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O B S C E N I DA D E

cultura brasileira

Pelotas
Quaresma
OBSCENIDADE cultura brasileira
foi composto com três textos livres
sobre o malefício , a magia negra
e o exu , componentes essenciais
da religião afro-brasileira.

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k e

A edição deste livro é totalmente independente


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pelo Filipe V

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V

V V

V
Pintura rupestre pré-histórica europeia
Imagem teriantrópica de transe de transformação xamânico,
ou representação de protagonista vestido para ritual mágico
ostentando como máscara a cabeça da vítima sacrificada,
em derradeira fase decadente da cultura europeia?
(Encontra-se na gruta de Les Tois Frère, Argière, França)
Um problema para além da datação.
A SERPENTE NO PARAÍSO
... do desespero dos inocentes debocha.

Unde malum? O princípio do mal é moral, disse Jean


Baudrillard. O do Pecado é histórico. Na narrativa do
Paraíso, no Gênesis, é o espiritismo.
O que faz mal a um único ser humano pode fazê-lo,
a qualquer momento, a todo e cada membro da socie
dade. A sociedade burguesa obnubila essa lógica em-
pática por razões de mercado, sendo posta fora de
cena a consciência de nossa natureza transcendente a
interesses particulares e que subjaz a todos, indepen-
dentemente de sexo, raça, credo e fortuna.
O conceito de razão perdeu o seu sentido filosófico
original. O que entendemos por razão vigora como
um objetivismo obstinado, os valores humanos se
foram e levaram o sentido da vida. Esquecemos de
questionar a razão da atitude inquietante de refugiar-
mo - nos da vida. Num mundo que exalta como
ideologia a subjetividade, o caráter desejante original
da razão foi suprimido.
No ocidente, o prazer foi colocado a parte das práti-
cas produtivas, para não se sobrepor ao trabalho, pra-
zer, na arte ou no jogo, se reduziu a uma folga. Co-
mo razão, reduziu-se ao princípio da utilidade pessoal
e momentânea do lucro rapace e da razão prática.
Gozo e angústia são vistos como despesa. Sexo e tra-
balho tornaram-se mercadorias.
Mas o sexo sem valor de troca foi segregado do mun
do do trabalho. A lógica burguesa imperante tem por
finalidade excluir seres humanos mantidos na miséria.
Trata-se da lógica do capital, de moral mesquinha e
j
h
sem ética. Para o progresso sem o sacrifício de vidas j
h
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humanas, urge entendermos o que há de transcenden-
te na natureza humana, que não é, absolutamente, a
competitividade do mercado, onde o indivíduo não é
reconhecido por seus valores próprios.
A introdução do trabalho no mundo, disse Georges
Bataille, fez com que o desejo livre fosse substituído
por uma razão estática e sem emotividade. Bataille visa
ultrapassar o círculo moral no qual o desejo, sob a
égide do trabalho, negou a fruição do êxtase. Faz-se
preciso combater o princípio da individuação. A coisi-
ficação (fetichismo), com a sua noção de utilidade, se
constitui pelos mesmos movimentos que produzem
a individualidade. A individuação será ultrapassada
pela ética, este é o seu destino.
Mas que ética? Desde as suas origens, nossa cultura
legou-nos símbolos arcaicos. Estética!
Das origens da cultura ocidental nos veio o conheci-
mento de uma fonte não meramente metafísica, mas
sobrenatural, de dor e sofrimento.
Sem relativismos ingênuos que inculquem individual-
mente a culpa moral e subjetiva, constatamos a tradi-
ção de conhecimentos acumulados como patrimônio
mítico a denunciar uma atividade metapsíquica como
fonte de uma forma específica de mal: o malefício. Há
necessidade da maldade do sujeito humano para o
produzir, certamente, mas não basta, apenas, o desejo.
Faz-se-nos necessária uma determinada técnica que
desenvolve o poder suficiente e eficaz.
Uma investigação atenta na cultura e na história evi-
tará o tratamento genérico e abstrato. Não basta des-
crever as manifestações e os desdobramentos do mal,
é urgente desvendar as causas, escavar fundo as raízes.
j
h
A repressão sexual típica do paganismo, por exemplo, j
h
7
foi um entrismo demonista introduzido na Igreja,
aparentemente, por João, com o rito do batismo e a
mitologia de seus simbolismos.
A técnica do malefício, também, foi a nós transmiti-
da no acervo dos conhecimentos religiosos, sendo
explicada simbolicamente por mitos. Tais símbolos,
jogando com a dor e a morte, projetam a cosmovisão
racionalista da burguesia como angústia metafísica
e como subjetividade.
A Serpente é representada na chama que paira sobre
as águas do Abismo. O Ouróboros é o princípio mas-
culino da consciência, contido no próprio princípio
feminino, a Ourábora, e que dela nasce. Representa a
chama da consciência e a transcendência do espírito à
matéria. No hieroglífico egípcio da flâmula, é o de-
terminativo para a divindade. Há aí referência às téc-
nicas de divinização (ou demonização) que aponta para
o fetiche da fundação religiosa. Em egípcio, «chama»
se traduz “assentada”(contemplando a terminologia afro-
brasileira), apontando em sua origem histórica, talvez,
a preservação do fogo perpetuamente aceso em um
santuário.
Para a concepção cósmica órfico-gnóstica, a Serpen-
te representou a centelha-divina, em sua cosmovisão
dualista. A consciência, que nasce das águas primor-
diais e dá origem ao mundo.
A imagem de serpente de Satan, o «filho da terra»
vem-nos do Egypto, sendo uma representação secun-
dária, par e, depois, filho consorte da Mar: Wad-ur.
Wadyt é um dual feminino que confunde a (ou “o”)
Mar e a Noite.A Serpente, como personificação secun
dária, indicia sua origem na cultura neandertal pela
j
h
procedência marinha. O santuário de Buto, no delta, j
h
8
no Baixo Egypto, chamava-se Pr-Nsr: casa do fogo, e
Pr-Nw: casa da água refere a Nwnw, a Mãe Primor-
dial, que em sua forma feminina representa a Noite,
Nwt. Essa terminação “t” marca o gênero feminino,
assemelhando-se ao copta: Deus. No Brasil, Nanã,
mãe de Yemanjá, não tem um culto específico, mas
é o recurso último de todo socorro.
O Homo sapiens bebeu das fontes da cultura nean-
dertaliana quando surgiu, tardiamente, no cenário da
história. Percebendo o totemismo e a organização
racional da sociedade como uma vida paradisíaca, abo
minou a cultura de classes sociais do estado, que via
surgir a partir da religião mediúnica da cultura demo-
níaca neandertal, rechaçando-a como Pecado. A estas
práticas religiosas, o homem moderno contrapôs o
xamanismo e os fenômenos característicos do lobo
cerebral frontal, recentemente adquirido no processo
evolucionário.
O termo “demônio”, que originalmente designava a
faculdade premonitória do médium espírita, passou a
encarnar, como símbolo da desordem, o que fixava os
totens ao nível de Maya, obscurecendo a razão instin-
tiva. Por demon, entenderam os antigos o que hoje
chamamos exu, um ser amoral e maléfico, causador de
males despoticamente desnecessários e excessivamente
desesperadores por sua crueldade fútil.
Os nomes que surgiam ficaram, mas os seus conceitos
passaram a ser obnubilados pelo racionalismo nihilista,
subjetivismo egoico e os interesses de lucro vantajoso.
A sociedade sucumbiu aos interesses especulativos de
mercado, o individualismo moderno e sua futilidade
generalizada.
j j
h h
LÚCIFER NO CENÁRIO NACIONAL

As coisas de que não se pode falar, narra-se.


Umberto Eco

Nada, no Brasil, é obsceno.


Mas a religião o deveria ser. A pouca vergonha
evangélica é transmitida pelo governo brasileiro
a todos os lares da nação, sob o beneplácito do
Ministério Público.
Mas principalmente a macumba é obscena. Ma -
cumba produz Mal. Macumba causa sofrimento.
A superstição é um excesso e a macumba causa
hybris. Dor em excesso.
Recebemos da Europa, trazidas em naus portu -
guesas, técnicas religiosas neandertalianas (cf.

T RATADO DE D EMONOLOGIA , op. cit.) . Em que pese seja lai


co o Estado, o Brasil tornou - se o primeiro e único
país, na História da Humanidade, onde a magia
negra alcançou estatus de conteúdo de matéria
disciplinar do currículo escolar a ser ministrado
j
às crianças de toda a Nação. j
h h
10
Fato já observado por Manuel Diegues Jr., em
sua análise de nosso quadro social, a Abolição da
escravatura, não a proclamação da Independên -
cia ou da República, provocou a única revolução
acontecida em nossa história . As movimentações
sociais em torno da Abolição nos legaram a bur -
guesia e o povo deste país.
Entramos na fase mercantil quatrocentos anos
após Portugal, somente então pondo fim à escra -
vidão. Depois da proclamação da independência
de Portugal da Inglaterra, realizada por Dom Pe -
dro IV às margens do riacho Ypiranga, passaram
as relações feudais do Império do Brasil para um
capitalismo mercantil que nos levaria à proclama
ção da República burguesa. Sucedeu-se, então, a
liberdade burguesa de culto religioso.
A Cabula e a Macumba, seitas espiritistas do ei -
xo Salvador - Rio de Janeiro, sincretizaram o cul -
to aos orixás africanos ao culto a demônios tra -
zido da Europa, onde sobressai a figura de Exu.
Temos aqui um exu vestido à europeia, trajando
capa, bengala e chapéu. Cabedal de uma cultura
civilizada transmitida a nós por povos já afeitos
às tradições de escravidão, passando-se de uma
cosmovisão de desamparo ante a natureza ao de -
samparo do mercado sob o capitalismo feroz.
Subsiste nesse meio a cosmovisão cratofânica
j
h euro-africana e do Levante , denominada «despo - j
h
11
tismo oriental», contrária a princípios democrá -
ticos, e que não é também afins com a neolítica
americana, «contra o estado» (cf. Pierre Clastres) .

A elite latifundiária brasileira descobrira sua


salvação no café da burguesia mercantilista in -
surgente sob o Império. Os burgueses subvertem
o feudalismo e acabam com a escravidão. Aos ne -
gros, libertos para a faculdade da mais absoluta
miséria , permitiu-se-lhes dedicarem-se à ou es-
molar na mendicância ou “branquear - se” e ocupar
as fraldas ínfimas do mercado . Com a entrada no
mercado como agentes ativos, as comunidades re
ligiosas negras dos grandes centros urbanos pas
saram a relegar os seus orixás africanos, adotan
do o culto a demônios europeu; em que revela-se
a Quimbanda (a faceta negra da Macumba, disfar -
çada pela Umbanda) como mera transculturação
euro - africana com a condição de cultura nacional
brasileira; e com muito pouco de africano nela.
As metamorfoses se completam com o surgimen
to da Umbanda, a «religião nacional» requerida
pelo nacionalismo burguês.
Para o aparecimento da Umbanda, carecia a his -
tória nacional de, apenas, uma quartelada. Após
meio século desenvolvendo-se no meio militar, a
Umbanda saiu dos quarteis diretamente para o
Congresso Federal . A Umbanda realizava o “bran
queamento” exigido e necessário à reivindicações
j j
h parlamentares no terreno religioso e cultural. h
12
Dois séculos de história perpassam nossa condi -
ção de colônia portuguesa , e mais dois somam o
Império e a República do Brasil . De quatrocentos
anos dessa história , a metade contemplou a es -
cravidão negra no país e a Abolição festejou, re -
centemente , um século.
O que acontecia na terra no século anterior à
chegada do negro africano?
Uma comunidade de ciganos , degredados ao Bra
sil por Dom João III , parecem ter - se instalado
na foz do rio Doce. Nessas redondezas surgiria,
posteriormente, a Cabula capixaba.
Com o culto da Cabula gerando a Macumba carioca.

A cultura afro-brasileira

Confundindo - se práticas religiosas culturais di -


versas, transculturadas no processo histórico dos
séculos XVIII e XIX , configurava - se a chamada
cultura afro-brasileira.
A Igreja guardava, então e como sempre, o pro -
fundo silêncio dos ignorantes em matéria religio
sa; o espírito cristão era antiliberal na época . Co
mo a Abolição não resultara da luta pela emanci -
pação, mas do interesse do capital, esta denomi
nada cultura fro-brasileira não haveria de ter in
teresse em critérios teológicos no discernimento
entre os cultos à divindade e aos demônios.
j j
h No momento extremo da dificuldade ou em mi - h
13
séria crônica , não há interesse na cor da vela , o
deus mais próximo é o que serve.
Religiões de matriz mediúnica , como a Umbanda
e a Quimbanda e, mesmo, as de matriz africana,
cujo estatus de mediúnico requer um reexame,
passaram a vítimas da interpretação acadêmica
burguesa, sob o critério de um modelo idealista
tradicional, herdado pela Universidade da cris -
tandade, no qual religião necessariamente deve
ser usada como um instrumento político para a
dominação das classes servis.
Consequência natural do uso feito pelo Estado
da teoria religiosa como aparelho ideológico, a
concepção tradicional de religião decorre de in -
teresses momentâneos, mudando futilmente com
as mudanças de governo, para manter sua essên -
cia totalitária. A definição das prioridades cien -
tíficas, para a produção de ciência, subsumiu os
compromissos do estado burguês com o lucro
pecuniário da elite capitalista e a sua hegemonia
política, ideológica e epistemológica.
Assim o é igualmente na Universidade Federal
como na Pontifícia Católica ou, ainda, em qualquer
academia deste país.

O Movimento Negritude

Após as experiências com o Congresso da Moci -


j j
h dade Negra Brasileira, surgiria a Frente Negra h
14
Brasileira . Sua transformação em partido políti-
co foi abortada pelo Estado Novo, que fechou o
seu jornal A Voz da Raça . Ali militava Abdias do
Nascimento, que tornar-se-ia senador da Repú -
blica na década de '90 . Após passar pela peniten
ciária Carandiru, fundaria o Teatro Experimental
do Negro ( TEN ), que começava as suas atividades
com o apoio da União Nacional dos Estudantes
( UNE ). O TEN convocou uma Conferência Nacional
do Negro, preparando o I Congresso Nacional do
Negro, de 1950.
Sua atuação foi rigidamente soviética e de mas -
sas, com forte organização de base, em oposição
a um quadro de vanguarda. “O caráter cultural e
político dessas iniciativas, diz J . J . Siqueira, se -
ria uma reação explícita ao estilo dos Congres -
sos Afro - Brasileiros” (Entre Orfeu e Xangô, op. cit.) .

O I Congresso Afro - Brasileiro, organizado por


Gilberto Freyre e Ulysses Pernambuco, em 1934,
e o II Congresso Afro - Brasileiro, coordenado por
Édison Carneiro, em 1937, encerraram ambos com
homenagens a Nina Rodrigues, o grande “desco -
bridor da psiquê do negro no Brasil”, numa alusão
sarcástica de Siqueira à ciência frenológica, que
dominara o período e reforçava o avanço imperia
lista sobre a África Negra pelas potências capi -
talistas europeias.
Com ampla participação popular, em moldes ge-
j j
h nuinamente soviéticos, o novo congresso modifica h
15
seu regimento interno , em uma das sessões , ques
tionando - se da utilidade de congressos cujo ob -
jetivo imediato seria satisfazer vaidades intelec
tuais . Alguns intelectuais prepararam uma “decla
ração de encerramento” a par da oficial do con -
gresso, rejeitada pelo plenário.
À época , a ONU apoiava um programa de estudos
sobre as relações sociais privilegiando compara -
ções entre Brasil/Estados Unidos, com o objetivo
de demonstrar que a democracia racial brasileira
fora “o capitalismo de deu certo”. Mas nem ainda
se colocava em perspectiva histórica o fato de a
cultura de classe, no Brasil, andar atrelada a va -
lores que trazem implícitas, em sua dinâmica de
luta pela hegemonia e pelo controle da hierarquia
social, “a utilização estratégica do preconceito e
da discriminação étnica como formas de persua -
são e de reprodução da dominação opressiva”, diz
Siqueira (ibidem) .

O Movimento Negro, no Brasil, não conseguiu es


capar às formas de alienação ideológica, como o
demonstra, por exemplo, o Quilombismo, apesar
de reconhecer a inutilidade das agências acadê -
micas para as comunidades populares.

O cadinho religioso nacional

Aquilo que se têm passado a tratar como “afro-


j j
h brasilidade” não passou , ainda , de um ajuntamen - h
16
to de materiais diversos, mal observados e, devi -
do à costumeira pasteurização acadêmica, muito
mal classificados.
A Universidade não é uma produtora de cultura.
Como escola, e enquanto aparelho ideológico do es
tado, a Universidade é mera reprodutora de uma
cultura . Falta - lhe construir o distanciamento crí
tico que no artista é natural.
Via de regra, os estudos sobre religião afro - bra
sileira vêm sendo interpretados através dos có -
digos pessoais dos pesquisadores e das acade -
mias para as quais trabalham . Resumem - se a rea
propriações do discurso científico subordinadas
aos interesses da classe social dominante.
Observações burguesas com abordagem idealis -
ta, para despertar o nacionalismo e o subjetivis -
mo burgueses exigidos pelo mercado liberal . Su -
as mesmas descrições etnográficas configuram
interpretações etnológicas que não enxergam o
suporte do signo, para não (re -) ver a diferença na
qualidade de vida das classes subalternas. Etno -
logias incapazes de repensar radicalmente a ques
tão social do ponto de vista local. Suas teorias da
cultura e incursões a campo, alienadas da realida
de local , revelam ser necessária uma nova teoria
que incorpore de forma homogênea as experiên -
cias de todos os setores populares do país com
seus diversos tipos de transe religioso que os ca
j j
h racteriza: espírita, evangélico, daime, e o xamâ - h
17
nico ayuasca.
Um quadro cultural afro-brasileiro requererá a
comparação de ambas técnicas religiosas indíge -
nas, negras e europeias.
No cenário dos estudos religiosos, encontramos
duas técnicas de transe: o sonambulismo e o êx -
tase. Uma terceira forma de transe religioso se
constituiria, virtualmente, ao conglutinar estas
duas.
Por « religião » conceituamos uma cosmovisão e o
ritual determinador de sua específica técnica de
transe; a cosmovisão e a técnica corporal que a
produz.
Os sujeitos que nos legaram descrições de tran
ses religiosos , quer mediúnicos ou extáticos , per
mitem - nos a classificação de diferentes tipos de
transe em duas modalidades básicas de religião.
A dialética do fenômeno, na atual questão religio
sa nacional brasileira , apresenta , por um lado , a
forma de transe de possessão mediúnica, como
submissão à subjugação demoníaca, como forma
de busca por proteção (assemelhando - se o trato
demoníaco ao trato de gangsteres, facínoras que
oferecem proteção contra eles mesmos); e, em
oposição a este tipo de transe, o transe extático
xamânico, como uma busca de libertação.
Esta oposição resultou na representação imagi -
nária de um mundo metafísico dividido em dois
j j
h poderes: um mundo de trevas e um Reino de Luz. h
18
O espiritismo e o xamanismo.
Consequência lógica decorrente deste fenôme no
do sujeito humano é a concepção de uma matriz
cerebral com uma área mental luminosa e outra
tenebrosa. A partir de duas zonas, duas ativida -
des cerebrais distintas: amplitude e arritmia.
Tais representações psíquicas levaram a institui -
ções político - culturais clássicas, a Igreja e a fei
tiçaria.
Decorre daí que a proteção demoníaca, sob os po
deres das trevas, sugere uma regressão psíquica;
e, de outro lado, a libertação destas forças tene -
brosas, através de uma iluminação espiritual . Mas
esta última, mais que progressão psíquica, afigu -
ra - se como verdadeira evolução cultural.
Ao menos, reclama esta solução, na evolução da
espécie, a Psicologia Analítica junguiana.

A teoria da Psicologia Analítica

Chegamos aqui à matriz gerativa de Noam Chom


-
sky e às formas elementares de Émile Durkheim
(e, igualmente, às ideias práticas de Marcel Mauss e Hen-
ri Hubert, também da École Française) que segundo as
descrições de casos clínicos e análises de sonhos
feitas por Jung, assemelham - se, em suas formas
mandálicas, às mesmas imagens entópicas estuda
das por Paul Deveraux sobre o uso de psicotró -
j j
h picos no xamanismo pré-histórico. h
19
Fato estabelecido definitivamente pelo psicólogo
Carl Gustav Jung, o inconsciente coletivo consiste
em uma estrutura cristaloide com a forma de um
quatérnio, o Si-Mesmo (selbst) .
As funções do Si - Mesmo na psiquê do cérebro
humano altamente evoluído permitiram ao Homo
sapiens organizar as estruturas de parentesco e
criar o sistema social tribal, o que em sua busca
Durkheim designou como totemismo . O Si - Mesmo
seria a própria lógica estrutural do inconsciente
(Naturam) em oposição à consciência do sujeito, o
espírito. Aplicando o método comparativo, Jung
encontrou Deus no inconsciente sob a forma dual,
consistindo na oposição de duas díades (a tetrák-
tys), que chamou de Si - Mesmo . O Si - Mesmo cons -
titui - se em um arquétipo, um modelo organizador
do próprio cérebro, sobre o qual se funda a mes -
ma estrutura psíquica.
Dentro do Si - Mesmo subsiste o Mal, como o quar
to elemento do quatérnio. O Mal, componente da
polaridade feminina da díade na anima mundi, tem
como imagem a sereia umbandista (na Antiguidade
fora a Ourábora) , combate o Espírito (anima dei). E,
assim, teríamos, pois, a estrutura específica do
Mal em nossa psiquê.
Isto se parece a uma porta do Inferno que nos
exponha ao assédio demoníaco.
O Mal revelado como parte integrante da repre
j j
h h
sentação psíquica desta imago Dei no inconsci -
20
ente coletivo é algo considerável na obra de Carl
Gustav Jung e de sua análise da representação
trinitária de Deus. Com sua psicologia gnóstica
sincretizada a elementos alquímicos, Jung reve -
lou o fundamento que estabeleceu a personalida
de individual e, ainda, a mais absoluta liberdade
do demônio.
Apresenta - se, pois, uma teoria dialética da espi
ritualidade . Existindo em nossa psiquê sob a for -
ma de oposições dianoéticas, esta imagem arque -
típica de Deus possuiria uma contraparte sob a
forma de uma imagem arquetípica do Diabo.
A contraparte psíquica com conformação diabó -
lica haverá de determinar a fenomênica demonía
ca. Seu conjunto parece ter gerado a concepção
teológica infralapsária, segundo a qual algumas
almas se destinariam à luz da divindade, mas ou -
tras não; estas se destinariam ao mundo infernal
tenebroso. Podemos falar em partes da alma, ou
seja, forças anímicas, especialmente, complexos
afetivos. Sendo o demônio, portanto, um complexo
psíquico consubstanciado pela contraparte qua -
ternária da trindade, o arquétipo do Diabo.
Tal concepção de divindade pagã infralapsária é
contrária à esperança evangélica de salvação de
toda a humanidade. O projeto exposto na Bíblia
hebraica representou a modernidade sapiens no
campo religioso, ao utilizar - se do transe extático
j j
h facultado pela aquisição do lobo cerebral frontal h
21
(vd. in T RATADO DE D EMONOLOGIA ) .

O Cristianismo dá - nos notícia de um Deus bom,


Luz da Luz, no qual não há maldade como um fim
em si mesmo e que não abandona ninguém sem per
dão e salvação ao mundo das trevas . Seu discurso
mítico aponta para a “transubstanciação”, não do
arquétipo psíquico diabólico, mas do complexo a-
nímico demoníaco, e o resgate do homem todo pa
ra o Reino de Luz.
Se estar - se ao capricho fútil de políticos corrup
tos já é desagradável e contraproducente sob o
aspecto da justiça social e das satisfações soci -
ais pessoais, cair - se sob o poder de criaturas de
moníacas, detentoras de poderes paranormais de
magnitude considerável, que podem destruir uma
vida de maneira assaz cruel e impiedosa , asseme
lha - se ao viver em um inferno.
Trata - se da célebre URUCUBACA .
No malefício das práticas espíritas demoníacas
de magia negra, os cultos goéticos aos mortos, o
homem é deslocado do centro da atenção. O obje
tivo deixa de ser a vida do indivíduo, que trans -
forma - se em objeto de forças metapsíquicas;
objeto de manipulação de interesses outros.
O objetivo do malefício é o sofrimento.
A História nos tem mostrado que uma sociedade
neurótica não funciona tranquilamente , embora
ainda funcione para alguns objetivos: a Inquisi -
j j
h ção é um bom exemplo. h
22
As pessoas oprimidas reagem, após algum tempo.
No caso do demonismo, a reação se dá por apatia,
com atrofia da inteligência e da iniciativa; escra -
vidão por inércia.
Comprova - o a popularidade que teve o estoicismo*
no mundo clássico.

Da falta de regulamentação Legal

A noção de humanismo normativo, de Erich Fromm,


implica em um critério universal de saúde mental
válido para a raça humana como tal, e segundo o
qual possa ser julgado o estado de saúde de cada
sociedade. O ajustamento individual é um adaptar
- se à vida social , mas , aqui , a constituição mental
humana não é passiva à cultura a ponto de dispen
sar a humanidade do homem . Fromm aponta o opos
to da questão: o critério da saúde mental deverá
ser um critério universal, plenamente válido para
todos os homens, uma resposta válida para o pro -
blema existencial. O homem não se adapta, mas
se desenvolve e amadurece.
Nesse caso, as tradições culturais representam
um entrave à realização humana e necessitam ser
revolucionadas.
O Mal só é Mal , diz Paul Ricoeur , quando experi -
* O E STOICISMO foi o grande sistema ideológico que deu coerência , unida
j
h de e estabilidade ao mundo Antigo e foi, ainda, utilizado pela Igreja j
h
sob a Cristandade.
23
mentado como excesso de Mal.
Mediunismo causa dependência , na proporção da
gradação de suas linhas (mesa, branca, negra, etc.) .
Daí os folclóricos estereótipos étnicos nas repre
sentações tradicionais da miséria e apatia exis -
tencial do negro (ex -) escravo. A figura do exu , e -
minentemente europeia , marca o lugar da classe
popular na sociedade burguesa.
O franqueamento público às práticas de magia
negra é desonesto , porque explora a ignorância
das pessoas , que não sabem em que estão se me-
tendo e quais serão as consequências do desenvol
vimento mediúnico. A ideia jurídica de um contra
to legal é que o consentimento requeira, a priori,
que se deva estar bem informado.
O discurso comunicativo demônico e, por isso, de
moníaco, é retórico; e mais que persuasivo, é coa
tivo . O ato mágico, por ser pré - linguístico (sinápti
co), produz lapsos de programação neurolinguística
perturbadores, erro de linguagem; patologia.
No ato de magia toda condição de verdade é re -
lativa, mas o caminho do erro é certo.
A eficácia do ato de fala não é fundada sobre a
racionalidade argumentativa; é despótica. Num
encantamento, a do demoníaco é cratofânica!
No envolvimento com demônios , não há uma base
segura mínima e, tampouco, há uma rota de fuga.
j
h A máxima distância é pouca. j
h
24

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DEUS E O DIABO
in terra brasilis

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Depois de se ter estado na terra uma vez
- pode-se jamais cancelá-lo?
Rainer Marie Rilke

Excerto de O E X U C O M O A G E N T E C I V I L I Z A D O R , prefácio a Os Amantes ,


de Platão (trad. Alberto Liberato, ed. PA S S E I O na CH U VA ).
Imagem de ídolo arcaico cultuado no nomo de Mendes,
no Baixo Egypto, reproduzida por Éliphas Lévi,
in D OGME et R ITUEL de la H AUTE M AGIE
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Na abordagem aos conceitos de Deus e Diabo faz - se
imprescindível , especipalmente no Brasil , definirmos
o conceito básico com que a macumba opera , que é a
ideia de exu . Aqui no Brasil se ostentam imagens de
Diabos entronizadas para o culto ao exu . Utilizamos
a imagem do Diabo para cultuar o exu . Demonstrare -
mos que exu é meramente o próprio demônio, e o po -
der do demônio está, de fato, no Diabo . O demônio é
o principal ator da macumba. Realizaremos aborda -
gem ao vocábulo exu que demonstrará a origem des -
te nome cognato ao conceito ocidental de demônio .
O Diabo é o mais absoluto conceito de poder , tal co -
mo a ideia do Todo-Poderoso bíblico ( Shaddai) : o deus
da pedra . A imagem do diabo é mera figura arquetí -
pica , já os demônios são criaturas sobrenaturais , ge -
radas na psiquê durante o processo biológico evoluti -
vo histórico. Na remota Antiguidade, foram tidos pe
las almas dos neandertais (Hesíodo, Erg . vv. 120-6 ), homi -
nídeos que desenvolveram técnicas mediúnicas, con -
forme indicam os vestígios arqueológicos. Suas pro-
sopopeias apareceriam na psiquê humana formadas
a partir de complexos afetivos do próprio médium.
A palavra exu designa o demônio , com sinonímia
entre diversos troncos linguísticos pré-históricos.
Existem noções diferentes nos vocábulos que desig -
nam “deus” , para o paganismo gentílico e para os in
do-europeus. O conceito de Deus dos indo-europeus
conhecêmo - lo pelo latim . Dos autóctones africanos e
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mediterrâneos originais, os pelasgos , devemos inves - j
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tigar na língua egípcia.
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A ideia cristã de deus originou-se do conceito latino .
A expressão paganista (qeo , i ) significa exatamente um
assentamento de santo . A própria palavra santo , em
conformidade com a etimologia egípcia , designa um
fetiche de assentamento: onde o “s ” prefixado , o ideo -
grama S 29 : S, declina a forma acusativa do verbo “ntr ”:
F
z ; ) , e o ideograma G 43 : » : “o” ( w ) , o sufixo
“ divinizar ” ( f ‘
do particípio . Daí a forma tautológica popular : o “san -
to sento ”, quer dizer , assentado ( f SF ‘ ; » ) , na expressão
z

coloquial brasileira . A palavra “santo ” significa : assen -


tado ; isto parece ter sido olvidado no devir dos séculos ,
pelo que se acrescentou, talvez após o século XIV d. C.,
já no Brasil, o adjunto “sento ” (assentado) , numa repe -
tição tautológica : santo sento . O assentamento do feti -
che , que detinha a ideia pagã de “sagrado ”, assimilou
a ideia ocidental de santo . Embora haja ambiguidade
entre ambos estes conceitos de Deus , exu é , por certo ,
visto como uma entidade menor , na cultura brasileira ,
devido à origem judaico-cristã da cultura ocidental.
Estão confundidos na Pré-História os dois conceitos
Deus e Diabo . No alvorecer da Pré -História o conceito
de demônio dividiu-se em dois conceitos , senão com -
plementares, ao menos paralelos . Nas línguas saídas
do tronco pré-histórico indo-europeu , o elemento “u ”
indica uma força hostil , e aparece , principalmente , nas
noções que indicam trevas , noite . Com o elemento “u” ,
no sânskrito , a partir de : “ser vivo , ardente” , gerou -
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se exu ( ) , com o acréscimo do sufixo diabólico; j
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designa o princípio vital.
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No hebraico , esh ( vae ) significa : fogo ; e necromante ,
ynI [ o D y i , significa literalmente: sabedor.
No Ocidente , muito cedo se dividiu os demônios em
bons e maus espíritos , em deuses e demônios . No gre -
go , o termo dai , m wn é uma forma participial : o que sa -
be . Mas , também , o agente de destruição , o fogo (co -
mo vae ) , tem o sentido de iluminar . Da sua raiz dai , :
“ assombro ” , sai daimo , n ion-ou : “ fado ” , e daimo , n ioj-on :
“ extraordinário ” . D ai , apresenta, no verbo grego dai , w ,
sentido semelhante ao bíblico “shadad ” ( dd:v; ) : “des -
truir , oprimir ” e, também: “demônio ” ( ~yDI v e w > yD; v ; ) .
O adjetivo “demoníaco ” designava originariamente a
divindade . Ao depois , foi - se depurando as ideias e des -
cobrindo novos conceitos . Certa mística revela uma
dualidade de fenômenos . De fato , uma avaliação geo -
gráfica das culturas nos mostra que somente as par -
celas de homens que tiveram contato com os neander -
tais , e desenvolveram as técnicas mediúnicas , conhe -
ceram o tenebroso mundo infernal.
Parece que a ideia de deus incluía ambas as perso -
nalidades , a divina e a demoníaca , em criaturas que
foram designadas como “demônios ”, apenas. E, após
as invasões indo - europeias , surge a ideia de um Deus
isento de malignidade , o que teria contribuído para a
divisão dos antigos demônios em bons e maus . Assim ,
pela introdução da cosmovisão ariana , se apresenta ao
Ocidente uma concepção dualista , dividindo em bons
e maus espíritos criaturas que , na sua essência , são
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totalmente malignas. E supostos bons espíritos são , j
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então , alinhados a um Deus benigno , como anjos.
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Existem dois tipos de bens proporcionados por demônios:


- a cessação dos males por eles provocados;
- vantagem sobre os outros por males produzidos a estes.

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