Se a norma deve ser considerada como válida até a sua anulação judicial, porque é a
decisão judicial que torna a norma nula,
não é permitido ao particular simplesmente deixar de cumprir a norma alegando a sua nulidade (que ainda não existe). Admitir que qualquer pessoa pudesse legitimamente fazê-lo, antes mesmo de ingressar em juízo, acarretaria insegurança jurídica ou “anarquia”.9 Esta é a principal diferença de ordem prática entre a nulidade ab initio e a anulação com efeitos retroativos (ex tunc) referida por Kelsen.10 Embora admitindo a possibilidade de anulação com efeitos retroativos (ex tunc), Kelsen percebeu que ela não se afinava muito com o paradigma de legislador negativo por ele atribuído à jurisdição constitucional, uma vez que o legislador, em regra, deve dispor para o futuro. Com efeito, num estudo comparativo entre os sistemas austríaco e norte-americano, publicado originalmente em 1942, afirma: O ato pelo qual uma corte declara uma lei inconstitucional pode, de acordo com a Constituição, aboli-la com força retroativa. Nesse caso a decisão da corte tem, como apontamos anteriormente, o caráter de um ato legislativo. No entanto, atos legislativos com força retroativa dificilmente são compatíveis com a proibição contida na Constituição americana, segundo a qual nenhuma lei ex post facto pode ser aprovada.11 Ao final do estudo, conclui, taxativamente, que a teoria da nulidade ab initio adotada no direito norte-americano é incompossível com o princípio da irretroatividade das leis consagrado 9. KELSEN, Hans. Jurisdição constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 308-309. 10. “What is usually called nullity is only the highest degree of annullability, the fact that every subject, and not only a special organ, is authorized to annul the norm. In modern national law, nullity, as the highest degree of annullability, is practically excluded. A status where everybody is authorized to declare every norm, that is to say, everything which presents itself as a norm, as nul, is almost a status of anarchy. It is characteristic of a primitive legal order which does not institute special organs competent to create and to apply the law.” (KELSEN, Hans. General Theory of Law and State. New Brunswick: Transaction Publishers, 2006, p. 160.) (Grifou-se.) 11. KELSEN, Hans. Jurisdição constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 309.