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O CONTEÚDO “DANÇA” EM AULAS DE EDUCAÇÃO

FÍSICA: TEMOS O QUE ENSINAR?*

LÍVIA TENÓRIO BRASILEIRO **

RESUMO

Analisamos a dança como conteúdo nas aulas de Educação Física escolar por reconhecer-
mos a ausência de discussões sobre o assunto. Apesar de a dança estar presente na escola,
seja na Educação Física, seja na Educação Artística/Arte Educação, ela é descontextualizada
da discussão sobre seleção cultural, realizada pelos currículos escolares.
PALAVRAS-CHAVE: Dança - Educação Física - Prática pedagógica.

INTRODUÇÃO

O presente estudo aborda a questão do conteúdo “dança” no


ensino da Educação Física escolar. Consideram-se aqui as pos-
sibilidades, os limites e as exigências da referência da Teoria Crítica.
Nossa discussão está inserida no Capítulo I da dissertação que
lhe deu origem, “Uma caminhada em construção”, em que apresen-
tamos as dimensões da problemática do tema. Nesse capítulo
explicitamos as categorias que permitiram a reflexão articulada acerca
da formação, do currículo, da Educação Física e da dança e acerca
do reconhecimento desta última como conteúdo escolar.
A discussão da dança como conteúdo nas aulas de Educação
Física nos fez refletir sobre como ela se insere no espaço escolar e
como os profissionais da área vêm assumindo esse conteúdo.

* Texto baseado na dissertação O conhecimento no currículo escolar: o conteúdo “dan-


ça” em aulas de Educação Física na perspectiva crítica, defendida na Universidade
Federal de Pernambuco.
* * Professora da Universidade Estadual da Paraíba, membro do Colégio Brasileiro de
Ciências do Esporte e mestre em Educação pela Universidade Federal de Pernambuco.

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A DANÇA FAZ PARTE DO UNIVERSO ESCOLAR?

Delimitamos o conteúdo “dança”, em nossa pesquisa, por re-


conhecer a ausência de discussões sobre o tema no espaço escolar.
Apesar de sua presença na escola, seja na Educação Física, seja na
Educação Artística/Arte Educação, a dança é descontextualizada da
discussão acerca da seleção cultural, realizada pelos currículos es-
colares.
A escolha desse tema para nosso dado empírico de pesquisa
deve-se ainda ao nosso reconhecimento de que a dança vem sendo
marginalizada nas aulas de Educação Física escolar. Acompa-
nhamos, como observadora participante, as atividades da disciplina
Prática de Ensino II - 1998, da licenciatura em Educação Física/
UFPE. A disciplina incluía um espaço de intervenção em uma es-
cola da rede pública estadual de Pernambuco. A pesquisa,
intitulada A Prática Pedagógica e a Política Educacional na For-
mação Humana e na Produção do Conhecimento, teve como
intenção o estudo dos fatores externos e internos à escola. A dança
constituiu o conteúdo privilegiado desse estudo nas intervenções
junto aos escolares. Nesse processo pudemos reconhecer a ausên-
cia desse conhecimento como prática pedagógica sistematizada
no espaço escolar, bem como a não-apropriação do mesmo, por
parte dos acadêmicos em formação.
Somente em recentes processos de discussão, para além da
Educação Física, é que a dança veio inserir-se como conteúdo nos
currículos escolares, como prática pedagógica sistematizada. E é
esse movimento recente que nos faz refletir sobre sua posição como
conhecimento a ser tratado nos espaços escolares.
Gehres (1997, p. 36) descreve a situação da dança nas escolas
estatais das redes de ensino fundamental e médio do Brasil, apresen-
tando dados que apontam para:

• a predominância da dança no ensino fundamental do Brasil


como uma atividade extracurricular, estabelecida de forma
diversificada, com maior incidência dos centros de arte para escolares
da rede municipal ou estadual e dos grupos de dança com apoio
estrutural e pedagógico;

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• do ponto de vista curricular, a predominância da dança como
conteúdo da disciplina Educação Física e sua introdução incipiente
como conteúdo da disciplina Educação Artística. Contudo, a obser-
vação da história dessas duas disciplinas nas escolas brasileiras (Bar-
bosa, 1978) revela a hegemonia da ginástica e do desporto como
conteúdos da Educação Física e a do desenho geométrico como
conteúdo privilegiado pela Educação Artística.

O que vamos observar é que, apesar de a dança estar situada,


desde 1971, como unidade da disciplina Educação Física, a prerro-
gativa concedida aos demais conteúdos da Educação Física escolar,
destacada acima, é facilmente observada no dia-a-dia das escolas
do Estado de Pernambuco. A dança é minimamente tratada como
componente folclórico no interior das escolas, seja pela Educação
Física ou pela Educação Artística/Arte Educação; raramente é valo-
rizada por ter um conhecimento próprio e uma linguagem expressiva
específica. Ela é reconhecida como atividade extra-escolar,
extracurricular etc.
Ao consultar os professores de Educação Física da rede estadual
de ensino, pudemos reconhecer elementos já apresentados na litera-
tura específica sobre a dança, que já conta com um pequeno acervo
bibliográfico no espaço escolar, especialmente na Educação Física.
As respostas obtidas do questionário evidenciaram que ne-
nhum dos que retornaram esse instrumento de coleta trata o conteúdo
“dança” nas aulas de Educação Física e apenas um indica recorrer à
dança em festividades e datas comemorativas.
Dentre os questionários devolvidos com as respostas, tivemos
apenas um professor cuja carga horária incluía treinamento de alguma
modalidade esportiva; os demais exerciam toda a sua carga horária
em aulas de Educação Física com o alunado. Esse é um dado interes-
sante quando reconhecemos o grande número de professores com
carga horária em disponibilidade para atender a grupos de treinamento,
sendo identificado um grande privilégio a essas atividades, em detri-
mento das aulas de regime curricular obrigatório. E mesmo quando
esse treinamento pode adotar o conteúdo “dança”, a grande prerro-
gativa é para as modalidades esportivas, visto que o projeto de grupos
de treinamento dá base, na escola, à seleção das equipes para os jogos

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escolares. Essa centralidade está refletida em toda a discussão histórica
da área, e decorre do privilégio, desde a década de 1960, às modali-
dades esportivas. Mesmo com a discussão ampliada acerca dos co-
nhecimentos que perpassam as aulas de Educação Física, esse ainda
é um forte aspecto delimitador da área.
Essa consulta aos professores da área permitiu-nos dialogar
com a literatura existente, bem como formular a proposta de trabalho
da nossa intervenção em campo. As respostas obtidas possibilita-
ram-nos conhecer as referências acerca da temática “dança” no
espaço escolar, as quais podem ser exemplificadas nestes fragmentos:

– Você trata o conteúdo “dança” na sua escola?


– Infelizmente não foi possível vivenciar o conteúdo dança na escola, por
muitos motivos: 1º) espaço físico: o salão existente na escola passou a
funcionar como sala de aula para o primeiro grau menor; 2º) material
humano: turmas mistas, faixa etária bastante diferenciada; enfim no iní-
cio do ano, ao apresentar os conteúdos, não houve boa aceitação da
dança, principalmente, pelos alunos de idade mais elevada. (Profª A-Q)

– Sim [... mas] devido ao espaço físico esse conteúdo fica muito limita-
do (ocasiões de festas e datas comemorativas). (Profª B-Q)

– Não. Quando trabalhava na escola, a mesma não oferecia local ade-


quado, nem tampouco materiais para poder implantar essa modalidade
[...]. (Profª C-Q)

– Não: falta de conhecimento; espaço; dificuldades com turmas mistas


(preconceito). (Profª. D-Q)

Se recorrermos à literatura existente, vamos observar que um


dos fortes argumentos para a inexistência do conteúdo “dança” nas
aulas de Educação Física são as questões estruturais, de conheci-
mento e de aceitação por parte dos alunos, especialmente do sexo
masculino. Essas alusões, portanto, estão em consonância com as
respostas obtidas.
No que se refere à questão estrutural, quando pensamos em
dança, automaticamente, imaginamos uma sala ampla, com piso liso
e espelhos por todos os lados, e acompanhada de um som de qualidade

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– da mesma forma que, tratando-se de esportes, pensamos em qua-
dras sem buracos, com cobertura e demarcação de todas as modali-
dades esportivas. Essa, sem sombra de dúvidas, não é a realidade das
escolas públicas estaduais. O interessante, porém, é que, apesar da
estrutura indesejada das quadras, continuamos a tratar o conteúdo
esportivo, com seus limites, é claro, e o mais intrigante é que a quadra
virou sinônimo de aula de Educação Física. É importante reconhecer
ainda que, em muitas escolas, nem quadra existe, ficando as aulas
restritas a espaços como pátio, ruas ou praças. Podemos, portanto,
perguntar: Não é mais fácil conseguir uma sala do que uma quadra,
desde que a estrutura da sala seja menos exigente que a da quadra? E
por que não ampliarmos nossa estrutura física para além da quadra,
com salas de dança e ginástica? Não queremos aqui fazer uma
elucubração e sim mostrar que o espaço físico deve ser pensado como
um desafio constante para se obter uma Educação Física que amplie
suas referências de conhecimento. O espaço físico/arquitetônico das
escolas é estruturado com base nas proposições pedagógicas; logo
faz-se necessário uma reflexão ampliada da escola e, especificamen-
te, da Educação Física, a fim de redimensionar esse espaço.
Quanto ao conhecimento “dança” nos cursos de formação
em Educação Física, podemos observar um avanço significativo nos
currículos. A disciplina Rítmica, anteriormente apresentada por eles,
nem sempre era obrigatória para os homens. Hoje, no entanto, exis-
tem cursos que possuem tanto a disciplina Dança quanto o futebol
para alunos/as. Se considerarmos que o futebol, também, não era
obrigatório para mulheres – e, por incrível que pareça, ainda existem
cursos que mantêm essa referência –, a diferenciação se tornará ainda
mais clara: o futebol está marcadamente nas aulas, seja de professores
ou de professoras, mas a dança não. Apesar de reconhecer nesse
fato uma conseqüência da questão cultural, temos de confrontá-la.
Se admitirmos a dança como conteúdo, teremos de recorrer a ela,
assim como recorremos aos demais conteúdos como sendo impor-
tantes para a formação das crianças e adolescentes.
Existe uma discussão sobre as aulas orientadas por profis-
sionais com formação não-específica em dança. Esse aspecto precisa
ser mais bem discutido no interior dos cursos de formação, porque
a não-apropriação do conhecimento sobre a dança tem sido um

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forte argumento dos profissionais. Questiona-se, também, a
metodologia usada por esses profissionais no processo de ensino–
aprendizagem. Não fazemos o mesmo percurso dessa discussão,
pois, dessa forma teríamos de defender que só os profissionais li-
cenciados em Dança, poucos em nosso país, estariam aptos a ofere-
cer aulas desse conteúdo no espaço escolar. O que nos preocupa é
reconhecer com que elementos os profissionais de Educação Física
estão se aproximando do trato da Dança nesse espaço!
Entendemos, como Barbosa (1991, p. 6), que "assim como a
matemática, a história e as ciências, a arte tem um domínio, uma
linguagem, uma história. Se constitui portanto, num campo de estu-
dos específicos e não apenas em mera atividade", sendo a dança
uma das formas da cultura corporal de diversos povos inseridas nesse
universo da cultura/arte.
Se tomarmos como referência o Brasil, concluiremos que são
poucos os cursos de graduação, licenciatura ou bacharelado em
Dança, e que eles configuram uma nova demanda nas faculdades
de Artes. Porém, desde 1971, a legislação prevê o trato com esse
conhecimento em aulas de Educação Física e Educação Artística/
Arte Educação, o que fica explicitado, mais recentemente, nos
Parâmetros Curriculares Nacionais.
Não pretendemos aqui entrar numa discussão corporativista
para saber a quem pertence esse espaço de intervenção, e sim dis-
cutir sobre as possibilidades, já historicamente em construção, de
qualificação profissional. A rediscussão acerca da formação profis-
sional em Educação Física deve recuperar as demandas que a área
não conseguiu tratar com qualidade e fomentar novas possibilidades.
No que se refere à presença dos homens – turmas mistas – temos
uma longa discussão acumulada sobre o assunto. Que importância pode
ter a divisão das turmas por sexo, quando, em todo o seu processo
escolar e de vida cotidiana, os alunos estão juntos? Isso representa um
retrocesso que não se justifica por questões fisiológicas, muito menos
psicológicas. A co-educação e a questão de gênero vêm sendo discuti-
das nas produções acadêmicas da área, podendo ser consultados estu-
dos atualizados, apresentados nos eventos do Colégio Brasileiro de Ci-
ências do Esporte, nos seus Grupos de Trabalhos Temáticos.
Saraiva Kunz et al. (1998, p. 27) explicitam essa discussão
afirmando que

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a E.F., tradicionalmente, encontrou (e isto ocorre vivamente ainda hoje)
uma separação de práticas/vivências entre os sexos opostos, que se esta-
beleceu baseada no preconceito da desigualdade, e mais do que tudo,
no da inferioridade feminina. Isto quer dizer que, quando uma diferença
entre sexos justifica a (não) participação/vivência de um ou outro sexo
em vivências de movimento que lhes proporcionariam descoberta de
potencial, estabelece-se a discriminação e não o atendimento à indivi-
dualidade/ singularidade, como sempre foi reivindicado pelos profes-
sores, ou por preconceito, ou por incapacidade de lidar com as diferen-
ças de sexo e/ou de gênero.

Um outro dado interessante exposto por uma das professoras


consultadas é a utilização que ela faz da dança, unicamente nos
eventos. Isso é curioso, mesmo diante de suas alusões aos limites de
trato com esse conteúdo, devido aos espaços físicos da escola. Essa
questão é amplamente reconhecida, pois é de conhecimento públi-
co o papel das danças nas festividades escolares, incluindo todas as
séries. As danças, nesses eventos, são, normalmente, orientadas por
professores de Educação Física, o que nos permite afirmar que, ape-
sar de a dança estar presente no espaço escolar, ela é apenas um
elemento decorativo. Não se reflete sobre a importância de seu co-
nhecimento para a formação dos alunos.
Apresentamos esse confronto por entendermos que muitos
dos problemas que limitam o trato com o conhecimento “dança”
ultrapassam a relação específica de conteúdo. Além disso, poucos
são os estudos em que se procura analisar as possibilidades de
materialização de propostas de ensino, e, mesmo os existentes, apre-
sentam-se sob a referência de modelo.

MAS, AFINAL, O QUE É DANÇA?

Tomando como referência a nossa consulta aos professores,


podemos perceber que somente um deles não aponta a dança como
um conhecimento a ser tratado nas aulas de Educação Física. Os
demais, ao serem questionados a respeito de seu entendimento sobre
a dança e do trato com esse conhecimento em aulas de Educação
Física, apontam:

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Dança são passos cadenciados e subordinados ao mesmo ritmo e com-
passo de uma música. (Profª A-Q)

Dança: forma de expressão da cultura de um povo, de uma raça, de um


determinado lugar, em relação às suas crenças, seus valores, seus medos
etc. Nas aulas de E.F. esse conteúdo deve ser tratado de acordo com os
interesses e as necessidades dos alunos, levando-se em conta a realidade
em que eles se inserem. Deve ter um sentido e um significado, a fim de que
o aluno possa fazer uma reflexão crítica e promova mudanças. (Profª B-Q)

A dança traz, nos seus movimentos, fortalecimento muscular, harmonia,


habilidade, graciosidade, integridade, ritmo, coordenação, ajudando
em todas as atividades de Física e esportes. (Profª C-Q)

As conceituações apresentam diferenciações no que tange ao


significado da dança na Educação Física.
Neste estudo não fizemos opção por recuperar a história da
dança, por entendermos que existem trabalhos de cunho histórico
já publicados no Brasil que apresentam uma reflexão mais
aprofundada sobre o percurso da dança e sobre os seus diferentes
papéis, ao longo da história da humanidade.
Porém, quando se trata da dança como componente do currí-
culo escolar, e especificamente da Educação Física, verificamos uma
parca existência de trabalhos publicados no nosso país. Fizemos então
um breve levantamento das publicações em livros, revistas e anais de
eventos, incluindo monografias, dissertações e teses que vêm contri-
buindo para as discussões na área. Apresentamos algumas dessas pro-
duções sem fazer distinção de suas aproximações e distanciamentos
conosco, porém, reconhecendo-as no processo de discussões da área.
Recuperando as falas dos professores, podemos destacar dois
conceitos. O primeiro apresenta a dança como movimento que for-
talece, que coordena etc., e, com isso, ajuda a todas as atividades da
Educação Física; o segundo, por sua vez, fala da dança como ex-
pressão cultural de um povo.
Ao analisar o primeiro conceito, percebemos o reducionismo
com que a Educação Física trata desse conhecimento, considerando
apenas as suas possibilidades de auxiliar nas habilidades motoras
ou de integrar – palavra usual: socializar. Isso significa distanciar a
dança de seu universo de conhecimento próprio e retirar dela o seu

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sentido/significado para atribuir-lhe somente possibilidades de mo-
vimento. É fácil comprovar esse reducionismo também pela
centralidade, na história da dança, do repertório clássico, que codi-
ficou todo o seu movimento. Vale lembrar que a dança clássica é
considerada como 'A dança'.
O segundo conceito permite aproximarmo-nos dos estudos
que reconhecem a dança como possuidora de uma linguagem pró-
pria e expressiva, e como representativa de um conhecimento que
conta/representa a história da humanidade.
Temos buscado, ao longo das relações estabelecidas com o
universo da dança, confrontar essas discussões reducionistas com
aquelas que se ampliam no universo da Arte, tendo o cuidado de
não nos distanciarmos do papel do espaço escolar, ou seja, dialo-
gando a partir da Educação com a Arte.
Defendemos o conhecimento “dança” dentro da discussão
ampliada da Arte, e compreendemos a dança como algo que exce-
de o dizer em palavras, ou seja, localiza-se no universo da lingua-
gem corpórea do homem, que possui códigos universais. Reconhe-
cemos que o universo artístico, de uma forma geral, toma uma
reorientação conceitual mundial em que não existe mais uma única
referência estética. Essa mudança pode ser observada em diversas
ações/significações relativas às produções artísticas.

Não vamos mais a museus simplesmente para 'prestar homenagem' à


Arte ou ao Artista, como se estivéssemos participando de um culto.
Muito pelo contrário, gostamos daqueles trabalhos que podemos tocar,
mexer, apertar; nos quais podemos entrar, ou mesmo escalar. Tampouco
assistimos a espetáculos de dança sem que nos envolvamos de alguma
maneira. Os melhores são aqueles em que podemos 'entrar na dança',
juntamente com os artistas. (Marques,1996, p. 18)

Apesar dessa mudança, Marques assinala que, com relação


ao ensino da dança, ainda se valorizam aspectos próprios do século
XVIII, como, por exemplo, o destaque à espetacularização e ao apri-
moramento técnico. A autora ressalta que

repensar a educação e a dança no mundo contemporâneo, quer no âmbi-


to artístico profissional, quer na escola básica, significa também repen-

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sar todo este sistema de valores e de idéias concebidos desde o século
XVIII e que foram incorporados ao pensamento educacional ocidental.
(Marques, 1999, p. 48)

Aulas de dança podem ser observadas em diferentes espaços:


academias, estúdios, clubes, escolas etc., e nesses o professor, que
ora é bailarino/professor, ora coreógrafo/professor, é a grande refe-
rência a ser imitada, tendo no domínio da técnica e de habilidades a
sua metodologia, e no repertório clássico o seu privilégio. Embora
se observe o crescimento de outros repertórios, esses também têm
privilegiado, na sua abordagem metodológica, o ensino de técni-
cas, a exemplo das danças de salão.
Nas aulas de Educação Física, especificamente, temos observa-
do, pelas poucas experiências relatadas/sistematizadas, o privilégio das
danças do universo popular como forma de resgatar a cultura de cada
região. Acreditamos na importância de recuperar danças que configu-
rem a história da nossa região e nos permitam uma localização como
produtores de nossa cultura. Porém constatamos a necessidade de co-
nhecer um universo mais amplo de referências sobre a dança e seus
diferentes repertórios, bem como as possibilidades de improvisação e
reconstrução coreográfica dos repertórios já construídos.
Saraiva Kunz et al. (1998, p. 19) corroboram o nosso enten-
dimento de que, através da dança, se procede ao resgate/produção
da cultura, sendo esse o objeto da Educação:

[a dança] possibilita a compreensão/apresentação das práticas culturais


de movimento dos povos, tendo em vista uma forma de auto-afirmação
de quem fomos e do que somos; ela proporciona o encontro do homem
com a sua história, seu presente, passado e futuro e através dela o ho-
mem resgata o sentido e atribui novos sentidos à sua vida.

Temos nos aproximado também das discussões apresentadas


por Marques (1996 e 1999), quando formula a proposta de uma
articulação múltipla entre o contexto vivido, percebido e imaginado
pelos alunos e os subtextos, textos e contextos da própria dança. O
contexto aqui é entendido não como objetivo, mas, sim, como um
interlocutor da nossa prática educativa, e a escolha dele não deve
estar baseada apenas no interesse motivacional; é preciso que ele

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exponha significados que elucidem a nossa sociedade, iniciando
um processo de problematização. Esse contexto é base para as for-
mulações dos textos, subtextos e contextos da dança. Os subtextos
são os aspectos coreológicos, ou seja, os elementos estruturais e
socioafetivo-culturais da dança. Os textos são ampliados, indo do
universo dos repertórios ao reconhecimento da importância das com-
posições e das improvisações. No contexto da dança estão os seus
elementos históricos, culturais e sociais, como o trato com a histó-
ria, música, antropologia, estética, apreciação, crítica etc.
Em Pernambuco a proposta de ensino da Educação Física de-
senvolvida pela Secretaria de Educação, Cultura e Esportes-PE,
1987-1991 e recuperada nas gestões posteriores apresenta a dança
como uma das formas de atividades expressivas corporais do ho-
mem. Junto com outras atividades, ela configura o conhecimento
da cultura corporal, e é reconhecida como uma das formas de lin-
guagem do homem, linguagem esta expressiva e representativa de
diversos aspectos de sua vida, privilegiadamente de seus momentos
festivos. Ao conhecer, interpretar e compreender os sentidos e sig-
nificados da dança, temos a oportunidade de perceber, através dela,
o desenvolvimento cultural de diferentes civilizações.
Faz-se necessário, portanto, o acesso ao universo da dança e
a desmitificação de sua imagem apenas como elemento/espetáculo
folclórico, normalmente de caráter contemplativo. É preciso passar
a entendê-la como conhecimento significativo para as nossas ações
corpóreas, que podem ser exploradas pelo universo de repertórios
popular, folclórico, clássico, contemporâneo etc., bem como pela
improvisação e pela composição coreográfica.

CONCLUSÕES

Ao refletirmos sobre as possibilidades de mudança no trato


com o conhecimento nas práticas pedagógicas da Educação Física
no espaço escolar, reconhecemos que há muito o que superar na
concepção de formação humana e de currículo, pontos discutidos
mais amplamente na dissertação. Mas, entrando na nossa
especificidade, nos questionamos: Como superar o fato de a Educa-
ção Física continuar reforçando práticas pedagógicas assistemáticas?

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Os dados apresentados pelas crianças e adolescentes na escola
pesquisada permitem-nos pontuar a ausência de aulas dessa disci-
plina ou a sua assistematicidade. Embora ela seja um componente
curricular e apresente-se no interior do projeto escolar, sua existên-
cia não está sendo garantida em sua função mínima.
A história da área demonstra os seus avanços e os novos pro-
cessos de discussão, porém a realidade educacional não nos permi-
tiu ver além do que já se conhece no senso comum: a ausência de
aulas ou a aula restrita, no que se refere a conhecimento. O conteú-
do se limita ao futebol, queimado, corridas e exercícios, velhos ami-
gos da Educação Física.
Adentrando novamente no nosso conteúdo específico de es-
tudo, voltamos a nos questionar: Como superar o fato de que a dan-
ça, quando tratada por profissionais da Educação Física, normal-
mente, limita-se a reconhecimento de movimentos? Retira-se dela o
seu sentido/significado ou a possibilidade de construí-los, e apega-
se unicamente às suas possibilidades de movimento, aos seus códi-
gos. Esse é, sem dúvida, um limite explícito na área da Educação
Física, que, também, tem sido tratada como um fazer destituído de
saber. A questão comprova a necessidade de uma discussão mais
aprofundada acerca do trato com o conhecimento “dança” nos cur-
sos de formação de professores de Educação Física.
Reafirmamos, assim, a importância de apreender e vivenciar
nossa cultura corpórea através da dança, uma linguagem que o ho-
mem construiu e reconstrói/constrói ao longo da sua história.
Ao refletirmos sobre a relação do homem com o mundo, per-
cebemos em Vasquez (1999, p. 73) que "os homens mantiveram e
mantêm diferentes relações com [ele]. Diversas são também nelas
sua atitude para com a realidade, as necessidades que tentam satis-
fazer e o modo de satisfazê-las".
Entre essas relações, o autor destaca: a relação teórico-
cognoscitiva (que permite compreender a realidade); a relação prá-
tico-produtiva (através da qual o homem intervém materialmente
na natureza); e a relação prático-utilitária (por meio da qual ele con-
some os bens produzidos). Dessa forma, entendemos que a dança é
uma produção do homem em suas relações com o mundo e que
explicita diferentes relações na sua constituição.

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Vazquez (1999, p. 47) ainda contribui para a discussão sobre a
estética, sendo essa "a ciência de um modo específico de apropriação da
realidade, vinculado a outros modos de apropriação humana do mundo
e com as condições históricas, sociais e culturais em que ocorre".
É preciso que se explicite que todos vivemos situações estéti-
cas nas nossas vidas, por mais ingênuas ou espontâneas que pare-
çam, a exemplo da nossa relação com a música, a imagem corporal
etc. Vivemos, portanto, sob forte influência ideológica estética, sendo
a Educação Física e a dança um campo muito profícuo para essas
apropriações estéticas.
Dessa forma, reafirmamos a necessidade de se discutir a edu-
cação no interior da escola, compreendendo como ela constrói a
concepção de homem e de mundo, que é refletida nos projetos ci-
entíficos, políticos, pedagógicos, éticos e estéticos. Acreditamos tam-
bém na importância de se criarem novas possibilidades para facili-
tar a expressão original de cada aluno e dar a eles o sentido de
grupo social, à medida que lhes permitam reconhecer-se como agen-
tes que vivenciam, refletem e reelaboram sua cultura.
Essa é, sem dúvida, uma discussão a ser ampliada, pois, ao
refletir sobre a questão “Temos o que Ensinar”, teremos de fazê-lo
para além dos limites das quadras da Educação Física.

Dance in School Physical Education Classes: do We Have Anything to Teach?

ABSTRACT
We have analyzed dance as a content in School Physical Education Classes. We under-
stand that there is a lack of discussion on dance as a content to be approached in the school
environment. We recognize its presence at school, either via Physical Education classes or
via Art Education classes. Its presence, however, occurs out of the context of the discus-
sion about cultural selection, undertaken by the school syllabi. This study is part of the
dissertation “Knowledge in the school syllabi: the content dance in physical education
classes on an analytical perspective”.
KEY WORDS: Dance - Physical Education - Pedagogical practice.

El Contenido Danza en Clases de Educación Física: ¿Qué Tenemos para Enseñar?

RESUMEM
Analizamos la danza como contenido en las clases de Educación Física Escolar. Delimita-
mos el contenido Danza, en nuestra investigación, por reconocer la ausencia de discusiones
sobre ésta como contenido a ser tratado en el espacio escolar. Reconocemos su presencia

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en la escuela, o por vía Educación Física, o por Educación Artística/Arte Educación. Esta
presencia, sin embargo, es descontextualizada de la discusión sobre la selección cultural,
realizada por los currículos escolares. El estudio es parte constitutiva de la disertación “El
conocimiento en el currículo escolar: el contenido danza en clases de Educación Física en
la perspectiva crítica”.
PALABRAS CLAVE: Danza - Educación Física - Práctica pedagógica.

REFERÊNCIAS

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novos tempos. São Paulo: Perspectiva, 1991.
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Florianópolis: Ed. UFSC, 1998.
VAZQUEZ, Adolfo Sánchez. Convite à estética. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1999.

Recebido: maio de 2003


Aprovado: junho de 2003

Endereço para correspondência


Lívia Tenório Brasileiro
Rua Áureo Xavier, nº 540, Cordeiro
Recife -PE - CEP: 50721-050

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