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O DÍZIMO

A BANCADA EVANGÉLICA

E OS EXUS NO BRASIL

Assim, toda árvore boa frutos bons produz, mas a árvore podre frutos maus produz.
Não pode árvore boa dar maus frutos, nem árvore podre frutos bons.

Mateus, 7,17-18
Prólogo

As técnicas de demonismo marcaram a religião antiga. Agora, ressurgiram no Brasil. No


desfecho desta exposição se denunciarão fatos que sugerem a retomada da hegemonia do
poder político perdido pelos demônios na sociedade humana, como o desenvolvimento tático
de uma ampla estratégia política de longa duração. Uma retomada do antigo poder perdido.
Dentre todos os demônios, a pomba-gira é, certamente, a figura mais notória e marcante do
complexo cultural que designamos por macumba. Minha família materna adotou a macumba
por religião. Todo macho dominante, envolvido no culto, teve sua vida afetiva bastante sofrida
em consequência desta religião. Um dos fenômenos mais marcantes da macumba é a “surra”,
um mecanismo de controle por castigo corporal realizado pelos “espíritos” sobre os seus
cavalos (médiuns) pessoais. Consiste em transe no qual a entidade encorpora e atira o corpo
do seu cavalo contra as paredes, deixando a pessoa completamente batida e esfolada, ao
desencorporar, como castigo por alguma desobediência. Uma forma de tortura física, notória
pelas consequências bem visíveis: hematomas, inchaços e escoriações. Na espécie, o instinto
dos machos leva-os à investigação do território para a proteção das fêmeas e da prole, por isso
costumam ser instintivamente agressivos. Para transformá-los em médiuns dóceis e
obedientes, seus instintos naturais e laços sociais deverão ser destruídos, sua sexualidade
contida e sua liberdade restringida. São pessoas treinadas para obedecer, num processo que
inclui a castração psíquica dos machos alfa (a) e restringe a sua agressividade, permitindo o
controle externo de todo o grupo humano, na comunidade em questão.
Em uma terreira, numa roda de cangira encontramos uma série de indivíduos justapostos,
mas isolados; não há comunidade de fato. Toda relação perpassa pela omnipresente figura dos
guias. A tática básica do demonismo parece ser isolar o indivíduo do grupo para expô-lo à ação
demoníaca; os demônios exercem seu poder sobre os indivíduos que caem isolados do grupo.
Promovem o isolamento de cada um para obter domínio sobre todo o grupo humano.
A ordem estabelecida por mitos está sempre sob a ameaça de colapso, porque os mitos
desaparecem quando as pessoas deixam de acreditar neles, fazendo-se necessárias a coerção
e a violência. Mas coerção e violência necessitam ser disfarçadas sob um manto ideológico. A
extrema crueldade dos demônios revela indícios de uma ampla estratégia política a que falta
entender qual o seu objetivo final. Embora o poder em si mesmo possa ser o seu próprio fim.
Embora a obsecação por exus seja uma constante nesse ambiente, a obsecação da pomba-
gira com machos a é particularmente característica na domesticação e dominação efetuada
através da macumba. A partir de fatos acometidos à vida de parentes meus, homens que
representavam autoridade familiar, minhas reflexões deram-me a perceber o domínio dos
demônios como forma de opressão sobre toda uma comunidade de humanos, e não como
parasitas apenas de indivíduos, da visão medieval. Em conversa com um “exu” de Bará Lodê,
publicação que seguirá à aqui apresentada, há sido exposta a atitude das pomba-giras contra
os homens de minha família. Revelou-se uma forma mais sutil de “domesticação”: a tortura
psicológica. Como outros homens de minha família, vi-me em situação semelhante à de um
animal domesticado, com a minha vida afetiva destruída e manipulada. Marcado. Ferrado.
É o destino das Bíblias não ser lidas com cuidado.
Bertrand Russell

Deparamo-nos, no Brasil, com as três forças religiosas básicas que compunham o cenário dos
séculos finais da Antiguidade, quando o cristianismo assoma sua protagonização. Temos a
religião dos indígenas (quase extinta) baseada no êxtase e, ao lado desta, encontramos o
próprio cristianismo em luta com as religiões pagãs para reocupar o cenário do sagrado; temos
o culto à divindades no culto aos orixás africanos, embora em estágio mais primitivo de
ritualística e teologização que o do mundo mediterrâneo antigo; e, enfim, temos o demo-nismo
cigano, sob a forma da magia negra europeia, modificada por diversos sincretismos mais
recentes, e, talvez, com um formato muito semelhante ao original da Antiguidade.
Ou, talvez, a expressão correta do problema seja que há somente dois tipos básicos de
religião: o monoteísmo e o espiritismo em geral.
Mas algo não diz respeito somente às formas do demonismo brasileiro. Temos na América
Latina uma questão importante esquecida pela Igreja e que não se poderá negligenciar, até
mesmo porque ambas as questões estão ligadas. Trata-se do anúncio evangélico.
A proclamação evangélica, no Brasil, dá-se a partir de uma tradução do texto sagrado.
Quanto à tradução da Bíblia da CNBB, * este colegiado está a carecer de bons tradutores
urgentemente. E como o que o povo busca encontrar junto aos demônios, no Brasil, é a sua
própria sobrevivência dentro do sistema capitalista burguês, que promove a miséria a níveis
assustadores, os quais podem ser medidos pela excessiva concentração da riqueza e pelos
elevados índices dos lucros dos exploradores da miséria do trabalho e da riqueza da nação, faz-
se mister observarmos a alegada opção pelos pobres do episcopado brasileiro.
A tradução da Bíblia da CNBB, no que respeita à sua opção pelos pobres e à cosmovisão bíblica
de sua tradução, peca já não por omissão, mas por ativamente proteger os interesses e a
cosmovisão dos poderosos, com o tipo de versão que realizou dos respectivos tempos dos
verbos bíblicos para o vernáculo. A pobreza e as classes sociais são dadas como um fato.
Esta questão aparece-nos, principalmente, nos capítulos XIV e XV do Livro do Deuteronômio.


CNBB: sigla da Conferência Nacional de Bispos do Brasil, organização brasileira do clero secular da Igreja Católica Apostólica Romana.
O dízimo no Livro do Deuteronômio

A Igreja nunca esclareceu suficientemente qual a proposta política de Deus para o homem.
O Livro do Deuteronômio é uma complementação e regulamentação do Código da Aliança (Ex
20,22 - 23,33). Ao contrário das tradições que constituem fontes básicas da Bíblia, sedimentadas ao

longo dos séculos como amálgamas culturais, as compilações Eloísta e Javista, as redações
deuteronomistas foram organizações sistemáticas desses materiais mais antigos. Pressionado
por necessidades militares estratégicas, Israel, uma confederação tribal teocrática, vira-se
obrigado a constituir um rei militar, nos moldes do basileu,j grego, uma vez que um a;nax ( dygIn> ),
semelhante aos que governavam as cidades-estado através de epifanias por encorporação em
sacerdotes médiuns, estaria fora de cogitação ante os moldes peculiares da sua teocracia. Uma
teocracia não exercida por sacerdotes, como a conheceu Flavius Josephus.
No Deuteronômio não há regras para sacerdotes, sua teocracia não é a das cidades-estado.
Somente muito posteriormente, reinando sozinhos após a volta do exílio, os sacerdotes
impõem o dízimo em seu próprio benefício, a ser recolhido pelos levitas, visto por Josephus.
A legislação deuteronômica, introduzida pela redação deuteronomista no corpus bíblico, teve
como prioridade básica limitar os poderes políticos do rei e exaltar a teocracia, com uma ampla
transferência do poder à população rural livre, diluindo o poder do estado. Com uma Lei acima
das vontades humanas e de qualquer alteração ou influência, realizava-se uma forte restrição
à monarquia. O poder do estado foi restrito em sua estrutura jurídica também, limitando a
possibilidade de atuação dos tribunais sobre o povo, que nenhum meio tinha para impor sua
vontade. Nas palavras de Frank Crüsemann (A Torá. Petrópolis:Vozes), a reforma deuteronomista foi um
aperfeiçoamento surpreendentemente novo em uma sociedade estatal, na forma de uma
atribuição ampla de poder decisório e responsabilidade ao “povo da terra” (#r<a;,h;, ~[,;), libertado
pelo poder da responsabilidade coletiva como vontade de Deus.
Uma pequena crítica genética da tradução de textos do capítulo XV do Livro do Deutero-
nômio esclarecerá nosso problema de tradução bíblica. No cap. XV, v. 4, se apresenta a ordem
divina quanto aos pobres: “Nada, pois, não haja em ti de pobre, pois abençoar abençoa-te
Jahvé, na terra que Jahvé teu Deus deu-te de herança, por seres pobre” (cf. TM publicado por Oral Roberts.
EVANGELIIPRESS:Örebro, 1957). Não obstante a ordem divina ser totalmente clara e precisa, é comum se

encontrar a aberrante contradição à Sua própria ordenança, colocada na boca de Deus pelos
tradutores bíblicos, no v. 11 do referido cap. XV, dizendo: “Uma vez que nunca deixará de haver
pobres na terra, eu te dou este mandamento: abre tua mão para teu irmão, teu necessitado,
teu pobre em tua terra” (trad. da CNBB, imprimatur do cardeal D. Raymundo Damasceno de Assis; Brasília/São Paulo:Canção Nova).
Assim, após ordenar que não haja absolutamente pobres no meio de Seu povo, Deus teria
afirmado que “nunca deixará de haver pobres”; quando não é verdadeira esta tradução. O v.
11 do cap. XV do Livro do Deuteronômio diz bem o contrário (cf. TM, op. cit.).
Eis os textos comparados lado a lado:
> ^c,r>a;B. ^n>yOb.a,l.W ^Y<nI[l; ; ^yxia;l, . ^d>y<:-ta, xT;p.Ti x:top,; rmoale ^W>c;m. ykinOa;, !Ke-l[; #r<ah,; ,; br<Q,mi !Ayb.a, lD:x.y-< aOl yKi VAnoi,gwn avvoi,xeij ta.j cei/ra,j sou tw/| avdelfw/| sou pe,nhti kai. tw/| evpideome,nw| tw/| evpi. th/|j gh/|j sou)
non deerunt pauperes in terra Habitationes tuæ idcirco ego præcipio tibi Es werden allezeit arme senn im lande: darum gebiete ich dir, und fage, daß du
ut aperias manum fratri tuo egeno et pauperi qui tecum versatur in terra deine hand austhuft deinem bruder, der bedrangt und arm ist in deinem lande.
Em uma análise crítica genética do versículo 11 do cap. XV do Livro do Deuteronômio, vemos
que o texto massorético apresenta o verbo ld:x;: acabar, cessar, no imperfeito Qal, que os LXX
traduziram para o grego pelo subjuntivo do aoristo de evklei,pw: faltar, deixar; trata-se do seu
exato correspondente gramatical (cf. Septuaginta editada por Alfred Rahlfs; DEUTSCHE BIBELGESELLSCHAFT, Stuttgart:1935). Em
hebraico, temos o uso do imperfeito para expressar os aspectos subjuntivos do verbo, mas
esta forma representa antes as formas imperfeitas do indicativo, como vemos na Vulgata. São
Jerônimo verteu o imperfeito hebraico pelo presente do indicativo do verbo latino de$sum,
faltar (cf. 3ª ed. de Robertus Weber OSB; DEUTSCHE BIBELGESELLSCHAFT, Stuttgart:1969). Ainda Martinho Lutero o traduziu pelo
Indikativ Präsens do alemão: wer’den, ficar, tornar-se; segundo uma edição de 1874, a mais
antiga que pudemos consultar. Pode-se mesmo dizer que todas estas antigas traduções
respeitam os modernos conhecimentos de semântica da linguística estruturalista,
recentemente descobertos no século XX. Trabalharam num quarto nível de representação.
Este é o sentido próprio desta conjugação verbal, que assim não apresenta contradição com
o v. 4 e a ordenança para que não haja pobres no meio do Povo de Deus. Na verdade, existe
uma subordinação da realidade expressada condicionada pelas circunstâncias de uma
realidade presente e sobre a qual existe uma expectativa de mudança futura, ou seja, trata-
se de uma expressão subjuntiva, cuja forma no hebraico é, então, o imperfeito (com vau
conversivo, trata-se do presente imperfeito usado como forma narrativa; no português usa-
se o presente histórico para uma narrativa, i. e., o presente simples). Os LXX usaram natural-
mente o aoristo, o tempo narrativo grego, e ainda usaram o modo subjuntivo. No português,
por exprimir uma forma de ação inacabada, o presente simples expressa a expectativa da
incerteza. Por outro lado, nas sucessivas versões brasileiras, em português, sua tradução pelo
futuro imperfeito do indicativo, acabou com toda expectativa para o Povo de Deus, ante a
apresentação do mandamento divino, porque com o futuro imperfeito do indicativo, na língua
portuguesa, faz-se para nós uma indicação positiva absoluta; quando, ao invés disso, no
português, deve-se usar o presente do indicativo para repetições eventuais.
Então, as traduções bíblicas brasileiras para o português, e aí se inclui a tradução da CNBB,
apresentam este verbo hebraico vertido pelo futuro imperfeito e não pelo presente do
indicativo, contrariando as mais antigas traduções acima apresentadas. Encontramos esta
mesma situação em quase todas as traduções feitas no Brasil. E, também assim, na tradução
editada pela CNBB, como vemos no Livro do Deuteronômio traduzido pelo frei Ludovico
Garmus o.f.m. e supervisionada pelo pe. Johan Konings s.j., o v. 11 contradiz o v. 4, no cap. XV.
Eis o texto da tradução da CNBB, segundo, já, a décima terceira reedição, que tenho em
mãos: “. . . do teu irmão. A este farás a remissão 4para que não haja pobres em teu meio.”; e,
logo: “ 11Uma vez que nunca deixará de haver pobres na terra, . . .” (g. n.). Temos, aí, um Deus
descrente de si mesmo e da obediência de sua criatura, a quem determina que não hajam
pobres na terra, mas, logo depois, teria afirmado que eles nunca desaparecerão. Porém, tal
proposição não é verdadeira, como nos atestam as versões dos LXX, de São Jerônimo e do Dr.
Martin Luther.
A existência de pobres verdadeiramente depõe contra a bondade de Deus e da sua graça.
As consequências deste erro para a interpretação do Evangelho, influenciando-se em ciclos
de contínuos retornos, foram desastrosas, como haveremos de constatar a seguir.
A única honrosa exceção a esta série de erros, que são as traduções bíblicas modernas
editadas no Brasil, está na Edição Pastoral da editora Paulus, com imprimatur de D. Luciano
Mendes de Almeida, de 1991, e traduzida por Ivo Storniolo e Euclides Martins Balancin. Mas,
apesar deste acerto louvável, esta tradução bíblica não é uma boa tradução do original, no
seu conjunto está muito longe disso, não distoando das demais. Mas está correta no aspecto
deste verbo nesta passagem. A Bíblia Edição Pastoral diz, numa terrível paráfrase: “Veja bem!
Não faltam indigentes na terra. É por isso que eu ordeno a você: abra a mão em favor do seu
irmão, do seu pobre e do seu indigente na terra onde você está” (São Paulo:Paulus). Toda a tradução
é tão ruim, do ponto de vista paleográfico, no mesmo nível das demais traduções brasileiras,
que mais parece terem acertado por acaso. Nem a tradução da Bíblia da CNBB, que com sua
tradução agride flagrantemente a Teologia da Libertação e acaba contradizendo a “opção
pelos pobres” por esta mesma Conferência propalada, ou nenhuma outra tradução bíblica no
Brasil, quer seja católica ou protestante, apresenta coerência entre os vv. 4 e 11 do cap. XV do
Livro do Deuteronômio.

Entrismo da cosmovisão burguesa na leitura bíblica

Aparentemente, essa leitura foi introduzida na cosmovisão brasileira por João Ferreira de
Almeida. E, certamente, na cosmovisão portuguesa; embora não possamos de antemão afir-
mar que o problema tenha persistido nas traduções de Portugal, como persiste cá entre nós.
Parece tratar-se de influência inglesa sobre a cosmovisão do primeiro tradutor português.
Embora não tivéssemos acesso à versão de Almeida de 1753 e se tenha usado uma edição de
1819, e tampouco às traduções da Vulgata de John Wycliffe e dos textos originais de William
Tyndale, pudemos consultar a versão de Genebra, de 1560, e a Versão Autorizada pelo rei da
Inglaterra, de 1611, e ambas vertem o imperfeito Qal do hebraico, em ld:x; , pelo indefinite
future do sistema verbal inglês. Aqui temos ambos os vv. 11 das respectivas traduções:
A Bíbla de Genebra A versão autorizada de 1611
Becaufe there fhalbe euer ∫ome poore in the land, therefore I commande thee, For the poore shall never cease out of the land:
faying, Thou fhalt open tine hand vnto thy brother, therefore I command thee, laying, Thou shalt open thine hand wide unto thy brother,
to thy nedie, and to thy poore in land. to thy poore, and to thy needy in the land.

Ao final do século XVI, os protestantes ingleses estavam descontentes com a sua Bíblia.
A Bíblia de Genebra foi produto da comunidade de burgueses ingleses que atravessara o
canal da Mancha, em fuga para a Suíça, escapando da católica Mary Tudor, a Sanguinária,
reunidos ao comando de John Knox. Em 1603, o rei James VI, da Escócia, tornou-se rei da
Inglaterra e tentou suplantar esta tradução bíblica com a sua versão autorizada, de 1611. Após
obtido o apoio ao trono pelos burgueses egressos retornados à Inglaterra, James I concedeu-
lhes mera revisão da Bíblia dos Bispos, de 1568, isenta dos comentários protes-tantes da Bíblia
de Genebra; esta permanecendo popular, tornou-se a Bíblia dos Puritanos.
João Ferreira de Almeida nasceu em Torres de Tavares, Portugal, em 1628, e foi ordenado
ministro pela Igreja Reformada Holandesa, em 1656. Publicou o Novo Testamento traduzido
do Textus Receptus de Erasmus de Roterdam, em 1681. Após a morte de Almeida, o Antigo
Testamento em português veio à luz, em 1753, completado por Jacobus op den Akker, na
Batávia (ilha de Java), com publicação pela Companhia Holandesa das Índias Orientais.
Na tradução para o português, João Ferreira de Almeida verteu: “Pois nunca cessará o pobre
do meyo da terra: polo que te mando, dizendo: abrindo abriras tua maõ a teu irmaõ, a teu
affligido, e a teu pobre em tua terra” (Londres:1819). Almeida usou o futuro imperfeito do indicativo,
o que, possivelmente, tenha sido efeito da influência destas traduções inglesas.
Surpreendente é que o pe. Antônio Pereira de Figueiredo, na tradução do latim, também use
o futuro imperfeito do indicativo: “Não faltarão pobres na terra que has de habitar: por isso
eu te ordeno, que abras a mão para teu irmão necessitado e pobre, que vive comtigo no
mesmo paiz”. Desta tadução obtivemos somente uma reedição de 1902 da edição de 1842,
aprovada pela rainha de Portugal, Dna. Maria I, (Lisboa:Depósito das Escrituras Sagradas).
Vemos que todos os tradutores cristãos, quase sem uma única exceção, aparentemente por
simples falta de entendimento do funcionamento do tempo no sistema dos verbos em
hebraico, desvirtuaram a teologia do Livro do Deuteronômio, aqui nessa passagem, em uma
cosmovisão que representa ideias impensáveis para cristãos no Brasil e na América Latina do
terceiro milênio, por sua opção pelos pobres ter grande base principalmente nas reformas
efetivadas com a legislação deuteronômica do antigo Israel.
O entendimento do sistema verbal hebraico é um problema de particular significado.
A Massorah foi o verdadeiro berço da gramática hebraica. O elo que ligou os massoretas e
os gramáticos medievais foi indubitavelmente Aarão ben Moisés ben Asher. Ben Asher foi
descendente de uma família de massoretas que pode ser rastreada através de seis gerações.
A sua última revisão da Massorah formou a base para nosso presente texto massorético.
Contudo, sua teoria sobre formas gramaticais já mostra influência do árabe. Depois dele, entre
os principais gramáticos da Idade Média, vem Saadia ben Joseph, o Gaon, que viveu em
ambiente árabe e foi versado em erudição árabe, sua dependência de gramáticas árabes é
bem evidente. Mas o sistema de raiz triliteral foi desconhecido para Saadia Gaon e não foi
inteiramente descoberto até o tempo de Judah Hiayynj, cerca de 1000 a.D. Ibn Ezra e Kimhii
consideraram-no como “o príncipe dos gramáticos”. Hiayynj foi quem primeiro introduziu a
designação das letras da raiz como o Pe$, o Ayin e o Lamed da raiz arábica 7<&k.
Cerca de 1150 a. D., uns 250 anos depois de Saadia Gaon, David Kimhii produziu a primeira
gramática contendo as sete conjugações verbais familiares aos hebraístas hoje. Nessa época,
Abraham ibn Ezra foi o gramático que mais fomentou o estudo do hebraico na Europa. Em
Roma, Ibn Ezra produziu uma gramática, em bom hebraico, baseado pela maior parte sobre
fontes árabes. Judah Hiayynj adotou a raiz l[p no paradigma padrão direto dos gramáticos
árabes, e Ibn Ezra mudou-a por lmv, e Kimhii adotou dqp , e depois foi mudada para ljq por J.
A. Danz, em sua gramática de 1696 (Hebrew Language). Moisés Kimhii, irmão de David, escreveu a
Miklol, uma pequena gramática que Elifas Levita (Elijah Bakhur, ca. 1505) anotou e tornou-se a


Massorah, de hrwjm, é apresentada como a tradição oral da pronúncia do texto da Torah (hrwt). O texto massorético foi o primeiro
texto eclético do Antigo Testamento, realizado por comentadores que substituíram os escribas judeus, após o século V a. D.
muito amplamente usada “gramática hebraica elementar” entre os eruditos protestantes e
católicos da Europa, após ter sido traduzida para o latim por Sebastian Münster, seu discípulo,
em 1531.
Na era moderna, a pesquisa sobre a gramática hebraica caiu em mãos cristãs a partir das
gramáticas de Conrad Pellicanus (1504) e Johann Reuchlin (1506), com o advento do Humanis-
mo. A Igreja nunca revelara nenhum interesse pelo texto bíblico original antes da Reforma
Protestante. Os eruditos cristãos, e especialmente Sebastian Münster, tomaram de Elifas
Levita seus conhecimentos que, basicamente, transmitiu o conhecimento da família Kimhii.
Este foi o caso, em Cambridge, do leitor de hebraico do rei da Inglaterra, Paul Fagius. Depois
de Levita, o estudo de gramática hebraica declinou entre os judeus. A pesquisa na gramática
hebraica passou para mãos cristãs desde este período e permaneceu aí pelos próximos
séculos. Durante a Idade Média, os estudos comparativos haviam sido feitos pelos judeus a
partir do árabe, que é língua paupérrima no aspecto verbal e, como o hebraico, não possui
tempos verbais propriamente, mas, apenas, os dois modos, perfēctum e infēctum.
O descontentamento dos burgueses modernos com o sistema verbal hebraico entregue
pelos judeus medievais começou em meados do século XVIII, ao Johann Simonis declarar, em
1753: “Nē quidem Deus tempus praeterĭtum in futūrum convērtĕre possit”, referindo-se à
ainda hoje controvertida questão do “vau conversivo”. Já, então, ninguém compreendia mais
os textos das Santas Escrituras. E os gramáticos hebraístas, simplesmente, não entendem
ainda hoje o vau conversivo. Foi apresentada uma exposição sobre a função conversiva do vau
consecutivo em meu Livro de Ruth, em 1999. As gramáticas de hebraico europeias eram
escritas em latim, naquela época, mas em 1593 John Udall traduziu para o inglês a gramática
de Pierre Martinez (Paris:1567). Começaram, então, a aparecer gramáticas de hebraico em língua
inglesa. Assim, John Davis traduziu para o inglês, em 1656, a gramática de Johann Buxtorf, da
edição de 1653.
A tradução completa de João Ferreira D’Almeida apareceria cem anos depois, em 1753.

Os pobres na pregação de Jesus

Devido à impropriedade da língua inglesa para a perfeita compreensão do sistema verbal da


língua hebraica, a partir da teoria de N. W. Schröder (Institutiones ad fundamenta linguæ Hebraicæ in usum
studiosæ juventutis : 1766), de Gröningen, começará uma tremenda confusão na compreensão desse

sistema, por conta dos tradicionados sistemas verbais inglês e árabe não nos esclarecerem o
problema do sistema de tempos verbais hebraicos, especialmente para as línguas românicas
europeias. Como nem o árabe e nem o inglês davam conta de o esclarecer, na Europa
abandonou-se aquele falível sistema verbal baseado nos tempos, legado pelos gramáticos
medievais judeus, passando os gramáticos burgueses a uma balbúrdia de propostas para
resolver o sistema verbal hebraico a partir de sistemas verbais das novas línguas burguesas. Já,
Schröder adotou um ponto de vista relativo para a significação do futuro em sua interpretação
do imperfeito, mas, ainda, concebia o sistema verbal hebraico como um sistema de tempos.
Embora H. F. Wilhelm Gesenius tenha feito grandes avanços nas treze edições de sua
gramática, em alemão, de 1813 a 1842, a confusão foi geral até o final do passado século XX.
Dois orientalistas europeus, Samuel Lee, professor em Cambridge, e o nobre e agitador von
Ewald, surgem com seus novos estudos, engenhosos, porém, mirabolantes. De origem pobre,
o reverendo inglês Samuel Lee tornou-se, em 1831, vigário de Banwel e Regius Professor de
hebraico. Publicara uma versão da Peshitta (The Syriac Old Testament, 1823). Após estudos sobre a
gramática árabe, impressionado com a diferença entre os modos de pensar oriental e o
ocidental, ele rejeitou termos e categorias latinos e gregos para explicar a língua hebraica. Para
tomar o imperfeito como um tempo presente, fazia distinção entre “tempo futuro” e
“significação futura”, porque todo início de ação deve ser presente; também, suprimiu a função
conversiva do vau. Escorpiano típico, o filólogo alemão Georg Heinrich August von Ewald,
ativista político e autor de muitos panfletos, em sua Kritische Grammatik introduziu os termos
Perfeito e Imperfeito, tornando demarcatório de uma nova fase nos estudos bíblicos o ano de
1827 e inaugurando uma nova era na filologia bíblica; mas introduziu também o conceito de
tempo relativo, e um vau relativo. Foi, também, este mesmo ano em que o reverendo Samuel
Lee apresentava a sua teoria do sistema verbal hebraico totalmente desenvolvida (in Prefácio de
1827 de A Grammar of Hebrew Language). A principal diferença entre Lee e Ewald era que enquanto

Lee estava pensando em termos de tempo Relativo e Absoluto, Ewald pensava em termos de
aspecto/modo de ação Relativo e Absoluto. O modelo inspirador fora, ainda, constantemente
a gramática árabe.
Tal situação seguiu numa sequência de desatinos, até Samuel Rolles Driver, no século XIX,
que influenciou o mundo moderno popularizando a teoria dos tempos relativos de Ewald, mais
que qualquer outro estudioso. Assim, os gramáticos levavam os teólogos a perderem-se do que
nunca houveram encontrado, desde os estudos massoréticos, ao início da Idade Média. Com a
destruição do templo de Jerusalém, o projeto demonista, feito entrismo no panteão romano e
liderado, agora, pelo numĕn imperial, como oposição à religião divina, conseguiria fazer
manter-se o verdadeiro teor das Santas Escrituras judaicas desconhecido da Cristandade e das
nações burguesas cristãs. Somente o sopro do Espírito manteve os cristãos no caminho da
verdade durante dois milênios; houveram muitos percalços.
Perdida a compreensão mais exata da mensagem da Palavra, após a queda de Jerusalém,
durante dois mil anos, lutou-se século a século para trazer à luz a compreensão do plano de
Deus que ordenou ao Seu povo a instituição de uma sociedade senão sem classes, ao menos
sem pobreza, através de um comunismo econômico, cujo mecanismo é o dízimo templário,
conforme podemos ver no cap. XIV do Livro do Deuteronômio.
O movimento de retribalização das tribos de Israel, após a fuga do Egypto, teve uma
incipiente análise feita pelo teólogo marxista norte-americano Norman Gottwald (As Tribos de
Jahweh – uma sociologia da religião de Israel liberto, 1250-1050 a. C.; São Paulo:Paulinas), revelando uma forma de
organização social que se fez compreender somente à luz do atual conhecimento antropo-
lógico e sociológico do século XX. E, especialmente, através de uma pequena obra produzida
pelo discípulo de Claude Lévi-Strauss, Pierre Clastres, intitulada A Sociedade contra o Estado
, onde se analisa a estrutura tribal geral, a partir de algumas sociedades
(Rio de Janeiro:Francisco Alves)

tribais neolíticas latino-americanas. A volumosa obra de Gottwald sequer descortinara quão


imenso era o horizonte apontado pelo minúsculo opúsculo de Clastres.
A sociedade tribal totêmica não compreende e nem admite a pobreza ou classes sociais.
Entrementes, para os gramáticos deste século e para a tradução da Bíblia, somente com o
deciframento dos textos da pedra de Roseta, pelo jovem Jean-François Champollion e o início
dos estudos da gramática egípcia, um novo modelo se apresentou ao estudo comparado do
sistema verbal hebraico bíblico, além do árabe, siríaco e aramaico: a teoria do conglomerado
linguístico de sir Godfrey Rolles Driver, no século XX. Comparando o sistema verbal hebraico,
reconhece-lo-emos no sistema egípcio, na forma mais simples do egípcio falado pelo povo. Alí
pode-se ver que o imperfeito hebraico deve ser normalmente traduzido pelo presente do
indicativo na língua portuguesa. Tenho exposta uma teoria sobre o sistema verbal bíblico,
constituído a partir da forma ativa do modo circunstancial do sistema verbal do egípcio médio,
em meu Tratado de Demonologia (ed. DIVINO ESPÍRITO SANTO : Manifestações Teofânicas; 2007).
Durante a Antiguidade, os cristãos trataram de interpretar as Santas Escrituras judaicas a
partir de suas próprias produções e cosmovisão. A cosmovisão política metafísica burguesa
introduzida na leitura do texto hebraico do Antigo Testamento pelas versões inglesas
modernas fora, por sua vez, um reflexo ideológico da interpretação metafísica clássica do
texto grego do Novo Testamento da Vulgata Latina, de São Jerônimo. Assim, em uma
recorrentemente citada passagem do Evangelho passou-se a introduzir assiduamente na
teologia bíblica a cosmovisão de classes do estado, identitária e estereotipada, com a leitura
burguesa da Bíblia e do Evangelho; tal coisa somente pode vir a tornar-se compreensível se
considerarmos tratar-se de uma cultura que desconhecia os sistemas tribais que encontrava
em sua expansão.
Agravo ignominioso veio a abater-se sobre o mundo com a expansão comercial e logo
imperialista das nações europeias burguesas, que tratavam de destruir os sistemas tribais pelo
processo de colonização, exploração oprobriosa e aculturamento a que deram o nome odioso
de “evangelização”. Uma perversão motivada pela cobiça.
Assim diz o texto do Evangelho (Jo 12, 8):

tou.j ptwcou.j ga.r pa,ntote e;cete meqV e`autw/n( evme. de. ouv pa,ntote e;cete) pois os pobres em qualquer ocasião tendes convosco, eu, porém, nem toda vez tendes
.
Nesta passagem, o advérbio de modo pa,nqote: a cada vez, em qualquer ocasião, retirado do
contexto de um presente vivido condicionalmente, passou a ser vertido, inadvertida-mente,
por: SEMPRE, com o sentido de tempo infēctum. E, mais do que isso, como um perfēctum
prōfĭtum bíblico, ou seja, como uma promessa que se realiza. Passou-se, assim, à afirmação
contrária, pela identidade estereotipada da existência da pobreza, como uma condição futura
indeclinável para toda organização social humana. O adjunto adverbial de modo “sempre”,
em grego, seria: VAei, $aivei,%, com o significado de modo: o que existe continuamente,
sucessivamente, e não pa,nqote. Na tradução da Vulgata, São Jerônimo verteu o advérbio grego
pa,nqote pelo advérbio latino semper, cujo significado é: de uma vez por todas, para sempre,
sem cessar, sempre. E que daí passou para as traduções da Reforma Protestante, como,
igualmente, em inúmeros outros vícios da tradução da Vulgata, São Jerônimo foi copiado
pelos modernos.
Não por acaso que a atual situação permite à Igreja apropriar-se do montante dos dízimos.
Trata-se da ideologia do estado demonista com a sua cosmovisão de classes que contradiz
não apenas a teologia do Antigo Testamento, mas, escandalosamente, o texto grego do
Evangelho. Esta distorção do texto grego, uma vez introduzida por São Jerônimo com a
Vulgata, passou, posteriormente, à influenciar a interpretação do texto hebraico do Antigo
Testamento pelos tradutores modernos. Trata-se de uma mundivisão metafísica burguesa, um
equívoco ideológico cristão, e um entrismo demonista contrário aos propósitos divinos
estabelecidos no Seu projeto realizado na Criação e instituído originalmente pela Sua Lei. Mas
equívoco estabelecido somente pelos textos das edições bíblicas em línguas modernas.
Todo crente evangélico cita de memória qualquer versão desta passagem (sinóticas: Mc 14, 7; e
Mt 26, 11) para justificar o seu egoísmo e as suas omissão e alienação políticas. Alienação política
que deixa os seus pobres desassistidos do principal dispositivo bíblico de superação da
pobreza por meio de redistribuição: o dízimo.
Tornou-se hábito nas igrejas proclamar o dízimo como deposição de ofertas no templo, para
ali ser acumulado, sem uma noção clara de finalidade. Mas o Livro do Deuteronômio, em uma
autêntica legislação social, prescreve que o dízimo seja levado ao Templo e distribuído pelos
levitas nos portões das cidades, para ser consumido pela comunidade, e especialmente com
os pobres, numa espécie de potlach, por ocasião das grandes festas. Entregue ao clero
somente a cada três anos, apenas para ser compartilhado com os pobres.
Como forma de potlach, trata-se ainda da Lei consuetudinária tribal se impondo ao estado.
O Código Deuteronômico foi uma ampliação do Código da Aliança em uma constituição
política baseada na igualdade e na fraternidade dos pares, somente comparável, segundo
Frank Crüsemann, às modernas constituições burguesas do um estado de bem-estar social.
Ambos os códigos foram integrados em uma nova unidade, com uma linguagem teológica
nova: o Livro do Deuteronômio introduziu o dízimo no corpus bíblico como uma taxa social
direta. Tal empreendimento, conduzido pelos patrĭbus-familĭās abastados, foi uma medida
adotada em substituição ao imposto estatal, regalia combatida desde o início da monarquia
em Israel, e somente obtido devido à ascenção ao trono de um rei menino: Josias, aos oito
anos de idade; manipulado pelos senhores da terra.
A base social do direito hebraico surgido na época da monarquia, entendido como direito
mosaico, foi singular por responsabilizar todo o Israel pelo direito e pela justiça, tirando o
direito das mãos do estado e confiando-o ao povo. Infelizmente, hoje Israel não dá mostras
de elevada compreensão da justiça, como podemos ver através da questão palestina.
O dízimo, retido hoje pelo clero, prescrito pela Lei Deuteronômica para a partilha com os
pobres, no entanto, no Brasil, é expropriado aos pobres o seu benefício, por avareza cúpida.
E permite-se ao clero apropriar-se de quantias de dinheiro significativas por seu volume, para
gerar uma classe abastada de ricos dentro da própria Igreja, e impérios financeiros.
O cenário político nacional

Nos tempos modernos, o anúncio evangélico caiu numa retórica vazia sem sentido.
Após entendermos a noção bíblica de dízimo, vemos com clareza meridiana os motivos que
levam a Igreja, hoje esquecida de seu querigma e desviada de seu mandamento essencial, a
desinteressar-se dos problemas sociais de ordem religiosa no Brasil. E ao contemplarmos a
bancada evangélica no Parlamento brasileiro, todos podemos ver o que este povo têm feito
pela Igreja; mas o que ninguém se pergunta é o que a Igreja está fazendo pela Nação.
Os exus invadem as escolas do país, e a Bancada Evangélica, escandalosamente antiética, se
omite de agir no Congresso Nacional, responsavelmente ao discurso tradicional do querigma
cristão usual, ante o problema da macumba no Brasil que requer regulamentação imediata.
Vergonhosamente, a Bancada Evangélica só legisla sobre dinheiro, impostos, taxas públicas.
A Bancada Evangélica ignora a função primaríssima da Lei, que é a de educadora do povo.
Deve ser desestimulante para o ardor evangélico de certos pastores saber que menos de um
quarto do valor do dízimo era destinado ao clero. Menos de 0,02 % do total. Uma vez que o
destino prioritário do montante arrecadado era a partilha com as viúvas e os órfãos.
Se vícios foram introduzidos no texto bíblico também pelos novos tradutores da moderni-
dade, quanto à cosmovisão divina, e também pelos hagiógrafos sobre sociedade e economia,
no que respeita à questões do demonismo, então, já desde a Antiguidade o problema vinha
sendo paradoxalmente mal compreendido, ou, ao menos, muito mal explicado pela Igreja.
Nunca se traduziu o termo baál; nem os LXX, nem S. Jerônimo, e nem os modernos. Na
tradução do termo avshĕrah se confundiram a entidade com seu ídolo ou com seu bosque.
Em conformidade com a realidade espiritual da igreja brasileira da atualidade, é um fato
ignorado por todos os tradutores brasileiros o quanto a cosmovisão propriamente bíblica
diferencia-se das suas próprias cosmovisões alienadas. A realidade brasileira atual requer que
se traduza gramaticalmente o vocábulo nefilim (em Gn 6.4) por “arriadas”. Porém, os seus
análogos baál e avshĕrah, pelos termos exu e pomba-gira, numa contextualização semântica
deduzida cientificamente e não meramente intuída, necessária no atual cenário brasileiro.
No Brasil, ressurgiu o pré-histórico Culto da Caveira, saído das cavernas neandertais. O Culto
da Caveira está no cerne da Quimbanda afro-brasileira, e ali os termos baál e avshĕrah
correspondem literalmente a “senhor” e “mulher”. O primeiro é antiga forma suméria de
tratamento exigida pelos exus em geral, nos terreiros brasileiros, e o outro termo, um título
com que se designa a pomba-gira, nesses ambientes. Trata-se do culto popular a Ísis, da
Antiguidade tardia.
O título usado para pomba-gira, “Mulher” (em hebraico: hv,;ai, vem do egípcio: ’Ashĕt: z ;
daí ’Ashĕrh), gramaticalmente, é o feminino de exu: æet, literalmente: “fogosa”.
Estes demônios, os exus (baálim) e a pomba-gira (avshĕrah) são, dentre todos os espíritos,
aqueles designados justamente como “anjos caídos” (nefilim); embora haja uma distorção
neste particípio, que é originalmente um particípio ativo, particípio presente. Que eles
verdadeiramente causaram e ainda mantêm participação no desenvolvimento do processo
civilizatório, em oposição ao sistema tribal totêmico original da espécie sapĭēns e proposto na
Bíblia como estatuto divino.
As tradições teológicas acerca dos “anjos caídos” são lendas e não mitos. Foram tratadas
como mitos apenas por revestirem-se com formas analógicas características do pensamento
totêmico. Trata-se de memórias históricas distorcidas pelo tempo que revelam mais que o seu
conteúdo, se as analisarmos com perspicácia. A cultura que tais tradições revelam ter-se
introduzido com as técnicas religiosas, na sociedade totêmica, foi muito mais que a guerra e a
promiscuidade sexual com o divino. Foram os demônios que geraram a pobreza entre os
homens; mas isto não foi feito através de nenhum ato de mágica, deu-se como um acidente
histórico. Uma consequência, como um resíduo resultante da criação do estado sob a forma
de uma elite clerical, que foi seu objetivo, e o processo civilizatório que ele desencadeou.
A doutrina dos “anjos caídos” e toda a demonologia têm sido manipuladas como apenas um
aspecto político ideológico, com que a Igreja mascara o embuste que é o estado e legitima a
pobreza. A Igreja não se preocupa em compreender o que proclama, desde que os cofres
estejam repletos. Se quisermos estabelecer o fato teológico, o fato teológico total, para
sermos obedientes às lições de Marcell Mauss, necessitaremos inserir o culto aos demônios
em uma cosmovisão abrangente sistemática e sistêmica das diversas questões existenciais
que tais lendas levantam.
Teologicamente também é preciso “recompor o todo”, os aspectos histórico, fisiológico,
psíquico, sociológico e filosófico, porque a compreensão da dimensão teológica deverá
abranger os aspectos material e psicossocial, sob pena de quedar alienada. E como no fato
social total divisado pelo método antropológico, também é necessário que o observador
teológico se encarne existencialmente em uma experiência individual engajada, para realizar
uma interpretação simultânea que contemple a atual vida na terra e o nosso bem futuro.
Lembremos o que diz Lévi-Strauss: “a única garantia que podemos ter de que um fato total
corresponde à realidade, em vez de ser a cumulação arbitrária de detalhes mais ou menos
verídicos, é que ele seja apreensível de uma experiência concreta: primeiro de uma sociedade
localizada no espaço e no tempo (...), mas também de um indivíduo qualquer de qualquer uma
dessas sociedades” (Introdução à Obra de Marcel Mauss, II). A religião é simplesmente um sistema simbólico
significativo. Portanto, ela necessita fazer sentido.
Para estas discussões que aqui se insinuam, propomos tecer-se a mais extensa rede de
significações possível da origem histórica das lendas teológicas, as suas raízes, estruturadas
em uma ampla circularidade hermenêutica, para atualizar uma visão sincrônica do que são os
seus frutos, numa tentativa de encerrar o seu sentido.
Espera-se que o seu sentido não venha a escapar-se pelos buracos de uma rede tão ampla.
Primavera
Para saber o valor de uma árvore, não consideramos suas raízes, mas os frutos que produz.
Assim também deve ser para a vida religiosa.
Émile Durkheim
in Pragmatismo e Sociologia. Florianópolis:UFSC, 2004, p. 147.

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