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16 — Janeiro, 1990

Motrivi

DO CORPO MEDIEVAL AO CORPO MODERNO

Paulo Guilhermeti *

1 - INTRODUCAO de Teod6sio, alias, o mesmo TeodOsio, que, por


influancia da Igreja, em 393 d.C., extingue os Jogos
Olfmpicos da Antiguidade, que, na alpaca, reduziram
Atualmente a passivel verificar, no interior
"a uma acme exibicdo que nada mais tinha a
da Educack Fisica, amplas discussOes sobre os
ver corn as navels competicOes do passado" (GRA-
mais variados temas. Neste debate aparece, entre
FI, 1989, p. 139).
outras questOes, a preocupacaa em tratar o corpo
A sociedade medieval substitui a escravidao
numa perspectiva hist6rica.
Este texto objetiva contribuir corn as discus- pela servidao. A producao das necessidades mate-
sOes sobre este tema, trazendo mais uma opiniâo riais desta sociedade, no entanto, faz-se ainda
ao debate. Pretende-se, portanto, nesta reflexao, sob padrOes semelhantes aos da Antiguidade, ou
discutir as transformacOes das concepcOes do cor- seja, sob formas mesquinhas e diminutas, dirigin-
po da Idade Media a Wade Moderna. Para desen- do-se unicamente para o consumo imediato.
volver a analise proposta, tem-se como estratagia A lgreja Cat6lica representa a unidade politica
metodolOgica o pressuposto de que a explicacao desta sociedade, pois, corn 1/3 de todas as terras
de dada concepcão do corpo tern sua compreensão do mundo feudal, torna-se o maior dos senhores
na forma de ser da sociedade da alpaca em questk, feudais. Dal espalhar por todos os lugares o culto
e que o conte6do de sua transformacao esta na ao divino. Agora, o mundo, a oidem das coisas
transformagâo da base material da sociedade se explica ou se estabelece pelo desejo de Deus.
emergente (a sociedade moderna), que traz novas Portanto, "a caracterfstica de ter uma alma (essa
concepcOes ideolágico•culturais. alma ter sido criada por Deus) exige que todo
empenho educativo dirija-se ao aprimoramento es-
piritual, religioso de cada urn (NAGEL, 1985, p.
2 - 0 CORPO MEDIEVAL 04)".
A nova religläo coloca-se em oposigão ao
Evidentemente o period° medieval marca uma corpo, como coioca OLIVEIRA (1983, pp. 32-33):
fase muito obscura para as manifestacOes espor- "Afogado em crencas e dogmas religiosos, surge
tivas e culturais. Todas as atividades atlaticas urn homem que s6 era encorajado a vida celestial.
nerdadas dos gregos e romanos foram, pouco a 0 total descaso pelas coisas materials estabelecia
pouco, perdendo prestigio, ate cair quase totalmen- urn absoluto div6rcio entre o ffsico e o Intelectual";
te no esquecimento. Estes acontecimentos nâo ou como diz GRIFI (1989, p. 138): "Esta drastica
ocorrem por acaso, mas tornaram-se conseq0an- condenagáo e os princfpios deste comportamento
cias das tranformacOes sociais que a epoca colo- diziam respeito somente a esf era do mai (a dana-
cou: "... indubitavelmente, mesmo se o advento cao) e nao ao bem (a salvacao); o bem da alma
do Cristianismo acelerou o fim da atividade gfmico- prevalecia sobre aqueie do corpo e tudo aquilo
esportiva (...) concebida de acordo corn todas as que era corpOreo era considerado danoso para
normas da mentalidade grega, a causa primeira conseguir-se a vida ultra-terrea".
que levou ao fim quase total da educagao ffsica A rejeicao ao corp6reo cobca-se de forma
no mundo romano deve ser atribufda, corn toda tao absoiuta na sociedade feudal que nao ye nenhu-
objetividade, a nova situacao sOcio-polftico-eco- ma virtude no trabalho, justamente por se caracte-
nOrnica que estava desagregando os 6Itimos restos rizar enquanto atividade ffsica. 0 trabalho humano,
de urn grande e altimo !wad° (GRIFI, 1989, p. responsavel pela producao dos bens materials ne-
137)". cessarlos a sociedade, torna-se castlgo. Quem
ApOs longa perseguicao, o Cristianismo tido trabalha, nesta Opoca, segue a vontade de Deus,
s6 resiste aos romanos, como ainda se fortalece como explacão pelos pecados cometidos. Alias os
ate tornar-se religiao oficial no Impado, através castigos divinos consIstiam justamente em mortifl-

* P6s-graduagâo em Educacão Mica pela UNICAMP. Prof. Colaborador da Universidade Estadual de MaringS.
Motrivivairia Janeiro, 1990 — 17

car o corpo, sendo a (mica forma "correta" de publicada na Inglaterra, em 1960, faz uma reflexao
pagar os pecados e alcangar o bem, salvando radical da epoca.
a alma. Ao questionar o poder absoluto do Rei, Locke
Ern fungao desta concepgao de homem, as coloca a nivel da teoria o que é o novo homem
manifestacees esportivas assumem urn carater fol- que o seculo XVIII este produzindo, ou seja, a
cleric°, como os jogos eqiiestres (principals jogos necessidade de serem compreendidos no estado
do period° feudal). A cavalaria converte-se na de natureza onde todos os homens sac) livres
ordem social, na protegao e manutenceo das terras iguais.
feudais. Assim, a educacão cavalaresca impee o Desta forma, torna-se ilegitimo o poder do
aprendizado da esgrima, da caga, da luta, da equi- Rei (outorgado pela vontade de Deus — segundo
tack e ate mesmo do xadrez; no entanto nem as concepcOes anteriores), que, assim, iguala-se
a leitura, nem a escrita eram tratadas na formacao ao mais humilde sedito. Todos os pressupostos
de muitos cavaleiros (OLIVEIRA, 1983, P. 34). divinos sao destruidos, sendo agora o trabalho
0 slogan dos cavaleiros era o seguinte, segundo humano sobre a natureza a Unica coisa que dife-
GRIFI (1983, p. 141): "A minha alma para Deus, rencia os homens. Locke coloca, assim, o novo
minha vida ao Rei, o meu coracao para a dama conceito de propriedade: "... cada homem tern uma
a honra para mim". propriedade em sua prepria pessoa: a esta ninguem
tern qualquer direito, sena° ele mesmo. 0 trabalho
de seu corpo e a obra de suas mks, pode dizer-se,
sao propriedade dele (LOCKE, 1978, p. 45)".
3 — 0 CORPO MODERNO Portanto, tendo uma propriedade em seu cor-
po, pode o homem trabalhar para Si ou para outrem,
Entre a Idade Media e a ldade Modema tern- pois tem liberdade para tanto. Corn esta compeen-
se, na Histeria, o Renascimento, que se caracteriza são, Locke acaba legitimando na teoria a pratica
enquanto urn period° de manifestagOes intelectuais social de seu tempo, a forma do assalariado e
culturais que evidencia uma nova civilizacao. do capitalista (que estavam em formag5o), e ainda,
Pode-se tambem referir-se ao period° como Hu- abre os presupostos para derrubar a velha ordem,
manismo, sendo urn movimento espiritual (no secu-
calcada em concepceies econOrnicas anteriores.
lo XV) que marca o retorno ao classismo.
A nova sociedade traz a necessidade do co-
0 perfodo renascentista difere muito do perfo- nhecimento da natureza para prover os homens
do feudal pela sua concepgao de homem, pois, de novos recursos e inventos. Da( o papel da
mesmo sem negligenciar a religido, dirige-se nova- ciencia para o desenvolvimento industrial e, ao
mente ao homem, inspirando-se nas obras da Anti- mesmo tempo, para opor-se a lgreja. Assim: "Pas-
gOidade Classica. Neste momento valoriza-se a so a passo corn a ascensao da burguesia produ-
realizacao terrena, contrapondo-se as concepcees zia-se urn grande ressurgimento da ciencia. Volta-
medievais que tern a (mica preocupagao na salva- se a cultivar a astronomia, a mecanica, a ffsica,
cao da alma. a anatomia, a fisiologia. A burguesia necessitava
Este movimento que traz novamente o homem para o desenvolvimento da sua producao industrial
todas as manifestagOes humanas — inclusive de uma ciencia que investigasse as propriedades
a volta da Educaceo Fisica — representa a forma- dos corpos ffsicos e o funcionamento das forcas
gdo de uma nova forma de organizacão social naturals. Mas ate entao a ciencia nao havia sido
na produced das necessidades materials da socie- mais do que a servidora humilde da Igreja, nao
dade. Estes acontecimentos sociais, que ocorrem Ihe sendo permitido transpor as fronteiras estabe-
principalmente a partir dos seculos XV, XVI e lecidas pela fe(...). Agora a ciencia rebela-se contra
XVII, tern por principio o dominio das forgas da a Igreja; a burguesia precisava da ciencia e langou-
natureza, como coloca NAGEL (1985, p. 05): "A se corn ela na Rebeliao (ENGELS, 1980, p. 15).
descoberta da bessola, do astrolebio, da pOlvora 0 ressurgimento da Educagao Fisica, a preo-
(...) leva os homens para outros mundos e para cupageo corn o corpo vem de encontro corn as
outras ideias. A valorizagao do trabalho humano necessidades desta nova ordem social ern forma-
comeca a ser feita diante dos antigos trabalhos ceo: corn a valorizaceo do indivIduo e da ciencia,
escravos e artesanais (...). 0 trabalho-fonte de corpo ganha destaque. Por isso, encontra-se
abundancia War) é mais entendido como expiagao referencia a educacao corporal em inerneros pensa-
dos pecados, nem tao pouco destinado a seres dores desta apoca como Bacon, Locke, Da Vinci,
inferiores..." Rousseau, Pestalozzi e outros. Comega-se a pro-
A pratica social que vai constituindo urn novo duzir os primeiros tratados sobre Educageo Fisica,
mundo coloca a necessidade de apreensao teierica que passa a ser valorizada enquanto elemento
deste movimento. Urn dos mais significativos inter- de educagao.
pretes deste momento é John Locke, que, em Ate mesmo a preocupacao medica da Educa-
sua obra "Segundo Tratado Sobre o Governo", cao Ffsica, a princfpio, era a de garantir urn corpo
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forte e saudavel, portanto produtivo e necessarlo os corpos sac) livres e iguais, e so podem diferen-
sociedade nascente, como coca ALBERTI (cita- ciar-se pelo trabaiho (Locke). As diferencas são
do por GRIFI, 1989, p. 162): "A educagao das naturais.
criancas devia compreender os exercfdos ginasti- Da mesma forma tambOrn 6 preciso corn-
cos para endurecer e adestrar o corpo, habituan- preender que os pensadores desta epoca, como
do-o a fadiga e ao trabaiho". Bacon, Locke, Pestalozzi e outros, nao estao retie-
Portanto, se a questa() agora 6 o trabaiho Undo exclusivamente sobre o corpo, mas estao
(homem = trabalho) e nao mais Deus (como ante- interpretando uma nova forma de sociedade que
riormente), estao dadas as condicaes necessarlas traz uma nova concepgao de corpo.
para se repensar o corpo, sobretudo urn corpo
produtivo, voltado para o trabalho.
5 - REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS
4 - CONCLUSAO ENGELS, F. Do Socialism° ut6pico ao socialismo
cientflco. Sao Paulo, Global, 1980.
Ao propor a reflexao do corpo medieval ao
corpo moderno, coloca-se uma questão, ou seja,
GRIFI, G. Hist6rla da Educacao Ffslca e do espor-
que, ao se pensar uma nova concepgao de corpo
na hIstOrla nao se busca apenas retomar concepgao te. Porto Alegre, Luzzotto, 1989.
de corpo na hIstOrla nao se busca apenas retomar
concepc6es anteriores (das obras dos gregos e LOCKE, J. Segundo tratado sobre o govemo. Sao
romanos, por exemplo), mas se busca, sim, uma Paulo: Abril Cultural, 1978. (Os Pensadores)
forma de ser e de interpretar a sociedade. A
nova sociedade (modema) nao se gula por padrOes NAGEL, L. H. AveIlacito, sociedade e escola.Curi-
anteriores, onde os corpos se diferenciam entre tlba: SEED, 1986.
nobres e escravos ou entre senhores e servos:
diferencas tidas como divinas (pela vontade de OLIVEIRA, V. M. 0 que 6 educaceo ffslca. Sao
Deus). Agora, para a visa° moderna de mundo, Paulo: Brasiliense, 1983.

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