse de razées ou justificativas plausiveis, ponderacao, posse de informacées e uso adequado delas, disposicao a revisoes, etc. Essas qualidades, e outras ligadas a elas, formam o conjunto que podemos chamar de bom pensamento ou de pensar bem que, no caso, é sindnimo de raciona- lidade ou de razoabilidade (ser razoavel). Algumas dessas qualidades ou habilidades esto mais diretamente ligadas ao taciocinio propriamente dito; outras ao processo de investigacao ou busca organizada de Informagées; outras ao processo de forma¢ao de conceitos; e outras ao processo de interpretacao ou de traducao. Com essas habilidades mais desenvolvidas, as pessoas teriam cada vez mais com- Peténcia cognitiva e, portanto, estariam mais préximas do bem pensar. Esses quatro grandes conjuntos de habilidades cognitivas (mega-habilidades) incluem habilidades mais elementares ou mais basicas. Na verdade, essas mega-habilidades 840 orquestracoes de habilidades basicas, que precisam estar presentes nos diversos Passos, ou momentos, do processo de aprendizagem: elas operam integradamente, possibilitando 0 desenvolvimento do bem pensar. HABILIDADES DE RACIOCINIO: permitem ampliar nossos conhecimentos pelas conclusdes ou inferéncias corretas que fazemos a partir de conhecimentos an- terlores, que nos conduzem a coeréncia interna de nossos discursos, preser- vando a verdade de nossas idéias C0 inferir 25 (77 detectar premissas ou pressuposicdes subjacentes (1 formular questées (C0 exemplificar (71 identificar similaridades e diferencas (01 construire criticar analogias (C comparar C0 contrastar, ete. Essas so algumas habilidades que, em conjunto, possibilitam 0 raciocinio com- petente, necessério em qualquer discurso, escrito ou falado, e na solucao dos diver- sos problemas que enfrentamos. HABILIDADES DE INVESTIGAGAO: estao associadas a execucao de méto- dos cientificos. A idéia de investigacao sugere a idéia de busca. Busca nao das respostas prontas aos problemas que a experiéncia da realidade nos apresenta, mas do caminho para se chegar as respostas. Busca do processo de construgao das respostas que implica em saber: CO me (0 observar (0 verificar C0 descrever (CO estimar (7 prever, etc. Tudo feito de uma maneira auto-corretiva, ou seja, verificando constantemente os achados para saber se sao consistentes e, se ndo forem, saber como corrigi-los. Trabalhar no processo educacional com o desenvolvimento dessas habilidades de investigagao mediante exercitaces propositalmente construidas, pode ser um caminho seguro no desenvolvimento do bem pensar. Infelizmente, esta nao tem sido a proposta da educagao tradicional, tanto nas escolas quanto nas familias. Nao ha atitudes efe- tivas de propor as criangas e aos jovens que examinem, ponderem, observem, cons- truam hipéteses, elaborem argumentos a favor dos mesmos, facam revisdes dos ar- gumentos a luz dos dados e cheguem a conclusées. HABILIDADES DE FORMAGAO DE CONCEITOS: identificar os seus compo- nentes, perceber as suas relacdes, aproximar conceitos semelhantes, distanciar os diferentes, faz com que os conceitos adquiram sentido e tornem-se instrumentos de compreensao pois, com eles, poderemos identificar as coisas, os fatos, as 26 situagdes. Desse modo, estaremos construindo conhecimento, em nés e nos outros, e ndo sendo apenas depésitos de informagées sem vida, ou transfor- mando os alunos em depésitos. Mas, para tanto, é necessdrio ter algumas ha- bilidades desenvolvidas, tais como: C7 fazer distingdes (0 fazer conexdes agrupar CO classificar CO definir C0 identificar 7 explicar, ete. ignificados HABILIDADES DE TRADUCAO: sao aquelas necessdrias & compreensao de discursos falados ou escritos de forma a permitir, aos ouvintes ou leitores, a possibilidade de dizer, com as préprias palavras, 0 que ouviram ou leram, Preservando o significado. Isso nao é tarefa Facil, porque exige 0 dominio de habilidades como: (1 prestar atengao (7 interpretar criticamente (71 perceber implicagées e suposicées CO parafrasear C1 inferir Mas isso € necessario para quem deseja ter sua racionalidade desenvolvida a contento. Somente assim se tem a certeza da compreensao e, s6 assim, 0 con- tetido fica aprovado, isto 6, fica a disposicao para anélise, complementacao ou até para ser totalmente rejeitado. Desenvolver nas pessoas, desde pequenas, esses quatro conjuntos de habilidades de pensamento é oferecer-Ihes instrumentos necessdrios para que elas desenvolvam sua racionalidade. Mas nao se trata de trabalhar as habilidades isoladamente, esperando que, posteriormente, cada um as integre no momento de sua utilizacao. Na verdade, todas essas habilidades so acionadas, ou convocadas, quando temos desafios a resolver, ou quando somos convidados a operd-las integradamente para a solugdo de problemas cada vez mais mais complexos. Falharemos, se nao dispusermos das habilidades cognitivas. Estaremos instrumentalizados se tivermos tido oportunidades reais de as exercitar com a ajuda da correcao de outros parceiros, salientando-se dentre eles os professores ou os mestres. Esses, por sua vez, precisam ser mais do que modelos 27 do pensar bem: devem ser capazes de oferecer situagdes-problema com exigéncias progressivas de utilizacao das habilidades cognitivas e a ajuda da corre¢ao. Preocupar-se com isso no processo educacional de modo geral e, particularmente no process educacional escolar, @ enfatizar no trabalho educativo o desenvolvi- mento das capacidades do pensar, em vez de enfatizar os produtos prontos. Nao é que se proponha 0 nao-estudo das producées cientificas e culturais. O que se propde é 0 seu estudo problematizado juntamente com 0 processo de suas produgées. Mais que isso, propde-se que 0 trabalho seja desenvolvido como um processo constante na educacao escolar com materiais especificos para 0 cultivo das habilidades cogni- tivas, visando o pensar bem. Esse trabalho, certamente, gerara qualidade de cabecas pensantes dentro da nossa sociedade e outra qualidade nas relacdes dessas pessoas umas com as outras. 28 DISCUSSAO FILOSOFICA - PERGUNTAS E CRITERIOS S abemos que o niicleo de nosso trabalho com Filosofia para Criangas é a discusséo filoséfica entre os participantes da comunidade de investigagao. Portanto, precisamos saber com clareza o que caracteriza uma discussao filoséfica, para estabelecermos critérios com os quais poderemos avaliar nossas discussdes com as criangas. Uma discussao somente serd filoséfica se nela houver um aprofundamento dos pontos de vista dos participantes, um compartilhar e uma reflexao sobre os mesmos, a luz das interven¢des ponderadas e criticas dos outros, Numa discussao filos6fica, devemos cuidar da precisao daquilo que dizemos. A coordenacao das intervengdes deverd ser feita de tal maneira que os participantes da discussao possam construir suas posicdes de uma forma aberta, mas organizada, levando em consideragao tudo o que foi dito anteriormente. Poderiamos dizer que uma discussao filoséfica € a construgéo articulada do pensamento critico e reflexivo da comunidade. Porém, embora estas sejam caracteristicas essenciais, uma discussao filoséfica depende de algo além delas, ou seja, depende de vocé, como coordenador do diélogo entre os participantes da comunidade. E preciso que vocé saiba orquestrar a discussao por meio de perguntas adequadas. Vamos, portanto, identificar algumas destas perguntas, estudar sua adequacao, e propor critérios para vocé avaliar seu trabalho como coordenador. Perguntas para aprofundar uma discussdo filoséfica 1. Perguntas que pedem esclarecimento, explicacao, definicéo: + O que vocé quer dizer exatamente quando diz isso? ~ O que vocé quer dizer com a palaura que esta usando? - Vocé pode explicar de outra forma o que acabou de dizer? - Como poderia ser colocado este tema? - O que vocé pensa poderia ser colocado de outra forma? - Alguém é capaz de esclarecer 0 que foi dito? - Vocé poderia dar um exemplo do que acabou de dizer? 2. Perguntas que pedem opinises diferentes, alternativas, contra-exemplos: - Ha outras maneiras de se ver este assunto? - Por acaso alguém tem um ponto de vista diferente? - Voces nao estao dizendo a mesma coisa de formas diferentes? - Ha diferenca entre o que eles disseram? ~ Quem pode explicar a diferenca entre o que eles disseram? - Alguém poderia dar um contra-exemplo? 29 % 3. Perguntas que contestam a opiniao ou a sua coerénci: ‘Seu pensamento continuaria coerente em quaisquer circunstancias? - Vocé nao acha que esta se contradizendo? - Vocés esto dizendo a mesma coisa ou estdo se contradizendo? - O que vocé pensa de opiniées contraria a sua? 4, Perguntas que pedem razdes ou pressupostos de uma opiniao: - O que vocé esta pressupondo quando faz esta afirmagao? - Como vocé sabe disso? - Qual é 0 seu racioctnio para afirmar isto? - Que razées fazem vocé pensar isto? - Em que vocé se apéia para afirmar isto? - Em que se baseia a sua opiniao? - Por que vocé chegou a dizer isto? - Como vocé chegou a esta opiniao? 5, Perguntas referentes a conseqiiéncias, inferéncias: - O que eu posso concluir do que voce disse? = O que vocé esta sugerindo com o que disse? - O que esta implicito no que vocé disse? - Seo que vocé diz é correto, o que podemos concluir? - Quais sao as consequéncias da sua opiniao? 6. Perguntas que estabelecem relacdes: - Quais sao as caracteristicas fundamentais do que vocé esta dizendo? Ha relacao entre o que voces disseram? Vocé é capaz de esclarecer as diferengas e as semelhangas entre o que disseram? - E possivel ver outras relagées entre as opinides de vocés? 7. Perguntas sobre perguntas: - Vocé acha que esta é uma pergunta apropriada? - Esta é uma pergunta relevante? - Oque esta pergunta pressupde? - Vocé poderia pensar uma outra pergunta qué enfatizasse oulro aspecto deste assunto? - Esta pergunta vai nos ajudar? Critérios teis para avaliar uma discussao filoséfica: M4 participagao: os alunos falam e ouvem; Hi reflexdo sobre o que é dito, assim como reformulagao de idéias ¢ reconsideragao de pontos de vista; Ha dldlogo entre os participantes que aprendem uns com os outros e embasam cuidadosamente suas posi¢ées; Hé raciocinio na discussao em vez de simples troca de opinides; Os participantes sentem que realizam algo por meio do diélogo; Vocé sabe quais habilidades foram trabalhadas mediante suas perguntas; Voce sabe que a compreensao do tema discutido foi aprofundada e ampliada por alguns de seus alunos; Vocé sabe diferenciar entre a informagao de contetido e o processo de investigagao, 31 SST = aa METODOLOGIA A metodologia proposta pelo Programa Filosofia para Criangas é fundamental para que mediante o trabalho com o conteddo possam ser trabalhadas as habilidades cognitivas necessarias ao desenvolvimento de nossos alunos - é uma metodologia que propicia 0 acontecer do conhecimento nas criancas e jovens porque os faz trabalhar com as idéias de uma forma cooperativa, isto é, dialégica. O esforco por transformar a sala de aula numa comunidade de investigacao, onde © didlogo rigoroso em torno dos temas propostos pelos alunos e pelo professor é um verdadeiro operar com idéias, é algo fundamental nessa metodologia que é simples e rica: ha acdes que devem ser feitas sempre e hd passos ou etapas que precisam ser percorridos sistematicamente. AGOES QUE DEVEM SER FEITAS SEMPRE Os participantes devem: 1. Falar; 2. Falar a respeito do tema em pauta; 3. Falar cada um na sua vez; 4, Ouvir 0 que os colegas dizem; 5. Dar razées, ou apresentar justificativas,ou argumentar; 6. Utilizar outras formas de expressao das idéias além da expressao oral. ETAPAS OU PASSOS A SEREM PERCORRIDOS Os participantes devem fazer: 1, Leitura individual silenciosa para identificar 0 contexto; 2. Leitura em voz alta; 3. Levantamento de questées; 4, Agrupamento das questdes por temas ou assuntos; 5. Trabalhar com os temas (discussdes e exercicios). Uma discusséo bem dirigida partira das idéias levantadas a partir do campo concreto da histéria e gradualmente sera orientada na diregao das principais idéias filos6ficas discutidas no manual. E esse ser 0 momento oportuno para 44 [a } introduzir os exercicios do manual, referentes ao assunto em questdo, afim de esclarecer os significados e manter 0 diélogo dentro dos limites filos6ficos. As Idéias Principais, com os Planos de Discussiio e os Exercicios de cada capi- tulo, devem ser estudadas pelo professor ao planejar sua aula para que possam ser introduzidas no momento oportuno. Quanto maior o conhecimento do manual, maior a capacidade de orientar as discussdes com sucesso. Nao é necessario que o professor explore todas as idéias de um capitulo. Algumas vezes, nem os proprios exercicios pre- cisam ser totalmente trabalhados: o professor pode escolher as perguntas que mais se adaptam a determinadas situacdes, mas ndo esquecendo que elas obedecem a uma ordem de complexidade crescente. O Programa Filosofia para Criangas procura desenvolver as habilidades de raciocinio e, portanto, deve auxiliar os participantes a elaborar novas idéias tanto quanto a se tornarem mais criticos e a esclarecerem os significados, Algumas vezes sera necessario gular a discussao do particular para o geral, outras do atual para o possivel. Essas sdo apenas sugestdes de como proceder na coordenacao de uma aula de Filosofia para Criangas. Sé 0 tempo e a familiaridade com os textos e com os manuais do programa possibilitarao ao professor desenvolver um estilo proprio que seja eficaz ao coordenar as discussées. Ensinar € uma arte que requer sensibilidade, discernimento, organiza¢ao e respeito na relacao com os alunos. Como em tudo, no ensino também nao existe uma receita Unica para se obter sucesso. No entanto, nossa experiéncia com © Programa Filosofia para Criangas mostrou-nos que certas atitudes so mais eficientes que outras. DEVEMOS EVITAR: - obrigar os alunos a seguirem a seqiiéncia das Idéias Principais do manual ao invés da seqiiéncia sugerida pelos seus interesses; - discursar sobre um conceito filoséfico ao invés de deixar que a compreensao te6rica surja a partir do proprio didlogo dos alunos; - permitir longas discussées sobre assuntos pouco importantes do capitulo; - insistir que todos os comentarios sejam dirigidos ao professor; + supor que a lideranga da discuss do grupo sempre cabe ao professor; -_ insistir que os alunos discutam uma questao até chegarem a uma resposta; - usar exereicios do manual sem mostrar como se relacionam com os temas que estao sendo discutidos; ~ _ Insistir nos nossos préprios pontos de vista em véz de incentivar os alunos a Pensarem por si mesmos; ~ monopolizar a conversa; 33 - superestimar a importancia da logica formal com muilos exercicios praticos; - ficar impacientes com os alunos que querem explorar os significados subjacentes que percebem no texto; - usar o manual exclusivamente para tarefas de ligao de casa, nao o aproveitando no didlogo da sala de aula; = manipular o dialogo para que nossos pontos de vista paregam ser os mais Jjustificados; - ‘transformar a aula de Filosofia para Criangas em uma sessao de terapia; - fazer com que os alunos pensem que questées filosoficas podem ser resolvidas através de volagao; - enfatizar os aspectos afetivos do programa omitindo os aspectos cognitivos; - enfatizar os aspectos cognitivos do programa omitindo os aspectos afetivos. DEVEMOS PROCURAR: - _reforgar os conceitos filos6ficos através do exercicios; - incentivar os alunos a construir sobre as idéias uns dos outros; - evar os alunos a perceber as implicagées do que dizem; ~ levar os alunos a buscar suas préprias pressuposicoes; ~ incentivar os alunos a buscar raz6es para justificar suas préprias crengas; - incentivar os alunos a falar uns com os outros; - ouvir 0 que os alunos dizem para incentiva-los a ouvir 0 que os colegas dizem; - mostrar aos alunos que o que dizem nos faz pensar. COMUNIDADE DE INVESTIGACAO - 0 DIALOGO - ‘Marcos Ant6nio Lorieri O melhor lugar onde a racionalidade pode ser desenvolvida por meio do cultivo das habilidades de pensamento (as habilidades de raciocinio, de investigacao, de formagao de conceitos e de traducao) & na “comunidade de invesligagao”, cuja alma ou esséncia é 0 didlogo. E na troca de idéias que as pessoas tém a grande chance de estarem expondo suas idélas aos outros, de estarem escutando as idéias dos outros sobre o mesmo tema ou assunto, de estarem comparando as suas idéias com as dos outros e as dos outros entre si e de estarem, a partir dai, podendo melhorar, completar ou mesmo modificar © que pensam ou, entao, confirmar ainda mais seus pontos de vista. Costumamos dizer que, na situa¢ao de dialogo, as pessoas trocam, além das suas convic¢des, expressas €m afirmagoes ou em seus argumentos, as suas raz6es relativas 8s préprias convicées. E nessa troca de razées que as mesmas podem ficar mais fortalecidas, menos fortalecidas, ou até claramente frageis e sem sustentacdo. Estas oportunidades so Otimas para provocarem, nas pessoas envolvidas, a auto-correco dos seus pontos de vista, 0 que implica todas as habilidades que vimos até agora. Fazer tudo isto é fazer investigacao sobre um tema ou um assunto, em grupo, com a intengao de esclarecé-lo cada vez mais. Por ser em grupo e com tal intencao cha- ma-se a esta situacao de comunidade de investigacao. A proposta de se trabalhar assim, no processo educacional escolar, € muito forte © muito enfatizada nas falas e nos escritos de Lipman e de sua grande colaboradora Ann Sharp. Isto porque partem do principio fundamental de que “a discussdo, por sua vez, aguga o raciocinio e as habilidades de investigagao das criangas como nenhuma outra coisa pode fazer”, conforme diz Lipman em seu livro: A Filosofia vai Escola. Esta mesma idéia é reforcada por Lipman no Manual do Professor de Pimpa as paginas 19 20: Agora, por que favorecer o diélogo? ~Para uma crianga, diélogo é um jogo como pular corda, ou pular amarelinha ou jogar ‘pega-pega’. Se voce entra no jogo, vocé se encontra em situacdes que desafiam eo compelem a desenvolver habilidades que o tornam capaz de ser competente naquele jogo. 2 ‘As habilidades que revelam competéncia no diélogo sao habilidades de raciocinio. Por esta razao, o didlogo entre as criancas permite que vocé promova as habilidades de raciocinio sem o uso de treinos, sem compulsdo. O carater do Jogo espontaneo, 35 t do dialogo entre as criangas, faz com que a participagao seja agradavel e auto-grati- ficante. Nao é algo que se faa para agradar o professor ou por qualquer recompensa extrinseca. Este cardter de jogo, de llidico, de auto-motivacao pode ser observado facilmente quando se trabalha com criangas e jovens em situacdes de didlogo. Quando eles estdo juntos, buscando esclarecer conceitos n3o muito claros, construir uma informacao ou conhecimento a respeito de algo, decidir se um comportamento ou uma atitude é a mais adequada ou correta que outra, etc., 0 envolvimento das criangas e dos jovens é surpreendente, como é surpreendente o esforgo que tém que fazer para estar: - dizendo exatamente o que pretendem dizer; ~ escutando e entendendo o que os outros dizem; - dando razées para suas afirmativas ou para suas concordancias ou suas discordancias; - rebatendo, com argumentos, as discordancias dos outros em relagdo a seus pontos de vista; - autocorrigindo-se quando convencides, pelos outros, de que seus pontos de vista nao so verdadeiros ou completos; - fazendo anillise e sintese a todo o momento; - elaborando mentalmente tudo isto e sendo capazes de expressar verbalmente este conjunto de elaboragées. 10, ha subprodutos éticos importantes na participagao em uma comunidade de investigacdo onde o didlogo e nao a disputa é a regra: - aprende-se a respeitar os pontos de vista dos outros; - aprende-se que o proprio ponto de vista tem o mesmo valor e peso do dos outros; - aprende-se a respeitar a vez dos outros ea exigir respeito pela prépria vez; - aprende-se a respeitar regras combinadas; - aprende-se que as regras podem ser discutidas e modificadas, mas que sdo necessarias para a vida comui - aprende-se que todos somos iguais; - aprende-se que todos somos igualmente dignos de respeito; - ete, Estas, e as razdes anteriores, nao séo boas razdes para concordarmos que nossas salas de aula possam ser transformadas em comunidades de investigagio? Estas nao sao boas razdes para esperarmos que as criancas e jovens, educados desde cedo neste clima, possam se tornar adultos mais racionais ou mais razoaveis na sua participagao na sociedade, e pessoas dotadas de disposicdes éticas mais con- fiaveis e mais consistentes? Por que nao tentar? Ann Sharp diz, em seu artigo ‘Educagdo: uma jomada flos6fica” que a investigagao em comunidade é a antitese do meramente procurar a ‘resposta do professor. Alguns habitos tém que ser desenvolvidos: capacidade de trabalhar duro, aten¢ao para os de- talhes, objetividade, aversao por falsidade e manipulacao, interesse por melhores meios de raciocinar, disposicao em acolher alternativas e respeito por cada um dos mem- bros da classe e de seus pontos de vista. E 0 mais importante é que se deve estar dis- posto a rever uma opiniao, se for para onde a investigacao conduz. O valor do didlogo, em qualquer circunstancia, mas especialmente em educacao € apresentado por diversos autores. Queremos lembrar, aqui, as posicdes de Paulo Freire a respeito, que chega a propor uma “Educagao Dialogica” expresso muito forte e mar- cante do seu pensamento pedagégico. Se tomarmos qualquer de seus livros, iremos encontrar verdadeiras defesas do didlogo como iinico caminho na construgao de co- nhecimentos mais sélidos, mais objetivos, mais consistentes, e como tinico caminho de promocao, dos participantes do processo educacional, a verdadeiros sujeitos do seu saber. Num dos seus livros, Extenso ou Comunicagao?, onde o proprio titulo ja propo a discussao a respeito do que escolher, comunicacao (didlogo) ou extensao (ensino de verdades prontas), Paulo Freire aborda insistentemente a questao do dialogo na educacao e tem expressdes como estas: A educagao é comunicagao, didlogo, na medida em que ndo é transferéncia de saber, mas um encontro de sujeitos interlocutores que buscam a significagao dos significados, Ser dialégico é nao invadir, nado manipular e ndo sloganizar. Ser dialégico é empenhar-se na transformagao constante da realidade. Esta é a razao pela qual, sendo o didlogo 0 contetido da forma de ser prépria a existéncia humana, esta excluldo de toda relagao na qual alguns homens sejam transformados em ‘seres Para os outros’ por homens que sao falsos ‘seres para si’. E que didlogo nado Pode travar-se numa relagao antagénica. O dialogo é 0 encontro amoroso dos homens que, mediatizados pelo mundo, 0 pronunciam’, isto é, 0 transformam e, transformando-o, o humanizam para a humanizagao de todos. E ainda: O didlogo e a problematizagao nado adormecem ninguém. Conscientizam: Na dialogicidade, na problematizagao, educador-educando e educando-educador vo ambos desenvolvendo uma postura critica da qual resulta a perceppao de 37 que este conjunto de saber se encontra em interagao. Saber que reflete 0 mundo, mas sobretudo, tendo de justificar-se na sua transformagao. A problematizagao dialégica supera o velho ‘magister dixit’ em que pretendem esconder-se os que se julgam ‘proprietarios’, ‘administradores’, ou ‘portadores’ do saber. Rejeitar, em qualquer nivel, a problematizagao dialégica é insistir num injustificdvel pessimismo em relagdo aos homens e 4 vida. E cair na pratica depositante de um falso saber que, anestesiando o esptrito critico serve a “domesticacao dos homens e instrumentaliza a inversao cultural”. A idéia de uma invasdo cultural é uma idéia fortemente repugnante para quem se pauta pelo ideal da racionalidade. Invadir as mentes dos outros e colocar nossas idéias autoritariamente nelas é o mesmo que alguém invadir a casa dos outros ou um pats invadir o pais dos outros. As trés situagdes sdo de violéncia e de dominagao e, por isso mesmo, elas ndo sao juslificaveis, isto é, nao hd razdes ou contetidos racionais que as justifiquem. O justificavel € a cooperagao, a solidariedade, 0 compartilhar na construgao das relagdes de boa vizinhanca, de sociedades mais justas e, por que nao, de conhecimentos comuns a respeito de tudo. Mesmo porque a construgao de conhecimentos é um dos ingredientes da construgao das realidades humanas. E a construgéo compartilhada dos conhecimentos se dé na educacao dialégica de Paulo Freire ou na comunidade de investigacao de Lipman. S6 que ambos, Freire e Lipman, nao se contentaram em propugnar suas idéias teoricamente. Seu grande valor esta em terem ido a pratica, a luta concreta por tais idéias, a0 envolvimento com muitas outras pessoas para realiz4-las e 8 construgao de metodologia e de materiais que viabilizassem sua aplicagao. As lutas de Lipman esto nas suas idas as escolas, nos seus cursos a milhares de professores e educadores, & implantacdo no mundo inteiro de centros ou institutos como © Centro Brasileiro de Filosofia para Criangas e a produgao constante de um imenso material, todo operacionalizado para dar auxilio 4 realizagao de tals idéias. 38 AFILOSOFIA COMO CONTEUDO E RECURSO DE UMA EDUCACAO PARA 0 PENSAR Marcos Ant6nio Lorieri E Mm sua proposta de educacao para o pensar, consubstanciada no Programa Filosofia para Criangas, o Professor Lipman utiliza as contribuigées da Filosofia, especialmente as areas de Légica, Epistemologia e Etica, oferecendo uma rica metodologia que proporciona o desenvolvimento das habilidades de pensamento, além de iniciar criangas e jovens no debate das questées tradicionalmente estudadas pela investigacao filoséfica. A Filosofia é, a0 mesmo tempo, contetdo e recurso da sua proposta de educagao para o pensar, No livro Filosofia vai a Escola, comentando a necessidade de se enfatizar o pen- sar e seu desenvolvimento na educacao atual, o Professor Lipman coloca a seguinte questo: Como os alunos aprenderao a engajar-se na investigagao ea trabalhar dentro das disciplinas académicas tradicionais, se eles necessitam de habilidades cognitivas ~ as habilidades de raciocinio, investigagao, formagao de conceito e traducao -, que sao um pré-requisito para tal desenvolvimento? A seguir ele mesmo responde: Uma abordagem possivel é fazer uso da disciplina de Filosofia. O que a filosofia oferece € a familiarizagao com o processo de raciocinio, a sua escrupulosa abor- dagem da andlise conceitual e seu préprio comprometimento na investigacao cognitiva auto-corretiva. Além disso, a Filosofia fornece uma insisténcia no de- senvolvimento de uma posigao aritica, no exame do problemaiico e do estabelecido ena racionalidade do argumento, explicagao e diilogo. Utilizando a Filosofia, ou seja, abordando, com as criangas e os jovens, temas problematicos como os da verdade, do justo, do belo, do bem, do certo e do errado, das normas e sua necessidade ou nao, estaremos iniciando-os nas questées tradicionais insistentemente trabalhadas pelos filésofos. Ao apresentar-lhes tais temas, é preciso exigir deles as posturas proprias dos filésofos, como: compromisso na investigagao auto-corretiva, escrupulosa abordagem da analise conceitual, postura critica, utilizagao da argumentacao adequada, clareza de explicagées, etc. Seria isto possivel com as criangas? - Lipman diz que sim, argumenta a favor de tal possibilidade em varios de seus textos i mais longe: organiza todo o material de Filosofia para Criangas e o propée aos 39 educadores desde a Pré-Escola. O espantoso, para quem néo podia pensar em tal possibilidade, é 0 fato das criangas se envolverem com enorme curiosidade e interesse no debate dos temas filoséficos, e também ser possivel trabalhar com elas, gradualmente, as exigéncias do pensamento acima indicadas. Lipman percebeu que as criancas e jovens se colocam, assim como os adultos, as questées problematicas da Filosofia, Percebeu, também, que a educagao tradicional, tanto nas familias como nas escolas, em vez de colocar estas questdes em discusso, em debate, sempre ofereceu respostas prontas a elas ou minimizou sua importancia. As questées filosoficas so de natureza tal que, quando enfrentadas, podem colocar em risco 0 estabelecido, porque sdo questdes nunca definitivamente resolvidas. Elas tam respostas adequadas para certas épocas e certas sociedades e, quando colocadas em questo, colocam em discussao o estabelecido para estas épocas e sociedades. Como as épocas e sociedades esto sempre se modificando na dirego do aprimoramento da humanidade, estas questdes so sempre recolocadas para que se aprimorem as respostas que os homens dao a elas. Isto faz parte do aprimoramento hist6rico da humanidade. E, neste processo, a Filosofia tem importantissimo papel de ser a investigadora constante das novas possiveis resposta as sempre antigas e atualissimas questées. Este seu papel nunca morre. Ele se aperfeicoa sempre: dai a exceléncia do filosofar no processo de investigacao a respeito destas questdes. Faz parte do seu papel investigar os seus métodos de produgao do conhecimento e suas regras para argumentar a respeito dos seus achados. As criangas e os jovens, pelo fato mesmo de serem os adultos de amanha, se perguntam prospectivamente sobre as respostas destas questées. Os adultos e, dentre eles, muitos intelectuais, guardides do estabelecido, recusam as criangas e aos jovens a possibilidade da indagagao. Preferem oferecer-Ihes as respostas prontas que ja sabem. Tarefa, alias, até possivel mas, de um certo ponto em diante, impossivel, pela necessidade de irrup¢ao constante do novo como garantia da manutencao da vida. Neste jogo, muitos irracionalismos acontecem com sérios prejuizos a todos. O mais racional é a acolhida do novo que inclui o repetir das velhas questées e o exigir a construcao de novas respostas. Se os adultos se somarem as criancas e aos jovens nesta constru¢ao, que é sem- pre reconstrucao de novas respostas, é possivel aspirarmos a sociedades que se sucedam na diregéo de um mundo cada vez melhor. A proposta do Dr. Lipman é nao escamotear das criangas e dos jovens as ques- tes filos6ficas. Nao travesti-las de linguagens esotéricas e inacessiveis, mas sim, colocé-las de tal modo, que tais questées se tornem inteligiveis e possam ser trabalhadas o mais cedo possivel como contetido e como recurso de auténtica educa¢ao para o pensar. 40 Assim ele propoe primeiro que “... para se fazer aceilavel as criangas, a filosofia tem {ido de sacrifcar a terminologia hermética por meio da qual, desde Aristételes, tem conseguido se fazer ininteligivel para o leigo e escassamente inteligivel para o graduado em Filosofia” (A Filosofia vai & Escola - p.22). Na verdade, por que uma linguagem tao complicada para tratar de temas e de questées tao préprias de todos os seres humanos? Ou as questdes e temas filos6ficos nao sao proprias de todos os seres humanos? A forma, por ele encontrada, de tornar estas questées filos6ficas inteligiveis as crian- Gas e aos jovens foi inseri-las em historias ou novelas que dizem da realidade ou da experiéncia comum dos seres humanos, ai incluidos as criancas e jovens, Em tals historias ou novelas, surgem naturalmente situacSes-problema que levam inevitavelmente as questées a respeito delas. Tais questdes suscitadas na leitura das historias s8o acolhidas no debate, na discusséo € no didlogo. E ai sao tratadas rigorosamente na busca coletiva e incessante de sua solugao. Nos diz Lipman, no curriculo de Filosofia para Criangas, os livros do aluno s8o historias ficticias, escritas de maneira simples e sem referéncia aos nomes e a terminologia técnica que os filésofos profissionais utilizam. No entanto, as hist6rias Utilizam muitos termos coloquiais que os fildsofos profissionais também utilizam — termos como verdade, bom, justo e belo. Além disso, em quase todos os Paragrafos, foi introduzido nas entrelinhas um conceito filosofico. Todos sao iscas, para as criangas, com o objetivo de captar sua atengdo e provoca-las a discutire a debater. As criangas se revezam, lendo em voz alta um trecho: 0 estagio inicial de uma sessao de Filosofia para Criangas envolve as criancas na combinagao de ler, falar e escutar que estabelece 0 cenario para que 0 didlogo se siga e, a0 mesmo tempo, apresenta as criancas um modelo de discussao reflexiva. (Manual do Professor de Issao e Guga). Mais adiante, no mesmo livro, diz Lipman, quase a querer confirmar: Pretende-se que cada pagina de uma novela filoséfica seja um minl-campo filoséfico: € justamente isso que torna estas novelas tao agradavels para as criangas e que torna alguns professores tao precavidos contra elas. E é isso 0 que se pode notar nas varias hist6rias que compdem o Programa Filosofia para Criangas. Cada pagina é um mini-campo filoséfico. Em /ssao e Guga, por exemplo, programa para 12 e 28 séries do 1° grau, vamos encontrar paginas e paginas chamando a aten¢ao para as questoes relativas-ao verdadeiro, ao bom, ao belo, ao justo e também chamando atengdo para outras questdes como 0 pensar, 0 sentir, as sensagdes, a aparéncia e a realidade, a constituicéo do mundo ou da realidade, o papel das pessoas no mundo, o significado de suas existéncias e assim 41 por diante. Na primeira pagina da historia de Issao e Guga, quase sem mais nem menos, nos deparamos com Guga, a menina da histéria, se colocando esta questéo: — Até fico pensando se alguém jd pensou como seria entender tudo. Sei que eu ndo ia gostar. O que ia sobrar pra gente ficar pensando? — E possfvel alguém entender tudo? — E se fosse? Sobraria algo para o trabalho do pensamento? —E qual é 0 trabalho do pensamento? Ficar pensando? Em qué? Para qué? Por qué? As criangas, ao lerem este episédio e ao se depararem com esta questao, imediatamente a tomam para si e a colocam em discussao. Interessa-lhes saber sobre 0 pensar e sobre o entender, Interessa-Ihes discutir sobre a possibilidade de sempre saber mais e de como buscar este saber. Estas sao questdes de cunho filoséfico. Comecar a discuti-las faz parte da iniciagao filosdfica das criangas. Faz parte, também, obvia- mente, desenvolver nelas as qualidades de reflexdo filosdfica: este 6 0 segundo momento que nao se separa do primeiro. Mas dele falaremos a seguir. Ele envolve varios aspectos. O primeiro, por certo, é o da admiracao, do “espanto”, da curiosidade, da interpelagdo. Este é garantido mediante uma forma prépria de se construir as histérias: de repente e, a0 mesmo tempo, fazendo parte do contexto das hist6rias, surgem as situacdes provocativas que fazem as criangas se interessarem pelos problemas tradicionalmente filos6ficos. E 0 comego da investigacao. Nesta mesma historia de Issao e Guga, é simples e, ao mesmo tempo, emocionante, quando as criancas, ao lerem o texto, descobrem que Guga nao enxerga. Ela é cega. E ai surgem inumeras questoes a respeito da percep¢ao humana e sobre o papel da percepcao na vida das pessoas e na constituicao dos nossos pensamentos. — Questdes filoséficas? ~ Por que nao? As criangas as tomam para si e se enredam nelas por inteiro. S80 muito interessantes, na histéria, os didlogos de Guga com Issao a respeito de como sao as coisas do mundo: ha toda uma provocagao para a analise da realidade € da percepsao desta mesma realidade. objetivo é fazer as criangas refletirem sobre a sua propria percepgao e sobre a constituigao da realidade. E mais: ao fazer isto, o programa de Issao e Guga propée insistentemente as crian- as 0 desafio de clarificar alguns conceitos basicos relativos a0 mundo natural. As palavras ‘ao surgindo, para dizerem das coisas e, ao mesmo tempo, elas s8o colocadas em questo para que se possa interpreta-las quanto ao seu significado. Interessante a forma, por exemplo, de se colocar a questdo do significado das palavras espago e tempo, para as criancas. Ou as questdes dos significados de 42 molhado, timido e seco a partir de um episédio relative a 4gua, no qual se coloca até a afirmacao problemética de que a realidade é toda constituida por agua! Muito interessante, também, a provocacao para identificar os significados de bom, certo, agradavel, correto ou de fazer, dizer e agir ou ainda de descobrir, inven- tar e resolver e assim por diante. Na histéria de Pimpa, nos deparamos, logo no primeiro episédio, com duas destas questées. A primeira é relativa aos nomes das pessoas e das coisas numa situacao bastante trivial. Pimpa, a menina da histéria, diz que seu nome verdadeiro nao € Pimpa. Pimpa é 0 nome que ela mesma se deu. A isca, conforme nos diz Lipman, esta langada @ as criangas a pegam. Como alguém pode se dar um nome? E qual é o nome verdadeiro dela? Por que cada um no se dé o proprio nome? Para que server os nomes? As pessoas precisam de nomes? Os nomes fazem as pessoas ou S80 as pessoas que fazem os nomes? E por que as coisas também tém nomes? O que tem a ver 0 nome com as coisas? Este é 0 primeiro momento da discussdo. Mas hd um segundo que sempre surge a partir da indagagao de alguma crianga: se o nome verdadeiro dela € o que a mae € 0 pai Ihe deram, o nome Pimpa, que ela mesma se deu, nao é de verdade? Outra vez a discussao vai longe. Agora é sobre a caracteristica de ser verdadeiro ou falso 0 nome. Dai se parte necessariamente para critérios de verdade: que critérios podemos ter para saber se um nome é verdadeiro ou falso? O contedido desta discussao é, por certo, filos6fico. Este, o da verdade, por ser tao complexo, é retomnado em varios momentos desta e de outras hist6rias do Programa A cada vez os alunos vao refinando seus conceitos e seus critérios. Que bom serd trabalhar Filosofia, Literatura, Sociologia, Psicologia, Fisica, etc., com estas criangas, quando chegarem ao 2° grau ou a Universidade! Melhor ainda , pensar nelas como adultos na sociedade! No programa chamado A Descoberta de Ari dos Telles, hd toda uma preocupacao para que os alunos da 5 e 62 séries entendam e apliquem as regras da Logica com seu proprio pensamento.Nao ha como nao perceber, ai, este contetido filosdfico apresentado na forma de hist6ria e com uma linguagem acessivel aos alunos destas séries. Mas nao é s6. Os personagens da historia apresentam-se em situacdes, as mais variadas, nos quais estao envolvidos com o processo de investigagao e sua exigéncias. A discussao e a andlise a respeito é inevitavel. O exame critico do método cientifico ea questdo da verdade e do erro apresentam-se inexoravelmente. Mas, acrescido aos problemas centrais, surgem os problemas éticos neles envolvidos, como a honestidade, © compromisso, a colaboragao, o respeito as regras, etc. 43. Do campo do saber, eles fluem para os outros campos da vida das pessoas como 0 viver em sociedade, em casa, na escola, nas festas, nos divertimentos € assim por diante. Isto é ampliado no Programa Luisa, onde as situagdes da historia convidam ao exame das condutas das pessoas na vida em geral. Ai o tema central é a Etica. E assim por diante, nos demais programas. A Filosofia € o grande contetido do Programa como um todo e € 0 recurso fundamental para uma educagao para 0 pensar. ‘Mas no 0 é apenas por indicar e provocar a andlise e discussao das questdes filos6ficas minuciosamente inseridas nas varias passagens das varias historias. Ele 0 , por indicar, exigit, provocar e desenvolver, nas criangas e jovens, a exceléncia do pensar, relativamente a tais quest6es, o que é a grande marca do pensamento filoséfico. Tal exceléncia do pensar obtém-se por meio da utilizacao intencional e constante dos processos de: - clarificagao de conceitos; = produgao de razes ou argumentos sustentaveis; = exame e re-exame constante dos achados; - auito-correcdo; - uso de critérios; - ponderar as relagées entre os meios e os fins, entre as partes ¢ 0 todo; - Investigar sobre regras e conseqiiéncias; - exemplificar, ilustrar, universalizar; = descobrir pressuposicdes subjacentes; - deduzir ou induzir conclusées implicitas; - discutir, dialogar, cotejar; = pensar sobre o préprio pensar; = exercitar 0 automonitoramento da mente; + questionar, problematizar; - definir termos; - construir hipéteses, supor; = pensar por si proprio; - etc. Como diz Lipman, “O que a Filosofia oferece é a familiarizagdo com 0 processo de raciocinio, a sua escrupulosa abordagem da andlise conceitual e seu préprio comprometimento na investigagao cognitiva auto-corretiva. Além disso, a Filosofia 44 fornece uma insisténcia no desenvolvimento de uma posigao critica, no exame do problematico e do estabelecido e na racionalidade do argumento, explicagdo e diélogo” (A Filosofia vai A Escola, p.165) Tudo isto € buscado insistentemente nos materiais do Programa Filosofia para Criangas, quer nos textos das historias onde os personagens se comportam como fildsofos, a titulo de modelos iniciais, quer nos exercicios e planos de discusséo dos Manuais do Professor onde todos estes processos, acima indicados, so propostos num crescendo progressivo e, também, na metodologia proposta. ‘Mas tudo isto no poderia estar sendo conseguido ou obtido através das varias disciplinas do curriculo escolar do 12 e 2° graus? As disciplinas de Lingua Portuguesa, Matematica, Geografia, Histéria, Ciéncias Fisicas, Quimicas e Biolégicas nao poderiam estar trabalhando, com os alunos, os seus contetidos especificos e, a0 mesmo tempo, nao poderiam estar desenvolvendo as habilidades cognitivas levando-os a um pensar melhor? Sera necessario acrescentar ao curriculo mais uma disciplina como a Filosofia? Lipman diz que sim a esta (ikima questo e nega que as demais disciplinas do curriculo escolar possam obter os mesmos resultados que a Filosofia no desenvolvimento do “pensar bem’. Ele diz, em seus escritos, que ha uma tradi¢o que remonta a Platéo € que insiste em afirmar que a relacdo entre bem pensar e a filosofia é uma relagéo intrinseca, enquanto que tal relagao, no caso das demais disciplinas, é uma rela¢ao extrinseca. Isto é, 86 se filosofa se se pensa bem ao mesmo tempo. Nao é possivel fazer filosofia sem estar pensando bem e desenvolvendo, ao mesmo tempo, a exceléncia no pensar. E, se alguém est pensando, realmente, de maneira excelente, est, por certo, filosofando. Fazer alguém filosofar, por conseguinte, é fazé-lo pensar, necessariamente, bem, Esta relagao tao fortemente necessaria ndo é clara e Obvia nas demais areas do conhecimento que, na verdade, exigem pessoas bem pensantes para © seu aprendizado, mas nao garantem, por si mesmas, no seu exercicio, 0 desenvolvimento do bem pensar. Tal relacao intrinseca da Filosofia com o pensar bem se da, segundo Lipman, por duas razées ao menos: 19, porque a Filosofia é essencialmente um colocar em questao situagdes probleméticas. Nés nao comegamos, jamais, a pensar, a ndo ser que estejamos frente a algum problema ou alguma situacao problematica. Se algo nos é apresentado como conhecido, completo e acabado, nés nao somos convidados a pensar. 22. a Filosofia é essencialmente dialégica. Ela se realiza, acima de tudo, na troca ou no debate de idéias. O dialogo é debate interessado na solugdo das questées controversas, é o melhor recurso para o desenvolvimento das capacidades reflexivas das pessoas. 45 Estas duas posturas, a da problematizacao e a do didlogo na busca de solucdes nao s40, por certo, as posturas mais comuns das varias ciéncias e menos, ainda, do seu ensino. As ciéncias tém sido apresentadas como um saber pronto e seus repre- sentantes, especialmente dentro das escolas, tem-se apresentado como monolégicos e nao-dialogicos. E bem verdade que, hoje, tem-se buscado superar estas posturas no ensino de varias ciéncias, principalmente no 12 e 2° graus. No lugar da apresentagao de um saber pronto, tem-se propugnado pelo ensino do processo de investiga¢ao, tendo como meta a apreensao significativa dos contetdos cientificos, procurando fazer com que os alunos cheguem a eles reconstruindo-os ou reelaborando-os. No lugar de uma atitude monolégica, aquela em que a fala vern de uma Gnica diregdo, a do professor ou a do livro, que representam 0 saber acabado, tem-se caminhado para uma situacao dialégica. Nesta, 0 processo de aprendizagem se da por construgao coletiva, iniciando-se pela problematiza¢ao de aspectos julgados importantes da realidade, passando-se pela discussdo organizada dos mesmos e das informacées disponiveis vindas de participantes do processo: alunos, professor e autores que se fazem presentes pelos textos, até se chegar a conclusdes ou sinteses que so os produtos do conhecimento. Para estas novas posturas, é fundamental que estejam disponiveis, nos alunos, as habilidades cognitivas, desenvolvidas de alguma forma e até um certo ponto. Sem uma base, por elas constituida, torna-se dificil o processo de aprendizagem pretendido no curriculo escolar que deve, isto sim, exercita-las, aplicé-las e propiciar, cada vez mais, co seu desenvolvimento. O que nao se tem visto como plausivel e possivel é o desenvolvimento, a tempo € hora, de um conjunto suficiente das habilidades cognitivas por parte dos componentes deste curriculo escolar que ai esta. Falta a ele um componente de instrumentaliza¢ao para o pensar, que, na visao de Lipman, pode e deve ser a Filosofia, na forma e pelas razOes acima expostas. Ele chega até a comparar este papel da Filosofia em relacao aos demais componentes curriculares, com o papel da lingua materna, no nosso caso a Lingua Portuguesa Em todos os componentes curriculares é fundamental e importante que os alunos saibam bem a Lingua Portuguesa ou a lingua do seus pais. Todos os professores devem estar, o tempo todo, cobrando dos alunos que saibam ler, entendendo o que léem, que saibam se expressar corretamente, falando ou escrevendo os contetidos de cada disciplina e assim por diante. Poderiamos pensar que estes professores dos varios componentes curriculares poderiam, eles mesmos, estar desenvolvendo, nos alunos, a proficiéncia na Lingua Materna e poderiamos pensar em dispensar, do curriculo 0 ensino especifico da lingua. Se isto nos passa pela mente, logo procuramos argumento contra. Afinal de contas, ninguém ousaria eliminar 0 ensino especifico da Lingua Portuguesa aqui 46 no Brasil. Ela é uma base tao fundamental e necessaria para todo o processo de aprendizagem que é importantissimo cuidar dela de maneira especial, com um componente curricular especifico. Pois bem, diz Lipman, as habilidades de pensamento - aquelas do raciocinio, da investigacao, da formacao de conceitos e da tradugao — so bases igual mente fundamentals e necessarias para todo o processo de aprendizagem e é importantissimo que cuidemos do seu desenvolvimento por meio de um componente curricular especifico. Assim como na linguagem, 0 ensino da lingua materna prepara os alunos para serem competentes leitores, interpretadores e “expressadores” de idéias nas vai curriculares que ampliam, pelo uso, estas competéncias lingilisticas, assim também deve acontecer com a Filosofia na escola de 12 e 22 grau. Ela prepara os alunos para serem competentes pensadores em todas as areas curriculares e estas, por sua vez, ampliam as competéncias cognitivas pelo uso sistematico que fazem delas, quando, de fato, o fazem. E.hé mais: a Filosofia 6, por sua natureza, dirigida a globalidade, a totalidade. Isto 6, ela procura sempre apanhar as questdes no contexto mais amplo possivel em que possam situar-se, explicitando, ai, todas as relacdes envolvidas. Somente quando conseguimos captar 0 conjunto das relagdes que constituem ou que influenciam ou que determinam um fenémeno qualquer é que o temos suficientemente compreendido. Caso contrario, estaremos sempre nas particularidades e, por consequéncia, nossos saberes sero sempre parciais. Quando trabalhamos de uma maneira verdadeiramente filoséfica trabalhamos sempre na dire¢ao da globalidade, da viséo de conjunto ou do inter-disciplinar, aliando esta caracteristica do trabalho filosofico as caracteristicas do rigor e da profundidade (radicalidade) no exame das questdes que nos propomos. Esta busca constante da visdo de conjunto (globalidade ou totalidade) faz a Filo- sofia devedora de todas as fontes de dados e informacdes que ela mesma nao produz, Ela toma os dados e informacées, na prépria realidade, pelo conhecimento comum das préprias pessoas e pelos conhecimentos cientificos ja mais especializados ¢ elaborados. Ela toma estes pensamentos ja pensados sobre e a partir da realidade e os pensa de novo. Este “pensar novo" é a reflexao. Ha como que um voltar-se (flexdo) para tras, sobre os pensamentos que ja se tem. Quando isto é feito de forma rigorosa, profunda ou radical e procurando juntar os dados em contextos cada vez mais bem articulados em totalidades significativas, temos a reflexao filoséfica acontecendo. Fazer isto, intencionalmente, com criangas e jovens, desenvolve neles a postura interdisciplinar e os faz cobrar esta postura no préprio tratamento do curriculo escolar por parte de seus professores. Se temos, nas escolas, esta preocupacao filos6fica presente em todos os professores e, além disto, se temos a presen¢a constante do componente filos6fico no curriculo escolar a alimentar a postura de interdisciplinaridade (globalidade), poderemos esperar um novo processo educacional. 47 De uma maneira muito feliz, 0 professor Antonio Joaquim Severino, da Universidade de Sao Paulo, aborda este papel de “gestora da interdiciplinaridade” que cabe & filosofia, em artigo constante de documento da Secretaria da Educa¢ao do Estado de Sao Paulo - CENP - (Subsidios para reformulacao da postura curricular de Filosofia ~ 2° grau). Em seu artigo “Reflexes sobre os fundamentos do ensino de Filosofia no Segundo Grau" ele diz: ... todos 0s componentes, no seu conjunto, devem integrar-se num trabalho interdisciplinar uma vez que aquela formagao é, necessariamente, uma atividade una, constituindo uma totalidade, onde as divisdes e separages perdem o sentido. No caso de disciplinas filoséficas, pode-se dizer que, para além de sua propria especificidade, elas implicam num esforco explicito e intencional com vistas a essa integracdo. A filosofia, com efeito, exerce uma fungao de gestadora de interdisciplinaridade nao 86 no plano epistemolégico, mas também naquele de pratica pedagogica, o qual envolve disciplinas cientificas, atividades profissionais e culturais. Todas estas so raz6es sérias para pensarmos 0 papel de Filosofia para Criangas na educagao escolar. Para Lipman, esta é uma questdo resolvida. E, por estar resolvida, enquanto questo, nao Ihe foi dificil partir para a proposta do seu Programa Filosofia para Criancas. 48 " O que os filésofos e as criangas tém em comum é

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