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S OBRE UMA ENTREVISTA COM O B ARÁ L ODÊ

EM UMA TERREIRA DE U MBANDA B RANCA


DA F RATERNIDADE U NIVERSAL

O Homo sapiens não tem direitos naturais,


assim como aranhas, hienas e chimpanzés não têm direitos naturais.
Mas não conte isso a nossos amos, para que não nos matem durante a noite.

Parodiando Yuval Harari, que parodiou Voltaire.

Porto Alegre
2016
Prólogo
As técnicas de demonismo marcaram a religião antiga. Agora, ressurgiram no Brasil. No
decorrer desta exposição se denunciarão fatos que sugerem a retomada da hegemonia do
poder político perdido pelo demonismo na sociedade humana, como o desenvolvimento
tático de uma ampla estratégia política de longa duração. Uma retomada do poder perdido.
Dentre todos os demônios, a pomba-gira é, certamente, a figura mais notória e marcante do
complexo cultural que designamos por macumba. Minha família materna adotou a macumba
por religião. Todo macho dominante, envolvido no culto, teve sua vida afetiva bastante
sofrida em consequência desta religião. Um dos fenômenos mais marcantes da macumba é a
“surra”, um mecanismo de controle por castigo realizado pelos “espíritos” sobre os seus
cavalos (médiuns) pessoais. Consiste em transe no qual a entidade encorpora e atira o corpo
do seu cavalo contra as paredes, deixando a pessoa completamente batida e esfolada, ao
desencorporar, como castigo por alguma desobediência. Uma forma de tortura física, notória
pelas consequências bem visíveis: hematomas, inchaços e escoriações. Na espécie, o instinto
dos machos leva-os à investigação do território para a proteção das fêmeas e da prole, por
isso costumam ser instintivamente agressivos. Para transformá-los em médiuns dóceis e
obedientes, seus instintos naturais e laços sociais deverão ser destruídos, sua sexualidade
contida e sua liberdade restringida. São pessoas treinadas para obedecer, num processo que
inclui a castração psíquica dos machos alfa (a) e restringe a sua agressividade, permitindo o
controle externo de todo o grupo humano, na comunidade em questão.
Em uma terreira, numa roda de cangira encontramos uma série de indivíduos justapostos,
mas isolados; não há comunidade de fato. Toda relação perpassa pela omnipresente figura
dos guias. A tática básica do demonismo parece ser isolar o indivíduo do grupo para expô-lo à
ação demoníaca; os demônios exercem seu poder sobre os indivíduos que caem isolados do
grupo. Promovem o isolamento de cada um para obter domínio sobre todo o grupo humano.
A ordem estabelecida por mitos está sempre sob a ameaça de colapso, porque os mitos
desaparecem quando as pessoas deixam de acreditar neles, fazendo-se necessárias a coerção
e a violência. Mas coerção e violência necessitam ser disfarçadas sob um manto ideológico. A
extrema crueldade dos demônios revela indícios de uma ampla estratégia política a que falta
entender qual o seu objetivo final. Embora o poder em si mesmo possa ser o seu próprio fim.
Embora a obsecação por exus seja uma constante nesse ambiente, a obsecação da pomba-
gira com machos a é particularmente característica na domesticação e dominação efetuada
através da macumba. A partir de fatos acometidos à vida de parentes meus, homens que
representavam autoridade familiar, minhas reflexões deram-me a perceber o domínio dos
demônios como forma de opressão sobre toda uma comunidade de humanos, e não como
parasitas apenas de indivíduos, da visão medieval. Na conversa com o “exu” do Bará Lodê
descrito neste texto, apresenta-se a queixa contra as atitudes das pomba-giras para com os
homens de minha família. Percebi uma forma mais sutil de “domesticação”: a tortura
psicológica. Como outros homens de minha família, vi-me em situação semelhante à de um
animal domesticado, com a minha vida afetiva destruída e manipulada. Marcado. Ferrado.
INTRODUÇÃO

É o destino das Bíblias não ser lidas com cuidado.


Bertrand Russell

Deparamo-nos, no Brasil, com as três forças religiosas básicas que compunham o cenário
dos séculos finais da Antiguidade, quando o cristianismo assoma sua protagonização. Temos
a religião dos indígenas (quase extinta) baseada no êxtase e, ao lado desta, encontramos o
próprio cristianismo em luta com as religiões pagãs para reocupar o cenário do sagrado;
temos o culto à divindades no culto aos orixás africanos, embora em estágio mais primitivo
de ritualística e teologização que o do mundo mediterrâneo antigo; e, enfim, temos o demo-
nismo cigano, sob a forma da magia negra europeia, modificada por diversos sincretismos
mais recentes, talvez com um formato muito semelhante ao original da Antiguidade.
Ou, talvez, a expressão correta do problema seja que há somente dois tipos básicos de
religião: o monoteísmo e o espiritismo em geral.
Mas algo não diz respeito somente às formas do demonismo brasileiro. Temos na América
Latina uma questão importante esquecida pela Igreja e que não se poderá negligenciar, até
mesmo porque ambas as questões estão ligadas. Trata-se do anúncio evangélico.
A proclamação evangélica, no Brasil, dá-se a partir de uma tradução do texto sagrado.
Quanto à tradução da Bíblia da CNBB, este colegiado está a carecer de bons tradutores
urgentemente. E como o que o povo busca encontrar junto aos demônios, no Brasil, é a sua
própria sobrevivência dentro do sistema capitalista burguês que promove a miséria a níveis
assutadores, os quais podem ser medidos pela excessiva concentração da riqueza e pelos
elevados índices dos lucros dos exploradores da miséria do trabalho e da riqueza da nação,
faz-se mister observarmos a alegada opção pelos pobres dos bispos brasileiros.
A tradução da Bíblia da CNBB, no que respeita à sua opção pelos pobres e à cosmovisão
bíblica de sua tradução, peca já não por omissão, mas por ativamente proteger os interesses
e a cosmovisão dos poderosos, com o tipo de versão que realizou dos respectivos tempos dos
verbos bíblicos para o vernáculo. A pobreza e as classes sociais são dados como um fato.
Esta questão aparece-nos, principalmente, nos capítulos XIV e XV do Livro do Deuteronômio.
O Livro do Deuteronômio é uma complementação e regulamentação do Código da Aliança
(Ex 20,22 - 23,33). Ao contrário das tradições que constituem fontes básicas da Bíblia, sedimentadas
ao longo dos séculos como amálgamas culturais, as compilações Eloísta e Javista, as redações
deuteronomistas foram organizações sistemáticas desses materiais mais antigos. Pressionado
por necessidades militares estratégicas, Israel, uma confederação tribal teocrática, vira-se
obrigado a constituir um rei militar, nos moldes do basileu,j grego, uma vez que um a;nax ( dygIn> ),
semelhante aos que governavam as cidades-estado através de epifanias por encorporação
em sacerdotes médiuns, estaria fora de cogitação ante os moldes peculiares da sua teocracia.
Uma teocracia não exercida por sacerdotes, como a conheceu Flavius Josephus.
No Deuteronômio não há regras para sacerdotes, sua teocracia não é a das cidades-estado.
Somente muito posteriormente, reinando sozinhos após a volta do exílio, os sacerdotes
impõem o dízimo em seu próprio benefício, a ser recolhido pelos levitas, visto por Josephus.
A Igreja nunca esclareceu suficientemente qual a proposta política de Deus para o homem.
A legislação deuteronômica, introduzida pela redação deuteronomista no corpus bíblico,
teve como prioridade básica limitar os poderes políticos do rei e exaltar a teocracia, com uma
ampla transferência do poder à população rural livre, diluindo o poder do estado. Com uma
Lei acima das vontades humanas e de qualquer alteração ou influência, realizava-se uma
forte restrição à monarquia. O poder do estado foi restrito em sua estrutura jurídica também,
limitando a possibilidade de atuação dos tribunais sobre o povo, que nenhum meio tinha
para impor sua vontade. Nas palavras de Frank Crüsemann (A Torá. Petrópolis:Vozes), a reforma
deuteronomista foi um aperfeiçoamento surpreendentemente novo em uma sociedade
estatal, na forma de uma atribuição ampla de poder decisório e responsabilidade ao “povo da
terra” (#r<a;h
, ;, ~[,); , libertado pelo poder da responsabilidade coletiva como vontade de Deus.
Uma pequena crítica genética da tradução do texto do capítulo XV do Livro do Deutero-
nômio esclarecerá nosso problema de tradução bíblica. No cap. XV, v. 4, se apresenta a ordem
divina quanto aos pobres: “Nada, pois, não haja em ti de pobre, pois abençoar abençoa-te
Jahvé, na terra que Jahvé teu Deus deu-te de herança, por seres pobre” (cf. TM publicado por Oral Roberts.
EVANGELIIPRESS:Örebro, 1957). Não obstante a ordem divina ser totalmente clara e precisa, é comum se

encontrar a aberrante contradição à Sua própria ordenança, colocada na boca de Deus pelos
tradutores bíblicos, no v. 11 do referido cap. XV, dizendo: “Uma vez que nunca deixará de
haver pobres na terra, eu te dou este mandamento: abre tua mão para teu irmão, teu
necessitado, teu pobre em tua terra” (trad. da CNBB, imprimatur do cardeal D. Raymundo Damasceno de Assis; Brasília/São
Paulo:Canção Nova). Assim, após ordenar que não haja absolutamente pobres no meio de Seu povo,

Deus teria afirmado que “nunca deixará de haver pobres”; quando não é verdadeira esta
tradução. O v. 11 do cap. XV do Livro do Deuteronômio diz bem o contrário (cf. TM, op. cit.).
Eis os textos comparados lado a lado:
> ^c,r>a;B. ^n>yOb.a,l.W ^Y<nI[l; ; ^yxia;l, . ^d>y<:-ta, xT;p.Ti x:top,; rmoale ^W>c;m. ykinOa;, !Ke-l[; #r<ah,; ,; br<Q,mi !Ayb.a, lD:x.y-< aOl yKi VAnoi,gwn avvoi,xeij ta.j cei/ra,j sou tw/| avdelfw/| sou pe,nhti kai. tw/| evpideome,nw| tw/| evpi. th/|j gh/|j sou)
non deerunt pauperes in terra Habitationes tuæ idcirco ego præcipio tibi Es werden allezeit arme senn im lande: darum gebiete ich dir, und fage, daß du
ut aperias manum fratri tuo egeno et pauperi qui tecum versatur in terra deine hand austhuft deinem bruder, der bedrangt und arm ist in deinem lande.

Em uma análise crítica genética do versículo 11 do cap. XV do Livro do Deuteronômio,


vemos que o texto massorético apresenta o verbo ld:x;: acabar, cessar, no imperfeito Qal,
que os LXX traduziram para o grego pelo subjuntivo do aoristo de evklei,pw: faltar, deixar;
trata-se do seu exato correspondente gramatical (cf. Septuaginta editada por Alfred Rahlfs; DEUTSCHE BIBELGESELLSCHAFT,
Stuttgart:1935). Em hebraico, temos o uso do imperfeito para expressar os aspectos subjuntivos do

verbo, mas esta forma representa antes as formas imperfeitas do indicativo, como vemos na
Vulgata. São Jerônimo verteu o imperfeito hebraico pelo presente do indicativo do verbo
latino de$sum, faltar (cf. 3ª ed. de Robertus Weber OSB; DEUTSCHE BIBELGESELLSCHAFT, Stuttgart:1969). Ainda Martinho Lutero o
traduziu pelo Indikativ Präsens do alemão: wer’den, ficar, tornar-se; segundo uma edição de
1874, a mais antiga que pudemos consultar. Pode-se mesmo dizer que todas estas antigas
traduções respeitam os modernos conhecimentos de semântica da linguística estruturalista,
recentemente descobertos no século XX. Trabalharam num quarto nível de representação.
Este é o sentido próprio desta conjugação verbal, que assim não apresenta contradição
com o v. 4 e a ordenança para que não haja pobres no meio do Povo de Deus. Na verdade,
existe uma subordinação da realidade expressada condicionada pelas circunstâncias de uma
realidade presente e sobre a qual existe uma expectativa de mudança futura, ou seja, trata-
se de uma expressão subjuntiva, cuja forma no hebraico é, então, o imperfeito (com vau
conversivo, trata-se do presente imperfeito usado como forma narrativa; no português usa-
se o presente histórico para uma narrativa, i. e., o presente simples). Os LXX usaram natural-
mente o aoristo, o tempo narrativo grego, e ainda usaram o modo subjuntivo. No português,
por exprimir uma forma de ação inacabada, o presente simples expressa a expectativa da
incerteza. Por outro lado, nas sucessivas versões brasileiras, em português, sua tradução
pelo futuro imperfeito do indicativo, acabou com toda expectativa para o Povo de Deus,
ante a apresentação do mandamento divino, porque com o futuro imperfeito do indicativo,
na língua portuguesa, faz-se para nós uma indicação positiva absoluta; quando, ao invés
disso, no português, deve-se usar o presente do indicativo para repetições eventuais.
Então, as traduções bíblicas brasileiras para o português, e aí se inclui a tradução da CNBB,
apresentam este verbo hebraico vertido pelo futuro imperfeito e não pelo presente do
indicativo, contrariando as mais antigas traduções acima apresentadas. Encontramos esta
mesma situação em quase todas as traduções feitas no Brasil. E, também assim, na tradução
editada pela CNBB, como vemos no Livro do Deuteronômio traduzido pelo frei Ludovico
Garmus o.f.m. e supervisionada pelo pe. Johan Konings s.j., o v. 11 contradiz o v. 4, no cap. XV.
Eis o texto da tradução da CNBB, segundo, já, a décima terceira reedição, que tenho em
mãos: “. . . do teu irmão. A este farás a remissão 4para que não haja pobres em teu meio.”; e,
logo: “ 11Uma vez que nunca deixará de haver pobres na terra, . . .” (g. n.). Temos, aí, um Deus
descrente de si mesmo e da obediência de sua criatura, a quem determina que não hajam
pobres na terra, mas, logo depois, teria afirmado que eles nunca desaparecerão. Porém, tal
proposição não é verdadeira, como nos atestam as versões dos LXX, de São Jerônimo e do Dr.
Martin Luther.
As consequências deste erro para a interpretação do Evangelho, influenciando-se em ciclos
de contínuos retornos, foram desastrosas, como haveremos de constatar.
A única honrosa exceção a esta série de erros, que são as traduções bíblicas modernas
editadas no Brasil, está na Edição Pastoral da editora Paulus, com imprimatur de D. Luciano
Mendes de Almeida, de 1991, e traduzida por Ivo Storniolo e Euclides Martins Balancin. Mas,
apesar deste acerto louvável, esta tradução bíblica não é uma boa tradução do original, no
seu conjunto está muito longe disso, não distoando das demais. Mas está correta no aspecto
deste verbo nesta passagem. A Bíblia Edição Pastoral diz, numa terrível paráfrase: “Veja
bem! Não faltam indigentes na terra. É por isso que eu ordeno a você: abra a mão em favor
do seu irmão, do seu pobre e do seu indigente na terra onde você está” (São Paulo:Paulus). Toda a
tradução é tão ruim, do ponto de vista paleográfico, no mesmo nível das demais traduções
brasileiras, que mais parece terem acertado por acaso. Nem a tradução da Bíblia da CNBB,
que com sua tradução agride flagrantemente a Teologia da Libertação e acaba contradizendo
a “opção pelos pobres” por ela mesma propalada, ou nenhuma outra tradução bíblica no
Brasil, quer seja católica ou protestante, apresenta coerência entre os vv. 4 e 11 do cap. XV do
Livro do Deuteronômio.
Aparentemente, essa leitura foi introduzida na cosmovisão brasileira por João Ferreira de
Almeida. E, certamente, na cosmovisão portuguesa; embora não possamos de antemão afir-
mar que o problema tenha persistido nas traduções de Portugal, como persiste cá entre nós.
Parece tratar-se de influência inglesa sobre a cosmovisão do primeiro tradutor português.
Embora não tivéssemos acesso à versão de Almeida de 1753 e se tenha usado uma edição de
1819, e tampouco às traduções da Vulgata de John Wycliffe e dos textos originais de William
Tyndale, pudemos consultar a versão de Genebra, de 1560, e a Versão Autorizada pelo rei da
Inglaterra, de 1611, e ambas vertem o imperfeito Qal do hebraico, em ld:x; , pelo indefinite
future do sistema verbal inglês. Aqui temos ambos os vv. 11 das respectivas traduções:
A Bíbla de Genebra A versão autorizada de 1611
Becaufe there fhalbe euer ∫ome poore in the land, therefore I commande thee, For the poore shall never cease out of the land:
faying, Thou fhalt open tine hand vnto thy brother, therefore I command thee, laying, Thou shalt open thine hand wide unto thy brother,
to thy nedie, and to thy poore in land. to thy poore, and to thy needy in the land.

Ao final do século XVI, os protestantes ingleses estavam descontentes com a sua Bíblia.
A Bíblia de Genebra foi produto da comunidade de burgueses ingleses que atravessara o
canal da Mancha, em fuga para a Suíça, escapando da católica Mary Tudor, a Sanguinária,
reunidos ao comando de John Knox. Em 1603, o rei James VI, da Escócia, tornou-se rei da
Inglaterra e tentou suplantar esta tradução bíblica com a sua versão autorizada, de 1611.
Após obtido o apoio ao trono pelos burgueses egressos retornados à Inglaterra, James I
concedeu-lhes mera revisão da Bíblia dos Bispos, de 1568, isenta dos comentários protes-
tantes da Bíblia de Genebra; esta permanecendo popular, tornou-se a Bíblia dos Puritanos.
João Ferreira de Almeida nasceu em Torres de Tavares, Portugal, em 1628, e foi ordenado
ministro pela Igreja Reformada Holandesa, em 1656. Publicou o Novo Testamento traduzido
do Textus Receptus de Erasmus de Roterdam, em 1681. Após a morte de Almeida, o Antigo
Testamento em português veio à luz, em 1753, completado por Jacobus op den Akker, na
Batávia (ilha de Java), publicada pela Companhia Holandesa das Índias Orientais.
Na tradução para o português, João Ferreira de Almeida verteu: “Pois nunca cessará o
pobre do meyo da terra: polo que te mando, dizendo: abrindo abriras tua maõ a teu irmaõ, a
teu affligido, e a teu pobre em tua terra” (Londres:1819). Almeida usa o futuro imperfeito do
indicativo, o que, possivelmente, tenha sido efeito da influência destas traduções inglesas.
Surpreendente é que o pe. Antônio Pereira de Figueiredo, na tradução do latim, também use
o futuro imperfeito do indicativo: “Não faltarão pobres na terra que has de habitar: por isso
eu te ordeno, que abras a mão para teu irmão necessitado e pobre, que vive comtigo no
mesmo paiz”. Desta tadução obtivemos somente uma reedição de 1902 da edição de 1842,
aprovada pela rainha de Portugal, Dna. Maria I, (Lisboa:Depósito das Escrituras Sagradas).
Vemos que todos os tradutores cristãos, quase sem uma única exceção, aparentemente
por simples falta de entendimento do funcionamento do tempo no sistema dos verbos em
hebraico, desvirtuaram a teologia do Livro do Deuteronômio, aqui nessa passagem, em uma
cosmovisão que representa ideias impensáveis para cristãos no Brasil e na América Latina do
terceiro milênio, por sua opção pelos pobres ter grande base principalmente nas reformas
efetivadas com a legislação deuteronômica do antigo Israel.
O entendimento do sistema verbal hebraico é um problema de particular significado.
A Massorah foi o verdadeiro berço da gramática hebraica. O elo que ligou os massoretas e
os gramáticos medievais foi indubitavelmente Aarão ben Moisés ben Asher. Ben Asher foi
descendente de uma família de massoretas que pode ser rastreada através de seis gerações.
A sua última revisão da Massorah formou a base para nosso presente texto massorético.
Contudo, sua teoria sobre formas gramaticais já mostra influência do árabe. Depois dele,
entre os principais gramáticos da Idade Média, vem Saadia ben Joseph, o Gaon, que viveu
em ambiente árabe e foi versado em erudição árabe, sua dependência de gramáticas árabes
é bem evidente. Mas o sistema de raiz triliteral foi desconhecido para Saadia Gaon e não foi
inteiramente descoberto até o tempo de Judah Hiayynj, cerca de 1000 a.D. Ibn Ezra e Kimhii
consideraram-no como “o príncipe dos gramáticos”. Hiayynj foi quem primeiro introduziu a
designação das letras da raiz como o Pe$, o Ayin e o Lamed da raiz arábica 7<&k.
Cerca de 1150 a. D., uns 250 anos depois de Saadia Gaon, David Kimhii produziu a primeira
gramática contendo as sete conjugações verbais familiares aos hebraistas hoje. Nessa época,
Abraham ibn Ezra foi o gramático que mais fomentou o estudo do hebraico na Europa. Em
Roma, Ibn Ezra produziu uma gramática, em bom hebraico, baseado pela maior parte sobre
fontes árabes. Judah Hiayynj adotou a raiz l[p no paradigma padrão direto dos gramáticos
árabes, e Ibn Ezra mudou-a por lmv, enquanto Kimhii adotou dqp e, após isto, foi mudada
para ljq por J. A. Danz, em sua gramática de 1696 (Hebrew Language). Moisés Kimhii, irmão de
David, escreveu a Miklol, uma pequena gramática que Elifas Levita (Elijah Bakhur, ca. 1505)
anotou e tornou-se a muito amplamente usada “gramática hebraica elementar” entre os
eruditos protestantes e católicos da Europa, após ter sido traduzida para o latim por
Sebastian Münster, seu discípulo, em 1531.
Na era moderna, a pesquisa sobre a gramática hebraica caiu em mãos cristãs a partir das
gramáticas de Conrad Pellicanus (1504) e Johann Reuchlin (1506), com o advento do Humanis-
mo. A Igreja nunca revelara nenhum interesse pelo texto bíblico original antes da Reforma
Protestante. Os eruditos cristãos, e especialmente Sebastian Münster, tomaram de Elifas
Levita seus conhecimentos que, basicamente, transmitiu o conhecimento da família Kimhii.
Este foi o caso, em Cambridge, do leitor de hebraico do rei da Inglaterra, Paul Fagius. Depois
de Levita o estudo de gramática hebraica declinou entre os judeus. A pesquisa na gramática
hebraica passou para mãos cristãs desde este período e permaneceu aí pelos próximos
séculos. Durante a Idade Média, os estudos comparativos haviam sido feitos pelos judeus a
partir do árabe, que é língua paupérrima no aspecto verbal e, como o hebraico, não possui
tempos verbais propriamente, mas, apenas, os dois modos, perfēctum e infēctum.
O descontentamento dos burgueses modernos com o sistema verbal hebraico entregue
pelos judeus medievais começou em meados do século XVIII, ao Johann Simonis declarar, em
1753: “Nē quidem Deus tempus praeterĭtum in futūrum convērtĕre possit”, referindo-se à
ainda hoje controvertida questão do “vau conversivo”. Já, então, ninguém compreendia
mais os textos das Santas Escrituras. E os gramáticos hebraístas, simplesmente, não enten-
dem ainda hoje o vau conversivo. Foi apresentada uma exposição sobre a função conversiva
do vau consecutivo em meu Livro de Ruth, em 1999. As gramáticas de hebraico europeias
eram escritas em latim, naquela época, mas em 1593 John Udall traduziu para o inglês a
gramática de Pierre Martinez (Paris:1567). Começaram, então, a aparecer gramáticas de hebraico
em língua inglesa. Assim, John Davis traduziu para o inglês, em 1656, a gramática de Johann
Buxtorf, da edição de 1653.
Devido à impropriedade da língua inglesa para a perfeita compreensão do sistema verbal da
língua hebraica, a partir da teoria de N. W. Schröder (Institutiones ad fundamenta linguæ Hebraicæ in usum
studiosæ juventutis : 1766), de Gröningen, começará uma tremenda confusão na compreensão desse

sistema, por conta dos tradicionados sistemas verbais inglês e árabe não esclarecerem o
problema do sistema de tempos verbais hebraicos, especialmente para as línguas românicas
europeias. Como nem o árabe e nem o inglês davam conta de o esclarecer, na Europa
abandonou-se aquele falível sistema verbal baseado nos tempos, legado pelos gramáticos
medievais judeus, passando os gramáticos burgueses a uma balbúrdia de propostas para
resolver o sistema verbal hebraico a partir do sistema verbal inglês. Schröder adotou um
ponto de vista relativo para a significação do futuro em sua interpretação do imperfeito, mas,
ainda, concebia o sistema verbal hebraico como um sistema de tempos. Embora H. F.
Wilhelm Gesenius tenha feito grandes avanços nas treze edições de sua gramática, em
alemão, de 1813 a 1842, a confusão foi geral até o final do passado século XX.
Dois orientalistas, Samuel Lee, professor em Cambridge, e o nobre e agitador von Ewald,
surgem com seus novos estudos, engenhosos, porém, mirabolantes. De origem pobre, o
reverendo Samuel Lee tornou-se, em 1831, vigário de Banwel e Regius Professor de hebraico.
Publicou uma versão da Peshitta (The Syriac Old Testament, 1823). Após estudos sobre a gramática
árabe, impressionado com a diferença entre os modos de pensar oriental e o ocidental, ele
rejeitou termos e categorias latinos e gregos para explicar a língua hebraica. Para tomar o
imperfeito como um tempo presente, ele faz distinção entre “tempo futuro” e “significação
futura”, porque todo início de ação deve ser presente; também, suprimiu a função conversiva
do vau. Escorpiano típico, o filólogo Georg Heinrich August von Ewald, ativista político e autor
de muitos panfletos, em sua Kritische Grammatik introduziu os termos Perfeito e Imperfeito,
tornando demarcatório de uma nova fase nos estudos bíblicos o ano de 1827 e inaugurando
uma nova era na filologia bíblica; mas introduziu também o conceito de tempo relativo, e um
vau relativo. Foi, também, neste mesmo ano que Samuel Lee apresentou sua teoria do
sistema verbal hebraico totalmente desenvolvida (in Prefácio de 1827 de A Grammar of Hebrew
Language). A principal diferença entre Lee e Ewald era que enquanto Lee estava pensando em
termos de tempo Relativo e Absoluto, Ewald pensava em termos de aspecto/modo de ação
Relativo e Absoluto. O modelo inspirador fora, ainda, constantemente a gramática árabe.
Tal situação seguiu numa sequência de desatinos, até Samuel Rolles Driver, no século XIX,
que influenciou o mundo moderno popularizando a teoria dos tempos relativos de Ewald,
mais que qualquer outro estudioso. Assim, os gramáticos levavam os teólogos a perderem-se
do que nunca houveram encontrado, desde os estudos massoréticos, ao início da Idade
Média.
Com a destruição do templo de Jerusalém, o projeto demonista, emanado do panteão
romano e liderado pelo numĕn imperial, como oposição à religião divina, conseguiu manter
o verdadeiro teor das Santas Escrituras judaicas desconhecido da Cristandade e das nações
burguesas cristãs. Somente o sopro do Espírito manteve os cristãos no caminho da verdade
durante dois milênios; houveram muitos percalços.
Perdida a compreensão mais exata da mensagem da Palavra, após a queda de Jerusalém,
durante dois mil anos, lutou-se século a século para trazer à luz a compreensão do plano de
Deus que ordenou ao Seu povo a instituição de uma sociedade senão sem classes, ao menos
sem pobreza, através de um comunismo econômico, cujo mecanismo é o dízimo templário,
conforme podemos ver no cap. XIV do Livro do Deuteronômio.
O movimento de retribalização das tribos de Israel, após a fuga do Egypto, teve uma
incipiente análise feita pelo teólogo marxista norte-americano Norman Gottwald (As Tribos de
Jahweh – uma sociologia da religião de Israel liberto, 1250-1050 a. C.; São Paulo:Paulinas), revelando uma forma de

organização social que se fez compreender somente à luz do atual conhecimento antropo-
lógico e sociológico do século XX. E, especialmente, através de uma pequena obra produzida
pelo discípulo de Claude Lévi-Strauss, Pierre Clastres, intitulada A Sociedade contra o Estado
(Rio de janeiro:Francisco Alves), onde se analisa a estrutura tribal geral, a partir de algumas sociedades

tribais neolíticas latino-americanas. A volumosa obra de Gottwald sequer descortinara o


imenso horizonte apontado pelo minúsculo opúsculo de Clastres.
A sociedade tribal totêmica não compreende e nem admite a pobreza ou classes sociais.
Entrementes, para os gramáticos deste século e para a tradução da Bíblia, somente com o
deciframento dos textos da pedra de Roseta, pelo jovem Jean-François Champollion e o
início dos estudos da gramática egípcia, um novo modelo se apresentou ao estudo compa-
rado do sistema verbal hebraico bíblico, além do árabe, siríaco e aramaico: a teoria do com-
glomerado linguístico de sir Godfrey Rolles Driver, no século XX. Comparando o sistema
verbal hebraico, reconhece-lo-emos no sistema egípcio, na forma mais simples do egípcio
falado pelo povo. Alí pode-se ver que o imperfeito hebraico deve ser normalmente traduzido
pelo presente do indicativo na língua portuguesa. Tenho exposta uma teoria sobre o sistema
verbal bíblico, constituído a partir da forma ativa do modo circunstancial do sistema verbal
egípcio, em meu Tratado de Demonologia (ed. DIVINO ESPÍRITO SANTO : Manifestações Teofânicas; 2007).
Durante a Antiguidade, os cristão trataram de interpretar as Santas Escrituras judaicas a
partir de suas próprias produções e cosmovisão. A cosmovisão política metafísica burguesa
introduzida na leitura do texto hebraico do Antigo Testamento pelas versões inglesas
modernas fora, por sua vez, um reflexo ideológico da interpretação metafísica clássica do
texto grego do Novo Testamento da Vulgata Latina, de São Jerônimo. Assim, em uma
recorrentemente citada passagem do Evangelho passou-se a introduzir assiduamente a
cosmovisão de classes do estado, identitária e estereotipada; tal coisa somente pode ser
compreensível se considerarmos tratar-se de uma cultura que desconhecia os sistemas
tribais que encontrava em sua expansão.
Agravo ignominioso veio a abater-se sobre o mundo com a expansão comercial e logo
imperialista das nações europeias burguesas, que tratavam de destruir os sistemas tribais
pelo processo de colonização, exploração oprobriosa e aculturamento a que deram o nome
odioso de “evangelização”. Uma perversão motivada pela cobiça.
Assim diz o texto do Evangelho (Jo 12, 8):

tou.j ptwcou.j ga.r pa,ntote e;cete meqV e`autw/n( evme. de. ouv pa,ntote e;cete) pois os pobres em qualquer ocasião tendes convosco, eu, porém, nem toda vez tendes
.
Nesta passagem, o advérbio de modo pa,nqote: a cada vez, em qualquer ocasião, retirado
do contexto de um presente vivido condicionalmente, passou a ser vertido, inadvertida-
mente, por: SEMPRE, com o sentido de tempo infēctum. E, mais do que isso, como um
perfēctum prōfĭtum bíblico, ou seja, como uma promessa que se realiza. Passou-se, assim, à
afirmação contrária, pela identidade estereotipada da existência da pobreza, como uma
condição futura indeclinável para toda organização social humana. O adjunto adverbial de
modo “sempre”, em grego, seria: VAei, $aivei,%, com o significado de modo: o que existe
continuamente, sucessivamente, e não pa,nqote. Na tradução da Vulgata, São Jerônimo
verteu o advérbio grego pa,nqote pelo advérbio latino semper, cujo significado é: de uma vez
por todas, para sempre, sem cessar, sempre. E que daí passou para as traduções da Reforma
Protestante, como, igualmente, em inúmeros outros vícios da tradução da Vulgata, São
Jerônimo foi copiado pelos modernos.
Não por acaso que a atual situação permite à Igreja apropriar-se do montante dos dízimos.
Trata-se da ideologia do estado demonista com a sua cosmovisão de classes que contradiz
não apenas a teologia do Antigo Testamento, mas, escandalosamente, o texto grego do
Evangelho. Esta distorção do texto grego, uma vez introduzida por São Jerônimo com a
Vulgata, passou, posteriormente, à influenciar a interpretação do texto hebraico do Antigo
Testamento pelos tradutores modernos. Trata-se de uma mundivisão metafísica burguesa,
um equívoco ideológico cristão, e um entrismo demonista contrário aos propósitos divinos
estabelecidos no Seu projeto realizado na Criação e instituído originalmente pela Sua Lei.
Mas equívoco estabelecido nos textos das edições bíblicas em línguas modernas.
Todo crente evangélico cita de memória qualquer versão desta passagem (sinóticas: Mc 14, 7;
e Mt 26, 11) para justificar o seu egoísmo e as suas omissão e alienação políticas. Alienação

política que deixa os seus pobres desassistidos do principal dispositivo bíblico de superação
da pobreza por meio de redistribuição: o dízimo.
Tornou-se hábito nas igrejas proclamar o dízimo como deposição de ofertas no templo,
para ali ser acumulado, sem uma noção clara de finalidade. Mas o Livro do Deuteronômio,
em uma autêntica legislação social, prescreve que o dízimo seja levado ao Templo e
distribuído pelos levitas nos portões das cidades, para ser consumido pela comunidade, e
especialmente com os pobres, numa espécie de potlach, por ocasião das grandes festas.
Entregue ao clero somente a cada três anos, apenas para ser compartilhado com os pobres.
Como forma de potlach, trata-se ainda da Lei consuetudinária tribal se impondo ao estado.
O Código Deuteronômico foi uma ampliação do Código da Aliança em uma constituição
política baseada na igualdade e na fraternidade dos pares, somente comparável, segundo
Frank Crüsemann, às modernas constituições burguesas. Ambos os códigos foram integrados
em uma nova unidade, com uma linguagem teológica nova: o Livro do Deuteronômio
introduziu o dízimo no corpus bíblico como uma taxa social direta. Tal empreendimento,
conduzido pelos patrĭbus-familĭås abastados, foi uma medida adotada em substituição ao
imposto estatal, regalia combatida desde o início da monarquia em Israel, somente obtido
pela ascenção ao trono de um rei menino: Josias, aos oito anos de idade; manipulado pelos
senhores da terra.
A base social do direito hebraico surgido na época da monarquia, entendido como o direito
mosaico, foi singular por responsabilizar todo o Israel pelo direito e pela justiça, tirando o
direito das mãos do estado e confiando-o ao povo. Infelizmente, hoje Israel não dá mostras
de elevada compreensão da justiça, como podemos ver através da questão palestina.
O dízimo, retido hoje pelo clero, é prescrito, pela Lei Deuteronômica, para a partilha com
os pobres. No entanto, hoje, a avareza cúpida do clero expropria os pobres dos benefícios do
dízimo e permite-lhes apropriar-se de quantias de dinheiro significativas por seu volume,
para gerar uma classe abastada de ricos dentro da própria Igreja e impérios financeiros.
Deve ser desestimulante para o ardor evangélico de certos pastores saber que menos de
um quarto do valor do dízimo era destinado ao clero. Menos de 0,02 % do total. Uma vez que
o destino prioritário do montante arrecadado era a partilha com as viúvas e os órfãos.
Se vícios foram introduzidos no texto bíblico também pelos novos tradutores da moderni-
dade, quanto à cosmovisão divina e a dos hagiógrafos sobre sociedade e economia, no que
respeita à questões do demonismo, então, já desde a Antiguidade o problema vinha sendo
paradoxalmente mal compreendido, ou, ao menos, muito mal explicado pela Igreja. Nunca
se traduziu o termo baál; nem os LXX, nem S. Jerônimo e nem os modernos. Na tradução do
termo avshĕrah se confundiram a entidade com seu ídolo ou com seu bosque.
Em conformidade com a realidade espiritual da igreja brasileira da atualidade, é um fato
ignorado por todos os tradutores brasileiros o quanto a cosmovisão propriamente bíblica
diferencia-se das suas próprias cosmovisões alienadas. A realidade brasileira atual requer
que se traduza gramaticalmente o vocábulo nefilim (em Gn 6.4) por “arriadas”, e para os seus
análogos baál e avshĕrah, os termos exu e pomba-gira, em uma contextualização semântica
deduzida e não intuida, necessária no atual cenário brasileiro.
No Brasil, ressurgiu o pré-histórico Culto da Caveira, saído das cavernas neandertais. O
Culto da Caveira está no cerne da Quimbanda afro-brasileira, e ali os termos baál e avshĕrah
correspondem literalmente a “senhor” e “mulher”. O primeiro é a forma de tratamento
exigido pelos exus em geral, nos terreiros brasileiros, e o outro termo, um título com que se
designa a pomba-gira, nesses ambientes. No texto a seguir veremos a etimologia destes
vocábulos.
Este texto propor-se-á a demonstrar que são exatamente estes demônios, os exus (baálim)
e a pomba-gira (avshĕrah), dentre todos os espíritos, aqueles designados justamente como
“anjos caídos” (nefilim); embora haja uma distorção neste particípio, que é originalmente um
particípio ativo, particípio presente. Que eles verdadeiramente causaram e ainda mantêm
participação no desenvolvimento do processo civilizatório, em oposição ao sistema tribal
totêmico original da espécie sapĭēns e proposto na Bíblia como estatuto divino.
As tradições teológicas acerca dos “anjos caídos” são lendas e não mitos. Foram tratadas
como mitos apenas por revestirem-se com formas analógicas características do pensamento
totêmico. Trata-se de memórias históricas distorcidas pelo tempo que revelam mais que o
seu conteúdo, se as analisarmos com perspicácia. A cultura que tais tradições revelam ter-se
introduzido com as técnicas religiosas, na sociedade totêmica, foi muito mais que a guerra e
a promiscuidade sexual com o divino. Foram os demônios que geraram a pobreza entre os
homens; mas isto não foi feito através de nenhum ato de mágica, deu-se como um acidente
histórico. Uma consequência, como um resíduo resultante da criação do estado sob a forma
de uma elite clerical, que foi seu objetivo, e o processo civilizatório que ele desencadeou.
A doutrina dos “anjos caídos” e toda a demonologia têm sido manipuladas como apenas
um aspecto político ideológico, com que a Igreja mascara o embuste que é o estado e
legitima a pobreza. A Igreja não se preocupa em compreender o que proclama, desde que os
cofres estejam repletos. Se quisermos estabelecer o fato teológico, o fato teológico total,
para sermos obedientes às lições de Marcell Mauss, necessitaremos inserir o culto aos
demônios em uma cosmovisão abranjente e sistematica das diversas questões existenciais
que tais lendas levantam. Teologicamente também é preciso “recompor o todo”, os aspectos
histórico, fisiológico, psíquico, sociológico e filosófico, porque a compreensão da dimensão
espiritual deverá abranger os aspectos material e psicossocial, sob pena de quedar alienada.
E como no fato social total divisado pelo método antropológico, também é necessário que
o observador teológico se encarne em uma experiência individual engajada, para realizar
uma interpretação simultânea que contemple a atual vida na terra e o nosso bem futuro.
Lembremos o que diz Lévi-Strauss: “a única garantia que podemos ter de que um fato total
corresponde à realidade, em vez de ser a cumulação arbitrária de detalhes mais ou menos
verídicos, é que ele seja apreensível de uma experiência concreta: primeiro de uma
sociedade localizada no espaço e no tempo (...), mas também de um indivíduo qualquer de
qualquer uma dessas sociedades” (Introdução à Obra de Marcel Mauss, II). A religião é simplesmente um
sistema simbólico significativo. Portanto, ela necessita fazer sentido.
As discussões que aqui se apresentam, acerca de uma entrevista com o Bará Lodê, se
propõem a tecer a mais extensa rede de significações possível da origem histórica das lendas
teológicas, as suas raízes, em uma ampla circularidade hermenêutica, para atualizar uma
visão sincrônica, que são os seus frutos, numa tentativa de encerrar o seu sentido.
Espera-se que o seu sentido não tenha escapado pelos buracos de uma rede tão ampla.
Primavera
SOBRE UMA ENTREVISTA COM O BARÁ LODÊ
EM UMA TERREIRA DE UMBANDA BRANCA DA FRATERNIDADE UNIVERSAL

Assim, toda árvore boa frutos bons produz, mas a árvore podre frutos maus produz.
Não pode árvore boa dar maus frutos, nem árvore podre frutos bons.

Mateus, 7,17-18

Para saber o valor de uma árvore, não consideramos suas raízes, mas os frutos que produz.
Assim também deve ser para a vida religiosa.
Émile Durkheim*

– Ciente de uma dama francesa ter dito que o “eu” é um assunto odioso, não saberia como falar com
realismo dos fatos sem apresentá-los de meu próprio ponto de vista. Busco uma narrativa descritiva,
para transmitir uma ideia pura e essência de fatos, sem sutilezas desviantes do sentido. Nem sempre
será possível evitar as finezas das interpretações, mas tentarei realizar uma descrição, ou já antes, nos
termos de Paul Ricoeur, uma “inscrição”: uma interpretação com descrição. E tentarei, ainda, realizar
uma descrição sagaz em profundidade, como o requer uma descrição “densa”, nos moldes da mais
moderna etnografia. Tal tarefa requer a arte de expressar o óbvio, que é o que se perdeu nas sutilezas
da finesse acadêmica, ou seja, expressar o senso comum do povo, o saber local. Por isso, torna-se
inevitável partir de minha experiência concreta com os demônios, ao problematizar a macumba: a
essência da macumba é o Mal. Como todo o povo brasileiro, que a experimenta e nestes termos se
expressa francamente, eu sinto e vivo isso! Conhecer a macumba causou-me uma dor inexprimível.
Esta inexplicável dor causada pela macumba possui causas e algozes sobrenaturais. É estupefaciente
conhecer a magnitude do poder sobrenatural da magia e é, ainda mais, aterrorizante ver a sua
capacidade para o Mal, e a natureza maléfica dos demônios. Todo demônio é um Satan. É criminoso
que a Igreja, criada para ser o farol da humanidade, promova a magia, a macumba e o demonismo
como religião, como o vem fazendo na mídia, através de bispos macumbeiros ou da divulgação de uma
suposta pluralidade religiosa. Existem de fato inúmeras seitas monoteístas, mas podem ser
identificadas em sua maior quantidade e todas as mais expressivas, e rastreadas em sua origem na
História como “Religiões do Livro”. Assim como existem diversas formas de cultos baseados em
técnicas sonambúlicas, e também estas podem ter sua origem localizada na História, sua origem está
na Pré-História. E o choque cultural que vivemos até hoje e que deu origem à História das Religiões
pode, também, ser localizado em sua origem: o seu confronto mais polêmico deriva do encontro das
culturas neandertal e sapĭēns às margens sudeste do mar Mediterrâneo, desde as cavernas da Judeia
até o delta do rio Nilo, onde Menés, o unificador, estabeleceu as fundações de Mênfis, antigo centro
religioso e necrópole do Egypto primitivo transformada em capital do Império Antigo.
*
in Pragmatismo e Sociologia. Florianópolis:UFSC, 2004, p. 147.
Mas, acima de tudo, é frustrante, é tremendamente frustrante perceber que todas as melhores
intenções acalentadas nos recônditos do coração nunca passaram de ilusões produzidas por desejos
vãos. Anseios de justiça não encontram paz. Não existe amor, mas desengano. Terror político.
Para expor o terror político a que passei a ser submetido pelo Bará do cacique de uma terreira da
Fraternidade Branca Universal sediada na cidade de Pelotas, mandado por pomba-gira, tentarei tecer
uma rede significativa de circularidade sincrônica e diacrônica contextualizando minha história pessoal
dentro do processo histórico da humanidade referente à história das religiões. A história das religiões é
um fenômeno dialético gerado pela oposição da mentalidade totêmica sapĭēns às práticas mágicas.
Uma luta entre as forças do bem, como tentativa de ordenamento, e as forças desagregadoras do mal.
Caí nisso! Fui pego pelo Diabo e não vejo maneira de escapar. O espiritismo para mim, a partir de
minha experiência de vida, é como uma droga: faz de mim dependente e dá, somente, uma satisfação
que não é verdadeira. Sinto-me abandonado pela Igreja; na verdade é muito pior que isso e é por isso
que escrevo: a Igreja não tem mais noção da existência real do Mal espiritual e do que sofre uma
pessoa padecente de mediunidade. Estou em maus lençois, muito maus lençois, e ninguém percebe.
Nas igrejas evangélicas se espera que as pessoas resolvam todos os seus problemas através de um
simples reajuste de suas representações existenciais. E na Igreja Católica espera-se que eu desapareça
e deixe de incomodar; tenho ouvido isso em muitos institutos e paróquias e dioceses. Então fico
pulando de igrejas evangélicas para terreiros e de centros espíritas para igrejas, novamente. Não
consigo escapar dos demônios. ¿Como pode a Igreja ficar apática ante um caso de demonismo?
Carente da proteção da Igreja em minha juventude, em virtude da inépcia dela em elaborar o seu
discurso, passei a denunciar à sociedade civil a perseguição que sofria da parte dos demônios. E, por
força da publicação de minhas críticas, fui severamente agredido espiritualmente por uma pomba-gira,
num gesto político de terror. Uma cratofania, conforme conceito elaborado por Mircea Eliade (Tratado de
História das Religiões), uma manifestação real de poder. Um ato concreto de exercício de poder: opressão.
Tenho ante meus olhos o livro de Brian Levack, A Caça às Bruxas (Rio de Janeiro:ed. Campus), com algumas
tabelas. Estimando por baixo, ele afirma que se processaram mais de 100.000 pessoas, na Europa
(desconheço as cifras para o Novo Mundo), tendo a metade dos processos resultado em execuções.
¿Dá prá imaginar uma situação dessas? À página 23 ele informa que “274 foram executadas por
bruxaria no bispado de Eichstätt em apenas um ano” e que “133 bruxas foram executadas nas terras do
convento de Quedlinburg em um único dia, em 1589”. ¿Dá prá imaginar o que todo este movimento fez
na vida de tantas centenas de pessoas durante todos estes séculos? Nem precisamos nos preocupar
com as vítimas executadas; mas ¿e os que sobreviveram a isso? Foi tudo uma bagatela? Algo para
dizer, simplesmente: “Enganamo-nos, vamos esquecer o que passou...”? Como a Igreja pode, hoje,
pensar que aquelas decisões, tomadas pelos bispos e teólogos na condução do Povo de Deus, foram
um mero equívoco? Tratava-se de homens desatinados que tomavam decisões sem pensar?
Ninguém comete erros desta natureza! ¿Que Igreja é essa? Está-se avaliando o ontem pelo hoje?
Hoje, quando queixo-me da perseguição dos demônios, a Igreja me diz: “Vá embora, demônios não
existem! Quando matamos mais de 50.000 mil pessoas torturadas, ao longo dos séculos, nós estávamos
errados.” Tudo é tão fácil: vitrines jorram neon! As pessoas sendo descartadas como lixo humano. Eu o
lixo inconveniente, descartado. Tudo isso me faz duvidar da Igreja.
A Igreja Católica me escorraçou, fazendo-me ir buscar recurso nos terreiros de macumba e igrejas
evangélicas.
Enganei-me pensando que o estado de depressão que me abate e causa desânimo e acarreta outras
moléstias, por deficiência imunológica, pudesse ser parcial ou temporariamente mitigado por um
sacrifício expiatório. Walther Eichrodt refere a esse artifício como a solução encontrada pelo judaísmo
para a superação da degeneração do culto mosaico, após a crítica profética, em sua Teologia do Antigo
Testamento (cap. VIII, 3, b, d; São Paulo:Hagnos). Satisfazer aos orixás (anjos, para Fílon, o Judeu) assemelhava-
se para mim ao zelo profético por Javé, tal como eu entendo as teologias de Walther Eichrodt e
Gehrard von Rad (Teologia do Antigo Testamento; São Paulo:ASTE): luta-se contra isso e, ao mesmo tempo, têm-se
que se submeter. Em minha teoria sobre a história do Antigo Testamento e a teologia do Judaísmo
Antigo, houve sobreposição e domínio do poder mediúnico do culto javista sobre a capacidade de
êxtase dos profetas (xamãs) de El, como aponta Mircea Eliade quanto às relações do xamanismo com o
espiritismo. Mas talvez tenha me enganado e caído em uma ratoeira. Penso que quase comecei a
morrer de câncer por cair sob o domínio do daímwn, após a incursão ao terreiro.
A única conclusão lógica que posso pensar é que os teólogos estão todos errados. São burgueses
europeus, não conhecem a macumba, sequer imaginam o que se passa em um ritual cruento de
sacrifício de uma hóstia. O sacrifício do bode! Creio que todo o cristianismo partiu de um equívoco de
Fílon, o Judeu. Está tudo errado! É necessário desfazer os vínculos tão caramente buscados entre o
Evangelho e o Antigo Testamento. Aí há dois deuses distintos. A Igreja se perdeu. Mas, de tempos em
tempos, quando se consegue produzir um pensador profundo e uma teologia com alguma acuidade,
levanta-se na Igreja a questão do dualismo, sempre abafado, sempre irrespondido.
Quisera a Igreja me desse condições de encontrar o Deus de Jesus, que parece-me identificar-se tanto
ao deus kantiano como ao totêmico Tupã. Paralelamente ao mecanismo dos sacrifícios expiatórios, o
profetismo clássico produziu o discurso da individuação que serve de ideologia à moral burguesa. Mas
não consigo obter socorro nas igrejas evangélicas porque ali se desenvolve, sob a ideologia do
individualismo burguês, o discurso da profecia clássica. Ali, ninguém percebe a intenção de Jesus em
renovar a estrutura social, criando uma comunidade universal na noosfera meta-humana. A teologia
da reforma inverteu os elementos jesuânico e profético da religião judaica.
Jesus tomou o universalismo do discurso profético. Mas o cuidado com a estrutura social já aparecia
na Torah, por influência da anfictionia israelita. É na estrutura material, nas relações corporais da
estrutura de parentesco, na estrutura social e na estrutura da comunidade que se assenta a estrutura
psíquica do indivíduo. Vejo-me fragilizado e solto na vida, sem o amparo de uma estrutura social
adequada, que me dê o sentido existencial (que aí está a função psicológica das estruturas físicas) para
apontar a direção por onde evadir-me do poder dos espíritos/demônios. Troquei constantemente de
igrejas, pulando de galho em galho, porque nunca encontrei sentido em suas teologias. Nos cultos
evangélicos, ante as incoerências particulares de cada igreja, me perdi ao acaso, sem direção. Em
breve, logo após a “conversão” evangélica, a esperança inicial se desfêz porque sem a coerência nos
perdemos da finalidade da existência, passa-se a viver ao acaso. Tudo perdeu o sentido, como a missa
católica perdeu o sentido para mim. Sinto necessidade de ver meu trabalho se realizar. Preciso de um
lugar em uma igreja onde eu possa discutir minhas ideias sobre a mensagem da Bíblia e a finalidade da
própria Igreja. Necessito pensar que poderei ser ouvido. Isso pode ser, apenas, a compulsão artística,
divisada por Freud. Mas necessito de diálogo, descobri que o silêncio me mata.
As igrejas não me prendem. Prendem-me os terreiros e centros espíritas. E oferecem diálogo, mas é
pura retórica, ideologia demagógica. A atividade central, a atividade básica, o objetivo pelo qual são
abertos os centros espíritas é a atividade mediúnica, o passe público. Com o passe os demônios abrem
a mediunidade das pessoas, e isso expõe uma quantidade alarmantemente crescente da população aos
poderes narcóticos da mediunidade que lhes cria uma euforia. O resultado final, para o adepto do
espiritismo, é uma alienação semelhante à do crack, causadora de violência ideológica sŭī genĕrīs
apropriada à lavagem cerebral doutrinária. O fundamentalismo kardecista impressiona mais, por
assemelhar-se e, em certos casos, exceder os fundamentalismos evangélico e islâmico.
¿Mas o que se poderá dizer do fundamentalismo de entidades espirituais? Como o que se descreverá
no decorrer desta narrativa.
O fato a ser descrito terá inevitavelmente as suas interpretações apresentadas, para a sua melhor
contextualização, mas se alguma ambiguidade restar, torna-se imprescindível eluí-lo a partir de duas
descobertas ineludíveis da Ciência moderna. A primeira na área da psicologia: somente na hora da
raiva se é plenamente sincero e se diz com realismo cínico a verdade; isto foi postulado acerca do
desenvolvimento da personalidade; e outra na área da antropologia: somente os comentários dos
mesmos atores sobre os seus próprios atos nos dão acesso ao sentido; que foi requerido contra as
metainterpretações acadêmicas.
Fatos puros, se é que eles persistem em uma descrição; ou existem em si mesmos . . . Fatos, acima de
meras (re-)interpretações de fatos e os comentários de seus mesmos autores, exus e pomba-giras. Não
opiniões de cientistas, ou clérigos, teólogos ou pais-de-santo em declarações controladas.
Os depoimentos colhidos em pesquisas de campo são feitos sob encomenda “para inglês ver” e,
portanto, marcados por posicionamentos existenciais íntimos ou políticos, hierarquizados numa rede
de interesses pessoais, que traduzem posturas pessoais ante dramaturgias rituais, sob determinadas
maneiras de interpretar, em representações culturais formalizadas. Contra tudo isso, os fatos a seguir
aqui apresentados pretendem revelar a “micro-física política”, no sentido foucaultiano, das relações
estabelecidas pelos demônios com os seres humanos nos terreiros brasileiros. E deverão revelar,
enfim, minudências da estratégia expansionista do demonismo em nossa sociedade.
A macumba usa o artifício da representação falseada como isca para aprisionar, o vislumbre da
miragem do bem que é a realização dos desejos; a constante projeção dos anseios por felicidade. Já
por primeiro esclareço ser impossível explicar a dor que os demônios nos causam. Não é uma dor
aguda, embora fira fundo como as dores agudas, mas ela é, na verdade, grave, porque é lenta, é
demorada e persistente. É uma dor que doi mais pela maldade com que é provocada. A intensidade se
prolonga como uma tortura aplicada lentamente, para aumentar o prazer do algoz que a produz na
vítima. Os demônios acenam com um bem, e o que doi mais é sentir-se vítima de uma tortura,
contemplar a onipotência do algoz ante nossa impotência, contemplar a malignidade que poderia fazer
qualquer bem, mas opta por utilizar tal poder para o mal. Pois o Bem é liberdade e eles cadeias.
Um sentimento de abandono ao Mal. É o que se espalha do Brasil para o mundo, com a omissão do
laissez faire eclesiástico. A Igreja necessitará marcar a data e relembrar este tempo em que promoveu
a magia e o demonismo, para nunca mais esquecer esta sua fraqueza que a afasta do seu munus.
Para começar uma discussão sobre a macumba brasileira é necessário, antes de tudo, perguntar-se: ¿o
que é o cristianismo? O que é a Igreja? O que é o catolicismo romano? E, para responder à primeira
questão: ¿o que é o cristianismo? é necessário perguntar-se: ¿quê é Deus? Quem é Javé e quem são
Elohim? Existem dois deuses? Quem é o Príncipe deste Mundo e qual é o seu poder? Após todas estas
respostas, poderemos tentar nos questionarmos sobre o que é a macumba e perceber a contradição da
sua dialética. E, talvez, devamos compreender que esta dialética parece estar a ponto de se dissolver
em demonismo puro através do sincretismo católico-umbandista. Parece muito claro para mim, que a
intenção demonista seja recuperar os seus templos e todo o seu aparato religioso, tão zelosamente
resguardado pela igreja romana, e dominar todo culto através do fato apontado por Mircea Eliade que
o mediunismo domina o êxtase (in O Xamanismo e as Técnicas Arcaicas de Êxtase. São Paulo:Martins Fontes).
Para uma abordagem segura aos fatos aqui trazidos, necessitamos definir o melhor que pudermos os
principais conceitos que trabalhamos: macumba e demônio. Seguramente, a origem do vocábulo
macumba está no sânskrito, como também Umbanda (AaEmbnd), çaravá ( रावाइा) e exu (@;u). Talvez o termo
“macumba” se origine da raíz “makh”, sendo, provavelmente, uma derivação participial de.: mrv, que
designaria “oblação, oferenda” (e, ainda, kairo,j, ou “ocasião preparada”, como preparação do
momento propício). Com este termo designa-se um culto a exu que se teria desenvolvido na região do
Rio de Janeiro, então capital do Brasil, aparecendo em finais do século XVIII e no XIX, mas tendo a sua
origem, aparentemente, na cabula capixaba que se desenvolvera no século XVII mais ao norte, região
hoje localizada no estado do Espírito Santo. O misterioso culto da cabula teria a sua origem em práticas
ciganas trazidas da Europa por degredados enviados pelo rei de Portugal, Dom João III, na primeira
metade do século XVI, que se instalaram no sul da região hoje ocupada pelo estado da Bahia. Parece
ser, então, uma mistura de magia cigana com práticas de magia negra europeia, tendo sido a figura do
exu sincretizada à imagem do conhecido deus silvestre Pã, da cultura mediterrânea, e se inserido no
imaginário medieval com o significado do Diabo católico para designar demônio. Com sentido pejora-
tivo genérico, macumba designa qualquer prática de magia negra em qualquer parte do território
brasileiro.
O principal ator da macumba é o demônio. Desde uma remota fase da História, os homens têm
praticado demonizações em busca de felicidade; em grego, a palavra “felicidade”, euvdaimoni,a, significa
“boa demonização”; não sendo estranhável que, no Brasil, designe-se a desgraça como urucubaca. A
palavra demônio designa o exu por sinonímia quase exata entre línguas diversas. As designações para
demônio sendo muito antigas, remontam ao período pré-histórico, misturam-se em etimologias vindas
de diferentes línguas de diferentes troncos linguísticos. Nas línguas derivadas do tronco pré-histórico
indo-europeu, o elemento u indica uma força hostil, diabólica, como aparece principalmente nas
noções que indicam trevas, noite, etc. (cf. grego nux, latim noctu, indiano aktu; apud Martins Terra, in O Deus
dos Indo-Europeus, São Paulo:Loyola). Com este elemento u componente no sânskrito, a partir de iXi (#;): ser vivo,

ardente, vigoroso, gerou-se exu, por acréscimo do sufixo diabólico (@;u : eXu). Em hebraico, esh (vae)
significa: fogo. Segundo Gherardo Gnoli (El Irán Antiguo y el Zoroastrismo, in RIES, Julien, Tratado de Antropologia de lo Sagrado,
Madrid:Trotta), em antigo indú, åXu (A;u) designa o princípio vital, sugerindo-nos uma origem caótica no

elemento da morte. O mesmo termo em grego é dai,mwn, uma forma participial que designa um agente
de saber; literalmente: aquele que sabe (o presente, o passado e o futuro), mas também um agente de
destruição: o fogo (como vae). Pode-se ver na etimologia do nome, além de daimo,nion¬ou: fado; ou
daimo,nioj¬on: extraordinário; que sua raiz dai,: assombro, apresenta, também, um sentido semelhante
ao bíblico dve: destruição, opressão, no verbo grego dai,w. Ademais, carrega o sentido de iluminar, daí: o
que sabe; cf. Da,eira: a que sabe, título da Rainha do Inferno; e ynI([oDyI: necromante; literalmente: sabedor.
Enfim, aparentemente, o nome não designa mais que o agente central no culto da morte, o Culto da
Caveira, que foi transmitido à cultura sapĭēnte desde a cultura neandertal (cf. Tratado de Demonologia).
Este texto parte do postulado que a macumba é o culto dos anjos caídos (cf. Gn 6,4), que são os exus, e
que eles instituíram a religião e o estado, através da cultura neandertal, pervertendo a ordem política
naturalmente dada à sociedade humana na Criação, com o desenvolvimento do lobo cerebral frontal,
que é a organização tribal totêmica. Estas pesquisas tiveram sua origem no Tratado de Demonologia e,
agora, dever-se-á tecer uma ampla rede filológica sincrônica e histórico-gramatical que envolva as
coisas e os seus nomes, e permita a compreensão dos fatos aqui denunciados de opressão política, por
meio de torturas físicas e terror psicológico, e lhes revele o sentido político e histórico.
A Bíblia diz que o Diabo governa este mundo. Sobre a natureza dos deuses discorro na segunda parte
do Tratado de Demonologia, que ainda não consegui publicar. Fílon, o Judeu, afirma em seu livro Peri.
Gigantw/n (De Gigantes) que: “(São), pois, as almas, os demônios e os anjos, certamente, nomes diferentes,
porém, uma e a mesma (coisa) subjaz designada, carga pesadíssima (de) que o pânico* afugenta” (§ 4).
Traduzí deisidaimoni,aj por “pânico”, seu correspondente semântico mais exato em língua portuguesa.
Deisidaimoni,aj costuma ser traduzido por “superstição”, mas o grego possui a palavra superstição, que
é peri,ergoj, com o exato sentido de: excesso; equivalente ao superstitĭō latino. Plutarco de Queroneia a
*
Yuca.j ou=n kai. daí,monaj kai. avgge,llouj ovno,mata me.n diafe,ronta( e]n de. kai. tauvto.n u`pokei,menon dianohqei.j( a;cqoj baru,taton avpoqh,sh| deisidaimoni,an.
usa ao referir-se às feitiçarias de Olímpia do Épiro, rainha da Macedônia, na Vida de Alexandre. A mais
exata tradução de deisidaimoni,aj é “medo de demônios”, e com o mesmo sentido surgiu na língua
portuguesa a palavra “pânico”, que significa exatamente, medo de demônio, sob o terror de Pã, a
imagem católica do Diabo usada no Brasil para os demônios.
Neste texto, pretende-se, ainda, apontar uma dissemelhança, não observada por Fílon, quanto às
técnicas que conformam as práticas religiosas sonambúlicas tradicionadas em nossa cultura.
A Igreja Cristã e o catolicismo romano são instituições históricas políticas, e também nosso objeto
aqui. Apresentam-se com outra práxis diferente e necessitam ser conceituados ou definidos por nós
em sua relação dialética histórica a partir do entendimento de o que é a macumba e o demonismo, se
não quisermos cair na ingenuidade mítica dogmática e em infantilismos a-istóricos, os quais produzem
autismo e não comunicação. A instituição da Igreja foi uma reação sapĭēns à religião neandertal.
Uma tentativa de barrar a expansão demoníaca e frear o desenvolvimento alucinado de médiuns.
Percebo os médiuns cativos, em um mundo de representações falseadas, constrangidos pelas forças
que pretendem manipular. Embora a crítica possa parecer aplicável aos médiuns todos, como a
qualquer ser humano, no que respeita às nossas frágeis representações, especialmente os adoradores
de exus são aqueles que se enquadram nas observações que aqui serão apresentadas. Como escravos,
quer de seus guias quer de suas próprias paixões, seriam instrumentos inconscientes destes demônios,
que os usam como peões em um jogo político de cartas marcadas, sendo manipulados pelo fenômeno
sincronístico que a Psicologia Analítica junguiana começou a descortinar. Não conseguem enxergar as
contradições do sistema e, nem mesmo, da ideologia que lhes obscurece a razão, encapsulados em
suas construções imaginárias, através da capacidade demoníaca de manipular o êxtase. São fanáticos
fundamentalistas. Mas ao contrário dos fundamentalistas evangélicos ou islâmicos, estes possuiriam
guias espirituais, seres superiores oniscientes que os conduzam. Sabemos que as frágeis ideias dos
homens se curvam ao mais leve sopro do vento, mas ¿que deveremos pensar destes guias espirituais?
Sempre a humanidade viu nos demônios um mal, sempre percebeu que sua natureza não fosse o bem
e, por isso, em épocas ou culturas primitivas, ainda no sistema tribal, pela existência de espaços com
florestas, de matas à volta das aldeias, era possível, simplesmente, expulsar para longe aqueles que
eram pegos por demônios, para o meio do mato. Porque viu-se que são os demônios que determinam
toda a vida das pessoas contaminadas com mediunidade. Os demônios fazem o que querem com as
pessoas dos médiuns, com seu poder assombroso. As evidências históricas e a lógica nos dizem que daí
surgiu a ideia de um Deus onipotente e, somente depois, os filósofos passaram a especular. A história
nós conhecemos bem, vai de Pitágoras a Kant, passando por Amônio Sacas e acabando em Heidegger e
na ideia do Abismo; que não é o Espírito: o Espírito pairava sobre o Abismo.
Baseado em minhas pesquisas sobre a Pré-História do gênero Homō, penso que a mediunidade seja
produto de técnica corporal desenvolvida na cultura dos homens neandertais, que a transmitiram a
parcelas de Homēs sapĭēntes com quem tiveram contatos no continente afro-eurasiano. Parece que a
mediunidade se desenvolve a partir do arquétipo psíquico materno, que a Psicologia Analítica mostrou
estar representada junto à imagem da Trindade Divina cristã, na cultura ocidental, pela figura do
Diabo. E que o poder do Diabo está nos demônios. Seguramente, são criaturas sobrenaturais, embora
pareçam ser as almas dos neandertais, a Raça de Ouro que refere Hesíodo (Erg., vv. 120-6), os primeiros
homens a desenvolver as técnicas mediúnicas, como podemos avaliar pelos vestígios fósseis. Suas
prosopopeias parecem formadas na psiquê humana a partir de complexos afetivos reprimidos do
próprio médium, talvez por ressonância; esta é a ideia apresentada nos livros Tratado de Demonologia
e Crítica da Teologia Moderna. O mais absoluto conceito de poder, na ideia do Todo-Poderoso, é o
Diabo (yD;v;), logo, Deus mesmo, o Deus do Bem será o Criador do tempo. Senão, ¿como explicar o Mal
espiritual, a existência dos demônios? Os Elohim seriam dois deuses, embora como criadores não
sejam bem deuses, mas emanações do Uno, e o verdadeiro Criador tenha criado, afinal, somente o
tempo. Como portador da foice, atributo do criador do tempo, Yahi ( ) parece-se mais ao demiurgo,
portanto, Deus mesmo não seria o deus do protojudaísmo; somente O poderá ser aquele da religião
primitiva de Israel, o Deus da anfictionia, que lhe deve ter conferido seus atributos propriamente
divinos, e este é El (!wOyl.[, lae). Ante El, Javé e Yahi parecem apresentar-se como dois demiurgos junto ao
Deus transcendente kantiano, o qual parece-se muito com o Deus Ōtiōsus concebido pelo Homō
sapĭēns em suas mitologias paleolíticas, como no caso de nossos indígenas, não contaminados pela
cultura do Pecado: as mitologias das culturas da pedra indígenas americanas, brasileira e patagônica.
¿Seria, para citar uma autoridade católica, O Deus dos Indo-Europeus de D. Martins Terra?
Então, talvez, se pudesse responder que Deus é uma fantasia humana, uma representação, através de
memória seletiva, da inteligência cósmica, projetada a partir do arquétipo psicológico paterno. Uma
função do aspecto ternário do Si-Mesmo (não do especto quaternário, como o quis Carl Gustav Jung),
fonte da evolução biológica e seu fenótipo. Nesse caso, o Deus de Jesus não seria Javé (ou Yahi), como,
aparentemente, o Deus dos profetas também não o foi; ou melhor, o nome Javé teria sido atribuído à
pessoa errada, talvez, simplesmente, intercalado no texto bíblico, quando realizada a harmonização da
fonte Jeovista para a elaboração deuteronomística, labor que resultou em nosso textus recēptus. O
verdadeiro Deus, o Deus do cristianismo, anunciado pelos profetas, seria, pois, como Deus Ōtiōsus,
uma projeção idealista da própria razão humana como razão universal transcendente, mas não haveria
de mostrar-se em nenhum fenômeno numinoso. O cristianismo parece ser sobrevivência de uma
antiga tradição Homō sapĭēns resguardada pura das influências do javismo judaíta. Na Palestina,
primeiramente na montanha de Efraim e na Samaria e, por fim, na Galileia, o último reduto das
tradições locais ante as invasões dos impérios. Haveria um Criador que estipulou seu plano; de resto, a
natureza segue seu curso perpetuamente. Um curso previdentemente decretado: a harmonia normal
do equilíbrio da natureza. Os milagres, fenômenos numinosos, aparecem aí como uma excrecência.
Nada de fenômenos mágicos a forçar o curso das coisas. O Pecado seria, então, uma invenção de Javé.
Nesse caso, o catolicismo romano, preservando o aparato religioso antigo, não cultuaria o Deus de
Jesus. Embora a Igreja, como extensão do movimento de Jesus, devesse salvar (ou ajudar a salvar-se) a
humanidade dos efeitos maléficos dos demônios, gerados como fenômenos numinosos dos antigos
deuses do primórdio da civilização. Oi[ qeoi, evtiqekw,j, expressão que deve significar exatamente: os
“assentamentos” dos fetiches (tw/n qew/n). A “fundamentação” do numĕn traria à terra os anjos, que
habitam as regiões etéreas inferiores dos ceus. Em egípcio: (ntry = qeo,i), herança resultante de uma
colônia neandertal menfítica. Os anjos “caídos” seriam uma classe à parte destes espíritos.
A proposta aí divisada é a Vida Eterna, uma ideia muito discutível; cf. havemos tentado encetar esta
discussão, anteriormente; a começar pelo equívoco do nome. Só consigo imaginar tal ideia, na prática,
semelhantemente ao circuito eletrônico de um transístor com um capacitor. Trata-se de um aparelho
que transforma a energia alternada, entre polos opostos da corrente elétrica, em uma corrente
contínua, ou seja, em perpetuidade de energia. A função do capacitor no sistema é descarregar a sua
energia armazenada e preencher o vácuo do pulso negativo da senoide que representa a alternância da
tensão. Existe aí uma analogia que explica porque a vida proposta por Jesus não poderia ter nada de
eterna. Eterna é a natureza atômica, no sentido de não ter início nem fim; aliás, o Éter, morada dos
demônios, não seria um lugar desejável para um cristão. A vida proposta por Jesus somente pode se
configurar, no meu entendimento, como luz perpétua, energia perpétua, constante; daí, ao invés da
senoide, temos a imagem de dois pulsos positivos plenos na corrente elétrica contínua (cujo nome
técnico é: corrente unidirecional pulsante). E esta ideia parece-me ser a do cristianismo que está sendo
investigado pelo Projeto “Q”. Um cristianismo que se teria gestado das práticas extáticas dos xamãs
(payés) das sociedades tribais, através do profetismo clássico, e não se adapta à civilização.
A civilização, o estado e a sua divisão de classes, são a concretização do Mal e o ato civilizatório,
Pecado, quão diabólica seja a divisão em classes do estado. O projeto paradisíaco divino somente
poderá ser efetivado através de um sistema político baseado em uma organização social tribal, cuja
essência para mim está no totemismo. A aquisição cerebral da função classificatória permitiu elaborar
uma estrutura de parentesco agnática, em oposição ao matriarcado neandertal. Demonstrei, em
Origens Preistóricas do Essênio-Cristianismo, que a cultura dos profetas bíblicos, baseada no êxtase,
proviera do xamanismo paleolítico, e no Tratado de Demonologia, que o êxtase fora uma aquisição
cerebral obtida pelo desenvolvimento do lobo frontal, uma exclusividade do Homō sapĭēns.
Assim, por meio do desenvolvimento do lobo cerebral frontal o homem se constituiu como homem e
passou a perceber-se distinto dos hominídeos que o antecederam. Com a sua capacidade classificatória
finamente desenvolvida, seu cérebro lhe permitiu organizar a sociedade em segmentos relacionados
por meio de um sistema de parentesco agnático baseado na troca das mulheres e na partilha de
produtos da caça, e desenvolver uma rica tecnologia de ferramentas microlíticas. Também desenvolveu
a capacidade de êxtase místico. Mas nada disso o levou a instituição da religião e da civilização. A
civilização é um evidente subproduto da religião e esta uma instituição pública da magia. Sendo esta
última, enfim, um sistema de comunicação com os demônios. Mas o totemismo não é religião, isto até
mesmo Lévi-Strauss pôde ver. O totemismo é o modo natural do Homō sapĭēns existir, permitindo a
passagem da orda à sociedade organizada sob princípios espirituais. Isto foi bem analisado pela escola
da Psicologia Analítica junguiana, través da obra de Eric Newmann intitulada História da Origem da
Consciência (São Paulo:Cultrix). O totemismo permitiu a fundação de um parentesco agnático, criou o pai.
Lévi-Strauss foi um antropólogo que não poderia conseguir contextualizar o seu objeto, por nunca ter
entendido qualquer cultura estranha à sua. Por não entender o outro, preferiu violentá-lo e cortar fora
alguns pedaços e esticar outras partes, para adaptá-lo à mentalidade de Procusto da ciência acadêmica
eurocêntrica e burguesa. A pretensão de unificação de todas as ciências, sonhada por Lévi-Strauss,
resumia-se a afundá-las todas no autismo burguês. Assim como seus mestres, em uma longa linha de
sucessão discipular, também Lévi-Strauss não distinguiu o feiticeiro do xamã (vd in Antropologia Estrutural).
Como tampouco ele próprio reconheceu o outro, a antiga confusão entre o xamã e o feiticeiro foi
tradicionada do século XIX, pela Antropologia Estruturalista, e legada ao XXI. E, ainda, persiste.
Também há diferença fundamental entre classificações totêmicas e rituais de fundamentação
fetichista. Basicamente, as classificações totêmicas constituem-se no uso engenhoso da capacidade
classificatória da matriz gerativa da mente humana para a finalidade de organizar a sociedade humana
e, pela instituição do taboo do incesto, relacionar grupos em uma sociedade segmentária. Chamam-se
totêmicas porque lançou-se mão, para se as constituir, das representações classificatórias intuitivas
naturalmente constituídas como imagens ou memórias na mente humana, a partir da diversidade de
animais e plantas, então designados totens. Como se fossem pais espirituais.
Trabalhando com um método realista, a antropologia estruturalista empregou os conhecimentos da
linguística estruturalista e obteve gráficos representativos dos sistemas profundos das classificações
elaboradas pelo espírito humano, no plano imaginário, como representações linguísticas inconscientes
universais. Tratam-se, portanto, de abstrações da realidade, porque sua utilização da análise linguística
da linguagem humana aliena o contexto e reduz-se às representações inconscientes do sujeito, ou
melhor, à representações gráficas de estruturas inconscientes.
Entretanto, em seu livro Totemismo Hoje (Petrópolis: Vozes), Lévi-Strauss mostra-nos claramente que o
totemismo se diferencia da religião. Mesmo que nunca tenha entendido o fenômeno religioso, ainda
assim, Lévi-Strauss desenvolveu um engenhoso método de análise da organização social humana.
Pude construir um quadro comparativo do totemismo e da religião a partir de um outro quadro
semelhante, que foi elaborado por André Mary sobre Le Totemisme Aujourd’huiu, de Claude Lévi-
Strauss (encontrado in MARY, André, Os Antropólogos e a Religião, capítulo III: CLAUDE LÉVI-STRAUSS, a morte do deus
totêmico e o nascimento do simbólico. São Paulo:Ideias&Letras, p. 115). Eis o resultado, após as melhorias elaboradas.

Análise comparativa do sistema totêmico e do sistema religioso

Totemismo Religião
Um sistema classificatório de denominação Um sistema de técnicas e práticas demonistas.
coletiva.

Esquema fundamental: Esquema fundamental:


A homologia – as relações de equivalência. A genealogia – as relações de ordem.
O sistema de denominações é regido por um O sistema religioso institui relações
princípio de equivalência. hierarquizadas entre humanos e espíritos.

O sistema de denominação está fundado em A relação de dependência é unilateral de um


relações de diferenciação independentes. indivíduo ou um grupo particular a um
espírito, subestabelecida por aliança.

A relação entre os grupos e os totens é A relação entre os humanos e os espíritos é


indireta (metafórica), ligada à estrutura. contígua (metonímica), ligada ao ritual.

Proibições consensuais visam “marcar” a Interditos e rituais prescritos a um indivíduo


relação com uma espécie e funcionam para ou grupo por um espírito instauram a sua
o grupo como uma “conduta diferencial”. autoridade numa relação de aliança unilateral.

Taboo Pecado

Na elaboração da teoria estruturalista do totemismo de Lévi-Strauss é bastante notório o esforço por


enquadradar-se dentro de termos aceitáveis à filosofia burguesa europeia e etnocentrista, visível,
principalmente, pela adoção de um conceito de inconsciente lacaniano, eminentemente linguístico, e a
correspondente rejeição de uma ideia junguiana, gestáltica e assente no evolucionismo genético; e,
portanto, biológico. Lévi-Strauss adotou a concepção realista da ciência evocada pelo neopositivismo,
onde qualquer critério empirista de verdade foi substituído pelo critério da coerêcia puramente lógica
e a ciência reduzida a um sistema linguístico, encerrada numa dimensão teórica matemática. O vínculo
de seu modelo de estrutura com a realidade resume-se a uma homologia, tendo como fundamento
único a sua própria coerência interna. Para unificar todas as ciências, haveria de considerar nossas
necessidades básicas de um ponto de vista biológico, pela psicologia da cultura junguiana e não
somente as suas representações linguísticas, e enveredar por uma transcendência marxista e não pela
kantiana que perde de vista as necessidades do homem e o trabalho como objetivação humana.
Em sua obra Sobre o Conceito de Modelo, Alain Badiou condena o recobrimento da ciência burguesa,
em que a categoria de modelo reveste-se de noções ideológicas para encobrir a ausência do conceito
científico (cap. 2), que não desvela o objeto. Diz ser “invenção pura”, cuja coerência e desenvolvimento
dedutivo são garantidos pela codificação linguística, geralmente matemática: “O modelo pertence à
metateoria garantidora recorrente de uma conjuntura” (Lisboa:Estampa, 1972: p. 19). Nada mais havendo
para além da linguagem. O modelo estruturalista de Lévi-Strauss reduz a atividade científica à criação
de modelos; daí vem todo conhecimento científico da antropologia estruturalista: conhecimento
pseudo-científico burguês, uma alienação dos fatos reais, manipulação ideológica de dados.
Alain Badiou critica a epistemologia burguesa ser constituída pela pressuposição de um conjunto de
diferenças correlacionadas entre a realidade empírica e sua forma teórica, que define uma imagem
como representação formal do objeto, distinta do tipo empírico. O que reduz o fato empírico a uma
mera dimensão do formal, estereotipia cuja regra da separação produz a unidade dos dois discursos,
impondo a cada uma destas variações a condição de mera imagem. Sendo, enfim, esta unidade o que
sustenta a condição de existência do discurso ideológico burguês.
Questionando a causa objetiva da ciência burguesa a partir da eficácia da dupla articulação da
diferença entre a investigação e o construto, Alain Badiou critica a posição positivista de Lévi-Strauss
que confronta uma informação passiva a uma atividade “cujo sentido é o reproduzir a norma onde a
informação se reúne” (op. cit., p. 24). Uma tal ciência torna-se, então, um “artesanato imitativo”, nas
palavras de Badiou, vindo a ser empirismo vulgar. Seu objetivo político limita-se a suprimir a realidade
da ciência como processo de produção de conhecimento e mascarar todo controle sobre os dados.
Alienada dentro da estrutura, obedece a interesses, sem confrontar-se com a realidade do outro. A
antropologia estruturalista de Lévi-Strauss se fêz, portanto, incapaz de perceber o fenômeno mágico e
a natureza do demonismo, ou mesmo da berith (tyrIB.), a “Aliança” bíblica.
Nos rituais religiosos, porém, temos algo diferente. A análise linguística empregada pela antropologia
estruturalista isola uma estrutura de código de um sistema de comunicação, sob a forma de sua
representação. Esta representação rebate-se num plano transcendental. A estrutura que assim se
representa revela uma aptidão mental, mas o que ela revela de fato é uma analogia entre modelos
alienada da comunicação real, uma vez que o ritual depende do contexto performático.
Serve para uma análise de mitos, que são representações sapĭēns explicativas de práticas religiosas.
Não se aplica ao ritual que, além de ser a mensagem de um código em si mesmo, também é o próprio
sistema de comunicação, a própria rede de trocas, e não uma mera representação imaginária. A
natureza das mensagens está diretamente associada às condições da troca, e isso requer a “pureza”
ritual. O ritual é um sistema total de comunicação, sistema do qual não se pode abstrair o código para
a análise, sob pena de alienação. Para o ritual torna-se desejável uma análise materialista política, que
seja centrada na performance do trabalho e que se oriente pelo viés biológico. Ambas essas dimensões
são alienadas pela ciência burguesa e, de modo exemplar, pelo método estruturalista de Lévi-Strauss.
O ritual existe somente inserido em sua relação de poder e, como troca política que é em si mesmo, o
ritual depende para a sua eficácia dos mesmos elementos que estão em jogo, porque trata-se de um
ato de comunicação no qual o quê e o como se confundem. O fato mágico não é somente um objeto de
consumo, mas também um modo de consumo. Aplica-se o que disse Marx: “não é um objeto em geral,
mas um objeto determinado que deve ser consumido de um modo determinado que apenas a própria
mediação pode mediar” (A Ideologia Alemã. São Paulo:Moraes, 1984). Pelo fato de o ritual se constituir na instituição
da linguagem, também ele próprio é uma linguagem, uma linguagem performática. Como a mensagem
e o mecanismo de troca dependem um do outro no aqui agora, pela instituição do ritual, estes deverão
ser compreendidos somente a partir de hipóteses diferentes daquelas que foram usadas no estudo
estruturalista da linguagem e do parentesco. Carece-se da análise da práxis macumbeira.
Os antropólogos burgueses não enxergam a técnica como produto da ferramenta, e tampouco o
trabalho como resultado do meio de produção. Representações imaginárias rebatidas sobre um plano
transcendental não explicam, infelizmente, o poder real de um feitiço. O poder pragmático que atua
em um ritual mágico. Os antropólogos burgueses nunca perceberam o valor de uso do cutá, o fetiche.
E isto nos leva ao conceito de mana. Conclusões me levaram a crer que, para o missionário anglicano
J. Long, conforme já tive oportunidade de publicar em dois livros, a ideia de mana é a mesma que se
encerra na ideia afro-brasileira de axé. Na segunda parte da seção III da introdução a Sociologia e
Antropologia, uma compilação dos escritos de Marcel Mauss, no texto intitulado Introdução à Obra de
Marcel Mauss, diz Lévi-Strauss sobre o mana: “No sistema de símbolos que constitui toda cosmologia,
seria simplesmente um valor simbólico zero, ou seja, um sinal marcando a necessidade de um
conteúdo simbólico complementar àquele de que já se carrega o significado, mas podendo ser um
valor qualquer, sob condição de ainda fazer parte da reserva disponível, e não ser, como dizem os
fonólogos, um termo de grupo ” (p. 35; s nosso). Creio que Lévi-Strauss teria sido mais feliz se tivesse dito:
“opor-se à ausência de significante [e não significação] sem comportar por si mesma qualquer
significação particular”. Quer dizer, temos aí um feixe de significados, mas ausência de significante,
ausência que o mana supre e à qual lhe dá não algum sentido qualquer, mas o sentido necessário ao
significado “que já se carrega” (sŭī ipsīīs litĕris), posto que o mana acena com a possibilidade. Mas
Lévi-Strauss não pôde usar outro termo, porque o seu método reduz tudo ao plano imaginário das
representações. Ele alienou-se de toda vivência, no mundo realista dos significados, referindo-se não
ao sujeito transcendental kantiano, como pretendera, mas a uma mera representação burguesa, a um
suposto “transcendente” imanente que não passou nunca de um construto acadêmico burguês. Neste
ponto, nunca entendeu o objeto.
A natureza política da produção acadêmica dominante pode ser avaliada, mais na Europa que no
Brasil, pelo perfil dos pesquisadores. Contemple-se as pessoas que têm recebido o prêmio Nobel em
cada área da ciência e se poderá perceber com clareza um tipo maciçamente predominante: o homem
branco de classe alta, o “adulto” burguês. Muito raramente mulheres, também da classe alta. Trata-se
de uma elite dominadora pensando a sua opressão sobre as classes subalternas. O peculiar autismo da
sua classe social não lhes permite compreender um fenômeno popular.
Enquanto feixe de significados, o mana é índice de possibilidades existenciais para quaisquer valores
simbolizados. Parece haver um grande equívoco, portanto, em atribuir ao mana um valor simbólico
zero: /Ø/. Mas observe-se que foi abandonado o conceito de signo saussurreano por um outro sinal
com função simbólica: um mana irreal substituiu o feitiço. Considerando o princípio da incerteza de
Heisenberg, que baseia-se na noção probabilista da dualidade onda-corpúsculo apresentada pelo
átomo, ¿haveríamos de entender esta valoração como efeito de um comportamento de onda?
Segundo o linguista irlandes David Crystal: “Está claro que a introdução de zero (às vezes denominado
o elemento nulo, a partir do uso deste termo em matemática) é motivado pela necessidade de se
manter um padrão regular, ou proporcional, em uma análise, ou com o objetivo de fornecer uma
explicação econômica. Trata-se de uma noção que deve ser introduzida com uma justificativa
cuidadosa...” (Dicionário de Linguística e Fonética, Rio de Janeiro:Zahar, 1988; sub verbete zero: p. 274a). ¿Teríamos, aí, então, uma
declaração formal de correspondência representada pelo mana, uma regra variável? Melhor seria
como regra gerativa, acenando uma previsão, pois metade da magia, ao menos, é intuição divinatória.
Ainda que relegue o mana a ser elemento flutuante e lhe atribua o valor zero /Ø/ como variável ou,
nas suas palavras, “ração complementar” (p. 34), se o comportamento é determinado por fatores sociais,
como o exige a École Française, tem de ser mediatizado por um processo mental identificável, posto se
tratar de um comportamento mental. Trata-se, pois, de explicar como as regras funcionam, na medida
em que funcionam. E a flutuação do mana dever-se-á, evidentemente, a um efeito de onda.
No campo da problemática da variação das regras fonéticas, o modelo de onda aplicado por D.
Bickerton (Inherent Variability and variables rules, apud MARCELLESI, J.-B. & GARDIN, B. Introdução à Sociolinguística. Lisboa:Aster, 1975) prevê que
o processo entre dois estados de um elemento caracteriza-se como um período de alternância em que
as regras perdem o seu caráter obrigatório dado pelo ambiente. O fenômeno é explicado pelo modelo
de ondas de transformação que se propagam através da comunidade, atingindo sucessivamente
diferentes grupos, por motivos sociais. Uma onda desestrutura uma regra antiga concedendo prestígio
a uma nova regra. O prestígio é um elemento de troca que sabidamente influencia as condições da
troca (v. SPERB, Dan, Estruturalismo e Antropologia. São Paulo:Cultrix). Verificam-se novas estruturações, podendo coexistir
uma configuração com regras distintas que não variam realmente, mas se aplicam de acordo com os
casos. O mana apresentaria, neste caso, um comportamento semelhante ao de uma partícula atômica:
hora apresentando-se como um feixe de possibilidades, hora como capaz de gerar relacionamentos.
Mas, se Lévi-Strauss pensa que nos explica o poder do mana, simplesmente lhe atribuindo um valor
zero, ¿o que nos diria acerca da encruzilhada onde se deposita o feitiço? Estender-se-á o mana como
valor flutuante entre o feitiço e a encruzilhada, ou, talvez, esta se indicie como o próprio feixe de
possibilidades, enquanto o feitiço estabeleça a relação, fundamentando a regra?
Como nos dizem os professores da Universidade de Rouen: “Um modelo de ondas que destroi a
distinção diacronia/sincronia possui ao mesmo tempo as dimensões do tempo e do espaço, e as
relações de implicação só se manifestam porque uma mudança que se difunde no espaço social se
generaliza também no tempo em que teve a sua origem” (MARCELLESI, J.-B. & GARDIN, B. Op. cit., p. 179), até deixar de
estar condicionada. O conceito fonético de regra variável conduz à critica por uma maior exigência na
explicação: trata-se de encontrar as regras que explicam as flutuações do mana. Mas, antes disso,
trata-se de explicar como um feitiço pode acontecer...
Um palhaço que se expõe é sempre um alvo fácil para todos aqueles que desejam se promover. Lévi-
Strauss, ao nada explicar-nos, e as suas teorias burguesas, inevitavelmente baseadas em um sujeito
“transcendente”, servem, tão somente, de embuste para apaziguar o incômodo do sentimento de
inutilidade ante o conhecimento de nada saber. Além de servir como disfarce “científico” para a
máscara da ideologia do Império.
Elaborar teorias, falando muito sem dizer nada, é muito fácil. Cumprindo o papel ridículo de bom
bwana, o discurso retórico da antropologia estruturalista tratou de reabilitar a dignidade ultrajada dos
nativos das colônias e, ao mesmo tempo, manter-nos em nosso “devido lugar”.
Dizer: não há dualismo!, ou não há diferença! é uma grande hipocrisia que serve somente para dar
algum conforto ao oprimido, ao diferente. O pensamento selvagem foi colocado em oposição ao
pensamento das grandes civilizações da Europa e da Ásia, que gostariam de não ter conhecido nada
comparável ao totemismo; a sociedade industrial se concebe a si mesma como a etapa mais avançada
de fases ultrapassadas. Se o fosse e não tivesse conhecido a fase ultrapassada, não poderia ser a sua
etapa mais avançada (cf. LÉPINE, Claude, O Inconsciente na Antropologia de Lévi-Strauss. São Paulo:Ática, 1974; p:51). Tal continuidade
não houve, mas uma ruptura, o problema é ignorado. E deverá permanecer assim. Mas do ponto de
vista do nativo, não se trata de crença em feitiços, trata-se da realidade do mana, de seu poder total.
Lévi-Strauss nunca conheceu a verdade sobre o demonismo e a magia, mas a diferenciação entre estas
práticas e o totemismo são um fato consumado, são um fato científico estabelecido por ele próprio.
Assim, se assenta neste fato a oposição totemismo x processo civilizatório; civilização, não cultura.
Posteriormente, Pierre Clastres veio a desenvolver a crítica da teoria política acadêmica burguesa,
mostrando a incompatibilidade da organização tribal com a forma de estado. Houve uma ruptura em
nosso desenvolvimento histórico, que causou a passagem da forma de organização tribal para a forma
de estado e da divisão de classes. Essa ruptura gerou o estado e a pobreza, mas os pobres são um
efeito secundário neste processo. Como tudo o que divide, este processo foi um fenômeno diabólico.
Após conhecer a teoria exposta no artigo O Projeto do Jardim x O Projeto da Serpente, de Günther
Wolf (Estudos Bíblicos:Vozes, nº 74), pude entender a civilização como desenvolvimento da cultura neandertal,
segundo exponho em meu Tratado de Demonologia, produto resultante do mediunismo sonambúlico
(o espiritismo): a civilização seria um resíduo que sobrou da INvolução neandertal, e a sua religião os
teria matado. Esta religião apresenta-se, agora, aqui, no Brasil, talvez quase sem muitas modificações,
na forma de espiritismo chamada macumba, vinda da Europa: o Culto da Caveira. O culto neandertal
da caveira, trazido pelos ciganos e sincretizado na terra como Quimbanda, grassa pelo Brasil.
Na faixa de latitude acima das regiões sudeste do Brasil e dos Estados Unidos se desenvolveram focos
de práticas fetichistas. A partir dessas regiões desenvolveram-se novas práticas espíritas características
dos tempos modernos, com novas feições. O movimento espírita burguês, por exemplo, é de uma
militância galopante. Não é organizado pelos médiuns, porque estes não têm noção de nada do
processo histórico, teológico ou filosófico da nossa cultura; seus melhores intelectuais são, no máximo,
lógicos matemáticos, escapa-lhes a semiótica, cegos pelo encantamento da semiologia fenomênica.
Espíritas reduzem a lógica, sem compreensão do campo semântico de seus próprios atos. O movimento
espírita é um movimento dos espíritos e não das pessoas humanas dos médiuns, e, talvez, de uma
classe muito específica de espíritos: os demônios; se podemos adotar no cristianismo a classificação
dos antigos para o fenômeno religioso: o demoníaco em oposição ao divino. A liderança dos demônios
sobre este movimento religioso é semiconsciente entre os membros do kardecismo. Em geral, todos os
médiuns kardecistas assumem a postura de meros instrumentos e falam na inspiração superior ou
consciência superior dos seus guias que encaminham todos os fatos, através da História, por meio de
um processo sincronístico, embora não se utilizem deste termo junguiano. Falam de um “acaso
programado”.
No livro “FALANDO COM OS MORTOS, as irmãs americanas e o surgimento do espiritismo”, sua autora
Barbara Weisberg, à pág. 210, afirma que: “as irmãs Fox haviam preparado terreno para a fundação de
um movimento popular baseado na crença na comunicação com os espíritos” (Rio de Janeiro:Agir, 2011).
Pesquisadora magnífica, a autora pecou na construção desta proposição, uma vez que ela mesma
apresenta, ao longo de sua obra, farta documentação sobre a criação do movimento espírita
(chamado, então, “espiritualismo moderno” por Horace Greeley, desde 1852; cf. p.215) pelos próprios
espíritos e não pelas irmãs Kate e Maggie Fox. As apresentações no Corinthian Hall, em Rochester,
N.Y., foram orquestradas em seus mínimos detalhes pelos espíritos, que impuseram sua vontade, ante
a hesitação dos humanos, com com uma mão de ferro: chantagem de silêncio e intransigência. Na
época, a medium Emma Hardinge afirmou “Os espíritos de fato tinham partido...” (in Modern American
Spiritualism: A Twenty Year’s Record of thr Communion Between Earth and the World of Spirits, 1869, apud WEISBERG, 2011, p. 115).
Toda a orquestração dos sucessos do Corinthian Hall foi providenciada pelos espíritos que parecem ter
insuflado o tumulto nas plateias para obter publicidade, ao que concluiu Emma Hardinge: “O objetivo
da publicidade tão difundida foi atingido” (op. cit., p. 128). Talvez mais que em qualquer outra obra que se
tenha debruçado sobre o assunto, o livro magistral de Barbara Weisberg mostra, em virtude da
primorosa pesquisa e excelente estilo da autora, malgrado a ingenuidade com que a vaidade humana
atribui a si mesma os sucessos históricos, a batuta na mão dos espíritos conduzindo os humanos como
gado. Reiteradas vezes a autora atesta: “No entanto, Maggie e Leah pagaram um preço alto por seu
sucesso, submetendo-se a humilhações e abusos” (loc. cit.); ou sobre Kate: “O custo exigido pelos
espíritos era alto” (p.171).
É visível a existência de um objetivo dos “espíritos”, e que os humanos são usados como fantoches.
Mas seu objetivo, neste primeiro passo tático, foi atingido. Sir Arthur Conan Doyle designou-o como
“invasão”. Uma invasão anunciada: os espíritos anunciaram que invadiriam o mundo” (vd in História da
Espiritualidade, Brasília:FEB, 2013, p. 39). O anúncio fora feito por “caboclos” peles-vermelhas.

O “programa” dos demônios tem o propósito de captar mais gente. Esse proselitismo parece mais
evidente na macumba; aliás, tudo nela é mais drástico e mais sensível. O recurso mais visível é o passe
público: passes são receitados e procurados em terreiros, chegando a formar-se filas cem metros para
o lado de fora dos centros espíritas, em muitos lugares de Porto Alegre. Assim percebi com a Maria
Padilha com que tratei, num terreiro, ela queria que eu levasse meu amigo para a roda. O objetivo dos
passes é disseminar a religião, o demonismo e a mediunidade, através da dependência, da ligação ao
terreiro. Estabelece-se uma ligação mística com o terreiro (na verdade com os demônios específicos
dos médiuns que dão o passe na pessoa) que causa certa dependência e deixa as pessoas atadas
àquele terreiro. Esta dependência difere daquela de aspecto ideológico da alienação mental. É algo
mais fisiológico que interfere na existência total da pessoa, na saúde, nos fatos da vida, na sorte.
A exigência final é a iniciação. O estado psíquico, o estado de depressão, com suas consequências
fisiológicas e sociais, em que se vê jogada uma pessoa atacada por mediunidade é inumano. Em meu
caso, eu deveria cumprir uma pequena iniciação. O “fazer obrigação”, como se diz, apresenta efeitos
mais duradouros do que um simples sacrifício ritual de expiação, mas estabelece uma “aliança”, quer
dizer, a tal da “obrigação” é o dever de repetir periodicamente o ritual. É a berith! O que se me
apresenta como paradoxal, pois o verdadeiro cristianismo condena a berith. Além do fato de ser uma
religião doméstica, tornando difícil para um estranho entrar nela. Isso mesmo o refere Clemente de
Alexandria na Exortação aos Gregos, para o início desta religião na Grécia Antiga, e se vê, ainda, no
continente africano, como no Candomblé da Bahia; até, mesmo, o Batuque gaúcho, apesar de sua
muito peculiar atomização, apresenta-se, em última análise, como uma estrutura famíliar. Percebi que
deve ser praticada em família, porque os demônios domésticos parecem respeitar a estrutura de
parentesco. Talvez seja a única regra que obedecem, porque suas personalidades, as prosopopeias dos
demônios, conformam-se por meio de complexos afetivos. Demônios parecem ser pura emoção, e
obedecem, de alguma forma, à regra de parentesco. Creio que as prosopopeias deles se organizam por
ela para se conformarem como entidades psíquicas, para existirem como pessoas.
Já o kardecismo e a macumba estruturam-se de forma diferente. Apresentam o que Marx chamou
“atomização do proletariado”: pulverizam as relações humanas. Se o Batuque e o Candomblé, como
cultos à divindades, podem ser vistos como a mesma religião da Grande-Mãe, e como o javismo que,
ao menos pelo culto a Yahi, deve ser incluído no grupo das religiões africanas, como um dos diferentes
estágios históricos da evolução religiosa, com a ideia do sacrifício do cordeiro que parece remontar ao
culto ao deus Amôn, do Egypto; já estas formas sociais anômalas, que são o kardecismo e a macumba,
revelam-se evidentes cultos demonistas. Aí, já não mais seria possível exercer controle algum sobre
estas criaturas, incontroláveis por essência, por serem a própria expressão do poder. Sem uma
estrutura de parentesco que lhes aponte um sentido, ¿que orientação poderão ter as personalidades
demoníacas produzidas no médium sob o transe? Um demônio fora de uma família é uma fonte de
perigos para qualquer um que se aproxime do médium, suscetível à mínima provocação involuntária.
Plutarco, com sua notória acuidade costumeira, aproxima-se desta questão em Peri. Deisidaimoni,aj.
Uma amiga minha, de formação marxista e, portanto, materialista, esposa de um conhecido membro
de um partido comunista local, entrou por passatempo em um terreiro e, após uma conversa com uma
pomba-gira, em que se apresentou chapada de maconha e parece não ter tido a reverência exigida
pela entidade encorporada, contraiu AIDS, algum tempo após ter sido devidamente ameaçada, o que
significa dizer amaldiçoada, pela demônia. Minha amiga não acredita no poder e na existência de
demônios e atribui a coincidência da ameaça demoníaca com o desfecho da tragédia ao acaso, a um
infeliz descuido com drogas. De minha parte sofri punição por publicar em livros minhas críticas à
macumba, fato cuja narrativa se constitui no objetivo deste escopo. Trata-se de uso violento do terror.
O que há de mais impressionante é o tamanho desprezo que os demônios nutrem pelas pessoas e
como facilmente esse desprezo se transforma em violência; da mesma forma como homens maus
maltratam desapiedadamente a animais. Por isso, digo que a Igreja perdeu o sentido de seu mūnus. A
Igreja, na mais vergonhosa atitude de toda a sua história de pecados, passou a legitimar o demonismo
como religião, ao mesmo tempo que “psicologiza” a teologia. ¿Que política vergonhosa é essa? Que o
mundo espiritual existe não se negocia. Quando a Igreja começa a negociar isso, em busca de prestígio
e de mercado, subverte o seu mūnus de sinal da graça e passa a induzir os cegos ao Mal, ao invés de
apontar para a luz. A Igreja relativizou a noção do sagrado. Então, ela já deixou de ser necessária.
A Igreja deveria ser sinal a lembrar que o Mal espreita para enganar. A expressão Vigilantes, na
literatura apócrifa, foi uma infeliz solução de tradução, da mesma forma como as outras que ocorrem
nos textos canônicos; a expressão correta devera ser “Espreitadores”, já que “Vigilantes” sugere uma
certa segurança às suas vítimas, conforme eles próprios se atribuem a função de guias espirituais; mas
os anjos rebeldes espreitam os homens, por detrás das portas. E, no entanto, hoje, a Igreja está
induzindo ao erro, legitimando o Mal, induzindo pessoas a praticarem o demonismo como se fora
“religião”, legitimando o espiritismo. Certamente, há mais alguma das suas perfídias por detrás disto.
Hoje, no Brasil, em grande parte pelo apoio da Igreja, pessoas vão a terreiros de macumba, sem
nenhum motivo maior que o senso gregário da espécie, apenas como atividade social. Associam magia
a religião e, logo, a Deus: se é religião, é de Deus e, então, é bom! Trata-se mais de um costume
inconsciente que de alguma necessidade espiritual. Um fenômeno a que os materialistas costumam
denominar como efeito bestializador da religião. E levam seus filhos, sem imaginar que abrem a porta
para uma outra realidade, para o Além; abrem, puerilmente, uma “porta cósmica”, e dão voz ao Além.
Assaz preocupante, na verdade aterrorizante para mim, o fato de certos eruditos não apresentarem a
mínima noção do problema que estudam, ao discutir os fato da História sem um correto enfoque
teológico, ou da História das Religiões. Posso exemplificar com o magnífico livro de Martin Goodman, A
Classe Dirigente da Judeia, As origens da revolta judaica contra Roma, 66-70 d.C (Rio de Janeiro:Imago, 1994). A ideia
deste autor é que o motivo da destruição do Templo de Jerusalém teria sido uma represália romana
contra a classe dirigente pela revolta judaica, embora também afirme que seja enganador encarar a
guerra contra Roma como a culminância da luta de classes, ali, naquela ocasião (Introdução). Para ele, as
causas da guerra propostas por Flavius Josephus e os historiadores modernos não são plausíveis. Não
vejo assim. Nem ele ou nenhum outro historiador considera a atuação política dos demônios em nossa
História, a sua práxis política de escravidão e terror conforme é revelada por meu trabalho.
Após o contato íntimo e intenso com a macumba brasileira que tive, com a oportunidade de observar
os comportamentos dos demônios durante os transes em que encorporam nos médiuns, seus cavalos
sob possessão, conforme será descrito nesta narrativa, devo interpretar incidentes como os fatos
provocados por Pompeu, Calígula ou Antíoco (a porca é a hóstia da Deusa), homens que, normalmente,
eram demonizados, quer dizer, eram aprontados na religião pagã para cumprir suas funções políticas
relativas ao numĕn impĕriålis, como provocações dirigidas pelo panteão da cidade de Roma, pelos
demônios encorporados nos corpos dos sacerdotes e induzidos na mente dos imperadores romanos,
submetidos eles próprios a ritos, como Pontĭfeces Maxĭmi, num plano ardilosamente preparado e
consecutado ao longo de séculos. Com razão, afirma Taciano, o Sírio: “Os demônios que dominam os
homens não são as almas dos mortos” (Discurso contra os Gregos, § 16; São Paulo:Paulus, 1995:82). Estamos lidando com
estranhas criaturas detentoras de extraordinários poderes telepáticos paranormais e sobrenaturais,
belicosamente ciosas da posse de seu poder político e inconformadas com a perda de seu aparelho
religioso. Teremos um árduo terceiro milênio pela frente, no qual estas criaturas diabólicas tratarão de
reobter sua hegemonia política perdida, através do sincretismo católico-umbandista, o qual se afigura
providente para um tal desfecho histórico.
O autor, Martin Goodman assim se expressa, em determinado momento de suas conclusões: “Desejo,
por conseguinte, argumentar que a extraordinária hostilidade do Estado romano para com o judaísmo
enquanto culto após o ano de 70 – que deve ter sido causada pelo comportamento dos judeus durante
a guerra, uma vez que aparentemente não existira antes de modo extenso –, derivou-se da fúria
romana pela participação da classe dirigente da Judeia na revolta”. Devidamente cauteloso ante o
próprio desconhecimento das causa ocultas na História que sabe não poder perceber, o autor não
conjetura o quadro de funcionários do aparato religioso da cidade de Roma, descura da influência
demoníaca sobre o próprio imperador derivada de seu “aprontamento religioso”, isto é, de sua
demonização, em virtude da preparação para o exercício do império, e do interesse de todos estes
demônios na Påx Deōrum, mecanismo que consolidava seu poder político e a manutenção dos cultos.
Quero dizer que os demônios, constituídos em prosopopeias resultantes dos “assentamentos de
santo” dos deuses na cidade de Roma, “permaneceram sempre como figuras obscuras, gesticulando no
fundo do quadro histórico”, para usar uma expressão do próprio Goodman (à p. 241), quando refere aos
druídas gauleses. Mas para mim não se trata de uma metáfora. Bem pelo contrário! Seus “gestos”
teriam sido muito concretos, seriam “passes de mágica”, como costuma ser o numĕ, porque o controle
religioso demonista se realiza através de poderes paranormais, não meramente pela burocracia
administrativa. Pode-se ver a absoluta acriticidade dele nesta passagem: “Os chefes guerreiros
gauleses tornaram-se, assim, na qualidade de magistrados das novas cidades, juízes de casos legais
ouvidos nos tribunais urbanos, e suas decisões, e não as dos druídas, eram mantidas pelas autoridades
romanas. Eles se tornaram os sacerdotes dos novos cultos urbanos em que deuses celtas eram
adorados à maneira romana. Os privilegiados receberam o controle do culto de Roma...” (grifo meu; p.
245); temos aí a po,lij (o estado com a divisão de classes), desconhecida dos druídas que não definiam-
se pelo status político pecuniário ou fundiário e judicavam na floresta; e temos, também, sacerdotes
de um novo culto (urbano) controlado por Roma. Esta é, inegavelmente, uma visão acrítica, do ponto
de vista religioso. Desconhece, em absoluto, qualquer dialética no fenômeno histórico religioso. Trata-
se de uma abordagem, quando muito, economicista, que ignora tudo o que logo passarei a descrever.
Ao contrário de Martin Goodman, que revela desconhecer totalmente a distinção entre xamanismo e
mediunismo, apontada por Mircea Eliade, e fala com ignorância da cultura das nações dominadas
(Judeia, Gália, Bretanha...), e do fracasso romano “em compreender um sistema social tão diferente do
seu próprio” (p. 241), cá em minhas cogitações, firmei por minhas próprias deduções pessoais e tenho a
certeza de uma ação política conjunta, ao longo do tempo e através do espaço, de todas as entidades
demoníacas, no interesse do poder político demonista exercido através do estado, onde os próprios
demônios situam-se no ápice da pirâmide social, através das possessões dos seus médiuns. Certeza que
alcancei por meio da observação direta de suas atitudes dentro dos terreiros brasileiros.
Particularmente o exercício de um poder que se assemelha à telepatia, e é realizado com a utilização
das áreas que chamamos cella e altar do templo. Estas entidades, quando encorporadas, parecem
comunicar-se, através do tempo e do espaço, com outros terreiros. Entendo que isso refere-se à ideia
de os demônios executarem um plano em oposição ao projeto divino, comentado por Padres da Igreja.
Martin Goodman pensou que a hostilidade do Estado romano ao culto judaico fosse meramente uma
coisa de homens, de seres humanos. Na obra, A Classe Dirigente da Judeia, pretende que simples
homens se tenham empenhado em destruir o templo de Jerusalém para acabar com um foco de
rebeliões populares, como reação ao que teria sido considerado como uma espécie de traição da classe
dirigente judaica à Påx rōmånå. Ele descuida que a Påx Deōrum era tratada diretamente com as
entidades locais, quer dizer, com os próprios demônios encorporados, por transe sonambúlico, em
seus sacerdotes; não no caso do culto ao Deus Altíssimo, evidentemente. E chega a sugerir que os
romanos poderiam ter dado uma forma humana ao Deus da Judeia, como o haviam feito a Ísis. Mas,
após contemplar os comportamentos dos demônios encorporados e como se utilizam da aparelhagem
que é um terreiro de macumba, um templo contendo cella ou altar, e as suas atitudes cultuais; bem,
então, nenhuma outra imagem suscita à mente, senão a de uma ampla movimentação política. O
templo é um instrumento genuinamente demonista, assim como o estado é, também, uma criação sua.
O culto cristão deveria ser um culto pessoal e doméstico, a ser realizado em células familiares.
Ao ocupar a basílica com o aparelho religioso romano, a Igreja cometeu grande erro, tornou-se a
religião venal do mercado. E, certamente, os demônios inspiraram muitos erros à Igreja pecadora,
neste último milênio. O cristianismo, se fosse autênticamente inspirado no movimento de Jesus,
haveria de ter acabado com a religião e todo o seu instrumental institucional, e não, ao contrário,
como o fêz, ter-se apossado do seu poder político. Mas para tomar o poder político através do
aparelho religioso romano, a Igreja entrou em uma sucessão de erros que resultou, hoje, no
sincretismo católico-umbandista. A Igreja é a única culpada por sucumbir às tentações do poder. E,
agora, os demônios não deixarão de lançar mão dos resultados destes erros ardilosamente inspirados.
O sincretismo católico-umbandista afigura-se-me como um recurso apto a mudar a situação política
religiosa neste terceiro milênio de história que se inicia. E, para isso, estão em atividade intensa.
Se a teologia mazdeísta já nos anunciava que o Espírito do Mal possui um conhecimento deficiente do
futuro, sendo incapaz de descortinar a ação do Espírito Santo, por outro lado, os demônios, com a
utilização do instrumento que é um templo (com sua cella e altar e, às vezes, o thophetim) podem ter,
durante a possessão demoníaca em seus médiuns, um conhecimento simultâneo (sincrônico) da
situação presente em diversos lugares e o histórico de seu passado. Talvez seja essa faculdade que lhes
permita agir à revelia do plano sincrônico divino. Parece-se como se houvessem duas sincronias: a do
Mal, orientada desde o passado ao presente; e a do bem, orientada do presente para o futuro. Por isso
o perdão do passado tem tamanha importância para o plano divino. Em um começar de novo.
Ao iniciarmos este terceiro milênio, a situação presente para o cristianismo parte desse fato, o
sincretismo católico-umbandista; do ponto de vista demonista, o sincretismo católico-umbandista é a
consumação dos fatos. O atual passo tático em sua ampla estratégia política. Passamos a viver novos
tempos, com inusitadas perspectivas, a partir do surgimento da cultura afro-brasileira.
Partindo da informação apresentada por Mircea Eliade em O Xamanismo e as Técnicas Arcaicas de
Êxtase (op. cit.), que o transe mediúnico absorve e domina o transe extático, vemos que eliminar essa
religião neandertaliana foi a opção que se apresentou ante a impossibilidade de convívio com a
pandemia e a necessidade de um habitat seguro. Como refiro em meu Tratado de Demonologia, o
Homō sapĭēns sequer é descendente biológico dos neandertais, portanto não deveríamos ostentar a
sua religião em nossa cultura. O incidente histórico que gerou tal infortúnio parece ter sido o convívio
dos primeiros Homō sapĭēns que desceram das montanhas da Etiópia, seguindo o curso do rio Nilo,
com uma comunidade de neandertais na região a sul do delta (Mênfis), junto ao mar Mediterrâneo em
épocas pré-históricas, antes que os aluviões arrastados pelo rio Nilo formassem o delta.
No Egypto, nos primórdios da História, encontramos uma tradição do convívio humano com uma
“raça divina”. Fora encontrada no delta, e em virtude dela se desenvolveram técnicas com as quais se
entalavam as cabeças das crianças da realeza de forma a crescerem com o formato do crânio alongado,
como vemos nas pinturas e relêvos, à semelhança dos neandertais, chamados “a raça divina”. O que
exponho em meu livro é que essa religião que se apresenta hoje, no Brasil, deriva diretamente dos
cultos neandertais. Não é, ou não deveria ser, segundo a Lei de Deus, cultura sapĭēns. A religião do
Homō sapĭēns é monoteísta e seu culto, o transe exclusivamente extático, não o transe mediúnico.
Aliás, sinto necessidade de comentá-lo, a familiaridade com as teologias do irlandês Charles Dodd e
do alemão Rudolf Bultmann, ambas recentes, do recém passado século XX, permite-nos perceber a
equivocada “re”-leitura que a Igreja (principalmente nas seitas mais fundamentalistas) faz sobre as
Escrituras, especialmente o Evangelho. Parece muito evidente que o paradigma religioso do mundo
antigo, de que, talvez, o melhor exemplo possa ser a obra de Plutarco, foi o modelo que serviu de
comparação para a interpretação, não apenas dos fenômenos, mas do próprio espírito dos textos
sagrados (daí esta concepção de “sagrado” impor-se ao conceito de “santidade” cristã). O professor
David Flusser, de Israel (in O Judaísmo e as Origens do Cristianismo. Rio de Janeiro:Imago), endossando-se com Rudolf
Bultmann (Teologia do Novo Testamento. SãoPaulo:Teológica), aponta para uma re-escrituração do Evangelho feita
por mão grega, alheia ao espírito judaico, revelada nas estruturas sintáticas de duas camadas de
redação. Este é um dos aspectos do que chamei “entrismo” demonista na Igreja Cristã, no caso, nos
textos; infiltração proposital de cosmovisão demonista na Bíblia, na Igreja e na teologia, com intuitos
políticos que, por inspiração demoníaca, serve, agora, para a restauração de sua hegemonia na terra.
O Projeto “Q” pareceria poder esclarecer esse entrismo demonista nos Evangelhos, mas lá não se têm
essa percepção, pelo que pude perceber, ao menos, pelo livro de Burton Mack, O Evangelho Perdido, o
Livro de Q e as origens cristãs (Rio de Janeiro:Imago). Demônios são um elemento ausente para o autor.
A queixa que tenho aos teólogos evangélicos norte-americanos, não somente os envolvidos com o
Projeto Q, mas com quase todos que conheço, é a mesma que apresento aos teólogos brasileiros: não
entendem o que está escrito na Bíblia, da mesma forma que os filósofos não entendem os escritos da
Antiguidade, daí tantas escolas sobre Platão, como a de Schleiermacher e a de Tübingen-Milano. Não
entendem os textos por não entenderem a realidade religiosa tal como a viveram os antigos e tal como
se a recomeça a reviver, agora, no Brasil, sob a proliferação da fenomênica pneumática parapsíquica
(mágica), promovida pelo demonismo. Se vissem somente alguns dos sucessos de manipulação dos
elementos da natureza promovidos nas festas de Yemanjá, nas praias brasileiras, teriam alguma base
para entender os fatos teofânicos descritos na Bíblia e nos escritores antigos.
Estava, agora, orando e minha imaginação abriu-se com a imagem querida de meu amado e, ato
contínuo, comecei a lembrar minhas conversas com ele. Então, algo na região superior de minha tela
mental chamou-me a atenção e foi como se eu largasse aquela imaginação, que se foi. Purgou-se uma
obcecação amorosa. É dentro do imaginário que os demônios atuam. Aconteceu fato singular na
terreira de minha família, onde eu girava. Estando eu na roda e a minha prima cacique encorporada
pela Maria Padilha, fazendo uma desobsessão de um exu muito torto encorporado em um outro
médium, senti-me confrangido por solidariedade ao esforço que a pomba-gira realizava e achei ser
meu dever tomar uma atitude mental cooperativa; alí, somos continuamente exortados a manter
atitudes mentais favoráveis; e instintivamente imaginei dois anjos negros com asas de morcego
descerem, caindo sobre seus próprios pés, um de cada lado dela, simultaneamente. A pomba-gira teve
um sobressalto, vendo o primeiro anjo que imaginei descer e logo se virou para o outro do outro lado,
com uma surpresa menor. Percebi que ela estava “vendo” a minha imaginação em três dimensões,
como coisas reais à sua volta. Ela então despachou, isto é, fez desencorporar do outro médium o exu
que desobsedava, para poder dar mais atenção a mim, na corrente. Parece que, ao descobrir este
efeito, ela o achou mais interessante que a desobsessão que fazia, pois desobsessões são trabalhos
frequentes em terreiros. Tudo acontecia mentalmente, para mim, e a pomba-gira não saía do seu
lugar, dentro da roda da cangira, mas não no centro e sim mais próxima do meu lado. Despachou o exu
com ordens verbais, mas a mim perguntou mentalmente algo, não ouvi uma frase articulada, mas fui
compelido a responder também mentalmente e a resposta que saiu, mentalmente, foi: “eles eram prá
ajudar”. Concluí que aquela realidade que estava sendo representada teatralmente pela pomba-gira
desobsedando um exu, isto é, dois médiuns encorporados dentro da roda da cangira, de alguma forma,
estava relacionada com os imaginários das pessoas da roda. De fato, quando chamo “poço dos
desejos” ao fenômeno espírita, em alusão ao conto de fadas, é porque alí se realizam, se concretizam
alguns pensamentos, mais temores que desejos das pessoas, propriamente, desde que assim o
permitam as entidades. Nada ocorre fora do controle dos espíritos. Não sei por que percebi com mais
clareza que os outros, ou melhor, por que minha imaginação interagiu com aquela representação.
Lembro, enquanto escrevo isso, do Caso de Possessão Demoníaca do Século XVII, estudado por Freud.
A alegoria do Poço dos Desejos é a seguinte: a cada passe que se toma, dado por algum espírito em
qualquer tipo de centro espírita, realiza-se uma abertura da mediunidade; como uma abertura do
próprio inconsciente, que passa a projetar-se numa espécie de psicorragia, produzindo desapego.
Jacques Lacan fala em deslize do significante sob o significado. E vai-se gradativa e progressivamente
perdendo os valores morais e o controle sobre as próprias pulsões, como se fôssemos jogando esses
valores num poço, que é o inconsciente. Com o afrouxamento do superego, alguns desejos se realizam.
Houve uma outra experiência que me aconteceu na roda da cangira, em Pelotas, logo após ter
entrado para a corrente da terreira da minha família materna. Tendo contrariado o pe. Léo Poersch,
que não me dera respostas satisfatórias, envolvi-me com esta terreira numa aventura curiosa, onde
buscava minhas respostas. Minhas justificativas a mim mesmo e ao padre e, posteriormente, ao bispo
Dom Jayme fora conhecer e entender o fenômeno religioso. Foi durante uma arriada de pomba-giras, a
qual parece ter sido um acontecimento singular. Mas fatos singulares foram frequentes, em minha
experiência na cangira daquele terreiro, durante todo o período de tempo que alí permaneci.
O ritual da cangira umbandista e quimbandista, por assemelhar-se aos inúmeros folclores de dança
de roda, escapa aos cientistas sociais em sua natureza mais íntima, sua natureza sobrenatural. Escapa-
lhes o poder mágico que faz os rodopios do adepto que gira no centro da roda sejam movidos por uma
força não inerente a ele próprio, se assim posso dizer. Quero dizer que a força que move o corpo que
gira no centro da roda de corrente, numa cangira, certamente tem uma origem qualquer fora do
próprio corpo que sofre o movimento. Assim parece a todos os que giram e é tratado como tal nos
terreiros. Se essa força se origina no próprio inconsciente coletivo é coisa que não se percebe por se
tratar, naturalmente, de causa que permanece inconsciente, o que justifica o seu próprio nome. Muito
provavelmente a origem desta força está no inconsciente dos adeptos já “desenvolvidos”, que fazem a
roda encorporados. Um médium desenvolvido, i. e.“aprontado”, pode girar espontaneamente sozinho.
Pessoas espíritas a quem narrei isto demonstraram estranheza que eu tivesse consciência dos fatos
desenrolados; ao menos, alguns dos fatos. Na tal arriada de pomba-giras, estava eu costumeiramente
na roda e, num certo momento em que a Maria Padilha da minha prima cacique estava perante o
congá dos exus, praticamente debruçada para dentro do nicho, como se tivesse metido a sua cabeça
em um tipo de “túnel do tempo”, e rebolava ao som dos atabaques que puxavam pontos cantados,
quando, inexplicavelmente, senti algo (deduzi, posteriormente, fora uma CARGA: af;m); que veio sobre
mim, como se fosse algo semelhante a um peso. Não sei como eu percebera que vinha da direção do
congá, onde estava a Maria Padilha. Tive a sensação de não ser algo bom e senti necessidade de evitar
e proteger-me daquilo. Então, ocorreu-me que eu iria para o seminário e qualquer problema na área
sexual o teria neutralizado, simplesmente, pela renúncia ao sexo. Assim, não sei explicar como, por um
ato subjetivo de vontade, realizei um movimento semelhante ao numĕn, mas parece-me que com todo
o corpo e não só com a cabeça, “joguei” a carga para o sexo.
CARGA, ou peso (af;m); , define-se como um quantŭm mediúnico passando de um corpo a outro corpo.
Após alguns meses apareceu-me um herpes, depois de uma relação que estabeleci após o fato. Todas
as circunstâncias me fizeram crer que adveio disto. Mas esta foi somente a primeira de uma
longuíssima lista de doenças provenientes dos demônios, como cálculos renais e gastrite nervosa, e
cada uma originada em circunstâncias diferentes, por diferentes atos mágicos cujos ritos foram todos
diferentes, em alguns de cada dia que se seguiram. A única constante era a doença, o Mal.
Tanto a minha prima, a médium cavalo da Maria Padilha, como eu mesmo somos desenhistas, assim
como, também, o pintor estudado por Freud. Talvez os artistas sejam mais suscetíveis a essa realidade
deste plano paralelo (na verdade, não seriam planos paralelos, mas sim duas dimensões que se
transpassam) por terem facilidade de acesso ao imaginário, em virtude de o imaginar ser algo a nível
de pensamento concreto para os artistas plásticos. Talvez, por isso, houvesse uma tão pronunciada
interferência do observador. A Física Quântica realizou uma descoberta semelhante. Contudo, cheguei
a receber críticas, alhures, no sentido que devesse permanecer passivo na roda, não realizar nenhuma
interferência interagindo... mas essas interações foram, por assim, dizer, reações involuntárias. E, de
início, no momento que aconteceu, a pomba-gira pareceu achá-la interessante.
Aliás, esta vem a ser a marcante característica no comportamento dos exus que permite estabelecer a
analogia que os identifica com os anjos caídos, eles adoram a interferência, a motivam. Na segunda
parte (a publicar) de meu Tratado de Demonologia, apresento uma teoria sobre as representações da
encorporação mediúnica na cultura antiga que explica o simbolismo do “casamento” dos anjos com as
filhas dos homens. E é a volúpia a marca registrada das intervenções dos exus na vida da gente.
Uma das notas que caracteriza o comportamento dos espíritos identificáveis aos anjos “caídos” (e
devemos observar que a expressão correta é “cadentes”, no presente, pois trata-se das contínuas
“arriadas” de espíritos, que realizam-se até hoje), além de sua extrema voluptuosidade libidinosa, é o
prazer que manifestam ao fazerem e ensinar feitiços e mandingas, confirmando o Livro de Henoc que
narra, em seu capítulo 8, as artes mágicas que foram ensinadas aos homens e com que fizeram, assim
como também com a fornicação, a impiedade aumentar e multiplicar-se sob todas as formas de
superstição (peri,ergoj) de que se queixava Plutarco, na Moralia.
Mas o fato é que, mesmo estando, agora, de joelhos rezando, eles me estavam obsedando, com meus
desejos presos à essa realidade imaginada, até o momento que tudo se dissolveu, como disse acima.
Cotidianamente, nos meus últimos anos de abandono, percebo-me dentro de minha imaginação
“convivendo” com meu amado. Este estado ainda volta, às vezes. Principalmente na cozinha, que é
onde sentávamos para conversar. O estado de oração me permitiu enxotar da minha cabeça essas
imaginações. Os demônios me arrastam para dentro dessa imaginação específica, acho que é ali que
estou preso. Este estado de “prisão mental” (de Ma$ya$, dizem os orientais) acompanha-me desde que
envolvi-me ativamente com a macumba. Creio que a ascese pode desmanchar essa personalidade.
Quando falo em desmanchar a personalidade tomo como referência a tradição budista. No Tibet, o
budismo estabeleceu profunda relação de sincretismo com o demonismo local, como o hinduísmo, na
Índia. A tradição budista tibetana tem uma teoria bastante complexa sobre a personalidade, sobre a
qual li recentemente, em artigo dos antropólogos Gregory Hillis e Ana Paula Gouveia (Práticas Oraculares
Tibetanas: o caso do oráculo Nechung. Cadernos do NER n° 15, Porto Alegre:UFRGS). Uma dimensão crítica da filosofia budista
ocupa-se justamente com a análise, a crítica e a refutação da personalidade ou da identidade. As
pessoas não possuiriam uma identidade individual fixa ou estável, o budismo nos vê como um fluxo
constante de eventos mentais e físicos interdependentes e transientes, conhecidos como os skandhas:
a forma, as sensações, as percepções, as formações e a consciência. Os skandhas são os elementos que
constituem os entes, o agregado da forma (ru$pa) e os demais níveis psíquicos. Então, de forma mais
intensa que com nosso corpo, que está em constante transformação, o “eu” seria, na verdade, um
processo fluído. O que possibilitaria a “invasão” do espírito demoníaco seria um deslocamento do
centro arquetípico dominante na psiquê, a qual deve subsistir durante o estado de transe de
possessão. Em minha própria teorização, criticando a psicologia junguiana, já afirmei que o daímwn é
um complexo afetivo sob dominância do arquétipo do Diabo. Mas há muitas implicações nesta
afirmação e ela necessita ser sustentada por ampla descrição etnográfica.
Aqui, neste texto, apresento um breve esboço. A relação estabelecida por mim com o médium da
cidade de Pelotas, levou-me a um encontro com seus demônios e, particularmente, com aquela
entidade do Batuque chamada Bará, considerado, se fizermos uma analogia bíblica, como El Shaddai, o
Todo-Poderoso. Em tradução ao Livro de Ruth, verti Shaddai por Diabo, embora usualmente, prefira
traduzir por demônio(s) o termo shed(dim). Há uma diferença a ser marcada. Os demônios são, apenas,
prosopopeias guardiãs de assentamentos (os cutás/qeoi,), mas o deus mesmo, o próprio qeo,j em si
mesmo, uma força infernal, proveniente do Abismo. O Abismo é representado, em egípcio, por Nanã :
(ou : Nww), as Águas Primordiais, e expresso, em copta, por noun. A metafísica ocidental
somente o pôde conceber como o inconsciente ou o reprimido psicanalítico, ou melhor os månēs ou
eguns (as almas mortas), mas não entra nesta ontologia a ação da força todo-poderosa. Todo-poderosa
porque está acima do Bem e do mesmo Mal, acima da justiça e da ética, nada a constrange. No Egypto,
correspondia ao aspecto feminino, a Noite (Nwt : ), assemelhando-se ao copta nou]: Deus, que não
passaria de um demiurgo: o daímwn.
Força todo-poderosa que a mim constrange, particularmente, na forma como me vejo manietado e
compelido pela força de um daímwn. O elemento demoníaco é alvo de dissimulação pelo embuste
ideológico do livre-arbítrio, amplamente divulgado pelo espiritismo. Mas onde atua um daímwn não
há liberdade para o homem, o que faz-se em motivo comum a outras pessoas para refúgio nas igrejas
evangélicas, porque o daímwn cerceia a liberdade. Sobre o poder desse daímwn sobre mim é que falo.
Existe uma relação bem clara para quem a sofre entre o controle dos espíritos sobre as pessoas e o
afluxo de material inconsciente. Sob a ação do daímwn agimos dentro de uma esfera perceptível aos
olhos, sob a forma de uma luminosidade diferente, semelhante àquela provocada pela maconha.
Talvez, a indução do transe com drogas tenha facilitado a degradação do xamanismo em mediunismo.
É evidente, ao menos, que os demônios atendem a interesses seus próprios e não os das pessoas que
os buscam; qual é o interesse dos demônios que tanto buscam, é uma questão para nós. Mas cada um
sabe, no Brasil, o que buscou na magia. Nas terras do Brasil, dobra-se o joelho e se adora Lúcifer.
Só se obtém algo, só se tira algo dos demônios através da subserviência aos seus caprichos.
E, assim, entendo a tática de haverem transformado os centros espíritas em grandes unidades de
disseminação de mediunidade. Pessoas esperam por horas a fio, formando filas kilométricas que se
estendem pelas portas afora dos principais terreiros e centros espíritas de Porto Alegre, onde dezenas
de centenas de pessoas, em cada centro espírita a cada sessão, vão procurar os passes espíritas, sem
motivos muito claros e aonde levam crianças às vezes bem pequenas. Até mulheres grávidas,
sabidamente em um momento de alta estimulação imunológica, em virtude da gestação, dispõe-se a
permanecer muitas horas nas filas, para receber estes passes; apenas, devido à instabilidade
emocional característica da gravidez. E, dessa forma, os demônios passam a ter controle cada vez
maior sobre um número sempre crescente de pessoas. Atuam sobre os fetos.
Ao se conversar com diversos tipos de espíritos em vários centros diferentes, pode-se-os perceber
referirem-se às pessoas como se o mundo estivesse dividido em duas classes de gente: “os deles” (lit.:
“os nossos”) e os outros. Por “os nossos” entenda-se os que tiveram suas mediunidades desenvolvidas
ou os filhos destas pessoas; pessoas que eles julgam, e realmente parecem estar, sob alguma forma de
ação do seu poder; quando crianças manifestaram disritmia cerebral; e, em geral, são mesmo pessoas
aparentemente desregradas; gente que inconscientemente atua em sincronia com os atos mágicos de
seus planos. Se a estratégia dos demônios, no que parece ser uma luta por hegemonia política, é ter
domínio sobre as pessoas para aumentar o seu controle sobre o mundo, uma das táticas é, sem dúvida,
desenvolver a mediunidade de uma grande parcela da população através dos passes espíritas para
manipulá-los através de seus inconscientes.
Recentemente, assisti uma palestra na PUC-RS do atual diretor da Faculdade de Filosofia, professor
Draiton de Souza. Ele fez uma curta referência, nesta palestra, ao poder restritivo da liberdade
exercido pelo daímwn. Referiu como uma leitura nova e a referência dada foi o irlandês E. R. Dodds e
sua obra Os Gregos e o Irracional. Foi uma leitura desenvolvida por reflexão própria do professor
Draiton, no meu parecer. Dodds faz somente uma breve menção do fenômeno a partir da literatura
grega, sem a desenvolver. Aliás, a leitura dessa obra foi-me recomendada por um desses padres
psicologistas, um professor de teologia da PUC-RS que publicou em livro que demônios não existem.
Pode-se ver daí que se as leituras podem ser divergentes, e de fato o são: temos um padre renegando o
fenômeno religioso e um cientista, um filósofo realizando uma leitura piedosa. Por certo, não há
somente espírito piedoso, mas filosófico, no professor Draiton, ao referir o texto de Dodds, embora o
resultado tenha sido este, para este texto. Mas o padre em questão, do meu ponto de vista, realizou
uma leitura ingênua e bem mais próxima do intento do autor. Dodds, absolutamente, não entendeu o
fqo,noj. E é do fqo,noj divino que trata este presente texto, do zelo com que preservam o seu poder.
Este texto é uma pergunta pelos motivos para tanto zelo pelo poder por parte dos demônios, pelo real
motivo para tanta violência contra os seres humanos.
Li o livro de Eric Robertson Dodds, Os Gregos e o Irracional (São Paulo:Escuta, 2002), e achei este irlandês um
europeu imbecil típico, como, de resto, tantos autores da academia burguesa, e o padre da PUC, um
idiota completo, um alienado, herege, de desavergonhado oportunismo, que não acredita em religião,
mas tira proveito da necessidade dos crédulos, um intelectual local vendido ao opressor estrangeiro. A
começar que ele chama o demonismo de crença: “crença em demônios”! Usando os mesmos termos
consagrados por Immanuel Kant, ao abrir a terceira secção da Crítica da Razão Pura: Da Opinião, da
Ciência e da Fé (A 820), digo que é injusto que trate a sua própria religião por “fé” e ao demonismo por
“crença”, sendo ambas crenças, mas sendo o demonismo convicção e o que ele chama de fé, mera
persuasão. Todos os demonistas concordam com um objeto sensível, o demônio, com o qual tratam e
obtém ganhos materiais, mas os cristãos são persuadidos a se converterem e aceitarem uma realidade
de mundo não sensível. A única coisa sensível na práxis cristã é o dinheiro pago pelo ofício persuasivo,
enquanto os demonistas não percebem em que espécie pagam o comércio com demônios.
Dodds choca desde o seu primeiro capítulo, mas, talvez, seja no segundo capítulo, onde se propõe a
descrever o cenário da realidade grega, que ele realmente se supera. Mas Dodds tem insights. Este
capítulo segundo é aberto com uma epígrafe bíblica, de Hebreus: “É horrenda coisa cair nas mãos do
Deus vivo” (10:31). Poderia parecer que ele se ocupasse das questões que me atormentam, mas não,
ele, apenas, se encanta com “a beleza e o terror das antigas crenças” (p. 56). Segundo seu propósito
declarado, quer começar expondo o processo evolutivo de projeções psíquicas de sentimento de culpa
a personificar em um agente externo a justificativa para a impulsividade, falsamente representada
como divindade ou demônio; e estes meros conceitos. A possessão seria mero caso de personalidade
alterada (p.73), como também advogam o ilustre padre e professor de teologia da PUC-RS, como tantos
outros de outros institutos teológicos. Jesus não era exorcista: a possessão seria mera doença psíquica.
Esta visão expressa por Dodds foi a leitura recomendada no livro. Dodds não chegará a expressar
verbalmente, embora o permita entrever a um bom leitor, devidamente contextualizado, o referido
fenômeno de cerceamento da liberdade do indivíduo pelo daímwn, tal como o professor Draiton o
expressou ou eu o entendi, em sua palestra. Seja do indivíduo ou do sujeito não fará diferença na
realidade prática. E não estou lidando com conceitos, como Dodds ou aquele padre inútil, mas com os
fatos reais da vida. Em seu livro, Dodds apresenta a confusão entre fenômeno mediúnico e extático,
ele permuta ambas as expressões. Na verdade, Dodds pensou que a mudança da visão ontológica de
poderes divinos arbitrários para a ideia de justiça cósmica bloqueou a emergência do sujeito (in ipsīīs
littĕris: “uma verdadeira visão de indivíduo” – p. 41). Rodolfo Mondolfo (O Homem na Cultura Antiga, a
compreensão do sujeito humano na cultura antiga; São Paulo:Mestre Jou) mostrou não ser esse o caso. É que Dodds entrou,
juntamente com tantos outros, no mesmo barco furado oferecido por Lévy-Bruhl (citado en passant,
por Dodds), e apresenta, apenas, alguma suficiente noção de classe e de resto, nenhum conhecimento
profundo sobre o que falava, como se pode bem ver à p. 51, onde assume o funcionalismo de
Malinowski e afirma categoricamente, à nota 91, que a crença no dæmo não seria minoica, mas sim
indo-europeia; ou à 140, onde diz: “Assumo que o homem alimenta seus mortos pela mesma razão que
uma criança alimenta sua boneca”, colocando-nos assim uma solução e não o problema.
Trata-se do preconceito hegeliano contra a África, uma vez que o fulcro da questão é a assimilação da
cultura egípcia pelas tribos invasoras da Grécia e do mar Egeu. Dodds revela-se um neo-hegeliano com
a sua visão linear de progresso, da modernidade. Mondolfo aponta elementos modernos na vida
antiga, na natureza do gênio helênico denominada por ele “polimorfa”, reclamando uma maior
compreensão para a subjetividade dos antigos. Mas pelas páginas de Rodolfo Mondolfo perpassa a
onipresente figura, desconhecida para ele, do daí,mwn. Quando cita Giovani Gentile, dizendo que o grego
não encontra um lugar para o homem no mundo, fazendo-se expectador, deveria completar: porque
contemplava um outro agente: o daí,mwn todo-poderoso preenchia todo o mundo helênico.
Não havia condições para a liberdade do indivíduo, sendo impensável uma liberdade individual.
Na cosmovisão da Antiguidade não havia o equívoco burguês que instituiu fraudulentamente a
liberdade de mercado e que proclama a autonomia do homem, o homem antigo estava sujeito a um
deus ou outro. Da mesma forma como para o indígena brasileiro não houve a noção de roubo, porque
lhe era inconcebível a propriedade privada. Mas é um dado da biologia evolutiva que o Homo sapĭēns é
o ápice da cadeia biológica. Todos os homens possuem um espírito, apesar de alguns jesuítas terem
vendido negros africanos como escravos. Basta conhecer a sua cultura e se encontrará nela as suas
representações. Aliás, este é o princípio da Psicologia Analítica.
A África se encontrava afogada no sangue negro. O desenvolvimento civilizatório no continente
africano transformara os sistemas tribais de muitas nações em florescentes reinados de terror. Os reis
africanos desenvolveram um sistema de guerras para captura de seres humanos com finalidades
eminentemente religiosas. As condições econômicas da África não demandavam mão de obra escrava,
levando a destinar-se os prisioneiros feitos pelas incursões militares sobre os povos mais fracos em
hóstias humanas. Os sacrifícios humanos em rituais religiosos, na África, estavam se dirigindo ao
esplendor e magnificência que se encontrou na América. Mas a África não havia, ainda, atingido o
desenvolvimento econômico necessário para oferecer um maciço destino escravagista aos prisioneiros
no âmago das selvas, foi necessário exportá-los. Com a expansão comercial europeia, os burgueses
insurgentes descobriram a África em franca atividade escravocrata de venda de africanos para o Islam,
passando a fomentar, também eles, este mercado. Os homens africanos eram escravizados e vendidos
pelos próprios homenas africanos. Tratava-se da agressão civilizatória contra o sistema tribal. Quando
as nações burguesas europeias passaram a instalar postos de escambo ao longo do litoral africano, os
jesuítas não deixaram de instalar lá um posto seu, e entraram para o comércio de negros.
A teologia cristã, nessa época, muito oportunamente pregava que negros não possuíssem uma alma.
A mitologia africana, por sua vez, revela uma profunda elaboração humana. Na mitologia africana há
uma representação muito bonita do sujeito humano. Trata-se de uma história de amor. Ela se encontra
no ciclo mítico de Iansã. Iansã é uma deusa do amor que pode ser identificada grosseiramente com
Afrodite Pândema, em oposição a Oxum, que representaria Afrodite Urânia; mas ela representa mais
diretamente as deusas do amor guerreiras orientais Inana-Ishtar, assumindo o aspecto noturno do
planeta Vênus, quando este segue o declínio do Sol. Conta a lenda que Iansã, casada com Ogum, não
lhe dava filhos. Por obrigação do direito familiar, deveria, então, dormir com Xangô, o irmão de Ogum,
para prevenir a infertilidade do irmão. Ela é assim conduzida a Xangô pelo Bará Agelú, o amigo íntimo
de Ogum, para a consumação do matrimônio sem herdeiro. Mas Iansã, por amor a Ogum, o embebeda
com “atã” fazendo adormecer e permanecer inconsciente o marido, durante o ato de redenção, para
que ele não sofresse devido à grande paixão que por ela nutria. A redenção foi infrutífera. A verdadeira
deusa do amor revela-se, afinal, Oxum, a mãe de Agelú, pelo seu aspecto luciferino. Essa versão do
mito, concorde com a cosmovisão original das culturas tribais africanas é hoje desconhecido no Brasil.
Eu próprio o reconstituí, a partir da reza do batuque. Como bem observa Norton Corrêa, em O Batuque
no Rio Grande do Sul (2.5 A concepção-pessoa no Ocidente e no Batuque; Cultura e Arte:São Luís, 2006; pp. 262 ss), foi
assimilada uma mentalidade moralista cristã deturpadora da visão dos membros da comunidade
africana gaúcha quanto ao caráter dos orixás, sendo reinterpretada como uma “fuga” de Iansã (Ogum, p.
184; A dança do atã, p 271), mediante o embriagamento de Ogum, para relação sexual com Xangô. Trata-se,

na verdade, de uma questão de direito familiar atualmente desconhecida pelos costumes. Iansã
embriagou Ogum para o proteger do mesmo amor, pois também ela ardentemente o amava. Estes
sentimentos profundos da alma humana eram compreendidos e representados na cultura africana.
Isto demonstra a subjetividade do Homō sapĭēns desde o seu aparecimento, na África.
Tampouco a natureza da relação entre Ogum e o Bará Agelú é percebida com clareza, mas ambos
comem juntos no mesmo ferro, ou o seu minhiã-minhiã (hx,;n>m)i . Ainda aqui, estamos no âmbito do
direito familiar e, mais que isto, ante uma profunda compreensão dos sentimentos masculinos e das
necessidades psíquicas dos meninos em seu processo de construção como pessoa.
Da mesma forma que o povo brasileiro deturpa a cultura que recebeu, Dodds deturpou a helênica.
Mas nele há sentimentos de superioridade típicos da ideologia de hegemonia metropolitana sobre as
colônias, da cultura burguesa cristã. Coisa que se reproduz com nossos intelectuais, no Brasil.
A opinião do padre da PUC-RS choca por ser ele professor universitário e padre; professor de teologia!
Denunciei-o ao seu bispo, que teve um choque, porque o padre apresentava outra faceta na reunião
diocesana; mas o bispo não fez nada, que eu saiba, o padre continua ensinando a sua doutrina na PUC-
RS. Este é o senso comum entre os intelectualoides menores. Recentemente, um jornalista, Laurence
Bittencourt, de Natal, capital do extremo estado nordestino brasileiro, publicou aqui no Rio Grande do
Sul matéria dizendo: “Obviamente, o livro de Dodds tenta demonstrar sua tese a partir de um recorte,
de uma análise bem específica – ou seja, a partir da ‘religiosidade’ grega antiga, completamente
diferente da nossa hoje em dia” (TEMPO 21, Porto Alegre, nº 6, nov. de 2015). Tal opinião é o lugar comum de juízos
apressados e das projeções fenomenológicas. Por acaso, ilustrando a reportagem, uma foto do forum
romano está estampada ao lado da opinião citada. Gostaria de sugerir uma reflexão sobre o
ressurgimento destas ruínas de um passado que se julgou extinto. O que se fez acompanhar das
celebrações pela vitória do cristianismo sobre o demonismo. Ruínas que voltam à vida através do
sincretismo católico que a igreja romana preservou e entregou de mão beijada para a Umbanda
brasileira, tornando-a em um eficaz artifício ideológico que mascara o discurso da magia negra na
Quimbanda. Uma leditimação ideológica já utilizada no Congresso Nacional.
A opinião corrente entre os padres da PUC, somente concebível pela vaidade de intelectuais forjados
em confrarias de elogios mútuos que se auto-concedem diplomas e bons empregos uns aos outros,
unicamente imita e copia os intelectuais europeus. Àqueles, lá distantes de nossa realidade, é tolerável
um erro tão grosseiro, mas não aos intelectuais brasileiros e aos padres teólogos na Igreja. E depois,
por ensinarem tamanhos absurdos, são elevados como bispos, como doutrinadores heréticos, e talvez
virem santos e doutores da Madre Igreja. Porto Alegre ostenta meia dúzia destes prelados purpurados,
mas todos juntos não valem nada e menos ainda o que escreveram.
Como é comum entre os autores europeus que tratam de religião, sobretudo a antiga, que tantas
semelhanças apresenta com o demonismo brasileiro, Dodds revela um profundo e ofensivo desprezo
pela realidade do outro, especialmente, desprezo pela cosmovisão do outro. Escreveu: “... pois quem
trata outro ser humano como divino está, desta maneira, atribuindo a si mesmo o status de uma
criança ou de um animal” (p. 243). Muitos padres orientam-se por esta escola, mas padres europeus são
membros de uma sociedade opressora de outros povos considerados inferiores ou desprezíveis, o
segundo e o terceiro mundos. Já os padres brasileiros que assim o fazem traem o povo brasileiro e o
Povo de Deus. ¿O quê pessoas desta natureza estão fazendo dentro da Igreja? Assediando crianças?
Obtendo dinheiro de uma forma indevida para uma vida geralmente corrompida pela devassidão?
Percebendo um salário para beber vinhos? Conheço padres que frequentam prostíbulos e, no entanto,
em suas paróquias exalam odor de santidade. Esse tipo de padre, e são demasiadamente numerosos,
está na Igreja pelo dinheiro fácil, como bem o declaram ser sua intenção desde seminaristas, em sala
de aula, ante leigos estupefatos, aqui na PUC-RS. Moral e decência são coisas do passado.
O povo está sujeito a isso... Eu estou sujeito a isso! O futuro já está orientado em determinada
direção. A Cúria Romana os incensa e benze. São úteis os que têm o rabo preso!
O de que o professor Draiton, parece-me, apercebeu-se na obra de Dodds, está em um nível bem mais
profundo de percepção. Creio que o professor Draiton realizou uma releitura dêitica, posto que está
posicionado in sitū, e teria, necessariamente, que contextualizar a cultura antiga diferentemente do
que o faz um europeu. Não me parece que Dodds faça esta afirmação, se o fizesse ela estaria no
capítulo VI. Creio que o professor Draiton refez (mimh,etai) a compreensão do próprio Dodds do material
que pesquisou, mas o professor brasileiro foi um passo mais além em sua interpretação, projetando
uma conclusão que o próprio Dodds não teve condições de sintetizar. O professor Draiton sim, por
estar localizado no Brasil, por conviver, mesmo indiretamente, com o demonismo o compreende, ao
passo que Dodds, por não compreendê-lo, não interpreta corretamente a literatura clássica. Dodds
nega, de cabo a rabo, em seu livro, a existência de demônios e o professor Draiton, embora eu não
saiba se os afirma integralmente, teve que admitir, ao menos, a realidade da constrição da liberdade
expressa naquela literatura; compreensão permitida pela contextualização dêitica de quem está
imerso na mesma realidade. Dodds jamais conheceu esta realidade.
É sobre a realidade cruel e indeclinável do jugo dos demônios, sobre o seu poder de interferir na
liberdade humana que versa este texto. Uma realidade que está passando a ser sensível ao senso
comum de toda a população brasileira, independente de condição social ou cultural, se estou correto
acerca do proferido pelo professor Draiton. Uma realidade em breve descortinada pelo povo argentino
e, logo, por todos os povos latinos e, então, por todo o mundo. Uma realidade dolorosa, mais para uns
do que para outros e, se depender do tipo de Igreja que existe hoje, com a derradeira vitória mundial
do plano dos demônios: sua reconquista definitiva do poder político perdido.
Existe algo maligno no espiritismo que a experiência nos mostra. O espírito que move a gente depois
de um passe espírita é um espírito do Mal. Ao menos; não quero parecer convencido e vaidoso, mas
penso que tenho alguns critérios estabelecidos como máximas; através de alguns imperativos com que
busco nortear-me pelos valores evangélicos e a partir dos fenômenos sincronísticos que se efetuam
após o contato com os demônios (num passe, por exemplo), penso ver claramente que os fatos que
passam a se concretizar, após ver-me submetido ao ritual, não correspondem exatamente aos meus
projetos pessoais e aos meus valores, mas são realizações que se revelam originárias de um outro
poder que não a minha vontade ou minha consciência, um poder que está além do meu próprio poder
para agir, pois me vejo fazendo o que não quero de uma forma visivelmente controlada, vejo-me
arrebatado, arrastado, segundo a ideia latina do verbo dēmō, por ritos executados pelo daímwn que
atuou, em algum tempo anterior, num terreiro. Os critérios de valor são outros.
¿Seria este fenômeno atentatório contra a pureza (a;sulon) apenas decorrência natural de trabalhos
mágico-mediúnicos realizados no inconsciente de mentes humanas? Creio poder-se afirmá-lo com
alguma segurança que os nossos temores sejam liberados para fora de nosso inconsciente pela
mediunidade, liberados para o mundo real sob a forma de fenômenos físicos e históricos. E, então, eles
se concretizam. Daí que o primeiro problema causado pela mediunidade seja a insegurança, a
instabilidade psíquica derivada da fenomênica milagrosa, ou, como disse Marx, n’O Capital: tudo que é
sólido desmancha no ar! Tudo passa a ser incerto na vida e no futuro da vítima e sua preocupação
central na vida passa a ser agradar os espíritos que lhe manipulam os fatos da vida, agradar os seus
“protetores”, em busca da felicidade (evudaimoni,a). Segundo Taciano, o Sírio, em seu Discurso contra os
Gregos, os demônios se comportam como gangsteres, uma vez que estes espíritos “vendem proteção”
contra eles mesmos. Conheço um jovem pastor evangélico que abandonou a religião de sua família por
“não aguentar, diz ele, as ações do dai,mwn controlando as suas próprias ações”. Foi ordenado pastor e
administra uma pequena igreja batista, próxima à minha casa, e muito avivada por fenômenos
pneumáticos, observe-se por sinal.
Quem conhece tal fenômeno, a ação do daímwn, não o confunde com meros impulsos psíquicos. Há
diferença. E, além da intensidade maior, há uma natureza específica reconhecida como alienígena.
E. R. Dodds refere, em certa passagem do capítulo VI de sua obra, palavras de Nilsson (Greek Popular
Religion) sobre o período áureo da sociedade ateniense, segundo o qual “as massas foram fustigadas por
adivinhos profissionais que viam no avanço do racionalismo uma ameaça a seu prestígio, e até mesmo
a seu meio de subsistência” (DODDS:192). Também assim no Brasil, com o comércio de feitiços. Isto faz-se
muito verossímil, mas seria plausível atribuir a motivação fustigadora aos próprios demônios, na
consecução de um antiplano contra o desígnio transcendente ao determinismo da História, concebido
por Santo Irineu de Lyon.
O plano da História e o antiplano dos demônios entrevisto por Irineu de Lyon, parece-me ser uma
clara percepção do que Carl Gustav Jung chamou SINCRONICIDADE. Algo certamente entrevisto pelo
senso comum da comunidade cristã e do mundo pagão, justamente por serem os primeiros cristãos
egressos do paganismo, com cuja cosmovisão compreendiam o cristianismo. Esta realidade por eles
experimentada e o senso comum que a representa pode ser avaliada através dos diálogos de Platão,
tão discutidos atualmente. A discussão levantada pela nova escola de Tübingen-Milano contra a de
Friedrich Schleiermacher reporta diretamente ao cotidiano grego representado por Platão nos
diálogos, com sua constante referência à vida privada e pública, onde a atuação dos deuses e os rituais
e oferendas a eles consorciados são constantemente referidos. Como, também, Plutarco, mesmo
sendo tendencioso, nos dá excelente imagem do dia-a-dia no Mundo Antigo, com especial referência
às atividades religiosas e o entendimento que se tinha da vida então.
Dodds, neste capítulo VI de seu livro, propõe-se a descrever “a decomposição de uma estrutura de
crenças herdadas” (cf. cap. VII:209), que se teria constituído durante o século de ouro formando aquilo que
ele denominou “herança conglomerada”, adotando esta expressão de Gilbert Murray (Greek Studies).
Como Dodds observa, Platão desenvolveu sua visão metafísica após o contato com os pitagóricos, na
Sicília, sendo impelido a abandonar o racionalismo de sua formação tipicamente helênica, calcada
sobre a pedeia, e “transformando sua cosmovisão ao estabelecer uma nova psicologia transcendental”
(p. 211). De certa forma, Platão se assemelharia às avessas a Rudolf Bultmann, impressionado pela
realidade contradizente aos princípios do meio intelectual da classe dirigente que o gerara, em face de
um pós-guerra catastrófico: “Platão efetivamente fecundou a tradição racionalista grega com ideias
mágico-religiosas, cujas origens remotas pertencem à cultura xamanística do norte”, retirando destas
ideias os “novos significados alegóricos que acabaram por lhe conferir importância moral e psicológica”
(ibidem). Platão teria criado, apenas, a argumentação racional. De fato, na minha visão, Platão foi um
atomista e seu racionalismo, uma visão materialista-dialética em que aplicou geometricamente, à
epistemologia de Demócrito de Abdera, a teoria dos números de Pitágoras.
Mas a cosmovisão mágica vinha do sul. Assevera Dodds ter havido aí uma completa reinterpretação
do velho padrão de cultura xamanística, mantendo-se somente seus traços principais: “A reencarnação
sobrevive sem alterações” (cap. VII:212). Talvez este seja o principal equívoco de Dodds, confundir o
xamanismo nortista com o mediunismo sulista, como de resto, foi confusão feita por todos os demais
autores europeus ao estudarem as sociedades primitivas, que conheço, com exceção de Mircea Eliade.
O estudo de Robert R. Wilson (Profecia e Sociedade no Antigo Israel) chega a ser exemplar, beirando o ridículo.
Contudo, deve-se conceder a Dodds o mérito de reconhecer a origem da ideia de reencarnação na
sociedade pitagórica, de fato, detentora de uma cultura mágica proveniente do Egypto; mas isto já é
outra confusão, porque trata-se de reação puritana. A concepção de alma humana dividida em alma
demoníaca e animal (termos dele, à p.215) e de o homem ser uma marionete, joguete nas mãos de Deus
(cf. p. 216), são concepções ideológicas da doutrina reencarnacionista mágico-egípcia (neandertal). Então,
já no capítulo VII, Dodds cai em uma terrível contradição. Como a cosmovisão da sociedade burguesa
europeia é essencialmente metafísico-kantiana, Dodds entende a intenção de Platão de purificar
princípios de conduta social como oposta à da Inquisição medieval, que pretendia salvar as almas dos
hereges. Assim, ele conclui este capítulo afirmando que Platão não teria conseguido reformar o
“conglomerado” grego e que a teocracia medieval não teria objetivos políticos práticos, daí que a
aproximação histórica mais direta não seria a Inquisição, mas os processos termidorianos contra
“intelectuais subversivos”. Por minha parte, creio que a teocracia platônica identifica-se muito mais à
teocracia da Cristandade do que ele o supunha, mormente pelos seus aspectos xamânicos, como
apresentei em meu Tratado de Demonologia. O êxtase sapĭēns apresenta-se no formato da sociedade
de classes, no mundo burguês ocidental: o grosseiro êxtase popular dos trabalhadores evangélicos e o
sofisticado êxtase dos místicos católicos.
Do meu ponto de vista, Dodds equivoca-se redondamente em suas concepções sobre a cremação dos
cadáveres, no início do capítulo V, por exemplo, e ao final do capítulo VI, quando afirma ser efeito do
Iluminismo grego o retorno à magia na geração seguinte, como regressão produzida pelo colapso da
“herança conglomerada”. Em certo sentido, diz ele, “um retorno ao passado”; o que é certo, visto
como um retorno às práticas populares autóctones da terra, mas não um retorno às práticas das elites
tribais helênicas que invadiram o território pelágico. A reação foi o puritanismo psicológico. A
regressão seria o que Marx e Engels observam em A Ideologia Alemã: a conquista dos conquistadores
pelos conquistados. E, deste ponto de vista, a preponderância da mediunidade demoníaca sobre o
êxtase xamânico, como o alerta Mircea Eliade em O Xamanismo e as Técnicas Arcaicas de Êxtase. As
origens deste processo podem ser remontadas à sobreposição da religião neandertal sobre a cultura
sapĭēns, a partir do delta do Nilo; cultura religiosa que se teria generalizado, finalmente, nos séculos II
e III a. D., com a expansão dos cultos de mistérios, durante o período helenístico, e da qual o demônio
de Sócrates seria, tão somente, um breve anúncio no século V a. C. A “herança conglomerada” foi o
neoplatonismo. O surto de demonismo que se intensificou no final do período helenístico, no Mundo
Antigo, assemelha-se a uma catalização da vulgarização da cultura religiosa clássica, por meio da
expansão do baálismo com a popularização do culto de Ísis (VAshet: l zo : VAshĕråh); hV,;ai ou “a Mulher”,
título, ainda hoje, usado pela Pomba-Gira; gramaticalmente, o feminino de exu: * æXet ; lit: fogosa.
Embora sua teoria do reencarnacionismo seja muito perspicaz, persiste, ainda, a confusão entre
renascer e reencarnar. O renascimento é produzido pelo rito cruento e a manipulação do sangue (na
verdade, da força vital) da vítima sacrificada no aprontamento demonizante. O rito de demonização é
provisoriamente revivificador, mas é morte, como uma senoide em que a um pequeno pulso positivo
siga-se um grande pulso negativo. Um tio-avô de meu lado paterno, moribundo por grave doença que
por fim o levou, constantemente, queixava-se à família, em seu leito de morte, dos passes que recebia
da esposa espírita, com quem casara a contragosto da família. Dizia ele que, após uma breve melhora,
o passe produzia, na verdade, a precipitação de uma grande piora de seu estado.
A exposição de todas estas contradições na teoria de E. R. Dodds foi necessária para tentar dar uma
base de sustentação à interpretação de certa passagem do cap. VI (às pp. 187 ss.), única em que posso
respaldar a compreensão do professor Draiton sobre o cerceamento da liberdade pelo daímwn. Dodds
usa como exemplo uma descrição da personagem trágica Medeia, mas é infeliz ao tratar dessa única
personalidade generalizando os seus traços, como se todos os gregos, ou como se todas as pessoas do
mundo, em todas as épocas, apresentassem sempre o mesmo perfil. Um fato constatado e tratado
bastante genericamente na prática das religiões afro-brasileiras é que depois que se entra, não se sai
mais. Certamente, esta máxima quer alertar para o perigo da tentação do assédio sofrido pelos
demonistas quando intentam sair do círculo mágico, da corrente espírita. A mediunidade parece criar
dependência do círculo de médiuns da corrente espírita. Diz-se que os sacerdotes pagãos admitidos no
seio da Igreja Apostólica, nos primeiros séculos, não eram considerados salvos, mas vistos como
dependentes da intercessão da Igreja orante. Isto, parece-me, talvez pudesse dever-se à fragilidade
dessas conversões. Hoje, no Brasil, alguns médiuns tentam integrar-se na Igreja, mas, às vezes, em
pouco tempo, outras vezes em tempo maior, acabam sentindo-se arrastados de volta para os terreiros.
Voltam à escravidão para escapar à ate (a;th) provocada pelo daímwn, porque nunca se libertaram de
fato. Parece que libertação efetiva dar-se-ia somente na hora da morte, se ocorrer, e que, uma vez
tendo-se submetido à técnica de desenvolvimento mediúnico, isto é, à uma demonização, o material
inconsciente do médium passa a projetar-se sem controle; ou ao menos sob o controle da entidade
espiritual desenvolvida. Afirma Mircea Eliade que o transe mediúnico eclipsa o transe extático. Daí
tornar-se alvo de constantes cuidados a presença do médium dentro da Igreja, como o atesta São
Paulo, ao recomendar o discernimento dos espíritos. O Maligno espreita como um leão novo. Acredito
que o professor Draiton, conhecedor deste fenômeno inscrito em nossa cultura nacional, o daímwn,
teve uma compreensão maior do problema do que apresenta a interpretação do próprio Dodds.
Apesar da atitude reticente da teologia lúcida contra os fenômenos pneumáticos, uma vez que os
cristãos acometem contra a doutrina da Criação quando orientam-se pelos fenômenos pneumáticos
como o seu fim em si mesmo, a igreja evangélica tem ordenado como pastores a alguns egressos do
demonismo, atualmente. E muitos destes pastores apresentam dons de cura e outros fenômenos
pneumáticos que tornam as suas igrejas empreendimentos muito rentáveis. Embora, de fato, seja
preferível, do meu ponto de vista, não ter o foco das doenças no seio da comunidade, ao invés de
maravilhar-se com as curas. A necessidade de milagres se me parece uma perversão da Criação, porque
uma Criação perfeita imprescinde de milagres que a corrijam. Os pastores evangélicos mostram-se
muito satisfeitos com os modelos com que a igreja evangélica se apresenta. Por minha vez, me parece
ser o objetivo primário da Igreja eliminar o demonismo e não ignorá-lo. E não cultuar os demônios com
rituais exorcísticos durante a assembleia cristã, como acontece no Brasil, até pela TV. Senão, teríamos
que rever as posições dos primeiros discípulos. ¿Talvez, rever nossa informação?
Mesmo que, no cristianismo, pareça que devamos rever tudo, ainda assim, salta aos olhos que o
problema dos milagres e da mitologia foi problematizado corretamente por Rudolf Bultmann: o
cristianismo é História, é a história do Homō sapĭēns na Europa, isto é, da conquista da Europa aos
neandertais. Os milagres não deveriam ser necessários em um mundo criado para ser bom, eles fazem
parte do mundo do Pecado, quando percebemos a mediunidade como o Mal. Os milagres habitam
uma parte recôndita do nosso imaginário, onde fazem parte do mundo mitológico, a parte de nosso
imaginário que parece estar relacionada aos complexos psíquicos que servem de material para a
formação de prosopopeias demoníacas. Dalí saem as doenças características, que os faz merecerem a
perseguição das sociedades médicas aos médiuns, como charlatães; essas doenças nem sequer existem
no mundo real, os médicos não as detectam, não fazem parte do mundo da Criação divina, são obra
demoníaca. E os demônios intentam contra o projeto da Criação atuando, até, ao nível genético.
Ao menos parece ser esta a estratégia que se oculta na prática intensiva dos passes mediúnicos.
O demonismo atenta contra o plano divino da Criação, havendo dois planos distintos em conflito: o
Éden versus a civilização. Ou melhor, dois mundos que se se tocam, por ambos penetrarem a matéria.
Decorre da teoria de Mircea Eliade, se ela for comprovada, que os espíritos de caboclos, da Umbanda,
estejam sujeitos ao controle do exus, da Quimbanda, no caso de terreiros cruzados.
Parece-me ser exatamente esta a questão. Ate (a;th), o erro, ou a hybris (u[brij), a desmedida, frutos do
fthónos (fqo,noj), da ira divina, seriam aspectos fenótipos daquele controle exercido pelo daímwn em
seus “cavalos”, após o desenvolvimento da mediunidade, i. e., do que se chama aprontamento, no
Brasil, demonização, nos Evangelhos, ou divinização, em textos egípcios. E creio ser isto o que E. R.
Dodds mostra, com o exemplo de Medeia. A maneira como os atos das pessoas passam a responder a
um antiplano estabelecido pelos demônios que as controlam e guiam, perceptível para elas, numa
escala microcósmica do que revelou Santo Irineu de Lyon como desígnio macrocósmico, e somente
explicável pela teoria da sincronicidade de Carl Gustav Jung, conforme tentei expor no meu livro Crítica
da Teologia Moderna. Ao menos, penso perceber este fenômeno terrível em minha vida: a cada passo
que dou, pensando distanciar-me dos demônios, logo percebo que dei um passo a mais no projeto por
eles anunciado para a minha vida. Eles atrapalham toda a minha vida. Vejo-me como um escravo
fugitivo e perseguido, como o descreveu Apuleio n’O Asno de Ouro: “... alguma divindade ofendida me
persegue com uma vingança inexorável, que me seja ao menos permitido morrer, se não me permitem
viver” (Livro XI,II). Mas a melhor descrição é a caça a Psiquê, em que todos os deuses a incriminam.
Se não fosse a ideologia cristã, pela qual norteio a minha visão de mundo, seria obrigado a concordar
com os estoicos e sua alegoria do cachorro atado à carroça que o arrasta: se o cachorro acompanhar o
ritmo da carroça, ele alcança a eudemonia: ele sobrevive! Os conselhos dados pelos espíritos aos
humanos, nas terreiras, e trocados pelas pessoas entre elas mesmas, é que não se pode evadir dos
terreiros, mas, se permanecermos à disposição dos “amos”, os gênios e espíritos guias demoníacos,
receberemos recompensas. De minha parte, tais recompensas assemelham-se aos farelos que caem da
mesa do amo, que os cachorrinhos comem, segundo a mulher cananeia da perícopa evangélica.
Senti a necessidade de apresentar esta discussão sobre o cerceamento da liberdade pelo daímwn,
suscitada pelo professor Draiton, como introdução à narrativa que se segue, por sentir-me um idiota
dizendo coisas que nem mesmo eu próprio acreditaria se não o tivesse experimentado. Conhecer e
decifrar a mística das teorias científicas que pretendem desclassificar como crenças irracionais os
valores de vida e costumes dos trabalhadores sub-proletarizados na sociedade capitalista colonial,
mediante o uso da ciência burguesa (positiva) como artifício ideológico, pareceu-me imprescindível
para a legitimação epistemológica da narrativa de minhas próprias vivências com demônios.
É a minha experiência vívida que permite-me críticar a teoria de Martin Goodman (in A Classe Dirigente da
Judeia), segundo o qual os governadores romanos, na Judeia, foram usados como bodes expiatórios por
não terem demonstrado eficiência, mas falta de experiência administrativa, em parte porque fossem
apadrinhados do Imperador. Podendo ser depostos a pedido de uma embaixada, sua preocupação
maior fora esconder as crises políticas do conhecimento de seus superiores. Goodman afirma que não
seria de se esperar deles que compreendessem a religião judaica e que tampouco se esforçaram para
entender aquela “sociedade estranha”, como ele próprio a qualifica à p. 18. Não seria razoável, diz ele,
responsabilizar o poder de Roma pelo desastre administrativo na Judeia, pois o sistema funcionou nas
outras províncias. Tão desconhecedor do fenômeno religioso quanto Dodds ou qualquer historiador
europeu, ele afirma, mesmo, que “os judeus não diferiam de outros povos antigos” (p. 30) quanto ao
culto a um deus nacional. Goodman nunca observa a natureza distinta da religião monoteísta e, muito
menos, a diferença entre o transe extático e o mediúnico, para o culto. E Goodman expõe claramente
que o poder dos ricos na po,lij local era absolutamente necessário para a administração das províncias
do Império Romano: “As causas de tal hostilidade *popular+ estavam na lacuna que se ampliava entre
ricos e pobres à medida que a economia da Judeia era integrada, de modo singular, no mais amplo
mundo mediterrâneo” (p. 61). O livro pretende explicar porque, na Judeia, foram atacados e esmagados
mais os ricos do que os pobres. Mas ignora que a integração no mundo mediterrâneo significava para o
Povo de Deus o abandono dos derradeiros mecanismos da estrutura tribal, que eles haviam tentado
reestruturar após saírem do Egypto, e que ainda resistiam à civilização e à cultura demonista pagã.
Trata-se do projeto demonista: a civilização e o Estado, com a sua divisão diabólica de classes, em
oposição ao projeto divino que é a sociedade tribal inserida na natureza, o Jardim do Éden, por mais
romântico ou bucólico que isto possa soar. A retribalização do Povo de Deus, porém, é algo que revela-
se exequível somente com a universalização deste empreendimento “até os confins da terra”.
A sociedade tribal original do Éden não admite a existência de pobres e nem governantes, como nas
culturas neolíticas da Amazônia ainda podemos ver. Na obra de Pierre Clastres pode-se ver como a
sociedade tribal é a sociedade humana (sapĭēns) por excelência, a sociedade perfeita.
Conforme já expus, os membros do clero católico e das igrejas tradicionais não acreditam mais em
demônios, parece que continuam a pregar a existência de Deus por oportunismo. E, na academia, não
se acredita mais em mundos espirituais, alí não há necessidade desta ideologia para a manutenção dos
salários. Por outro lado, dentro das igrejas pentecostais, cada vez mais, os fenômenos mediúnicos
tomam conta dessas igrejas novas que estão sendo fundadas por (ex?) pais-de-santo ou espíritas
kardecistas, como os bispos Edir Macedo e João Marques. Os milagres são uma contínua fonte de tão
grande lucro que, se não existissem demônios, seria necessário inventá-los. Trata-se de um antiplano
dos próprios demônios ciumentos, como nos explicou Santo Irineu de Lyon, no qual passei a acreditar
ao perceber que os terreiros de macumba possuem um sistema de informações; comparável ao que, na
opinião do bispo João Marques, da igreja Manancial de Vida, trata-se de algo semelhante a um tablet
gigantesco, acionado por toque, cuja tela (projeção da tela mental, referida por Freud) possui vários
metros de extensão. Na verdade, sinto vergonha do ridículo de parecer, inexplicavelmente, um louco e,
numa tentativa de ser ouvido, passei a buscar uma forma de me fazer compreender e aceitar.
Pode-se chamar o “plano” dos demônios de “anti-plano” por ser a absoluta inversão do projeto da
Criação de Deus. Pode-se entender que se trate de um único fenômeno: a SINCRONICIDADE, agindo no
plano de Deus a serviço do Bem, mas no “anti-plano” demoníaco, a serviço do Mal, que é o seu fim.
Tudo depende, então, de quem está no comando do cérebro, de quem está de posse do corpo, o
Espírito Santo ou um espírito demoníaco qualquer. A quem se acerca da fenomênica espírita é visível,
com um grande desconforto, e expresso no senso comum das pessoas alí envolvidas, que o objetivo
dos “espíritos”, isto é, dos demônios, seja a facultação e a consecução de maldades, ou o Mal em si.
Eles se regalam ao praticar atos de maldade, como moscas grudadas em bosta fresca. É desesperante
ver como realizam suas obras, dando-lhes a aparência de benefícios, apenas com a condição de
destruir o que é Belo. É desconcertante esperar o Bem e nunca tê-lo por completo; o que, se não é
completo, não é o Bem. Nem um bem, mas anzol. A única explicação viável para a tática dos espíritos
ao abrir a mediunidade do maior número possível de pessoas, nesse processo absurdo dos terreiros do
Brasil, que faz filas de pacientes transbordarem para fora dos centros espíritas diariamente, é ser sua
estratégia atuar a nível genético, na espécie humana, através dos cérebros das pessoas.
Não consigo encontrar outra explicação mais objetiva. Isto lembra uma frase de Henri Laborit, em
Deus não Joga Dados (São Paulo:Trajetória Cultural): “percebe-se que – ao contrário da memória genética, que
transmite de geração em geração a informação-estrutura de uma espécie – a memória do indivíduo
desaparece com ele”. Há que se fazer ressalvas, pois são as palavras de um cientista burguês europeu,
de cosmovisão positiva. Quando descreve o seu próprio entendimento cético do processo histórico,
especialmente da Pré-História, ressente-se do absoluto desconhecimento total do fenômeno numinoso
na área da religião, e do desconhecimento da existência dos “espíritos”. Independentemente de haver
ou não um destino espiritual para o homem, após a morte, é suficientemente evidente que os
espíritos, ou demônios, estão interessados na vida na Terra, tal como se apresenta durante a existência
física e material do homem. Os demônios, ou espíritos, estão interessados nos corpos humanos (não só
como acesso às almas das pessoas) para atuarem politicamente em nossa sociedade. E interessados no
tempo presente, porque, necessariamente, agindo no tempo presente poderão influir e preparar um
tempo futuro. Trata-se do futuro da humanidade na Terra e não de utopias espirituais; trata-se da vida
presente no planeta Terra. E da vida futura do homem na terra.
Trata-se do Projeto da Serpente: um plano de controle totalitário (telepático) sobre o mundo.
A prática mediúnica que se dissemina no Brasil extrapolou para uma situação irreconhecível. Na
Antiguidade, as atividades mediúnicas eram restritas a grupos de iniciados, os Mistérios. Hoje,
desenvolve-se entre nós uma atividade massiva. Em um Centro de Umbanda dos mais respeitáveis de
Porto Alegre, onde coloquei em discussão a responsabilidade da Umbanda quanto à disseminação e
fortalecimento da magia negra, um dos membros da diretoria recordou e narrou uma prática que
conhecera em uma praia do litoral gaúcho. Comentando, em tom preocupado, da necessidade de
controle sobre tais práticas, o médium relatou a existência de um terreiro, em uma casa da praia, onde
três médiuns permaneciam incorporados, sentados na varanda da casa, à disposição para administrar
passes aos transeuntes, cada vez que um dos passantes desejasse. As pessoas entravam e saiam
ocasionalmente, em função dos passes, “como se fosse um boteco”, na opinião do médium perplexo.
É visível o desespero por administrar passes mediúnicos no maior número possível de pessoas.
O médium, em sua perplexidade, chegou a referir uma pessoa humana (o dono da casa) como
responsável, enquanto presidente ou diretor da casa, que é, geralmente, o mesmo dono. Mas escapa,
geralmente a todos, que toda decisão emana dos espíritos, isto é, do cacique da corrente de caboclos.
A única explicação que se pode entrever é a estratégia de expandir um território noosférico, através
da abertura e desenvolvimento da mediunidade de um número sempre crescente de pessoas.
Obviamente, ampliar o território de atuação é um objetivo natural, mas é decorrência de um objetivo
primário... ¿Qual poderá ser o objetivo primário dos espíritos, pelo que realizaram uma estratégica
“invasão da terra”, iniciada com a tática das batidas, através das irmãs Fox, na opinião do eminente
historiador deste movimento, sir Conan Doyle?
Eu mesmo conheci, em um dos bairros mais nobres de Porto Alegre, um “Pronto-Socorro Espiritual”.
Ali, por vinte e quatro horas, permaneciam de plantão pomba-giras, diariamente, à disposição para
aplicar passes aos solicitantes. Era um templo de comércio, mas o local não foi propício ao negócio.
A publicidade das práticas mediúnicas leva à deterioração desse serviço. Originariamente, o
demonismo desenvolveu-se dentro de estruturas de parentesco, com suas relações bem definidas,
determinadoras do grau de confiança no sistema. A confiança existe quando se tem certeza sobre a
confiabilidade das regras. Quando inexiste ou está distante uma autoridade reguladora, as regras se
alteram e são torcidas para extrair melhor proveito aos interesses pessoais. A atividade mediúnica
massiva torna-se desarticulada, o que permite a impunidade dos exus. ¿Seria possível relacionar a
persistência das estruturas feudais na burocracia pública do estado brasileiro a essa corrupção dos
costumes? De onde se gera essa corrupção que penetra o estado brasileiro senão sobre a base da
indiferença e do descrédito e da falta de confiança generalizada?
No Brasil, o exu faz o que bem entende, o povo se submete por força e, ainda, o trata como um deus.
Coisa paradoxal os fatos desencadeados pelo demônio do médium da cidade de Pelotas que, num
passe em sessão de Umbanda “branca”, inusitadamente, colocou-me ante o seu Bará de Batuque,
desmascarando a ideologia de distintos espiritismos. Fatos que motivaram-me a escrever, e somente
uma descrição etnográfica de seus sucessos poderão estabelecer uma base para qualquer teorização
ou síntese. O “seu” Rubinho, hoje finado. Passarei ao relato. Todas as páginas escritas, até agora,
devem servir para a contextualização dos fatos numa circularidade hermenêutica consistente, para que
não pareçam fantasias infantis, que é como sempre foram tratados os fatos pelos padres orientadores
vocacionais e bispos católicos. É verdade que os intelectuais que trabalham na burocracia do estado
brasileiro também o fazem assim, mas o fazem instruídos nesse sentido pelos teólogos brasileiros.
Quando o governo Lula realizou as Conferências das Cidades, no Brasil, eu morava na cidade de São
Leopoldo e tinha aulas na Escola Superior de Teologia (EST) da IECLB, embora já não fosse mais aluno do
Instituto Missionário da Sociedade do Evangelho, do finado pe. Orestes Stragliotto. Na conferência
sobre religião, fui o primeiro a tomar a palavra, logo após a exposição do funcionário do governo que
defendeu o que chamou de “cultura popular” religiosa, e ante um auditório repleto de padres
católicos, pastores evangélicos e pais e mães-de-santo, comparei as práticas de magia negra à indústria
do “crack”, concluindo que não deveríamos querer certos tipos de cultura popular. Alguns pais e mães-
de-santo apoiaram, por terem posições contrárias à magia negra. No entanto um zum-zum se levantou
entre os teólogos, reunidos em bloco na ala direita do auditório, especialmente os professores da EST,
condenando minhas palavras. Finalmente, o agente do governo retomou o microfone e fez novo
discurso que encerrou com as palavras: “Magia negra não existe!” Nenhum padre católico, nenhum
teólogo ali presente reconhecia a existência da magia negra. E todos a apoiaram sorrateiramente.
Uma professora da EST (o seminário luterano gaúcho), Adriana Rodolfo, escreveu um artigo publicado
na Revista das Religiões, uma revista popular vendida em bancas de revistas por todo o país, cuja
manchete do título foi: “Quimbanda não é Magia Negra”. E, de fato, se a Quimbanda, um culto onde os
exus encorporam e dizem entre gargalhadas e goles de cachaça que aquilo ali é magia negra, um culto
onde tudo o que se mata é de cor negra, dos galos aos cabritos, inclusive gatos pretos, e onde as únicas
hóstias brancas são as crianças, não sei se por serem vítimas mais difíceis de escolher; se isto não é
magia negra, então, magia negra não existe, de fato.
Mas, ao contrário dos padres e pastores cristãos, os pais e mães-de-santo, que emudeceram naquela
Conferência, sabem que ela existe e a condenam. Lidam, no seu dia-a-dia, com tais problemas.
Pensando resolver os meus problemas com os demônios da Quimbanda obtendo auxílio através dos
orixás africanos, recurso que, no final das contas, revelou-se inócuo, obtive apoio de um bispo para
iniciar-me no Batuque, mediante o sacrifício de duas pombinhas. Somente o fiz após encontrar uma
casa de Batuque tradicional onde a hoje finada Mãe-de-Santo queixava-se da Umbanda (SIC; aqui há uma
designação de uma posição dêitica de batuqueiro; optei neste texto pela expressão MACUMBA, com a mesma divisão
*
êmica do mundo afro-brasileiro, mas que pode excluir a Umbanda ), por esta ser “uma fábrica de loucos”,
dizia, alegando apresentarem-se à sua porta, oriundas desse meio, diversas pessoas com problemas
espirituais. A seriedade dessa mulher inspirou-me confiança, por isso pedi o dinheiro ao bispo e iniciei-
me no Batuque. Obtive certo auxílio, mas não a libertação. Parece-me que o que os orixás fazem,
enquanto “anjos-da-guarda” das pessoas, é contornar os problemas apresentados pelos demônios,
mas não libertar-nos deles. Aliás, segundo a minha teoria, os orixás, isto é, as prosopopeias dos orixás,
devem ser demônios, também, embora não sejam demônios infernais, a princípio, ou eguns, porque
não deixam de ser, afinal de contas, constituídos por complexos afetivos, como os outros. Isso
pareceria dar razão à Fílon, mas o Judeu não faz uma abordagem materialista, baseada nas técnicas de
produção do transe, como apresentarei adiante.
Se alguma coisa pode ser designada por divino, o que mais se assemelha ao nosso senso comum de
divindade é o assentamento do ocutá (o` qeo,j). Entretanto, conforme exponho em meu Tratado de
Demonologia (na parte II, capítulo IV, que, infelizmente, tenho dificuldades para editar), a nossa ideia
de Deus, ideia cristã e indo-europeia, viria do latim Deus¬ī, e não do grego; embora a etimologia que
Platão nos dá seja tipicamente indo-europeia, não refere o mesmo objeto. Porque o assentamento
(tíqei,j) é representação da escuridão do Abismo (dVe, na verdade na forma dual, yD;v;, porque são dois:
Bará e Ogum; são assentados em par); enquanto Luz e fonte da Luz para nós é Deum.
Embora eu tenha isto sabido e bem sabido, pois descobri a duras penas e ninguém me contou, ainda
assim, o esqueço e perco o controle de minhas emoções, nas horas de crise, fustigado pelos demônios,
sob o seu terror. A hybris me domina e ate se abate sobre a minha vida e me vejo como uma
marionete sob a ação demoníaca. Descreio da doutrina da Igreja e o medo me impele a buscar a
proteção dos demônios, contra os males que eles nos causam. Meus raciocínios dão rodopios e se
desfaz o princípio da realidade em uma espécie de encanto. Eu viajo . . .
Na época que me iniciei no Batuque, para fugir à ação dos demônios, contava com 28 anos e faziam
três anos, ou pouco mais, que havia abandonado o terreiro de macumba de minha família que
frequentara por seis meses, apesar das admoestações do pe. Leo Poersch; na época, o pe. Leo não
apresentou-me nenhuma argumentação melhor que a autoridade dogmática e eu necessitava de uma

*
O conceito destas fronteiras carece de definições a serem dadas pela pesquisa. Possivelmente, a mãe-de-santo aludisse especificamente a Quimbanda.
compreensão mais profunda dos porquês das coisas. A juventude é a época da idiotia. Contudo,
insatisfeito com os resultados da iniciação no Batuque, passei a frequentar sessões de desobssessão
em centros kardecistas, o que fiz de forma intensamente assídua por, pelo menos, três anos, depois da
iniciação no Batuque. Mas consegui somente uma quase imperceptível melhora, não a libertação.
A Igreja necessita de unanimidade em seu discurso e de uma ideologia mais adequada à mentalidade
científica de nossa época, e isso somente será possível através do método histórico-crítico utilizado
para uma leitura semiótica rigorosamente científica, isto é, histórico-gramatical, que torne o texto
bíblico claro para a mentalidade do terceiro milênio. Creio que o programa de demitologização de
Rudolf Bultmann é o método certo, embora ele tenha partido de uma posição equivocada. De fato, o
homem moderno necessita de um querigma adequado à sua mentalidade científica.
Ao conhecer o poder da magia negra, fiquei chocado por perceber que se a pratica abertamente no
Brasil e que a Igreja se omite de seu anúncio profético. Ainda não conhecia o profundo cisma na
compreensão deste fenômeno dentro da teologia. Nessa época, havia montado a encenação de um
fragmento de um clássico medieval português, a cena da bruxa na encruzilhada do Auto das Fadas,
peça atribuída, como de costume, a Gil Vicente, mas cujo autor é desconhecido e que estivera em
cartaz em Lisboa, por um tempo ignorado nos primeiros anos do século XVI, exatamente pelos dias em
que Pedro Álvares Cabral descobrira o Brasil. Com a ajuda do bispo, realizei uma tournèe pelos
seminários teológicos das regiões sul e nordeste do Brasil, com aquele espetáculo.
Se o meu inconsciente desejava chamar a atenção do clero, eu o consegui. Mas os padres não
perceberam alguém pedindo socorro, somente um idiota fantasiado como um palhaço fazendo
agitação nos seminários. Pouquíssimos padres me deram atenção, entre eles o pe. José Comblin e o pe.
Nei Brasil. Os outros foram simplesmente patifes comigo, como o são com qualquer um. Geralmente,
não era sequer recebido e, em São Luiz do Maranhão, um padre sequestrou meus apetrechos de
teatro. Mas descobri que, dentro do clero, os intelectuais são as únicas pessoas confiáveis, embora
sem poder. Os que buscam o poder, voluptuosamente ou disfarçados como piedosos, são doentios,
padecem de uma “loucura pelo poder”, como o demonstrou Wilhelm Reich em seu livro A Psicologia
de Massas do Fascismo; o que Jean Piaget corrobora em O Estruturalismo Genético, mostrando haver
um mecanismo de reprodução em toda estrutura, automático e inerente a ela mesma.
Wilhelm Reich, o jovem discípulo comunista de Sigmund Freud, mostrou como ficamos num estado de
regressão psíquica perante as autoridades patriarcais, revivendo a relação edipiana de nossa mais
primitiva existência simbólica, reportando-nos à imagem arquetípica plenipotenciária da autoridade
paterna ao nos vermos perante o professor, o diretor da escola, o prefeito, qualquer governante e,
finalmente, o patrão... e o padre. Os demônios exploram bastante essa autoridade. Creio ser referente
a isso o que disse Heráclito: O homem ouve mudo diante do demônio, como criança (que ainda não
sabe falar) diante de um adulto, citado por Celso, sg. comentário de Orígenes (Contra Celso VI, 12). Lacan
disse: a criança sabe falar, mas não sabe o que dizer porque não consegue compreender o mundo (Notas
sobre “O Homem dos Lobos”, 2). Veja-se que os gregos possuíam um conhecimento empírico sobre os demônios

reunido ao longo de dezenas de séculos de cultura, de relacionamento com eles. Os demônios estavam
entranhados no dia a dia do Mundo Antigo, da mesma forma como já se dissemina seu culto no Brasil
e, logo, se espalhará pela Argentina.
Como passara a publicar livros apresentando à sociedade meus problemas com o espiritismo e a
macumba, macumbeiros passaram a aconselhar-me a ir conversar com as entidades, em terreiros.
Naturalmente não fui em terreiro de magia negra, porque “gato escaldado tem medo até de água fria”,
diz o ditado, mas procurei um terreiro de linha branca. O terreiro mais branco que encontrei foi o do
seu Rubinho, que já começava a ser-me confiável pelo fato de ser irmão de um excelente professor de
minha escola, homem de uma humanidade comprovada, que despertara minha simpatia. O terreiro
era ligado à Fraternidade Universal, que é a coisa mais “branca” que existe neste país, que eu conheça.
Somente depois, descobri que a linha branca não existe. Como o afirma Mircea Eliade, o transe
mediúnico é mais forte e domina o transe extático, por isso a linha de caboclos, supostos payés
(xamãs), parece máscara ideológica, apenas, para a legitimação dos cultos afro-brasileiros perante esta
nação e o mundo, o que foi, de fato, conseguido na década de ’60, quando se elegeram deputados que
modificaram a legislação do país, facilitando a sua expansão pelo Brasil e para todo o planeta.
Caberia à Confederação da Umbanda mostrar-se responsável e reverter o quadro social que criou.
Num processo que durou várias sessões, acabei conversando com o Maioral. Foi desastroso! E é isto o
que necessito narrar, como uma descrição etnográfica obtida por uma observação participante das
relações entre os homens e os demônios. Meus estudos incipientes de acádico sugerem que seja este
Maioral, ou Bēl ou Belo, o nosso conhecidíssimo Baál bíblico. Já havia recebido maldições, pragas e
coisas semelhantes, mas o que este demônio fez foi surpreendente. A designação de Maioral simboliza
vários sentidos, entre eles o de tratar-se da principal entidade do cacique daquela terreira e de ser esta
entidade um Bará de Batuque, que é usualmente chamado “o Homem”. O Bará é uma entidade
controversa, inscrito na ordem dos orixás, mas não considerado orixá, e, embora seja tido nas linhas de
kardecismo, Umbanda e Quimbanda como um egun, ou uma alma defunta, sua imagem ostentada nos
altares é a de um Diabo. Parece-me ser, na verdade, o Shaddai, Todo-Poderoso, acima do Bem e do
Mal, porque não tem ética, nada o detém. Seu nome está ligado ao Abismo, no acádico Šedūm, quando
se refere a grande montanha cósmica SA.TU, e a Satan, quando designa um seixo, o cutá. Seu emblema
básico é a imagem da serpente: ; dra,kona, em grego; em egípcio, Sa-ta, : “filho da terra”. Seu
determinativo é o hieroglífico I15 : ~, a serpente, e está na origem do conceito bíblico de Satan (!j,f
; ,); .
Para se ter uma ideia da minha idiotia, quando ele tomou conta do médium e se dirigiu a mim,
perguntou: “Sabes com quem estás falando?”, ao que eu respondi, timidamente, com outra pergunta:
“O senhor é Deus?”, em tom expectativo de uma resposta confirmadora. Ele, então, teve uma reação e
disse “Não!” Depois disso não lembro bem a ordem ou os detalhes de tudo o que falamos. Durante,
talvez, mais de uma hora e meia ou duas, falamos de muitas coisas e eu recebi muitas censuras. Na
verdade, recebi castigos em minha carne que se manifestaram posteriormente.
Para a composição do círculo hermenêutico, necessito relatar algumas considerações sobre alguns
fenômenos telepáticos que me aconteceram na roda da cangira da terreira Joana D’Arc, em Pelotas.
Lá se antecederam estes fatos. Parece-me ter havido certas sondagens em minha mente, através de
varreduras telepáticas, sobre minhas perspectivas de morte, nas sessões. Lembro, ainda, de imaginar
que levaria um tiro em uma manifestação contra a ditadura militar do governo nacional, mas essa
possibilidade foi descartada (¿talvez porque um primeiro substrato já se tivesse sedimentado em meu
subconsciente?, com respeito ao sexo, em imagem de cena do filme “De Volta ao Planeta dos
Macacos”, conforme o relato que segue, abaixo). Era o ano de 1980 e o processo de abertura política já
se iniciara no país. Ainda assim, fica-me a sensação de ter sido vitimado por um surto de esquizofrenia
provocada pela mediunidade.
Se houve uma programação realizada em minha consciência profunda, não se comporta conforme as
representações que tive em meu imaginário. Ao menos, não totalmente!
Deus “sonda os rins”, se diz. Mas não consigo discernir até onde se deve responsabilizar nossa própria
vontade e consciência; independentemente do fato de avaliar estes fatores desde um ponto de vista
social. Quero dizer, posso pensar que a mediunidade pressupõe pessoas absolutamente tranquilas e
equilibradas para que se efetuem os fenômenos mágicos, sem prejuízos por interferência do reprimido
psicanalítico: seres humanos absolutamente passivos nas mãos dos demônios. Como se o inconsciente
fosse uma fonte de energia pura, sem o entulho reprimido. Ou sem a interferência do observador.
Se assim for, a macumba peca ao não prever e não conseguir lidar com a possibilidade de erro.
Parece-me difícil imputar culpabilidade se não há consciência, muito embora exista intenção. É que a
vontade para mim é prisioneira da estrutura social e muito impotente em seu livre arbítrio. Assim, será
a força social do símbolo (cuja denotação pessoal é conotada pela sociedade) que liberará a natureza
das pulsões, determinando diferentes comportamentos. São os símbolos que servem de substrato para
a organização da mentalidade sob a forma de um espírito, afinal, somos possuídos pelo espírito do
nosso próprio tempo: os símbolos da mídia determinam nossos desejos e sua razão, sua unidade
moral. A emoção, representada mentalmente sob a idéia de vontade, visa somente um benefício que
é a sua expressão, a sua liberdade. Mas a sua liberdade é definida pelas relações sociais. ¿Somos livres
ao sermos felizes? E seríamos livres se obtivéssemos a felicidade? Eudaimonia! . . .
Ou cratofania: Talvez o que defina por excelência a experiência que tive de perceber o controle, a
percepção do domínio total quanto ao conhecimento do que se passa no sujeito do indivíduo que sofre
a ação das entidades espirituais, seja a sessão de cruzamento a que participei, e à qual veio a própria
Oxum da cacique da terreira. O evento em questão foi o “cruzamento de mar”, no dia da festa da
Oxum, que pode ser dado datado na festa do calendário católico da Na. Sra. da Imaculada Conceição.
Trata-se de um terreiro de Umbanda cruzada com Candomblé, e o Candomblé é muito raro aqui no sul
do país. Na época eu pensava que se tratasse de Batuque, porque as pessoas mantêm-se ignorantes
das especificidades da macumba vista como um todo, face ao seu interesse ali ser muito prático, muito
específico em função de suas necessidades concretas; o aspecto teórico fica, geralmente, em segundo
plano. Na verdade, na macumba não há elaboração teórica doutrinária para a massa dos adeptos, mas
restringe-se a eventuais intelectuais de lavra autônoma e solitária. Vim a fazer a distinção entre os
cultos, ou os “lados” como se os chamam, bem depois.
Não lembro-me bem em quantas e em quais arriadas (de exus ou de mar, etc.) o tema mórbido foi
explorado em meu sujeito, no caso a minha própria morte, mas lembro bem que houveram várias
ocasiões distintas. “Arriada” refere-se a uma sessão em que “baixam” ou “arriam” determinadas
entidades pertencentes às linhas de Mar, Mata, Ciganos, etc. Lembro, apenas, que, quando eu menos
esperava e me dava conta de mim mesmo, ali na corrente, durante a sessão, eu percebia, então, que
havia abstraído por algum tempo determinado e somente voltara a mim porque era provocado a
reagir. Como e de que maneira era provocado não podia perceber, apenas via-me forçado a dar
respostas. Nunca percebi as perguntas, mas o fato de me sentir forçado a responder, a enunciar
racionalmente um discurso como resposta, me trazia de volta à consciência. Como o pensamento é
uma produção irreprimível do cérebro, eu poderia pensar que o aumento do fluxo energético pela
corrente mediúnica seria a causa única de minhas elocubrações, seriam projeções do inconsciente.
Quero dizer, a amplificação da energia pela corrente mediúnica é um efeito considerado real por
muitos tipos de espiritismo, ao menos os que possuem literatura, e uma realidade tratada como fato
nas rodas de conversas e nos livros espíritas, teoria que serve de substrato para a sua ideologia. ¿Mas
por que o pensamento era obsessivamente a morte?
A sensação que sempre me ficou foi de a entidade encorporada estar em diálogo comigo.
Ao menos sentia-me como se me exigissem respostas e pretendo descrever uma parte dos diálogos
mais adiante. Outro fato que deve ser computado é que, de fato, as entidades conversam verbalmente
com a gente na corrente, entre tais momentos de telepatia, à continuidade, como se soubessem o que
se está passando no sujeito da gente. Mas suas falas são sempre oraculares, isto é, ambíguas.
Cumpre identificarmos a fonte de onde minha vontade ou consciência retirou as representações
imagéticas para conceber a idéia da minha própria morte: Platão. Nesta época, com vinte e dois anos,
eu havia lido bem a metade das obras de Platão apaixonadamente e, ainda, começara a estudar o
grego antigo, e os únicos e poucos textos que obtinha eram, além de algumas ancreônticas, os textos
de Platão. Mas quanto a este aspecto da morte foi, sem dúvida, Críton (ou Do Dever), inserido dentro
do seu ciclo, o mais marcante, e Fédon (o Diálogo da Alma). Ali, na boca de Sócrates, é dado ao filósofo
o melhor de todos os destinos, que seria a morte. Alie-se a isto a descoberta do conflito político de
nossa sociedade de classes: a luta de classes; mais sucessivos romances desastrosos e uma solidão
inexpressável, agudizada pela morte iminente de meu avô, última pessoa que habitava a casa que me
servia de lar... e, sem dúvida, a ausência de perspectiva profissional satisfatória como artista. Tudo isso
configurou um quadro do qual emergiu esta idéia salvadora: a morte!
Como que numa seleção de imagens, veio-me outra imagem à mente a qual sou forçado a afirmar que
me foi provocada por algum meio misterioso, por alguém... Esta provocação misteriosa teria suscitado
(¿selecionado?) em minha mente a imagem de uma cena de um filme da série “O Planeta dos
Macacos”, do segundo filme do ciclo, cujo título é “De Volta ao Planeta dos Macacos”. Quando os
macacos invadem os escombros do que fora New York, um casal de humanos culmina o ato sexual com
o orgasmo no exato momento em que os gorilas arrebentam a porta e metralham os dois. Eles só têm
tempo para um último beijo. O ato dos dois amantes fora um gesto de desespero.
Não sei se me fizeram alguma pergunta telepática, nada ouvi e ninguém se dirigiu a mim. Eu estava
imerso no anonimato da corrente, dentro da terreira. Mas deparei-me com esta imagem na minha
mente (como se as entidades encorporadas “vissem” as imagens em minha mente) e eu respondia;
respondia mesmo, estruturando a sintaxe em um discurso racional em meu pensamento; eu explicava
a alguém, a este interlocutor não identificado e nem localizado, o porque de tal solução (¿decisão?).
No caso da morte, eu respondi que não queria incomodar ninguém. A justificativa que apresentava
para mim mesmo era a afirmação feita várias e solenes vezes pela minha família, que não queriam um
artista na família a lhes incomodar. No caso da cena do filme, justificava-me pensando ser esta a
melhor morte que se pudesse conceber: a morte com prazer. Somente que eu imaginava um ataque
cardíaco, evidentemente. Ou algo semelhante. Morte súbita.
Mas há neste momento uma coisa muito importante a relatar que demonstra a interferência de uma
outra instância que, seguramente, não poderia de ser meu próprio inconsciente, mas certamente uma
outra consciência, uma outra pessoa. Pareceu-me que se buscava uma representação ideológica, uma
ideologia justificadora para o fato (¿um desejo?), um raciocínio bem mais elaborado do que o simples
raciocínio formal dos mecanismos inconscientes. Eu me senti como se me sugerissem o sofrimento na
morte! E refutei com violência no meu pensamento tal idéia. Posto não encontrar na vida um outro
fundamento que o prazer, um outro sentido que o gozo da alegria... refutei-o com violência, porque
não era um pensamento meu, afastei-o da cadeia lógica que se estruturava em minha mente, impedi-o
de entrar. O pensamento de justificar o sofrimento não era idéia minha, era um pensamento alógeno.
Esta é uma idéia espírita e não católica, e nem cristã. É a ideologia espírita com a sua lógica: sofrer para
evoluir! Esta é a lógica da parte da minha família, com a qual muito pouco contato eu tivera, até então,
que é espírita. Uma parte pequena na linha materna. Com a separação de meus pais, eu fui criado com
o lado paterno que é exclusivamente católico. Como fiel católico, sou um bom hedonista.
Houve um tio espanhol de minha mãe, o tio Henrique, que fugiu do franquismo. Cunhado de minha
tia-avó Antônia, era comunista e espírita kardecista, como ela. A geração seguinte, os filhos e netos da
tia Antônia, passaram de kardecistas a umbandistas; mas o meu tio Henrique teve uma morte
impressionante. Certa vez a minha mãe foi visitá-lo, na casa da tia Antônia, quando já estava para
morrer. Tia Antônia, nessa época, parece-me, fora titulada como cacique da terreira da filha, embora
não fosse realizada uma “fundamentação” sagrada, mas, apenas, dada uma satisfação ideológica ao
matriarcalismo. Título somente oficial, portanto. O tio Henrique criticou muito o fato de a família se
envolver com “espíritos baixos”. Referia-se, conforme a ideologia espírita, aos demônios infernais que
se constituem, para a Umbanda, nas duas linhas de exus. Mas em meio ao sofrimento atroz que estava
passando em sua morte, consolava-se fanaticamente imaginando as graças que recebia (ao seu ver,
“luzes” para o seu espírito) em troca daquelas lancinantes dores. E isto não é tudo, o resto da família,
todos espíritas, não lhe prestavam os cuidados requeridos em tal situação, e ele ficou entregue às suas
dores torturantes, mas tão desejadas. Tal é o fruto da ideologia espírita: o abandono.
E não só pela ideologia, quiçá pelos ritos cotidianos na prática: a tia Antônia, que morreu durante o
ano que freqüentei a terreira, queixou-se muito da Umbanda e relacionava a sua tragédia em morte à
Umbanda. Mais especificamente ao exu da filha, o Capa-Preta, que ela qualificava de “impossível”.
Estas confissões ela me fez porque, naquele momento de seus dias de moribunda, eu estava para
entrar para o seminário teológico da Igreja Católica, em Pelotas, e este fato era notório na família,
desde minha infância. Creio que fosse eu a única pessoa de espírito crítico sobre a Umbanda a quem
ela podia expressar as sua críticas quanto à sua própria situação e de seus filhos.
Naquela época da minha juventude, não tive maturidade suficiente para entender o pensamento
desta mulher que fora kardecista justamente na fase em que os kardecistas mais polemizaram com a
Igreja. Mas uma coisa me pareceu certa: após conhecer a Umbanda, quando a filha lhe abriu um
terreiro dentro da própria casa e, quando ao fim da vida, ela avaliou toda a sua situação e filosofia de
vida, ela associou à sua morte triste a atuação do exu da filha e lembrou-me do compromisso da Igreja
de combater o Mal e as trevas. As pessoas se apavoram ao conhecer esta realidade. Minha tia Antônia
revelou-me o desconhecimento dos kardecistas da verdade sobre as forças com que mexem.
Uma outra tia, esta por afinidade pelo ramo paterno, em primeiro grau, convalescendo de morte
iminente, também vítima, dirigiu-se a mim na qualidade de “representante” da Igreja, para que eu
comunicasse a meus superiores os fatos que sucediam com o povo em face do culto de exus.
Comuniquei a D. Jayme e a D. Sinésio, mas pareceu que a informação não fizesse sentido para eles.
Como se não houvesse nada que pudessem fazer e, por isso, não demandasse um ato; ecoou no vazio.
Mas quanto ao pensamento que tentaram infiltrar em minha mente: a idéia de sofrimento trágico em
minha morte, esta idéia não era minha. Qualquer das idéias e imagens com que me deparei podem ter
qualquer origem, podem ser do meu sub-consciente ou memórias. Mas esta idéia espírita não era
minha, foi-me soprada, isto é certo. Eu a rejeitei com violência por ser demais absurda. E ela não teve
terreno onde vingar, em minha mente. Não houve um único ponto em minha ideologia, em minha
filosofia onde pudesse se apoiar. Não sou espírita, sou católico, relego o sofrimento aos maus.
Parece-me, portanto, não ser totalmente infundado o meu ressentimento por eu não ser de todo
responsável pelo que aconteceu comigo, desde que passei pela Umbanda. Não sendo exclusivamente o
meu inconsciente, ou meu reprimido subconsciente o que determinou o que se afigurou a partir daí
como uma “programação” de comportamento condicionado, em mim implantado desde então. Houve
interferência de uma inteligência e quiçá de uma vontade estranha à minha.
Chego, finalmente, ao relato do incidente com a Oxum, no “cruzamento” da terreira, onde posso
identificar uma personagem, embora não possa comprovar a sua ação. A Oxum só arriou uma única
vez naquele ano em que freqüentei a terreira. Oportunidade em que esta Oxum, embora não usasse da
fala, porque não havia recebido ainda o axé de fala, durante todo o tempo deixou-me clara a sua
vontade e o conhecimento que tinha dos fatos do meu sujeito apenas com telepatia.
Os membros da corrente, um a um, dirigiam-se ao centro da roda, onde estava a Oxum defronte ao
Congá, ajoelhada diante de um alguidar sobre o qual libava na cabeça dos adeptos o “amassi”, que é o
extrato de diversas ervas maceradas, usado na iniciação dos neófitos. Libar o “amassi” na cabeça de
cada um constituía o “cruzamento” da Umbanda com o Candomblé. Fiquei por último e sabia que era
um momento importante, no qual haveria de fazer um pedido, e eu firmava o meu pensamento na
minha morte, a qual somente desejava que fosse imediata e abrupta, sem dores e sofrimento.
Naturalmente, ao não conseguir manter a concentração por muito tempo, abstraía freqüentemente,
porque demorava o tempo enquanto os outros se iam sucedendo no ritual; por várias vezes, quando
chegava a minha vez, eu vacilava e quando fazia menção de ir ao centro da roda e me concentrava com
maior força, parecia que a Oxum fazia alguma coisa, realizava algum gesto que me fazia esperar para
não interferir no que pareciam ser benzeduras, ou passes. Quando, porém, eu desistia de ir e, aí,
desconcentrava da idéia da morte, ela fazia menção de me submeter ao ritual; e aí é que eu me
concentrava de novo; e, então, era como se ela novamente desistisse; foi assim até eu desistir daquela
idéia. Isto ocorreu, simultaneamente, várias vezes, por algum tempo, até que eu próprio, sem saber, ao
certo, se havia “entendido o sinal”, desisti de me concentrar e, literalmente, entreguei minha cabeça às
mãos dela. Não fui tratado com esta bondade nem pela cigana e nem pela pomba-gira.
Durante a festa da Oxum, enquanto ela estava distribuindo flores aos adeptos, rosas de um buquê
simbolizavam suas graças, sofri de impulsos irreprimíveis. Impulsos de negação, que me parecem
ligados à “morte da mãe”, eram tão irreprimíveis e de tamanha comoção que chamaram a atenção de
alguém na corrente que clamou à Oxum que passava, e ela olhou e seguiu ao longo da corrente.
Antes, mais oportuno a esta altura do texto é reafirmar a impressão que me ficou de que estas
entidades conseguem controlar, quer usando poderes mentais paranormais ou sobrenaturais mágicos,
parte das pulsões psíquicas dos adeptos. Talvez a natureza erótica ou tanática dos impulsos tivesse a
ver com a disposição, com o espírito do indivíduo sobre o qual age a mediunidade. Mas no encontro
com a Oxum me parece que a idéia da morte estava conjugada a um impulso erótico... ao menos a
morte seria um bem, em Platão. Eu não estava cogitando o suicídio porque já tentara infrutiferamente,
anos antes. Pensava em morte “natural”, quer dizer, rápida. Morte súbita.
Mas uma coisa ficou-me evidente: não era desejo da Oxum a minha morte e ela tinha consciência do
que se passava no meu sujeito. ¿Mas como ela poderia saber? Talvez soubesse, basicamente, qual
impulso, ou mórbido ou vital, se manifestava... ¿Mas como? Era acaso ela que estava controlando a
intensidade da magnitude do fluxo energético, sem poder definir a natureza erótica ou tanática deste
impulso? Minha atitude seria a definidora desta polaridade? O que eu posso supor deste incidente é
que a Oxum, arquétipo da Grande-Mãe, dispôs-se a arrumar uma situação deflagrada pelos exus e suas
pomba-giras, em uma série de sessões que se haviam desenrolado ao longo do ano todo.
Situação deflagrada pelos exus, a infernal linha negra, ou pela mediunidade em si mesma.
Muitos anos depois, o próprio Bará Lodê do seu Rubinho, ou o exu a seu serviço, perguntou-me sobre
aquele incidente passado, para muita surpresa minha. Era como se ele não possuísse as informações
telepáticas completas e me perguntasse por detalhes que lhe escapavam. Interrogou-me incisivamente
sobre minha vida sexual e respondi como uma criança, perante o demônio, como refere Heráclito.
Mas as minhas relações sexuais restringiam-se a simples ficadas. Observou que agindo dessa forma eu
não morreria porque me cuidava das doenças, ao que redargui que desejava a morte e não doença. A
ideia que religião necessariamente exija uma atitude honesta e sincera ante o divino não me permitiu
perceber que ele tramava doenças terríveis contra mim. E esta ideologia é divulgada egoisticamente,
no mercado simbólico pela Igreja Cristã, que quer-se utilizada pelo estado como aparelho ideológico.
No Brasil, esta atitude interresseira da Igreja ao defender e propalar a ideia que religião seja útil na
esfera pública, não é apenas egoísta, mas, sobretudo, criminosa, porque ela esconde a origem das
instituições religiosas. O cristianismo deveria ser atitude íntima e seu culto restrito à célula doméstica.
Como eu próprio desejasse morrer, por não encontrar sentido em minha vida, acabamos falando
sobre o fenômeno e o conceito da morte para o cristianismo e para Sócrates, que ambos a vêem como
um sumo bem. Criado em casa de proletários, sempre tive presente que a morte era preferível à vida
de um operário de fábrica, sob o capitalismo. [Sobre isso, recente ópera-rock foi filmada, com misè-èn-
cène de Les Miserables, de Victor Hugo.] Ele me disse que Sócrates foi morto, apesar do demônio que o
assistia, porque desejava a morte como o sumo bem; seria, pois, refleti mais tarde, a realização de seu
desejo, e que a mediunidade é um poço dos (maus) desejos. Ao menos, Heráclito considera o éthos
divino ter conhecimento e o humano não (cf. fr. 79); mas diz, ainda, que o éthos humano é daímwn (fr.
119). O senso comum, no Brasil, é que exu é uma força cega. Cabe a pergunta: ¿seria cega porque
avança inexoravelmente, como efeito do poder Todo-Poderoso que a tudo ignora ao perseguir seu
fim? Os gregos sabiam que os demônios são produzidos pelo homem (cf. Hesíodo, Os Trabalhos e os Dias, vv. 121-
26), o que parece-me ser referência às técnicas egípcias; enquanto muitos povos bárbaros relatam da

demonização de seus monarcas. Os daímones não são identificados aos deuses, mas à qualidades
humanas. Seriam, segundo um professor de filosofia da universidade brasileira, em artigo bem sofrível,
por sinal: “uma disposição pela qual o sujeito promovia [antanho, para ele; nota] uma avaliação (exercitava
um juízo), e, por ela, formulava uma decisão, que resultava em um bem ou num mal. Era, enfim, a
phrónesis que especificava os daímones, ou vice-versa”. Isto é uma idiotice! A tradição popular nos diz
que, para retirar algo do poço dos desejos, deve-se perder uma moeda, trocar um valor; perdi alguns.
Trata-se do domínio do material inconsciente sobre a consciência, de uma projeção numinosa, uma
liberação de impulsos incontrolável para nós, controlada pelo daímwn. Hesíodo diz que seu principal
atributo é conceder-nos riquezas. Dinheiro foi sempre uma oferta constante de todos os demônios, em
todos os terreiros que conheci, mas, infelizmente, isto não me interessava, a única coisa que quis foi
amor e, para isso, parece que eles são perniciosos, não há amor no mundo da morte. Eles atrapalham
no amor; só podem fornecer sexo e dinheiro e desapego.
Dos meus encontros com vários tipos de demônios, durante os passes, restou-me a impressão de
perceber que eles, de alguma forma, manipulam o ânimo, a disposição das pessoas, quando elas estão
perante a sua presença, e que determinam uma espécie de programação neurolinguística que passa a
determinar o comportamento da pessoa daí por diante. Seria esse o fato mágico-espiritual realmente
descrito no comportamento de Medeia, que Dodds desconhecia. Na verdade, acho que percebi um
funcionamento binário (ou para o bem ¿ou para o mal?) que atribuí a algum controle dos demônios
sobre o cerebelo. Mas meu conhecimento da anatomia fisiológica é muito pouco para uma avaliação
definitiva. Não sei como explicar o poder assolador dos daímones sobre o homem, durante o momento
do passe e a partir de um encontro. Geralmente, eles exigem encontros (passes) frequentes, talvez por
se acharem limitados pelas lunações... Mas isto parece obedecer a algum objetivo outro, como, talvez,
uma ação a nível genético, porque em um único passe me foi programado um fado atroz.
Ficou-me a sensação desagradável de ter sido mantido manietado, como se estivesse hipnotizado,
encantado por alguma força telepática. Mas o que realmente importa descrever são os atos que o Bará
do seu Rubinho realizou: o` fqo,noj daimoniako,j. Fqo,nw| diabo,lou (in Sb 2,24). Uso fthónos com o sentido de
ódio, um ódio gerado pelo ciúmes, pela inveja de possuirmos nossos corpos, que eles cobiçam. A inveja
é um sentimento ligado à ideia de propriedade privada e é notável como ambas são completamente
desconhecidas nas sociedades tribais epipaleolíticas e nas neolíticas pré-urbanas. O estado, a diabólica
divisão de classes e a concepção da propriedade privada são os principais produtos do demonismo.
Fatores ignorados por Hominĭbus sapĭēntĭbus que não tiveram contatos com a religião neandertal. Os
ritos de sepultamento das sociedades tribais nada têm a ver com o culto à morte ctônico das práticas
demonistas. A existência do estado e a divisão de classes estabelece o uso político dos corpos de uns
pelos outros. Desde as nascentes dos rios Tigre e Eufrates, posteriormente descendo até suas
embocaduras, o estado surgiu como teocracia de sacerdotes-médiuns, por teofanias das próprias
entidades espirituais encorporadas nos sacerdotes, que instituíram a divisão de classes, separando o
clero como elite dominadora sobre massas de povos coletores-caçadores que foram forçados a
abandonar seus hábitos alimentares saudáveis para se alimentarem do trigo einkorn, colhido nas
colinas de Karaca Dag. E eles são extremamente zelosos de seu poder, ainda hoje. Sofri isto. Sofro isto.
Como ponto de partida para o entendimento de minha situação nesses fatos, é mister trazermos
presente que tratamos do antiquíssimo culto da Deusa primordial. Trata-se do culto a Yemanjá, a
Deusa do Mar, personificada como orixá africana, mas, para sermos mais exatos, antes que as ondas
espumantes da supefície do mar, o profundo do abismo das águas representa seu aspecto pré-histórico
que é Nanã (Nwnw), a Velha, designação que os egípcio davam às “Águas Primordiais”, sobre a qual,
no momento da Criação (cf. Gn I,2), pairava o Espírito de Deus na escuridão sobre a face do Abismo
(~wOht.); se %v,xo : “escuridão” corresponder ao egípcio k\ wQ ś ( ), teremos aí a origem etimológica de
Kao,j (infelizmente, meu egípcio não é muito confiável). As “Águas Primordiais” separadas em uma
díade representada pelas águas de cima e as águas de baixo, na cosmovisão do Mundo Antigo, trata-se
de uma representação para o espaço sideral mais adequada que a nossa atual representação, como se
pode perceber a partir da atual compreensão das leis da física quântica. A mecânica ondulatória da
teoria quântica diz que o vácuo é uma onda contínua de probabilidade, onde o princípio de incerteza
de Heisenberg sugere a existência de partículas subatômicas. Henri Laborit (op. cit.) faz a comparação do
vácuo “a um mar continuamente agitado, com uma espuma de pares de partículas das quais certas
características fazem-nas aparecer e desaparecer sem parar”, enriquecendo-nos mais a imagem da
Deusa do Mar e da Natureza.
No culto da Deusa recentemente reorganizado no Brasil a partir de elementos católicos, elementos
que sincretizavam o paganismo mediterrâneo, onde nada mais resta de genuinamente africano além
do nome da personificação de segundo escalão dela, Yemanjá, utilizam-se imagens católicas de Nossa
Senhora Mãe de Deus. Chamado pelo nome de Umbanda, registros históricos atribuem sua criação
moderna a um espírito, em 1907, na cidade do Rio de Janeiro. O nome, Umbanda, como, também, os
principais termos de seu vocabulário específico, pertencem ao léxico do sânskrito (औमबानद :Ŏmbanda). O
filho por ela gerado possui um culto à parte, a Quimbanda, que é o culto aos exus. Trata-se de uma
personificação maléfica dela mesma como Morte, em oposição a si mesma como Mãe e vida. Este culto
à morte, a Quimbanda, aparentemente, foi trazido pelos ciganos da Europa, quando a atravessaram,
ao longo de trezentos anos (c. 1200 a 1530 a.D.), percorrendo-a da Hungria a Portugal, ao abandonarem a
Índia, deflagrando, nesse período, uma intensa atividade inquisitória que se alastrou paulatinamente
pelos países europeus à medida que os bandos de ciganos a atravessavam (cf. Hugh TREVOR-ROPER, A Crise do
Século XVII – religião, a reforma e mudança social. Rio de Janeiro:TOPBOOKS). Com a ação colonizadora portuguesa, a
macumba chegou ao Brasil em 1530, enviada pelo rei de Portugal, sob a forma de uma mistura de
magia cigana com a magia negra europeia, introduzindo na América o culto ao antigo deus-bode, Pã.
Trata-se de um outro formato da religião mediúnica que se diferencia dos cultos africanos pela técnica
corporal. Penso que a diferença entre a macumba e os cultos africanos que se apresentam no Brasil
assemelha-se à diferença entre o baalismo canaanita e os cultos egípcio e africanos na própria África,
bem como entre os cultos desenvolvidos pelas culturas indo-europeias em Roma e Grécia e os cultos
de mistérios que invadiram o Ocidente, entre os séculos II a. C. e II d. C. Essas diferenças justificariam
verter os vocábulos baál e avshĕrāh por exu e pomba-gira, na tradução da Bíblia para o português.
Enquanto, no Batuque africano, a mediunidade é induzida no neófito pelo sacerdote através do rito
que “faz nascer” o demônio do neófito, daí o uso do nome pai ou mãe-de-santo; já, na macumba, a
mediunidade seria “desenvolvida” pelo rito da gira, na cangira. A diferença básica parece dar-se entre
a natureza do orixá (força = axé da cabeça = ori), onde o trabalho religioso incidiria no sistema nervoso
espino-cerebral, criando um demônio como personalidade prosopopeica, que representa diretamente
a serpente Satan, filho da Deusa, e representar-se-ia projetado sobre os chåkras energéticos védicos
situados ao longo da espinha vertebral. Enquanto, por outro lado, na macumba, através da técnica da
gira em roda, o trabalho religioso desenvolveria não diretamente o demônio, mas uma alma morta,
também como personalidade prosopopeica, a partir do sistema nervoso simpático autônomo reflexo e
do sistema endócrino, periférico. Talvez Fílon os confunda, uma vez que ele não menciona qualquer
distinção entre as técnicas corporais. Mas se devemos concordar com tal distinção asseverada entre os
próprios cultos afro-brasileiros, então devemos reconhecer os orixás como demônios, no sentido que
lhes atribuiu Homero, isto é, como entes participantes do Ser divino, e aos exus, por sua vez, como
almas mortas.
Os antigos pensavam que as almas que encarnam na terra vinham em turbilhão, através do vórtice
estelar. Aristófanes, ao criticar a religião socrática em As Nuvens, refere a um turbilhão que poderia ser
alusão ao vórtice da gira tal como se apresenta na cangira brasileira. O fenômeno do vórtice da gira
parece ser mencionado por Fílon de Alexandria (De Gigantibus), referindo o turbilhão pelo qual as almas
são engolidas com ímpeto e descem nos corpos. Não se trataria, portanto, de culto divino, mas de culto
à almas mortas, que respeita ao complexo psíquico composto pelo sistema parassimpático e o sistema
ganglionar. Para Fílon, não se diferenciam as prosopopeias demoníacas ou das almas infernais. No
entanto, parece-me necessário contradizê-lo já a começar por se tratarem de duas técnicas diferentes
que as geram. Antes mesmo da comparação dos perfis psicológicos de ambos os tipos de prosopopeias,
diferença evidente a qualquer frequentador de terreiro, torna-se imperativo apontar que as entidades
encorporadas pelo médium seriam diferentes, em virtude das diferenças entre as técnicas corporais.
Embora haja uma evidente ligação entre os dois elementos, a alma morta e o demônio que protege o
orixá: ambos são prosopopeias que parecem se constituir a partir de complexos afetivos reprimidos.
Ressalva deve ser feita quanto a um possível sincretismo efetuado em remoto período da história da
mediunidade na cultura sapĭēnti. Esta possibilidade consiste no seguinte: em face da possibilidade de
termos um culto especificamente xamânico na tradição do Tabernáculo bíblico, parece ser possível que
se tenham juntado sincreticamente uma faculdade de construir prosopopeias demoníacas aos ritos de
“fundamentação” divina da berith, num processo de degeneração como o referido por Mircea Eliade.
Isto afastaria a identidade entre javismo e baalismo. Identidade entrevista por alguns pesquisadores
que a supõem pela similaridade de ambos os rituais. Contudo, com as reformas religiosas no Reino da
Judeia, além da legislação, ter-se-iam então produzido as medidas sanadoras desta situação, mediante
a eliminação das técnicas demoníacas dos ritos canaanitas. Sabe-se que fora proibido por édito real
(1Sm 28) o culto das almas mortas, o culto aos avós. Esta hipótese carece de pesquisas de apoio.

De qualquer modo, na cultura afro-brasileira é evidente a diferença de técnicas corporais, quando de


uma resulta somente a formação da prosopopeia demoníaca, ao passo que da outra resulta, também,
um fetiche (o` qeo,j). Se a prosopopeia do demônio guardião do assentamento de santo surgiu em um
segundo momento, na história da religião, como um agregado, isto é insustentável neste momento.
Neste momento de minha teorização, penso que a técnica anímica de desenvolvimento na cangira, o
elemento básico do culto às almas mortas, seja anterior ao culto aos orixás e ao seu desenvolvimento
das técnicas de assentamento de santo. Estes parecem dar “fundamentação” àquele, portanto deverão
pertencer ao estágio seguinte, sendo o culto aos mortos neandertal, e o culto aos orixás, sapĭēnte.
Embora não seja usual arriar um orixá do Batuque numa terreira de Umbanda, creio que este exu, o
“Homem” ou o Maioral (i.e., Baál), com quem me deparei naquela terreira de Umbanda “branca”, em
Pelotas, foi, em essência, o Bará Lodê do seu Rubinho. O Bará é um dos doze ou treze orixás que
compõem o principal panteão do Batuque e que vêm representados na guia imperial de um pai-de-
santo, sua insígnia e instrumento de adivinhação através dos búzios, que são jogados dentro dela. A
ordem dos orixás na guia imperial deve seguir a ordem das rezas que são cantadas durante o festejo do
Batuque e começa necessariamente pelo Bará, com exceção do lado Cabinda que, antes de iniciar o
movimento da roda invoca reza a uma entidade enigmática e temida denominada Leba (de Elegbará) e,
somente depois, começa o movimento da roda ao som das rezas dos demais Barás. Os Barás seriam a
princípio três, os principais, com destaque na mitologia afro-brasileira que se conservou: O Bará Lodê,
o Bará Lanã e o Bará Agelú. A cor do Bará é o vermelho, mas do Agelú é o amarelo pálido.
Na Moralia, Plutarco revela que as cores de Tyfon, ou Seth dos egípcios, são o vermelho e o amarelo
pálido (Isis e Osíris:33) e que, no ceu, brilha como a costelação da Ursa Maior, indiciando sua origem no
culto neandertal ao urso (p. 21). O culto de Seth, com orelhas de asno, é o culto aos mortos. É uma
figura muito antiga nos textos das pirâmides. Em sua origem, como filho da Noite, personificava o
Érebo, sendo tido como um deus benévolo com os que acabavam de morrer e, até a XIX dinastia, os
faraós portavam o título “amado de Set”, o que, provavelmente, deveria significar que fossem
aprontados ritualmente para ele, mediante o assentamento de um fetiche. Mas desde a XXII dinastia se
o considerou um demônio maléfico e passou-se a ultrajar suas imagens, à semelhança do que se faz,
hoje no Brasil, com as imagens de Santo Antônio. Mocinhas casadouras fazem “simpatias” com as
imagens, imergindo-as na água, elemento que o Bará repugna, até conseguirem um marido.
O Bará Lodê é o Bará da rua, fica assentado do lado de fora do templo, e os outros dois são os Barás
de dentro de casa, com funções semelhantes, mas com poderes menores. O Lodê é o mesmo Maioral
de um antigo título da Antiguidade mais remota. Além do Batuque gaúcho, pouco conheço dos demais
cultos africanos genuínos, no Brasil, mas soube que somente no Rio Grande do Sul se entrega a cabeça
do filho ao Bará, por ser uma entidade muito perigosa. Nos demais cultos, se apronta o neófito para
outro santo. Certamente, devido às condições infernais da vida dos escravos no sul do país, tal atitude
deve ter sido tomada como uma espécie de tática de “guerrilha”, quero dizer, como uma arma.
Creio que esse fato histórico seja o cumprimento da profecia escatológica que prenunciou a libertação
do Diabo de suas cadeias. Antes disso não havia epifanias do Bará; ele nunca estava no mundo. Antes
dele aparecer epifanicamente no sul do Brasil, no resto do país toda relação com o Bará restringia-se
ao assentamento do cutá, ao santo. À exceção do Batuque gaúcho, o Bará não é considerado orixá,
mas exu, recebendo tratamento diferenciado e permanecendo submisso aos orixás. Como na linha
branca de Umbanda sua presença não costumou ser tolerada, mas diligentemente despachados
sempre que se apresentassem. Esta característica dos demais lados da religião afro-brasileira permite
pensar os orixás como anjos e definir os exus como “anjos rebeldes”. Portanto, no cenário da
Antiguidade, havemos de distinguir os deuses das nações do culto aos baálim.
Os baálim são exus, ou almas mortas, como talvez possa indicar a etimologia do nome nagô “balê”.
O que se cria com um assentamento de santo, o fetiche, é uma “porta cósmica”. Lynn Roller (Em Busca
da deusa Mãe, o culto anatoliano de Cibele. Lisboa:Piaget) relata a descoberta de pré-históricas portas esculpidas em
rocha, no alto de montanhas, que se percebeu servirem a rituais religiosos. Mas os europeus modernos
que as acharam não souberam da necessidade dos assentamentos de fetiches para seu funcionamento.
Havia, junto a algumas delas, os tais buracos no chão, chamados balés no Brasil, que compõem parte
da instrumentação necessária ao culto dos mortos, tipo thophetim (~ytipto) e, justamente, o rito próprio
consiste em se cuspir dentro deles. A porta do terreiro é um lugar de culto, especialmente durante a
festa do Batuque. A porta representa a fronteira entre o dentro e o fora, “a primeira, a última e a mais
importante das entradas da casa de Ereshkigal” (cf. Sylvia PERERA. Caminho para a Iniciação Feminina.São Paulo:Paulinas,
1985;p. 107). Ereshkigal representa o Abismo no poema sumeriano “A Descida de Inana”. Inana (acad.:

Ishtar) é a deusa guerreira do amor, que atravessa sete portas em sua jornada aos Infernos.
Enquanto forças cósmicas, pode-se identificar os orixás africanos às emanações de Plotino, sendo os
três deuses, Bará, Ogum e Iansã, os deuses infernais. O nome Bará deve ser identificado com o título
Criador (Bará: ar:b;, daí aerbo), porém Deus mesmo, segundo a ideia de Fílon, somente poderia ser Ogum.
O Bará representa, então a Sabedoria, na verdade a mente, composta pelas ideias. Sua saudação é:
“alûpo!” (@WLa;, em hebraico), e significa “chefe” e “companheiro”. De fato, o seu ocutá é acompanhado
pelo do Ogum, na casinha da rua, e como dois meninos, um contempla a beleza do outro, como o
Logos contempla o Uno. O Bará Lodê é uma divindade cósmica como a sua mãe, a Deusa do Mar.
Ao Bará segue-se Ogum, o deus da guerra, que pode ser identificado com o título “dos Exércitos”
atribuído a Javé, como Yahi ( ) seu atributo é a Lua, a foice do tempo, identificando igualmente uma
divindade cósmica. Segundo minha interpretação, desde Leba até Ogum, em todos os seus aspectos,
Ogum Avagan, o da rua, Ogun Adague, Oníre, trata-se de uma setorialização pragmática, para os fins
mágicos, de aspectos de uma única divindade dividida em dois pólos: o Deus Criador e o Diabo, sendo
ambos aspectos da Grande Deusa. Sua representação é a serpente na forma do ouróboros. A seguir
vem Iansã, a primeira orixá mulher invocada na festa, que representa o movimento em si mesmo,
entre os dois pólos, sua imagem é a serpente rastejante que demarca senoides com seu movimento.
Na verdade, ela avança percorrendo a lança de Ogum, envolvendo-a com seus aneis, seu movimento
real é a espiral, sendo a senoide uma representação cartesiana. Todas estas são divindades infernais. A
grande divisão é demarcada por Xangô, o orixá seguinte, representado pela díade da balança da
Justiça. O animal que se lhe sacrifica é o carneiro, um animal imponente, destacando-se sobre os
cabritos, bem menores, dos demais orixás. O Bará está acima da Justiça. Nada o impede de nada. É o
poder absoluto. Se fosse justo estaria limitado. É o que chamamos de “Todo-Poderoso”, ou Shaddai,
palavra que significa demônio, por excelência, talvez um plural de excelência em sua origem. Como
Diabo por excelência, governa todo o Inferno e as almas dos mortos. O estudo minucioso revela que
são estas almas dos mortos que estão na base de todo o culto. Mas há uma diferença entre exu e egun,
embora ambos sejam almas de mortos e diferenciados dos orixás; a diferença dos orixás talvez envolva
um aspecto emocional mais estável destes, sendo a alma morta menos estruturada e mais instável, por
falta do “fundamento”. Enquanto os mortos de defuntos pessoais caem no anonimato das trevas sob o
nome de eguns, levados por rituais fúnebres a permanecer aprisionadas naquele buraco no chão do
templo, chamado balé, onde ficam a disposição, para realizar “trabalhos” mágicos ocasionalmente
requisitados, outras almas, aparentemente, são almas penadas que vagam pelos caminhos do mundo
sem ter tido rituais fúnebres que as conduzissem às trevas e ao anonimato do Inferno. São, contudo,
almas de pessoas desconhecidas e seriam, no meu entendimento, os exus: entidades sob o domínio de
Bará, rei dos Infernos. Daí que a expressão “exu” designa, por definição, qualquer exu da Umbanda ou
Quimbanda como posse do Bará; são os seus servos, atuam como suas forças operantes. São o fogo
(vae) do Inferno, sua energia, o princípio ativo. As almas confinadas ao túmulo pertencem a Xangô.
Na mitologia Yorubá, no ciclo de Iansã, o companheiro de Ogum é o Agelú, outro Bará, que está
envolvido com a estória da reivindicação de relações sexuais com Iansã, feita por Xangô, o dono do
Direito. Xangô representa o homem por excelência, todas as orixás casam com ele, porque a Justiça é
um processo criador do espírito e, sob esse aspecto, está ao lado de Yemanjá, cujo animal votivo é a
ovelha, e o seu, o carneiro. Quem conduz Iansã até Xangô é o Agelú. Isto parece indiciar a presença das
duas formas de troca de esposas que encontramos na Bíblia, o levirato, entre irmãos, e a geullah, entre
primos, entre os costumes africanos. O Bará Agelú não é filho de Yemanjá, como os demais orixás, mas
de Oxum, a deusa do amor; na verdade, o Agelú é o próprio Amor, Éros, o demiurgo que criou o
mundo. Assim pode ser entendida a tradição que o menino Jesus brincava ao lado de Deus, na Criação.
Como Bará, portanto, pela lógica simples infantil, o Agelú representa a Sabedoria. A criança que brinca
é o Bará cujo atributo é a bola, a esfera, a matéria, e cuja personalidade é travessa e inconstante como
um átomo. Enquanto criança, o Bará não é um homem e se identifica, de certa forma, com a mulher;
daí a enigmática figura de Leba, cujo rito é sem movimento, ao lado do Bará propriamente dito, que é
o início do ou a condição para o movimento. O movimento é Iansã. Aí está a origem matriarcal da
religião. A Deusa, Nanã Buruku, a mãe da mãe e mais velha que a Yemanjá velha, pode ser identificada
ao Uno plotiniano, nesta mitologia, sendo Bará e Ogum os segundo e terceiro deuses. O Bará
(Elegbará) é diádico, Leba e Bará ao mesmo tempo, mas é o Leba, enquanto total ausência, que
representa a Deusa e o vazio do Abismo. Como mãe de Yemanjá, por ser a mais velha, Nanã identifica-
se com a falta de movimento que antecede a festa do Batuque no lado Cabinda. Nanã (Nwnw) foi a
genuína representação do vazio do Abismo, no Egypto, onde compunha uma díade com a Noite (Nwt),
a escuridão das trevas. Creio que há uma onomatopeia no nome Nanã para designar o sono, o primeiro
sintoma sonambúlico da mediunidade. Aparentemente, o culto cabinda de Leba foi deixado de lado
intencionalmente pelos outros lados das nações africanas, no Batuque, assim como o balê, que era fixo
e escavado no solo, passou a ser despachado no lado Oió, creio que por tratar-se do processo de
estabelecimento de um continuum evolutivo desenvolvido dentro da África pré-histórica, muito
possivelmente por influência de um acúmulo de saber pelos sacerdotes egípcios; vê-se-o, por exemplo,
na evolução do uso da lã de ovelha, que os egípcios retiraram dos ritos fúnebres, que me sugere um
desencantamento com os poderes apotropaicos da Deusa e perplexidade e confusão com a religião. O
uso da lã foi proibido no templo, por Javé (cf. Ez 44,19). O lado elohista refletiu na evolução do judaísmo,
pela sincretização da Páscoa, confundindo aspectos teológicos diversos, egípcio e iraniano, na figura do
carneiro.
O Abismo contém ambas as Duas Senhoras ( ), a escuridão das trevas (%v,x)o e as águas (~yIm;). O Deus
(celeste: Ouvrano,j), nessa mitologia matriarcal, é o filho consorte: “o que (é) das águas” (~yImv
; ;,). Trata-se
de um construto genitivo. Parece que este “o quê” entra na categoria de “filho”, como o “filho da
terra” (Satan, elemento da natureza) ou o “filho do homem” (Cristo, elemento cultural), sendo uma
categoria totêmica de pertencimento a um conjunto. O capítulo I do Livro do Gênesis revela-se, assim,
um entrismo demonista, por estar baseado nos mesmos princípios cosmogônicos que encontramos em
Plotino, cujo gérmen está na mitologia matriarcal, como podemos ver. Algo em si mesmo estranho ao
totemismo sapĭēnte, revelando a mitologia como mero sistema de leitura desta fenomênica. A
analogia do Uno, do Logos, da Alma e do Demiurgo neoplatônicos com os orixás Bará, Ogum e Iansã (a
Deusa é a preexistente condição necessária a tudo e que a tudo perpassa) permite a comparação com a
teoria quântica, uma nova mitologia cosmológica burguesa, onde estes orixás representariam análogos
das partículas atômicas próton, elétron e nêutron (no Abismo vazio), sendo o nêutron identificado ao
Bará por ser uma estrutura composta de próton e elétron, como também o Bará é diádico e é ambíguo.
Em oposição a Xangô, o homem por excelência e amante semi-humano da Deusa, a simbolizar o
médium humano de cujo corpo a Deusa se apossa e mata e pranteia, todos os aspectos divinos
ctônicos, Bará, Ogun e Iansã, por oposição a ele, são femininos. A verdadeira divindade primordial é a
Deusa, a revelar-se como origem matriarcal deste panteão e da ideologia do neoplatonismo, este
originado, em última instância, pelo pitagorismo e, portanto, com raízes egípcias. O que ambas estas
concepções cosmológicas traduzem é um panteísmo materialista. Também o esposo de Yemanjá,
Oxalá, tem um aspecto femíneo, hermafrodito, e seu animal é, igualmente, a cabrita, revelando-se um
aspecto da díade que é a própria deusa em si mesma chamado “as Duas Senhoras” ( ), como mãe e
algoz. Após Oxalá, novamente, recomeça o ciclo com o Bará, sendo ambos orixás andróginos, que é
onde está o ponto de união da guia imperial. O animal que casa com a ovelha de Yemanjá é o carneiro
de Xangô e existe mesmo uma lenda sobre a origem humana de Xangô: ele não seria filho de Yemanjá,
como os demais orixás, mas se teria tornado orixá por apoteose. Ele é o jovem amado-consorte. Seu
aspecto sombrio, como o quarto elemento da tetráktys, une-se à trindade Oxum, Oxalá, Yemanjá, sob
a figura de Iapanã, cujo carneiro é negro. Mas, antes de compor um elemento trinitário, Yemanjá, sob
a forma primordial de Nanã, era a única divindade cultuada. A ela cabia originalmente a designação
pela serpente, símbolo que, no panteão africano, abrange Bará, Ogun e Iansã, porque a figura da
serpente foi o símbolo da Deusa e, na língua egípcia, o determinativo hieroglífico para “deusa”, é o
hieroglífico I12: ;. Nesse eixo teríamos a Deusa e o seu amante humano, o deus carneiro semi-humano.
Mas o carneiro negro é ela própria como quarto elemento da tetra,ktij ; para Jung a mulher/Diabo.
No processo evolutivo histórico, o culto da Mãe se teria constituído no mundo matriarcal neandertal e
o surgimento do filho anunciaria o aparecimento do Homō sapĭēns e da cultura totêmica, quando se
teria acrescentado a fundamentação do fetiche ( : tiqei,j) que teria modificado o perfil psicológico da
prosopopeia e elevou os demônios a anjos; e de tiqei,j teríamos qeo,j, contrariando Platão. A referência
que Platão nos dá é uma ideia indo-europeia que respeita a DEUM (cf. Èmile Benveniste, O Vocabulário das
Instituições Indo-Europeias,Campinas:Uni-Camp). Os “anjos caídos” pertenceriam à antiga tradição neandertal.

Não somente a etimologia dos vocábulos latino e grego para deus, DEUS e qeo,j, mas ainda o estudo
das mitologias que originaram os conceitos filosófico e alimentaram a ciência em seus primórdios,
revelam a sua natureza infernal. Estamos ante realidades cósmicas distintas, neandertal e sapĭēns,
advindo daí muita confusão. Ao conhecermos a mitologia originária das concepções pitagórico-
platônicas que nos legaram o neoplatonismo plotiniano e agostiniano, poderemos perceber melhor o
referencial linguístico que estruturou semioticamente o entendimento dos padres conciliares que
definiram o dogma da Santíssima Trindade Divina. Abandonaram a cosmovisão judaica do Único Deus
para adotar a cosmovisão pagã da cultura demonista. Assim Heidegger pôde vir a dizer que o Deus da
teologia entrou na filosofia “pela porta dos fundos”. O dogma da Santíssima Trindade consubstancia a
cosmovisão de Deus das mitologias do mundo Antigo, expressa na mitologia africana primitiva: os três
deuses neoplatônicos são as divindades infernais, três aspectos da Deusa que sobreviveram às
invasões helênicas sob as formas de Cloto, Láquesis e Átropos, deusas infernais da primitiva religião
matriarcal, como nos mostrou Friedrich Engels no Prefácio à Quarta Edição, de 1891, d’A Origem da
Família da Propriedade Privada e do Estado. Então, a “porta dos fundos” pela qual se introduziu o
paganismo na Igreja Cristã foi o Concílio de Niceia, que introduziu na teologia o deus da filosofia
neoplatônica através da fórmula tertuliana.
Pois isso que se chama Deus, por derivação etimológica do grego qeo,j (de ti,qemi), é algo maravilhoso
que encanta a humanidade através de nossa própria vontade de poder. O desejo de felicidade mantém
os homens presos ao poder de Deus. Esse poder de criação (kti,sij: fundação), o objeto cúpido que, aos
meus olhos, motivou o sincretismo católico e os avivamentos evangélicos que são, em grande parte, no
Brasil demonista, um novo disfarce do montanismo.
Creio que o cristianismo já recebera des’antanho uma tradição egípcia através do mosaísmo. Ao
lermos Fílon, por exemplo, espanta a atualidade da sua terminologia técnica religiosa para o Brasil de
hoje. Na recente terminologia religiosa afro-brasileira, “fundamento” designa as coisas da religião, em
geral, e, especificamente, o assentamento do santo. A origem da teologia da redenção só pode estar
no culto a Amôn, a que Moisés, como príncipe egípcio, devera ser iniciado. O nome do deus Amôn, em
egípcio ( ), parece estar ligado etimologicamente ao conceito de qeo,j: o fetiche ( : tiqe,nai), o que
indica a sua antiguidade. A primeira divindade a aparecer ao lado da Deusa foi o seu filho-consorte, o
deus-carneiro. Com o sacrifício do cordeiro, a passagem da Páscoa está simbolizada no cristianismo
como saída das almas do Inferno, quando por lá passou o Cristo. Mas há outras influências que não
distingo muito bem. Por outro lado, a tenda na tradição do Tabernáculo bíblico, aparenta ser xamânica
e genuinamente monoteísta. Talvez provenha da tradição samaritana que sobreviveu na Galileia.
Pela complexidade crescente, pode-se deduzir com um raciocínio simples que o demonismo puro
tenha antecedido o culto fetichista, sendo o fetichismo uma evolução do animismo puro, uma
“fundamentação” dele. Portanto, a cangira quimbandista deve ser uma técnica mais antiga que o
fetichismo africano e, talvez, seja a forma neandertaliana pura. Com o que então a Umbanda, em sua
modernidade, seria o seu formato sapĭēnte; mas ¿será um culto divino e não ctônico-demoníaco?
Teríamos, assim, uma contradição à teoria apresentada por Mircea Eliade quanto as relações do
xamanismo com o mediunismo? Por que os caboclos de Umbanda discriminam a linha negra? Ao passo
que os exus produzem o Mal, os caboclos não o debelam, mas passam a administrá-lo. O que parece
corroborar a tese de Eliade que os demônios infernais são hegemônicos e dominam toda a realidade
da fenomênica religiosa uma vez instalados. Aliás, ¿para que servem os caboclos?
E, ainda, resta-nos o enigmático javismo... Com certeza este culto demonista foi adotado por Moisés,
pois, como sacerdote ou, melhor, como filho-de-santo, Moisés teria necessidade de uma renovação do
“aprontamento” quando esteve no deserto e, por todas as características do culto a Javé, casa bem
com o de Amôn, principalmente no aspecto da purificação do demonismo entrevisto na querela com
Baál. O baalismo, à semelhança da Quimbanda, somente pode ter sido aquela forma primitiva de
demonismo puro divulgada como tradição popular, sobrevivente ao sincretismo oficial com a religião
neandertal, alí nas montanhas da Judeia. Essas práticas mágicas se espalhavam pela felá, no Egypto,
desde Canaán, apesar da depuração realizada pelos sacerdotes nos templos.
Mas não sei se por influência de Moisés, veio a dar-se a evolução do javismo na direção específica de
tornar-se um culto não-personalista, quero dizer, no sentido de eliminar o demoníaco para deter
somente o divino. Encontramos, hoje, esta evolução no culto genuinamente africano reintroduzido no
Brasil, desde finais do século XX. E, parece-me, que isto foi igualmente tentado pelo catolicismo, de
forma muito ingênua, com o sincretismo que adotou tantos elementos pagãos, a começar pelos
templos e lugares santos cheios de “poder mágico” que, ao longo dos séculos, perderam a sua eficácia
por não se reatualizarem os sacrificios dos ritos de fundação. ¿Pensou-se mesmo que este poder ficaria
à disposição de manipulações a bel prazer do interesse humano?
O Movimento Negro, no Brasil, demonstrou e propaga a identidade da mitologia mediterrânea com a
mitologia africana. Daí já se pode começar a ver que o conceito de Deus do cristianismo somente pode
ser expresso pela etimologia latina do vocábulo “deus”; o deus denominado qeo,j vem de uma outra
história. Parece ser o assentamento do fetiche, o “santo” como se diz no Brasil, em conformidade com
a etimologia egípcia, onde o “s” prefixado, o ideograma S29: S, declina a forma causativa do verbo
“divinizar” (ntr : ), e o ideograma G43: W: “o” (w), como sufixo, o particípio, daí a forma tautológica
popular de se dizer: o santo sento, i. e., “assentado” ( ), na expressão coloquial. A palavra “santo”
significa: assentado, o que parece ter sido esquecido no devir dos séculos, pelo que foi acrescentado
talvez após o século XIV a. D., talvez já no Brasil, o adjunto “sento” (assentado), criando uma repetição
tautológica: santo sento.
O assentamento do fetiche, que detinha a ideia pagã de “sagrado”, assimilou a ideia cristã de “santo”.
Ainda, daquela mesma raiz ntr, podemos reconhecer o rito do batismo como um entrismo demonista
no cristianismo. Sabemos que o próprio Jesus nunca batizou, mas foram os discípulos de João Batista
que introduziram esta prática no grupo de Jesus; o grupo de Jesus se constituíra, inicialmente, pelos
próprios discípulos do Batista. Com muita cautela, pois meu conhecimento de egípcio é paupérrimo,
mas baseado sobretudo em meu conhecimento a campo das religiões afro-brasileiras, penso que o
significado real do conceito é “renascimento”, “rejuvenescimento”, a partir da raiz “nt”, porque este é
o efeito que se percebe após uma demonização, após um “aprontamento de santo”: o renascimento,
ou nascer das águas, o símbolo original do batismo. O vocábulo “divino”, em egípcio, portanto,
identifica-se, por sua raiz verbal, com o latino “re-nato”.
Descobertas como essa me incomodam, me desestabilizam.
¿Haverá aí confirmação de entrismo demonista nos textos evangélicos, ou do espírito católico nos
rituais romanos? Fico desconcertado, sem entender a dialética. Quando percebo a aberração das atuais
práticas nas igrejas cristãs e as incoerências em suas doutrinas, me vejo sozinho, me sinto sozinho, e
uma insegurança terrível me leva à descrença. Tenho dificuldades para acreditar em mim mesmo e no
conhecimento que adquiri, e duvido da fé, tal como a entendo quando leio a Bíblia, desconfiando de
mim mesmo, porque me parece inacreditável que somente eu esteja certo e centenas de igrejas,
erradas. Então, meus temores e desejos se projetam sob a forma de um aterrorizador numĕn, de que
eu já não saberia dizer se de natureza psíquica, apenas, ou mágica, uma vez que a intervenção dos
demônios está sempre presente, como um catalizador.
Avalio, de quanto pude conhecer de religião, que minhas experiências com o deus (qeo,j) assentado em
fetiches foram, em geral, boas e o poder do deus é algo extraordinário e maravilhoso, sendo bom na
medida em que nós mesmos somos bons; porém, as personalidades dos demônios, os ameaçadores
guardiões dos ocutás, é que são problemáticas e constrangedoras e obstrutoras do acesso à essa graça,
uma vez que agem como agiotas do sagrado; devo a expressão a um amigo filósofo e pedagogo e,
acima de tudo, artista e poeta inspirado. No sentido próprio do termo, usurários de “abrir e fechar” as
portas ou os caminhos, função demoníaca que se encontrava na origem atribuída ao Pontĭfex Maxĭmus
romano. Os demônios barram o acesso e nada dão de graça, e quando o fazem, fazem somente se lhes
convém. É necessário prostrar-se e adorá-lo, como ensinou São Mateus (Mt 4,9; tb. Lc 4,7).
E quando se conhecem as literaturas escatológica e gnóstica e a sua descrição do rio de fogo que corre
de sob o trono divino, não nos é possível deixar de fazer menção ao Periflegetonte, o rio que corre no
Inferno. Fica-se, então, somente com o Diabo do inconsciente junguiano . . . E, sendo assim, “Deus não
existe, somente o Diabo existe”, conforme o ensinamento de mãe Maria da Oxum.
¿Quanto entrou de paganismo, quanto entrismo demonista passou da teologia do Batista para os
textos dos Evangelhos, através dos seus discípulos que, ao sobreviverem à morte de Jesus, nos legaram
as suas próprias interpretações dos seus ensinamentos? Os discípulos mais antigos e, logo, com maior
autoridade, no grupo de Jesus, foram o grupo de discípulos do Batista. O batismo de João não era o
batismo de Jesus, o deste sendo pelo fogo do Espírito e, embora Jesus não o ritualizasse nunca, os
discípulos de João continuaram a batizar com água, motivando a necessidade de introduzir esse ritual,
talvez, já, quando da introdução da ideologia da Trindade Divina nos textos dos sinóticos, conforme os
atuais estudos exegéticos parecem revelar. Tudo isto fermentado pelas práticas espíritas gnósticas.
¿Mas, afinal de contas, não deveríamos nós termos abandonado a antiga Lei? E o antigo Deus?
O Deus verdadeiro só pode ser o Deus Altíssimo (!Ayl.[, lae), originário dos altiplanos iranianos, em
oposição a Shaddai. Revelando-se-nos dois deuses diferentes e originados de duas culturas distintas.
¿Teríamos assim, sincretizados, a ideia do Uno e de seu demiurgo, em uma síntese palestina de um
fenômeno helênico semelhante? O javismo revela ter evoluído desde um demonismo rudimentar e, no
entanto, suprimiu ou a prosopopeia demoníaca ou, ao menos, todo contato com ela. Também esta
parece ter sido a tática aplicada na sincretização católica do paganismo: eliminou-se a indesejável
presença dos demônios para permitir o acesso direto à divindade (qeo,j), à “porta cósmica”.
Esse tipo de ação caracterizou o comportamento dos Padres da Igreja em todas as áreas da vida.
Como o Matrimônio, por exemplo, que é uma afronta à condição livre obtida pela mulher cristã.
Em um antigo trabalho denunciei o Matrimônio como um anacronismo anticristão, pois o casamento
cristão se baseia nos capítulos 1° e 2 de Gênesis e as características matrimoniais de mūnĕris patrimōnĭi
da mulher foram acrescentadas somente no capítulo 3, em virtude da ação da Serpente, no Paraíso.
Foi, portanto, uma situação condicional que extinguiu-se com o advento da Redenção. A ideia dos
Padres fora vulgarizar o melhor bem que os patrícios romanos detinham. Um equívoco compreensível.
A partir do contato com os templos pagãos no Brasil de hoje, se poderá deduzir o que envolveu a
apropriação dos templos pagãos pela Igreja. Um terreiro é um lugar onde se assenta um fetiche e que,
por virtude da sua presença, está prenhe de axé, do poder de força mágica no exato sentido bíblico
que temos na kavôd (glória : dboK,; ; रावाइा : çaravá). Sente-se isso somente por adentrar-lhes as portas. Um
exame mais cuidadoso revela tratar-se, em realidade, da presença do ocutá (o fetiche: qeo,j), o
assentamento de santo propriamente. O santo atende pedidos e concede favores mesmo não
solicitados, por sua inteligência própria, ou deveria dizer omnisciência, por previdente providência.
Refiro-me ao santo “sento”: o ocutá. Já isto não acontece com o orixá que encorpora no sacerdote do
templo, o dono do terreiro. Este aparenta ser um guardião do ocutá, à semelhança do daímwn que
guardava a divindade nos templos antigos. Até mesmo os próprios centros espíritas kardecistas evitam
o contato com as prosopopeias em transes mediúnicos, sendo o elemento fetichista que se apresenta
como suporte material (o “fundamento”) para o “assentamento” da força mediúnica, no centro
espírita kardecista, a própria casa espírita, já clássica como casa assombrada ou casa dos espíritos.
Há necessidade de localização espacial geográfica, um elemento material catexiador da força do axé,
mas o demônio habita o médium, sendo o elemento de “fundação” (kti,sij) o que lhe permite fixação.
Na verdade, o demônio é um complexo afetivo do médium, catexiado pelo arquétipo do Diabo.
Estabeleci a diferenciação entre Diabo e demônio, a partir de estudos sobre a Psicologia Analítica de
Carl Gustav Jung, definindo como demônio a um complexo afetivo reprimido que serviria de núcleo
psíquico para a personalidade prosopopeica sob o controle de um “espírito” alienígena, conglutinado
através de ressonância telepática. Esses “espíritos” controlam o médium e todo o mundo da
fenomênica mágica. Assim como os cultos africanos têm preferência por não deixar o Bará tomar conta
da cabeça dos seus filhos, à excessão já vista do Batuque gaúcho, o contato com as prosopopeias dos
demônios costuma ser sistematicamente evitado, tanto quanto se reserva de contatos o próprio
santíssimo, quer dizer, o assentamento do santo ( ). Similarmente nessa cautela, o Sumo Sacerdote
judeu adentrava o Santíssimo do templo uma única vez por ano, para acercar-se da arca e aspergí-la
com o sangue dos sacrifícios cortados, a berith. Mas, ao menos aparentemente, nem na Judeia e nem
na Grécia haviam encorporações demoníacas, apenas matanças de hóstias. O que sucedesse ao
sacerdote poderia ser um transe total e cataléptico, pelo qual se atava uma corda ao seu pé para
resgatar o seu corpo do Santíssimo, espaço interditado a qualquer outro ser humano.
O que aqui critico é a encorporação demoníaca. O que vemos no Brasil evidencia-se como um culto
derivado do pré-histórico Culto da Caveira, o Culto da Morte, que sincretizou e desenvolveu aqui uma
ideologia a partir da mitologia dos orixás africanos, caracterizando as prosopopeias desenvolvidas
primeiramente na Quimbanda e, logo, na Umbanda, juntamente com seus outros elementos orientais,
como almas dos mortos e não como orixás; no primeiro caso, exus com figuras de sátiros.
Há uma ideologia totalmente duvidosa que diz estarem os demônios divididos em bons e maus
espíritos. É a lenda dos anjos em geral. Mas não há provas. Percebe-se somente seres totalmente
poderosos que, quando usam ou mesmo não usam seus poderes, alegam motivos incomprovados. Se
há alguma hierarquia entre caboclos e exus, por exemplo, parece se dar, apenas, a nível de organização
política, numa visão de oportunidades, por esperteza, mas nada comprovadamente moral, ao menos
na Quimbanda, principalmente porque protegem-se uns aos outros em seus atos; nunca, que eu saiba,
tendo um deles desfeito os prejuízos causados por outro. Mas cancelam benefícios. Parece haver, aí,
interesse comum na sua própria hegemonia política sobre a humanidade. O domínio totalitário do
terror, através da opressão inquestionada; o que justifica o nome shaddai (de dd:v;: oprimir, destruir).
Todos eles parecem conspirar e esconder os motivos de seus atos por detrás de uma ideologia
inconsistente e ambígua. Contradizem-se nas conversas durante os passes, não somente uns contra os
outros, mas uma mesma entidade em ocasiões distintas.
Identificando os conceitos egípcio e grego, pela aproximação de tiqei,j a mnw ( ), verifica-se que
Shaddai, com seu par de mamas é um aspecto de Xangô com sua balança. Sendo o deus Amôn a mais
antiga representação de uma divindade masculina, o primitivo filho-consorte da Deusa primordial,
Nanã Buruku, verifica-se a confusão de seus traços com a deusa abutre Mwt, observados por Freud em
seu artigo Leonardo. À Nwnw se sacrifica a ovelha sem o uso do cutelo, estripando-a numa selvageria
brutal, a ele o cordeiro, mas imolado com um instrumento, o cutelo de sílex, porque ela representa a
escuridão do vazio que se constitui no espaço que contém a matéria ondulatória contínua, a Natureza,
enquanto ele representa o elemento corpuscular descontínuo, representado no seixo, o ocutá, mas
também pela montanha, a fronteira que delimita e limita: a cultura. O acádico SA.TU ( : montanha)
derivou “pedra” (o cutá) e Satan. Trata-se da montanha sobre a qual nasceu Rá-Áton, o deus criador de
Heliópolis, que inspirou a doutrina do Uno a Plotino, mas trata-se, também, da pedra da qual nascia
Mitra a cada Natal. O deus masculino, que representa a razão superior da fase evolutiva sapĭēnte,
institui o fundamental elemento de manutenção da ordem ante os iminentes arroubos do primitivo
caos da Deusa neandertal. Por isso, o fetiche de fundação é uma representação fálica.
Mas a diferença não tem tanto a ver com os gêneros masculino e feminino da raça humana, como
com os gêneros neandertal e sapĭēns da espécie biológica. Marca do desenvolvimento do lobo cerebral
frontal que permitiu a representação analógica do inconsciente. Trata-se do totemismo e da fundação
da cultura. Da capacidade cerebral de êxtase, que a Deusa, como mãe ciumenta, sufoca.
Daí decorre o meu ponto de vista pessoal que a macumba, com a técnica da gira e a doutrina da
encarnação das almas pelo vórtice de estrelas no ceu, seja a primeira forma de cultura mediúnica,
originada, ainda, entre os neandertais. O exu, com a sua imoralidade, teria sido a primeira prosopopeia
desenvolvida. O fato histórico descrito como a queda dos anjos maus poderia ter sido um evento
acontecido dentro da comunidade neandertal e observado pelo Homō sapĭēns, que o registrou sob
forma oral. A classificação é sapĭēns. O texto de Gênesis 6,4 marca um antes e um depois na narração
do drama contemplado pelo narrador, e estabelece uma série de “arriadas” (~ylipiN>) acontecidas “nestes
dias e também depois...” A mudança de tempo pode ser referência ao desaparecimento dos neandertais
e à continuidade da sua tradição religiosa no seio da sociedade sapĭēns “e até, depois (d)isto, donde
iam filhos-dos-santos às filhas da terra . . .” (Gn 6,4: ~d<:a,;h;, tAnB.-la, ~yhiOla/h,; ynEb. Waboy<: rv,a] !ke-yrEx]a; ~g:w> ). O hagiógrafo
contempla um estado religioso que lhe é atual e utiliza sua terminologia (analogia) própria, mas sabe
que a origem dos fatos é anterior aos seus dias e vem dos prístinos tempos d’antanho: “as arriadas
começaram na terra naqueles dias” (~heh,; ~ymiY<:B; #r<a,;b,; Wyh,; ~ylipiN>h;); aspecto incoativo do verbo. As vírgulas, na
frase, em português, substituem o maqqef do construto: “depois disso”, é a deixa.
Outra solução: “E ainda, depois disto [arriados], (é) que iam . . .”; a partícula relativa tem antecedente.
Também Javé viria desde tempos d’antanho, sugerindo a cultura cro-magnoide para uma possível
“fundamentação” do poderoso Deus, possuidor original de toda a terra e anterior aos novos deuses
das nações, e para seu estranhamento das técnicas genuinamente neandertais.
O local da expansão de uma posterior cultura mediúnica sapĭēnte, promovida pelos povos drávidas,
deveu se dar através das terras baixas que contornam o sul da meseta iraniana, na direção dos montes
de Salomão aos montes Zagros, atualmente ocupadas pelas águas do Oceano Pacífico, até o Jardim do
Éden, na região atualmente submersa sob o golfo pérsico. Entre as nações, após um desenvolvimento
intensivo na cultura sapĭēns, devido ao desenvolvimento do lobo frontal, uma técnica posterior de
assentamento de fetiches teria conseguindo dar uma melhor estabilidade à personalidade da
prosopopeia demoníaca, como orixás; embora o Bará continue sendo um exu em sua natureza mais
íntima. O exu é o protótipo básico, a partir do qual se desenvolve a dominância arquetípica de cada
orixá em particular. Neste continuum, Javé parece situar-se como um termo médio aglutinando as
melhores vantagens de ambos os lados e assenhoreando-se de todos os cultos demonistas naquela
região. Este processo de transformações de Javé está bem atestado no Antigo Testamento.
O fenômeno do desenvolvimento espiritual dos demônios em divindades tornou-se uma tradição bem
conhecida no Mundo Antigo, e parece termos seu reflexo na atual ideologia da evolução das almas,
desenvolvida na sociedade burguesa, da doutrina kardecista pós-darwinista. Marcel Mauss o comenta
em seu Esboço para uma Teoria Geral da Magia, demonstrando não saber muito bem do que falava.
Os exus dos médiuns que possuem orixás assentados parecem mais evoluídos que os outros. No
fundo, as palavras de Fílon não deixariam de ter razão, porque, independentemente das técnicas de
produção anímicas e da parte do aparelho psíquico dominante na elaboração de suas personalidades,
deverão ser essencialmente idênticos tanto os orixás como os exus e as demais prosopopeias de almas
mortas. Nada mais que complexos afetivos reprimidos sob controle de espíritos alógenos ao médium.
Estímulos sensoriais obedecem a um arquétipo, ou à ausência dele. Não parece fácil diferenciá-los em
anjos e demônios, uma vez que os anjos seriam apenas contenções arquetípicas da potencialidade
demônica, e o demônio em si mesmo a fúria natural d’além de qualquer contenção. Todos são capazes
de portentos miraculosos e os homens caem sob o poder de seu encanto ficando logo passíveis ao
numĕn, sob ação de qualquer ato arbitrário. Já é uma arbitrariedade de sua parte o fato de se
apresentarem na terra, e mais outra arbitrariedade, segundo a teoria por mim contemplada, é terem
fundado o estado e explorado a divisão de classes para darem regalias a si mesmos e a seus médiuns,
que usam como “cavalos”. E entre essas regalias devemos apontar luxúria voluptuosa, com que se
regalaram nos dias de orgias de sexo e sangue de que temos notícia nos registros na literatura antiga.
Eles percebem-se superiores aos fracos homens e se dão todos os direitos. A começar pelo direito de
serem adorados como deuses, com escravos hieródulos e orgias de sexo regadas com o sangue de
nossos filhos, como já se viu antanho, estando limitados, hoje, somente pelas frágeis constituições
nacionais, às quais eles parecem querer controlar, como no processo político do cenário brasileiro.
Na obra Peri. Deisidaimoni,aj, Plutarco de Queroneia dá-nos uma pequena amostragem do problema.
Os estados teocráticos da embocadura dos rios Tigre e Eufrates parecem ser herdeiros da tradição da
cultura dos megálitos, contida na História dos Primórdios sobre a Serpente (!j;f;; ~), a tradição que
desmascara a origem do Mal no Jardim do Éden, nessa região. Para usarmos categorias frankfurteanas,
a “felicidade”, ou euvdaimoni,a, foi a ideologia que mascarou o discurso do poder político desde sua
origem; hoje, sob a ideologia do estado de direito burguês, “o direito à busca” da felicidade, propalado
pelo neocolonialismo. Confirmando as críticas das origens do cristianismo, os demônios dispensam
felicidade através dos mesmos métodos que os gânsgsteres de All Capone dispensavam segurança.
A felicidade tanto terrena, sob um estado ordenado, quanto celestial, no Reino de Deus, sempre
funcionou perfeitamente como ideologia para mascarar a dominação, por projetarmos em um mundo
ideal nossos anseios por felicidade. Aprendemos isto com Immanuel Kant. Mas nunca passou de
ideologia. Os demônios não estão interessados na felicidade das pessoas; aproveitam-se, como
qualquer oportunista, de nossos anseios por felicidade. Os demônios que conheci sempre se me
mostraram cinicamente ridicularizadores das ideias por nós projetadas no mundo das ideias. Como os
direitos humanos ou mesmo a piedade. O que eles observam é a pureza ritual, mas, em absoluto, isto
não me pareceu ter nada a ver com correção de intenções. Como puros impulsos e emoções eles
parecem reconhecer tão somente o dever de lutar pela sobrevivência. Não existe Lei para eles.
Sua única Lei é a morte e, como forças psíquicas que são, têm por emblema a caveira em seu culto.
Por certo, os rituais e todo o culto da submissão humana e a própria noção de divindade ativa, que
por definição é o demônio, nasceram por imposição dessas criaturas, uma vez que a primeira ideia de
Deus do Homō sapĭēns, na Idade da Pedra, não comportava a ideia de causa do Mal; Deus era bom, um
Criador ocioso. O Deus Ōtiōsus metafísico dos burgueses foi somente uma reclassificação totêmica do
arquétipo paterno em um ato de apropriação da linguagem, a base fundamental da ideologia da
igualdade de todos os homens e da sua fraternidade.
Mas, ao contrário das sociedades tribais, na sociedade burguesa é ideologia, e não discurso.
São inegáveis as inúmeras vantagens materiais, pecuniárias e políticas que alguém pode usufruir
individualmente por meio do culto à demônios, numa sociedade de consumo, como a burguesa, um
sistema econômico competitivo, como o capitalista, e sob o jugo do estado. Mas as atitudes políticas
dos próprios demônios nos quedam incompreensíveis. A preocupação que moveu os espíritos que
voltaram sua nêmesis contra mim não foi o meu ato de escritura em si mesmo, que não agrediu a sua
mesma ideologia de pureza ritual, onde o que está fora do rito não existe. Mas sim a comunidade
humana dos leitores de meus livros que virtualmente possam ou poderiam ser seus escravos, a quem
pretenderam impedir de ter acesso a determinadas informações que disponibilizei com meus textos.
Ao menos, infere-se que algo de grande importância existe em toda movimentação acionada nos
centros espíritas; e não se resume a atender os desejos dos que lá vão tomar passes e pedir graças (não
tão gratuítas). Muitas pessoas entram e saem da Umbanda vendo-a apenas como uma religião tão
inútil quanto qualquer outra, e a abandonam. Já outros lá permanecem presos, e nada obtém de fato,
além da reequilibração temporária das disfunções causadas pela mediunidade. Mas, do ponto de vista
dos espíritos, algo muito importante está sendo feito, em que empenham grande e contínuo esforço.
¿O quê vêm fazer estes espíritos na terra? E pelo que receberam a fama que têm os demônios?
Fama já conhecida entre os filósofos platônicos e surgida muito antes do aparecimento da Igreja.
O seu grande esforço vê-se pela grande quantidade de centros espíritas utlizados para a represália
contra meus livros, mencionados aqui, que foram cinco, entre Pelotas e Porto Alegre, num ato que
durou em torno de trinta anos, envolvendo diversos demônios cujos médiuns nunca se conheceram.
Mas escritores escreverem livros e livros serem censurados são atividades humanas comuns. Livros
serem perseguidos e escritores serem maltratados não são novidade na sociedade humana. Os homens
fazem muitas coisas contra si mesmos que deveriam ser estranháveis e, no entanto, já se tornaram
comuns. São muito bem conhecidos os motivos dos homens. Isto nem mesmo desperta mais a atenção
de ninguém. Vê-se-o nos manicômios, nas prisões e, de uma forma mais sutil, nos conventos e nos
mosteiros, nas santas famílias, nas mais respeitáveis famílias... A carne humana é a que atinge os
maiores preços no mercado, tanto viva quanto morta.
Mas ¿e os demônios? O que estão fazendo os demônios com os homens? Em que lucram? Querem o
quê? Se ignorarmos as bobagens geradas pela ignorância humana, devemos nos perguntar ¿o quê vêm
fazer os demônios no mundo? Qual o interesse que subjaz por detrás dos atos dos demônios?
Muitas pessoas passam pela Umbanda e nada acontece na vida deles, no entanto, acabam dentro de
igrejas evangélicas pentecostais onde se tornam os responsáveis por grandes avivamentos e agentes
de portentosos fenômenos pneumáticos. O próprio movimento avivacionista começou em grupos
evangélicos que estavam próximos de comunidades de vodoo americano, no sul dos Estados Unidos.
Até mesmo as irmãs Fox merecem uma investigação biográfica para se averiguar se houveram contatos
mais estreitos ou se agiu a mediunidade por efeito da proximidade. O simples contato frequente de
crianças com amas médiuns espíritas, por algum tempo, desenvolve-lhes a mediunidade (e disritmia).
Toda esta ampla movimentação ao longo da História, espalhando-se pelo planeta, não deve ser
ignorada infantilmente, após ser constatada a magnitude do fenômeno sincronístico acionado pelos
demônios numa articulação maquiavélica. ¿Para quê tanta movimentação? Por quê tanto esforço?
O Mal surgiu na face da terra com o fenômeno dos demônios. Isto está muito claro na Bíblia, onde o
Pecado se introduziu de fora, no homem. Não confunda-se o Mal sobrenatural com acidentes fortuitos.
A literatura escatológica apócrifa do período intertestamentário e toda a apocalíptica, incluídas as
psicografias gnósticas, mostram que se os viu sempre como um mal e como a fonte dos males. E foi
este o juízo que fizeram os gregos, após nascer a filosofia. Talvez o maior mal, a origem de tudo, seja a
maneira como se entranham na vida da gente e se instalam dentro de nossos cérebros, se infiltrando
em nosso inconsciente. A “porta cósmica” é uma porta para o inconsciente, para a alma do mundo.
Mas quem está no controle da “porta cósmica” para Deus, o cutá (i.e., o qeo,j) sento no quarto-de-santo,
é a prosopopeia demoníaca, quer seu nome seja exu ou orixá, alma defunta, santo, caboclo ou anjo-da-
guarda. O VAgato,j Dai,mwn de antanho é hoje o guia espírita. E qualquer um desses elementos leva ao
outro, num círculo contínuo. Dever-se-á concluir, portanto, que através do termo exu se designaria
essencialmente a prosopopeia onipotente do orixá Bará sob a dominância do arquétipo Todo-
poderoso do Diabo. A imagem do Diabo, em sua designação consagrada pelos dois milênios de
cristianismo, foi uma representação exata do exu, e não caberia aos outros espíritos. Sendo, ainda,
esta mesma ideologia representada nas mitologias africanas e mediterrâneas, o que nos levará a
confirmar a teologia da Criação de Marción, o Herege, excomungado por seu pai, cristão e bispo.
O culto da Quimbanda é o culto do filho da Deusa, filho-consorte do Abismo que reina nas trevas do
Inferno. É um filho sem pai, que não conhece ética. Sendo a falta de ética e o arbítrio acima do critério
de justiça que fazem dos exus onipotentes: ~yDIve. A ausência da função paterna não lhe permite ter
sentimento de respeito. Posto que o sentimento de respeito seja um sentimento ideal, como o quer
Kant, e não um sentimento natural, esta prosopopeia não pode ser entendida como um arquétipo, mas
deve ser um protótipo, porque o arquétipo é uma ideia, uma forma que molda e dá contenção à fúria
natural, e nele não pode haver ideia alguma, é a força pura inconsciente e, portanto, deve se situar em
um nível muito animal, muito além do neandertal. Sendo, de fato, composto por complexos afetivos
do médium sob a dominância do arquétipo psíquico do Diabo, este é Shaddai; daí sua identificação
com as mamas (~yId:v;,). Sua sexualidade ambígua reflete a sombra da mãe, porque ela a tudo domina.
Ele é ela, ostentando o ivqifa,lon, ou Mwt (ht;) a deusa-abutre da morte, o lado negro de sua mãe.
Embora seja senso comum em meios espíritas que o único critério concebível para diferenciar o nível
de consciência entre o exu e os outros espíritos só poderá ser o nível da moralidade do médium, se não
o pensarmos numa dialética ascendente, somente se poderá concluir o contrário, isto é, que cada
“filho-de-santo” apresenta-se com as características conformadas por seu orixá “de cabeça”. O único
constrangimento à ação onipotente diabólica apresentada pela personalidade prosopopeica do
demônio específico que se apresentará como guia ou protetor de um iniciado só poderia estar na
estrutura da personalidade gerada pela história da vida pessoal do seu receptáculo, pelas vivências do
médium, por sua educação. Somente uma mente sem os constrangimentos de um superego forte, um
cérebro sem algumas específicas conexões sinápticas, poderá permitir a conexão íntima com as forças
cegas da natureza que habitam o homem, em seu inconsciente, com as forças cegas sobrenaturais. É
importante lembrar que Deus fez a sua Criação boa e, somente depois, o Mal entrou no homem (cf. Gn
3). Sobre isso, é bom dar uma olhada no § 16 do Discurso contra os Gregos, de Taciano, o Sírio. Taciano
diz que os demônios não são almas defuntas e quem os conhece vê que não são homens. Hoje, no
Brasil, os professores de teologia, não somente os da PUC, aqui em Porto Alegre, mas de qualquer
igreja em toda a nossa Nação, esqueceram-se dos Pais da Igreja; na verdade, consideram-nos idiotas.
Não o confessam, porque avidamente visam os excelentes benefícios que as igrejas lhes proporcionam,
mas consideram o cristianismo uma besteira útil para a demagogia do governo sobre o povo.
Certa vez vi um pastor que não continha o riso ao passar a bandeja para a recolha das espórtulas.
Atenágoras de Atenas, Pai Apostólico, diz que “nós não pensamos sobre Deus, e também Pai, e sobre
seu Filho como fantasiam vossos poetas, mostrando-nos deuses que não são em nada melhores do que
os homens” (Apologia, §10). Mas as atuais pregações de pastores, no púlpito, nos exigem uma abnegada
denegação da razão. No decorrer dos séculos a teologia cristã caiu ao nível de fabulismos infantis de
desejos inconscientes. Por isso, hoje, no Brasil, a Igreja ensina o povo a aceitar o culto aos demônios. A
teologia cristã já não tem mais vínculos com a realidade espiritual e nem com a terrenal. Os teólogos
não sabem mais o que sejam demônios. Não sabem o que é um exu. São formados em “administração
de igrejas”. Como se diz: “PEQUENAS IGREJAS, GRANDES NEGÓCIOS”. A ciência da teologia virou piada.
Os professores de teologia católicos, aqui na PUC-RS, ensinam que demônios não existem.
Não reconhecendo mais um demônio, mesmo quando se lhes apresenta algum pela frente, no culto,
já não têm autoridade para ensinar e conduzem ao erro. E são elevados como bispos por isso! A todos
eles melhor representa o padre orientador vocacional: para quem a vidinha do povo não interessa . . .
A procissão passa enquanto os cães acúam.
Somente no momento da ira é que se revela total e plenamente a propriedade daquela índole má da
personalidade do exu, através da ação de seu poder sobrenatural. No encontro com o Bará, além do
ódio contido pela Bíblia, pude perceber nas expressões e no modo de falar, na carga emocional que
transmitia em suas palavras e frases, seu desprezo pela humanidade. Facetas que ficam ocultas e não
ditas nos momentos de tempo normal, durante os atos de culto, por qualquer espírito, exu ou orixá. O
poder ilimitado desconhece a necessidade de humildade, por esta requerer compaixão, e a grandeza
imensurável não pode conhecer simpatia pelo sentimento de nulidade da pequenez infinita. O homem
para eles não é nada, eles nos desprezam, pelo que nos tratam com hipocrisia, porque nos usam.
O Bará do seu Rubinho foi particularmente provalecido. Este é o apanágio do forte: a tudo tomar de
assalto. Costumam tratar-nos com a arrogância que não dá satisfação de seus atos. Esmagam seus
obstáculos, destroem vidas, riem às gargalhadas e bebem. No início bebiam cachaça vagabunda, agora
exigem bom scotch importado. Soube de uma terreira, em Pelotas, numa vila muito pobre do bairro
Navegantes, um dos mais pobres da cidade, onde, regularmente, a cada sessão semanal, as pomba-
giras vão à assitência e escolhem os homens que mais lhes atraem para a satisfação libidinosa de seus
apetites sexuais. Para isso existe um quarto onde se dispôs uma cama, atrás do congá.
Já não há mais necessidade da ideologia da fertilidade. Em breve se regalarão com o sangue de nosso
filhos sem se ocultarem, também; talvez se os comprarão das próprias mães, como conta Plutarco a
respeito do sacrifício de crianças a Moloch, em Cartago. A crise política do país se dirige a isto. Pessoas
comem lixo à beira das lixeiras, nas calçadas, enquanto pastores aplaudem e avaliam que “comem
bem” e clamam aos ceus por um carro do ano; mais poderia valer a uma mãe garantir o sustento de
dois ou três de seus rebentos à custa da vida de um deles que contemplar inane a miséria de todos.
Na concepção antiga, a cosmovisão dualista representava o dia composto com o período da noite a
antecedê-lo. E, ainda segundo sua cosmogonia, o caos antecede o cosmos. ¿Seria, portanto, a este
fenômeno que a Serpente referiu quando disse: “Conhecereis o bem e o mal”? Sendo, então, este
fenômeno, a alternância cíclica dos pulsos representados como senoide: ~, o que caracteriza a
religião da Serpente? Os demônios, nos terreiros, operam benefícios manipulando o mal “kármico”
pessoal dos que lhes solicitam tais benefícios. E é exatamente disso que o Evangelho nos exorta a nos
afastarmos. ¿Seria, então, a “vida presente” cristã vida plena, em virtude da força da oração que
sustenta com graça o pulso negativo dos períodos cíclicos da natureza, e nada mais que isso? Sendo a
ideia da Vida Eterna um conceito equivocadamente colhido do demonismo neandertal, onde os ciclos
são atribuídos à luta de um deus mantenedor contra o caos, mediante o sacrifício da hóstia? Mas não
somos animais psiquicamente sujeitos aos ciclos da natureza, nosso cérebro nos colocou acima disso.
Em sendo o culto a Javé, com seus rituais cruentos e toda a fenomênica exposta no ciclo de Moisés,
uma forma de manipulação da mediunidade colocada sob o controle do estado, ¿deveríamos entender
que a proibição aos cultos do baalismo fosse manipulação demagógica para a centralização do culto
javista em Jerusalém, em torno da corte real, visando o recolhimento de dízimos? O recolhimento dos
impostos do estado judaico teria alguma forma de identificação, mesmo mínima, com as prescrições
israelitas para as ofertas religiosas? Quanto de javismo sobrevivia ainda nas reformas anteriores e
posteriores ao rei Josias, promovidas pelos senhores da terra? E, no Segundo Templo, ¿o quê, afinal,
foi ordenado por Jesus que abandonássemos da antiga Lei? Exatamente: ¿a qual atividade, referiu-se
Jesus pela expressão “ladrões” e a quem a atribuiu? Aos compradores de animais para sacrifícios?
Aos banqueiros, aos vendedores de animais ou aos sacerdotes degoladores que executavam a berith?
¿Quê elemento poderia ser roubado no ato religioso? A vida? Quem são, por fim, estes ladrões?
E, enfim, ¿porque se teria mantido a ideia do sacrifício do cordeiro como antítipo da morte de Jesus?
Contra a teologia mosaica, o cordeiro israelita não teria origem o culto egípcio de Amôn, uma vez que
descartamos, hoje, qualquer parentesco entre a profecia egípcia e a israelita (cf. Alonso SCHÖKEL e Sicre DIAZ, in
Profetas; São Paulo:Paulinas), e nem tipificaria o Cristo como um sacrifício expiatório em suas origens, sendo
ou leitura de São Lucas (At 8.32) ou equivocada de São Pedro (1Pd 1.18-19), mas simbolizava o Messias
conquistador iraniano (cf. Charles H. DODD, in A Interpretação do Quarto Evangelho; São Paulo:Teológica). A libertação de
Jesus não era vista como a do Cristo o foi depois. Haveria aí um entrismo demonista através de
sincretismo com a teologia javista, talvez já sincretizada com a egípcia por Moisés. ¿Mas o que Jesus
estaria condenando com o condenar as atividades do templo, àquele bando de ladrões? Os primeiros
bispos teriam seguido uma linha teológica equivocada, ou calculada?
Na verdade, uma forma de teologia gnóstica mais útil que as demais combatidas por eles próprios . . .
¿Existe fundamento nas pesquisas sobre o texto de “Q”, e a filosofia cínica que ali se revela seria
cabedal israelita? E, enfim, quanta identidade existe entre os ensinamentos de Jesus, a doutrina cristã
e o sincretismo católico promovido pelos bispos que constituíram a classe dirigente da Igreja Cristã e
promoveram a caça às ideias divergentes ao seu próprio pensamento e, diga-se, a tudo que ameaçasse
as incipientes estruturas de seu poder que se firmava? Por que se perseguiu a teologia de Orígenes,
negando a corporeidade aos anjos caídos? Por quê ocultar a existência dos demônios?
Talvez, porque a teologia, como toda a ciência burguesa, discute o sexo dos anjos sem uma mínina
busca empírica, por temer encarar a realidade de exploração do povo. Há que fechar os olhos à vida do
povo. Há que fechar os olhos de todos à letra do texto proclamado.
Minha primeira catequese foram as imagens em bico de pena das Histórias Bíblicas fornecidas pelas
escolas católicas a meus pais e meus tios. Não sabia ler, mas entendia as imagens; encantadoras para
um menino de cinco anos que, por haver urinado sobre um feitiço, se tornara celebridade entre os
vizinhos. Aos seis anos eu possuía uma espécie de batina ou alva roxa, casulos e um andor para
carregar santos em procissões, com um séquito de primos da mesma idade a quem ministrava hóstias
de bolachinha Maria, em minhas brincadeiras de celebrar missa. Embora, após ter-me tornado adulto,
passasse a ser alvo de chacota e escárnio do clero, que entrou a me desprezar e ridicularizar.
Acostumei-me a ser ofendido, dentro das igrejas, por donde quer que eu passe, sejam católicas ou
evangélicas, diocese ou instituto, sempre sou depreciado com algum adjetivo inapropriado. Para uns
sou fundamentalista, para outros materialista, ou cientificista ou psicologizante, ou ainda carola ou
contemplativo ou ateu, ou ativista político. Sua alienação não lhes permite compreender que sou tudo
isso ao mesmo tempo, e muito mais. Sou humano e apaixonado, eles desumanos, frios e calculistas. Os
bebedores de vinho ignoram-me e ridicularizam, como algo que não lhes diz respeito. Vi-me como um
velho governado por crianças, atormentado por ter minha vida decidida por padres orientadores
vocacionais e diretores de institutos mais ignorantes que eu; muito mais ignorantes que eu. Os
teólogos e historiadores da religião não fazem a mínima ideia da origem da religião e dos conflitos
inerentes ao aparecimento do cristianismo. Não conheço um único autor que identifique direta e
claramente o antigo movimento gnóstico, com seus textos psicografados e sua ideologia evolucionista,
ao movimento espírita moderno. A vida para eles todos é muito simples. Demasiadamente simples.
Atônito, por ter sido educado sob a visão que o culto sacrifical veterotestamentário tipificaria o
sacrifício de Nosso Senhor; atônito, por encontrar estes antigos cultos redivivos no Brasil ... e, ainda,
mais aturdido ante a presença inusitada e totalmente inesperada do exu do Bará do seu Rubinho
naquela sessão de Umbanda, que deveria ser de linha branca, durante o passe com o seu caboclo,
quando apresentou-se o “Homem”, perguntei, aos trinta anos, adotando a postura infantil típica ante
os demônios que comenta Heráclito: “¿O senhor é Deus?”. . . não era, era o Diabo!
É possível para mim entender que os bispos tenham cometido um equívoco nos primórdios da Igreja,
mas não que hoje os teólogos reconheçam e os atuais bispos proclamem a presença de Deus num culto
de macumba. ¿Se tivemos um erro antanho, não teríamos outro hoje? No entanto, em face da
maldade que percebi nas palavras, nas atitudes e no coração daquele homem, Rubinho, o médium em
transe de Bará ou de um exu, naquele terreiro de Umbanda; ante o provalecimento daquela entidade,
necessito discordar do sincretismo católico das religiões antigas, da reforma episcopal na Igreja páleo-
cristã e das posições teológicas e pastorais dos bispos brasileiros de hoje.
Portanto, é todo o Antigo Testamento com o culto mediúnico do demoníaco Javé, juntamente com a
interpretação apostólica equivocada sobre Jesus como um Cristo sofredor e hóstia pascal de um
sacrifício de “troca” exigido para a salvação da humanidade, que se antepõem às verdades, se não
estabelecidas, ao menos buscadas pelo Projeto “Q”. E cabe perguntar, enfim: ¿“salvação” de quê? É da
mediunidade neandertal que a Igreja alerta para a salvação da humanidade? Ou a salvação será a
entrega da humanidade remida dos seus pecados sexuais e outras mesquinharias humanas, em um
futuro incerto, mas glorioso, com nossos corpos incorruptos num ceu paradisíaco diáfano a um Criador
bom e onipotente, que teve como único recurso dar uma morte horrenda a si mesmo na pessoa de seu
filho único muito amado? Sendo, portanto, duas pessoas em uma. Até, três . . .
A Igreja necessita desfazer-se das bobagens inventadas pela teologia. Bobagens só atrapalham. Ante a
magnitude do problema, há que abandonar este seu infantilismo centrado em si mesma para dialogar
com a sociedade como adulta. Um indivíduo sozinho não consegue se libertar, necessita de ajuda.
E reconheça a Igreja que, pelo menos nisto, Marción estava certo: o deus do Antigo Testamento não é
o Deus dos cristãos. O Antigo Testamento judaico deve ser retirado do cânon, por induzir a idolatria
demoníaca através das descrições dos rituais cruentos de Javé. O Deus cristão é El Elyon, o Deus
Altíssimo de Zarathustra, e não o infernal Shaddai. E seu nome moderno é Alláh.
Por acaso, ¿Deus tem filho? Esta expressão não se teria tornado senso comum no Mundo Antigo com
a vulgarização das práticas demonistas, no período helenístico e romano, como mero termo técnico
simbólico religioso sobrevivente da cultura de pais-de-santo e filhos-de-santo (cf. Jz 17.10) da antiga
religião neandertal mediterrânea que produziu os reis divinos, nos períodos arcaicos da história de
diversos povos? Pergunto-o porque estou ameaçado de morte pordoenças provocadas por este “Deus”
num terreiro de macumba. Pior que a morte é o caos em que a mediunidade transformou minha vida,
semelhante à desagregação total de um buraco-negro. Até as paredes se decompõem à minha volta.
Meu corpo e o ambiente à minha volta se decompõem.
A obra O Senhor dos Anéis, de R. R. Tolkein, dá-nos uma ideia aproximada do problema. Alí o poder
desagregador de uma indústria trava uma luta pela conquista do mundo. E, como toda luta do homem,
é política. Se as almas individuais são conquistadas, ainda assim, o objetivo é a tomada dos corpos de
toda a sociedade. É uma luta política da sociedade humana contra esta outra forma de vida parasita de
nossos corpos. Parasitas que, uma vez instalados em seus hospedeiros, propiciam os pecados que
manietam a pessoa numa prisão de prazeres. Como uma droga que tira a vontade da vítima.
Eles lutam com fúria pela hegemonia de seu poder político e esmagam qualquer questionamento.
A insurgência da doutrina ocultista da servidão dos espíritos ao homem deixou-o deveras indignado.
Não é apenas a produção de literatura crítica que esmagam. Uma das minhas mais queridas tias-avós
queixou-se toda a vida da represália que sofreu dos demônios de um macumbeiro que a levou ao
hospital e deixou-lhe sérias sequelas, por uma discussão sobre religião. E a minha própria avó, irmã
dela, sofreu e queixou-se por toda a vida das consequências de um enfrentamento com uma vizinha,
pela compra de uma casa. E minha madrinha de batismo, irmã de ambas, sofreu também as suas
próprias penúrias por enfrentamento com macumbeiros. Mas nenhuma delas abandonou a Igreja, e
morreram cristãs. Tempos antigos. Agora, as novas gerações sucumbem à mediunidade e passam a
frequentar centros espíritas para amenizar suas dores. Os maiores frequentadores de centros espíritas
são os próprios médiuns que lá trabalham, que, frequentemente, passam de assistentes a assistidos.
E, então, a estrutura do demonismo antigo revive nos arquétipos católicos com seus santos, seus
templos e altares e a legitimação do culto neandertal como mera “Lei antiga”, passível de livre opção
existencial no mercado, pelo espírito burguês e pela ciência fenomenológica. O capitalismo fora o
ambiente necessário. Perceber a existência de um plano político dos demônios, não carecia da opinião
de qualquer padre apostólico a nos alertar, bastava a lógica. Mas, agora, fêz-se necessário ser adulto e
falar uma linguagem compreensível. Bobagens atrapalham.
A consequência extrema a que chegou a teologia, com a extrapolação da mitologia para o campo da
imaginação infantil, torna-se visível na contradição manifesta entre os evangélicos. Nessas igrejas, o
crer-se infantilmente nas mais absurdas asneiras tornou-se um atestado de salvação. Nelas ex-
macumbeiros ou ex-espíritas, dando larga expansão às fantasias mais descabidas que as de seu meio
de origem, disseminam efeitos pneumáticos por todo ambiente do país, invadindo, com passaporte
missionário cristão, as reservas indígenas e disseminando a mediunidade também lá, no último reduto
de sanidade do Homō sapĭēns. Macumbeiros invadem as reservas indígenas travestidos de pastores
evangélicos. Trata-se de mais um ardil diabólico: atacar o monoteísmo em sua raíz.
Os homens, todos os povos necessitam conhecer que temos todos em comum o “Inimigo da raça
humana”, apontado pela Bíblia, menos os índios; nossos índios não praticam o demonismo, não têm
de que se salvar. Mas o clero já não sabe mais para que finalidade ele próprio existe, desconhece sua
origem. Encontrou outros afazeres, mais interessantes, mais aprazíveis... e, também, inconfessáveis.
Por isso, há que se manter a farsa e fingir que tudo está como antes. O povo é um rebanho disponível e
a situação é cômoda para quem cuida do redil. Quanto mais tempo a situação persistir, é lucro!
Ainda, o subtexto entrevisto nas palavras do “Homem”, em nosso diálogo durante o tempo em que
realizou o seu “passe” de magia em que me produzia doenças, como castigo à minha insubordinação
consubstanciada em escrever livros, foi algo de muito revelador. Revelador para mim que, somente
após os sucessos se realizarem, pude compreender, ao menos em parte, o que alí antanho sucedera,
naquele momento. Este exu ou o que me parece ser o Bará do seu Rubinho, posto que ele tinha um
Bará de Batuque assentado atrás da porta da terreira de Umbanda; ou, em todo caso “o Homem”,
enquanto me dava o passe e conversava, realizou três atos mágicos com o objetivo de me destruir a
saúde, coisa que não entendi na hora, mas fui entendendo à medida que estes atos mágicos se
consumavam, muitos anos depois. O que sempre me aconteceu a respeito de todos os atos mágicos de
quaisquer demônios com os quais eu tivesse tratado; tudo, suas palavras e seus atos, seus desígnios
sempre se tornavam perfeitamente claros somente após a consumação da “mágica”.
Esta entidade, o Bará do seu Rubinho, dava mostras de uma grande contrariedade e, nesse espírito,
durante a conversa referiu-se em tom abafado à Bíblia como “aquele livro”, com um ressentimento
definível como rancor. Suas queixas pareciam ser bem generalizadas, pois o que condenava em mim
referia como coisas de “vocês”, ou seja, nós os humanos que não fomos escravizados, como “os deles”.
Mas tomou atitudes lesivas contra a minha saúde, contra atos específicos meus. O que lembro bem é a
menção a críticas feitas por mim ao culto dos demônios. Aí, ele mencionou uma Oxum, mas sem
especificar quem, com clareza. Parece ser uma Oxum de um pai-de-santo que conheci em uma boate,
quando ambos dividimos o camarim ao apresentarmos esquetes teatrais, na mesma noite; estabeleci
uma relação intensa com este pai-de-santo em função do interesse por religião e os estudos de
ocultismo; ou aludia à Oxum do irmão deste; ou, contraditoriamente, uma cabocla de Oxum.
Frequentei a casa deste pai-de-santo ator de teatro por algum tempo, num período de uns vinte anos.
Talvez, há quase uns dez anos já o conhecia quando conheci, em sua casa, o seu irmão, também pai-
de-santo e também filho de Oxum; mas este outro praticava regularmente Quimbanda em seu templo.
Eu adquirira o apelido afetivo de “PT”, devido a minha militância política através de críticas sociais
publicadas em livros. O dono da casa não se interessava muito por minhas críticas ao culto aos exus,
embora ocasionalmente me afirmasse que eu estivesse parcialmente errado. Ele possuía uma pomba-
gira assentada e exus de Candomblé. Na sua opinião, o culto a exu oferecia algumas vantagens, mas
seu templo é dedicado exclusivamente ao Batuque. No dia em que conheci seu irmão, este incorporou
uma entidade e houve uma discussão entre os presentes se a entidade seria a sua Oxum ou a sua
pomba-gira, mas ela mostrou-se indignada com minhas críticas e foi até o Pará (onde, contra a parede
de fundo, parece funcionar o gigantesco tablet espiritual, referido pelo bispo João Marques) e realizou
algum ato mágico, definido pelo acólito que a assistia como a “entrega” de minha pessoa ao “Homem”.
O ato dessa entidade motivou a encorporação do dono da casa pela sua própria Oxum que, postando-
se igualmente à ampla porta do Pará, teria realizado o seu próprio ato mágico, como reação. Não sei
se, neste ato, intercedia por mim. Pode ter intercedido por si própria, “por sua casa”, no entendimento
batuqueiro, uma vez que todo ato mágico de maldade acarreta certas consequências, traz axé ruim, daí
a necessidade de evitar “o retorno” kármico como castigo.
Compreendi, bem depois, que o ato desta entidade fora “de maldade”, como se diz, a especialidade
da pomba-gira e do “Homem”. Passados os meses, esqueci-me disso, mas acabei, inexplicávelmente,
sendo levado em uma festa religiosa daquela pomba-gira. Dada a minha obstinação em evitar as linhas
negras, especialmente a Quimbanda, o fato de ter acabado em festa de pomba-gira, e em uma
casadesconhecida, somente se explica como resultado daquilo que o professor Draiton chamou de
cerceamento da liberdade pelo daímwn e que E. R. Dodds aponta na literatura grega por ele
consultada como o pāthos, āte ou “a ação direta de um dæmon que faz da mente e de um corpo
humano seu instrumento”, mas, para ele, “histeria dos tempos de guerra” e “terror supersticioso”
(p.187 ss.). Não posso explicar de outra maneira. Todo macumbeiro entende isto como real.
Fui convencido a ir àquela festa de pomba-gira, em Porto Alegre, para demonstrar boa-vontade em
resolver o que, na opinião do pai-de-santo, resumia-se a um problema pessoal meu com as pomba-
giras específicas do terreiro específico da minha família, em Pelotas, minha diocese natal. O que torna
meus atos realmente incompreensíveis é que minha militância e agitação política tinha, como ainda
tem, por núcleo o antidemonismo. Além de estar sempre disposto a fazer um discurso inflamado
contra a magia negra e montara um espetáculo de teatro com o qual realizara uma tournèe pelo país,
apresentando “A Bruxa” com condenação veemente, em seminários teológicos e, ainda, em bares,
boates, teatros, e como espetáculo de rua, em eventos políticos, para partidos políticos, universidades
ou agremiações quaisquer. Vejo, aí, um ato político dos demônios. E são atos políticos históricos, de
proteção da hegemonia de seu domínio e em persecução ao plano de conquista, entrevisto por Santo
Irineu de Lyon, em um alerta contra estas forças das trevas. Os sacrifícios humanos são, antes de tudo,
ritos da dominação demônica sobre a espécie humana e, somente depois, úteis para causar comoção
em rituais religiosos, como observou Émile Durkheim. Posteriormente, cheguei à conclusão que, bem
pelo contrário, se algum demônio teria sido benéfico para mim, seriam os do terreiro de minha família,
pela presença de meus parentes na roda, uma vez que demônios obedecem somente a uma única
regra, a regra de parentesco. Entretanto, na opinião do povo de terreiro, no Brasil, todo demônio é
bom, tratar com eles dá lucro. Desorientado, deixei-me guiar por estas pessoas. Em muitas, em
excessivas ocasiões, por sentir falta de qualquer outra orientação segura e eficaz.
Esta festa de pomba-gira aconteceu em Porto Alegre, entretanto acabei em uma entrevista com “o
Homem” na terreira de Umbanda do seu Rubinho, em Pelotas, muitos anos depois.
Alegando agir a pedido de uma Oxum, que não identificou, mas identificando somente o lugar de
origem da informação que obtinha: o gigantesco tablet espiritual à nossa frente, que nas terreiras de
Umbanda são os seus congás, ele atacou minha saúde em três pontos. Causou-me uma lesão na
espinha, uma hérnia intestinal, uma hérnia de disco na espinha, uma hérnia hiatal gástrica e um tumor
prostático. Cada um destes atos mágicos merecem a sua descrição e uma interpretação, pois, afinal,
juntamente com outros atos de outros demônios, eles fundamentam a minha teoria demonológica.
Para completar as informações, é mister comunicar que, também, houve intercessão da Oxum de
minha prima, na terreira de minha família, onde girei, a qual teria atuado previamente, por
premonição, ainda em Pelotas muitos anos antes de minha ida para a arquidiocese. Premonição
realizada com muita antecedência a ambos estes fatos, o da pomba-gira, em Porto Alegre, e do
“Homem”, novamente na diocese de Pelotas. Ao comparar as atitudes de demônios de meus parentes
com as de demônios de estranhos, inclusive os demônios de mulheres introduzidas em minha família
por afinidade, percebi que, sendo constituídas as prosopopeias das entidades por complexos afetivos
do médium, os demônios parecem obedecer, de alguma forma, às regras de parentesco. Daí o culto a
demônios familiares.
Mas, apesar de demônios familiares serem benéficos ao seu possuidor e parecer respeitarem o resto
do círculo familiar mais íntimo, em ordem de sucessão, quanto mais longe o grau de parentesco, maior
a exposição aos perigos da instabilidade e do furor de um demônio. A lista de doenças que me rendeu
o contato com o demonismo é bem mais longa e inclui problemas menos graves, como sarnas, herpes e
pedras nos rins, uma gastrite nervosa, algumas cáries, problema de coluna, hérnia intestinal, sem falar
na paranoia, na depressão, angústia e toda a carga de moléstias oportunistas que acometem um corpo
combalido, uma vida combalida. A gastrite nervosa foi, novamente, reativada pelo exu.
O tumor na próstata tem uma história mirabolante. Aparentemente, o “Homem” estava irado por eu
ter urinado sobre um feitiço colocado no portão de minha casa, aos meus cinco anos de idade, coisa
que ele descobriu por conta própria. Mas o real motivo para tudo foi o fato de publicar livros criticando
a religião. Se apresentava objeções à Bíblia, como deixou claro, creio que meus livros entraram na
mesma objeção. Por ele trazer o assunto do feitiço em que urinei aos cinco anos de idade, deduzi que
alí estava a origem da prostatite que me incomodou, pela inflamação, desde vinte e tantos anos, com
dores musculares nas pernas, e que, às vezes, me impediam de andar, devido ao esforço por intensa
atividade de vendedor ambulante, obrigando-me, cada vez mais frequentemente, a tomar, e em doses
sempre crescentes, ampolas de penicilina. Minha família observava com desagrado e tentava me
impedir, mas a necessidade de trabalhar dava a última palavra.
Aos meus cinco anos de idade, encontrou-se um feitiço de Umbanda em nosso portão, pela manhã.
Vizinhos recomendaram urina como simpatia contra o feitiço e, além do urinol, fui levado a urinar em
cruz sobre o feitiço, uma vez que já estava destinado ao clero religioso.
Aos vinte anos, em uma época em que ainda não percebia nenhum sintoma, as pombas-giras do
terreiro de minha família materna realizaram um ato mágico, sendo protagonista a Maria Jandira da
dona Teresa, cujo único resultado por mim percebido foi a diminuição do excessivo tamanho de meus
testículos genitais. Mas algumas pessoas comentaram uma mudança física em minha aparência e
perguntavam o que eu “havia feito” pois declaravam perceber que eu estava mais bonito. Era o “axé”
da pombas-giras. Várias pomba-giras tomaram parte naquele ato mágico, estando presente a Maria
Padilha Rainha da cacique, minha prima. Isto se deu ainda antes do ato premonitório da Oxum, em
Pelotas. Maria Jandira, realizou uma dança junto ao meu corpo, alinhando-nos ao congá dos exus, e
pareceu a observadores afastados algo lasciva, mas, de fato, não o foi. Depois, dirigiu-se até mais
adiante alguns graus da circunferência da “roda da cangira”, lugar de onde Maria Padilha observava o
congá dos exus como se fora a tela de um tablet e após olhar na mesma direção entreteve algum
comentário com a Padilha. Houve um alvoroço entre as outras pomba-giras. Então Maria Jandira
voltou até mim e comentou que “ele” iria descobrir, mas eu iria ficar bem por alguns anos.
Naturalmente, naquele momento, não entendi o que ela me dizia. Todo o feito das pomba-giras
aconteceu no terreiro de minha família e antecedeu em, no mínimo, uns quinze anos o ato do
“Homem”, na terreira do seu Rubinho. Esse “exu” que era o Bará do seu Rubinho comentou, durante o
passe que elas haviam escondido bem algo que ele levou muitos minutos para achar, sondando
telepaticamente enquanto dava voltas em torno do meu corpo, durante o passe. Descobri do que se
tratava somente quando a doença estourou. Quanto à minha passividade, gostaria de poder expôr um
excurso sobre a teoria reichiana da psicologia de massas do fascismo, que refere ao reporte perante a
autoridade patriarcal, produzido em nível profundo do subconsciente. Heráclito parece referir-se ao
mesmo fato, sobre a atitude humana perante demônios, em mais de um de seus fragmentos.
Neste passe o exu atacou a minha saúde em três pontos, como disse. Mas realizou outras “más”
providências, também. A rigor, num passe, os espíritos, ou os médiuns, são proibidos de pôr a mão no
corpo do paciente. O exu pediu licença, dizendo que necessitava colocar a mão no meu corpo e que
pedia licença “para o meu anjo-da-guarda”, porque era necessário. Ele rondava em voltas, em torno de
mim, e, num determinado momento, enquanto parava atrás de mim ele segurou-me pelo ombro e
massageou minha espinha em uma vértebra mediana, friccionando como se fora uma massagem
terapêutica, e comentando que no futuro eu perceberia algo. Alguns anos depois, caí, durante o
banho, machucando a espinha no mesmo local massageado. Num outro momento, postando-se ao
meu lado, com o braço esquerdo novamente me sustentando pelos ombros, com a mão direita enfiou
o dedo médio em uma região de minha virilha e pressionou com bastante força por, talvez, meio
minuto. Como a ideologia subjazente ao passe é a terapia, pensei que fosse Do-in.
Endossava esta ideia um interrogatório sobre minhas doenças desde a infância; respondi como se
responde a um médico. Ele sondou meus pontos fracos e, posteriormente, fui atacado no estômago.
Também usou a sua mão para exercer fote pressão sobre meu estômago.
Somente após iniciar o tratamento caseiro para câncer com sulfur, à base de óleo de linhaça, pude
perceber a fragilidade no estômago. O ato de providência previdente (premonitório) da Oxum, ao
conceder-me o tratamento médico caseiro, foi superado pela ação do Bará. Este fato indicia que o foco
do problema que a Oxum superou era causado por minha exposição a feitiço aos cinco anos de idade.
Também muitos anos mais tarde, um médico em uma consulta mostrou que os músculos da minha
virilha estavam separados, alí naquela mesma região pressionada, apresentando um furo com as
dimensões exatas de um dedo grosso. O exu do Bará falava constantemente, durante o passe, e dizia
muitas coisas. Lembro-me de uma frase em que comentou sobre a pomba-gira da esposa de seu
cavalo: o exu lamentava a ausência da pomba-gira, devido à ausência da médium, porque “ela iria
gostar” se estivesse ali junto a ele, dando o passe em mim; quer dizer, me surrando. As surras dadas
pelas entidades em seus cavalos são o fenômeno mais notório da Umbanda. Especialmente as físicas.
Observei para ele a situação irregular criada pelas pomba-giras, entre os homens de minha família.
Quanto à minha próstata, que foi o objeto central de sua atenção, fui sentindo crescerem sintomas,
sem que os médicos diagnosticassem a moléstia, por muitos anos. Ainda sem que qualquer médico
obtivessem bases seguras para qualquer diagnóstico, comecei a urinar com uma coloração escura
extremamente forte após um encontro com um outro macumbeiro bastante famoso na cidade de São
Leopoldo, muitos anos depois, quando lá estudava teologia na escola luterana (EST, da IECLB), como
aluno do Instituto Missionário da Sociedade do Evangelho, do pe. Orestes Stragliotto. Tratava-se de um
bruxo famoso em São Leopoldo, talvez não fosse pai-de-santo e trabalhasse somente com a linha de
exu da Quimbanda. Este bruxo comprou alguns livros meus em um teatro, onde critico as igrejas cristãs
e a situação política brasileira, expressando sua indignação e fazendo ameaças vagas por uma menção
à macumba. Algum tempo depois, quando já urinava com a coloração escura muito forte, comentei o
fato com um padre que informou-me ser aquele bruxo uma pessoa bastante conhecida do clero local.
A coloração ferruginosa e opaca de minha urina foi aumentando gradualmente, por muito tempo,
antes de qualquer prognóstico ser divisado por algum médico. Entretanto, quando após diagnosticado
o tumor de próstata e eu ter descoberto que o enxofre mata o câncer, com o tratamento continuado
com enxofre, minha urina volta à coloração normal. Aquele bruxo, com seu feitiço, provocou uma
espécie de catalização no processo intumecente. Aparentemente, o “exu” do seu Rubinho cumpriu,
apenas, as funções esperadas de um Bará, criou as condições necessárias, como sugere o rito próprio.
Uma outra coisa que o exu, ou Bará do seu Rubinho, falou em tom de advertência, uma ameaça
ambígua, durante o passe, foi que eu iria conhecer “alguém”, no futuro, numa referência a um ser
espiritual, a um egun. Quando sucedeu este encontro, posteriormente, minha próstata já estava
visivelmente inflamada e já encontrava-me sob tratamento com enxofre. O egun foi como um novo
catalizador em todo processo patológico. Mas o foi de uma forma abrupta, como costuma ser a ação
dos eguns no Batuque. Aquele exu deveia ser, portanto, o próprio Bará do Batuque atuando dentro de
um terreiro de Umbanda, durante uma sessão de caboclos. Vê-se daí que não há critério algum para
separar as linhas ou as modalidades de espiritismo, revelando-se este estratagema um ardil ideológico
da dominação dos espíritos, dominação política sobre nossa sociedade. Nenhum domínio sobre
qualquer pessoa está fora da estratégia para o domínio sobre a sociedade humana inteira. Pois, pelas
contradições em seus discursos, pode-se ver que estas entidades ocultam uma estratégia.
Que não haja uma tal separação entre as linhas espíritas evidencia-se no fato de muitos fenômenos
acontecerem entrelaçados, como um amálgama de atos de fala e ritos mágicos realizados por diversas
entidades de linhas diferentes, em momentos e circunstâncias históricas separadas, muitas vezes
comunicando-se “telepaticamente” pelo tablet espiritual, e tudo resultar num processo sincronístico
organizado com uma coerência sincrônica. A “coerência” poderá ser, apenas, projeção fenomenológica
estruturada pela mitologia ideológica. O recurso por eles utilizado poderia ser a simples aglutinação de
fatos em uma sequência e a coerência seria, então, o ponto de vista da vítima, a leitura existencial
dentro do tempo; se os atos mágicos forem realizados fora do tempo da história.
Enfim, fui severamente punido por publicar minha crítica à macumba, num ato de retaliação política.
A sequência de minha tragédia editorial, suprimindo detalhes, pode ser apresentada como segue: 1)
uma entidade de Quimbanda, uma pomba-gira, utilizou-se de 2) um pará (quarto-de-santo) de Batuque
para solicitar a intervenção do Bará, e 3) o Bará apresentou-se em uma sessão de Umbanda.
Sendo assim, a advertência de Xenócrates quanto à contradição do senso-comum do Mundo Antigo,
que demônios não seriam bons ou maus (mas, apenas, neutros, como se diz dos exus, hoje, atribuindo
culpabilidade aos clientes que encomendam os trabalhos), mas, ao contrário, essencialmente maus,
parece ter total procedência, uma vez que a pomba-gira agiu por moto próprio.
Mostrou-se neutro o assentamento de santo, o cutá da Oxum assentada naquele pará. Percebi que
um qeo,j atende qualquer pedido, indiscriminadamente. Na verdade, me parece, o santo satisfaz
profundos desejos, mesmo que não lhe sejam expressos verbalmente. Por outro lado, os demônios
necessitam que suas vítimas pronunciem, num “ato de fala”, como se fossem fórmulas mágicas, não os
desejos, mas simples ideias. O trato com o demônio se funda em um diálogo, que ele manipula,
enquanto com o qeo,j dá-se a clássica berith, com uma súplica em monólogo, uma prece.
Talvez, por isso, certos centros de Umbanda proíbem toda conversa com o espírito durante os passes.
Por outro lado, esta proibição pode ser uma tática de dissimulação. Quem procura os caboclos de
Umbanda o faz com um problema e questões muito práticos, materiais, diria; porém, de minha parte,
tentei por diversas vezes conversar sobre realidades espirituais ou, simplesmente, questionar pontos
da doutrina ou fatos, atos mágicos realizados. Uma coisa tornou-se patente, nos passes em que se
pode conversar com alguma entidade, em geral caboclos, se ela própria não corta a conversa, alegando
algum motivo geralmente inconsistente, formulará um discurso retórico tão cheio de contradições que,
para um observador um pouco mais atento à falta de franqueza e objetividade no diálogo da entidade
arriada, começará a insinuar-se a suspeita de tais espíritos estarem ocultando “algo” na conversa; às
vezes com as clássicas saídas que “aos humanos não seja possível compreender” ou que seja “karma”...
Calando assim, demonstram ser mais espertos que os espíritos que responderam às perguntas de Allan
Kardec, e deixaram suas contradições e erros crassos por escrito. Fica-nos, ao fim de uma tentativa de
conversa séria durante um passe, a sensação que negam-se obstinadamente a revelar as intenções que
existam por detrás dos feitos assombrosos e de magnificente poder sobrenatural que realizam, quando
querem. Seus atos miraculosos são realizados em função de um critério deles mesmos e não das
necessidades humanas. Nenhuma eficácia há nos ritos, pois tudo depende exclusivamente do numĭnis.
Como fato social total, temos um fato político. ¿ O quê se ocultará por detrás desta relação religiosa
estabelecida nos terreiros e centros espíritas? Calam para não revelarem suas intenções estratégicas.
No entanto, os exus são mais descarados. Ao nos fiarmos nas palavras de Mircea Eliade, talvez só
concluamos que os caboclos ocultam o poder dos exus. A ideologia que reveste a sessão de Umbanda é
a de serem os caboclos xamãs indígenas; mas os pontos cantam que “na terreira, o exu é o rei”...
Especialmente descarado na frágua de sua ira, o Bará do seu Rubinho foi totalmente explícito e claro,
não apenas em suas palavras, mas, principalmente, com seus atos. Como revelou-se-nos na psicologia
moderna: somos honestos somente na hora da raiva. Em tempos normais, evitamos os atritos. Ao
mostrar-se provalecido, sua arrogância arrancou-lhe a máscara e revelou algumas posições claramente.
Da mesma forma que narra o Evangelho do Amado, os fatos somente se tornam compreensíveis após
consumados. Estão me matando lentamente de uma forma horrível. Pela conversa com o Bará, pelo
tom de voz, pelos temas trazidos à conversa por ele, creio que houve mais do que retaliação pelas
críticas que publiquei, conforme alegou a pomba-gira. A irresignação do exu, aparentemente, deu-se
por minha insubordinação ao não aceitar o papel de sacerdote-médium espírita que se me exigia.
Busquei na macumba uma solução para minha vida amorosa. Não parece que possam conceder o dom
do amor. Pais-de-santo têm amigos e esposas, mas não são pessoas que os amem, são pessoas a quem
o “santo” os faz amarem, mas que podem ter o seu amor transformado em ódio à qualquer momento,
por represália do mesmo “santo”. A vida do médium está subordinada à vontade de seu guia em uma
relação DO UT DES. E, no entanto, o verdadeiro amor é uma graça. Eu era jovem e inexperiente demais
para entender. Infelizmente a sabedoria alcançada por experiência própria é inútil para quem a detém.
De qualquer forma, minha saúde se foi agravando até irromper a crise. Creio que à medida que fui
tomando passes, os demônios iam fazendo progredir a doença de forma imperceptivel para mim. Por
talvez duas ocasiões, em terreiros diferentes, com médiuns, isto é, com espíritos diferentes, ouvi um
comentário que estava “quase pronto”. Após passado algum tempo e considerando todos os fatos
reflexivamente, pensei que se estivessem referindo ao cancro, mas devido à ambiguidade vaticinal não
pude saber se ensejavam a cura ou a catástrofe. Talvez usem a doença para me arrastar de volta ao
terreiro, uma vez que uma Maria Padilha já afirmou verbalmente que somente minha presença no
terreiro poderia consumar o processo de cura. Mas, em diversas ocasiões pude constatar que as
pomba-giras mentem; no caso da argumentação da pomba-gira que queixou-se de meus livros fica
mais evidente. Suas argumentações são pragmáticas em função de seus desejos pessoais e, no caso da
represália por meus escritos, entrou uma terceira pessoa: o “Homem”; revelando o interesse político
de todo o grupo dos demônios. O Diabo é o Pai da Mentira. O exame revela que a Doutrina Kardecista
é falsa. Trata-se de uma ideologia política, no pleno sentido marxista. Então, ¿o que ela mascara?
Para encobrir sua verdadeira natureza, proclama que não existem seres sobrenaturais: “não há
criações múltiplas, nem diferentes categorias entre os seres inteligentes” (cf. Allan KARDEC, A Gênese, os milagres
e as predições segundo o espiritismo, I, 30) e os demônios seriam, apenas, almas ou “espíritos” de homens: “uma
só espécie de seres inteligentes” (cf. ibidem, O Ceu e o Inferno, ou a justiça divina segundo o espiritismo. Rio de Janeiro:FEB, s/d.,
1, IX, § 23). Quase os mesmos termos de Fílon, o Judeu. Mas a quem conhece os demônios parecem tratar-
se de uma outra forma de vida alienígena. Lembra-nos Taciano, o Sírio, ao falar de sua relativa
imortalidade: “assim como os salteadores, por sua desumanidade, costumam audaciosamente
dominar os seus semelhantes, também os demônios, depois de fazer as vossas almas abandonadas se
desviarem no lodaçal da maldade, as enganaram por meio de ignorâncias e fantasias. É fato que eles
não morrem facilmente, pois não têm carne; mas, vivendo, praticam ações de morte, e também eles
morrem tantas vezes quantas ensinam a pecar aqueles que os seguem. . . . nos demônios o pecado se
prolonga muito mais, em razão do tempo indefinido de sua vida” (Op. cit. § 14). Plutarco discute a duração
da vida dos demônios em Do Eclipse dos Oráculos (De Defectu Oraculorum, 413-416).
A presença da pomba-gira Maria Padilha está registrado em inquéritos, no Brasil, desde a primeira
visitação do Santo Ofício. Segundo a Doutrina Espírita ela deveria reencarnar-se e viver outras vidas, ao
longo dos séculos. ¿Por que, então, a persistência de uma única personalidade? E que personalidade!
Laura de Mello e Souza, em um trabalho bem tendencioso, O Diabo e a Terra de Santa Cruz (São Paulo : Cia
das Letras), apresenta notáveis descrições da atuação da Maria Padilha, retiradas de interrogatórios da

Inquisição Portuguesa em suas visitações ao Brasil colonial, no início da Idade Moderna.


¿De onde o extraordinário poder maravilhoso que usam para nos açular? E de onde os seus berliques?
Agora, apresentam-se como almas de seres humanos, a conclamar compaixão ou solidariedade, para
encobrir sua insidiosa malignidade. ¿Mas desde quando almas humanas, para ocupar corpos humanos,
necessitam beber o sangue de criancinhas e viver sob as densas trevas da noite?
A codificação espírita foi organizada no apogeu do império autoritário de Napoleão III, que governou
para a burguesia. Como uma reação adjutória ao agnosticismo de Berkeley, Hume e Kant, a doutrina
kardecista não se apresenta com outro conteúdo além do platonismo tardio; pior, anterior à distinção
feita por Xenócrates, o segundo sucessor de Platão na direção da Academia: que os demônios são
essencialmente malignos. Qualquer pai-de-santo brasileiro reconhece a neutralidade dos exus como
artifício ideológico.
Tudo o que eu quisera era que os “espíritos” provassem que existem seres benígnos entre eles, e não
só os malvados, e que o Bem está no controle, mas os achaques que sofro revelam o embuste. Os
espíritas mostram-se fúteis no tratamento das questões sociais e políticas, e todos os indícios culturais
me levam a crer que o Mal governa o mundo.
Demônios são vampiros! Para mim, algo se esconde por detrás da quietude . . . Ninguém, nem mesmo
o próprio médium, sabe o que encorpora nele. Como vemos desde os relatos do mundo antigo, o
objetivo dos demônios é beber sangue quente e entregar-se a orgias de sexo e morte. E, para isso, se
esforçam de mil modos.
Aparentemente, as almas são mais poderosas que os demônios ou as divindades, mas não têm
botado as garras para fora. Na verdade, no Brasil, tornaram-se públicos os mistérios sem divulgar a sua
fundamentação, e, com a divulgação maciça dos passes, toda a população acabará, gradativamente,
entrando onde ninguém sabe o que é, sem saberem com o quê ou com quem estão lidando.
No Brasil, a problematização do demonismo agiganta-se ao contemplarmos-no tendo o cenário da
política brasileira como fundo. Para efeito de demonstração, é útil compararmos com o fenômeno
petista. O Partido dos Trabalhadores (PT) surgiu em um momento de aflouxamento da sociedade civil
por parte do imperialismo americano, quando as ditaduras militares foram debeladas da América
Latina sob orientação da Comissão Trilateral para “manter a miséria em níveis suportáveis”, ante uma
perspectiva de recrudescimento das forças revolucionárias dos povos oprimidos. Assim, o PT surgiu
apresentando-se como um partido alinhado à IV Internacional Comunista, um partido de massas, de
linha trotskysta, sugerindo a ideia de inovação política perante os antigos partidos comunistas de
vanguarda. Após conquistar proeminência no cenário político brasileiro, tendo obtido significativa
representatividade em muitos parlamentos nacionais e instâncias do poder executivo, um grupelho de
pequenos-burgueses expulsou as facções proletárias e continuou em ascenção rumo ao poder máximo
do país, abandonando, então, o nome de comunistas e adotando o de “socialistas”. Naturalmente, já
não havia aí uma conotação trotskysta de socialismo enquanto transição para o comunismo, mas mera
acepção bobbiana de socialismo burguês. A ambiguidade do termo foi oportuna, por algum tempo.
Lançando mão, ainda, das palavras de Bertrand Russel, podemos concluir que, livres dos homens
honrados, os políticos práticos puderam reiniciar as suas disputas.
Também os demônios, hoje, no Brasil, apresentam-se à sociedade como “espíritos”, e divulgam a
ideia que demônios não existem. Logo após começarem suas comunicações através de estalidos,
conseguiram domesticar seres humanos para utilizar-se de seus corpos como mediuns e estabelecer
comunicação de fato, através da palavra falada e escrita. ¿Porque, então, não falar com uma objetiva
linguagem científica, uma vez que o corifeu de toda a encenação fora eminente figura da sociedade
científica burguesa francesa da época? Quem deseja se comunicar aprende a língua de destino e não o
faz utilizando-se de neologismos desconhecidos para isso, pois uma linguagem já consagrada, com um
referencial linguístico já conhecido, evita os mal entendidos.
A ciência burguesa despontara no século XVIII. O conceito de cientista divulgou-se no século XIX e não
apresentava, ainda, os contornos definidos de rigorosidade do que entendemos hoje como cientista.
Os espíritos deram preferência a se comunicar com um cientista para apresentar a sua doutrina como
científica. Deveriam portanto utilizar-se dos termos consagrados pela ciência. ¿O quê escondem?
Médiuns kardecistas, a brincar com almas de outro mundo não têm a mínima noção das forças em
que mexem e a que expôem os outros. Somente médiuns afro-brasileiros, que as entendem como
divindades ou demônios, fazem uma pálida ideia dos perigos que trazem a este mundo terreno. Desde
as religiões antigas, o culto a demônios que atravessou a Europa e veio ao Brasil, através de um
discurso claro, rituais bem demarcados e imagens inconfundíveis, se propunha a lidar com o Mal. Mas,
agora, o Mal e demônios são tidos por ideias ridículas de cristãos. Não mais se sabe o que é demônio.
Para combater e evitar o Mal é necessário reconhecê-lo. Agora, a ideologia ditada pelos “espíritos”
mascara a sua existência. A categoria “demônio” não designa a mesma coisa que “alma morta” da
atual doutrina espírita kardecista. Os demônios são detentores de poderes parapsicológicos superiores
ao de qualquer paranormal, mas também apresentam uma perigosa instabilidade psíquica incomum,
incompatível com a estruturação de uma pessoa comum. O vocábulo demônio é um termo técnico.
Esconder isto é mistificar e ideologizar, mascarando a realidade. ¿ Por quê esconder a realidade?
¿Quê efeitos se produzem e que consequências se tiram com essa confusão? E ¿quem a realiza? Quais
vantagens obtém com tais mistificações? Seriam os próprios demônios a se apresentar como meros
defuntos ou seria mera interpretação equivocada dos fenômenos produzida tão somente por Kardec?
Demônios são demônios! Bons ou maus os homens sempre os cultuaram, até o advento do
cristianismo. Como o expõe Plutarco: “entre deuses e homens existem certas naturezas suscetíveis à
emoções humanas e perturbações involuntárias, a quem é certo que nós, como nossos pais antes de
nós, veneremos como semideuses e, chamando-os por este nome, os reverenciemos” (Defecto Oraculorum,
*
416C, na tradução ao inglês da Plutarc’s Moralia by Frank Cole Babbit [Harvard University Press, 1949] , cuja magnífica tradução
peca somente ao não conhecer a existência dos demônios, vertendo “semideuses”). Plutarco está discutindo
aqui a duração da vida dos demônios, cultuados conforme costume ancestral (kata. no,mon pate,rwn).
Quando expomos os princípios de alguma ciência é imprescindível o uso dos termos corretos. O
movimento espírita moderno divulga sua ideologia na sociedade burguesa como uma locomotiva
avançando sobre trilhos de aço. O kardecismo é a ideologia que lhe coube, mas não esconde que há
*
evn meqori,w| qew/n kai. avnqrw,pwn decómenai pa,qh qnhta. kai. metabola.j avnagkai,aj( ou]j daímonaj ovrqw/j e;cei kata. no,mon pate,rwn h`goume,noj kai. ovnoma,zontaj se,bestai)
um objetivo: ¿Por que é tão importante para eles o infralapsarismo? A resposta está em sua práxis: a
maciça ministração de passes visa somente desenvolver a mediunidade das massas para criar um
ambiente noosférico propício às manifestações espirituais, ou melhor, mágicas.
Encontramos na Revista Espírita as explicações sobre por quê foi evitado o nome dos demônios: “Não
adotamos este termo por dois motivos: primeiro porque implica a crença em seres criados para o mal e
a ele votados perpetuamente ... “... não usamos o vocábulo demônio na acepção de Espírito imperfeito
. . . : é apenas por causa da especialidade e da perpetuidade que estão ligados a este vocábulo” (REVISTA
ESPÍRITA, outubro de 1858, ano I, vol. 10, p. 278; g.o.). Mais tarde são mais elaboradamente explicadas as razões e
elencado um terceiro motivo: a criação de conceitos e termos técnicos peculiares, próprios do
Espiritismo, particularmente a noção de perispírito. O perispírito somente pode ser entendido sob o
ponto de vista materialista, utilizando-se conceitos da Psicologia Analítica, ou como qualquer estrutura
de dominância arquetípica psíquica ou como uma estrutura arquetípica sobrepujadora do Si-Mesmo.
Mas é interessante observar as explicações expostas para outros motivos: “Então por que se serviu o
Espiritismo do vocábulo Espírito? É um erro? Não: ao contrário. Primeiro porque, desde as primeiras
manifestações, o vocábulo era usado, antes da criação da filosofia espírita; desde que se tratava de
deduzir as consequências morais dessas manifestações, era útil conservar uma denominação usual, a
fim de mostrar conexão dessas duas partes da ciência. Além disso, era evidente que a prevenção ligada
a esse vocábulo, circunscrita a uma categoria especial de pessoas, deveria apagar-se com o tempo. O
inconveniente era apenas momentâneo. “Em segundo lugar, se o vocábulo Espírito fosse repulsivo para
algumas pessoas, era um atrativo para as massas e deveria contribuir mais que outro para popularizar
a doutrina. Assim, pois, era preciso preferir o maior número ao menor.” (REVISTA ESPÍRITA, maio de 1864, ano VII, vol.
5, p. 138; g. nosso). A prevenção contra a expressão espírito, em detrimento do conceito de alma, era restrita

a uma pequena classe de pessoas, e passageira, diz-nos a Revista Espírita, e, mesmo sendo uma ideia
repulsiva para esse seleto grupo não claramente identificado, o termo se ajustava às expectativas das
massas. O objetivo era, pois, um movimento de massas. Foi realizado, portanto, um golpe de
marketing para jogar um produto no mercado simbólico da sociedade moderna: a aparência, apenas,
de cientificidade. Por isso, certas revistas espíritas da época fizessem questão de apresentar pretensos
reclames científicos, p. ex., como “órgão evolucionista” (Cf. O Reformador), a elite preterida parece ter sido,
consequentemente, a intelectualha burguesa da academia universitária, com seus jargões científicos,
em proveito de um discurso popular de largo alcance com vistas ao proselitismo, aparentemente
contradizendo as propaladas pretenções de cientificidade da Doutrina Espírita. Pareceria que com a
noção de Espírito, constituído por uma alma e um perispírito, os interlocutores de Allan Kardec
quisessem referir a utilização da alma do médium na epifania dos “espíritos”, isto é, de espíritos
alienígenas ao espírito do médium.
Enfim, já os padres ensinam que demônios não existem, na Faculdade de Teologia da PUC-RS.
Mas os demônios existem, não são meros conceitos. Eles são parasitas psíquicos do homem, não
sendo, portanto, unidades transcendentais puras, como se originados em uma realidade anterior à
divisão do sujeito em ego e mundo, ou por ação desta mesma divisão. No mundo das representações
psíquicas, seu nicho ecológico é o campo da estética e sua presa natural os artistas, mas, em especial,
aqueles tipos psicológicos que sofrem dominação arquetípica pela sombra materna. Cabe à ciência
explicar em detalhes a natureza de sua paraexistência sobrenatural e como exercem seu domínio sobre
o aparelho nervoso e a mente humanos, e como possuem influência sobre todo o mundo físico.
Diz-se que o Diabo é perigoso por ser vetusto, e não por ser malvado. De forma semelhante, dever-se-
á dizer que os demônios são perigosos por apresentarem uma constituição psíquica instável, e não por
suas maldades decorrentes de suas explosões de fúria; pela fúria em si mesma. Aparentemente, o
único controle que sujeita os “controles” seria a estrutura de parentesco. Estado mínimo com a família
mínima apresenta-se como o produto do “evolucionismo” espírita. Aliás, o Espiritismo mostrou-se em
suas origens etnocêntrico, o que quer dizer eurocêntrico. As relações de poder no modelo mágico são
hierárquicas, como vimos em nosso quadro comparativo dos sistemas totemista e religioso.
Parece bastante importante a universalização da religião, para por um fim às relações de parentesco,
embaraçosas para eles, que lhes constrange a liberdade. A família, que foi rompida pelo aparecimento
do estado, é uma frágil defesa contra os demônios que intentam o seu fim. Demônios irresistivelmente
obedecem à estrutura de parentesco, mas eles não querem obedecer a nada e intentam debelar
qualquer relação humana, atomizando os homens e atrelando-os ao estado, diabólica criação deles.
Este é o Projeto da Serpente, contrário ao Projeto do Jardim e, por isso, insurgem-se contra qualquer
doutrina que ensine a servidão dos demônios ao homem. Os demônios almejam o poder absoluto.
Sob a Cristandade, até o século XV, os demônios apresentaram-se como escravos a serviço do homem.
É ponto entre os historiadores da feitiçaria ou da religião ocidental que, a partir do século XV, os
demônios passam de servidores a amo. Sopram, hoje, os ventos liberais da modernidade. A expansão
comercial do capitalismo necessitou criar o conjunto de estruturas que caracterizaram o surgimento do
Estado moderno. As mazelas das massas marginalizadas do povo foram providenciais para a criação
das novas estruturas de repressão, perseguição e controle que irão servir ao Estado e ao capitalismo
modernos contra os trabalhadores. Aquilo que começara com a fundação do direito canonista e o
desenvolvimento da escrituração de partida dobrada, transformando todos os mosteiros em bancos,
por toda a Europa, consolidou-se com a criação do Tribunal da Santa Inquisição Pontifícia, em Roma.
Então, após o advento da imprensa, acabaria na doutrina do plenipotenciário autoritarismo de estado,
propalado depois da intrépida incursão guerrilheira árabe contra as torres gêmeas, em New York.
Quando surgiu o absolutarismo jurídico, com o qual a Revolução Industrial constituiu a cadeia como
provedora de operários para as fábricas (cf. Michel FOUCAULT, Histoire des systèmes de pensée, in Annuaire du Collège
de France, 73° annèe.), as práticas mágicas mereceram complacência e eram tratadas com brandura pelos
tribunais inquisitoriais, porque seu objeto último de atenção era a repressão aos excluídos sociais.
Desde que nasceu, o estado moderno não demonstrou interesse nos problemas da sociedade civil,
mas exclusivamente no estabelecimento de seu próprio poder sobre ela. Entretanto, no culto moderno
aos demônios trata-se, enfim, de relações entre duas comunidades, não de meras relações pessoais,
como as via a Idade Média com suas representações ingênuas sobre o demonismo familiar. De uma
forma mais drástica que nas vilas medievais, nas megalópoles burguesas comunidades humanas
estabelecem relações com comunidades de demônios; aí, relações pessoais diretas são transpassadas
por relações transversais. Os piores demônios são os demônios dos estranhos; o inferno são os outros.
Embora a expressão seja eufêmica, são “anjos rebeldes” a reivindicar sua própria liberdade, e, por
isso, nos invejam, porque possuímos liberdade; o conceito de “anjo” é mera ideologização.
Na verdade, estas criaturas não sabem o que são. Existe uma etnografia, apresentada no Tratado de
Antropologia das Religiões, organizado por Julien Ries, cuja referência se me perdeu, que descreve o
aparecimento de um demônio em algum lugar das selvas africanas, em uma região sobre cuja aldeia
estendia-se uma rota aérea de um vôo. Em sua epifania, o demônio, uma vez de posse do médium,
apresentou-se como “o espírito do pássaro de ferro”, referindo-se ao avião que regularmente
atravessava os ceus. Esta é uma amostra de expontaneidade. Mas em um terreiro tradicional e bem
estruturado dentro de uma cultura civilizada, como a tradição malê, por exemplo, é inevitável que se
lhes sugiram serem tais ou tais entidades, no momento de suas feituras. Quero dizer, quando do
assentamento de um fetiche, surge uma prosopopeia que forma-se (segundo a minha teoria,
utilizando-se de complexos afetivos do médium) como se fora o nascimento de uma criança. A mãe-de-
santo é a “mãe” do santo, que irá lhe dar o nascimento e ensinar o básico da educação necessária. Se
alguma criatura nascesse com a mente tal uma tabŭla råså a ser preenchida, esta seria por excelência a
prosopopeia mediúnica, cuja formação é velocíssima, em virtude de seus poderes de telecinese.
Constitui, portanto, uma verdade fatual que a prosopopeia demoníaca apresenta traços da cultura
onde nasce, porque o medium projeta parte de si na constituição de uma nova personalidade. Assim,
como uma criança verdadeira nasce com uma história pessoal de sua relação uterina com sua mãe, o
demônio deve nascer com sua carga pessoal de desejos, com suas vontades e querer.
É natural, então, que surjam conflitos entre os demônios e as pessoas, suas comunidades e as nossas.
Não existe “exu de luz”, este conceito é uma crendice popular baseada em aparência ilusória
projetada com afetividade por quem tem um trato com algum exu. Não existe um caráter sólido em
uma personalidade tão instável psiquicamente, como este tipo de demônio. O exu é, por definição,
conforme a etimologia já vista por nós, um espírito das trevas. Exu de luz é uma total e absoluta
contradição, em seus próprios termos. Os exus classificam-se entre os demônios infernais.
O fenômeno do PÂNICO (deisidaimoni,aj : superstitĭō) é recorrente nesses ambientes, como o mostra
Plutarco de Queroneia desde o século II. E esse é o fqo,noj demoníaco. Querem libertar-se e insurgem-
se contra a condição de servidão ao homem, sendo oportuna para isso uma religião universalista, que
permite atomizar os seres humanos, acabando com as relações de parentesco e os vínculos familiares.
Os demônios estão dispostos a esmagar, pelo caminho, qualquer um que represente algum obstáculo.
Mesmo que o eminente burguês, professor Denizard Hippolyte Léon Rivail (Allan Kardec), pensasse
honestamente realizar uma obra científica séria, baseou-se em muitos postulados incomprováveis ou
incomprovados até agora. A doutrina kardecista não passou de uma enorme codificação do moralismo
burguês. Chantagem moral! Foi a isso que os espíritos submeteram o professor Rivail, por anos a fio. O
professor Rivail foi um ilustre filho da judicatura da França reacionária, sob Napoleão III, e todo
burguês abastado, mas de boa índole, costuma ser um profundo poço de remorsos e inconformação,
em virtude de sua classe social opressora da miséria.
A teoria agostiniana que postula ter Deus criado conjuntamente o corpŭs mistĭcum dos seres
inteligentes, os homens e os espíritos, sendo “anjo” uma momentânea designação de encargo, é a que
exige menos hipóteses, sendo portanto, a verdadeiramente científica. Para sermos verdadeiramente
científicos devemos aplicar o princípio da economia, não multiplicar elementos sem necessidade. A
verdadeira ciência é crítica e deve investigar conceitos em seu contexto e em suas relações. A
metafísica deve ser, por princípio, deixada de lado, num método de observação empírica, como Kardec
se propunha. Não se pode provar racionalmente que Deus é a primeira causa de todas as coisas. A
Doutrina Espírita constitui-se, com uma pretensão pragmática de ser um aparelho ideológico, em uma
série de dogmas realistas que não resistem à “navalha de Ockham”. Repudiando a posição realista,
grande parte dos postulados da Doutrina Espírita devem ser considerados artigos de fé e mais nada.
Estes artigos da fé kardecista têm seu único apoio em declarações de espíritos. Partindo de
manifestações fenomênicas, as conclusões moralistas de Allan Kardec ressentem-se por descurar a
crítica negativa da metafísica depurada por Kant, que não nos permite nunca atrevermo-nos a
“ultrapassar com a razão especulativa os limites da experiência” (Immanuel KANT, Prefácio da Segunda Edição da
Crítica da razão Pura, B XXIV). Portanto, o movimento espírita, em seu ufanismo fundamentalista, revela-se
orientado por um esprit de corps.
Em nosso Tratado de Demonologia tentamos demonstrar os indícios que nos levam a crer que os
espíritos, os dæmones, foram criados conjuntamente com o homem; surgindo em nossos cérebros um
habitat para os demônios pelo processo de hominização, com o desenvolvimento da psiquê humana,
possivelmente, ainda, no estágio do Homo erectūs. Porém, a comunicação com espíritos somente foi
novidade para a sociedade burguesa europeia, devido à recente devassa inquisitorial. Contudo, não
basta à Doutrina Espírita provar que exista reencarnação nos termos por ela pretendido, terá, ainda,
que demonstrar não existirem demônios, de fato, e que todos os espíritos são meras almas humanas.
Embora os demônios possam dizer a verdade como, também, predizer o futuro, desde que lhes haja
um interesse prático para isso, eles mentem e fazem da magia uma farsa em si mesma. Podem utilizar-
se dos fenômenos sincronísticos para cruzar tempos e espaços e posicionar dois corpos humanos
simultaneamente e, também, podem manipular o aparelho endócrino das pessoas e simular emoções,
mas não podem dar o sentido existencial que somente o verdadeiro amor realiza. Pessoas mal
intencionadas podem se aproveitar de tais situações, mas, em geral, as pessoas que tratam com
demônios estão desinformadas e crêem serem “deuses” ou espíritos “superiores” sujeitando-se a tudo
com sentimentos de gratidão, circunscritos dentro de uma cosmovisão limitada. Mas as pessoas bem
intencionadas e que acreditam ser o demonismo uma forma de religião, e não mera magia, acabam
perplexas. É comum ouvir as pessoas comentarem que “exu gosta mesmo é de fazer maldade”, ou
“exus são para fazer maldade”. A sabedoria popular cunhou um ditado, no Brasil, que diz: “Gasta-se
um pacote de velas para conseguir um bem, mas basta meia vela para fazer um mal”! Em geral, a
memória seletiva encobre isso.
O descobrir a cura do câncer com enxofre foi um ato de providência da Deusa que me agraciou. O
tratamento com enxofre eu o obtive da Oxum do terreiro Joana D’Arc, numa sessão de diálogo
telepático: embora ela sugerisse um tratamento religioso com ritos mágicos, eu optei pela medicina,
sempre respondendo a perguntas que não ouvia.
Na imagem da borboleta que, atraída pela luz, busca a chama que a destroi, a analogia é mais
concreta do que poderia sugerir uma imagem tão nostálgica e envolta por aura poética. Não consigo
me controlar. Crises de urucubaca me têm feito procurar centros espíritas kardecistas, de tempos em
tempos. Mas, geralmente, por motivo de saúde. Como crises estomacais, cujas dores podem assumir
proporções graves. Ultimamente tonturas que reproduzem o vórtice da cangira me acometem em
circunstâncias diversas.
Contudo, um outro motivo também aparecia, antes de conhecer o meu amado. A busca de solução
para impasses em minha vida amorosa, quando, geralmente por ação das pomba-giras, conheci alguma
pessoa que me motivou. Nessas situações a força da hybris, a percepção alucinada da sincronicidade
provocada pelo poder das demônias, o meu desejo próprio que nessas situações passa a ficar sob o
poder da hybris, me arrastam aos terreiros de macumba. Somando-se a isso o impasse de uma vida
romântica sem solução, previamente produzido pelas demônias. Mas tais situações são peculiares,
uma vez que o objetivo destas movimentações parece ser fazer-me voltar à pomba-gira que provocou
o encontro (sincrônico) com essa pessoa, através de um ato de fala, havido com muitos anos de
antecedência. Quanto maior o portento, mais tempo demora para acontecer. Minha paixão dura mais
de três anos e foi programada com sete anos de antecedência. A diferença básica é que por motivos de
saúde procurei linhas leves, mas para os casos amorosos, fui procurar as linhas pesadas.
Assim sucedeu com os fatos que me levaram ao encontro com o egum. O Bará providenciou o egum,
mas o motivo que desencadeou toda a minha movimentação e minha ida ao seu encontro, sem saber o
que fazia e aonde acabaria, foi o desencontro de amor com o meu bem-amado, providenciado por uma
pomba-gira de um outro terreiro diferente em uma outra situação e época bem diferentes.
Passei a viver em um mundo sombrio. E dentre as sombras só consigo vislumbrar um raio de luz
quando penso em meu amor. Então toda a minha vida se ilumina. Minha vida sentimental sempre foi
uma sequência de tragédias e não tenho como reportar tamanha dor como a que sinto. Pois a maior
desgraça de toda a minha vida me foi imposta, pelas demônias pomba-giras, em minha vida amorosa.
Nada disso tenho como expor, arrancando lamentos do meu íntimo, pois não sou poeta.
“Se alguma divindade ofendida me persegue com uma vingança inexorável, que me seja ao menos
permitido morrer, se não me permitem viver”, disse deles o poeta. Mas eles não se desfazem de seus
escravos, são bens preciosos para eles que necessitam de corpos humanos para existirem.
Contudo, devo, ainda, contar algo, acho que estou meio louco, porque, às vezes, e são tantas as vezes
ao longo de um só dia, surpreendo-me a mim mesmo fazendo planos de voltar para a terreira das
pomba-giras, para ter de volta o meu amor, que enche de luz os meus dias, para tê-lo de volta ao meu
lado de forma a preencher a solidão de meu mundo vazio, para ter vida em meu peito. E isto é, de fato,
algo que em minhas horas de lucidez eu temo e me causa um angustiante pânico, porque, como tudo
em que estas harpias põe as suas mãos, este amor elas buscaram entre as criaturas das trevas. E,
quando estou lúcido, meu pensamento é fugir do amor, é o querer esquecer, e não consigo. E nem
quero de verdade.
Ao conhecer o mundo das trevas minha vida tornou-se um pesadelo, do qual tento acordar e não
consigo. Os demônios invadiram o meu imaginário, como se calcificassem os meus neurônios. As
pomba-giras habitam o meu imaginário como sombras sinistras que pairam constantemente, por
detrás da imagem constante de meu amor, que me dá o alento; pairam as sombras das pomba-giras do
Terreiro Joana D’Arc, como uma ameaça constante. Uma amarga prisão mental. Enredado no veu de
Må$yå$, o pensamento circula por meus neurônios, dando voltas em um labirinto.
Nos dias de chuva tudo é pior. É tudo mais intenso. Com a mente presa por grilhões, os demônios me
puxam, eles me arrastam... Busco um socorro e não encontro.
Pior que todas as doenças que me causaram cravando seus dedos em meu corpo, esta paixão me
devora. Me consome. Me mata.
Nunca sofri uma paixão assim. Todas as minhas glândulas estão excitadas e a intensidade é tal que
minha consciência constata continuamente que é algo artificial; meu corpo está descontrolado e minha
consciência se vê impotente ante a manipulação programada pela pomba-gira, como uma espécie de
programação neurolinguística. Todos me dizem que é um romance que não dá certo e eu vejo isto
mesmo, mas a esperança domina minha vontade e os sonhos me arrastam sem uma causa final, o que
é estranho e denota a artificialidade do poder mágico: é uma causa inicial, um nostálgico sonho do
passado que me impele à busca da felicidade impossível, mas desejada, e em tudo dependente das
demônias das trevas. E quando, por fim, acabou-se a relação amorosa, sobrou-me anos de querelas
judiciais com estranhos. O que parecia ser o começo de um romance terminou antes de começar, em
menos de uma semana, produzindo mais de seis meses de brigas e desentendimentos familiares.
E a dor! Uma dor tão forte quanto o desarranjo provocado em meu sistema endócrino. A dor de
contemplar mais que uma perda amorosa, a dor de contemplar, na velhice, o fim da vida.
Acabando-se qualquer esperança, acabou-se o sentido. Morto-vivo.
...

Quisera vomitar o que vi,


Só da náusea de o ter visto.

FiM

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