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Ijuí
2014
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Ijuí
2014
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Catalogação na Publicação
CDU:
37(091) Aline Morales dos Santos Theobald
CRB10/1879
37:17
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COMISSÃO JULGADORA
AGRADECIMENTOS
RESUMO
As principais teses de Condorcet acerca da forma de governo republicana, da instrução
pública e do exercício da cidadania, expostas à época das revoluções havidas nos Estados
Unidos da América e na França, ao final do século 18, foram examinadas, neste texto, com o
propósito de evidenciar a atualidade desses enunciados no contexto das sociedades
republicanas e democráticas do século 21, em particular das instituições educacionais. A
investigação, de base bibliográfica, constitui um esforço hermenêutico de revisitar a literatura
em torno de textos do autor e de importantes comentadores. Ela se estrutura da seguinte
maneira: o primeiro capítulo explicita ideias morais de Condorcet e as associa, sobretudo, a
temas tais como a verdade na esfera pública, princípios racionais e direitos naturais; o
segundo analisa narrativas e argumentos político-normativos do autor relativos à configuração
de república e de suas instituições; o terceiro explana sua proposta de instrução pública,
salientando que ela favorece o exercício da cidadania; o quarto enfatiza a atualidade de
aspectos da obra de Condorcet nos cenários político e educacional do Brasil. Dentre as
proposições matriciais presentes em textos do filósofo, foram elucidadas as que seguem: os
âmbitos da moral, da política e da educação, a rigor, são indissociáveis; os sentimentos
morais, ao serem racionalmente cultivados, asseguram uma interdependência entre a
felicidade individual e a felicidade pública; a república e o exercício da cidadania exigem uma
opinião pública ilustrada; ao contrário do que ocorre no caso de um despotismo político, a
instrução pública e a instituição do cidadão republicano asseguram a independência do
indivíduo, a igualdade, a liberdade e o bem-estar comum; a instrução compete ao poder
público e não deve associar o cultivo da moral ao ensino de uma doutrina religiosa ou
ideológica; o laicismo, estimulado entre os cidadãos nas instituições republicanas, garante na
esfera pública o predomínio de um espírito público, ao invés de consagrar um espírito de
facção, partido ou seita; a educação republicana deve conceder aos cidadãos condições de
conhecer elementos das ciências e das artes, bem como direitos e deveres aos quais estão
obrigados; deve estimular o respeito à lei, assim como o gozo de direitos tais como os de
transformar a lei e resistir à opressão; deve corresponder às possibilidades abertas pelos
progressos e pela perfectibilidade dos homens, assim como desvelar e desenvolver talentos e
profissões; deve, além de transmitir definições, valores e rotinas de aplicação técnica,
estimular o exercício da cidadania e, pela redução das desigualdades sociais, favorecer uma
organização social mais equânime e livre; deve reconhecer e respeitar as diferenças nas
capacidades de aprendizagem, bem como evitar hierarquias escolares discriminadoras; os
indivíduos devem ser preparados para que continuem aprendendo depois de sair da escola, a
fim de que possam reconhecer seus deveres e os motivos pelos quais devem cumpri-los; a
desigualdade de riquezas constitui um problema nodal para a efetivação de princípios e
direitos declarados inegociáveis e imprescritíveis. Em outros termos: a investigação, desse
modo articulada, ateve-se à explicitação de conceitos-chave de Condorcet, tais como os de
república, instrução pública, espírito público, cidadania e sentimentos morais, com o
propósito de pensar elementos e justificativas da educação republicana atual.
Palavras-chave: Educação republicana. República. Sentimentos morais.
7
ABSTRACT
The main theses of Condorcet in respect of the republican form of government, public
instruction and citizenship, exposed at the time of the revolutions in the United States and
France, at the end of the 18th century, were examined in this text with propose to demonstrate
the relevance this statements in the context of the republican and democratic societies of the
21st century, particularly in educational institutions. This research uses a bibliographic’s base
and devolepment a hermeneutical effort to revisit the literature around the Condorcet’s texts
and important commentators. It is structured as follows: the first chapter explains the moral
ideas of the author and associates their, especially about issues such as truth in the public
sphere, rational principles and natural rights; the second chapter examines narratives and
political-normative arguments to think about the configuration of the republic and its
institutions; the third one explains the proposes of the public instruction, highlighterning the
exercise of citizenship; the fourth chapter emphasizes the relevance of aspects of the
Condorcet’s work in the Brazil’s political and educational scenarios. Among the propositions
present in the texts of Condorcet, are explained as the following: strictly speaking, the areas of
morality, politics and education are inseparable; the moral sentiments can be rationally
cultivated, and ensure interdependence between individual happiness and public happiness;
the republic and the citizenship require an illustrated public opinion; contrary to what occurs
in the case of a political despotism, the public instruction and the institution of the republican
citizen shall ensure the independence of the individual, equality, freedom and the common
welfare: the instruction is for the government and should not involve the cultivation of the
moral teaching of a religious or ideological doctrine and the secularism, stimulated, this way,
among the citizens, in republican institutions, ensuring the dominance in the public sphere of
a public spirit, instead of devoting a spirit of faction, party or sect; the republican education
should garanties to the citizens the knowledge of the sciences and arts, as well as the rights
and obrigations as required; should stimulate the respect of the law, as well as enjoyment of
rights such as to change the law and to resist the oppression; it must correspond to the
possibilities opened up by progress and the perfectibility of man, as well as awaken and
development talents and professions; in addition as at definitions, values and routines of
technical application, the republican education should encourage citizenship, through a
reduction of social inequalities, favoring a more equal and free social organization; it must
recognizing and respect differences in learning abilities and avoid discriminating the school’s
hierarchies; the individuals must be prepared to learning on after leaving school, them can
recognize their obrigations and the reasons why should fulfill them; the inequality of wealth is
the major problem for the realization of principles and rights declared nonnegotiable and
imprescriptible. In other words: this research, articulated this way, explanes the key concepts
of Condorcet, such as the republic, public instruction, public spirit, citizenship and moral
sentiments, for the purpose of thinking elements and justifies of the current republican
education.
Keywords: Republican Education. Republic. Moral sentiments.
8
SUMÁRIO
Introdução
1
A expressão “educação republicana” será empregada ao longo do texto, sobretudo no último capítulo, com o
sentido de configuração de ensino articulado pela república para a instrução dos cidadãos. A expressão
“instrução pública”, por sua vez, é empregada por Condorcet - especialmente nas “Cinco memórias sobre a
instrução pública” (1791) e no “Relatório e projeto de decreto sobre a organização geral da instrução pública”
(1792) - para indicar um programa de ensino estendido igualmente a todo o povo e sob a responsabilidade, mas
não o absoluto controle, do poder público. Termos tais como instrução pública, instrução republicana, educação
pública, ensino, escolarização, educação formal e educação institucional, independentemente dos graus em que
se classifiquem ou dos estatutos a que correspondam, equivalem, no limite das premissas e dos propósitos desta
tese, à educação republicana, instituída ou licenciada pela república e, na medida dos princípios e direitos que
aqui serão destacados, assemelhada ao projeto de instrução pública apresentado por Condorcet.
2
Garcia pondera a esse respeito: “Em tempos de radicais embates e transformações políticas nas estruturas e
justificações da sociabilidade humana não é irrelevante considerar que, desde o século 18, a recorrência aos
termos república e democracia e a ideia jurídico-normativa de que é obrigação da república garantir a instrução
universal de seus cidadãos não tenham sido objetos de contestação programática; que divergências significativas
se estabeleceram na disparidade de significações e de formas com que diferentes sociedades conceberam e
ordenaram, desde aí, suas instituições e atividades educacionais” (2009, p. 192). Todorov, por sua parte, indaga
sobre qual base intelectual e moral, com o enfraquecimento das utopias, queremos construir uma vida comum:
“Para nos comportarmos como seres responsáveis, precisamos de um plano conceitual que possa fundamentar
não somente nossos discursos, o que é fácil, mas também nossos atos [...] Durante os três quartos de século que
precedem 1789 produziu-se uma grande reviravolta que, mais do que qualquer outra, é responsável por nossa
presente identidade. Pela primeira vez na História, os seres humanos decidem tomar nas mãos seu destino e
colocar o bem-estar da humanidade como objetivo principal de seus atos. Esse movimento emana de toda a
Europa [é justo acrescentar: dos Estados Unidos] e não apenas de um país, exprime-se através da filosofia e da
política, das ciências e das artes, do romance e da autobiografia” (2008, p. 9-10).
10
A obra de Condorcet, em seu conjunto, tem sido analisada sob diferentes perspectivas,
especialmente a partir do final do século 20. Leitores atuais, informados pelos argumentos do
republicanismo do século 18, não hesitam em evocar textos do autor em relação às grandes
questões contemporâneas da moral, da política, da educação e de suas instituições, do
laicismo e do exercício da cidadania, ainda que não os retomem com a pretensão de torná-los
chave explicativa para tudo. Condorcet, na opinião de tais leitores, exprime responsabilidade
para com a república e a educação republicana. Sua vida e obra constituem um exemplo de
trajetória intelectual marcada pelo rigor e pela liberdade.
Entre os principais comentadores da obra de Condorcet aqui referidos, destaco
Albertone (1983), Badinter e Badinter (1988), Kintzler (1984), Coutel e Kintzler (1994),
Coutel (2004) e Silva (2004). Albertone, ao organizar o livro “Reflexões e notas sobre a
educação”, recuperou escritos de Condorcet a respeito da educação produzidos entre 1773 e
1782. Kintzler relacionou a obra do autor com a de seus contemporâneos no livro “Condorcet:
a instrução pública e o nascimento do cidadão”. A comentadora analisou a correlação entre
instrução pública e política na obra do filósofo. Um dos méritos desse livro é reconhecer uma
perspectiva própria para o autor no cenário da Ilustração. Badinter e Badinter escreveram a
biografia “Condorcet: um intelectual em política”, permitindo-nos conhecer o autor em seu
contexto histórico. Coutel, juntamente com Kintzler, introduziram o livro “Cinco memórias
sobre a instrução pública3”, correlacionando a instrução com o ideário republicano de
Condorcet. Coutel descreveu no livro “Condorcet: instituir o cidadão” princípios republicanos
e enfatizou a importância do exercício da cidadania e da instrução pública na obra do autor.
Silva, por seu turno, no texto “Instrução pública e formação moral: a gênese do sujeito liberal
segundo Condorcet”, mostrou com rigor a proposta do filósofo para o ensino público da
moral, revelando a força de seu argumento favorável a uma formação racional e universalista.
O texto “Cinco memórias” estabelece, no essencial, as diretrizes do “Relatório e
projeto de decreto sobre a organização geral da instrução pública4”, projeto que Condorcet
apresentou à Assembleia Nacional, em nome do Comitê de Instrução Pública, mas que foi
rechaçado no tumultuoso ano de 1792. Ao analisar, na primeira obra, a natureza e os objetivos
da instrução pública, o filósofo distingue educação e instrução, distinção relevante para se
compreender o espírito desses textos. Tal diferença será examinada ao detalhe no primeiro
item do último capítulo. O “Relatório e projeto” descreve uma lei geral para a organização da
3
Originalmente: “Cinq mémoire sur l’instruction publique”. Essa obra será indicada abreviadamente como
“Cinco memórias”.
4
Resumidamente: “Relatório e projeto”.
11
5
No original: “Esquisse d’un tableau historique des progrès de l’esprit humain”. Doravante, essa obra será
referida, simplesmente, como “Esboço” ou “Esquisse”.
6
Tradução brasileira para as “Reflexões e notas sobre a educação”, uma coleção de textos e notas de Condorcet
organizada pela pesquisadora italiana Manuela Albertone.
7
Menciono a tese “Aspectos lúdicos da perfectibilidade política em Condorcet” (1999) e o livro “Instrução
pública e formação moral: a gênese do sujeito liberal segundo Condorcet” (2004), ambos de Sidney Reinaldo da
Silva; e as dissertações: “A arte social em Condorcet: luzes e democracia” (1994), de Sidney Reinaldo da Silva;
“A instrução pública e os princípios de igualdade, liberdade e humanidade em Condorcet” (2002), de Adriana
Mattar Maamari; “Condorcet: luzes da razão e instrução pública” (2007), de minha autoria; “Igualdade,
liberdade e instrução pública em Condorcet” (2007), de Rodison Roberto Santos; e “Autonomia e racionalidade:
os fundamentos da filosofia e do pensamento pedagógico de Condorcet” (2008), de Fábio de Barros Silva.
8
Refiro o livro “Ilustração e história: o pensamento sobre a história no Iluminismo francês” (2001), de Maria das
Graças de Souza; a tese “A república e a democracia em Thomas Paine” (2007), de Adriana Maamari; e a
dissertação “Duas escolas, duas expressões do Iluminismo: Rousseau e Condorcet: o futuro que o passado ousou
projetar” (2010), de Robson Pereira Calça.
9
O texto “Dilemas da moral iluminista”, de Rouanet (2007), opera com uma distinção similar a essa. Ainda
sobre o iluminismo, Cassirer (1994) realça que esse modo de pensar “não acredita mais no privilégio nem na
fecundidade do ‘espírito de sistema’: vê neste não a força, mas o obstáculo e o freio da razão filosófica” (p. 10).
A filosofia já não significa “um domínio particular do conhecimento situado a par ou acima das verdades da
física, das ciências jurídicas e políticas, mas o meio universal onde todas essas verdades formam-se,
desenvolvem-se e consolidam-se” (p. 10). Fortes (2004) assinala que as luzes são caracterizadas pela valorização
do homem e por “uma profunda crença na razão humana e nos seus poderes”, e que “revalorizar o homem
significa antes de tudo encará-lo como devendo tornar-se sujeito e dono do seu próprio destino, é esperar que
cada homem, em princípio, pense por conta própria” (p. 9). O universo “deixava de ser visto como manifestação
de uma transcendência no limite absolutamente incompreensível e se convertia em um campo de exploração a
12
intelectual cujo auge se deu no percurso do século XVIII em torno de filósofos como Voltaire,
Rousseau e Kant, enquanto que a segunda pode ser entendida como a designação de um
movimento cultural não reduzível ao conjunto do que foi pensado e ensinado pelos
pensadores mais proeminentes do período.
O iluminismo, na opinião de Cassirer (1994), não se destaca da soma e da sucessão
cronológica das opiniões ilustradas, isso porque o que singulariza esse movimento está, de
modo geral, na arte e na forma de conduzir um debate de ideias. A filosofia já não mais
significa um domínio particular do conhecimento situado a par das verdades da física, das
ciências jurídicas e políticas, mas o meio universal onde todas essas verdades são formadas,
desenvolvidas e consolidadas.
Comprometidos em descobrir e propagar verdades e em expulsar os preconceitos dos
lugares nos quais eles mais se refugiavam, isto é, nos governos, nas escolas, nas igrejas e nas
corporações, esses filósofos investiram contra os abusos dos regimes políticos e das
confissões religiosas proclamando a independência da razão, advogando o direito inegociável
à liberdade de opinião e de iniciativa, e oferecendo outras compreensões e conceitos para
combater uma ordem social assentada sobre a autoridade dos preconceitos e das superstições.
Cingidos dessa postura crítica e revolucionária, esses homens de espírito e ação empregaram a
filosofia e o talento de escrever:
“[…] desde o gracejo até o patético, desde a compilação a mais erudita e a mais
vasta até o romance ou o panfleto do dia [...] acariciando os preconceitos com
habilidade para desferir-lhes golpes mais certeiros [...] poupando o despotismo
quando este combatia os absurdos religiosos, e o culto quando este se dirigia contra
a tirania [...] mas sempre unidos para mostrar a independência da razão, a liberdade
de escrever como o direito, como a salvação do gênero humano; dirigindo-se com
uma infatigável energia contra todos os crimes do fanatismo e da tirania;
perseguindo na religião, na administração, nos costumes, nas leis, tudo aquilo que
trazia o caráter da opressão, da crueza, da barbárie; ordenando, em nome da
natureza, aos reis, aos guerreiros, aos magistrados, aos sacerdotes, respeitar o sangue
dos homens […] tomando, enfim, como grito de guerra: razão, tolerância,
10
humanidade” (1993, p. 143-44).
ser submetido livremente à capacidade de julgar, comparar, pesar, avaliar, juntar ou separar” (p. 18). O filósofo
comenta, ainda, que “um novo objeto de estudos começa a se desenhar no horizonte: o próprio homem”, e que
“uma nova ‘ciência’ começa a se impor: a História”. Com o estudo do seu passado, os homens percebem “que a
massa de conhecimentos adquiridos pode ser utilizada e posta a serviço do seu próprio bem-estar”. Emerge daí,
“como um corolário necessário de todas estas descobertas, um novo mito, um novo ideal, uma nova ideia
reguladora, ou seja, a ideia de Progresso” (p. 20).
10
Tradução: “[...] depuis la plaisanterie jusqu’au pathétique, depuis la compilation la plus savant et la plus vaste,
jusqu’au roman, ou au pamphlet du jour [...] caressant les préjugés avec adresse pour leur porter des coups plus
certains [...] ménageant le despotisme quand ils combattaient les absurdités religieuses et le culte quand ils
s’élevaient contre la tyrannie [...] mais toujours réunis pour faire regarder l’indépendance de la raison, la liberté
d’écrire comme le droit, comme le salut du genre humain, s’élevant avec une infatigable énergie contre les
crimes du fanatisme et tous ceux de la tyrannie, poursuivant dans la religion, dans l’administration, dans les
mœurs, dans les loix tout ce qui portait le caractère de l’oppression, de la dureté, de la barbárie, ordonnant au
13
nom de la nature aux rois, aux guerriers, aux magistrats, aux prêtres de respecter le sang des hommes [...] prenant
enfin pour cri de guerre raison, tolérance, humanité” (2004, p. 386-387). Não sigo, em outras citações, o padrão
de mostrar o texto original em nota de rodapé, isso porque, nesses casos, só disponho de textos em outras
línguas, ou porque não seria prudente arriscar uma transcrição de textos disponíveis no portal Gallica, da
Biblioteca nacional da França, os quais, no geral, mantém a grafia do século 18, não sendo de fácil decifração.
11
A esperança de Condorcet na renúncia das nações ao direito de declarar guerra é acompanhada de uma
proposta para a instituição de um Tribunal que julgue em nome de todas as nações. O texto “Da influência da
revolução da América sobre a Europa” (1786) propõe que esse Tribunal jurisdicione as diferenças que possam
surgir entre as nações a respeito da remissão de criminosos, da execução de leis de comércio, da violação de
territórios, da interpretação de tratados, das sucessões etc. Os diferentes Estados se reservariam o direito de
executar as sentenças desse Tribunal ou, eventualmente, de apelar à força. Também se faria necessário, advoga
Condorcet, um código destinado a exigir regras de utilidade geral a serem observadas no período de guerra, seja
entre os beligerantes, seja entre eles e os neutros.
12
Marie-Jean-Antoine-Nicolas de Caritat, marquês de Condorcet, ou simplesmente Condorcet, como hoje o
reconhecemos, nasceu em 17 de setembro de 1743 em Ribemont, na Picardia. Órfão de pai logo ao nascer, sua
mãe lhe ofereceu aos 8 anos de idade um preceptor jesuíta. Aos 11, ingressou no Colégio dos Jesuítas de Reims.
Posteriormente, no Colégio de Navarra, em Paris, Condorcet apresentou, aos 16 anos, com singular fortuna, uma
tese de matemática na presença de D’Alembert, Clairant e Fontaine. Seus precoces dotes matemáticos lhe
permitiram apresentar na Academia de Ciências, com apenas 22 anos, seu elogiado “Ensaio sobre o cálculo
integral”, e publicar, com 26 anos, o “Ensaio de análises”. Condorcet ingressou em 1769 na Academia de
Ciências, da qual passou a ser secretário vitalício em 1776. D’Alembert foi quem lhe apresentou, na capital da
França, os intelectuais da Ilustração, com os quais contribuiu na redação de verbetes para a “Enciclopédia”. Em
1782, ingressou na Academia Francesa, da qual chegou também a ser nomeado secretário vitalício. Em 1786,
casou-se com Sophie de Grouchy, jovem de extraordinária formação ilustrada e de ideais republicanos, leitora de
Smith, Voltaire e Rousseau, e tradutora dos textos de Smith e Paine. O talento de Condorcet e sua paixão pelo
bem-público lhe designaram um lugar importante no grande movimento que se iniciava: a revolução Francesa.
Aceitou, em 1790, mesmo ano em que nasce sua única filha, Louise Alexandrine, as funções de membro da
municipalidade de Paris. Nesse mesmo ano, o filósofo fundou com Sieyès a Sociedade de 1789 e dirigiu o Jornal
da Sociedade de 1789. Em 1791, foi nomeado comissário da Tesouraria. Depois da fuga do rei, Condorcet
anunciou sua demissão declarando-se a favor da instituição da república. Foi eleito deputado por Paris na
Assembleia Legislativa, ainda nesse ano, tendo sido designado, desde os primeiros momentos, como membro do
Comitê de Instrução pública, em cujo nome leu o “Relatório e projeto de decreto sobre a organização geral da
instrução pública” (1792). Republicano de tendências moderadas, se opôs à pena de morte decretada contra Luís
XVI de Bourbon e defendeu os deputados girondinos caídos em desgraça. Sua postura independente desvelada
em sua crítica à proposta de Constituição do jacobino Hérault lhe valeu a condenação à morte, imposta pela
Convenção, à pedido de Chabot, por suposta traição. Foragido da justiça, a partir desse momento, Condorcet se
refugiou na casa de madame Vernet, amiga que lhe brindaria amparo durante cinco meses, apesar de também
correr perigo de vida. Escreveu, na clandestinidade, sua obra mais conhecida, o “Esboço de um quadro histórico
dos progressos do espírito humano” (1794). Ao ser decretado que toda pessoa que desse asilo a um proscrito
seria condenada à morte, Condorcet abandona seu refúgio, suscita suspeitas e é feito prisioneiro em Bourg-la-
Reine, local onde aparece morto em sua cela por motivos jamais esclarecidos.
14
realidade do mundo sempre escapa aos propósitos sociais que os cidadãos se autorizam a
cultivar. Examinadas à luz dos séculos que se passaram e, até mesmo, da época que as
recebeu pela primeira vez, de certo modo “fracassaram” as generosas apostas do filósofo
relativas aos destinos da humanidade, mas não perderam força os parâmetros políticos e
educacionais por ele advogados, tanto que muitas de suas apostas político-educacionais ainda
constituem um bom exemplo para pensar justificativas práticas e morais de instituições
republicanas.
O exercício da recordação recebe de Condorcet um lugar fundamental no plano da
instrução pública. O autor reivindica o gozo de princípios e direitos na perspectiva de uma
universalidade atemporal, porém seus textos, a rigor, se reportam a complexas questões
sociais e responsabilidades políticas historicamente situadas. Interpretar esses textos, cujas
teses possam ainda incidir em nosso tempo, constitui uma atividade que exige mediações, sem
as quais se esvanecem evidências compartilhadas em nosso próprio contexto13. Dentre as
13
Os temas consciência histórica e interpretação de textos, tal como são desenvolvidos, respectivamente, por
Gadamer (1998) e Ricoeur (1990), lançam luzes para responder à pergunta acerca do legado de Condorcet para
as atuais instituições políticas e educacionais republicanas. Gadamer (1998) vincula a consciência histórica à
consciência da historicidade daquilo que consideramos presente e ao reconhecimento da relatividade de qualquer
opinião. Essa consciência difere na modernidade do modo pelo qual anteriormente o passado se apresentava a
um povo ou a uma época; a consciência moderna passou a questionar com mais intensidade uma tradição
fechada sobre si mesma e a reconhecer a possibilidade de uma múltipla relatividade de pontos de vista; a
consciência histórica já não escuta “beatificamente” a voz que lhe chega do passado, mas, ao refletir sobre a
mesma, recoloca-a no contexto em que se originou, a fim de ver o significado e o valor relativos que lhe são
próprios. O conhecimento histórico não pretende simplesmente explicar um fenômeno concreto como caso
particular de uma regra geral; esse conhecimento só se utiliza de conhecimentos gerais para compreender o
fenômeno histórico em sua singularidade e unicidade; o que lhe interessa não é saber como os homens, os povos,
os Estados, se desenvolvem em geral, mas, sim, como este homem, este povo, este Estado, veio a ser o que é, ou
seja, como todas essas coisas puderam acontecer e encontrar-se aí. Ricoeur (1990), por sua vez, caracteriza a
ação de interpretar textos como uma atividade que se distancia tanto do autor quanto dos leitores que,
interpelados diante do texto, passam a interpretá-lo. O que se saberia do amor, do ódio e dos sentimentos morais
se não fossem referidos à linguagem e articulados pela literatura? O autor, através dessa indagação, destaca que a
compreensão humana está ligada aos sinais de humanidade depositados nas obras de cultura; que aquilo que
justamente poderia nos parecer mais contrário à subjetividade, a textura do texto, agora aparece como o próprio
“medium”, indispensável, em que os homens compreendem a si mesmos. O texto corresponde a uma mediação
pela qual nos compreendemos a nós mesmos e, nesse caso, compreender é, também, compreender-se diante do
texto; não se trata de impor ao texto sua própria capacidade finita de compreender, mas de expor-se ao texto e
receber dele um si mais amplo, ou seja, uma proposição de existência respondendo, da maneira mais apropriada
possível, à proposição de mundo. O texto passa a ser, nos marcos dessa compreensão, mais que um caso
particular de comunicação inter-humana, senão que o próprio paradigma do distanciamento na comunicação. Ou
seja, o distanciamento no texto não constitui simplesmente um problema para a interpretação, senão que uma
condição da interpretação. A interpretação, para Ricoeur (1990), corresponde à réplica desse distanciamento
fundamental constituído pela objetivação do homem em suas obras de discurso, comparáveis à sua objetivação
nos produtos de seu trabalho e de sua arte. A escrita, nesse sentido, torna o texto autônomo em relação à intenção
do autor, ou seja, o que o texto significa não coincide mais com aquilo que o autor quis dizer. O texto, tal como
acontece no ato de ler, deve poder descontextualizar-se de maneira a deixar-se recontextualizar numa nova
situação. As exposições precedentes acrescentam razões para que se reconheça a contingência e, na mesma
medida, as potencialidades compreensivas das iniciativas de dizer, explicar e traduzir seja o que for que possa ter
acontecido no mundo humano. As indiciações de mundo aqui explicitadas assumem, de antemão, a convicção
segundo a qual de fato são selecionados, motivadamente ou não, os rastros através dos quais são constituídos os
diversos enredos narrativos.
15
desigualdade à igualdade social. Esses movimentos implicam, por assim dizer, um recuo dos
limites da inteligência humana e um afastamento dos preconceitos. A história dos progressos
do espírito humano também abrange a dos erros gerais, que são consequência da atividade
reflexiva dos homens, fruto de uma desproporção existente entre aquilo que eles conhecem e
aquilo que acreditam precisar ou desejam conhecer:
Coutel (2004) comenta, a esse respeito, que Condorcet toma os homens numa história
individual e comum que, nos seus diversos momentos, pode estar ou não orientada ao bem-
estar comum, à busca da felicidade e de verdades; que a perfectibilidade faz dessa orientação
responsabilidade dos homens; que a decadência está no horizonte de toda instituição política
que não recorde seus princípios e sua natureza; e que a história humana, por essa perspectiva,
corresponde ao que o homem faz dela. É no horizonte dessa compreensão da condição
humana que Coutel situa o propósito da instituição do cidadão e do exercício da cidadania:
14
Original desse fragmento do “Esboço”: “Les opérations de l’entendement qui nous conduisent à l’erreur ou qui
nous y retiennent depuis le paralogisme subtil qui peut surprendre l’homme le plus éclairé, jusqu’aux rêves de la
démence n’appartiennent pas moins que la méthode de raisonner juste ou celle de découvrir la vérité à la Théorie
du développement de nos facultés individuelles. Et par la même raison, la manière dont les erreurs générales
s’introduisent parmi les peuples se propagent, se transmettent, se perpétuent, fait partie du tableau historique des
progrès de l’esprit humain” (2004, p. 242). Recorro, para ilustrar o roteiro da tese, a citações diretas e indiretas
da obra de Condorcet, apresentando em nota de rodapé os respectivos trechos na língua original, isso nos casos
em que disponho de textos editados e de boa qualidade. São usadas edições clássicas dos principais textos de
Condorcet publicados na França, especialmente a edição crítica “Tableau historique des progrès de l’esprit
humain: projets, esquisse, fragments et notes (1772-1794)”, dirigida por Jean-Pierre Schandeler, Pierre Crépel e
pelo grupo Condorcet (Éric Brian, Annie Chassagne, Anne-Marie Chouillet, Charles Coutel, Michèle Crampe-
Casnabet, Yvon Garlan, Christian Gilain e Nicolas Rieucau).
17
convivência recíproca entre os cidadãos e fragiliza a força de hábitos mais grosseiros que nos
familiarizariam com a violação de princípios racionais e de direitos naturais15.
O segundo capítulo explicita elementos do imaginário político e educacional de
Condorcet. Animado ante as possibilidades desencadeadas pelos eventos revolucionários ao
final do século 18, Condorcet avalia que as repúblicas dos Estados Unidos da América e da
França constituíram exemplos virtuosos de como se pode combater a tradição do despotismo e
estimular o cultivo do laicismo na esfera pública. O movimento do laicismo, pensado como o
cultivo do espírito público, deve ser difundido entre os cidadãos nas instituições políticas e
educacionais como modo de impedir na esfera pública o predomínio de um espírito de facção,
partido ou seita. Constitui um dever de cidadania combater a promoção de qualquer
monopólio político ou religioso no campo da instrução pública. Condorcet consente em evitar
o sucesso de facções políticas e religiosas nessa instância republicana. Ao lado disso, ao
denunciar a desigualdade de riquezas e de gênero, bem como desigualdades étnicas e
religiosas, o autor pretende convencer seus leitores da importância de se efetivarem princípios
e direitos declarados inegociáveis e imprescritíveis. Isso ocorre, por exemplo, nos textos
“Reflexões sobre a escravidão dos negros” e “Sobre a admissão do direito de cidadania às
mulheres”.
O capítulo três, por sua vez, articula os temas expostos nos capítulos anteriores com
considerações de Condorcet acerca da república e da instrução republicana. Para o filósofo, a
instituição do cidadão deve ser permanente, mas não uniformizadora; a instrução republicana
deve despertar e desenvolver talentos e profissões; além de transmitir definições, valores e
rotinas de aplicação técnica, ela deve estimular o exercício da cidadania e a redução das
desigualdades sociais.
O último capítulo evidencia aspectos do atual debate republicano sobre a educação,
relacionando-o com os principais enunciados de cada um dos capítulos e explicitando as
estreitas relações que Condorcet estabelece entre os temas moral, política e educação
republicana. Questiona-se, sobretudo, de que maneira o autor poderia contribuir para esse
15
Condorcet, de acordo com Silva (2004), entende que os homens se identificam moralmente à medida que se
aproximam: “a agregação social cria uma interdependência da felicidade. A essa tendência liga-se a própria
civilização, que resulta da alteração das condutas, da necessidade de abandonar hábitos grosseiros e modificar
inclinações hostis. Entre os elementos civilizadores, destacam-se o comércio, a hospitalidade e a formação de
alianças para a defesa mútua ou a produção de algum outro benefício comum, como a caça, a defesa, por
exemplo. Da análise dos sentimentos de benevolência, que permitem a integração dos indivíduos em
comunidades cada vez maiores, surgem as ideias morais mais sofisticadas” (p. 69). Uma instrução adequada
deve promover o desenvolvimento equilibrado da sensibilidade e da racionalidade, tornando o indivíduo capaz
de se preocupar não apenas consigo mesmo, com o interesse de sua família e de sua nação, mas também com o
destino de toda a humanidade.
19
debate. Temas tais como: bem-estar comum; economia política; formação moral e
profissional; inclusão social; talentos; radicalidade e moderação política; igualdade e
diferenças; e perfectibilidade, por exemplo, são ainda reconhecidos como questões centrais da
política e da sociedade republicana.
As considerações finais, por sua vez, ressaltam que a república e o exercício livre da
democracia exigem uma opinião pública ilustrada pelo acesso universal à educação
republicana. Considera que merecem destaque, por sua atualidade, as seguintes ideias de
Condorcet: as diferenças nas capacidades de aprendizagem devem ser respeitadas, desde que
não definam hierarquias escolares discriminadoras; os indivíduos devem ser preparados para
que continuem aprendendo depois de sair da escola, a fim de que possam reconhecer seus
deveres e os motivos pelos quais devem cumpri-los; a instrução pública proposta pelo autor é
tomada como instituidora da república e do cidadão republicano: é através dela que a
república aspirada pode tornar-se efetiva.
20
Capítulo I
O poder público constituído por uma república deve ser integrado por cidadãos que se
comprometam com diretrizes e ações favoráveis ao bem-estar comum. Pensando desse modo,
Condorcet atribui à república e à sociedade política a obrigação de, nesse cenário, instruir
cada cidadão a cultivar sentimentos, tais como os de compaixão e humanidade, decisivos para
se assegurar o bem-comum em condições sociais de igualdade e liberdade. Em outros termos,
as instâncias do poder público devem favorecer a moralidade, isso para que cada cidadão
concentre seus interesses não apenas em si mesmo, na sua família ou na sua nação, mas,
também, nos destinos de toda a humanidade.
As primeiras ideias morais16 encontram sua origem na sensibilidade natural dos
homens, isto é, na sua capacidade de sentir prazeres e dores diante de ações e objetos
apresentados aos sentidos e reunidos na memória. A razão, entendida como modo de pensar
próprio dos homens, permite não só exercitar como, também, investigar essa sensibilidade
humana. Ela torna possível - admite Condorcet (2013) - um aprimoramento indefinido das
ciências, das artes e da moral. O cultivo de sentimentos morais, para o autor, pode ser
estendido de cada homem e de cada povo à humanidade, não estando restrito ou resultando
simplesmente de boas relações contratuais. O “Esboço” descreve o sentimento de amor à
humanidade como uma:
[...] compaixão terna, ativa, por todos os males que afligem a espécie
humana, aquele de um horror por tudo aquilo que, nas instituições públicas,
nos atos do governo, nas ações privadas, acrescentava novas dores às dores
inevitáveis da natureza17 (p. 157).
16
Ideias morais são distinguíveis de regras estabelecidas por religiões ou sistemas filosóficos. Recorre-se, no
caso das ideias morais, a uma análise crítica de sentimentos naturais. Alengry (1971) indica que Condorcet
reprova na religião a incerteza, a intolerância, os cálculos interessados e as tentativas de dominação. A moral
teológica lhe parece perigosa porque ela poderia pretender extrair somente da religião os motivos de conduta e
porque os sacerdotes normalmente se autorizavam a ditar deveres antes de os julgar e os ensinar. Isso parecia à
Condorcet incompatível com a razão comum e o interesse geral dos homens.
17
Do original: “[...] compassion tendre, active pour tous les maux qui affligent l’espèce humaine, d’une
invencible horreur pour tout ce qui dans les institutions publiques, dans les actes du gouvernement, dans les
actions privées, ajoutait des douleurs nouvelles aux douleurs inévitables de la nature” (2004, p. 391).
21
interesses gerais dos cidadãos e à ordem segundo a qual normatizamos o meio social.
Condorcet pondera que as justificações de uma conduta virtuosa não estão alicerçadas
originariamente no temor de punições, senão que implicam um ânimo ou disposição para agir
em favor do bem-estar comum.
18
Extraído do original: “[…] auxquelles la nature même attache la portion plus importante, la plus prétieuse du
bonheur ou du malheur auquel il est destiné" (2004, p. 233-34).
22
adquirir ideias morais. Segundo Condorcet, na medida em que analisamos nossos próprios
sentimentos, descobrimos, através das capacidades de sentir prazer e dor, a origem das ideias
morais: “o fundamento das verdades gerais que, resultando dessas ideias, determinam as leis
do justo e do injusto; e os motivos de conformar nossa conduta a isso, extraídos da própria
natureza de nossa sensibilidade, daquilo que se poderia chamar nossa constituição moral19”
(2013, p. 150).
Sentimentos produzidos pelos homens, tais como a compaixão e a humanidade, só
podem se desenvolver e não se corromper se forem continuamente cultivados20. A maioria
dos homens só encontra na vida comum deveres simples e fáceis de cumprir, daí que, para
Condorcet, os sentimentos morais neles se debilitariam “se, ao colocar sob seus olhos as ações
dos outros homens, não se exercitasse pelos movimentos que desperta neles, pelos juízos que
são obrigados a fazer, esse sentimento íntimo tão pronto, tão delicado, naqueles que o
cultivaram, tão lento, tão grosseiro em quase todos os outros21” (2008, p. 161).
Condorcet admite que a moral está vinculada inicialmente à sensibilidade dos homens,
assim como o restante de suas ideias. No entanto, para o autor, nossa sensibilidade adquire no
exercício público da razão um sentido capaz de ser compartilhado e expandido. A
sensibilidade, sem o cultivo da racionalidade comum, não garantiria uma moral independente,
uma vez que os sentimentos podem ser corrompidos e manipulados. Em outros termos: ainda
que encontre suas raízes na sensibilidade, a moralidade não é inata, não representando um
órgão ou sentido interno especial do homem22.
19
Original de fragmento do “Esboço”: “[…] le fondement des vérités générales qui, résultant de ces idées,
déterminent les lois immuables, nécessaires du juste et de l’injuste; enfin, les motifs d’y conformer notre conduit,
puisés dans la nature même de notre sensibilité, dans ce qu’on pourrait appeler, en quelque sorte, notre
constitution morale” (1988, p. 223).
20
Considerei a palavra “cultivar”, oriunda do latim “cultivare”, ou seja, da ação de preparar e cuidar da terra para
que produza, apropriada para sinalizar o sentido de “exercício de sentimentos e ações que possam tornar cada
cidadão menos embrutecido e mais racional nos julgamentos que elabora. O termo exala, ainda, os sentidos de
“dedicar-se à”, “aplicar-se ao desenvolvimento de”, “desenvolver-se” e “aperfeiçoar-se”. Não apresenta, por essa
via, o significado de mera reprodução de um determinado modo de ser ou pensar. Para Condorcet, as ideias
morais não decorrem simplesmente dos sentimentos, senão que estão mediadas por uma racionalidade humanista
e crítica.
21
Extraído das “Cinco memórias”: “[...] si, en mettant sous leurs yeux les actions des autre hommes, on
n’exerçait point, par les mouvements qu’ils sont alors forcés de faire, ce sentiment intime si prompt, si délicat
dans ceux qui l’ont cultive, si lent, si grossier dans presque tous les autres” (1994, p. 186).
22
A título de comparação, para D’Alembert os princípios da moral ligam-se ao bem-estar do todo e das partes
que compõem a sociedade. Para ele, a natureza permite aos homens conhecer regras morais por uma espécie de
inspiração e as apreciar pelo prazer interior que sentem ao segui-las. A própria natureza, desse modo, conduziria
a multidão pelo encanto da impressão, impulso que lhe seria conveniente. O sábio, mais que um cidadão comum,
poderia penetrar os fins das regras morais: “Enquanto os outros homens limitam-se aos sentimentos que a
natureza lhes proporcionou para com os semelhantes, também o sábio procura e percebe a íntima união desses
sentimentos com seu próprio interesse” (1994, p. 14). Para Shaftesbury (1996) e Hutcheson (1996), a
sensibilidade constitutiva do homem inclui uma capacidade de juízo para aprovar ou reprovar ações e objetos; as
sensações de aprovação, agradáveis ou não, estão ligadas aos interesses gerais da própria espécie; a virtude
23
A espécie humana, para Condorcet, não sobreviveria caso não exercesse a faculdade
de se compadecer. Sem cultivar esse sentimento, nenhuma família poderia ser formada e
manter-se estável. A humanidade compartilha esse sentimento moral primitivo com outras
espécies de animais, particularmente aquelas exteriormente semelhantes a ela, como certos
mamíferos. A sensibilidade, entendida desse modo, constitui a base não só do conhecimento,
isto é, das sensações, da memória, da imaginação e das ideias abstratas, mas, também, da
coesão social. A dor dos seres sensíveis causa mal-estar num indivíduo não corrompido,
assim como a satisfação da necessidade e o alívio da dor alheia causam prazer em quem os
promove. Entretanto, a sensibilidade pode ser distorcida e mesmo a compaixão pela dor do
implica uma disposição para o bem-estar comum; e as justificações da conduta virtuosa não estão alicerçadas
originariamente no temor de punições. Esses filósofos, a partir de diferentes argumentos, compartilham com
Condorcet da convicção segundo a qual está entre nossas possibilidades efetivas cultivar sentimentos e
normalizar ações de tal modo que se privilegie o bem-estar comum. Shaftesbury descreve o sentido moral como
a capacidade humana de formar noções gerais sobre os objetos apresentados aos sentidos, tanto dos seres
exteriores como das ações e afecções tais como a compaixão, a gentileza e a gratidão, trazidas à mente por
reflexão. Assim como os objetos sensíveis expressam imagens de corpos, cores e sons em movimento diante da
visão ocular, também os objetos morais e intelectuais, repletos de formas e imagens, atuam na mente em todas as
ocasiões, mesmo quando ausentes os objetos reais que instigaram os sentimentos. Um indivíduo bom ou virtuoso
tem suas inclinações e afecções, disposições da mente e temperamento convergentes com o bem da sua própria
espécie, ou com aquele sistema no qual está inserido e do qual participa. Os atributos da retidão, integridade ou
virtude caracterizam aqueles indivíduos que se mantêm dispostos ao exercício de um sentimento reto e íntegro
não só com relação a si próprios, mas também para com a sociedade. A ausência de tais atributos resulta em
depravação, corrupção e vício. O filósofo avalia que ninguém pode ser pervertido ou mal exceto pela deficiência
ou fraqueza das afecções naturais, ou pela violência do egoísmo, ou por motivos que são claramente não
naturais. Para Shaftesbury, o interesse privado e o bem de cada um se conciliam com o trabalho para o bem
geral. Se uma criatura deixar de promover esse bem, a virtude, ela estará em falta para consigo mesma,
porquanto deixou de promover a sua própria felicidade e bem-estar. A virtude coincide com o bem-comum e
também alicerça a felicidade de cada criatura em particular. O homem descobre por si mesmo que o despertar
das paixões, mobilizado em favor do mérito e da dignidade, e empregado em proveito do afeto social e da
simpatia humana, é motivo de deleite, permitindo uma satisfação muito maior nas esferas do pensamento e do
sentimento do que tudo o que possa ser feito em termos de sentidos e de apetite comum. Hutcheson, por sua vez,
acentua que o prazer oriundo das nossas percepções sensíveis oferece a primeira ideia de bem natural
(felicidade) e que o interesse pessoal (amor por si mesmo) nos estimula a alcançar objetos suscetíveis de prazer
(imediatamente bons) ou que promovam outros objetos agradáveis (vantajosos). O autor distingue a instância da
moral do bem ou mal naturais. Bens naturais como saúde, força e sagacidade não provocam necessariamente
aprovação e boa vontade em relação àqueles que os expressam. As sensações de aprovação e de boa vontade
afloram, contudo, de bens morais tais como honestidade, generosidade e sinceridade. Normalmente respeitamos
e nos compadecemos por aqueles afetados por males naturais, tais como dor, pobreza e morte, contudo
condenamos aqueles que expressam qualidades percebidas como moralmente más, tais como insídia, crueldade e
ingratidão. As noções de bem ou mal naturais não despertam, pois, desejo de bem público, mas sim o que é bom
individualmente. A sensação de prazer, contudo, é anterior à vantagem ou interesse, ou seja, não percebemos
prazer em objetos porque é de nosso interesse, mas objetos ou ações são vantajosos ou intentados de acordo com
o amor por si mesmo porque deles recebemos prazer. A virtude está numa razão composta da quantidade de bem
e o número de pessoas que dele desfrutam. Já o mal moral, ou vício, está numa razão composta do grau de
infelicidade e do número de sofredores. A melhor ação, desse modo, é aquela que produz a maior felicidade para
o maior número e a pior é aquela que ocasiona infelicidade. É boa aquela ação em que os efeitos bons
preponderam sobre os maus ao serem úteis para muitos e perniciosos para poucos. Hutcheson pondera, contudo,
que a importância moral da dignidade das pessoas pode compensar os números, assim como os graus de
felicidade ou infelicidade, pois obter um bem insignificante para muitos e um mal imenso para poucos pode ser
mau, enquanto que um bem imenso para poucos pode preponderar sobre um pequeno mal para muitos.
24
outro pode tornar-se uma fraqueza, se uma e outra não forem apoiadas e contidas pelo
sentimento moral de justiça (1968, vol. 6, p. 546).
A moral, por essa perspectiva, não decorre de um sentido específico, ainda que resulte
da constituição natural dos seres sensíveis. O prazer e a dor produzidos respectivamente pelo
bem-estar e pelo sofrimento alheios são constitutivos de nossa capacidade moral. Condorcet
distingue duas formas de manifestação da compaixão: a natural, inerente à própria estrutura
familiar e integrada pelo sentimento de socorro mútuo; e a outra resultante da reunião de
indivíduos oriundos de diferentes famílias. Embora, por um lado, possam unir-se em virtude
de interesses egoístas, os indivíduos criam, por outro, laços de identidade moral, o que
permite uma união perene ao invés de uma aliança momentânea. O autor destaca no “Esboço”
que o espaço da moral estende-se possibilitando surgir sentimentos que constituem a
civilização:
23
Do original: “Des relations plus fréquentes, plus durables avec les mêmes individus, de l’identité des intérêts,
des secours mutuels qu’ils se donnaient soit dans des chasses communes soit pour résister à um ennemi ont dû
naître également et le sentiment de la justice et un attachement réciproque entre les membres de la societé.
Bientôt il s’est transformé en attachement pour la societé ele même” (2004, p. 246).
25
cria necessariamente vínculos morais, tal como aqueles nascidos no seio da união familiar,
marcados pela benevolência e pela prática da equidade. Na medida em que as sociedades se
ampliam e os elos familiares não são mais facilmente perceptíveis, os vínculos sociais
formam-se mais por interesses.
Silva (2004) comenta que, para Condorcet, em sociedades integradas unicamente pelo
princípio do interesse, o aperfeiçoamento da espécie humana é lento, penoso e incerto. Ronda
elas a ameaça de decadência moral e de retorno à barbárie. Em outros termos, os progressos
do gênero humano estão sempre ameaçados quando prevalece uma união por mero interesse.
Ao se comunicarem, habitualmente, os indivíduos influenciam-se através do discurso, da
imaginação e da sensibilidade. Os efeitos corruptores da moral ocorrem, sobretudo, com a
transmissão de preconceitos, recebidos passivamente quando a inteligência humana ainda não
está bem formada, momento em que não existe ainda uma consciência distinta dessas
operações, quando a adesão é imediata.
Sentimentos morais, ao serem racionalmente cultivados, podem favorecer uma
interdependência entre a felicidade individual e a felicidade pública. Tanto D’Alembert
(1994) - para quem o sábio, contrariamente à maioria dos homens, não se limita a
sentimentos, senão que busca fundar a moral na noção de interesse esclarecido - quanto
Condorcet (2010a) reconhecem o altruísmo e o interesse bem esclarecido como elementos
constituintes da moral. Contudo, o que D’Alembert sugere apenas para uma elite, Condorcet
propõe para toda a sociedade. Segundo o autor, a indignação nasce diante de um ato que
produz uma dor alheia voluntariamente e sem necessidade. Essa é a origem da noção de
injustiça. Já o remorso nasce do mal-estar que acompanha as injustiças que o próprio
indivíduo comete. Somente indivíduos corrompidos não apresentariam semelhante
sentimento: o de horror à injustiça.
Smith (2002), no que respeita a esse debate, admite que o homem, por mais egoísta
que se suponha, dispõe de princípios em sua natureza que o fazem interessar-se pela sorte dos
outros e a considerar a felicidade deles necessária para si mesmo. É o caso, segundo ele, do
sentimento de piedade ou compaixão, emoção que sentimos ante a desgraça dos outros quer
quando a vemos quer quando somos levados a imaginá-la. Os objetos primários de nossas
percepções morais são ações de outros homens, enquanto que os juízos morais sobre nossa
própria conduta são aplicações sobre nós mesmos de decisões já proferidas a respeito da
conduta de outros. Ou seja, primeiro julgamos a conduta alheia e depois aplicamos esses
juízos sobre nós mesmos e adquirimos, com isso, um senso de dever e um sentimento de sua
autoridade sobre todos os outros princípios que condicionam nossas ações.
26
Piedade ou compaixão são palavras que denotam solidariedade pelo sofrimento alheio.
O termo simpatia, contudo, assegura Smith (2002), embora originalmente de igual
significado, pode ser usado para denotar nossa solidariedade para com qualquer paixão. A
simpatia, em algumas ocasiões, parece surgir da mera visão de certa emoção em outra pessoa.
As paixões, em outras ocasiões, parecem transfundidas de um homem ao outro
instantaneamente, previamente a qualquer conhecimento do que as estimulou na pessoa
primeiramente atingida. Em resumo: Smith compreende que toda faculdade de um homem é a
medida pela qual ele julga a mesma faculdade em outro. Desse modo, julgamos a visão alheia
por nossa visão, sua razão por nossa razão, seu ressentimento por nosso ressentimento, seu
amor por nosso amor etc. Não possuímos outro modo de julgá-las.
O que singulariza Condorcet nesse mosaico de considerações morais é o fato de ele
rechaçar a hipótese segundo a qual a origem e o fenômeno da moral pudessem ser explicados
a partir de um sentido específico, equiparável ao da visão ou da audição. O sentido moral
corresponde, para o autor, à faculdade de experimentar diversos graus de prazer ou de dor
pela recordação de ações passadas, o projeto de ações futuras e o espetáculo ou a narração de
ações dos outros.
Kintzler e Coutel (2001) comentam que, para Condorcet, o hábito está na origem da
moralidade. Ele é adquirido na infância e desenvolvido como consequência da reflexão acerca
da sensibilidade e dos sentimentos de dor e prazer. Os homens distinguem-se de outros seres
sensíveis porque, ao raciocinarem, tornam-se capazes de formar ideias e refletir sobre elas.
Esses são dados naturais da moral e não frutos de uma consciência superior ou de um instinto
divino. A consciência moral, nos termos do filósofo, nasce da sensibilidade e da razão, mas
não pode ser considerada inata, uma vez que é produzida pelos homens.
O objeto inicial da moralidade é a receptividade à dor e ao prazer. Essa receptividade,
acentuam Kintzler e Coutel (2001), coloca o homem ao lado dos animais no reino do sensível:
a experiência do sofrimento e do bem-estar é comum a eles. Porém, o animal não transcende a
aversão à dor e o propósito do bem-estar comum. O homem, a seu modo, distingue-se de
outros animais justamente por desenvolver uma moralidade. A sensibilidade pode ser
fortalecida e instruída ou, ao contrário, debilitada e destruída. Compete à instrução pública
conduzir ao grau de ideias morais o gérmen sensível que seria sufocado por uma vida rude e
grosseira, ou deformado e afastado de seus objetos por uma instrução demasiadamente
artificial. O sentimento de compaixão é uma das fontes da moralidade, mas não define nem é
27
Para Silva (2004), a corrupção da moral, tal como compreendida por Condorcet, dá-se,
também, por exemplo, quando se ensina que se pode agredir um ser humano em nome de um
valor supostamente superior, como a religião, a riqueza, a fama e a pátria. Por meio da
comunicação, o erro de um homem torna-se comum a todos. Com isso, todo um povo pode
24
Silva (2004) anota que, para Condorcet, ser justo e virtuoso consiste em: “seguir o melhor raciocínio possível
e acessível ao nosso entendimento, no momento da decisão [...] O respeito pelo outro, a virtude, depende de uma
instrução bem conduzida. Sem esta, não há moralidade, pois, sendo assim, não existe autonomia. O ensino deve
referir-se à aprendizagem que torna a pessoa independente [...] Para Condorcet, é na instrução pública que se
deveria fundar a moral, e não na educação propriamente dita. O indivíduo é educado por tudo que o rodeia, mas
nem tudo o que recebe do meio em que vive lhe garante a autonomia moral. Esta é uma conquista da instrução”
(p. 18).
25
Fragmento do “Esboço”: “L’habitude de réfléchir sur sa propre conduite, d’interroger et d’écouter sur elle sa
raison et sa conscience, celle des sentiments doux qui confondent notre bonheur avec celui des autres ne sont-
elles pas une suite nécessaire de l’étude de la morale bien dirigée? Une plus grande égalité dans les conditions du
pacte social, cette conscience de sa dignité qui appartient à l’homme libre, une éducation fondée sur une
connaissance approfondie de notre constitution morale ne doivent-elles rendre ces principes d’une justice
rigoureuse et pure, ces mouvemens habituels d’une bienveillance active, éclairée, d’une sensibilité délicate et
généreuse dont la nature a placé le germe dans tous les coeurs, et qui n’attendet pour s’y dévolopper que la douce
influence des lumières et de la liberté? Et de même que les sciences mathématiques et physiques servent à
perfectionner les arts emploiés pour nos besoins les plus simples, n’est-il pas également dans l’ordre nécessaire
de la nature que les progrès des Sciences morales et politiques exercent la même action sur les motifs qui
dirigent nos sentiments et nos actions?” (2004, p. 449).
28
aderir a princípios preconceituosos e praticar injustiças, sem que sinta remorsos. Desprovida
de uma instrução adequada, a moral corrompe-se e, com isso, o indivíduo torna-se incapaz de
reconhecer no outro um ser sensível semelhante a si mesmo, e de tratá-lo como tal. Os
sentimentos morais são susceptíveis, pois, aos efeitos da comunicação.
O entusiasmo, por sua parte, se manipulado tecnicamente por doutrinadores,
charlatões e demagogos, pode desvirtuar os sentimentos morais, transformando-os em paixões
a serviço do preconceito, do fanatismo e da intolerância. A afecção de bem-querer aperfeiçoa-
se, o sentimento de justiça desenvolve-se, mas, ao mesmo tempo, estas afecções podem
corromper-se e esses sentimentos podem desvirtuar-se. A principal responsável por esses
impasses e desvios é, na opinião de Condorcet (1968, vol. 6), a própria má educação,
especialmente aquela recebida nas primeiras relações sociais, acrescida dos interesses mais
duráveis decorrentes dela.
A capacidade de se sensibilizar com a dor alheia deve ser fortificada pelos hábitos, e
nenhuma ocasião de exercê-la deve ser deixada de lado. Um dos objetivos da formação moral
é tornar uma ação cruel fisicamente improvável. Desse modo, Condorcet (1968, vol. 3) não
deseja referir-se a um condicionamento mecânico, um adestramento do indivíduo, mas à
formação esclarecida de uma atitude habitual de benevolência, capaz de nos indignar ante os
malfeitos.
O poder público não deve associar a instrução moral ao ensino de uma doutrina
religiosa ou ideológica - atenta Condorcet (2008). O filósofo recusa a relevância do ensino
religioso na instrução pública, assim como toda forma de catecismo moral e de métodos que
levem ao desenvolvimento da sensibilidade ancorados no entusiasmo. Conduzindo-se dessa
maneira, apenas se produziriam fanáticos, posto que, enfraquecida a razão, só se
desenvolveria a violência das paixões. A religião pode corromper os sentimentos morais e é
capaz de destruir o sentimento de remorso. Tal feito ocorre, por exemplo, quando alguém
mata ou agride em nome de Deus. Nesse caso, não há mais compaixão, apenas fanatismo. A
própria ideia de que a confissão é uma forma de se livrar da culpa de crimes cometidos atesta
essa corrupção da moral.
O ensino de ideias morais ocorre com a reflexão sobre sentimentos e eventos ligados à
ação humana. Condorcet (1994) acentua no texto “Cinco memórias” que o valor pedagógico
da história está na apresentação de fatos que podem “excitar a virtude pelo exemplo”. Mas
seria necessário tomar cuidado para não impor às crianças uma visão da história susceptível
de ser aceita sem crítica. Coutel (2004) comenta que o esforço de Condorcet está concentrado
em encontrar mediações entre o amor de si (ou estima de si), o amor familiar, o amor à pátria,
29
26
Esta nota, ainda que não compare considerações morais de Tugendhat com outras produzidas por Condorcet
ou seus contemporâneos do “Setecentos”, é relevante na medida que destaca diferentes acepções da palavra
moral, sobretudo o sentido de um sistema aberto de obrigações recíprocas ou intersubjetivas. Tugendhat (2003)
acentua que a palavra “dever” pode ser entendida no sentido de “obrigações intersubjetivas”, mas também pode
ter o sentido da pergunta “como é para mim bom viver?”, neste caso sem o sentido de uma obrigação. Para o
filósofo, as sociedades humanas não podem sobreviver sem um sistema de obrigações recíprocas. Comparados
às outras espécies, entre as quais o comportamento altruísta parece ser determinado geneticamente e funcionar
por instinto, os homens se distinguem com a capacidade de aprender normas, condição que, tanto para o
indivíduo como para a sociedade, significa maior liberdade e flexibilidade, já que os sistemas de normas podem
mudar-se historicamente segundo as condições do meio social. Reagimos normalmente com um afeto negativo
ou nos indignamos quando alguém transgride as normas. Trata-se de um afeto que, por suposto, qualquer
indivíduo da sociedade tem com relação a qualquer outro, ou seja, trata-se de um afeto compartilhado que
também o indivíduo transgressor tem quando outros transgridem as normas, daí se abrindo um afeto negativo
correspondente quando ele mesmo as transgride: um sentimento de culpa, no sentido de algo que se antecipa à
indignação dos outros. Tem-se, também, esse sentimento de culpa, no momento em que os outros não sabem da
transgressão das normas. O conjunto de indignação e sentimento de culpa constitui, para o filósofo, o que são as
sanções afetivas em relação às normas morais, sanções sem as quais não se pode entender no que consiste o
dever moral. Compreendidas como um sistema que restringe a liberdade dos membros da sociedade, as normas
morais somente são aceitas pelos indivíduos se de fato eles crêem que elas podem ser justificadas. As normas
não podem ser justificadas como tais, mas sim a alguém e, já que devem ser recíprocas, elas tem que ser, por sua
vez, justificadas reciprocamente. Justifica-se não só que se tem que agir de um certo modo, mas também que tais
normas devem ser aceitas. E aceitar as normas significa estar disposto a louvar-se e a repreender-se
reciprocamente em relação a elas, ou seja, significa estar disposto a ter os sentimentos de indignação e de culpa.
Outro caráter da moral pode ser encontrado, aponta Tugendhat, na compreensão de um consenso moral, o qual,
diferente de um contrato, não se refere simplesmente às coisas que se devem ou não fazer e aceitar. Refere-se,
isso sim, ao fato de que normalmente nos pomos de acordo a louvar ou a repreender as mesmas coisas. Isso pode
significar que temos sentimentos equivalentes em relação à infração das normas e que nos pomos de acordo
sobre um conceito de bom, um conceito em relação ao qual nos louvaremos ou nos repreenderemos mutuamente.
O consenso moral, por essa perspectiva, distingue-se fundamentalmente de um contrato, justamente por
relacionar-se com um conceito reciprocamente entendido de bom. Para o filósofo, o conceito de um indivíduo
moralmente bom tem que estar, nesse sentido, relacionado aos interesses dos membros de uma sociedade moral,
e isso significa que o conceito de bom também tem que estar relacionado ao conceito de bom para cada um.
Tugendhat assevera que de uma moral relacionada com os interesses surge um conceito de justiça igualitária, ou
seja, se o sistema moral não for bom igualmente para todos ele pode ser considerado injusto e isso significa que
uma parte dos indivíduos tem que simplesmente aceitar essas normas à força, sem que possam ser justificadas. O
sentido do justo, para o filósofo, está intimamente imbricado com o sentido do moralmente bom. Toda moral,
inclusive a religiosa, possui um conceito de justo, conceito que se refere a um dos aspectos do conceito do
moralmente bom, justamente o relativo ao equilíbrio entre os indivíduos. Reconhece-se, nesse sentido, que em
qualquer sistema de normas morais o equilíbrio entre os indivíduos tem que ser determinado de um modo ou de
outro. O autor atenta que esse equilíbrio, numa moral religiosa, é determinado pela autoridade religiosa, mas no
caso de uma moral que se justifique reciprocamente, amparada nos interesses, entende-se que os indivíduos
possam engendrar um conceito de equilíbrio igualitário, porquanto por essa justificação cada um terá valor igual.
30
27
Texto literário escrito em 1787. Doravante a referência será abreviada: “Cartas de um burguês”.
28
Acerca dos imaginários republicanos e democráticos instaurados e expandidos desde o século 18, Garcia e
Fensterseifer (2009, p. 7-8) anotam que eles “se assentam nos princípios da isonomia, da igualdade de direitos
32
[...] e da ampla participação dos cidadãos nos diversos assuntos de interesse comum”; que as leis são concebidas,
por essa perspectiva, “como originadas da elaboração e do assentimento universal dos cidadãos”, constituindo
“um horizonte jurídico para as ações necessárias e condizentes com propósitos que uniram os membros em
associações políticas”; em outros termos, que o ideário republicano-democrático, “cujas primeiras conceituações
e configurações aparecem na antiguidade greco-romana [...] sofreram profundas alterações nas sociedades
modernas a partir das experiências revolucionárias na América e na França do século 18”.
33
As boas leis, dizia Platão, são aquelas que os cidadãos amam mais que a
própria vida. Efetivamente, como poderiam ser boas as leis que necessitam,
para o seu cumprimento, forças estranhas às da vontade do povo e prestam a
justiça o apoio da tirania? Mas para que os cidadãos amem as leis sem deixar
de ser verdadeiramente livres, para que conservem essa independência da
razão, sem a qual o ardor pela liberdade não é mais que uma paixão e não
uma virtude, é necessário que conheçam esses princípios da justiça natural,
esses direitos essenciais do homem, cujas leis não são outra coisa que seu
desenvolvimento ou sua aplicação [..] é necessário que ao amar as leis
saibamos julgá-las29.
A instituição da república Francesa, para Condorcet (1990), não deveria estar fundada
exclusivamente na dogmática jurídica:
29
Trecho original do “Relatório e projeto”: “Les bonnes lois, disait Platon, sont celles que les citoyens aiment
plus que la vie. En effet, comment les lois seraient-elles bonnes, si, pour les faire exécuter, il fallait employer une
force étrangère à celle du peuple, et prêter à la justice l'appui de la tyrannie ? Mais pour que les citoyens aiment
les lois sans cesser d'être vraiment libres, pour qu'ils conservent cette indépendance de la raison, sans laquelle
l'ardeur pour la liberté n'est qu'une passion et non une vertu, il faut qu'ils connaissent ces principes de la justice
naturelle, ces droits essentiels de l'homme, dont les lois ne sont que le développement ou les applications [...] Il
faut qu’en aimant les lois, on sache les juger”.
34
ditados pela natureza e pela razão, aos quais haveis apreendido a reconhecer,
em vossos primeiros anos, como verdade eterna. Enquanto os homens não
obedecerem exclusivamente à sua razão e receberem suas opiniões duma
opinião estranha, em vão se quebrarão todas as algemas e em vão
procurariam ser úteis estas verdades impostas; o gênero humano nem por
isso ficaria menos dividido em duas classes: a dos homens que raciocinam e
a dos homens que creem; a dos senhores e a dos escravos30.
Condorcet (1945a) sugere que uma nação deve sustentar seu governo se o qualificar
como bom, ou mudar se o considerar mal e o corrigir caso encontrar defeitos. A maioria do
povo, dessa maneira, não exerceria a violência. Uma classe de homens privada dos direitos
que lhe cabem como cidadãos pode sentir indiferença ante um sistema político instituído
quando não chegar a ser inimiga dele. O único meio de ligar o povo à conservação da ordem
é, por essa perspectiva, fazer consistir na ordem seu bem-estar e segurança.
O povo norte-americano havia oferecido ao final do século 18 um exemplo à
humanidade: ainda que submetido tranquilamente a leis cujos princípios e efeitos antes havia
repudiado, e que obedecesse respeitosamente aos depositários do poder público, esse mesmo
povo não havia renunciado o direito de denunciar à nação defeitos e erros expressos em leis e
na ação de representantes políticos. Condorcet (1945a) elogia, nesse aspecto, os cidadãos dos
Estados Unidos da América, seja por respeitarem e obedecerem ao ordenamento jurídico, seja
por salvaguardarem o direito de criticar os termos de tais legislações.
A dignidade humana deveria ser assegurada no mundo social, não bastando sua
inscrição em livros ou no coração de homens virtuosos, assevera Condorcet (1945a).
Felizmente, homens ignorantes já poderiam encontrar o exemplo dessa dignidade em
empreendimentos do povo norte-americano, cujo ato de independência continha uma
exposição simples de princípios racionais mediante os quais se estabeleceram direitos
irrecusáveis dos homens. Em nenhuma outra nação esses mesmos princípios haviam sido
conhecidos com tanta integridade.
A filosofia que havia vociferado “razão, tolerância, humanidade” passou, ante os fatos,
da teoria à prática para afrontar problemas inéditos. Coutel (2004) enumera cinco princípios
30
Original do “Relatório e projeto”: “Ni la Constitution française ni même la Déclaration des droits ne seront
présentées à aucune classe de citoyens, comme des tables descendues du ciel, qu'il faut adorer et croire. Leur
enthousiasme ne sera point fondé sur les préjugés, sur les habitudes de l'enfance; et on pourra leur dire: Cette
Déclaration des droits qui vous apprend à la fois ce que vous devez à la société et ce que vous êtes en droit
d'exiger d'elle, cette Constitution que vous devez maintenir aux dépens de votre vie ne sont que le
développement de ces principes simples, dictés par la nature et par la raison dont vous avez appris, dans vos
premières années, à reconnaître l'éternelle vérité. Tant qu'il y aura des hommes qui n'obéiront pas à leur raison
seule, qui recevront leurs opinions d'une opinion étrangère, en vain toutes les chaînes auront été brisées, en vain
ces opinions de commande seraient d'utiles vérités; le genre humain n'en resterait pas moins partagé en deux
classes, celle des hommes qui raisonnent et celle des hommes qui croient, celle des maîtres et celle des esclaves”.
35
31
Silva descreve da seguinte maneira o sentido da palavra perfectibilidade em Condorcet: “A noção de
perfectibilidade refere-se à condição dos seres capazes de alterarem o curso das coisas, impondo-lhes novas
direções. Os ganhos do homem em relação às determinações da ‘natureza’ resultam do poder de aperfeiçoar-se.
Embora o acaso fundamental não exista no mundo, pois tudo está encadeado conforme causas invariáveis, a
condição geral do homem é a de quem lida com ele, uma vez que não podemos conhecer com segurança absoluta
ou certeza as poucas determinações que constatamos. Por outro lado, a própria intervenção humana no curso das
coisas gera incerteza. A marcha da razão encontra obstáculos superáveis, dos quais se livra cada vez mais, tais
como o obscurantismo, o fanatismo e a tirania [...] A perfectibilidade é o processo contínuo de superação dos
limites postos pela resistência da natureza, isto é, dos ‘obstáculos nos quais a renovação é inevitável a cada novo
progresso’. O homem pode perder suas conquistas ou avanços, caso deixe de continuar progredindo” (1999, p.
241-42).
36
Instituir o cidadão implicaria, antes de tudo, instruí-lo e garantir sua autonomia diante do
Estado, das igrejas e da tradição.
Condorcet (2013) aposta que o espírito humano não encontra um limite definido em
sua capacidade de progredir ou de se aperfeiçoar. O quadro da história da humanidade, além
de mostrar como esses progressos transcorreram os séculos, nos autoriza a prever sua
continuidade nos domínios incertos do futuro32. O autor afirma essa possibilidade de
aperfeiçoamento à luz de sua teoria da probabilidade e dos motivos de crer. O homem, por
essa compreensão, teria afastado de si ao longo do tempo costumes mais rudes e preconceitos,
logrando, com isso, recuar, por assim dizer, os limites de sua própria inteligência.
Rashed (1974) observa que a questão da probabilidade deve a Condorcet um
desenvolvimento sem precedentes. A noção de motivo de crer ou motivo de credibilidade
constitui um recurso para se decidir entre diferentes juízos e opiniões opostas. Consiste em
regra de escolha e meio de decisão, não se reduzindo à propriedade de um juízo ou de uma
relação entre duas proposições. O comentador transcreve trecho do verbete “Probabilité”, da
“Encyclopédie méthodique”, no qual Condorcet argumenta acerca do motivo de crer:
Juízos humanos e condutas por eles informadas estão apoiadas, sugere Condorcet, na
suposição de que há leis invariáveis no curso dos acontecimentos naturais e de que a
observação dos fenômenos permite conhecer tais leis. Se a probabilidade de um evento é
maior que a de um outro, oposto, teríamos mais motivos para crer que o primeiro aconteça
que de crer que não aconteça; quanto maior vantagem tenha a probabilidade de um
acontecimento sobre outro contrário, maior força deveria ter este motivo de crer; a crença,
desse modo, seria proporcional a essa probabilidade. Rashed (1974) considera que essas
proposições de Condorcet não são independentes, porquanto dependem da primeira. Elas
poderiam ser deduzidas de uma assertiva mais geral: uma probabilidade muito grande
32
Silva (2004) assinala que, para Condorcet, a instrução pública correlaciona-se com a ideia de progresso: “O
otimismo político, moral e pedagógico funda-se na ideia de perfectibilidade do gênero humano que produziria
uma civilização mundial de repúblicas livres. Contudo, esse processo de modernização não estaria isento de uma
recaída na barbárie. A única forma de se evitar isso é a promoção de uma instrução moral para uma sociedade
democrática, aberta, tanto em relação ao futuro de suas instituições, quanto aos outros povos do planeta” (p. 22).
37
entranha um motivo de crer próximo da certeza. Se for admitido que uma grande
probabilidade implique motivo maior de crer, também o será que esses motivos são
proporcionais à probabilidade.
No que diz respeito às aplicações do cálculo de probabilidade, Condorcet relata que
elas:
Condorcet, de acordo com Silva (2004), se inspira nas filosofias de Bacon, Descartes e
Locke para propor um ensino capaz de formar um indivíduo racional e livre de preconceitos
ou da distorção do conhecimento. A importância de Bacon estaria na sua teoria dos ídolos e
no seu método de libertar a mente de diversos tipos de erros de aprendizagem. Ocorre que
Condorcet propunha para uma geração inteira o que Bacon admitiu ser possível apenas a um
filósofo. Já Descartes seria importante por ter demonstrado não só um novo método de
raciocinar, mas por ter mostrado que tudo poderia ser submetido a ele. Unicamente desse
modo os homens poderiam libertar-se do jugo “da tradição, da opinião e da autoridade”. Esse
processo de libertação intelectual culminaria com Locke, a quem coube mostrar os segredos
do intelecto, até então escondidos, e a possibilidade de uma análise precisa da gênese das
ideias. Locke teria indicado como se orientar no labirinto do entendimento e no caos de ideias
incompletas, incoerentes, indeterminadas, que o acaso nos oferecia sem ordem, e que nós
recebíamos sem reflexão.
Condorcet (2013) explana que Aristóteles já havia reconhecido uma grande verdade,
um passo inicial no conhecimento do espírito humano: que nossas ideias devem sua origem às
nossas sensações. Nesse sentido, a sensibilidade do homem seria, pois, anterior à sua
inteligência. Foi Locke, assinala o autor, quem mostrou que uma análise precisa das ideias,
33
Original do “Esboço”: “[…] appris également à reconnaître les divers degrés de certitude où nous pouvons
espérer d’atteindre, les vraisemblances d’après lesquelles nous pouvons adopter une opinion et en faire la base de
nos raisonnemens sans blesser les droits de la raison, ou dirigir notre conduit sans manquer à la prudence ou sans
offenser la justice. Elles montrent quells sont les avantages ou les inconvéniens des diverses forms d’élection,
des divers modes de decisions prises à la pluralité des voix, les différens degrés de probabilité qui en peuvent
resulted, celui que l’intérêt public doit exiger suivant la nature de chaque question” (2004, p. 415).
38
reduzindo-as sucessivamente a ideias em sua origem mais imediatas, ou mais simples em sua
composição, constitui um meio de não se perder num caos de noções incompletas. Por essa
análise, provou-se que todas as nossas ideias são o resultado das operações de nossa
inteligência sobre as sensações que recebemos, ou combinações dessas sensações que a
memória nos representa simultaneamente, mas de maneira que a atenção se detém, que a
percepção se limita a apenas uma parte de cada uma dessas sensações. Se as palavras não
correspondem a uma idéia bem determinada, elas podem despertar sucessivamente diferentes
ideias em um mesmo espírito.
Locke, na opinião de Condorcet (2013), foi o primeiro a ousar fixar os limites da
inteligência humana, ou antes, a determinar a natureza das verdades que ela pode conhecer,
dos objetos que ela poder abarcar. Logo esse método tornou-se o de todos os filósofos; e foi
aplicando-o à moral, à política, à economia política que eles conseguiram seguir nessas
ciências uma marcha quase tão segura quanto aquela das ciências naturais; conseguiram só
admitir ali verdades provadas.
Silva (2004) comenta que Condorcet teria tomado de Hobbes a ideia segundo a qual o
raciocínio equivale a um cálculo bem feito. A teoria do motivo de crer consistiria num
empreendimento que buscava conferir precisão matemática a todos os momentos do
raciocínio. Haveria, da mesma forma, elementos do pensamento de Hume na obra de
Condorcet, uma vez que o filósofo escocês também teria equiparado o conhecimento a um
hábito que poderia produzir crenças com elevado índice de probabilidade, o que lhe garantiria
controle técnico e confiabilidade.
Condorcet acredita na possibilidade de desenvolver no indivíduo capacidades
intelectuais e morais. Esse processo teria um momento de maturação em que o indivíduo se
tornaria capaz de fazer uso autônomo de suas faculdades, ou de dominar a arte de aprender
por si mesmo. Isso resultaria de uma instrução negativa, cujo objetivo seria o de capacitar o
indivíduo para analisar a gênese de suas convicções. Contudo, Condorcet (1994) propôs,
também, uma educação positiva capaz de proporcionar ao educando acesso ao patrimônio
coletivo do espírito humano, a conhecimentos proporcionados pelos progressos da filosofia e
das ciências, as quais seriam fundamentais para a produção de uma razão comum.
O indivíduo, ao perceber uma invariância na produção de fenômenos, tende a agir
como se o futuro fosse igual ao passado. Contudo, de acordo com Condorcet, isso seria
apenas uma conjetura prática, porquanto não existiria a possibilidade de se demonstrar
rigorosamente essa hipótese. Do mesmo modo, por essa perspectiva moral, juízos e condutas
fundam-se sempre em uma crença, ou seja, na aceitação do princípio da analogia. A crença
39
erros e enganos.
A experiência e a razão, acentua Condorcet, são necessárias para nos instruir e nos
defender dessa força carregada pela intensidade das impressões. Tais instâncias nos ensinam a
não julgar e a não nos conduzir segundo sensações enganosas. A prudência nos induz a aderir
a uma proposição provável somente nos casos em que descobrirmos a impossibilidade de
combinar novos dados, e enquanto dura esta impossibilidade.
A perfectibilidade34, assim como outras capacidades humanas, tais como a razão, a
imaginação e a consciência, equivalem a dados constitutivos e distintivos dos homens. Garcia
(1999) comenta que, para Rousseau, essas capacidades são supérfluas ou ficam em repouso no
estado de natureza, e que elas não podem se atualizar ou se tornar ativas a não ser na vida em
sociedade. Daí que a sociedade não se opõe necessariamente à natureza. A capacidade da
perfectibilidade está implicada com a viabilização da escolha e da produção de outras
possibilidades para os homens. Por essa compreensão, o homem normalmente toma
consciência de sua liberdade e de sua espiritualidade, isto é, de sua qualidade de agente livre,
podendo aperfeiçoar-se em meio às circunstâncias e desenvolver outras capacidades e
paixões.
Condorcet entende, similarmente, que a perfectibilidade caracteriza a condição
humana e as indefinidas possibilidades de sua ação no mundo. Sem embargo, narrativas e
argumentos produzidos pelo filósofo, acrescidos de suas esperanças num devir de maiores
felicidades ao homem e às sociedades republicanas, o diferenciam sutilmente de Rousseau.
Essa diferença aparece no modo enfático com que Condorcet expõe sua convicção segundo a
qual as luzes contribuíram para o aperfeiçoamento do espírito humano:
34
Maamari (2002) avalia que o sentido de perfectibilidade é diverso nos textos de Rousseau e Condorcet, uma
vez que se, para este, a perfeição das artes e das ciências é pensada positivamente, pois conduziria a humanidade
à prosperidade geral e à felicidade, para aquele, no entanto, tal progresso histórico é imaginado como negativo,
estando na causa da corrupção da alma dos homens. Nos termos de Rousseau: “Onde não existe nenhum efeito,
não há nenhuma causa a procurar; nesse ponto, porém, o efeito é certo, a depravação é real, e nossas almas se
corromperam a medida que nossas ciências e nossas artes avançaram no sentido da perfeição” (1958, p. 15). Na
crítica de Rousseau à ciência e às artes transparece, aponta Dal Bosco (2011), a tese segundo a qual o processo
de socialização provoca no ser humano a perda de sua unidade consigo mesmo através da dependência do olhar
dos outros. Por essa via, sentir-se alienado significa, ao mesmo tempo, sentir-se incapaz de decidir por conta
própria. A formação de um aluno soberano e autônomo implicaria, então, formá-lo racionalmente com
capacidade argumentativa. A educação proposta por Rousseau exigiria, portanto, o emprego da razão, mas não
tomando ela como um mero procedimento dirigido a fins. Segundo o comentarista, Rousseau buscou ampliar o
conceito de razão incluindo nele a dimensão sensível do ser humano. Dimensão implicada com a sociabilidade
moral e a tese forte de ouvir a voz da consciência como critério do julgamento moral de nossas ações. É com
base nessa compreensão que o autor genebrino teria buscado fundamentar seu projeto de educação natural.
41
35
Trecho original do “Esboço”: “Nous montrerons comment la liberté, les arts, les lumières ont contribué à
l’adoucissement, à l’amélioration des mœurs, nous ferons voir que ces vices si souvent attribués aux progrès
mêmes de la civilisation étaient ceux des siècles plus grossiers que les lumières que la culture des arts ont
tempérés quand elles n’ont pu les détruire. Nous montrerons que ces eloquente déclamations contre les sciences
et les arts sont fondées sur une fausse application de l’histoire et qu’au contraire les progrès de la vertu ont
toujours accompagné ceux des lumières, comme ceux de la corruption en ont toujours suivi ou annoncé la
decadence” (2004, p. 292).
36
Em 1778, o monarca prussiano Federico II criou um concurso de dissertações filosóficas questionando se era
útil para o povo ser enganado, seja induzindo ele a novos erros seja mantendo nos que já se encontrava.
Condorcet escreveu sua dissertação para esse concurso, mas não chegou a apresentá-la. Eis as questões: “I – São
úteis para o povo os novos erros?; II – Uma vez que a razão estabeleceu verdades destinadas a servir de regra
moral a nossas ações, é útil para o povo apoiar estas verdades com erros, sob pretexto de que é mais fácil fazer-
lhes adotar um erro absurdo que fazer-lhe entender as provas de uma verdade?; III – É, ao menos, útil inspirar
erros aos povos unicamente com vistas a extrair deles motivos sensíveis e ao seu alcance para conformar sua
conduta às regras da moral?; IV – Se o erro é, em geral, sempre prejudicial, não haverá ao menos alguns objetos
acerca dos quais seja, por assim dizer, necessário, seja por que a razão é por si só insuficiente, seja porque a
verdade não esteja ao alcance de todos os homens? Não será necessário o erro para certa classe de homens?; V –
Se consideramos aos homens entregues a seus erros, poderia ser útil deixar-lhes assim, destruir uma parte dos
erros para deixar subsistir o resto ou combater um erro mediante outros menos prejudiciais?; VI – Se os erros
não são de utilidade geral, poderiam ser de utilidade momentânea para um povo particular?; VII – Há algum
inconveniente para dizer por completo a verdade ao povo? Quais meios são úteis e lícitos usar para atacar os
erros populares?; VIII – Acaso não há verdades que se fariam prejudiciais para o povo porque este não as
42
da utilidade, no que diz respeito ao povo, de ele ser enganado por seus governantes, seja
proporcionando-lhes novos erros, seja mantendo-os nos que já dispõe. Condorcet (2010a)
pondera que essa questão, do modo como foi apresentada, só poderia ser proposta num país
que fosse livre ou que estivesse submetido a um rei que não tivesse necessidade de que seus
povos estivessem submetidos a preconceitos para ser obedecido por eles.
Para Condorcet (2010a), não se trata de supor, antes de tudo, que tal opinião é uma
verdade ou tal outra é um erro, ou de estabelecer que uma é útil e a outra prejudicial. Não se
pergunta se tal opinião é verdadeira ou falsa, útil ou prejudicial, senão, em geral, se uma
opinião falsa pode ser útil ou, para ser mais preciso, se do fato mesmo de que uma opinião
seja falsa se deve concluir que não pode ser útil quando tal opinião, qualquer que seja, se
converte em uma opinião nacional. O autor menciona o caso de um crente e um ateu: eles
poderiam convencionar que é útil dizer a verdade ao povo, porém um, para prová-lo,
mostraria que a ideia de um ser supremo é uma opinião perigosa porque conduz quase
infalivelmente à superstição; e o outro pretenderia provar sua opinião mostrando que a ideia
de um ser supremo é necessária para a moral.
Condorcet (2010a), pois, toma o cuidado de não considerar como verdadeira ou falsa
nenhuma opinião particular no curso de sua investigação sobre a (in)conveniência de enganar
o povo. No caso em tela, não se está tratando de verdades mais que segundo a influência que
elas tem sobre a felicidade dos homens. Não são as verdades físicas as que seriam
prejudiciais, senão uma falsa aplicação das mesmas, ou um erro moral. Limita-se o filósofo a
considerar em sua dissertação as verdades morais e sua influência sobre a felicidade dos
homens reunidos em sociedade.
Suponhamos que um homem tenha analisado exatamente ideias morais mais
complexas, designadas por palavras de sua linguagem, que conheça fatos, bem como a
influência que exerce sobre seus sentimentos e conduta diferentes causas físicas ou morais
que atuam sobre os homens; e que desse conhecimento de fatos haja sabido deduzir regras
gerais conforme as quais tem que conduzir-se para ser feliz; e, também, aquelas a respeito das
quais deve desejar que se ajuste a conduta dos demais. Esse homem, que deseja
necessariamente ser feliz, quererá que as leis de seu país estejam combinadas de forma tal que
lhe propiciem a maior felicidade possível. Suponhamos, agora, que todos os homens de um
país conhecem igualmente a verdade: como cada um quererá tudo o que lhe resulte mais
entenderia e instruiriam a quem querem proporcionar-lhe os meios que lhe impedem ilustrar-se?” (2010a, p. 95-
96).
43
vantajoso e raciocinará justamente, está claro que a maior parte quererá também
necessariamente o que seja mais útil para a maioria. Entendida desse modo, a vontade da
maioria estará sempre de acordo com a razão, isto é, com a utilidade geral, a justiça e o
interesse comum. Essa reunião, segundo Condorcet (2010a), seria o verdadeiro motivo, o fim
e a perfeição de toda Constituição social.
Um homem pode querer, por interesse, uma coisa injusta, isto é, prejudicial para todos.
Ele poderá ser detido pela vontade da maioria, vontade eficaz porque se reúne com a força, e
vontade que é seguida porque supomos que a maioria conhece seus interesses e saberá,
igualmente, quanto lhe importa reunir-se. Se cada um empregar suas forças para sua própria
felicidade e todos empregarem a força comum, se depreenderá disso a maior felicidade
possível para a sociedade e para cada indivíduo. Para Condorcet (2010a), a felicidade dos
indivíduos enquanto tais e dos indivíduos enquanto dependem de leis sociais, será igualmente
tanto mais segura quanto mais conhecida seja a verdade.
O conhecimento de algumas verdades, aponta Condorcet (2010a), não nos livrará de
todos os erros, porém diminuirá seu número. Escritores que se tornam apologistas de erros
populares não prestaram atenção ao fato de que o abuso de algumas verdades, mescladas com
muitos erros, e o uso útil de tais verdades, foi esquecido. Nunca é a verdade enquanto tal o
que é prejudicial, e ainda a verdade unida aos erros faz menos mal e maior bem que o que hão
podido fazer por si sós os erros. Pensada dessa maneira, a verdade é de por si útil, ainda que
não se a conheça senão pela metade, e seria prejudicial substituí-la pelo erro.
Supondo-se que fosse do interesse da maioria oprimir uma classe mais débil ou menos
numerosa, neste caso a maioria, instruída por essa verdade, poderia tratar de perpetuar a
opressão, e quanto mais ilustrada, mais eficazes e seguros seriam os meios que adotasse:
então a maioria que sacrificasse desse modo a minoria por seus próprios interesses seria
injusta e, em consequência, a verdade haveria produzido um mal, perora Condorcet (2010a).
Assim ocorria, por exemplo, na opressão legal de mulheres, crianças e escravos, supondo que
estivessem em menor número ante seus amos.
Condorcet (2010a) argui que a classe opressora nutre um interesse diferente e separado
do interesse da classe oprimida e, por isso mesmo, se pode dizer que a verdade que conhece
lhe é útil e que seria igualmente útil para a classe oprimida conhecer essa verdade, já que se
não estivesse enganada não buscaria outra coisa que os meios mais seguros para evitar a
opressão. Também se pode dizer, pois, que estas duas classes constituem, por assim dizer,
duas nações, ainda que estejam situadas num mesmo território. Para o filósofo, o maior bem
de cada corpo de homens, assim como de cada indivíduo, é justamente conhecer verdades.
44
Para que a opressão possa ser útil ao opressor, é necessário que o oprimido seja presa
da superstição, ou esteja privado da razão, admoesta Condorcet (2010a): essa é a razão pela
qual a submissão imbecil de alguns povos era muito cômoda para seus sacerdotes 37, e porque
a submissão de bestas de carga proporciona tanta utilidade aos homens. É certo que
haveríamos partido com excessiva vantagem se houvéssemos querido admitir a proposição
conforme a qual existe uma regra moral de justiça tal que resulta útil para o gênero humano e
para cada homem, justificando-se que todos e cada um dos homens submetessem a ela sua
própria conduta.
Excessiva vantagem, reconhece Condorcet (2010a), também instituiríamos se essa
regra moral tivesse por base só o interesse, unido a um sentimento natural, ou um sentido
moral, ou uma lei fundada na natureza das coisas e à qual tivesse dado sanção um ser eterno,
ou, enfim, a livre vontade de dito ser. Em qualquer caso, a conclusão que poderíamos extrair
da existência dessa lei seria igualmente verdadeira. Bastaria que esse interesse que tem o
homem por ser virtuoso se desse na maior parte de suas ações, sem que fosse necessário supor
existir em todas elas.
Condorcet (2010a) assevera que a suposição de uma regra moral poderia ser
contemplada como constante, sem derrogar a lei que nos temos imposto e que consiste em não
admitir “a priori” como verdadeira nenhuma opinião particular. O autor, porém, adverte que
não é necessário admitir essa proposição para poder concluir que o benefício geral do gênero
humano, de uma nação, de um grupo de homens, consiste em conhecer verdades acerca de
objetos gerais da sociedade, qualquer que seja dita verdade. A busca da verdade é difícil para
o homem. Suas paixões podem impedir-lhe de conduzir-se segundo seu interesse real e
permanente. Condorcet indaga se, diante dessa contingência, caberia paliar algum desses
inconvenientes acrescendo a essas verdades certos erros especulativos que se fariam adotar ao
povo, fortalecendo, mediante motivos fundados em opiniões errôneas, interesses racionais em
conduzir-se bem.
Os motivos errôneos tem, para o filósofo, um inconveniente similar ao dos falsos
princípios: se um homem que está convencido de verdades morais não ajustar a elas suas
próprias ações senão à vista desses falsos motivos, se debilitariam necessariamente os
princípios razoáveis, os sentimentos naturais que o levam a manter uma conduta justa. O
indivíduo se verá exposto a carecer em absoluto de moral quando descobrir a falsidade de tais
37
O termo sacerdote, para Condorcet, adquire um significado específico: aquele que controla a educação do
povo, que manipula o povo através de conhecimentos distorcidos ou preconceitos. O sacerdote trama com as
crenças e costumes; arroga ser necessário pensar no lugar de outros indivíduos.
45
motivos errôneos. Condorcet (2010a) avalia que, quanto mais se aproximam os motivos da
verdade, isto é, quanto mais difícil seja estabelecer sua falsidade, menos inconvenientes se
nos apresentarão.
O autor perora que, para um homem, salvo se os preconceitos, o hábito ou a educação
lhe tenham desnaturalizado e corrompido, é tão impossível cometer uma ação que cause dor a
outro - sem experimentar uma sensação dolorosa - quanto cortar-se um dedo sem fazer-se
dano, salvo se for paralítico. Uma moral útil para a felicidade de um povo não trata tão
somente de impedir crimes secretos reservados a grandes criminosos, senão que impedir,
sobretudo, grandes crimes públicos. Para Condorcet (2010a), os motivos naturais bastam para
impedir pequenos crimes inspirados em pequenas paixões. Quanto aos grandes crimes
públicos, tais como a opressão do povo, a destruição da Constituição do Estado, as
proscrições ou os massacres, bastaria que interrogássemos a história e veríamos que são as
luzes e as boas leis o que falta aos povos que foram vítimas desses males, e não motivos
sobrenaturais.
Questiona-se, porquanto a maioria dos homens é presa da ignorância, se não haveria
certas verdades de difícil compreensão que deveríamos substituir pelo erro, ao menos no que
se refere a homens ignorantes, estúpidos ou débeis. Pergunta-se o autor se se deve submergir
no erro aquelas classes de homens a quem as necessidades não deixaram tempo para instruir-
se. O homem, para Condorcet (2010a), não nasce em absoluto com um espírito falso, porém é
fácil fazê-lo adotar como verdades erros ou máximas falsas que tenham aparência de verdade.
O gosto pela sutileza, a vaidade, os preconceitos ligados a nossos interesses e paixões,
multiplicam a falsidade de espírito. Contudo, se em quase todas as partes o povo tem esse
espírito errôneo não é porque seja incontornavelmente ignorante, senão porque em quase
todas as partes se fez todo o possível por torná-los estúpidos e loucos.
Condorcet (2010a) julga ser culpa das leis se um povo não tem nada que ganhar com
ser honrado e se está demasiado frequentemente exposto a cometer crimes para poder prover-
se do necessário. O autor alega não ignorar que, no estado da Europa de sua época,
possivelmente o povo seria incapaz de cultivar um sistema moral mais honesto, porém insiste
que a estupidez do povo seria o resultado de instituições sociais fragilmente ordenadas e da
difusão de superstições. Os homens não nascem estúpidos nem loucos: se convertem em tais.
Se ao povo se lhe fala razoavelmente e se lhe ensinam coisas verdadeiras nos escassos
instantes que pode dedicar-se ao cultivo de seu espírito, se lhe poderia instruir no pouco que
precisa saber. Para o filósofo, nem sequer seria difícil insinuar ao povo a ideia de que deve
respeitar a propriedade do rico, a não ser porque:
46
Por essa perspectiva, só na medida em que são perversas as instituições é que o povo
pode parecer, com tanta frequência, um pouco ladrão, por princípio. Em geral, seja qual for o
princípio de moral, virtude ou religião que ofereça a um povo, não terá ele nunca moral,
virtude nem princípios senão quando o homem tenha interesse em tê-los, ou melhor, quando
os homens não creiam ter um grande interesse em carecer deles. Para Condorcet (2010a),
conquanto se tenha mais interesse em eleger o bem em lugar do mal, basta para que o homem
eleja sempre o bem.
A moral, compreendida desse modo, visa aos próprios fundamentos da sociedade, a
construir suas virtudes úteis e ativas. Condorcet (2010a) elogia a moral de Platão, Epíteto,
Marco Aurelio, Cícero e Sêneca. Na opinião do autor, quando se lê com prevenção códigos de
moral religiosa, muito inferiores parecem se comparados aos dos mencionados filósofos. Na
religião, sentencia o filósofo, encontram-se máximas descaradamente falsas, exageradas,
capazes de enfraquecer os homens, ou de convertê-los em inúteis ou perigosos entusiastas
para a sociedade.
As religiões se fundam em livros, em usos antigos e na autoridade de sacerdotes,
avalia Condorcet (2010a). Um reformador de uma religião diminuiria a autoridade dos
sacerdotes, ou submeteria livros e usos à autoridade da razão, porém não poderia fazer isso
sem limitações. Enquanto esses livros fossem considerados autênticos, tudo o que
contivessem se transformaria em sagrado e a razão deveria limitar-se a entendê-los melhor.
Desse modo, uma reforma haveria substituído a autoridade de sacerdotes pelo fanatismo de
particulares, o que seria um bem ou, ao menos, um mal menor. A razão humana haveria
quebrado uma parte de suas cadeias, porém o que ficasse delas poderia ser ainda mais
duradouro.
Condorcet (2010a) considera que crenças, por exemplo, numa estátua milagrosa à qual
estivesse vinculado o destino de um império, em oráculos que anunciassem uma vitória, ou a
38
Do original: “1º: parce qu’il regarde les richesses comme une espèce d’usurpation, de vol fait sur lui, et
malheuresement cette opinion est vraie en grande partie; 2º: parce que son excessive pauvreté le fait toujours se
considérer dans le cas de la nécessité absolue, cas où des moralistes même très-sévères ont été de son avis; 3º:
parce qu’il est aussi méprisé et maltraité comme pauvre, qu’il le feroit après s’être avili par des friponneries”.
47
persuasão de que se seria eternamente feliz se se morresse pelo próprio país, produziram
grandes efeitos e as imaginações que se viram comovidas por elas creram que era útil
empregar esses meios. Fortes licores, aponta o autor, tem o mesmo poder e, sem embargo,
seria engraçado erigir a embriaguez como princípio político, ainda que fosse um mal menor,
porque a embriaguez, na opinião do filósofo, é um vício menos vergonhoso que a superstição:
soldados ébrios em um dia de batalha podem ser ao dia seguinte homens razoáveis, porém
soldados fanáticos não serão nunca outra coisa que loucos perigosos.
Entre os erros particulares que se supõem sejam úteis para cada nação, alguns autores
falam do amor à pátria; uns para favorecer mais a causa do erro, confundindo com o erro um
sentimento natural e necessário para a manutenção da sociedade; outros, porque confundiram
com o verdadeiro amor à pátria o orgulho nacional ou alguns preconceitos locais. É
impossível, destaca Condorcet (2010a), que o homem sobreviva em sociedade sem que uma
grande parte de sua felicidade particular não dependa da bondade das leis, da riqueza nacional
e da prosperidade pública. O interesse de qualquer particular, desse modo, estaria unido ao
interesse da sociedade. Toda desgraça pública, todo revés que sofresse uma nação, teria
seguramente uma débil influência sobre um grande número de particulares, porém também
uma grande influência sobre outro grande número. É impossível que o espetáculo da desgraça
que afeta a quem nos rodeia nos seja alheia absolutamente, que não excite em nós sentimentos
dolorosos. O autor equipara a ideia de que existam cem mil desgraçados ao seu redor a uma
dor tão real como um ataque de gota. O amor pela pátria, pois, só poderia significar um
sentimento natural inspirado simultaneamente pelas duas causas morais que atuam sobre nós:
nosso próprio interesse e nossa benevolência para com os outros.
Há algum inconveniente em dizer ao povo verdades? De que instrumentos é lícito
servir-se para atacar erros populares? – questiona o filósofo. No que diz respeito à busca da
verdade e sua difusão, Condorcet (2010a) atenta:
mudança arrasta consigo alguns e, ainda que estejam sempre muito por cima
do mal que querem destruir, se deve tratar de diminuir tais males. Não basta
fazer o bem; é preciso fazê-lo bem. Sem dúvida, há que destruir todos os
erros, porém como é impossível fazê-lo com todos de uma vez, se deve
imitar o sábio arquiteto que, obrigado a derrubar um edifício, e conhecedor
de quão unidas estão suas partes, o faz demolir de forma que sua caída não
seja nada perigosa39 (p. 123-124).
Os erros que devem ser destruídos com muita precaução são aqueles que podem influir
na conduta privada ou pública dos homens. Condorcet (2010a) questiona: a) um povo apoia
sua moral sobre uma falsa crença religiosa; como haverá de destruir seus prejuízos sem que o
vício quede sem freio?; e b) um povo ignora seus direitos políticos e o meio de recuperá-los;
como fazê-los conhecer tais direitos sem turbar a paz desse povo? Não há, para o autor, mais
que três meios gerais para influir no espírito dos homens: obras impressas, legislação e
educação. Um desses meios atuará sobre o povo ilustrando-o e atacando prejuízos mediante
leis; os outros meios podem atuar de modo imediato sobre o povo através de líderes que
queiram estabelecer a verdade. Primeiro se ilustrará a obra impressa; as leis e a educação
dirigida por essas leis rematarão a tarefa. O filósofo acentua que é necessário fazer um esforço
para não destruir a moral ao destruir os extravagantes fundamentos em que estupidamente se
buscou para ela apoio.
No que respeita às verdades que, ao ilustrar os homens acerca de seus direitos,
poderiam causar perturbações naqueles países nos quais eles vivem oprimidos - afetando a
ordem pública e subvertendo o Estado, sem trazer nenhum bem fictício ou real - Condorcet
(2010a) observa que necessariamente há um grande número de verdades políticas úteis para
os homens, bem como para os chefes de nações. O autor supõe dois casos extremos: um único
homem que é dono absoluto de um povo, e um povo tão livre como possa sê-lo e, no qual, em
consequência, somente o conjunto do povo disponha de autoridade absoluta.
39
Do original: “En jettant un coup-d’oeil sur ce globe, en examinant à quelles erreurs absurdes et cruelles les
homes sont livrés, en voyant qu’il existe des contrées, ou des parties entières du monde, où sur quelque genre
que ce soit, il n’y a pas une seule vérité clairement établie, où tout ce qu’on croit sur-tout est faux; en songeant
enfin que dans le siècle le plus éclairé, dans les pays où les lumières ont fait le plus de progrès, les erreurs
religieuses sont le partage de Presque tous les homes; que parmi ceux qui y ont échappé, les neuf dixièmes ne
font pas moins la dupe d’erreurs politiques presque aussi grossières, et qu’il y a moins peut-être d’hommes
absolument sans préjugés que les théologiens ne comptent des justes, on sera étonné sans doute que nous
paroissons craindre que les homes ne voient trop clair. Mais ce n’est pas aussi cette crainte qui nous arrête. La
vérité une fois connue sera utile, mais le passage de l’erreur à la vérité peut être accompagné de quelques maux.
Tout grand changement en entraîne nécessairement après lui; et quoiqu’ils soient toujours bien au-dessous du
mal qu’on veut détruire, on doit chercher à les diminuer. Il ne suffit pas de faire le bien, il faut le bien faire. Il
faut sans doute détruire toutes les erreurs; mais, comme il est impossible qu’elles le soient toutes dans un instant,
on doit imiter un sage architecte qui, oblige de détruire un bâtiment, et sachant comment les parties en sont
unies, le démolit de manière que sa chute ne soit point dangereuse”.
49
1) O problema dos limites que deva ter o poder legislativo, qualquer que
possa ser o corpo que o exerça, ainda que se trate da nação em assembleia.
Efetivamente, se pode examinar se o poder legislativo tem o direito de impor
penas pelas opiniões, ou de excluir do Estado a quem não adote tal crença,
ou de castigar como crimes o que é indiferente na ordem do direito natural;
2) Até que ponto pode alienar o povo sua soberania e confiá-la a um homem
ou a um corpo de forma que tal homem ou tal corpo tenham um verdadeiro
direito a ela?; 3) Quais são, em particular, num Estado como o que
descrevemos, os limites do poder supremo?; e 4) Quando um soberano
sobrepassa seus direitos, ou viola o de seus cidadãos, em que casos tem tais
cidadãos o direito de resistir ou opor-se com força a um direito que deixa de
sê-lo?40 (p. 128).
Condorcet (2010a) propõe que o exame dessa terceira questão seja, em cada Estado,
um direito e um dever dos cidadãos: a discussão das duas primeiras questões não tem
inconveniente, desde que não afete à quarta. Sempre é útil conhecer os próprios direitos,
porém nem sempre é prudente fazê-los valer, nem é legítima qualquer forma de fazê-lo. O
limite que separa a razão comum do espírito de seita é este, o qual também separa a verdade
das falsas consequências extraídas de um raciocínio. Com efeito, se sucedesse que homens
instruídos acerca de seus direitos os fizeram valer de forma funesta para seus concidadãos,
perturbando a paz do Estado sem restabelecer os direitos de quem deles foi privado, não é à
40
Fragmento do original: “1º: La question des limites que doit avoir le pouvoir legislative, quel que puisse être le
corps qui l’exerce, fût-ce meme la nation assemblée. On peut en effet examiner si le pouvoir legislative a le droit
d’établir des peines pour des opinions, d’exclure de l’état ceux qui n’adoptent pas une telle croyance, de punir
comme des crimes, ce qui est indifférent dans le droit naturel; 2º: Jusqu’à quel point le people peut aliéner la
souveraineté et la confier, soit à un home, soit à un corps, de manière que cet homme ou ce corps aient un
veritable droit? 3º: Quelles sont dans un tel état en particulier, les bornes du pouvoir suprême° 4º: Dans quel cas,
lorsque le souverain ou le gouvernement passé ses droits ou viole ceux des citoyens, les citoyens ont-ils le droit
de resister ou d’opposer la force à un droit qui cesse d’en être un?”.
50
verdade, quer dizer, ao conhecimento dos direitos e de sua violação, a quem se haveria de
acusar, senão que ao erro que cometeram esses homens ao concluir que se lhes estaria
permitido fazer valer seus direitos em todo momento e por qualquer meio. Não haveria atuado
mal por saber demasiadas verdades, isto é, por não ter adotado uma máxima verdadeira, senão
que por haver-se equivocado em sua aplicação a um fato particular.
Uma boa legislação é essencial para que os governos possam buscar a verdade.
Verdade que faz rápidos progressos em países nos quais se garante a liberdade de opinião,
porque, para Condorcet (2010a), desde o momento mesmo em que opiniões são discutidas
livremente, a verdade acaba por estabelecer-se. É fácil apreciar que o estabelecimento da
liberdade de opiniões é um meio profícuo que se tem para instruir-se e ser servido por homens
ilustrados. Quem está obrigado a atuar, pode instruir-se, porém não pode ter o prazer de uma
meditação tranquila, a única que, segundo o autor, poderia desvelar verdades.
Sem a liberdade de opiniões, o soberano nunca saberia se fez bem ou mal, se se
cultivam as terras de seus Estados ou não, se em seus cofres ingressa a metade do que se
arrecada do povo, se as leis que se fizeram para impulsionar o comércio não servem mais para
destruí-lo, se sua administração abre ou extingue as fontes da prosperidade pública, se é um
tirano ou um bom rei. A educação, se o legislador quiser empregá-la, seria um meio ainda
melhor para acelerar o progresso das verdades. Condorcet (2010a) sugere que, se se forma o
espírito dos jovens na exatidão, mediante o estudo de matemáticas e física, e se se lhes dá
nada mais que ideias que nenhum homem de bom senso negaria acerca da moral, já se saberia
bastante para uma boa conduta comum. Se, ademais, se lhes inspira o desprezo pela morte, se
haverá fechado ao erro todas as portas: a verdade se estabelecerá sem dificuldade em seu
espírito.
Uma educação orientada para a busca da verdade é, aponta Condorcet (2010a), tão útil
para um monarca quanto para seus povos, e um dos interesses comuns ao chefe de Estado e ao
cidadão é que aquele seja servido por homens que tenham um espírito justo, luzes e valores. O
filósofo conclui que, em geral, a verdade sempre é útil para o povo e que se o povo cultiva
erros é útil para ele livrar-se dos mesmos.
Condorcet (2010a) indaga, ainda, se é lícito educar crianças em uma religião na qual
não se crê. Já que o erro equivale a um mal público, seria um crime estendê-lo, responde o
filósofo. Desse modo, qualquer homem que ensina o que não crê é depreciável se é que crê
que esse erro é prejudicial para os homens. Porém, se o considera útil, nesse caso é inocente,
desde que assim possa sê-lo quem siga o partido mais favorável a seus próprios interesses,
partindo de uma consciência errônea.
51
Capítulo II
Condorcet invoca o exemplo das revoluções havidas e das repúblicas estabelecidas nos
Estados Unidos da América e na França para explicitar seu imaginário democrático e sua
confiança nas possibilidades da instrução pública. O autor busca, com seus argumentos,
desconstruir as bases de um despotismo político e instituir o laicismo na esfera pública,
destacando princípios e direitos cuja importância para as sociedades políticas 41 justificam que
sejam considerados inegociáveis e imprescritíveis.
Pensando desse modo, o filósofo apostou na moderação dos anseios políticos,
entrevendo o terror que se avizinhava na revolução da qual participou. Argumentos do autor
nos indicam, nesse sentido, que instituições políticas e educacionais não afloram
naturalmente; que, caso não sejam estabelecidos limites e garantidas liberdades favoráveis ao
bem-estar comum, essas instituições podem entrar em colapso; e que elas são produzidas
socialmente por homens falíveis atravessados por compreensões mais ou menos fiéis aos
princípios que vem justificando esses mesmos artifícios sociais.
41
Arendt (2004) indica que, diferentemente do que se propaga na tradição em que prospera o preconceito
moderno segundo o qual a política constitui uma necessidade imperiosa oriunda da natureza humana, a política
só começa no momento em que cessa o predomínio das necessidades materiais e da força física. Uma vez que o
homem depende dos outros em sua existência, ele encontra vantagens na condição política de convivência. A
política trata da convivência entre os diferentes e da organização dos homens para certas coisas em comum. Para
a filósofa, o homem não é essencialmente político e a política não corresponde a uma atividade que brota da
intimidade de cada homem, senão que surge no entre-os-homens, totalmente fora, portanto, dos homens,
estabelecendo-se como relação. Contra a possível determinação e distinguibilidade do futuro está, indica Arendt,
o fato de que o mundo se renova a cada dia por meio do nascimento e, pela espontaneidade dos recém-chegados,
está sempre se comprometendo com um novo imprevisível. Apenas quando os recém-nascidos são privados de
sua espontaneidade, de seu direito a começar algo novo, é que o curso do mundo pode ser previsto de maneira
determinística. Arendt avalia que os preconceitos opostos a uma compreensão teórica daquilo que de fato está
em jogo na política dizem respeito a quase todas as categorias políticas nas quais estamos habituados a pensar,
mas, sobretudo, à categoria do meio-objetivo, segundo a qual a coisa política corresponde a um fim situado fora
de si mesmo; à concepção de que o conteúdo da coisa política é a força; e, ainda, à convicção de que o domínio é
o conceito central da teoria política. Arendt recupera a noção de dignidade da política e os fatos jurídico-
normativos estabelecidos pelas grandes revoluções do século 18, ou seja, explicita sua compreensão de política
ao mesmo tempo em que expõe suas ideias a respeito da educação, um instituto, segundo a autora, essencial para
que o mundo dos adultos seja apresentado responsavelmente às crianças.
53
entendida como artifício do homem, relacionada com a satisfação de suas necessidades, sejam
elas fictícias ou não. A economia é útil às associações políticas de indivíduos e aos negócios
entre nações na medida em que, regulada e vigiada, se ajusta à exigência de que a igualdade
social se efetive, o que implica reconhecer que o critério racional da igualdade constitui um
propósito político para os membros de uma nação.
A felicidade e a prosperidade de um povo, assinala Condorcet (1945a), não aumenta
com a desgraça ou a debilidade de seus vizinhos. A felicidade pública, pelo contrário, se
amplia com a prosperidade dos outros povos, com o exemplo de boas leis, da repressão de
abusos, de novos meios de indústria, enfim, de todas as vantagens que podem nascer da
comunicação das luzes. A massa de gozos comuns e a facilidade de reparti-los com mais
igualdade representa, segundo o filósofo, para todos os povos, o efeito necessário do
progresso de cada um deles. Excepciona essa regra, atenta Condorcet, o caso de um povo que,
extraviado por uma falsa política, fatigue seus vizinhos com sua ambição e busque, por meio
de guerras, monopólios ou leis proibitivas do comércio, dar-lhe, a suas próprias expensas, um
poder perigoso e uma prosperidade inútil.
O autor explicita no texto “Sobre o sentido da palavra revolucionário42” que o termo,
em seu sentido geral, exprime tudo o que pertence a uma revolução. A revolução Francesa
teria constituído pela primeira vez uma república para a qual a liberdade teve por base uma
extensa igualdade de direitos. O espírito de uma revolução social, para Condorcet:
Uma revolução só deve prosseguir o tempo necessário para que se estabeleça uma
nova ordem social mais justa. Quando um país recupera sua liberdade através de uma
revolução, pode ocorrer que muitos homens procurem produzir uma contrarrevolução, prevê
Condorcet. Se confundidos com a massa de cidadãos, esses contrarrevolucionários podem
42
“Sur le sens du mot révolutionnaire”, escrito em 1793, disponível no portal Gallica, da Biblioteca nacional da
França.
43
Do original: “[...] est un esprit propre à produire, à diriger une révolution faite en faveur de la liberté. Une loi
révolutionnaire est une loi qui a pour objet de maintenir cette révolution, et d'en accélérer ou régler la marche.
Une mesure révolutionnaire est celle qui peut en assurer le succès. On entend alors que ces lois, ces mesures, ne
sont pas du nombre de celles qui conviennent à une société paisible ; mais que le caractère qui les distingue, est
d'être propres seulement à un temps de révolution, quoique inutiles ou injustes dans un autre”.
54
tornar-se perigosos para a nova ordem, razão pela qual não configuraria uma injustiça que os
cidadãos exigissem, nesse caso, uma lei repressiva:
Viu-se então, pela primeira vez, um grande povo liberto de seus grilhões dar-
se pacificamente sua Constituição e as leis que ele acreditava as mais
apropriadas para fazer sua felicidade; e como sua posição geográfica, seu
antigo estado político o obrigavam a formar uma república federativa, viu-se
preparar, ao mesmo tempo, treze constituições republicanas, tendo por base
o reconhecimento solene dos direitos naturais do homem e, por primeiro
objeto, a conservação destes direitos” (2013, p. 161)45.
44
Idem: “Faisons des lois révolutionnaires, mais pour accélérer le moment où nous cesserons d'avoir besoin d'en
faire. Adoptons des mesures révolutionnaires, non pour prolonger ou ensanglanter la révolution, mais pour la
compléter et en précipiter le terme”.
45
Trecho original do “Esquisse”: “On vit alors pour la première fois un grand peuple délivré de toutes ses
chaînes, se donner paisiblement à lui même la constitution et les loix qu’il croiait les plus propres à faire son
bonheur, et comme sa position géographique, son ancien état politique l’obligeaient à former une republique
fédérative, on vit se préparer à la fois dans son sein treize constitutions républicaines, ayant pour base une
reconnaissance solemnelle des droits naturelles, et pour premier objet la conservation de ces droits” (2004, p.
396).
55
bem-estar comum dos cidadãos. Contudo, pondera o autor, até mesmo as repúblicas poderiam
não ser livres se inscrevessem súditos ao invés de cidadãos. Uma monarquia pacífica, perora o
autor, poderia até mesmo provocar inveja ao orgulho republicano, com a sorte de seus
afortunados súditos, caso um legislador sábio respeitasse os direitos dos homens.
O trabalho escravo admitido em alguns dos Estados confederados dos Estados Unidos
envergonhava os homens ilustrados daquele país, relata Condorcet. Eles já haviam
compreendido essa injustiça perigosa, razão pela qual a escravidão não deveria permanecer
por muito tempo maculando a razoabilidade das leis norte-americanas. O filósofo avalia que
muitos republicanos da América ainda se apoiavam em preconceitos ingleses, não
compreendendo que leis proibitivas de comércio e impostos indiretos constituíam um
atentado ao direito de propriedade.
Condorcet (1945a) acentua que somente a violência poderia retirar a liberdade de
quem já a gozou. Em outros termos, para que um cidadão consentisse em deixar de ser livre,
seria necessário, para retirar-lhe essa dignidade, o uso da violência. Felizmente, todo homem,
qualquer que fosse sua religião, opinião e princípios, estaria seguro de encontrar asilo político
na América, comemora o filósofo. Se na Inglaterra a indústria de seus habitantes não deixava
recursos aos estrangeiros, de tal modo que sua riqueza rechaçava a pobreza, nos Estados
Unidos, distintamente, a indústria apresentava aos estrangeiros esperanças sedutoras,
oferecendo ao pobre a oportunidade de, ali, encontrar uma subsistência mais fácil, uma
prosperidade mais segura e suficiente para saciar seus desejos, como prêmio por seu trabalho.
A emigração de europeus para a América implicaria, aponta Condorcet (1945a),
outros motivos que o simples desejo de bem-estar. Unicamente o oprimido poderia ter
vontade de transpor o longo obstáculo do oceano e do desconhecido. A Europa, sem ter que
temer grandes emigrações naquela época, encontraria na América um freio para ministros que
experimentassem a tentação de governar demasiadamente mal. A opressão europeia, desse
modo, chegaria a ser necessariamente menos intensa se restasse um asilo a quem ela marcou
como vítima.
É de utilidade pública, advoga Condorcet (1945a), que se garanta mais liberdade em
matéria de comércio. Essa liberdade pode ser igualmente útil aos proprietários, aos
cultivadores, aos consumidores e aos assalariados. Se os princípios da liberdade de comércio
supõem formalmente que não se possa ceder a clamores desordenados ou a preconceitos
populares, o fato é que, para o autor, a república deveria ajudar aos mais necessitados nos
tempos de escassez. Condorcet propôs que as leis reguladoras do comércio não violassem o
direito a dispor de propriedades nem limitassem o exercício legítimo da liberdade; questionou
56
quais seriam os meios mais eficazes de se obter mais gozo com um mesmo trabalho. O autor
destaca que uma maior difusão da ilustração e da indústria, um melhoramento das relações
com os demais povos e uma igualdade maior na distribuição desses mesmos meios entre os
membros da sociedade, podem auxiliar no alcance desses objetivos.
A economia política mais razoável, para Condorcet (1945a), seria aquela para a qual a
prosperidade do comércio e a riqueza nacional fossem equilibradas com a justiça. Um grupo
de homens reunidos não deveria, nesse sentido, ter o direito de fazer o que de cada homem em
particular pudesse configurar uma injustiça. Os interesses de poder e de riqueza de uma nação
se fragilizariam ante o direito inegociável de um só homem:
[...] de outro modo não haveria diferença entre uma sociedade regrada e uma
horda de ladrões. Se dez mil, cem mil homens tem o direito de ter um
homem como escravo, porque seu interesse o demanda, por que um homem
forte como Hércules não poderia ter o direito de sujeitar um homem fraco à
sua vontade? Tais são os princípios de justiça que devem guiar o exame dos
meios que podem ser empregados para destruir a escravidão46.
46
Fragmento do texto “Réfléxions sur l’esclavage des nègres” (1781): “[...] autrement il n’y a plus de différence
entre une société réglée et une horde de voleurs. Si dix mille, cent mille hommes ont le droit de tenir un homme
dans l’esclavage, parce que leur intérêt le demande, pourquoi un homme fort comme Hercule n’auroit-il pas le
droit d’assujettir un homme foible à sa volonté? Tels sont les principes de justice qui doivent guider dans
l’examen des moyens qui peuvent être employés pour détruire l’esclavage” (2009, p. 73).
47
Tais narrativas da desigualdade social e política nos convidam a pensar em teses de José Bonifácio de Andrada
e Silva, filósofo que, em terras brasileiras, sugeriu que se oportunizasse a civilização dos índios brasileiros, a
abolição do tráfico de escravos, a melhoria da sorte dos então cativos e a sua progressiva emancipação. Andrada
e Silva calcula que, em sua época, cerca de quarenta mil indivíduos eram arrancados anualmente dos seus lares
para serem transportados ao Brasil, destinados a trabalhar, assim como seus filhos e netos, indeterminadamente,
por todas suas vidas, em favor de senhores que em muitos casos não deixavam de demonstrar sua brutalidade.
Afirmava-se que a vinda dos escravos africanos equivalia a um ato de caridade, por terem eles sido supostamente
livrados de serem vítimas de autoridades despóticas e, além disso, por lhes ter sido apresentado o privilégio da
57
luz do evangelho que todo cristão deveria promover. Dizia-se ainda que os negros puderam mudar de um clima
horrível para um outro fértil e ameno. Dizia-se, por fim, que, devendo os criminosos e prisioneiros de guerra ser
mortos imediatamente pelos seus bárbaros costumes, seria um favor que se lhes fazia comprá-los para lhes
conservar a vida, ainda que em cativeiro: “E por que continuaram e continuam a ser escravos os filhos desses
africanos? Cometeram eles crimes? Foram apanhados em guerra? Mudaram de clima mau para outro melhor?
Saíram das trevas do paganismo para a luz do evangelho? Não, por certo, e, todavia, seus filhos, e filhos desses
filhos, devem, segundo vós, ser desgraçados para todo o sempre” (1998, p. 51-52). O luxo e a corrupção
nasceram entre os brasileiros antes que a civilização e a indústria, lamenta Andrada e Silva. Aos senhores que
afirmavam implicar a libertação dos escravos uma violação do direito à propriedade, o filósofo contradita: “Não
vos iludais, senhores, a propriedade foi sancionada para o bem de todos, e qual é o bem que tira o escravo de
perder todos os seus direitos naturais, e se tornar de pessoa a coisa, na frase dos jurisconsultos? Não é, pois, o
direito de propriedade, que querem defender, é o direito da força, pois que o homem, não podendo ser coisa, não
pode ser objeto de propriedade. Se a lei deve defender a propriedade, muito mais deve defender a liberdade
pessoal dos homens, que não podem ser propriedade de ninguém, sem atacar os direitos da providência, que fez
os homens livres, e não escravos; sem atacar a ordem moral das sociedades, que é a execução estrita de todos os
deveres prescritos pela natureza, pela religião, e pela sã política: ora, a execução de todas estas obrigações é o
que constitui a virtude” (1998, p. 60-61). O filósofo reivindicou a libertação progressiva dos escravos incluindo
providências humanitárias ainda hoje pensadas como indispensáveis caso realmente houvéssemos querido
integrá-los à sociedade nacional. A civilização dos povos brasileiros deveria ser construída à luz do exemplo da
civilização europeia, exceto quanto aos maus hábitos havidos naquele continente, considerados incompatíveis
com os princípios da justiça, tais como a demasiada ganância e o modo intransigente com que se exercia o poder
público. Após de ter sido afastado de suas funções na Assembleia Constituinte por ato do imperador Dom Pedro
I, Andrada e Silva publicizou suas críticas mais agudas quanto ao modo inconsequente pelo qual, segundo ele,
também no Brasil o poder político era exercido: “Quando os brasileiros acordaram do sono pesado da opressão
europeia, quiseram ser um povo livre e independente, e sonhavam gozar da segurança e justiça e das imunidades
do direito constitucional; porém, qual será agora o seu abatimento e desesperação, vendo-se enganado e sofrendo
males piores que os do antigo sistema colonial? Sem liberdade, sem propriedade, sem segurança legal. E, será
inesperado, e impossível, que arrisquem, um dia, tudo para realizarem enfim seus desejos ardentes?” (1998, p.
224). Andrada e Silva avalia que um governo reiteradamente injusto pode mesmo assim permanecer impune, o
que é mais fácil quando se possui riquezas e se sabe aliciar e influenciar aqueles de quem se necessita para
manter o poder. Contudo, num contexto de precário financiamento, o que pode se avizinhar é a própria
destruição desse governo. O filósofo antevê que a situação desapontadora em que se encontrava o Brasil em seus
primeiros anos de independência justificava seu temor de que o povo viesse a se revoltar alcançando a condição
de uma grande força política. Em sua opinião, se em toda parte o trono necessitava mostrar sua magnificência,
muito mais necessitava o governo brasileiro, que àquela época estava cercado de repúblicas e povoado por
homens que não conheciam senão as distinções sociais de ser brancos e de ter dinheiro.
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tivesse a máxima segurança de não sentir sua falta. Encontraria, ainda, os meios de aumentar
a venda de produtos nacionais manufaturados, aproveitando o interesse dos cultivadores em
multiplicar a produção. Aumentaria, dessa maneira, ao mesmo tempo a indústria e a atividade
dos que realizam a elaboração. Para o filósofo, ademais, a produção não aumentaria num país
pelo comércio de exportação sem que resultasse dela uma sobre-abundância de produtos e um
menor perigo de escassez, de sorte que seria possível contar, entre as vantagens do comércio
exterior, as que uma nação adquirisse de suas indústrias e de suas próprias habilidades em
negociar.
Condorcet (1945a) avalia, no contexto do comércio internacional do final do século
18, que era mais vantajoso para um país exportar produtos que exigissem maior trabalho,
proporcionalmente ao produto bruto, e cuja produção fosse mais regular, menos exposta a
acidentes ou à intempérie das estações. O comércio estrangeiro era considerado um meio de
assegurar crédito nos anos de abundância, fazendo menos precária a situação dos empresários
da indústria. O autor assinala que toda a extensão de um comércio livre significaria, em
princípio, um bem, uma vez que incentivaria a produção e, por outro lado, favoreceria um
maior gozo por igual preço. O comércio livre favoreceria, ainda, que cada país chegasse
rapidamente a não fabricar senão aquilo que pudesse cultivar ou elaborar com a máxima
vantagem. Seria incalculável o acréscimo de riqueza e de bem-estar que poderia resultar da
instituição dessa ordem livre, imagina o filósofo. O furor com que as nações se dedicavam a
cultivar e a fabricar, não por mero experimento, senão num esforço por não comprar nada do
estrangeiro, demonstra, desgraçadamente, segundo o autor, como se ignorava ainda naqueles
dias a utilidade de um comércio intenso e livre.
Independentemente dessas vantagens, outros pontos poderiam ser favoráveis para a
Europa no comércio internacional, sugere Condorcet (1945a). Uma vez que os norte-
americanos ocupavam um imenso território, do qual uma parte ainda não estava disposta para
o cultivo; que, por um tempo, eles não poderiam dedicar-se a outras atividades que não o
cultivo; e que, num país livre, todo homem, qualquer que fosse sua ocupação, preferiria o
estado de proprietário a qualquer outro, conquanto pudesse aspirar a isso sem sacrificar muito
de sua comodidade - desse modo os Estados Unidos não aportariam para a Europa, durante
muito tempo, mais que produtos em bruto, mas, por outro lado, solicitariam mercadorias
manufaturadas. O povo norte-americano, por esse raciocínio, disporia de pouco numerário
para investir no comércio, já que a maior parte de seus capitais acabaria sendo investida em
suas partes menos desenvolvidas para preparar o solo a fim de deixá-lo em condições de
cultivo. Condorcet sugere que a mercadoria da Europa mais demandada pelos Estados Unidos
59
seria, por muito tempo, o vinho, justamente um dos produtos àquela época mais vantajosos
para se exportar.
A França era, no parecer de Condorcet (1945a), a nação europeia para a qual seria de
maior importância o comércio com os Estados Unidos. Primeiro, porque estava obrigada a
comprar no norte e, por dinheiro, azeite, ferro, cânhamo e madeiras, as quais passaria a obter
na América trocando por suas manufaturas. Segundo, porque nos anos de escassez o trigo e o
arroz da América seriam um recurso importante para suas províncias situadas sobre o oceano
ou que comunicam com este por canais e rios navegáveis. Terceiro, porque a França poderia
estabelecer com a América um vasto comércio de vinhos. Dispondo desse comércio e
podendo nas demais manufaturas competir com a Inglaterra, sucederia que com o incremento
do comércio de vinhos a França passaria a Inglaterra no volume de comércio com os Estados
Unidos. O filósofo destaca que não lhe parecia duvidoso, por outro lado, que a França fosse
também a parceira comercial preferida dos Estados Unidos, comparada a outros países, isso
ao menos enquanto as indústrias de Portugal e da Espanha não progredissem o suficiente para
lhes fazer uma maior concorrência.
Condorcet (1945a) argumenta, alguns anos antes do estopim da revolução Francesa,
que o povo francês ainda teria tempo de empregar os meios que dele dependessem para
equilibrar as vantagens iniciais dos ingleses. Encontrar-se-ia um modo de comerciar com os
Estados Unidos produtos ao ponto do gosto dos norte-americanos, gosto que os produtores
aprenderiam a conhecer e a prever. A comunicação das duas línguas poderia ser facilitada
pelo estabelecimento de colégios bilíngues em algumas cidades francesas. O filósofo imagina
que os americanos poderiam enviar em grande número seus filhos se o ensino religioso não
integrasse o sistema de instrução francês. Aliás, a religião não deveria constituir por muito
tempo um obstáculo. Enquanto que o dogma mais caro aos norte-americanos, aquele ao qual
eles se sentiam mais apegados, era o da tolerância, ou melhor, da liberdade religiosa, na
França a voz unânime dos homens ilustrados pertencentes ao clero, à nobreza, à magistratura
e ao comércio ainda solicitavam bravamente essa mesma revolução. Condorcet duvidava da
inutilidade das reivindicações francesas à tolerância; para ele, era de se esperar que o governo
francês cedesse aos motivos fundados na justiça e na utilidade e que a tolerância, então, se
estabeleceria na França segundo uma ordem mais regular. Os franceses reparariam, dessa
maneira, as desgraças e talvez a vergonha de haverem demorado tanto tempo para seguir o
exemplo de outros povos.
As vantagens do comércio com a América aos poucos diminuiriam, antecipa o autor.
Somente ficariam na Europa essas vantagens nascidas de um comércio ativo e intenso entre
60
nações industriosas e ricas. Porém, essa mudança seria a obra dos séculos e, desse modo, os
novos progressos do gênero humano não deixariam nada que deplorar entre as nações
ilustradas de ambos os mundos. No que respeita às exportações dos Estados Unidos para a
Europa, o autor aposta que não se limitariam às mercadorias da época. Imagina quantas
inovações não ofereceria esse imenso país, agora ignoradas por seus habitantes, mas de cuja
utilidade em breve o comércio notabilizaria. Ainda que semelhante conjetura não estivesse
apoiada pelo conhecimento das produções que seguramente algum dia se transformariam em
objeto de comércio, essa esperança não deveria ser considerada quimérica. Com efeito, o
vasto continente americano não ofereceria à Europa somente produções inúteis ou comuns.
Os propósitos de independência e de liberdade se estenderam dos Estados Unidos por
toda a Europa, registra Condorcet (2013). O povo francês, por mais que houvesse oferecido ao
mundo os mais célebres filósofos preocupados em justificar condições políticas e sociais de
igualdade e liberdade, permanecia àquela época subjugado por um governo organizado de
forma autoritária e despótica. Comparados aos outros povos europeus, os franceses eram os
mais esclarecidos, mas, no entanto, vinham sendo sistematicamente obrigados a conviver nas
mais reduzidas condições de bem-estar. Em outros termos, se no meio do povo francês os
filósofos irradiavam luzes, o governo, por sua vez, permanecia na mais obscura e insolente
ignorância.
A França, nas últimas décadas do século 18, só poderia comportar uma revolução
social emanada de duas fontes, hipotetiza o autor: ou o próprio povo estabeleceria os
princípios razoáveis que a filosofia lhe havia ensinado a admirar; ou os governos se
apressariam a fazer o que requeria a opinião pública. Se a revolução eclodisse a partir dos
movimentos populares, seria mais fácil e integral, porém mais violenta: a felicidade seria
comprada ao preço de males transitórios. A segunda forma implicaria movimentos mais lentos
e incompletos, porém mais tranquilos. Condorcet (2004), nesse cenário, testemunha que a
ignorância e a corrupção dos governos propiciaram que a insurreição partisse das forças
populares: “e o triunfo rápido da razão e da liberdade vingou o gênero humano” (p. 395).
Os efeitos da revolução Francesa foram ainda maiores que aqueles da revolução
Americana, assegura Condorcet (2013), porquanto atingiram toda a nação francesa
modificando significativamente as relações sociais. Esse movimento atingiu a um só tempo o
despotismo dos reis e a desigualdade política, o orgulho da nobreza e as riquezas do clero, a
dominação e a intolerância, bem como os abusos do feudalismo. No auge desses
acontecimentos, o filósofo não se alinhou, simplesmente, aos interesses dos partidos
predominantes e às suas respectivas ideologias políticas, nem ofereceu apoio integral aos atos
61
revolucionários: contrapôs-se, por exemplo, à condenação do rei Luís XVI de Bourbon à pena
de morte, aos massacres de setembro de 1792 e às políticas autoritárias e terroristas que se
seguiram.
48
Diversas obras literárias, dentre as quais a célebre “Nineteen eighty-four”, de Orwell, apresentam, usando o
estilo da redução ao absurdo, estados sociais nos quais a igualdade caracteriza uma sociedade massiva na qual os
indivíduos permanecem devotados, semiconscientemente, às causas emanadas de um partido, representando
supostamente a totalidade dos interesses ou a vontade generalizada. Descrevem-se personalidades fantásticas
caracterizadas pela compulsão de domínio e eventualmente pela solidariedade ou crueldade com que levam a
efeito suas iniciativas, sendo capazes de estabelecer em seu proveito uma ordem forçosamente opressora da
individualidade. No caso do livro “1984”, é apresentada uma sociedade meticulosamente monitorada e
manipulada para permitir que o poder central evite a perversão da ordem totalitária estabelecida. Tão real é essa
tragédia que podemos reconhecer traços dessas criações ficcionais nos mais diversos eventos narrados no
percurso da história humana, os quais nos mostram sucessos e fracassos de iniciativas destinadas a estabelecer
uma ordem social divorciada da liberdade de opinião e de iniciativa, e implacável em suas práticas de domínio
do pensamento.
62
natureza tudo parece distinto. Como ela não decorre de nossos códigos genéticos, senão que
representa um construto das faculdades que dispomos de produzir sentimentos e de raciocinar,
a igualdade se vincula à aposta política republicana do bem-estar comum, se harmonizando,
desse modo, com a exigência da democracia, e negando que se proíba a pluralidade de
interpretações.
O autor indica o enfrentamento das desigualdades instituídas como propósito principal
de um governo que se submeta aos princípios republicanos; de uma sociedade que faça
concorrer as forças comuns ao bem-estar dos indivíduos, independentemente dos traços de sua
cultura, da cor de sua pele, do gênero sexual a que pertençam, da opinião que expressem ou
da religião que confessem. Condorcet (1945a) considera que a liberdade de imprensa, longe
de favorecer a intriga, pode contribuir com a dissolução de associações particularistas,
prejudiciais à república, impedindo, com isso, a consolidação de projetos conduzidos por
motivações menos afetas ao interesse público. As declamações da imprensa não entranhariam
perigo senão quando a severidade das leis as obrigasse a circular na clandestinidade. O
filósofo critica o modo como os ingleses, em sua época, tratavam a questão da liberdade de
imprensa, apontando que entre eles ainda subsistiam leis contra essa liberdade sob o pretexto
de um falso patriotismo.
Condorcet argui que o pacto social tem por objeto o gozo igual e integral dos direitos
que pertencem ao homem. Esse acordo é fundamentado na garantia mútua desses direitos.
Essa garantia, no entanto, pode não ser aplicável aos indivíduos que queiram dissolver o pacto
social. O filósofo consente que, se um direito mais precioso for ameaçado, e se, para o
conservar, for preciso sacrificar o exercício de outro direito menos importante, então, desse
modo, exigir esse sacrifício não implicaria violar o último direito49.
Nenhuma legislação que admita a desigualdade étnica, de gênero, religiosa e
ideológica deveria ser admitida pelas sociedades civilizadas. Condorcet equipara a redução do
homem à escravidão ao crime de roubo, porque não seria razoável e admissível que a alguém
fosse reconhecido o direito de dispor de sua própria liberdade, muito menos o de se apropriar
da liberdade dos outros. A liberdade50, declarada um direito natural, não deveria, pois, ser
49
Esse debate é levado a efeito, sobretudo, no texto “Sobre o sentido da palavra revolucionário” (1793).
50
Dini, comentador de Condorcet, descreve o termo liberdade como “costitutivo della emancipazione umana e
politica dell’uomo moderno. Non a caso há figurato nelle insege delle moderne rivoluzioni, a cominciare da
quelle americane e francese, insieme a eguaglianza e fraternità. L’origine latina del termine è legata, per
contrapposizione, alla schiavitù: ‘liber’ è colui che non è schiavo, ed essere liberto è condizione per essere
cittadino, per godere dei diritti di cittadinanza, appartenere pienamente alla comunità politica della città. Com
l’avanzare della modernità, il mondo si allarga, si estende la cultura, si incrociano le civiltà talvolta nel conflitto,
spesso nella guerra e nella distruttiva conquista da parte del più forte, che nello stesso tempo si autoproclama
portatore dell’autentica civilità” (2000, p. 11).
63
considerada objeto de negócio. Condorcet propugna que a liberdade consiste em poder fazer
tudo aquilo que não é contrário aos direitos dos outros indivíduos. Logo, o exercício dos
direitos encontra seu limite no estatuto dos direitos assegurados aos demais membros da
sociedade. O homem, dessa maneira, é igualmente livre para expressar seus pensamentos e
opiniões, mas não o é para usar da força a fim de reprimir as manifestações dos outros51.
Ao cobrir os diferentes indivíduos de direitos naturais constituintes da humanidade e
da cidadania, Condorcet denunciou que o sequestro de indivíduos nas fronteiras do continente
africano; a submissão deles, assim como de sua descendência, a um regime de trabalho
escravo; e a indiferença social frente aos maus tratos a que eles eram submetidos, constituíam
uma flagrante injustiça e perversidade, oriunda de hábitos repulsivos herdados do passado;
envergonhavam profundamente o ideário social iluminista; e representavam um ultraje frente
aos direitos declarados naturais e aos princípios racionais que os informavam. Para o filósofo,
mais importante que proclamar publicamente direitos e princípios seria efetivá-los de tal
modo que as realidades narradas não mais apresentassem como característica uma
inconciliável dissensão entre o mundo em que se vivia e o imaginário republicano da
igualdade e da liberdade.
Nas “Cartas de um burguês” (1945b), o remetente sentencia que em nenhuma parte
seria livre o cidadão, obreiro, doméstico, granjeiro, se ele fosse dependente de outro cidadão
mais rico. Em nenhuma parte o homem degradado, embrutecido pela miséria, seria igual ao
que recebesse uma educação esmerada. Haveria necessariamente duas classes de cidadãos em
todo lugar onde existissem pessoas muito pobres e muito ricas. A igualdade republicana não
poderia subsistir num país no qual as leis civis, financeiras e de comércio fizessem possível a
existência prolongada de grandes fortunas.
Coutel (2006) questiona o sentido da palavra igualdade na obra de Condorcet: “Como
conciliar a afirmação: todos os homens são iguais, sobre o plano político e dos direitos do
homem, com a ideia de que os espíritos e talentos não são semelhantes? Como fazer para que
essa diversidade não seja interpretada de tal modo que hierarquize as pessoas?” (p. 02).
Diante dessas questões, o autor argumenta que a igualdade de instrução preveniria tanto o
retorno da desigualdade de acesso aos saberes como a tentação do “igualitarismo” que, a
partir da igualdade moral e política dos homens, desprezaria talentos e luzes: “a instrução
pública condorcetiana não cede a um entusiasmo simplificador nem a um obscurantismo
51
Esse é o conceito de liberdade desenvolvido no artigo segundo do “Projeto de declaração dos direitos naturais,
civis e políticos dos homens” (1793), apresentado por Condorcet à Assembleia Nacional nos dias 15 e 16 de
fevereiro de 1793, em nome do Comitê de Constituição. Essa proposta de Constituição ficou conhecida como a
Constituição girondina. Esse projeto foi acrescido ao livro “Condorcet: instituir al ciudadano”, de Coutel (2004).
64
Uma lei injusta que viole o direito dos homens, sejam nacionais, sejam
estrangeiros, é um crime cometido pelo legislador, situação na qual os
65
Condorcet considera que as sociedades políticas, por dever de justiça, não deveriam ter
objetivo maior que o de preservar indistintamente os direitos daqueles que a integram.
Qualquer lei que violasse direitos humanos ou princípios racionais deveria ser considerada
uma lei injusta ou tirânica. O filósofo denuncia, igualmente, o fato de que direitos e princípios
que justificavam a igualdade política e de fato entre mulheres e homens estivessem sendo
solenemente violados na medida em que as mulheres, a metade do gênero humano, eram
privadas do direito inegociável de contribuir na formulação de leis que elas próprias eram
estimuladas pelos indivíduos masculinos a cumprir. Nas “Cartas de um burguês”, o remetente
lamenta:
52
Fragmento do original das “Reflexões sobre a escravidão dos negros”: “Une loi injuste qui blesse le droit des
hommes, soit nationaux, soit étrangers, est un crime commis par le législateur, où dont ceux des membres du
corps législatif qui ont souscrit à cette loi, sont tous complices” (2009, p. 70).
66
53
Do original: “Parmi les progrès de l’esprit humain les plus importants pour le bonheur général, nous devons
compter l’entière destruction des préjugés qui ont établi entre les deux sexes une inégalité de droits funeste à
celui même qu’elle favorise. On chercherait en vain des motifs de la justifier par les différences de leur
organisation phisique, par celle qu’on voudrait trouver dans la force de leur intelligence, dans leur sensibilité
morale. Cette inégalité n’a eu d’autre origine que l’abus de la force, et c’est vainement qu’on a essaié depuis de
l’excuser par des sofismes” (2004, p. 450).
67
54
Hutcheson (1996) considera igualmente um dever dos indivíduos consentir com a Constituição política de seu
Estado. Contudo, em casos importantes, se a violação da lei fosse de consequências menos perniciosas que a
obediência a ela, os indivíduos, a fim de salvaguardar propósitos valiosos para o todo, deveriam pacientemente
submeter-se às penalidades decretadas pelo Estado, resultando que essa desobediência nada teria de criminosa
em si.
68
outro corpo encarregado por ela de exercer essa função em seu nome, decidiu por uma
maioria considerada suficiente, que era reclamada pela razão.
A proposição “tal coisa deve ser regulada pela lei”, bem como o enunciado “tal lei
sobre esta questão é conforme à razão e ao direito”, podem ser pensados como duas
proposições verdadeiras ou falsas. É de interesse geral fazer que resulte muito provável que
sejam verdadeiras, admoesta o burguês, através do qual Condorcet (1945b) enumera as
principais causas de decisões falsas: o interesse, a corrupção, as paixões e o erro.
Na mesma obra, Condorcet (1945b) classifica as leis segundo os objetos sobre os quais
deve estatuir: leis penais, que tem por objeto a manutenção da segurança, da liberdade e da
propriedade dos cidadãos contra a violência e a fraude; segundo, as leis que tem por objetivo
prescrever formas de adquirir, transmitir e provar a propriedade, determinar a forma das
convenções, os limites que o direito natural e a razão podem estabelecer para a liberdade de
contratar, e o modo em que serão julgados os pleitos sobre a execução de convenções ou leis
civis; e, terceiro, as leis que, no caso de o uso da liberdade e da propriedade atentarem contra
a segurança, a liberdade e a propriedade de outro, submetam o exercício desses direitos a leis
comuns, que os dirigem mais que restringem: são as leis de polícia.
As legislações acima classificadas possuem as seguintes partes: a lei nela mesma, a
maneira de comprovar os fatos em cada aplicação da lei e a maneira de ajuizamento. Uma
quarta parte da legislação geral teria por objeto as finanças e regulamentaria: a) a forma de se
arrecadar impostos; b) a maneira de determinar a soma do imposto; e c) o emprego desse
imposto. Uma quinta parte teria por objeto a própria Constituição, quer dizer, a forma
segundo a qual o corpo legislativo deveria exercer suas funções. Nesse texto, devem ser
fixados os limites de seus direitos, no caso em que não estejam fixados por adiantado segundo
uma decisão razoável geralmente aceita. Por fim, uma sexta parte das leis teria por objeto a
forma de estabelecer ou empregar a força pública necessária para a defesa exterior ou a
tranquilidade do Estado.
Condorcet (1945b) acredita que a tomada de decisões poderia ser constituída de duas
maneiras: ou pela pluralidade de representantes atuando segundo sua própria razão; ou pela
maioria desses representantes conformando-se à ordem de seus mandantes e sem poder
apartar-se dela. É necessário, advoga o burguês, examinar por quais leis e em que
circunstâncias é preferível uma ou outra dessas maneiras de decidir, em que forma se deve
fazer, e que maioria há de se exigir.
Todo Estado livre que reúna súditos se expõe à perda da liberdade, sentencia o
remetente das “Cartas”. Esse Estado comete uma injustiça e reconhece tacitamente que deve
69
ao azar e à força e não ao direito e à natureza a liberdade de que seus súditos gozam. A
unidade de um sistema de leis, bem como a precisão dos princípios que lhes servem de base, e
a bondade de cada disposição, dependem necessariamente do estado de ilustração de cada
povo. A legislação, indica Condorcet (1945b) através de seu personagem, deve aperfeiçoar-se
sobre esses pontos à medida que a ilustração progrida. Em cada época se buscará obter as
melhores leis que o estado contemporâneo da ilustração permita.
Se as leis civis, criminais e de polícia não são demasiado defeituosas, ou se já contam
com as reformas mais importantes, não é necessário nem recomendável que nessas leis ou nas
que se referem à Constituição exista uma excessiva facilidade para realizar mudanças. O
homem de Novo Hampshire entende que basta que exista sempre um meio legal de levá-las a
cabo, sempre que o corpo possuidor do direito tenha também o interesse de realizá-los e que
se ocupe disso cada vez que uma voz autorizada denuncie abusos dignos de reforma.
O motivo mais forte alegado para dividir o corpo legislativo é o temor de que um
corpo único se apodere da soberania, deixando de governar para o bem-comum dos cidadãos e
fazendo em proveito de sua autoridade, da riqueza e poder de seus membros, terminando por
fazer-se hereditário de fato, já que não de direito, como certos senados suíços, que depois de
haverem sido os executores da vontade do povo, chegaram a ser seus amos. O burguês afirma
que, em geral, o princípio de evitar os abusos opondo os poderes entre si apresenta a
desvantagem de fazer depender a sorte do Estado do maior ou menor grau de firmeza e de
corrupção de cada um. A história de todos os governos da Europa que não exerçam um
absoluto despotismo proporciona numerosos exemplos. É necessário proibir o
estabelecimento de distinções hereditárias entre os homens, estendendo-se essa proibição a
toda corporação perpétua que não seja voluntária. Não se deve permitir ocupar nenhum cargo
senão por eleição e fixando um termo de que não possa nunca estender-se além de
determinados limites.
Pressupõe-se que antigas repúblicas não subsistiram porque desconheciam a arte de
equilibrar os poderes; porém, igualmente, poderia sustentar-se que pereceram porque
ignoraram os meios de reger uma democracia representativa, na qual reinaria ao mesmo
tempo a paz e a igualdade. Por essa perspectiva, a lei deveria ser entendida como regra
comum, conforme a justiça e a razão, regra à qual os cidadãos haveriam de submeter ações
que por sua natureza não deveriam estar submetidas à vontade de cada um.
O objetivo principal das “Cartas de um burguês” (1945b) é discutir a inutilidade, ou
mesmo o perigo, que surge de dividir o poder legislativo em diferentes corpos. O burguês
refere as sutilezas que se escondem sob as palavras “forças opostas, contrapesos, equilíbrios”,
70
as quais exercem sobre certas pessoas tanto mais efeito quanto menos as compreendem.
Ademais, políticos de profissão tem interesse em defender tudo o que seja mais complicado.
Cada atividade adoece de seu próprio charlatanismo, e a dos políticos consiste em explicar sua
ciência como uma espécie de doutrina oculta, cuja chave unicamente possuem os adeptos. Um
interesse muito direto lhes dita essa linguagem: quanto mais complicada seja uma
Constituição, mais recursos ela oferece às intrigas e sofismas.
Condorcet (1945b) sugere, na voz de seu personagem, que nem o amor ao bem público
nem o amor à verdade são decisivos ou provocam as decisões: os homens, em lugar de
interpretar seus próprios interesses, não se ocupam mais que de obter a triste facilidade de
sustentar plausivelmente a opinião que seu partido deve fazer prevalecer. A experiência
prova, mais de uma vez, que essas lutas de partidos que se consideram tão próprias para
infundir energias nos espíritos, manter a liberdade e a justiça através de desconfianças e
rivalidades, terminam numa opressão sangrenta. O equilíbrio da máquina pública, acrescido
da tensão dos pesos que atuam sobre ela, contrabalanceando-a, podem terminar por quebrá-la.
No texto “Ideias sobre o despotismo” (1789), o filósofo repara que alguns escritores,
de boa fé ou desejosos de pertencer ao grupo dominante, tem honrado com o título de
liberdade uma anarquia produzida por discórdias entre os diversos poderes. Eles nomeiam, do
mesmo modo, equilíbrio à espécie de inércia a que cada um desses poderes se encontra
submetido pela mútua resistência que se opõe. Esse esforço entre potências opostas
transformam em ponto de apoio a nação. Condorcet (1945d) declara ser mais fácil livrar uma
nação do despotismo direto que do indireto, uma vez que o primeiro é evidente a toda a nação,
enquanto que o segundo pode esconder da nação os motivos de seu próprio sofrimento,
chegando-se com frequência a considerar como protetores os opressores da nação.
Condorcet (1945e) assinala na “Advertência aos espanhóis” (1792) que a Espanha, à
época submetida a Roma, constituiria, entre todos os países da Europa, o que provavelmente
receberia da revolução Francesa as mais imediatas e inesperadas vantagens. Essa nação, que
ao começar do século 16 poderia esperar uma larga, pacífica e gloriosa prosperidade, não
experimentou senão fracassos diante das estirpes estrangeiras que tomaram o posto de seus
antigos reis. Esses reis pertenciam a casas ambiciosas e poderosas, que sempre se
consideraram príncipes austríacos e franceses antes que chefes do povo espanhol, ocupando-
se mais do poder de suas famílias que do interesse de seus Estados. Com efeito, a política de
um rei da Espanha, Áustria ou Bourbon, sacrificava o povo que governava em prol dos
interesses da Áustria ou da França.
71
O que importa para a Espanha, assim como aos franceses, é que o povo espanhol se
libertasse da tirania estrangeira dos Bourbon e que desse a si mesmo uma Constituição que
considerasse livre, e que não confiasse o poder a homens que pudessem ter um interesse de
família contrário ao da nação. Trata-se de livrar o povo da ignorância e os homens ilustrados
da inação, ambas as situações fruto dos terrores do despotismo. Condorcet conclama:
55
Condorcet, implicado visceralmente na revolução Francesa, escreve a seu respeito: “A indignação do povo
derrubou esse trono, seus representantes suspenderam as funções reais, se convocou uma convenção e a
monarquia foi abolida. Nossos inimigos penetram no seio da França e parecem ameaçar com uma total
conquista, porém logo seus êxitos chegaram a seu fim e os franceses vitoriosos ocupam os Países Baixos, Leija,
Saboya e Mayena” (1945, p. 253).
73
Àquela época, a nação francesa se distinguia por respeitar nos demais povos os
direitos que reclamava para si mesma, elogia Condorcet. Ocorre que muitos reis da Europa se
reuniram para destruir a república Francesa. Suas insolentes declarações de vingança
anunciaram o projeto de arrancar direitos conquistados pelos franceses, entregando-os aos
antigos tiranos: “Eles se declararam defensores dessa vil banda de sacerdotes e nobres, que
davam às nações estrangeiras o indignante espetáculo, tão instrutivo por outro lado, do grau
de depravação a que pode levar a espécie humana o orgulho hereditário e a hipocrisia
mercenária” (1945c, p. 247).
Ainda no texto “A nação francesa a todos os povos”, Condorcet (1945c) recomenda
que o homem estrangeiro que se cresse igual a seus semelhantes - que desejasse ter por único
soberano o povo do qual ele mesmo formava parte - não deveria ser tratado como cidadão de
uma nação inimiga ou como súdito de um déspota. Por essa linha de argumentação, um povo
estrangeiro que desejasse ser livre e, para isso, estabelecesse uma Constituição fundada na
igualdade, deixando o temor de preconceitos de castas privilegiadas, de extravios da
superstição e do fanatismo da monarquia, então esse povo passaria a ser uma nação amiga da
França e com ela marcharia rumo à conquista da liberdade.
Condorcet (1945c) repudia a antiga opinião que, conforme ele, era cultivada na
Inglaterra, segundo a qual a coroa possuía direitos separados dos da nação, estabelecendo-se,
desse modo, que as leis constitucionais não passariam de uma transação efetuada entre o povo
e a família dos reis. Esse contrato sempre subsistiria entre os descendentes dos que o
contraíram. O consentimento do rei seria necessário, assim como o do povo, para mudar as
condições desse pacto recíproco.
Quanto à denúncia de que a república Francesa teria destruído a religião, Condorcet
afirma que, pelo contrário, o que ocorreu foi favorável à religião na medida em que reformou
seus abusos temporais, que transformavam seus ministros em objeto de escândalos e
desprezo, e porque a religião deveria servir à consolação dos povos e não constituir um
instrumento de tirania entre as mãos de hipócritas. Na radicalidade do momento, o filósofo
escreve que só subsistiriam duas configurações de nações: a de homens livres e a de escravos
voluntários. Somente a guerra levada por homens contra tiranos seria justa, no sentido de que
seu êxito pudesse, por assim dizer, reparar as desgraças acarreadas por esse flagelo: “Se
alguns crimes mancharam certos momentos da nossa revolução, pelo menos que sirva nosso
exemplo para que os eviteis” (1945, p. 261).
No texto “Ideias sobre o despotismo”, Condorcet (1945d) atenta que essa palavra
deriva do grego e significa amo (mestre). Existe despotismo sempre que os homens tem um
74
senhor, um amo, quer dizer, quando estão submetidos à vontade arbitrária de outros homens.
O despotismo da minoria sobre o maior número é muito comum e teria duas causas: a
facilidade que possui um pequeno número de indivíduos de reunir-se e empregar o montante
de suas riquezas na compra de outras forças. Segundo o autor, se examinarmos a história dos
países onde se há imaginado que existia o despotismo de um só homem, se verá sempre uma
classe de homens ou vários corpos que compartem o poder com aquele que se acreditava
único.
Existem duas classes de despotismo: de “fato” e “de direito”, ou, como Condorcet
(1945d) prefere, despotismo indireto e direto. O despotismo direto tem lugar em todos os
países em que os representantes dos cidadãos não exercem um direito de veto o
suficientemente extenso, carecendo por outra parte de meios para fazer reformar as leis que
encontrem contrárias à razão e à justiça. O despotismo indireto, por sua vez, existe desde que,
em virtude da vontade da lei, a representação não é igual nem real, ou desde que se está
sujeito a uma autoridade não estabelecida pela lei.
O populacho da capital exerce, em certos países, um despotismo indireto. Em outros,
os chefes da nação caem na dependência de indivíduos ou grupos endinheirados. No último
caso, as operações de governo dependem da facilidade que exista de obter daqueles fundos
recursos adiantados. Esses indivíduos possuidores de grandes fortunas obrigam a nomear os
ministros que consideram mais convenientes. Desse modo, o povo acaba se submetendo,
conscientemente ou não, ao despotismo de banqueiros. Para Condorcet (1945d), todos esses
poderes, sejam diretos ou indiretos, formam nos diversos países que os suportam, um corpo
de cidadãos cuja vontade arbitrária governa o resto da nação, e sucede frequentemente que
esta, em meio a tantos senhores, chegue a não saber a quem obedecer.
Condorcet propugna que a instrução pública republicana, nesse contexto, é destinada
ao povo em suas diferenças e prescinde de doutrinas indiscutíveis. Ela reconhece que as
instituições da república, bem como o laicismo56, não resultam de uma predisposição natural
do homem57. Isso ocorre, igualmente, com a democracia e a tolerância. Esses institutos
correspondem a invenções sociais conquistadas ao longo da história humana.
56
Ainda que Condorcet não use em seus textos a palavra laicidade, termo que data da terceira república
Francesa, ele se dedica a um trabalho significativo acerca da exigência do laicismo na república e na instrução
republicana.
57
Garcia e Fensterseifer abordam esse tema: “O fato é que sociedades democráticas e republicanas não brotaram
de uma suposta natureza humana; elas não se imunizam, de modo absoluto, contra as insanidades, nem garantem
o bom senso no presente e no futuro; elas são e serão sempre imperfeitas e frágeis e se sustentam nas
capacidades que os humanos têm de estabelecer relações e instituições livremente compartilhadas. De qualquer
modo, os propósitos da educação dessas sociedades são configurados, pelo menos no plano de suas apostas,
pelos princípios políticos da pluralidade, da igualdade e da liberdade pública; nessas sociedades, as instituições e
75
as atividades educacionais se orientam, pois, por decisões que emanam da totalidade dos cidadãos, as quais tanto
lhes concedem e atribuem, constitucionalmente, uma autonomia relativa, assim como a responsabilidade de
atender e de estender, na esfera de suas ações, valores e princípios acordados pela cidadania” (2011, p. 8).
76
Capítulo III
Condorcet propugna que a instrução pública republicana favoreça aos cidadãos uma
interação social mais justa e produtora de justificações e possibilidades de mundo. Constitui
uma exigência republicana e democrática oportunizar aos cidadãos que participem igualmente
de um sistema de ensino. A cultura dos diversos povos se modifica historicamente não apenas
pela força de opiniões e ações que se creiam espontaneamente mais aceitáveis ou ajustadas às
circunstâncias em que se vive. Os hábitos de um povo podem familiarizá-lo com a violação de
princípios e direitos, bem como com injustificadas formas de opressão.
Em outros termos, o ensino republicano deve ser coerente com a promessa de
igualdade que constitui a república e independente de partidos políticos e de confissões
religiosas. Condorcet admite ser viável despertar e formar nos alunos uma cultura de respeito
aos outros e aos seus próprios interesses. A aposta do autor é que as destinações futuras da
espécie humana, apesar de sucessos passageiros de preconceitos, reservam ao homem
oportunidades de decidir e tornar reais sociedades mais equânimes e livres. Tanto a
instauração quanto a continuidade da forma de governo republicana e do modo democrático
de exercício do poder público dependem em grande medida de que as sociedades políticas não
descuidem dos assuntos educacionais.
A república democrática preconizada pelo filósofo deve prevenir contra formas de
dominação entre os homens, tarefa que implica, entre outras tantas, instruir o cidadão nos
elementos das ciências e das artes e quanto aos benefícios do regime republicano, se
comparados aos outros já experimentados pelos diversos povos no percurso da história
humana. Para analisar a proposta de instrução apresentada por Condorcet, é necessário situá-
la no contexto do Iluminismo. A concepção de educação moral sofria profundas mudanças no
século 18. Essas transformações, comenta Silva (2004), teriam iniciado nos séculos anteriores,
com os humanistas, e se intensificado com as reflexões de Locke sobre a educação. Depois
disso, Rousseau e Diderot, entre outros pensadores radicais, teriam operado uma verdadeira
reviravolta pedagógica.
Ainda segundo Silva (2004), o filósofo genebrino teria se destacado, sobretudo, com a
análise de fatores intelectuais, psicológicos e metodológicos implicados na formação
educacional. O nome de Diderot, por sua vez, ligar-se-ia ao empreendimento da produção e
divulgação de conhecimentos teóricos e operacionais através da “Enciclopédia” - para a qual
78
moral. A ideia de livre exame, que serviu de bandeira aos protestantes contra a mediação
sacerdotal católica no processo de interpretação da verdade sagrada, reapresenta-se
inseminada pela concepção de reflexão cartesiana.
A educação, com efeito, tornar-se-ia um dos temas centrais nas obras políticas do
século 18. A segunda metade desse século foi marcada por diversas obras de caráter
pedagógico. Silva (2004) as qualifica da seguinte maneira: as que propõem metodologias para
preceptores, tais como, por exemplo, “Emílio” (1762), de Rousseau, e “Curso de estudos”
(1767), de Condillac; as que se apresentam na forma de verbetes para a “Enciclopédia”
(D’Alembert); e as propostas ou planos de reformas de ensino (Diderot, Mirabeau, Chalotais e
Condorcet). Condorcet destaca-se com as “Cinco memórias” (1791), uma obra reflexiva a
respeito da natureza e dos objetivos da instrução pública.
Silva (2004) alude que a ruptura conceitual entre educação e instrução pública reflete
diferentes formas de se conceber o ensino público, quer no sentido de formar o indivíduo para
a pátria, para o trabalho, para si mesmo ou para a humanidade. Helvétius considerava que a
arte de formar o homem estava tão fortemente ligada à forma de governo que seria impossível
mudar significativamente a educação sem mudar a Constituição do Estado. Assim como em
Montesquieu, a população apresentava-se, para Helvétius, como objeto da educação, sendo
moldável conforme os fins e os interesses do governo, sobretudo por meio da arte de legislar.
Rousseau58, contudo, entendia que a educação deveria evitar métodos doutrinadores,
mantendo-se negativa, no intuito de possibilitar o afloramento livre da razão. Não se trata de
impor conteúdos e regras, mas de expor a criança a situações de aprendizagem. Inicialmente,
deveria prevalecer o contato natural com as coisas e somente depois a educação deveria expor
o indivíduo às questões sociais, momento em que se efetivaria a aprendizagem moral.
A diferença entre educação e instrução na obra de Condorcet resulta de suas propostas
de ensino para os novos tempos inaugurados pela revolução Francesa. Lelièvre (1994) faz
uma comparação de ideias de Condorcet com outros expoentes da filosofia da educação
francesa. Ele mostra a originalidade da proposta de instrução pública de Condorcet, não só
58
Rousseau (1964) sugere uma mudança radical nas concepções e modos de ensinar a fim de formar um
indivíduo disposto a conviver, sobretudo, em condições de liberdade. O autor não propõe no “Emílio”,
entretanto, uma educação pública propriamente popular e universal que pudesse transformar toda uma nação. Ao
tratar dessa questão, ele mostra-se simpatizante de uma educação nacional, a exemplo dos espartanos, para os
quais o amor à pátria era um elemento central. Sua obra é apropriada, talvez indevidamente, como um guia de
programas educacionais revolucionários. Projetos de educação que surgem durante o período revolucionário vão
efetivar uma transformação na concepção pedagógica, em especial no sentido de torná-la pública. Com isso, o
Estado passa a ser concebido como agente educador. Essa ideia se fortalece com a supressão dos jesuítas na
França, em 1762, um dos principais momentos da crise da hegemonia da Igreja católica sobre a educação.
80
59
O original em francês está disponível sob o título: “Dissertation philosophique et politique, ou Réflexions sur
cette question: S’il est utile aux hommes d’être trompés” (1790).
82
os pais pretendessem tornar seus filhos melhores que eles mesmos reservando-lhes a
estupidez.
O espaço que separa a infância da maturidade é o tempo das paixões e das debilidades,
para o qual se teme que a razão sozinha seja demasiado débil. Esse espaço, de acordo com
Condorcet (2010a), é precisamente aquele no qual os jovens sentirão a contradição que reina
entre suas inclinações e as opiniões que se opõe a elas, e quererão examinar o fundamento de
tais opiniões. Ao primeiro choque, um fundamento muito frágil cairá e com ele derrubará todo
o edifício da moral. Precisamente a essa idade, na qual a razão ainda não tem toda sua força, é
quando é difícil distinguir entre os fundamentos que apoiam a moral e os próprios princípios
da moral, resultando quase impossível distinguir entre as ações que a educação nos faz
considerar criminosas e as que verdadeiramente o são.
Constitui um inconveniente perigoso, segundo Condorcet (2010a), os erros que se
pretendem inspirar nas crianças. Isso é humilhante para a humanidade. Quanto mais vergonha
se tem de ser suspeito de havê-los mantido, tanto mais dificilmente se oculta o havê-los
rechaçado. A criança, dessa maneira, desde que exerça sua liberdade, aprenderá como
primeira lição, junto às crianças de sua idade, que todos os pais, todos aqueles que quiseram
falar-lhes de seus deveres, são mentirosos e hipócritas, e terão a tentação de estender às suas
ações a falibilidade que surpreendeu suas opiniões.
Para substituir os erros da educação por princípios razoáveis, é necessário, acentua
Condorcet (2010a), que o jovem forme ideias justas e precisas acerca daqueles objetos sobre
os quais não teve mais que ideias vagas e falsas, enquanto que para livrar-se dos erros que se
lhe hão ensinado bastaria um momento de reflexão. Dessa maneira, com essa má educação, se
privam as crianças de conhecimentos úteis, necessários, que logo resultam difíceis de adquirir,
e como base de sua moral se lhe proporcionam erros que perderão muito facilmente.
O Estado não possui o direito de formar os sentimentos nacionais, advoga Condorcet
(2001), isso para impedir que o ensino nas escolas se transforme numa espécie de religião
política, cujos efeitos são semelhantes aos de um catecismo religioso: os de obscurecer a
razão. Mas não que a instrução conteste programaticamente ou anule a educação familiar,
religiosa ou político-ideológica. A educação ou implica imposição de alguma fé ou é
impossível de ser operacionalizada. Se atuar como educador, o Estado atentará contra os
direitos dos pais de educar seus filhos. Para Condorcet, uma injustiça é cometida quando se
confia a uma instituição política a possibilidade de impor aos pais a renúncia ao direito de
educar eles mesmos sua família.
83
A instrução republicana previne contra os erros e nos protege das falsas opiniões em
que pode submergir nossa imaginação com o entusiasmo pelo charlatanismo, assinala
Condorcet. Para o autor, por uma escolha feliz tanto dos conhecimentos quanto dos métodos
de ensinar, é possível instruir a massa inteira de um povo para que se defendam dos
preconceitos “exclusivamente com as forças da razão, para escapar dos prestígios do
charlatanismo, que estenderia armadilhas à sua fortuna, à sua saúde, à liberdade de suas
opiniões e de sua consciência, sob o pretexto de enriquecê-lo, de curá-lo ou de salvá-lo60”
(2013, p. 198).
Condorcet (2001) supõe que somente verdades podem servir de base a uma
prosperidade social duradoura. A expansão das luzes não permite aos erros e aos preconceitos
um império eterno. O propósito da educação republicana, nesse sentido, não deve ser o de
consagrar opiniões estabelecidas, mas sim de submetê-las continuamente ao livre exame dos
cidadãos. Essa educação, para o filósofo, deve causar nos homens o prazer e o hábito de
cultivar livremente suas escolhas de acordo com as necessidades e os desejos que sintam.
Os princípios do acesso universal, da gratuidade e da independência orientam o
sistema de instrução republicana proposto por Condorcet. Considerando que a instrução era
privilégio de uma minoria ao final do século 18, foi radical o impacto da garantia de acesso,
da gratuidade e, principalmente, da salvaguarda da independência dos professores com
relação aos poderes públicos e religiosos, salienta Souza (2008).
As “Cinco memórias” preveem medidas práticas. Nessa obra, Condorcet aborda a
natureza e o objeto da instrução republicana; detalha a instrução das crianças e dos adultos,
bem como aquela relativa às profissões e às ciências; advoga tanto a necessidade de se
garantir a igualdade entre os sexos, incluindo o direito ao voto, quanto a necessidade de se
combater a discriminação, por exemplo, contra os protestantes, judeus e negros. Souza (2008)
destaca a relevância dessa obra, entre outras razões porque elas explicitam os termos da teoria
que fundamentaria, mais tarde, o projeto do filósofo para a organização da instrução pública
francesa. Mais que isso, as “Memórias” contem, em germe, muitas das bandeiras ainda hoje
defendidas no complexo âmbito da educação.
Condorcet reivindica que ao Estado não se reserve o direito de exigir suas opiniões
como base da instrução republicana, uma vez que, àquela época, não se lhe poderia considerar
ao nível das luzes daquele século. Os depositários do poder público, acentua o filósofo,
60
Original do “Esboço”: “[...] avec les seules forces de sa raison, enfin, por échaper aux prestiges du
charlatanisme, qui tendrait des pièges à sa fortune, à sa santé, à la liberté de ses opinions et de sa conscience,
sous prétexte de l’enrichir, de le guérir, et de le sauver” (2004, p. 439-40)
84
estariam àquele tempo distantes do ponto ao que haviam chegado os espíritos dedicados a
ampliar a “massa” das luzes:
Um homem ilustrado, sem ser sábio em tudo, mas que tem prazer em cultivar o
espírito: esse é o perfil da cidadania republicana. A instrução republicana propicia ao aluno a
experiência de pensar por si mesmo ao aprender com os outros. Ela orienta ao respeito e, ao
mesmo tempo, à crítica das leis e das instituições, fazendo dos enunciados não um dogma a
repetir, mas uma tese para compreender. Coutel (2004) comenta que, para Condorcet, “a
adesão a um ponto de vista majoritário, depois de um debate, procede de um acordo arrazoado
e não de uma volição caprichosa e arbitrária”, e que “o acordo dos espíritos é contemporâneo
do acordo do espírito consigo mesmo” (p. 65).
A educação republicana advogada por Condorcet (2001) não é refém de um
determinado governo ou de um partido. Ela é de todos em seus benefícios e de ninguém em
específico para seu planejamento e gestão, de tal modo que os privilégios não subordinem os
interesses dos futuros cidadãos aos de uma casta exclusiva. É dever dos alunos, uma vez
instruídos, criticar as leis e as instituições. Essa crítica judiciosa é necessária para o
aperfeiçoamento das sociedades e das instituições. A instrução a respeito da política relaciona,
desse modo, os direitos do homem às disposições das leis, às operações administrativas, aos
meios e aos princípios. O autor profere que toda lição de política será, também, uma lição de
justiça.
Condorcet destacou-se pela defesa de uma instrução comum que fosse capaz de
permitir, a cada cidadão, uma ampla independência nos diversos domínios da convivência
humana. Sua proposta diverge de outras apresentadas em sua época nesse ponto,
especialmente das concepções de educação nacional, que propunham um sistema de ensino
formador de indivíduos para a pátria, o que, para o autor, equivalia à formação de uma espécie
de nova religião. A instrução, em Condorcet, caracteriza-se por um sentido de liberdade, em
61
Original de trecho do “Relatório e projeto”: “La première condition de toute instruction étant de n’enseiger
que des vérités, les établissement que la puissance publique y consacre doivent être aussi indépendants qu’il est
possible de toute autorité politique [...] Enfin, aucun pouvoir public ne doit avoir ni l’autorité, ni même le crédit,
d’empêcher le développement des vérités nouvelles, l’enseignement des théories contraires à sa politique
particulière ou à ses intérets momentanés”.
85
que se supõe a possibilidade de uma formação intelectual e moral. Essa instrução visa a
promover uma relativa independência individual diante do Estado, da Igreja e da tradição.
A maioria dos homens segue opiniões que receberam desde a infância, aponta
Condorcet (1994), e quase não lhes ocorre a ideia de examiná-las. Se, portanto, elas fazem
parte da instrução pública, elas deixam de ser escolha livre dos cidadãos, e tornam-se um jugo
imposto por um poder ilegítimo. Logo, é necessário que o poder público se limite a regular a
instrução abandonando às famílias o resto da educação.
A instrução e a educação correspondem a modos de ensino, formação e preparo de
indivíduos para viverem numa determinada sociedade, comenta Silva (2004). A educação
envolve as mais variadas formas de transmissão de conhecimentos: o ensino doméstico e
religioso, o acesso aos meios de comunicação impressos e a própria escola. Dessa maneira,
não se trata, simplesmente, de vincular a educação ao ensino informal (não escolar) e a
instrução ao formal (o escolar). A diferença entre ambas se dá, sobretudo, em relação aos
princípios, aos objetivos e aos meios pedagógicos empregados. A educação encontra-se na
escola, nos eventos públicos, nas festas, na família e na imprensa. A instrução tem na escola o
seu espaço público mais apropriado, no qual pode ser exercida de modo sistemático e livre.
No que concerne à formação moral, ela pode dar-se em diversos domínios, mas é na escola
que ela passa pelo crivo da instrução.
Com a instrução, torna-se possível analisar rigorosamente os sentimentos morais, as
ideias e os princípios de justiça que resultam deles. Longe de ser uma prática moral
doutrinária, a instrução desenvolveria a capacidade analítica e prepararia o indivíduo para
aprender por si mesmo. É por meio dela que se alcançaria a independência intelectual e moral.
O ensino reflexivo deveria dar-se por todos os meios disponíveis. Condorcet já imaginava,
segundo Silva (2004), uma sociedade instruindo-se não só pela escola, mas pelos mais
diversos recursos de comunicação que a humanidade fosse criando. A partir dessa ampliação
dos meios de ensino, a diferença entre educação e instrução iria acentuando-se e os seus
matizes tornando-se mais perceptíveis, a tal ponto que essa distinção pudesse ser ainda mais
acentuada.
Silva (2004) ressalta que a educação condorcetiana caracteriza-se pela transmissão de
conhecimento sem preocupar-se necessariamente com a independência intelectual. Ela seria
marcada mais pela integração do indivíduo a uma tradição ou por prepará-lo para um
determinado papel dentro de uma comunidade. Além do mais, a educação referia-se a um
processo de ensino que apelaria a faculdades ligadas à emoção, ao entusiasmo e à imaginação
86
inerte. Dessa forma, ela contribuiria mais para o desenvolvimento de uma passividade
intelectual.
A instrução, por seu turno, equivaleria a uma forma de preparar o indivíduo para
analisar as situações educacionais às quais ele estará sempre exposto. Ela é aprendizagem que
se reflexiona, que volta criticamente sobre si mesma, interpreta Silva (2004). O ato de
instruir-se deveria ser permanente e continuar mesmo depois que se sai da escola, pois, tal
como a educação, ela poderia ser continuada por outros meios. Condorcet refere os meios
indiretos de instrução, tais como conferências dominicais62 regulares, festas, eventos coletivos
e imprensa. Esses elementos pedagógicos promoveriam uma instrução permanente.
Silva (2004) não exagera ao propor que a diferença entre instrução e educação
corresponde a um ponto nodal do “Relatório e projeto” de Condorcet. Para o comentador, não
são apenas os conteúdos que diferenciam esses dois âmbitos da formação dos indivíduos. Em
primeiro lugar, o objetivo é diverso: a instrução forma para o desempenho da independência
intelectual, moral e política63 e não para ser um membro dessa ou daquela agremiação ou
mesmo pátria. O segundo elemento diferenciador diz respeito às faculdades às quais elas se
dirigem, exercitam e privilegiam: a educação enfatiza o sentimento, a memória e a
imaginação passiva; a instrução refere-se ao desenvolvimento da sensibilidade moral e da
compaixão, mas, também, da imaginação criadora e da razão. Finalmente, haveria uma
distinção entre os métodos e os recursos: a educação apela para a fabulação histórica, expõe
as crianças a ideias confusas que elas ainda são incapazes de analisar e, sobretudo, inculcam
regras e deveres calcados no entusiasmo catequético. A instrução, por seu lado, visa, desde o
início, ao desenvolvimento da racionalidade. Assim, ela ocupa-se com o uso de uma língua
mais rigorosa e analítica, sem, contudo, deixar de adequar a lições, em suas formas e
conteúdos, ao desenvolvimento progressivo e diferenciado das crianças.
No texto “Sobre as Assembleias Provinciais” (1788), Condorcet afirma que instrução
pública digna desse nome é aquela em que todos os indivíduos possam formar, desde os
primeiros anos de ensino, ideias justas de seus direitos e deveres; aprender as principais
62
Acerca desse assunto Condorcet escreveu nos “Escritos sobre a instrução pública”: “Todo domingo o instrutor
promoverá uma conferência pública, à qual assistirão os cidadãos de todas as idades. Vemos nesta instituição um
meio de dar às jovens gerações aqueles conhecimentos necessários que, entretanto, não puderam fazer parte de
sua primeira educação. Nela se desenvolverão mais extensamente os princípios e as regras da moral como
também a parte das leis nacionais cuja ignorância impede um cidadão de conhecer seus deveres e de exercê-los”
(2010b, p. 26).
63
A autonomia, anota Silva (2004), corresponde a uma independência diante das tendências internas, das
paixões e do autoengano, mas também diante dos demais indivíduos, no que se refere ao engano mútuo, à
dependência intelectual e à incapacidade de defender os próprios interesses e direitos. Cabe à instrução pública
promover as condições intelectuais e morais para que as formas de independência se efetivem.
87
disposições das leis de seu país; e adquirir conhecimentos elementares necessários para a
conduta da vida comum ou política. Essa proposta, ainda que aclimatada no ambiente
monárquico, marca um momento importante das reflexões políticas do autor acerca do papel
da instrução numa sociedade republicana, cujo modo de exercício do poder público seja
democrático. Tal definição de ensino já havia sido desenvolvida bem antes em notas
esparsas64 e continuou básica na formulação de seu conceito de instrução pública, que foi
aprimorado nos primeiros anos da década de 1790, durante a participação do filósofo na
revolução Francesa.
A instrução pública deve ser permanente. Ela não encontra seu termo nos bancos da
escola. O conhecimento é elementar porque constitui um parâmetro mínimo necessário para
manter a independência intelectual, econômica, política e moral. Ele é estratégico em todos os
períodos da vida, daí que os adultos deveriam continuar a instruir-se. O poder público deveria
garantir esse processo continuado de formação da moral e da razão de um povo pelos mais
diversos meios. Caberia à instrução estimular o exercício da cidadania, a qual, de acordo com
Silva (2004), expressaria uma articulação entre a independência individual, a soberania
coletiva e o cosmopolitismo. Da qualidade intelectual e moral dos indivíduos dependeria a
qualidade da agregação coletiva ou nacional. A nação resultaria de escolhas individuais,
porquanto ela constitui um ser abstrato, ou seja, um corpo moral. Por outra parte, uma
soberania não deveria se afirmar em detrimento de outra soberania. A instrução, por essa
perspectiva, deveria instituir cidadãos mais como membros da espécie humana do que de uma
determinada nação, posto que esta representa apenas um palco no qual a humanidade se
expressa. Essa formação não se ocupa apenas com o indivíduo, mas com a transformação de
uma estrutura social injusta. Sem ela, não se estabeleceria, entre os cidadãos, uma igualdade
de fato, nem se tornaria real a igualdade política reconhecida pela lei.
Em última instância, as leis estabelecidas dependem da qualidade da instrução
nacional. Condorcet argui que o fim da instrução perante a Constituição não é o de
fazer que os homens admirem uma legislação pronta, mas torná-los capazes
de avaliá-la e corrigi-la. Não se trata de submeter cada geração às opiniões
bem como às vontades daquela que a precede, porém de esclarecê-las cada
vez mais, a fim de que cada uma se torne cada vez mais digna de governar-
se por sua própria razão65 (2008, p. 53).
64
Ver livro “Escritos sobre a instrução pública” (2010b).
65
Original das “Cinco memórias”: “Le but de l’instruction n’est pas de faire admirer aux hommes une législation
toute faite, mais de les rendre capables de l’aprécier et de la corriger. Il ne s’agit pas de soumettre chaque
génération aux opinions comme à la volonté de celle qui la precede, mais de les éclairer de plus en plus, afin que
chacune devienne de plus en plus digne de se gouverner par sa propre raison” (1994, p. 93).
88
A instrução proposta por Condorcet pode tornar-se, segundo Silva (2004), um lugar
privilegiado de produção do autoengano, isso se ela se tornar um centro de pregações e de
catecismo, em vez de ensinar o cidadão a analisar os objetos e eventos que lhe afetam. A
pedagogia que privilegia a afetividade é, desse modo, obscurantista, especialmente quando
mantém os indivíduos predispostos a crer sem examinar e julgar. O conhecimento, para
Condorcet, constitui-se como um sistema de proposições que podem ser mais ou menos
prováveis. A crença ocorre quando se adere a um enunciado desconhecendo a razão pela qual
ele foi proposto por uma autoridade qualquer; quando se aceita um juízo sem análise dos
motivos de se filiar a ele; e, até mesmo, quando se aposta conforme cálculos de probabilidade
a respeito do grau de veracidade de uma proposição. O mal da crença está em suas formas
preconceituosas.
Condorcet mantém uma atitude cética perante o conhecimento e seus usos: “entre as
verdades reconhecidas e aquelas que escaparam a nossas pesquisas, existe um espaço imenso
que somente a opinião pode preencher66” (2008, p. 50). A doutrina comum de um momento
não pode ser ditada como uma verdade eterna, para que a instrução não se transforme num
meio de se consagrarem preconceitos.
Desenvolver a capacidade de guardar informações é importante, mas isso deve estar,
segundo Condorcet (1968), associado a um ensino que promova uma inteligência ativa e
criadora, bem como a capacidade de conceber, imaginar e combinar ideias de modo
sistemático. Trata-se de ensinar a arte de dirigir as próprias operações intelectuais, de preparar
o indivíduo para aprender por si mesmo ao discutir com os outros. O conhecimento e a
ignorância são, por assim dizer, relacionais, permeados pelo jogo político que define quem
terá ou não acesso aos saberes. Uma falsa instrução, para o filósofo, produz a presunção,
enquanto que uma instrução razoável ensina a desconfiar de seus próprios conhecimentos.
66
Fragmento das “Cinco memórias”: “[...] q’entre les vérités reconnues et celles qui ont échappé à nos
recherches, il existe un espace immense que l’opinion seule peut remplir” (1994, p. 90) .
89
um dos métodos mais eficazes para a instrução comum. Coutel (2004) comenta que uma
narração oferece um rosto às palavras e uma existência sensível a princípios e valores morais.
A imaginação narrativa antecipa uma implicação do cidadão com a continuidade e o
aperfeiçoamento da república e de suas instituições.
A instrução comum prepara os homens para revisar regularmente as leis e a
Constituição, em função dos progressos das luzes, de erros e de preconceitos a questionar. Ela
orienta a respeitar os direitos do homem, a exercer o poder constituinte do povo e a aprimorar
o sufrágio, cuja organização poderia falsear a expressão majoritária. As narrações apresentam
ações, personagens e episódios que suscitam tomadas de posição e de consciência, sem correr
o risco de ofender aos jovens leitores ou espectadores. O narrador - analisa Coutel (2004) -
escapa a todo dogmatismo, contudo propõe certa exemplificação ética e cívica.
Coutel (2004) alude que a instrução comum advogada por Condorcet implica uma
mediação entre república e instrução republicana, entre teoria e prática da cidadania. A
instrução comum não decorre de um entusiasmo, mas tampouco se trata de uma simples série
de conhecimentos positivos. Ela corresponde a uma prática teórica dos direitos políticos. Para
ensinar aquilo que é também uma prática, isto é, a virtude política dos cidadãos, são
necessários conhecimentos precisos e uma coerência ética do mestre, que segue seus próprios
preceitos. A tomada de consciência, nesse espaço educacional, é suscitada e não ditada.
Condorcet considera que a efetividade dos princípios das luzes pressupõe uma
instrução pública que ofereça aos cidadãos conhecimentos e as mais variadas oportunidades.
A esse respeito, o autor do “Relatório” escreve:
67
Fragmento original do “Relatório”: “Offrir à tous les individus de l’espèce humaine les moyens de pourvoir à
leurs besoins, d’assurer leur bien-être, de connaître et d’exercer leurs droits, d’entendre et de remplir leurs
devoirs; assegurer à chacun la facilite de perfectionner son industrie, de se rendre capable des fonctions sociales
auxquelles il a droit d’être appelé, de développer toute l’étendue des talents qu’il a reçus de la nature; et par là
établir entre les citoyens une égalité de fait, et rendre réelle l’égalité politique reconnue par la loi”.
90
O primeiro grau de instrução narra histórias morais curtas aptas a fixar a atenção das
crianças acerca dos primeiros sentimentos que devem experimentar, e para dispô-las a refletir
sobre esses sentimentos, preparando-as para as ideias morais que devem florescer um dia
dessas reflexões. A instrução inicial, para o autor, deve proporcionar, ainda, uma descrição
sumária dos produtos do país e explicitar as leis nacionais, de tal modo que cada criança seja
preparada para a vida em sociedade, sobretudo no que diz respeito a deveres e direitos que
dispomos uns para com os outros:
68
Original das “Cinco memórias”: “Le premier degré d’instruction commune a pour objet de mettre la généralité
des habitants d’un pays en état de connaître leurs droits e leurs devoirs, afin de pouvoir exercer les uns et remplir
les autres, sans être obligés de recourir à une raison étrangère” (1994, p. 109).
69
Trecho original do “Esboço”: “[...] pour l’administration de ses affaires, pour le libre développement de son
industrie et de ses facultés, pour connaître ses droits, les défendre et les exercer , por être instruit de ses devoirs;
pour pouvoir les bien remplir; pour juger ses actions et celles des autres avec sa propre conscience [...] pour
n’être plus la dupe de ces erreurs populaires qui tourmentent la vie de craintes superstitieuses et d’espérances
chimériques” (2004, p. 439).
70
Trecho das “Cinco memórias”: “En unissant, comme on l’a propose, la lecture à l’écriture, en présentant les
premières idées morales dans des histories qui peuvent n’être pas sans intérêt [...] en mêlant à l’étude de la
géométrie l’amusement de faire tantôt des figures, tantôt des opérations sur le terrain, en ne parlent, dans les
91
[...] não somente o que é útil saber como homem e como cidadão, quaisquer
que sejam as profissões a que se dediquem, senão tudo o que pode ser
necessário para cada grande setor profissional como a agricultura, as artes
mecânicas, a arte militar e inclusive os conhecimentos médicos que
necessitam simples praticantes, as parteiras e os artesãos veterinários71.
O quarto grau de instrução é oferecido nos Liceus, nos quais as ciências devem ser
ensinadas em seu pleno desenvolvimento, ou seja, no estado em que se encontram
desenvolvidos os conhecimentos. O ensino nos Liceus revela, conforme Condorcet, pela
própria composição de seu corpo de professores e estudantes, uma progressiva diminuição da
desigualdade de fortunas, unindo sujeitos provenientes das variadas camadas sociais. Ali são
formados:
éléments d’histoire naturelle, que d’objets qu’on peut observer, et dont l’examen est uns plaisir, on rendra
l’instrucion facile; elle perdra ce qu’elle peut avoir de rebutant, et la curiosité naturelle à l’enfance sera um
aiguillon suffisant pour déterminer à l’étude” (1994, p. 131).
71
Originalmente, no “Relatório”: “[...] non seulement ce qu’il est utile de savoir comme homme, comme
citoyen, à quelque profession qu’on se destine; mais aussi tout ce qui peut l’être pour chaque grande division de
ces professions, comme l’agriculture, les arts mécaniques, l’art militaire; et même on y a joint les connaissances
médicales nécessaires aux simples praticiens, aux sages-femmes, aux artistes vétérinaires”.
92
[...] importa à prosperidade pública dar às crianças das classes pobres, que
são as mais numerosas, a possibilidade de desenvolver as suas faculdades; é
um meio, não só de assegurar à pátria mais cidadãos em estado de servi-la e,
à ciência, mais homens capazes de contribuir para o seu progresso, mas
também de diminuir essa desigualdade que nasce da diferença das fortunas e
fundir entre si as classes que esta diferença tende a separar. A ordem da
natureza não estabelece na sociedade outra desigualdade que a da instrução e
a da riqueza e, alargando a instrução, atenuaremos ao mesmo tempo os
efeitos destas duas causas de distinção. As vantagens da instrução, menos
exclusivamente unidas às da opulência, serão cada vez menos sensíveis e
não chegarão a ser perigosas; nascer rico estará equilibrado pela igualdade,
72
Fragmento original do “Relatório e projeto”: “[...] les savants, ceux qui font de la culture de leurs esprit, du
perfectionnement de leurs propres facultes, une des occupations de leur vie, ceux qui se destinent a des
professions ou l’on ne peut obtenir des grands succès que par une étude approfondie d’une ou plusieurs sciences.
C’est là aussi que doivent se former les professeurs. C’est au moyen de ces établissements que chaque
générations peut transmettre à la génération suivante ce qu’elle a raçu de celle qui l’a précédée, et ce qu’elle a pu
y ajouter”.
93
A Sociedade Nacional das Ciências e das Artes, o último grau de instrução, dirige e
vigia a instrução republicana. A entidade deve exercer a supervisão dos demais níveis de
ensino, gozando para tanto de autonomia perante o poder público. Cabe à Sociedade proteger
e acelerar os progressos das ciências e das artes, resistindo, se for o caso, contra os possíveis
inimigos das luzes, e eventualmente protegendo a instrução do próprio arbítrio do Estado.
Para Condorcet (1990), os trabalhos e funções da Sociedade visam a:
73
Original do “Relatório e projeto”: “[...] il importe à la prospérité publique de donner aux enfants des classes
pauvres, qui sont les plus nombreuses, la possibilite de dévolopper leurs talents; c’est un moyen, non seulement
d’assurer à la patrie plus de citoyens en état de la servir, aux sciences plus d’hommes capables de contribuer à
leurs progrès, mais encore de diminuer cette inégalité qui naît de la différence des fortunes, de mêter entre elles
les classes que cette différence tend à séparer. L’ordre de la nature n’établit dans la societé d’autre inégalité que
celle de l’instruction et de la richesse; et, em étendant l’instrucion, vous affaiblirez à la fois les effets de ces deux
causes de distinction. L’avantage de l’instruction, moins exclusivement reuni à celui de l’opulence, deviendra
moins sensible, et ne pourra plus être dangereux; celui de naître riche sera balance par l’égalité, par la supériorité
même des lumières que doivent naturellement obtenir ceux qui ont un motif de plus d’en acquérir”.
74
Idem: “Premier: de surveiller et diriger l’instruction générale; second: de constribuer au perfectionnement et à
la simplifications de l’enseignement; troisième: de reculer, par des découvertes, les limites des sciences et des
arts; quatrième: de correspondre avec les sociétés savants étrangères, pour enrichir la France des découvertes des
autres nations. Elle sera, suivant les circonstances, chargée par le Corps législatif de différens travaux
scientifiques et littéraires, qui auront pour objet l’utilité publique et la gloire de la patrie”.
94
seus direitos e deveres, contar, ler e escrever. A escolha dos conteúdos deveria dar-se
conforme a idade dos alunos a quem eles se destinam, possibilitando o florescimento natural
de capacidades intelectuais. Os conteúdos deveriam ser definidos de acordo com o conceito
de conhecimento elementar. A definição de tal saber será sempre problemática e sujeita a
revisão. O que está em jogo é a correta proporção entre o que realmente é necessário e pode
ser ensinado pela instrução e a extensão de conhecimentos acumulados pelo patrimônio
coletivo, conforme os progressos do espírito em uma determinada época. O conhecimento
elementar estabeleceria uma dupla continuidade entre razão individual e razão comum, de
uma parte, e entre sábios e cidadãos, de outra.
Condorcet (1994) vislumbra na instrução pública uma oportunidade de combater a
estupidez produzida pela divisão social do trabalho. O autor recorda Smith, para quem quanto
mais as profissões mecânicas se dividiam, mais o povo tornava-se exposto a contrair essa
estupidez natural própria de homens limitados a um pequeno número de uma mesma espécie
de ideias. Cabe à instrução, desse modo, ampliar o repertório de conhecimentos ao mesmo
tempo em que desenvolve o raciocínio e a independência intelectual, o que a distingue
seguramente de um mero ensino técnico ou profissional. Disso resulta que o conhecimento
elementar não corresponde a uma mera informação. Ou seja, não se trata, simplesmente, de
uma transmissão de conteúdos e habilidades práticas.
A instrução básica e elementar não deve ser uniformizadora - reivindica Condorcet
(2010b). Já nos seus primeiros escritos sobre a educação, o autor destaca que os homens são
naturalmente desiguais no que respeita ao espírito, ou seja, que eles desenvolvem capacidades
de aprender e talentos diferentes. Ainda que se possa organizar um curso geral destinado a
todas as crianças, indistintamente, não se trata de ensiná-lo a todos, nem em sua totalidade,
nem da mesma maneira. O ensino, pensado dessa maneira, deve respeitar as diferenças nas
capacidades de aprendizagem. Essas diferenças, contudo, não devem definir hierarquias
escolares discriminadoras. Para aqueles que apresentam maior dificuldade de aprendizagem, o
ensino deve, nos termos de Condorcet, limitar-se a conhecimentos gerais, apenas o mínimo
indispensável para que os indivíduos não sejam reduzidos ao estado de imbecis ou idiotas na
sociedade. Em outras palavras:
[...] é difícil não crer na desigualdade natural dos intelectos [...] grande parte
das causas da desigualdade acidental não depende da vontade dos
professores; somos forçados, na prática, a encarar a educação como agindo
sobre intelectos naturalmente desiguais [...] Quanto aos estudos necessários
para o desenvolvimento de suas aptidões, será preciso limitar o que tem de
aprender apenas àquilo que esteja mais conforme a eles, que seja mais
adequado à natureza e à força de seus intelectos. Pode-se, por conseguinte,
95
propor um curso geral de educação que possa servir a todas as crianças, mas
ele não deve ser ensinado a todas, nem integralmente, nem da mesma
maneira (2010b, p. 64).
Trata-se de uma redução da extensão do que deve ser ensinado. No entanto, esse
método exige um aprofundamento maior no ensino daquilo que é mais útil ou para o qual a
criança demonstrar maior gosto e talento. O útil, para Condorcet, não se confunde com as
vantagens de uma aplicação imediata do conhecimento. Os que demonstrarem talento para o
estudo devem receber, advoga o autor, incentivos públicos e recursos econômicos quando não
puderem arcar com as despesas escolares. Isso deve ser feito em proveito dos menos
favorecidos para continuar seus estudos. Busca-se, de um lado, tornar o ensino igual e
universal, e, de outro, o mais completo possível conforme as circunstâncias o permitirem:
instruindo formalmente. Nesse caso, constituem objetivos da instrução: preparar cada um para
aprender por si mesmo, fortalecer as faculdades naturais e o interesse pelos conhecimentos.
A instrução deve desenvolver o princípio da reciprocidade e da cidadania: levar os
alunos a respeitar nos outros os mesmos direitos que eles admitem lhes pertencer; ensinar os
princípios elementares da organização política, para que se possa acompanhar mais tarde a
instrução comum destinada aos adultos, sobretudo nas conferências dominicais. A instrução
moral apresenta-se com o propósito de fortalecer atitudes virtuosas e de fragilizar as viciosas.
A instrução comum preconizada por Condorcet deveria habituar o indivíduo a refletir sobre
suas próprias ações, para saber julgá-las segundo preceitos. Silva (2004) acentua que o
exercício dessa capacidade de reflexão moral é essencial para impedir que o indivíduo se
corrompa. Não se trata, pois, de uma doutrinação moral, para inculcar normas, porquanto a
moral exige, antes de tudo, reflexão.
Expor as crianças a experiências que lhes despertem a sensibilidade moral e a
compaixão pelos seres sensíveis, tanto com relação aos homens quanto com os animais, é
fundamental, também, para o desenvolvimento moral de cada indivíduo. A instrução
culminaria com o estudo da filosofia, a qual deveria ser ensinada depois que o estudante já
tivesse adquirido a força e o hábito de meditar. Condorcet (2010b) propõe que a instrução
reflita sobre a maneira como as ideias foram adquiridas e sobre o sistema moral que se tem
admitido.
Condorcet (2008) reinvindica na quinta das “Cinco memórias” que o ensino da moral
esteja livre dos grilhões da autoridade e de vínculos religiosos e ideológicos. Somente assim
se formariam indivíduos livres e se poderia cultivar uma moralidade pública razoável. Está
em questão buscar e provar verdades e não induzir a amá-las. Para grande parte dos
indivíduos, quando ainda não tivessem desenvolvido o sentimento de compaixão e não
fossem capazes de tomar contato com as luzes e os conhecimentos morais, restaria apenas o
recurso ao entusiasmo. Essa espécie de formação moral torna o indivíduo suscetível ao
fanatismo, podendo levá-lo a admitir como virtude todo crime útil aos seus interesses ou aos
daqueles mais astutos, os quais são capazes de manipular ou combinar preconceitos, apoderar-
se da imaginação e inflamar o entusiasmo.
Um dos principais propósitos da instrução, conforme as “Cinco memórias”, é diminuir
a desigualdade nascida da diferença dos sentimentos morais75. Condorcet (2008) assente que a
75
Vial (1970) chama a atenção para uma questão central do pensamento de Condorcet referente à correlação
entre igualdade e liberdade. Segundo sua análise, o que torna os homens iguais não é a igualdade de talentos
97
naturais, nem a igualdade de propriedade, mas a igualdade moral. Assim, tal como os homens são reconhecidos
como iguais perante o direito, eles o são também perante a moral.
98
humanidade inteira. Condorcet (2010b) não admite que alguém possa obter vantagens ou
privilégios perante as instituições públicas:
Condorcet sugere uma espécie de Estado do bem-estar comum. Admite que boas leis
podem evitar a concentração de riquezas, uma das perversidades das instituições sociais. Silva
(2004) comenta que a justiça, tal como concebida pelo filósofo, exige, por exemplo, que se
reconheça o direito natural dos bastardos e que o divórcio seja permitido legalmente.
Ninguém pode ficar abandonado à própria sorte, especialmente crianças, velhos e inválidos. É
necessário, para tanto, criar instituições que abriguem deficientes, tais como, por exemplo,
cegos e surdos, de modo que recebam uma instrução especial e que possam trabalhar e se
manter por conta própria.
A miséria não deve constituir uma condição habitual para uma classe de cidadãos.
Condorcet propõe que, ao se reduzirem as desigualdades extremas de riqueza, também se
diminua um dos principais fatores da corrupção moral de um povo: o uso de meios ilegítimos
para promover os próprios interesses. Cabe à lei determinar normas comuns que protejam os
indivíduos. Não são os legisladores que devem formar a moral de um povo, mas a instrução
pública. A formação da moral dos indivíduos passa, pois, pela questão da justiça social, não
só na perspectiva de um direito formal, mas, também, no que diz respeito às desigualdades de
fato e às injustiças econômicas.
Para aqueles que optam por não agir moralmente, deve aplicar-se a coação jurídica.
Contudo, conforme a exigência da racionalidade das leis, as penas cruéis devem ser banidas.
Silva (2004) entende que, para Condorcet, a punição dos condenados não pode servir de meio
para instruir moralmente um povo. O terror não consiste numa forma legítima de evitar um
crime. A moral de um povo livre não pode ser formada a partir do medo de punições.
Questiona-se de que vale a instrução fortalecer o sentimento de justiça se a desigualdade
social o viola sem cessar. A formação moral de um povo, desse modo, não está desvinculada
da justiça social nem da abertura do país para o sentimento de justiça entre os povos.
99
76
Condorcet, de acordo com Almeida (2004), provavelmente não tomou conhecimento da obra de Kant. De
qualquer maneira, distanciou-se da tendência do pensador de Königsberg. A razão, para Condorcet, não se divide
em teórica e prática, e a moral não pode se dar sem uma formação da racionalidade teórica. Com isso, a instrução
pública torna-se fundamental para o desenvolvimento da autonomia individual. A formação moral resulta,
sobretudo, de uma instrução voltada para os valores universais, o desenvolvimento do pensamento analítico e o
cosmopolitismo. A boa vontade não basta. Ela deve ser socorrida pelas luzes da razão.
100
defende que o ensino se universalize para viabilizar a instituição dos cidadãos. Ao desconfiar
da educação nacional e do modelo espartano de formação moral, em que o indivíduo seria
educado para a pátria, Condorcet aponta para os perigos do fanatismo patriótico que
expressaria uma religião política.
A formação da razão e da moral de um povo corresponde a um empreendimento
público, uma meta da arte social. É nesse sentido que a ideia de progresso em Condorcet se
ancora, sobretudo, na instrução pública. O mais curioso, segundo Almeida (2004), é que
começamos a questionar se Condorcet foi muito avançado para o seu tempo, ou se muitas das
propostas pedagógicas atuais não são tão novas assim. Para a comentarista, essas ideias se
apresentam muitas vezes enviesadas pelo irracionalismo, comunitarismo, multiculturalismo e
outras modas pedagógicas que, segundo ela, se contrapõem ao projeto iluminista ao qual o
nome de Condorcet está ligado. O capitalismo teria aprendido a se justificar de outro modo,
dispensando o ideário universalista promovido pelo movimento iluminista. Podemos
discordar dessa sentença de Almeida à medida que ela detém o debate a respeito do legado do
iluminismo para se enfrentar os desafios de nosso tempo, fazendo crer que o capitalismo teria
se independizado de todas suas possíveis justificações.
A filosofia condorcetiana, assegura Silva (2004), propõe uma moral baseada na
identidade geral do ser humano, sobretudo na sensibilidade comum e na universalidade da
razão. Sua proposta de instrução apresenta-se como uma forma de ensino capaz de promover
uma moral cosmopolita, baseada na solidariedade, na benevolência e na justiça. Silva
considera que, para Condorcet, existe um imperativo moral enraizado na própria organização
natural do ser humano que o leva a não suportar a injustiça e ficar indiferente diante do
sofrimento alheio. Contudo, essa característica seria verificada apenas no indivíduo não
corrompido pelos preconceitos do seu meio social.
Em outras palavras, a moral, sob o mesmo ponto de vista, resulta de uma instrução
adequada que promova o desenvolvimento equilibrado da sensibilidade e da racionalidade.
Com isso, ela estimula que o indivíduo seja capaz de se preocupar não apenas consigo
mesmo, com o interesse de sua família e de sua nação, mas também com o destino de toda a
humanidade. Cabe a ela instituir cidadãos capazes de agenciar moralmente os sentimentos
naturais despertados nas mais variadas situações diárias, as regras comuns admitidas
coletivamente e as informações recebidas dos mais diversos canais de comunicação.
Silva (2004) destaca que, para Condorcet, a proposta de difusão de um conhecimento
elementar visa a garantir um mínimo não apenas de conhecimentos adquiridos, mas de
ocasião de desenvolver capacidades morais e intelectuais, sem as quais a independência
101
individual não é possível. Essa autonomia revela-se na independência do indivíduo diante dos
demais no que concerne ao uso do intelecto e às deliberações individuais. A independência
manifesta-se, também, na ampliação da cidadania, que consiste, sobretudo, no controle do
processo legislativo e na ampliação da igualdade de fato entre os cidadãos. A instrução
pública só pode contribuir para a formação de uma moralidade autônoma na medida em que
ela se mantém crítica, não-dogmática e aberta aos progressos do espírito humano.
Sem o desenvolvimento da racionalidade comum e do acesso a conhecimentos
elementares, os quais se definem sempre em relação aos progressos alcançados pelo
desenvolvimento do espírito humano a cada época, não se pode desenvolver a ideia de justiça.
Faltando essa ideia e sentimento, não se pode produzir uma moralidade. A independência
individual e a soberania coletiva dependem de uma instrução pública voltada para valores
humanistas e cosmopolitas. Dessa maneira, ao escrever sobre o ensino de ciências, Condorcet
(2010b) discute a moral seja como uma disciplina propriamente dita seja nas relações dela
com os demais conhecimentos. Distingue, de modo geral, as ciências em: abstratas (lógica e
matemática), físicas ou naturais (física, história natural e química) e morais ou políticas
(metafísica, moral, jurisprudência, economia e história). Todas essas disciplinas influenciam
na formação moral, incluindo-se, também, o ensino de línguas, de artes, a educação física e a
aprendizagem técnica.
A consciência moral não pode encontrar a verdade em si mesma; ela é resultante da
articulação da sensibilidade física com a memória e a linguagem. Condorcet opõe-se ao
sentimentalismo moral: as sensações e o sentimento forneceriam apenas uma base para a
aquisição de ideias morais pela reflexão. A moralidade, nesse sentido, não revela nenhum tipo
de faculdade específica e inata; ela só se realiza no pleno uso da reflexão racional. O que vale
para o indivíduo descrito por Condorcet vale também para todo um povo:
É natural que o homem queira ser amado para contar com a benevolência
dos outros, que procure dar-lhes uma boa impressão da sua franqueza, da sua
probidade e das suas boas qualidades em geral para merecer-lhes a
confiança. [...] Nossa vida está quase inteiramente à mercê da opinião alheia
[...] Mas não devemos crer que não haja algum inconveniente em estimular
excessivamente esse sentimento. Não estamos falando da necessidade de
aprender a se elevar acima da opinião alheia, a enfrentar as opiniões injustas,
a preferir o testemunho da própria consciência à estima pública. Também
não estamos falando das ocasiões em que é preciso saber sacrificar-se ao
desprezo (2010b, p. 116).
102
77
A nota 1 versa sobre as expressões usadas neste texto para designar a educação pública republicana.
103
78
Boufleur e Fensterseifer (2010) destacam que um pensamento autônomo, “no sentido de um pensamento que
parece dispensar a percepção dos outros, é apenas aparente”, uma vez que “nossa socialização e inserção na
cultura é tal que praticamente nos passa despercebido o quanto o nosso pensamento se encontra condicionado
socialmente, o quanto ele é tributário da história coletiva e do contexto no qual nos encontramos”. Contudo, os
mesmos autores salientam que, independente da fragilidade da autonomia, a possibilidade e, até mesmo, a
desejabilidade de uma elaboração em perspectiva própria não deve ser anulada.
105
está na divisão dos homens entre os que estão supostamente destinados a ensinar e os que
teriam sido produzidos para crer:
79
Original do “Esboço”: “J’entends celle d’une classe d’hommes dépositaires des principes des sciences ou des
procédés des arts, des mystères et des cérémonies de la reliogion, des pratiques de la superstition, souvent même
des secrets de la législation et de la politique. J’entends cette séparation de l’espèce humaine en deux classes,
l’une destinée à enseigner, l’autre faite pour croire, l’une cachant orgueilleusement ce qu’elle se vante de savoir,
l’autre recevant avec respect ce qu’on daigne lui révéler, l’une voulant s’élever au dessus de la raison et l’autre
renonçant humblement à la sienne, et se rabaissant au dessous de l’humanité en reconnaissant dans d’autres
hommes des prérogatives supérieures à leur commune nature” (2004, p. 249).
106
Capítulo IV
80
Garcia e Fensterseifer anotam que “os imaginários republicanos e democráticos instaurados e expandidos
desde o século 18 se assentam nos princípios da isonomia, da igualdade de direitos [...] e da ampla participação
dos cidadãos nos diversos assuntos de interesse comum”. As leis são concebidas, por essa perspectiva, “como
originadas da elaboração e do assentimento universal dos cidadãos”, constituindo “um horizonte jurídico para as
ações necessárias e condizentes com propósitos que uniram os membros em associações políticas”. Em outros
termos, o ideário republicano-democrático, “cujas primeiras conceituações e configurações aparecem na
antiguidade greco-romana [...] sofreram profundas alterações nas sociedades modernas a partir das experiências
revolucionárias na América e na França do século 18” (2009, p. 7-8).
107
Articulada desse modo, a educação republicana deve estar atenta aos princípios
constitucionais da república. Ela constitui uma esfera na qual devem ser ampliadas condições
de se cultivar um agir moralmente razoável, entendido em sentido estrito como um agir
perante si mesmo e os outros cidadãos de tal modo que se reduzam as possibilidades de
sofrimento, hostilidade e desigualdade; e, também, considerado em sentido amplo como um
sentimento de humanidade, de tal modo que por nosso agir se assegurem condições de
independência e de felicidade na vida de cada homem. A compaixão e o interesse individual
esclarecido constituem a base de uma moral não assentada na religião ou na determinação
natural.
Um olhar instruído, sugere o autor, pode nos libertar do espírito de partido, seita ou
facção, abrindo-nos ao espírito público e à reciprocidade dos cidadãos e de suas sociedades, o
que implica compreender o princípio da igualdade como instituição moral e política que
favorece a humanidade. Critica-se Condorcet por validar a propriedade privada como um
direito essencial dos indivíduos, ao passo que se lhe elogia por advogar que a igualdade
caracteriza e distingue uma sociedade moral. Críticas à parte, a igualdade assentida pelo autor
institui-se como um direito a ser considerado critério e, ao mesmo tempo, propósito das
instituições republicanas. Este princípio é tão importante que, sem sua efetivação, poderia
parecer justificável fundar uma ordem social em artimanhas supersticiosas e ideológicas que,
falseadas como ciência, privilegiassem um determinado modo de ser no mundo como o auge
do aperfeiçoamento do espírito humano.
A injustiça infligida a alguém equivale a uma ameaça que se estende a todos, sentencia
o filósofo. A possibilidade de inovar na sociedade por leis e ações expressa a força da
perfectibilidade humana, não estritamente determinada pelos impulsos da natureza e pelos
ensinamentos que se propagam sem justificar. Os indivíduos porventura privilegiados pela
conservação de um estado de sociedade extremamente desigual poderiam ter tolhidos seus
privilégios e interesses de acumulação de riquezas por leis que expressassem a transformação
social desejada por uma parcela da sociedade, para quem a vida e a convivência social se
tornavam insuportáveis. A pretensão de progresso, desse modo, está ligada estreitamente à
possibilidade de reconfigurar a vida social para favorecer a felicidade pública e não somente a
dos indivíduos.
O argumento segundo o qual os indivíduos à medida que se desigualam devem ser
tratados desigualmente pelo poder público antecipa, por assim dizer, uma época na qual os
indivíduos se desigualem menos, não a ponto de se igualarem absolutamente - o que é
108
impossível - mas apenas o suficiente para que possam conviver num estado de bem-estar
comum. A vida em sociedade é normalmente tensionada por indivíduos que consideram a
igualdade um critério político e um propósito social decisivos. A igualdade social, dessa
maneira, representa condição básica de um estado social de bem-estar comum.
Relativismos e universalismos podem ser opressivos, assim como contribuir para a
emancipação, para combater a estupidez, a miséria e o sofrimento. Tal é o desafio moral e
curricular de nosso tempo. A república é ainda uma novidade no Brasil. Faz tempo que há
uma difusão, uma moda intelectual de acusar filósofos de protegerem o Estado, de
professarem uma fé ingênua no progresso e nas capacidades racionais dos humanos, de serem
insensíveis às diferenças e à contingência histórica. Este trato caricatural do pensamento do
século 18 não é desinteressado. O que se considerava passível de ser submetido ao exame
racional argumentativo, passa a ser considerado natural ou inevitável. Posição que é
acompanhada de um utilitarismo simplificado e de uma ideia de política e de democracia
radicalmente distinta da elaboração intelectual dos filósofos políticos do século 18. O
universalismo de Condorcet pode ser descrito em termos não dogmáticos. Seu amor pela
humanidade e sua pretensão de justificação racional da ação configuram um substrato, um
patrimônio comum, capaz de articular-se em virtude de sua generalidade e de sua aspiração à
verdade no juízo de cada cidadão. A palavra nacional, no caso do filósofo, adquire o sentido
de pertencimento e de identidade, como exercício de amor pela boa ordem acordada e
conservada pelos cidadãos.
A morte de Condorcet, por suicídio81 ou assassínio, na prisão de Bourg-Egalité
(Bourg-la-Reine), aos 29 dias de março de 1794, logo depois de seu arresto, talvez evidencie
que não foi tanto uma pertença de facção senão o substancial radicalismo democrático de sua
posição que o pôs em rota de colisão com Robespierre e com a política do Comitê de Saúde
Pública82 da Convenção nacional Francesa. O filósofo foi um inimigo declarado de qualquer
forma de soberania distanciada das capacidades e decisões do povo, pois, para ele, todo poder
deveria submeter-se perenemente ao tribunal racional da verdade e do erro. Tribunal não
presidido por uma ideia abstrata de razão, objeto de culto, ou, pior ainda, por um corpo de
verdades dogmáticas que custodiasse a tradição.
No essencial, há no repertório argumentativo de Condorcet elementos e justificativas
inspiradoras para as instituições republicanas da sociedade brasileira, particularmente das
81
Condorcet não parece ter evidenciado em vida disposição para o suicídio. Se optou pela morte, o fez, talvez,
para evitar o suplício.
82
Apesar do nome, o Comitê de Saúde Pública não tinha por competência cuidar da assistência à saúde, mas dos
rumos da Revolução, que passava a devorar seus próprios integrantes.
109
83
O total da população urbana no Brasil em 1940 era de 12.880.182 habitantes. Na mesma época, residiam na
zona rural 28.356.133 brasileiros. O total da população urbana em 1996 já havia subido vertiginosamente para
123.076.830 habitantes. A população rural, por sua vez, era de 33.993.332 habitantes. Como se pode ver,
rapidamente caiu a proporção dos brasileiros que viviam no campo. Trata-se de uma explosão demográfica da
qual não bastaria estar presciente para conseguir planejar tudo o que se fizesse necessário para uma sociedade em
termos de educação pública. A população brasileira estimada em 2013 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística já passou de 201 milhões de habitantes (Fonte: IBGE).
110
José Bonifácio (1998) sugere que os rapazes índios que demonstrassem mais talentos
nas escolas das aldeias frequentassem aulas de ciências úteis nas escolas que deveriam ser
estabelecidas, de acordo com seu projeto, em cada capital das províncias. Os índios que se
destacassem deveriam ser sustentados como pensionários do Estado. Para aqueles que
tivessem feito mais progressos nas aulas, e tivessem demonstrado melhor comportamento,
deles se escolheriam os chefes militares, não só para as aldeias, mas também para as outras
povoações brasileiras, uma vez que deveríamos favorecer em iguais circunstâncias os índios.
No transcorrer do século 20, sobretudo a partir de 1926, os temas direito à educação e
responsabilidade estatal sobre a escolarização passam a se fazer mais presentes no cenário
político brasileiro. Foi em 1926 que a Constituição de 1891, a primeira republicana do Brasil,
reconheceu a importância estratégica do Estado, explicitamente da União, na difusão e na
consolidação da educação básica como elemento essencial da construção da própria esfera
pública. Um projeto de renovação da ação estatal sobre a educação se esboçava ali
antecipando alguns pontos que seriam consagrados na Constituição de 1934, como o direito
social à educação, um dever da sociedade e do Estado.
A Constituição de 1934 finalmente instituiu a gratuidade e a obrigatoriedade do ensino
fundamental no Brasil, facultando a disponibilidade do ensino religioso e tornando obrigatória
a disciplina de educação moral e política. O ensino profissionalizante também seria
implantado. Em quase todo o vasto território brasileiro, foram instituídas escolas
profissionalizantes, atendendo às exigências sociais por qualificação e diversificação da mão-
de-obra. No Brasil, escolarizar os filhos, ainda que em condições precárias, nutre a
expectativa de se quebrar um ciclo de desvantagens econômicas, de cor, sexo e origem. A
educação pública, para muitos pesquisadores, foi a instituição republicana que mais acumulou
expectativas de ampliação do campo de possibilidades em relação ao que fora possível fazer
por parte dos pais e avós.
Contudo, essa instituição da república não logrou transformar significativamente o
contraste social que caracteriza o dia a dia da maioria dos brasileiros. O convívio entre
pobreza e riqueza a poucos metros de distância tornou-se uma marca de nossas principais
capitais. Com efeito, o Brasil apresenta traços marcantes: uma das maiores desigualdades
sociais da Terra em convívio com uma das mais altas concentrações de renda. É defensável,
no mínimo, que o ensino seja acessível em todos os graus para os brasileiros. A educação
republicana, pensada dessa maneira, não está condicionada estritamente à lei da oferta e da
procura, ou seja, não se limita à condição de uma mercadoria.
111
84
Assim pronuncia o “Manifesto do Senado Federal” (2005): “[...] estamos diante de uma encruzilhada que
requer o auto-exame de toda a nação. Em outras palavras, estamos diante de um desafio instaurador de um
processo que amplia a democracia e educa para a cidadania, rejuvenesce a sociedade, dá uma face humana à
economia e irriga o potencial criativo da rica diversidade do país [...] Por isso, invocando tantos brasileiros,
inclusive desta Casa, que fizeram da luta pela educação o ideal maior de suas vidas, os senadores da República,
cônscios de sua missão e de suas responsabilidades perante a Nação, convocam o país para um necessário
consenso em torno de uma política de Estado para a educação, com força e continuidade para operar a
reconstrução educacional do país e resgatar o sonho dos signatários do Manifesto dos Pioneiros de 1932 e do
Manifesto dos Educadores de 1959, como também fazer cumprir os dispositivos da Constituição de 1988, da Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996, do Plano Nacional de Educação aprovado no ano 2000 e,
ainda, resgatar os compromissos internacionais do país, conforme acordados nas Conferências e Declarações
Mundiais lideradas pela UNESCO”.
85
Censo demográfico 2010 - IBGE (Educação e deslocamento: resultados da amostra).
86
Pesquisa nacional por amostra de domicílios (PNAD 2011) - IBGE.
112
encorajadores para a República Federativa do Brasil: os salários de 10% dos cidadãos mais
pobres cresceu 91,2% na última década; 23,4 milhões de cidadãos brasileiros deixaram a
condição de pobreza; o Brasil atingiu seu menor nível de desigualdade de renda desde 1960,
mas levaria 20 anos, no atual ritmo de crescimento, para atingir índices de igualdade como os
verificados, por exemplo, nos Estados Unidos87.
A primeira versão da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) data de 1961,
seguida da de 1971. A Lei nº 9.394, de 1996, por sua vez, definiu e regularizou um sistema de
educação republicana baseado em princípios e garantias constitucionais. Trata-se atualmente
do mais importante conjunto normativo da educação brasileira. A LDB reivindica como
fundamento o princípio do direito universal à educação para todos. Ela apresentou
configurações distintas com relação às leis anteriores, como, por exemplo, a inclusão da
educação infantil (creches e pré-escolas) como primeira etapa da educação básica. O
ordenamento jurídico brasileiro estabelece como dever do Estado e da sociedade favorecer a
cada cidadão o direito a uma educação de boa qualidade, conforme a Constituição de 1988, a
LDB de 1996 e o Plano Nacional de Educação 2001-2010. Esse direito é considerado
constitucionalmente um direito social, com estatuto de direito consignado na Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948 e no Pacto Internacional de Direitos Sociais,
Econômicos e Culturais de 1996.
A sociedade e o Estado, de acordo com a legislação brasileira, devem prover os meios
para que todos os cidadãos possam ter oportunidade de educar-se, conforme entenderem seja
necessário. O problema das instituições educacionais republicanas atuais reside, sobretudo,
em estabelecer as bases de uma mudança de espírito, de um adequado trabalho cotidiano, de
uma filosofia que seja capaz de promover as potencialidades da escola e da universidade,
tornando-as a um só tempo críticas e criativas. Por essa razão, é fundamental para uma boa
reforma da educação pública a preparação do corpo docente. Ora, seria inútil uma
reestruturação que esquecesse de promover condições de valorização da docência, agente de
provocação e mobilização da aprendizagem.
A educação republicana que desfrutamos resulta das leis e do poder que delas emana,
mas também resulta das assimetrias políticas entre os indivíduos, entre segmentos
populacionais que se diversificam pela origem, entre homens e mulheres, e entre adultos e
crianças. A construção e o acesso a esse bem público primordial que é a educação escolar se
87
Pesquisa “A década inclusiva (2001-2011): desigualdade, pobreza e políticas de renda” - IPEA. A diminuição
da desigualdade social é medida pelo coeficiente de Gini, que passou de 0,594 em 2001 para 0,527 em 2011. No
índice, quanto mais perto de zero menor a desigualdade entre os mais ricos e os mais pobres do país.
113
CONSIDERAÇÕES FINAIS
poder público não deve delegar exclusivamente à família e à iniciativa privada um elemento
que é constitutivo de uma sociedade moral: a instrução pública. Configurada desse modo, a
república não se dedica à formação e ao fortalecimento de sentimentos nacionais. Ela deve,
isso sim, evitar que o ensino em suas instituições se transforme numa espécie de religião
política, cujos efeitos são semelhantes aos de um tipo de catecismo religioso que obscurece a
razão. Ainda que o poder público deva regular a instrução pública, a competência quanto à
educação deve ser garantida às famílias. A república, ao atuar como educadora, atenta contra
os direitos dos pais de educar seus filhos.
O hábito e as leis que violam princípios e direitos, que asseguram privilégios e
perpetuam estratificações ou hierarquizações sociais, podem ser enfrentadas com a
salvaguarda do livre exercício de pensamento e da cidadania. Sob essa perspectiva, a
doutrinação, destituída da análise de seus dogmas e justificativas, fere a liberdade de pensar e
expressar opiniões. Se o conhecimento sectário funda seu poder sobre o segredo e a exclusão,
a educação republicana, pelo contrário, vincula-se à ideia de um conhecimento produzido
coletivamente e fruído publicamente, fundado sobre a independência da consciência de cada
cidadão submetida a um processo ininterrupto de verificação. Pensado desse modo, o
conhecimento equivale a um bem-comum inalienável e universalmente acessível, constituindo
condição material da convivência civil.
O texto principiou com a discussão dos sentimentos morais, se estendeu com a
configuração da ordem política republicana e culminou com reflexões acerca da cidadania e
da educação, pensadas, então, sob os pressupostos anteriormente apresentados. O capítulo
inicial, denominado “Sentimentos morais e princípios republicanos”, dedicou-se ao exame
dos seguintes enunciados: os principais sentimentos morais - a compaixão e a humanidade -
são passíveis de investigação racional; eles, ao serem cultivados, promovem uma
interdependência da felicidade individual e da felicidade pública; a república e a instrução
pública não se dissociam do cultivo de uma racionalidade comum e de sentimentos morais; as
instituições republicanas devem fragilizar a força de hábitos que nos familiarizariam com a
violação de princípios racionais e de direitos naturais.
No que respeita à razão comum, destacam-se entre as afirmações-chave de Condorcet:
que ela é produzida intersubjetivamente e que corresponde a uma capacidade distintiva da
espécie humana, articulando sua sensibilidade natural com a memória e a reflexão; que ela
não constitui, simplesmente, um sentido ou estágio de evolução do indivíduo na busca de
verdades, senão que consiste na capacidade de se estabelecer conceitos e proposições de
modo discursivo ou argumentativo.
119
Condorcet foi quem de modo original explorou e integrou o debate moral com a
formulação e a defesa de princípios republicanos. Com efeito, o autor examinou a questão
moral para descrever princípios republicanos e argumentar a seu favor. Ou seja, explicitou e
vinculou noções morais, tais como as de igualdade, liberdade e bem-estar comum, às
diferentes instituições da república e da instrução.
No segundo capítulo, intitulado “Revoluções sociais e republicanismo”, os principais
argumentos examinados foram os seguintes: as repúblicas dos Estados Unidos da América e
da França constituíram exemplos virtuosos de como se combater a tradição do despotismo e
estimular o cultivo do laicismo na esfera pública; o movimento do laicismo, pensado como o
cultivo do espírito público, deve ser difundido entre os cidadãos nas instituições políticas e
educacionais como modo de impedir na esfera pública o predomínio de um espírito de facção,
partido ou seita; constitui um dever de cidadania combater a promoção de qualquer
monopólio político ou religioso no campo da instrução pública.
A república, com suas leis, deveria assegurar um caráter não despótico para a
instrução, em cuja esfera pública o bem-comum poderia ser reivindicado e efetivado; deveria
evitar que o ensino em suas instituições se transformasse num culto político-ideológico.
Nenhuma legislação que admitisse a desigualdade étnica, de gênero, religiosa e ideológica
deveria ser admitida pelas sociedades republicanas.
Para Condorcet, uma revolução só deveria prosseguir o tempo necessário para que se
estabelecesse uma nova ordem social menos injusta. O autor assentiu que o enfrentamento das
desigualdades instituídas seria o propósito principal de um governo que se submetesse aos
princípios republicanos; de uma sociedade que fizesse concorrer as forças comuns ao bem-
estar dos indivíduos, independentemente dos traços de sua cultura, da cor de sua pele, do
gênero sexual a que pertencessem, da opinião que expressassem ou da religião que
confessassem.
O laicismo deveria ser cultivado entre os cidadãos nas instituições políticas e
educacionais como modo de garantir na esfera pública o predomínio de um espírito público,
ao invés de consagrar um espírito de seita. O espírito público não equivaleria a uma opinião
entre tantas outras, senão que constituiria a própria garantia de que todas as opiniões
pudessem ser manifestadas e discutidas na esfera pública, exceto se buscassem (re)estabelecer
despotismos ou cultivar fanatismos políticos ou religiosos.
Destacaram-se, dentre as teses exploradas no terceiro capítulo - “Instituição do
cidadão e educação republicana” - as seguintes: a instituição do cidadão deveria ser
permanente, mas não uniformizadora; a república e o exercício da cidadania exigiriam uma
120
pública proposta pelo autor é tomada como instituidora da república e do cidadão republicano:
é através dela que a república aspirada pode tornar-se efetiva.
O exercício da cidadania concebido por Condorcet ocorre no campo de disputas em
meio ao qual os cidadãos podem estabelecer, nas suas próprias circunstâncias, uma condição
social de bem-estar comum. O critério da igualdade de direitos e o propósito da igualdade
social, por essa compreensão, não tornam sem efeito o fato da pluralidade humana, antes a
autorizam, porquanto para que a pluralidade de vozes seja protegida é necessário que o
princípio da igualdade nos persuada da insensatez de se reconhecer qualquer superioridade ou
inferioridade entre os indivíduos nos seus mais diversos modos de estar no mundo. Condorcet
preocupou-se, sobretudo, com o desafio de estabelecer e efetivar direitos.
A república, pensada desse modo, não equivale a uma evolução da sociedade. Ela
representa, isso sim, uma inovação social, uma conquista social. O governo, por essa forma, é
das leis e não dos homens. Os governantes também devem respeitar a lei. Investigar as
origens da educação republicana é pertinente porque a memória exerce um papel de
atualização na sociedade. Mais que tratar de criar e aperfeiçoar mais escolas, institutos e
liceus, para dar conta de universalizar o ensino e emancipar o povo, a educação republicana
pretende salvaguardar a independência, a igualdade social, bem como as liberdades de
opinião, iniciativa e imaginário.
Nos debates da educação republicana atual ecoam enunciados formulados há mais de
dois séculos pelo autor: a instrução pública deve estar aberta às possibilidades de progressos e
da perfectibilidade humana; deve estimular, além do respeito à lei e à pátria, a reivindicação
do gozo de direitos, incluindo-se aqui o direito de transformar a lei e de resistir à opressão de
um despotismo político; deve ser disponibilizada a todos e a qualquer um, não se deixando
colonizar, simplesmente, por teologias ou ideologias políticas consagradas. Ela não anula
diferenças individuais e a diversidade de talentos e profissões, senão que previne do risco de
que essas diferenças se traduzam em hierarquia social não acordada entre os cidadãos.
As considerações político-educacionais de Condorcet continuam a lançar luzes sobre
nossas tarefas teóricas e práticas de lidar com os temas da república e da educação
republicana no contexto das sociedades democráticas e republicanas atuais. Lido em nossas
circunstâncias, o autor instiga a pensar sobre fracassos de expectativas que a tradição das
luzes lançou para os tempos que se seguiram, mas, também, a indagar: com quais argumentos
podemos recorrer ou recusar reflexões e apostas que essa tradição nos legou?
Considero importante retomar e discutir reflexões de Condorcet porque, entre outras
razões, elas reforçam os valores da tolerância e da igualdade como elementos centrais da
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